titulo
stringlengths
7
371
resumo
stringlengths
0
145k
categoria
stringclasses
17 values
texto
stringlengths
10
359k
link
stringlengths
47
265
Saneamento básico: pontos basilares para o desenvolvimento urbano sustentável
o presente trabalho expõe brevemente a problemática global das consequências negativas à saúde humana provenientes da desarmonia entre crescimento urbano e meio ambiente: carência de saneamento básico nas cidades. Problema este ilustrado por análises de pontos importantes sobre abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos frente a comentários de leis federais sobre gestão ambiental. Isso inserido no contexto da estratégia da sustentabilidade em suas dimensões: sociedade, economia, ecologia e espaço urbano. Comenta-se os eventos de ingerências por parte das prefeituras, empresas públicas e privadas como responsáveis diretos pelos lixões aleatórios, esgotos a céu aberto, que poluem rios e reservatórios de água potável, acarretando, por sua vez, graves doenças nas comunidades e desabastecimento. Defende-se ser a saída desse impasse ambiental a implementação de políticas urbanas e ações socioambientais em âmbito municipal, cujas realidades variam em cada caso, a fim de se obter melhoria na qualidade de vida da população por meio de emprego e melhor distribuição de renda. Ademais, explana-se o conceito de Cidade Sustentável. Por fim, critica-se o dispêndio desproporcional de verbas governamentais com desportos e campanhas eleitorais em detrimento de obras básicas de infraestruturas em saneamento básico. Utiliza-se do método de análise bibliográfica. [1]
Biodireito
INTRODUÇÃO. Preservar o meio ambiente e assegurar a manutenção da saúde pública é um grande desafio político-jurídico que abrange a implementação adequada dos serviços de saneamento básico, que, em realidade, mostram-se precários por quase todo o território brasileiro. A realidade das condições péssimas de saneamento básico torna-se complexa quando se discute competência política entre entes federativos no que toca à prestação e à regulação de serviços de distribuição de água potável, coleta de esgoto, tratamento de resíduos sólidos urbanos (RSUs) e manejo de água pluvial – quatro pilares iniciais. O que, via de regra, atribui-se competência geral para os municípios, entes carecedores de recursos públicos em razão inicial da distribuição dos repasses tributários, estes em grande fatia destinados à União. O problema do saneamento básico deve ser entendido muito além de deficiência na saúde pública, mas também um enigma de ordem política. Eis que se deve analisar a letra das principais leis de ordem administrativa ambiental, quais sejam: L. 10.257/01 – PNU; L. 9.433/97 – PNRH; L. 11.445/07 – DNSB; L. 6.938/81 – PNMA; L. 12.305/10 – PNRS. A fim de abraçar a estratégia da sustentabilidade em suas quatro dimensões: sociedade, economia, ecologia e espaço urbano, isto é, dos segmentos que compõem a chamada Gestão Ecológica das cidades. Contudo, os eventos de ingerências por parte de prefeituras, empresas públicas e privadas – responsáveis diretos pelos lixões aleatórios, esgotos a céu aberto, que poluem rios e reservatórios de água potável, acarretando, por sua vez, graves doenças nas comunidades e desabastecimento – residem na ignorância de seus gestores aos mandames normativos das Políticas Urbanas Federais de Saneamento Básico. Quiçá isso se abrolhe de má-fé, quiçá por negligencia. De todo modo, eles sãos os responsáveis por tais falhas. A saída desse impasse ambiental, ainda que não conclusivamente, estaria na implementação de políticas urbanas e ações socioambientais em âmbito municipal, cujas realidades variam em cada caso, a fim de se obter melhoria na qualidade de vida da população por meio de emprego e melhor distribuição de renda. Ou, ainda, na priorização de investimentos de recursos públicos em áreas de saúde e educação, além da busca alternativas inibidoras do consumo supérfluo de produtos industrializados e desperdício de recursos naturais. Ademais, faz-se interessante saber do conceito de Cidade Sustentável, que consoante o doutrinador Édis Milaré, seria aquele centro urbano cuja coletividade possui capacidade de supressão de necessidades básicas e conquista do bem-estar geral; ou na visão da Promotora de Justiça do Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, Gilka da Mata, a cidade a que atenda aos três pilares da sustentabilidade: ambiental, econômico e social.  Ocorre que muitas gestões públicas no Brasil alegam, a tentar justificar omissões, não ter recursos financeiros suficientes para atender as tão importantes obras de infraestrutura do saneamento básico. Conduta esta bastante criticável quando é sabido por todos do dispêndio desproporcional de verbas governamentais com desportos e campanhas eleitorais. A história colonial do Brasil pode explicar o porquê da anticultura na implementação prioritária do saneamento básico, todavia o bom senso jurídico e sanitário não aceitam quaisquer justificativas dessa ordem, fazendo-se, mais do que obrigatório, o bem-dever dos municípios em proporcionar o bem-estar das populações, sobretudo àquelas menos favorecidas economicamente. 2. SANEAMENTO BÁSICO. A Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, bem como segue o norte da Política Nacional Urbana (Lei 10.257/01), servindo de complemento para as demais leis de gestão ecológica nas cidades. Destaque-se que as atribuições dadas à União são exercidas em dois aspectos: como pessoa de direito público externo, agindo em nome do interesse de todos os entes; e como pessoa jurídica de direito público interno, atuando individualmente, com o ente federativo à parte. No entanto, o fato das políticas de saneamento básico ser de titularidade imediata da União não exclui a obrigação de atividades dessa natureza por parte dos entes federativos estados-membros, municípios e distrito-federal. Essa preconização federal serve apenas para facilitar-lhe a implementação e investimento de seus recursos, cuja fatia de arrecadação tributária é-lhe maior, acarretando, por sua vez, mas responsabilidades de atuação, ao menos em tese. Observa-se, ilogicamente, que, apesar de os recursos maiores serem federais, as obrigações executivas são arremessadas nas “costas” das prefeituras municipais. Evidenciando, a princípio, o fato dos investimentos em infraestrutura de saneamento básico ser precários. Não obstante a carcomida e lamentável realidade da corrupção coexistir àquele cenário de desserviço. Isso também ocorre por ser o Brasil um país marcado pela inversão de prioridades, onde os recursos financeiros (existentes aos bilhões) são “desviados” ou “relocados” (legal e ilegalmente) do destino saneamento básico. Por exemplo, na cidade de Natal, RN, hospitais públicos carecem mensalmente de muitos medicamentos importantes, mas que são comprados poucos em razão do “elevado” preço; esgoto urbano ainda é lançado no Rio Potengi, pois a prefeitura não dispõe recursos para a construção de estações de tratamento sanitário. Portanto, as omissões giram em torno na desculpa “falta de dinheiro em caixa”. Contudo, é de fácil indignação ver os escabrosos gastos milionários em campanhas eleitoreiras a cada biênio por parte dos governos. Ou, mais recente, o dispêndio bilionário na edificação de estádios de futebol pró “Copa 2014”. Justificativa para tal gasto: turismo – uma modalidade extremamente instável da economia de países subdesenvolvidos, que vivem no imediatismo empresarial, cuja visão econômica é bastante míope. Alias, é sabido pelas mentes mais analíticas que o Brasil opta por gastos colossais em obras “faraônicas” a fim de manter a população, pobre e sofrida pelos desserviços das gestões públicas, ocupada em panem et circenses[2].      Os “politiqueiros” brasileiros questionam-se da seguinte forma: atender a paixão pública pelo esporte ou implementar a racional obra de saneamento básico nas áreas urbanas? A resposta é maquiavélica deles é: saneamento básico é algo que está no subsolo, ninguém o vê, e, ainda, “o enterrado não dá voto”; logo, festas, circos e jogos são mais persuasivos na vontade das cabeças que agem pelo bel prazer… A história colonial do Brasil atribui tal comportamento irracional à exploração predatória dos recursos vegetais e minerais, onde grandes extensões de matas de pau-brasil eram devastadas; rios tinham o curso natural desviado pela garimpagem de metais preciosos tais como ouro e diamante. Deixando para os mamelucos, cafuzos, caboclos e mulatos brasileiros miséria, doença e abandono social. Nisso, a muito diferenciar daquelas colônias de povoamento (p. ex.: Estados Unidos, antiga Nova Inglaterra), cuja exploração econômica era seguida de obras de benfeitoria para toda a comunidade. Apenas um parêntese: até pouco tempo atrás (séculos XIX e XX), os filhos de homens mais abastados, da fina flor brasileira, grande parte industriais e latifundiários (envolvidos também em cargos no executivo e legislativo), iam estudar na Europa e Estados Unidos, a desprezar profundamente os planos de ótimas escolas edificadas em solo pátrio. Ainda ilustrando o atraso histórico, enquanto países como França e Inglaterra já possuíam enormes galerias subterrâneas para escoamento de esgotos sanitários, no Brasil, até o século XIX, via-se pessoas descendo das casas com baldes, estes apelidados de toletes, cheios de fezes e urina, para serem despejados em rios, córregos ou praias mais próximos. Esses baldes faziam às vezes do atual aparelho sanitário, só que ficavam atrás das portas, escadas e cortinas das residências. Atente-se: não existiam banheiros naquele tempo! Apenas, tão-somente nas casas de famílias de melhores condições sociais, quartos dispondo de banheiras, ou seja, de bacias grandes contendo água, esta já poluída pelos esgotos próximos. Depois surgiram as reconhecidas casas-de-banho, dispostas geralmente no quintal, haja vista a inconveniência do fedor. Até presentemente se vê residências em cidades pequenas, ou em bairros periféricos dos grandes centros urbanos, cujo banheiro é desanexado da casa, posto a metros de distância. Para se compreender com precisão o conjunto de elementos formadores do saneamento básico, faz-se mister citar o artigo 3º da Lei 11.445/07, que apresenta quatro serviços de infraestrutura básica: “Art. 3o Para os efeitos desta Lei, considera-se: I – saneamento básico: conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de: a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição; b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas; d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas;” Tal lei serve de marco regulatório do setor, a estabelecer regras jurídicas que se relacionam com outras leis de gestão ecológica urbana, quais sejam: L. 10.257/01 – Política Nacional Urbana; L. 9.433/97 – Política Nacional de Recursos Hídricos; L. 6.938/81 – Política Nacional do Meio Ambiente; e L. 12.305/10 – Política Nacional de Resíduos Sólidos.  Assim denominadas “políticas”, em vez de “planos”, com o propósito de responsabilizar o Poder Executivo, em todos seus entes federativos, inclusive por parte de terceirizados, da prestação dos serviços de saneamento básico. Por fim, ressaltem-se, quanto à Lei 11.445/07 que dispõe das diretrizes nacionais sobre saneamento básico, as palavras de Silvano Silvério da Costa (2007, p. 26, citado em MILARÉ, p. 799): “Não resta dúvida que o avanço conseguido com a nova Lei virá  contribuir para o início do efetivo desenvolvimento do setor, com maior atração de investimentos, rumo à universalização dos serviços, de importância social e econômica indiscutível.” 3. SUSTENTABILIDADE: BASE DA GESTÃO ECOLÓGICA. É imprescindível que a Gestão Ecológica, ou Gestão Ambiental, ou Gestão Sustentável dos Recursos da Natureza, seja analisada em consonância com o Direito Ambiental, a fim de que a realidade esteja em respeito às normas jurídicas. O homem (subjetivo) deve estar em equilíbrio com o ambiente natural (objeto), uma vez que aquele é elemento integrante deste. Muito são os problemas ambientais desconhecidos na Terra, lembra o ambientalista norte-americano Al Gore (2003, apud MILARÉ, 2011, p. 62), fato este preterido pelas “atuais percepções dos danos ecológicos frente às estratégias políticas postas”. Isto é, há mais uma preocupação em se readequar atuais modelos econômicos predatórios do que se preservar os nichos ecológicos[3] e a biodiversidade do Planeta. Então, a depleção de recursos naturais alcança a exaustão que vai além de discursos ecocêntricos, faz-se real e visível a todos os olhos. Fatores socioeconômicos agravantes do desequilíbrio ambiental aparecem sob a forma de disparidade social, desemprego, miséria. Doutro lado, têm-se as classes mais abastadas financeiramente com a prática de consumismo inconsequente de produtos industrializados, a causar escassez de matéria-prima e enormes porções de resíduos sólidos urbanos. O consume de alimentos enlatados, os quais no século XIX eram “alimento de rico”, hoje, é amplamente consumido por ambas as classes. Eventos que podem trazer doenças à saúde humana, p. e. lixões a céu aberto atraem vetores de doenças (ratos, insetos) e alimentos enlatados podem acarretar câncer (elevado teor de sódio e nitrato). Reagindo às atuais condições de vida humana em ambientes naturais poluídos e devastados, movimentos políticos internacionais têm surgido nas últimas décadas com o propósito de rediscutir valores e comportamentos humanos. A citar a Conferência das Partes, que até o presente tenta pôr em execução planos ecológicos das Convenções do Clima (Copenhague e Cancun) e da Diversidade Biológica (Nogoya). Porém, são quadros de discussões que são constantemente travados por ordens econômicas que se travestem de uma sustentabilidade aparente: tecnologia como solução para todo o mal da poluição. Realidades utópicas criam enorme fosso entre ambientalistas e neocapitalistas. Daí, a Ética Ambiental surge como salvadora das nações, qual mediadora dos conflitos entre as ações dos industriais e a teoria dos ecologistas. O processo de desenvolvimento dos países e suas cidades dar-se à custa dos recursos naturais vitais, ocasionando a deterioração das condições ambientais em ritmo e proporções até então desconhecidos. Isso a acometer o poder de autopurificação ou regeneração da biosfera. Considerando a Terra um organismo vivo “sui generis”, diz-se metaforicamente que esta corre perigo de morte, por razão de não existir mais dúvidas quanto à ameaça de importantíssimos nichos ecológicos, frente à extinção de espécies vivas, ocasionada pelas atividades antrópicas extensivas e predatórias. Um dos principais alertas da degradação dos recursos naturais, a nível de conferência geopolítica global, deu-se em 1972, em Estocolmo, na reconhecida Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, promovida pela Organização das Nações Unidas – ONU -, a contar com a colaboração de 113 países. Tal evento, em atitude quiçá utópica, senão de desespero, teve a proposto por alguns países de uma política econômico-ambiental de “crescimento zero”, objetivando preservar paisagens e elementos vivos naturais ainda não afetados pela atual economia desenvolvimentista neocapitalista da maioria das nações planetária. O Brasil, indiferente àquela proposta preservacionista, ainda assim nos extremos, ao tempo de seu histórico Regime Militar Autoritário, seguiu o grupo dominante dos países liderados pelos Estados Unidos, ao qual pregava a tese do “crescimento a qualquer custo”. Alegava-se que se deveriam enfrentar os problemas socioeconômicos a custa do uso intenso dos recursos naturais. Fato este caracterizado com a liberação pacífica e gratuita de milhares de hectares de florestas amazônicas a todo aquele indivíduo que quisesse “povoar” a região Amazônica que contava, e conta ainda, com baixa densidade demográfica. A advogada ambiental Carla Daniela Leite Negócio elucida a ideia do “crescimento a qualquer custo” como sendo, “[…] a crença de que a ciência pode com o tempo desvendar todos os segredos na natureza, na ideia de uma economia humana em expansão contínua e na crença de que as futuras inovações tecnológicas e a engenhosidade humana irão, por si mesmas, resolver todos os problemas humanos e ambientais” (apud THEODORO, BATISTA e ZANETI, 2008, p. 50). Esperava o Governo Federal, inicialmente, que famílias pobres das demais regiões do Brasil fixassem-se no Norte através da agropecuária de subsistência. Ledo engano. O que se notam até hoje são grupos gentílicos (inclusive sob falsas bandeiras político-partidaristas) ligados a diversas empresas e indústrias, a usar-se do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e da ideologia “Reforma Agrária”, desmatando toneladas de árvores cujo corte sem licença ambiental é ilegal. Extraem “madeira de lei” – matéria-prima bastante cobiçada pelos Estados Unidos – principal comprador de toras ilegais -, e após o desmatamento, deixam para trás a miséria socioambiental sob a forma de peões desempregados e campos desertos, sem nenhuma cultura vegetal, vez que o solo amazônico é ácido demais para muitas espécies de vegetais domésticos. O Professor (UnB) e Procurador Regional da República, Nicolau de Castro Neto, traz uma pequena amostra da crise ambiental vivida no país: “No Brasil, a situação de degradação ambiental é igualmente preocupante. Apesar do aumento verificado no número de unidades de conservação na Amazônia, tem-se, ali, acentuado processo de desflorestamento, com áreas desmatadas equivalentes aos Estados do Maranhão, Piauí e Pernambuco. Dados apontam que, no ano de 2004, o setor madeireiro extraiu da Floresta Amazônica cerca de 24,5 milhões de metros cúbicos de madeira em toras, o que equivale a aproximadamente 6,2 milhões de árvores abatidas. E o que é pior: tudo sob o manto de um frágil controle estatal, já que mais da metade dos planos de manejo naquela região contém irregularidades (THEODORO, BATISTA e ZANETI, 2008, p. 15 e 16).” Tais consequências negativas tornam-se ainda mais graves quando somadas às atividades urbano-industriais desordenadas. Eis aí que se influi na Questão Saneamento Básico: quebra do equilíbrio ecológico e proliferação de doenças como anencefalia, leucopenia, silicose, saturnismo, leptospirose, dengue, canceres etc., ocasionada por rios e reservatórios poluídos em razão de esgotos a céu aberto, lixões aleatórios e alimentos contaminados.      Desse modo, é basilar compreender um problema ambiental a partir de uma visão geral, na qual é possível explicar problemas gerais a partir de causas específicas. Indubitavelmente, o abuso dos recursos da Terra vem intensificando antigos fenômenos climáticos, como o aquecimento global e inversões rápidas das condições de tempo, acarretando, por sua vez, o derretimento das calotas polares e consequente aumento do nível dos oceanos, diminuindo as áreas de praia nas cidades litorâneas ao redor do mundo. Consoante o ex-consultor da NASA e criador da “Hipótese Gaia”, Lovelock (2005, apud MILARÉ, 2011, p. 69), o nível de destruição do meio ambiente já ultrapassou os limites, a gerar estimativas apocalípticas de que a vida humana será insustentável a partir do ano de 2040, sendo o desfecho quase que absoluto em 2100, onde 80% da raça humana sucumbirá). Nesse contexto duro e realista, surge uma esperança: o processo de sustentabilidade das atividades humanas. O desenvolvimento sustentável tornou-se não mais retórica ambientalista, mas sim uma realidade presente no dia-a-dia de muitos processos industriais, a citar o uso de materiais reciclados para obtenção de produtos e a utilização da luz do Sol como fonte geradora de energia elétrica. Hodiernamente a economia e a sociedade humana não podem mais prescindir das estratégias ecológicas. A Questão Ambiental está presente na ciência, na tecnologia, na cultura, na política, enfim, em todos os âmbitos do conhecimento humano. Daí a importância de harmonizar as ações antrópicas com as Leis da Natureza – leis que estão acima de qualquer arbítrio do homem. Frise-se, a agressão aos bens da natureza põe em risco a sobrevivência humana: fato notório, hoje. Portanto, mister se faz buscar alternativas que tragam equilíbrio ao tripé: (i) atividades econômicas; (ii) sociedade humana; e (iii) preservação do ambiente natural. Ademais, compatibilizar meio ambiente com desenvolvimento socioeconômico significa analisar problemas ambientais dentro de um processo contínuo de planejamento multidisciplinar. Isto é, a política de gestão ambiental não deve obstaculizar nem o crescimento econômico, nem o uso racional dos recursos naturais, a fim de garantir a base material do progresso humano sob a estratégia da sustentabilidade. Segundo ensina o Professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, José Carlos Barbieri,  “Para se alcançar o processo de sustentabilidade, faz-se exigente o uso de inovações científicas e seus equipamentos tecnológicos que ampliem permanentemente a capacidade simultânea de consumo, recuperação e preservação dos recursos naturais, tendo em vista as infindáveis necessidades humanas das presentes e futuras gerações (2005, apud MILARÉ, 2011, p. 73).” No entanto, tal conceito de desenvolvimento sustentável tropeça na utopia ou quimera quando nos centros urbanos predomina a pobreza, a exclusão social, o desemprego, pois o povo que não come direito, não estuda, não lê, não pensa como seria o uso consciente dos recursos da natureza. O uso sustentável da superfície terrestre solidariza-se com a atuação conjunta e mútua de toda a comunidade, o Poder Público, as classes empresarial e industrial. Isso também deve ser aplicado ao problema do saneamento básico, que merece superação a partir três iniciativas: (i) mudança profunda na conduta individual do desperdício e consumismo exacerbado através da Educação Ambiental; (ii) redução das disparidades sociais, melhor distribuição de renda e oferta de empregos; e (iii) aplicação severa de leis específicas no embate dos impactos ambientais causados pelas atividades econômicas. Portanto, a comunidade e o Poder Público são os responsáveis solidários pela manutenção do ambiente saudável, ao passo que o progresso socioeconômico fundamenta-se pelo bem comum. Nesse diapasão, faz-se importante mostrar algumas características de uma Cidade Sustentável, a partir do que anota o doutrinador Édis Milaré (2011, p. 77-78): “a) População com forte senso de coletividade e iniciativa para resolução de seus problemas; b) Conhecimento pleno de seus Direitos Cívicos; c) Participação popular nos espaços e fóruns representativos, em conselhos locais e assembleias de discussões de interesse coletivo; d) Forte organização comunitária e autogestão; e) Elevada vocação produtiva em harmonia com questões culturais, sociais, econômicas e ambientais.” Por fim, ressalte-se que a importância de uma Cidade Sustentável está na capacidade de autogestão e sustentação de sua população, atendendo satisfatoriamente às necessidades básicas que proporcionam o bem-estar de todos. E isso é a concretização do termo sustentabilidade, que assume sinônimos de: processo, prática, recurso, construção, empreendimento, desenvolvimento, conhecimento científico, conceito ecológico, alto nível de consciência holística e outros. No Brasil, o conceito oficial de sustentabilidade apareceu por ocasião do estabelecimento de diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição, com a Lei 6.803, de 2 de julho de 1980. Tempos depois, tal significado foi aprimorado na forma de Política Nacional do Meio Ambiente, que priorizou a avaliação dos impactos ambientais como meio de preservas os processos ecológicos essenciais (art. 9ª, III). 4. GESTÃO AMBIENTAL. A sustentabilidade é critério básico para a Gestão Ambiental de uma comunidade urbana, devendo a consciência ecológica e o desenvolvimento socioeconômico estar unidos em responsabilidade múltipla. Do contrário, o desenvolvimento sustentável será uma falácia, um “engodo ambiental”. E ressalte-se, sustentabilidade ecológica não se confunde com crescimento econômico, pois este último por vezes representa mera modernização de elites, cujo projeto de responsabilidade socioambiental é desfocado, preterido em razão da ganância do atual modelo neocapitalista que concentra renda nas mãos de um pequeno número de pessoas. A sustentabilidade, conforme ensinam Melo e Froes (2002, p. 105), vai muito além dos modelos seguidos pela sociedade industrial, ela alcança a perpetuação da vida e o valor de preservação do Mundo Natural; do uso racional dos recursos naturais de forma que sua regeneração ocorra continuamente, sobretudo quanto às fontes não renováveis, divergindo da exploração econômica predatória. Com observância às definições de sustentabilidade e das regras do Direito Ambiental atua a Gestão Ecológica, devendo abraçar as cinco dimensões do desenvolvimento sustentável, quais sejam, na conceituação de Ignacy Sachs (1995, apud VESENTINI, 2003, p. 169): 1) “Sustentabilidade Social – criação de um desenvolvimento que objetive construir uma sociedade justa, com melhor distribuição social da renda e redução do abismo entre os mais ricos e os mais pobres. 2) Sustentabilidade Econômica – deve ser avaliada em termos macrossociais [no nível de bem-estar de toda a sociedade] e não apenas no nível microeconômico [no plano do lucro das empresas individuais]. Também a expansão da ciência e da tecnologia deve ser contemplada, tornando-as disponíveis especialmente aos países subdesenvolvidos. 3) Sustentabilidade Ecológica – deve levar em conta os limites da Terra e produzir um desenvolvimento em harmonia com os recursos naturais. Uma medida seria limitar o uso de combustíveis fósseis, substituindo-os por fontes de energia renováveis e/ou abundantes […]. Outra medida seria reduzir o volume do lixo e dos resíduos, com a sua reciclagem. Deve-se ainda intensificar a pesquisa tendo em vista a obtenção de tecnologias “limpas” [não poluidoras], como máquinas que gastem menos energia, uso do hidrogênio ou da energia solar, etc. 4) Sustentabilidade Espacial – configuração rural-urbana mais equilibrada e melhor distribuição territorial dos assentamentos humanos e das atividades econômicas. Isso implica reduzir a excessiva concentração de pessoas e atividades nas áreas metropolitanas, frear a colonização de áreas florestais, incentivar a industrialização descentralizada e criar uma rede de reservas naturais e de biosfera para proteger a biodiversidade. 5) Sustentabilidade Cultural – aproveitamento da sabedoria dos povos nativos, fazendo com que o processo de desenvolvimento não modifique seus valores culturais, que devem ser preservados e valorizados.” 5. PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL. Alcançar a satisfação das reais necessidades da espécie humana passa a ser extremamente intangível frente à análise da cultura da civilização ocidental. Destacadamente, as tradições judaico-cristãs que elegem o materialismo como sinônimo de “graça divina”, a citar a frase do livro do Gênesis: “crescei, multiplicai-vos e dominai a Terra”; e as muitas passagens salomônicas que proferem ser mais próximo de Deus o homem de grandes posses (patrimônio estritamente material), a referendar o contexto histórico da época, onde o Rei dos Judeus vivia cercado de muita ostentação, esposas (plural) e filhos em seu gigantesco palácio; não surpreendente, levou à revolta popular pela cobrança de pesados impostos em somatória da miséria, e, logo em seguida, vulnerabilidades sociopolíticas que favoreceram sua ruina. Isso é a interpretação científica, não desprezando as visões espiritualistas das religiões. O fato é que leituras extremadas e obscuras dos Textos Antigos fazem com que muitos de seus séquitos tenham um comportamento antropocêntrico e agressivo; dissociando a real necessidade que o homem tem quanto ao equilíbrio dos recursos finitos do Planeta – “um asteroide pequeno” que muito oportunamente é divinizado pelas culturas religiosas orientais, a deusa Gaia Terra, que gosta de ser usada, mas não abusada. Portanto, infere-se que a cultura e a religião influenciam notadamente as visões econômicas, nisso corroboram as leituras do grande sociólogo Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. A fim de definir o que vem a ser Podução Sustentável, explica o doutrinador Édis Milaré (2011, p. 94): “Produção sustentável […] vem a ser o processo de extrair do mundo natural, através de técnicas e métodos adequados, bens de consumo direto e matéria-prima a ser elaborada ou transformada com vistas à fabricação de outros bens, por procedimentos quer artesanais, quer industriais. À produção de bens acrescentam-se a produção ou a oferta de serviços […].” Ocorre que “produzir” é algo benéfico e necessário per si. Contudo, como é sabido, os recursos da natureza são limitados e as necessidades humanas são infinitas. Isso ainda mais preocupante quando do uso predatório dos bens naturais pelas indústrias, cuja motivação capital é tão-somente atender a demanda crescente do consumo de produtos e serviços, extrapolando a razão e o equilíbrio. Para entender esse crescimento desproporcional da produção humana, menciona-se novamente o exemplo da floresta Amazônica, onde uma única árvore jatobá que leva 30 anos para atingir a fase adulta é cortada aos milhares num espaço de tempo de segundos por madereiras que dia e noite estão desmatando. A capacidade regenerativa da biomassa não é pário para a frenética atuação predatória do extrativismo vegetal no Brasil. Outro exemplo negativo, é a produção de lixo e esgotos pelos centros urbanos, sendo impotente as atuais contenções dos poderes público e privado através de obras de infraestrutura sanitária e de reciclagem dos resíduos sólidos. A grande maioria das cidades não possuem locais adequados para depósito de lixo produzido em quase sua totalidade. Os resíduos sólidos são, em regra, lançados em terrenos baldios pouco distantes do núcleo habitacional, mas que não impedem a proliferação de ratos, baratas e outros transmissores de doenças que acabam por atingir a população. E quando chove, esse lixo produz o líquido negro e tóxico: chorume, que se infiltra no solo, atingindo o lenços freático que, por vezes, abastece a comunidade. O geógrafo José William Vesentini (2003, p. 271) relata gritante dado do IBGE quanto ao lixo produzido nas cidades brasileiras: “O volume de lixo produzido por pessoa é muito grande nas sociedades industriais, inclusive no Brasil. Um estudo do IBGE mostrou que, em média, cada morador de área urbana no Brasil gera 220 kg de lixo domiciliar por ano. Teremos uma média de 500 kg de lixo anual por pessoa se somarmos a isso os resíduos provenientes, entre outras fontes, de indústrias, escritórios, restaurantes e hospitais, que originam um lixo particularmente perigoso e que deve receber coleta especial e incineração, o que nem sempre ocorre.” Noutro ponto, a produção urbana inconsequente dos esgotos, geralmente despejados sem nenhum tipo de tratamento em rios e córregos que transpassam a cidade, matando-os por meio da poluição intensa, a transformá-los em poções de fétidas águas escuras e tóxicas, sem peixes.   Para conter, ou ao menos amenizar, tal paisagem negativa da produção antrópica, faz-se basilar a composição das legítimas necessidades de consumo em relação às capacidades limitadas de geração de matéria-prima da Terra; de buscar-se a produção e o consumo sustentáveis, ladeada de racionalidade no uso dos recursos naturais e de processos de produção ecologicamente seguro. Frise-se que os problemas que envolvem esgoto, lixo e água potável passam a ser utópicos quando não se implementa o Saneamento Básico como projeto prioritário e interdisciplinar nas cidades. Ainda, embora fenômenos socioeconômicos e culturais sejam distintos, estes devem interligar-se para o diagnóstico dos impactos ambientais. Agora, destaque-se a recente e feliz cultura empresarial do uso de produtos e serviços em obediência à normatização internacional ofertada pela ISO – “International Organization for Standardization” -, uma organização global com sede em Genebra, Europa, que vem atuando dentro de seus objetivos societários desde 1947. Nas últimas décadas, surgiram as importantes ISOS nº 9.000 (normas sobre qualidade dos produtos industriais) e nº 14.000 (normas sobre a qualidade ambiental presente nos produtos e processos produtivos industriais). A princípio, as normas da ISO não punem eventuais impactos ambientais provocados por empresas comerciais, pois elas são normas de caráter suasório, sem força jurídica; exceto, porém, se o Poder Público lhes confira tal poder coercitivo, adotando-as na seara de institutos legais pátrios. De qualquer forma, a vigência das normas da ISO como organização técnico-científica não governamental é recepcionada no Brasil através da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas -, dando-lhes status de instrumentos paralegais, e, outrossim, assume força parajurídica. 6. CONSUMO SUSTENTÁVEL. Quase a totalidade dos grandes problemas ambientais são consequências do uso racional de bens, produtos e serviços pelo consumo da sociedade hodierna. Hoje, na maior parte do consumo de água potável das cidades brasileira, por exemplo, não se incide valor pecuniário ao mineral em si, apenas cobra-se o serviço de distribuição através de tubulações (“água encanada”), tratamento químico, energia elétrica, etc. Contudo, devido à raridade progressiva de obtenção de água potável nos últimos tempos, a tendência é prevenir a sua escassez ou conter sua poluição através de princípios jurídicos como o do Poluidor-pagador e do Usuário-pagador, agregando mais custos financeiros àquele mineral essencial à vida de todo ecossistema planetário.   A valorização econômica dos recursos naturais já é uma realidade absurda, quiçá “um mal necessário”, tendo em vista que o homem melhor valoriza-os quando atingido o seu bolso. No entanto, o problema está quanto ao seu acesso pelas populações de baixa renda; vez que a água, assim como o ar, é elemento essencial tanto para a saúde quanto para a sobrevivência humana. Triste seria ver a humanidade retroagir em sua evolução e chegar aos Tempos das Cavernas, onde a lei da selvageria insana iria prevalecer sobre a razão, sobre a civilização. O mundo e seus 8 bilhões de pessoas tornar-se-ia insustentável. A Lei 6.938/81 – PNMA –, Política Nacional do Meio Ambiente, objetiva “a imposição, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos” e “a imposição, ao poluidor e ao predador”, da obrigação de recuperar e indenizar os danos acarretados à natureza (art. 4º, VII). Não obstante à lei, alerta o professor de Direito Ambiental (UNIMEP – SP) Paulo Leme Machado que, “O uso gratuito dos recursos naturais tem representado um enriquecimento ilegítimo do usuário, pois a comunidade que não usa do recurso ou aquele que o utiliza em menor escala fica onerado. O poluidor que usa gratuitamente o meio ambiente para nele lançar os poluentes invade a propriedade pessoal de todos os outros que não poluem, confiscando o direito de propriedade alheia” (Revista Consulex – ano XIV, 317, 2010, p. 44). Diante disso, cogente fica a aplicação de ambos os princípios, como sendo um contido no outro, a tornar obrigatório o pagamento pecuniário pelo uso do recurso ou por sua poluição. Lembrando-se que tal evento danoso prescinde de prova por parte do acusador ou usuário poluidor, vez que a responsabilidade ambiental é objetiva, necessitando apenas de nexo de causalidade entre a conduta dos agentes e o dano. Para efeito de tão-somente sentir a gravidade do consumo desordenado da água potável, relatório feito pela Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, ano de 2002, prevê que no ano de 2025 cerca de 4 bilhões de seres humanos estarão sem água para beber. Portanto, pensar em consumo sustentável diante de perspectivas tão graves passa a ser uma atitude urgente por parte do Poder Público e da comunidade, sob pena de uma tragédia social ocorrer nas próximas décadas. 7. GESTÃO URBANA: INSTRUMENTOS LEGAIS. 7.1. ESTATUTO DA CIDADE E PLANO DIRETOR. Manda a Constituição Federal de 1988 que a Política Urbana se desenvolva em harmonia entre entidades civis e anseios populares, de modo a garantir direitos fundamentais à moradia, aos melhores serviços públicos de saneamento básico, à saúde, entre outros, a fim de realizar a tão sonhada qualidade de vida coletiva. Para isso, exige a Carta Maior que o imóvel urbano (propriedade ou posse) atenda à função social, nos termos complementares do respectivo Plano Diretor do município (arts. 182 e 183, CF/88). A Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, reúne instrumentos que dão guarida ao disposto na Constituição, pois possui matérias de ordem tributária, urbana, jurídica e ambiental que devem nortear qualquer Plano Diretor – conjunto de leis municipais que estabelecem a política urbana local para o pleno desenvolvimento das funções sociais. Tais instrumentos legais são obrigatórios para o desenvolvimento e expansão corretos de qualquer centro urbano, sobretudo se possuir mais de 20 mil habitantes, consoante dispõe o artigo 182, §1º, da Constituição Federal, haja vista ser a gestão democrática e ambientalmente legal um direito de todos. Ensina a doutrinadora Isabel Oliveira que a participação popular está como ponto mais importante na construção de um Plano Diretor, através de associações representativas dos vários segmentos da sociedade, em dever de cidadania quando envolvido nas várias etapas de elaboração das leis locais (implementação, avaliação e execução). Sem olvidar as estratégias da sustentabilidade que devem iluminar cada artigo. Portanto, o Plano Diretor é o instrumento legal básico de orientação da expansão urbana em consonância com as diretrizes econômicas, sociais, jurídicas e ambientais para o desenvolvimento urbano sustentável. De modo que é imprescindível que ele integre não somente as cidades com mais de 20 mil habitantes, mas também aquelas que integram regiões metropolitanas e áreas conturbadas e de importância cultural, turística, ambiental e paisagística. É de competência municipal a elaboração do Plano Diretor. E observe-se: tal plano sempre deve ser guiado pelo princípio da conservação dos ambientes urbano e naturais que compõem a cidade, além de garantir que os recursos naturais sejam utilizados adequadamente pelas presentes e futuras gerações, em um espaço ecologicamente equilibrado. Igualmente, ressalte-se que por ser o espaço urbano mutante, físico e culturalmente, assim também deve ser o Plano Diretor. Ou seja, este deve ser um código dinâmico, passível de alterações legais periódicas à medida que novas necessidades biológicas, físicas, culturais e socioeconômicas forem surgindo. Por fim, as leis elementares do Plano Diretor devem conter assuntos sobre: (i) ocupação e parcelamento do solo; (ii) sistema viário; (iii) códigos de obras; (iv) códigos ambientais de disposições locais; e (v) outros aspectos administrativos e legais. 7.1. PLANO DE PROTEÇÃO ECOLÓGICA. Os planos de proteção, ou preservação, do meio ambiente podem ser de iniciativa nacional, regional, estadual ou municipal, em respeito ao artigo 225 da Carta da República; devendo o Poder Público e a coletividade adotarem medidas para afastar os patrimônios ambientais de ações nocivas, além do devido controle da poluição existente. 7.2. PLANO DIRETOR DE DRENAGEM URBANA. O Plano Diretor de Drenagem Urbana é um instrumento gerenciador de obras estruturais (pontes, galerias de escorrimento de águas, piscinas de capitação de fossa, caixas d’água e outros) e medidas não estruturais (legislação, zoneamento do solo, fiscalização, etc.); a fim de regulamentar a adequada ocupação do solo na área urbana, e, principalmente, mitigar problemas causados pela carência de esgotamento sanitário, ineficiência nos sistemas de drenagem de águas pluviais e fluviais, disposição aleatória de resíduos sólidos e omissões legais do Plano Diretor. A equilibrar o crescimento urbano (vertical ou horizontal) com as condições ambientais das cidades. CONCLUSÕES FINAIS. Nos centros urbanos estão as maiores fontes de poluição do meio ambiente, assim como os grandes problemas que afetam a saúde da comunidade e preocupam o Poder Público. Mais frequente há a carência de saneamento básico nas cidades brasileiras, expressa pelas precárias prestações de serviço público de abastecimento de água potável, coleta de resíduos sólidos urbanos e captação de esgotamento sanitário. Problema que afeta não só o ambiente humano (artificial), como também se salienta nas diversas formas de poluição no ambiente natural. A trazer enormes consequências negativas à saúde da comunidade e ao equilíbrio dos ecossistemas. Muitas gestões públicas invertem a prioridade dos investimentos de recursos governamentais para privilegiar eventos desportivos e campanhas eleitorais, um gasto que chega a estratosfera de bilhões de reais; ao passo que, quando não mais alegam “falta de recursos”, relegam as obras de infraestrutura em saneamento básico aos segundos e terceiros planos – imoralidade e descaso com os administrados. Sem contar os inúmeros ferimentos aos ditames legais. “Estancar” a poluição, o que pareceria a alternativa mais óbvia e necessária, é uma utopia frente aos modelos de sociedade e de economia (inclusive de reprodução biológica) que assistem a humanidade. No entanto, “minimizar” os impactos ambientais parece ser o verbo mais palpável frente à realidade antrópica. “Recuperar”: eis um enorme desafio para a tecnologia, a custar bilhões em dinheiro. Para isso, deve-se abraçar a Construção da Comunidade Sustentável, ou seja, buscar aliar tecnologia, educação e instrumentos legais a fim de desenvolverem-se obras minimizadoras de impactos negativos, principalmente, à saúde da população, e recuperação de algumas áreas urbanas poluídas; sem exclusão das questões socioeconômicas (emprego, distribuição de renda, redução das misérias sociais, etc.). Utilizando-se das várias dimensões que envolvem a estratégia/processo de sustentabilidade, notadamente: econômica, ambiental, social, ecológica, demográfica (ou espacial), cultural, política e institucional. De modo que a humanidade possa preservar os ecossistemas existentes e garantir a sobrevivência das presentes e futuras gerações.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-112/saneamento-basico-pontos-basilares-para-o-desenvolvimento-urbano-sustentavel/
ADPF nº 54 à luz do biodireito: Interrupção da gestação do feto anencéfalo
A interrupção da gestação do feto anencéfalo determinou um marco no mundo jurídico. A novidade não está no procedimento, mas na inércia da previsão nos textos legais para seu regramento junto aos novos acontecimentos sociais proporcionados pelo desenvolvimento das Ciências da Saúde. Através da pesquisa bibliográfica das doutrinas mais relevantes sobre o tema e a apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental  ADPF nº 54, ficou evidente o descompasso do manto jurídico com a sua cobertura aos casos concretos da sociedade. Os doutrinadores Débora Diniz, Edison Tetsuzo Namba, Maria Helena Diniz e José Afonso da Silva ganham relevância por seus escritos, trazendo à baila suas considerações sobre o início da vida humana, a anencefalia, a caracterização do ser humano antes do seu nascimento, o Biodireito como ponte para atualização jurídica e a dissonância da Ciência Jurídica com o mundo fático. O estudo se fez por confrontar conceitos doutrinários, sobre uma positivação antiga, diante de uma realidade modificada continuamente pela tecnologia médica, levando-a a um imenso distanciamento da sua ordem jurídica. Este alargamento provocou a reação da categoria representativa dos profissionais da saúde, condicionando o Supremo Tribunal Federal a ceder à pressão popular através do julgamento da ADPF nº 54. O resultado deste julgamento concretizou a teoria dos doutrinadores sobre a defasagem da justiça perante inovações da Medicina aplicadas na sociedade, levando a concluir pela necessidade urgente da atualização dos textos positivados, seguindo pelo caminho do estreitamento entre Ciências da Saúde e a Ciência Jurídica, intermediada pelos estudos do Biodireito.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO A escolha do presente tema se justifica pelo descompasso da seara jurídica com o mundo fático em seu regramento. A interrupção da gestação do feto anencéfalo é apenas a ponta do iceberg que demonstra uma das muitas necessidades que a sociedade necessita e o sistema jurídico não consegue acompanhar. Esta defasagem do Direito em relação ao caso concreto se deu pelo largo desenvolvimento tecnológico das Ciências da Saúde, levando aos indivíduos novidades que vão desde a manipulação do início da vida do ser humano até à cura de doenças que já foram terminais. Com este desajuste, os doutrinadores sempre criticaram fortemente a inércia do judiciário para casos como o da interrupção da gestação do feto anencéfalo. Para os estudiosos da matéria a solução está na interdisciplinaridade do Direito com as Ciências da Saúde, quando deve entrar em campo o Biodireito como ponte de ligação entre as duas grandes áreas, para levar novos entendimentos aos antigos textos codificados. Esta aproximação não se trata de uma fusão, mas de um caminhar concomitante entre as disciplinas, a fim de levar ao Direito, através do Biodireito, as novidades do caso concreto, proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico da ciência médica, para alinhar o regramento jurídico ao mesmo compasso da sociedade. Nesse sentido, neste ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de n.54, retornando à sociedade uma resposta aos casos de interrupção da gestação do feto anencéfalo, ficando em consonância com o caso concreto neste quesito que o texto de lei deixou de positivar. A proposta aqui é apresentar a antiga defasagem do regramento jurídico em relação ao caso concreto, através do contexto do indivíduo enquanto ser humano e, que o caminho para a sua atualização está na comunicação com outros campos das Ciências. Este trabalho acadêmico de finalização da graduação do curso de Direito está dividido da seguinte forma: No primeiro capítulo apresenta-se a disciplina Biodireito; seu conceito, características, os seus estudos e como ela faz a comunicação estre as Ciências da Saúde e o Direito. Em sequência, no segundo capítulo, se faz necessária a definição do início da vida do ser humano para o campo da saúde, para determinar este início dentro da seara jurídica, para depois medir os efeitos da interrupção do desenvolvimento do feto anencéfalo sobre a mulher e o próprio feto. O terceiro capítulo discorre sobre a anencefalia: como ocorre e os meios de se evitar, as formas de diagnóstico e quais as consequências da anomalia para o feto. No quarto capítulo, faz-se uma análise da ADPF Nº 54, apontando o que deu causa à sua origem e os entendimentos sobre o início da vida, anencefalia e direitos humanos que levou os ministros a decidirem seus votos. Por fim, são apresentadas as considerações finais extraídas com relação ao problema. 1 BIODIREITO  Nos últimos anos, o impacto da Ciência Médica no Direito tem sido tão grande que impulsionou o surgimento de nova disciplina jurídica: o Biodireito[2]. (SÁ, 2004, p.251). É o que afirma Maria de Fátima Freire de Sá, Doutora em Direto pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professora de Biodireito da Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais, em sua obra Bioética, Biodireito e o novo Código Civil de 2002. Nesta obra, Sá, demonstra um estreitamento entre as Ciências da Saúde e o Direito. O Código Civil Brasileiro de 2002 é o palco principal de uma verdadeira transformação temática da Bioética na seara do Direito. As interpretações das linhas dos artigos deixam de ser embebidas de literalidade e ganham dimensão para acompanhar a evolução comportamental e psicológica da sociedade regida. Os antigos aspectos jurídicos ganharam desenvoltura com a agregação dos novos conceitos Bioéticos: a paternidade, filiação, gestação, doação de óvulo e exames de DNA são alguns dos pontos de ligação entre as matérias da Bioética e o mundo jurídico numa sociedade gerida por um sistema de regras sistematizadas. É o que sintetiza Maria de Fátima Freire de Sá quando traz aos olhos do leitor as conclusões de sua obra:  As novas formas de procriação tornaram as presunções tradicionalmente admitidas […] até certo ponto, ultrapassadas, ou carentes de uma releitura. (SÁ, 2004, p.277). Em seu texto, Sá procura mostrar a necessidade da adequação dos textos de lei aos novos fatos sociais trazidos pela Bioética. Ratifica a afirmação de Sá, o Doutor em Direito Cleyson de Moraes Mello, em sua obra, Novos Direitos: os paradigmas da pós-modernidade, quando trata da gênese da Bioética:  É no contexto de crise que se pode situar a gênese da bioética. Bio representa a ciência dos sistemas vigentes, e ethike, o conhecimento dos sistemas dos valores humanos. (MELLO, 2004, p.321). O doutrinador compartilha do mesmo entendimento de Maria de Fátima Freire de Sá e salienta a crise em que se encontra a norma que gere a sociedade. Mello, também acompanha Sá quanto a defasagem do ordenamento jurídico diante das evoluções bioéticas. Ainda sob os ensinamentos de Mello:  A reflexão bioética propõe a união dos valores éticos e dos fatores biológicos, um encontro das ciências experimentais com as ciências humanas. As novas situações criadas pelo avanço da biotecnociência abalaram as convicções científicas antes inquestionáveis. A reflexão bioética surge no âmago de um verdadeiro furacão que tem varrido as certezas absolutas. Isso tem levado o homem a voltar-se para si em busca de respostas, percebendo que a ciência positivista não é capaz sozinha de dar conta dos novos questionamentos . (MELLO, 2004, p.322). O texto faz emergir a responsabilidade de auxiliar e ampliar a Ciência Jurídica que o Biodireito busca moldar no Código Civil de 2002. Tal responsabilidade se deve pelas aspirações que borbulham na sociedade e exigem uma normatização a fim de se garantir a segurança jurídica do sistema normativo. Na prática, o Biodireito tenta parametrizar um Código antigo (de 1916) que não acompanha o desenvolvimento da sociedade com os fatos já existentes trazidos e garantidos por uma medicina moderna, evolutiva e impactante. É o que ocorre, por exemplo, com a chamada Gestação de Substituição, também denominada Maternidade Jurídica, como leciona Maria de Fátima Freire de Sá:  Na gestação de substituição, uma mulher gesta em seu útero óvulo fertilizado de outra mulher, que, por alguma razão, não consegue manter a gravidez. A fecundação realiza-se in vitro com o óvulo da mulher e o esperma do marido ou companheiro e posteriormente é implantado no útero de outra mulher . (SÁ, 2004, p.255). Esta gestação é um pacto, celebrando de um lado a gestante e do outro lado o casal que deseja o filho que não consegue tê-lo por um ou mais problemas de ordem biológica do corpo humano. É este um dos diversos pontos que deixa clara a necessidade da aproximação das Ciências da Saúde com as Ciências Jurídicas, para que o ordenamento jurídico consiga acompanhar as novas tendências e desenvolvimento da sociedade contemporânea. A sociedade evolui através da Medicina e a tendência é que o Direito acompanhe essa evolução através do Biodireito. Ainda neste sentido, absorvendo os ensinamentos de Maria de Fátima Freire de Sá, emerge de seus textos:  O pacto para a gestação de substituição é negócio jurídico de comportamento e, sendo gratuito, é lícito e, portanto, válido. (SÁ, 2004, p.277). Traz a autora uma nova modalidade de negócio jurídico, inovando e remodelando tudo o que se conhecia até então sobre a matéria. É neste caminhar que o Biodireito norteia o Direito, atraindo as novidades do mundo fático para o meio jurídico gerando a regulação apropriada para cada caso concreto, antes desabrigadas no meio da sociedade sem uma vinculação adequada com o mundo jurídico. Esta nova moldura trazida para a seara do Direito não funcionaria se não fossem pela moral e pela ética, que servem como substâncias fixadoras dando nova vida ao campo jurídico. Para realizar o seu papel, o Biodireito atrai a conceituação de ética por seu núcleo Bioético. Seu estudo histórico e detalhado é improfícuo no plano do presente trabalho, ficando a mensagem do doutrinador jurídico brasileiro Migue Reale, através da obra de Edison Tetsuzo Namba, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo:  Miguel Reale sintetiza o drama da conquista científica no plano da ética, a qual ordena condutas: […] Qual a obrigação do homem diante daquilo que representam as conquistas da ciência? Que dever se põe para o homem razão do patrimônio da técnica e da cultura que a humanidade conseguiu acumular através dos tempos? A ciência pode tornar mais gritante o problema do dever, mas não o resolve. Os conhecimentos científicos tornam, às vezes, mais urgente a necessidade de uma solução sobre o problema da obrigação moral, mas não implicam qualquer solução, positiva ou negativa. O problema do valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo . (NAMBA, 2009, p.7). Neste ensinamento de Reale, trazido por Namba, o doutrinador explana que a busca científica pelas soluções dos problemas sociais pode se tornar desenfreada, sendo incumbência da ética, o regramento de condutas para frear as soluções científicas. Complementando o pensamento de Reale, Namba explana um conceito mais nutrido de ética:  A ética representa uma conduta adotada após um juízo de valor, que não pode ser dissociada da realidade, para não se tornar etérea. (NAMBA, 2009, p.7). Namba deixa claro que a ética deve estar encrustada com o fato real. Todos os atos praticados por um indivíduo em prol da sociedade ou mesmo em prol de si devem ser embebidos da ética, sendo este o pensamento primeiro antes de se efetivar a conduta, para que não se torne volátil e fuja da esfera social quebrando todo o elemento imaterial que compõe o indivíduo humano. Diante dos ensinamentos dos doutrinadores, não seria incorreto dizer que a ética guarda íntima relação com o direito, como ensina Maria de Fátima Freire de Sá:  Ética e direito são duas grandezas distintas e ao mesmo tempo inseparáveis. […] O direito rege o comportamento externo, enquanto a moral enfatiza a intenção. (SÁ, 2004, p.12). À primeira vista, esta relação aproximada da ética com o Direito pode levar o leitor a compreender que o regramento jurídico serve para ordenar restritivamente o comportamento dos indivíduos na sociedade, levando a um firme engessamento de todas as condutas sem levar em consideração qualquer manifestação que possa partir do seu subconsciente. Essa inicial observação é corretamente compreendida quando se complementa o pensamento da doutrinadora com os textos de Miguel Reale, de sua obra Filosofia do Direito:  A norma jurídica não se limita a obrigar: também faculta, atribui um âmbito de atividades autônomas a um ou a mais sujeitos, legitimando pretensões ou exigibilidades, assim como o recurso a um Poder, expressão do querer comum expresso na regra para que se cumpra o  devido  . (REALE, 2002, p.686). Envolvendo os textos de Reale e Sá, fica fácil observar que o Estado realmente obriga, ordena, no entanto, também atribui faculdade aos sujeitos. Convém concluir, que a liberdade do indivíduo deve estar ligada a ética e por falta desta, o Estado impõe a sua prática. Essa aproximação da ética com o Direito ensejou nova nomenclatura, a Bioética. Neste pensar, explana José Alfredo de Oliveira Baracho apud NAMBA:  As relações entre a ética e o direito tem uma longa história que conduz a uma bioética da responsabilidade, ao formular a responsabilidade decorrente de suas aplicações . (NAMBA, 2009, p.8). Em seu texto, Namba faz o casamento perfeito que resulta na Bioética. O Direito se usa da ética para legitimar as feituras da Bioética. A Bioética é livre para trabalhar, descobrir e desenvolver, no entanto, mediante o ordenamento jurídico, deve estar nos conformes éticos exigidos pelo Direito. A conceituação de Bioética passou por vários anos absorvendo diversas definições conforme a experiência de cada especialista que lhe atribuía. Sobre este aspecto temporal, explana NAMBA:  A palavra bioética apareceu pela primeira vez em 1971 […] Algumas definições do vocábulo foram elaboradas: Potter dizia que a bioética  é a ponte entre a ciência e as humanidades . […] Em 1978, Reich, ensinou que bioética é  o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da atenção à saúde, enquanto que esta conduta é examinada à luz dos princípios e valores morais. […] David J. Roy, em 1979, sacramentou que bioética é  o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas para uma administração responsável da vida humana, ou da pessoa humana, tendo em vista os progressos rápidos e complexos do saber e das tecnologias biomédicas. […] Guy Durant assim a definiu:  é a pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção médica. […] Tristan Engelhardt asseverou que a bioética  funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais. […] Em 1994, incorporou-se na base de dados da Bioethicsline[3] que a bioética  é um ramo da ética aplicada que estuda as implicações de valor das práticas e do desenvolvimento das ciências da vida e da medicina. É uma reelaboração da definição de Reich, de 1978. Aprimorando sua definição, em 1995, Reich […]  é o estudo, sistemático das dimensões morais  incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas  das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar . (NAMBA, 2009, p.8-10). Para fins do presente trabalho, necessário conhecer a conclusão de Namba ao delimitar a definição de Bioética:  Bioética, como se diz hoje, não é uma parte da biologia: é uma parte da Ética, é uma parte de nossa responsabilidade simplesmente humana; deveres do homem para com outro homem, e de todos para com a humanidade . (NAMBA, 2009, p.10). Esta responsabilidade dos deveres do homem delineados pelo citado doutrinador, intuitivamente parece lógico para o homem-médio diante da ideia de ética. Na sociedade, cada indivíduo tem que viver, trabalhar e produzir para si e sua família mas sem esquecer de sua parcela de contribuição para o conjunto (a sociedade) do qual faz parte, afinal, o indivíduo está para o conjunto, assim como o conjunto está para o indivíduo, da mesma forma como um conjunto está para outro conjunto de soberania diversa. Também compartilha deste pensamento Debora Diniz:  Não há um profissional bioeticista. Não se formam bioeticistas nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. O que há são advogados, antropólogas, assistentes sociais, dentistas, enfermeiras, filósofas, juristas, médicos, sociólogas, teólogas, entre uma ampla gama de profissionais, sensíveis às questões bioéticas. Em algum momento da vida, grande parte das pessoas, seja no exercício de suas profissões ou em suas vidas privadas, se deparará com questões bioéticas. (DINIZ, D., 2006, p.22). Diante destes enunciados de Namba e Diniz, conclui-se que existe uma interdependência entre os indivíduos da sociedade em algum momento da vida. A ética vem para manter a harmonia neste relacionamento de alta complexidade através da sua aplicação prática pelo Direito. O Estado dá a liberdade esperando o comportamento ético para se conviver em sociedade e impõe a ética quando esta liberdade precisar ser frenada. Diante dos breves enunciados, fica descoberto o nascedouro da nova matéria Biodireito e seu elemento chave que o aproxima do Direito: a ética, neste sentido, aparece traduzida como elemento indispensável no trato humano em sociedade. Como já dito em passagem anterior:  a ética deve estar encrustada com o fato real . Desta forma, a ética se torna núcleo impulsionador que leva ao Direito o fato social transformado pelas Ciências da Saúde através do Biodireito. Este, transmissor da informação que aproxima estas duas grandes áreas, levando ao ordenamento jurídico a caracterização dos elementos materiais e imateriais que terminam por nortear a feitura e interpretação das normas reguladoras da sociedade, afinal, no dizer aristotélico ao explanar sobre a finalidade do Estado:  O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as instituições não são senão meios para isso, e a própria Cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência . (ARISTÓTELES, 2011, p.40). O pensamento aristotélico se concentra na ética como via de regramento institucional do Estado para assegurar à comunidade uma vida feliz. Assim, como o ordenamento jurídico abrange todo e qualquer indivíduo de sua soberania, se através de seus Códigos a ética for despontada como instrumento normatizador, os problemas sociais enfrentados pelo ordenamento jurídico seriam mínimos. Por esta lógica do pensamento de Aristóteles, datado da antiguidade clássica (300 a.C.) e sobrevivente até os dias atuais, o ordenamento jurídico pátrio tem cada vez mais agregado aos seus textos interpretações nutridas da ética, precipuamente aquelas interpretações voltadas para a mantença da vida, bem maior protegido com primazia pela Constituição Federal. Pela relevância da proteção à vida trazida pelos textos do ordenamento jurídico e pela via doutrinária, indispensável preencher o presente trabalho com breves considerações sobre o início da vida. 2 INÍCIO DA VIDA A saúde tem o seu conceito contemplado por diversos enfoques, muito mais que simplesmente ausência de doença, abraçando aspectos sociais e emocionais. Seja no âmbito das Ciências da Saúde ou da Ciência Jurídica, o entendimento sobre saúde tem ganhado amplitude envolvendo também os aspectos inerentes ao bem-estar físico e psíquico da mulher quando se trata da interrupção da gravidez. Com este foco, a temática da reprodução humana teve sua primeira oportunidade no âmbito jurídico como direitos reprodutivos, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha:  Os direitos reprodutivos foram reconhecidos, pela primeira vez, como Direitos Humanos, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã, em 1968 . (CUNHA, 2005, p.3). Estes  direitos reprodutivos foram conceituados posteriormente na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, em 1994, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha sobre o tema:  a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo (CUNHA, 2005, p.3). Este entendimento terminou por abrir um imenso leque de interpretações que dialoga até os dias atuais sobre as questões da interrupção da gravidez, sua segurança para a mulher, sua opção de escolha e principalmente a segurança jurídica que a decisão de realizar tal procedimento irá levar à consciência da sociedade. A interrupção da gravidez de feto vivo chama para si a prática do aborto, descrita desde as civilizações mais antigas, com seus próprios conceitos e reflexos inerentes à sociedade da época. Para esse breve apanhado histórico, leciona a Doutora em Ciências Médicas, Ginecologista e Obstetra, Elaine Christine Dantas Moisés:  O aborto foi assunto tratado pela legislação babilônica como um delito contra a propriedade. Na civilização hebraica, só era punido o aborto ocasionado, ainda que involuntariamente, mediante violência, mas a partir da lei mosaica passou-se a considerar ilícita a interrupção da gravidez. Em Roma, nem as XII Tábuas nem as leis da República cuidaram do aborto, entendendo-se que o feto fazia parte do corpo da gestante, que dele podia dispor livremente. Portanto, no mundo greco-romano era prática comum. […] Hipócrates, nos séculos V e IV antes da era cristã, no seu juramento, declarou não dar a nenhuma mulher uma substância abortiva. Já Aristóteles estimulava essa prática, desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma, para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência. Platão também era favorável ao aborto em toda mulher que concebesse depois dos quarenta anos. Foi com o cristianismo que o aborto passou a ser reprimido e a Igreja Católica passou a condenar severamente os seus executores, sendo aplicada a pena de morte tanto à mulher como ao executor (MOISÉS, 2005, p.15). Pelo texto da Doutora Moisés, pode-se observar diferentes gradações para a prática do aborto. Conclui-se que as legislações foram mudando com a sociedade e evoluindo com suas diversidades sobre o assunto a depender da cultura do lugar, alguns defendendo o aborto – como um direito da mulher para preservar sua saúde física e mental, outros, simplesmente, condenando severamente a sua prática e outros liberando de forma ampla a execução do aborto. Por este último, simpatiza a teoria alemã, que, conforme os ensinamentos de Elaine Christine Dantas Moisés:  baseava-se na ideia que se o feto não é uma pessoa, portanto não possuía direito e consequentemente não haveria delito no aborto . (MOISÉS, 2005, p.15). Neste trecho de Moisés, o posicionamento da teoria alemã se assemelha com entendimentos modernos do atual ordenamento jurídico, os quais serão pontuados momento ulterior. Neste pensar, o aborto sempre foi tema polêmico com diversas discussões e diferentes pontos de vista através da história, se fazendo importante dar vez a um breve estudo sobre o início da vida humana sob o ponto de vista da Ciência da Saúde e a partir de qual ponto do desenvolvimento do ser humano, antes do seu nascimento, a ciência jurídica brasileira considera e protege o início da vida, definindo, com base neste estudo, se a interrupção de uma gestação de um feto anencéfalo estaria ceifando a vida de um novo ser humano em detrimento da saúde psicológica da mulher, pontuando quais as suas prováveis consequências jurídicas no seio da sociedade brasileira. Como já observado nos supracitados textos lecionados por Elaine Christine Dantas Moisés, o breve histórico que trouxe à baila ideias de como as sociedades mais relevantes pensou sobre a prática do aborto. Surgiram e ainda surgem muitas indagações que questionam em que momento se considera a interrupção da gravidez de feto anencefálico como direito da mãe para preservar sua integridade física e moral. Estas indagações são oriundas de questões de maior proporção, como: Quando se inicia a vida? Até quando uma mãe tem o poder de decisão sobre o seu corpo? A partir de quando o produto da concepção passa a ter direitos na esfera jurídica e passa a ser considerado como indivíduo? Estas são as mais comuns no meio jurídico e tem amplo foco nas academias de Ciências Jurídicas na ministração das aulas teóricas por sua importância na vida prática do técnico jurídico, devido aos anseios da sociedade para o tema por sua pulverização no meio jurídico e na sociedade de uma forma geral. Necessário se faz delimitar como se dá o início da vida do ser humano no âmbito da Ciência da Saúde, para compreender a partir de que ponto o sistema jurídico brasileiro entende ser o início da vida. No prisma do campo biológico, o desenvolvimento do ser humano se inicia com a fecundação, momento em que o espermatozoide se funde com o óvulo gerando uma célula que representa um novo ser. No entanto, não basta essa fusão para garantir a geração de um novo ser humano, é necessário que ocorra a chamada nidação, que é a implantação do embrião intrauterino. Desta forma, começam os processos morfogenéticos[4], quando ocorre a diferenciação dos órgãos e tecidos iniciando-se assim a formação do novo ser pelas trocas metabólicas e o relacionamento entre a mãe e o embrião. Com o seu regular desenvolvimento, o embrião inicia os batimentos cardíacos ao atingir entre três a quatro semanas. Já com seis semanas o embrião começa a apresentar características humanas e ao final da sétima semana praticamente todos os sistemas orgânicos já estão formados, apresentando respostas de reflexos a estímulos. Passando pela oitava semana, começa o período fetal. É a fase em que a aparência humana já está expressa e é possível detectar ondas eletroencefalográficas e atividade no tronco cerebral, quando o feto apresenta determinada movimentação ativa, mesmo que ainda não percebida pela mãe. No decorrer da décima sétima e vigésima semanas é que a mãe passa a perceber a movimentação do feto. No auge das vinte e seis semanas o feto tem todos os seus órgãos bem desenvolvidos, porém ainda não teria condições apropriadas de sobrevivência extrauterina, principalmente pela imaturidade do sistema respiratório. Já com vinte e oito semanas, cerca sete meses, apresenta um padrão de sono e vigília e já é possível sobreviver fora do útero apesar do seu sistema respiratório ainda não apresentar total maturação, motivo pelo qual os bebês que nascem prematuramente permanecem sob vigilância e fazem uso de medicamentos e algumas vezes, ventilação artificial para finalizar o completo amadurecimento do sistema respiratório. Conclui-se, portanto, que na seara biológica a vida humana se inicia após a fecundação, sendo suas fases seguintes parte do processo natural do seu desenvolvimento, como resume a médica, Mestre e Doutora em Tocoginecologia[5], Elaine Christine Dantas Moisés:  A vida humana, biologicamente, inicia-se após a fecundação e as alterações que ocorrem entre a implantação, um embrião de seis semanas, um feto de seis meses, um bebê de uma semana ou um adulto, são meros estados de desenvolvimento e maturação, como ficou definido durante o Primeiro Simpósio Internacional sobre Aborto, realizado nos Estados Unidos da América . (MOISÉS, 2005, p.13). Neste norte, a seara jurídica é tendenciosa a concordar que o início da vida de um ser humano se faz pelo mesmo entendimento do campo biológico. O ensinamento da civilista brasileira Maria Helena Diniz, vem para elucidar a questão:  A ontogenia humana, isto é, o aparecimento de um novo ser humano, ocorre com a fusão dos gametas feminino e masculino, dando origem ao zigoto, com um código genético distinto do óvulo e do espermatozoide. A fetologia[6] e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, dentro ou fora do útero . (DINIZ, M.H., 2008, p.25). Com este trecho, Diniz sintetiza como se dá o ponto de partida do início da vida, apresentando a opção natural e artificial de fecundação dos gametas. No contínuo de suas lições, permeia o seu entendimento no mesmo sentido de Moisés, compartilhando que as fases seguintes à fecundação fazem parte do desenvolvimento humano enquanto ser vivo. Continua Diniz:  A partir daí tudo é transformação morfológico-temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único . (DINIZ, M.H., 2008, p.25). Para levar credibilidade a sua síntese do ponto inicial do início da vida e desenvolvimento do ser humano, Diniz, imprime em sua obra, o pensamento de autoridade mundial do campo biológico. Conforme, Diniz: Jérôme Lejeune[7], geneticista francês e autoridade mundial em biologia genética, asseverou:  Não quero repetir o óbvio mas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato . (DINIZ, M.H., 2008, p.25). Com esta passagem, a doutrinadora de nada acrescentou sobre o seu entendimento, sendo, de fato, uma ratificação dos seus conceitos sobre o início da vida e seu desenvolvimento. Rumo ao Direito Penal Brasileiro, o penalista Luis Regis Prado também compartilha que o feto é desenvolvimento do ser humano, na forma que:  Feto, é pelo menos uma pessoa em formação. (PRADO, 1997, p.501). No mesmo pensar, o também penalista Cezar Roberto Bitencourt, quando conceitua o bem jurídico tutelado no crime de aborto, ressaltando que:  O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação . (BITENCOURT, 2009, p.344). Concorda, também, outro doutrinador do Direito Penal, Damásio Evangelista de Jesus, quando trata do tema. Conforme o penalista:  A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a resultante constituição do ovo, até aquele em que se inicia o processo do parto. Dessa forma, embora fale comumente que o sujeito passivo é o feto, o Código não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto. É necessário, porém, que o objeto material seja produto de desenvolvimento fisiológico normal . (JESUS, 2005, p.122). Ainda sob o manto da seara penal, Julio Fabbrini Mirabete leciona sobre o tema com intimidade nas palavras, aproximando seu texto com os conceitos da Ciência Biológica:  Tutela-se […] a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses da gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca, executando funções típicas de vida . (MIRABETE, 2006, p.62). Conclui-se através dos fragmentos explanados, que há concordância dos entendimentos entre a ciência médica e jurídica nas áreas civil e penal. É unânime que o início da vida se inicia com a fecundação, sendo natural ou artificial, perpassando por todo um desenvolvimento estrutural de sobrevivência, considerando-se vida humana desde o seu início nuclear. Rumando para as lições de doutrinadores constitucionalistas para captar o que advém da matéria constitucional sobre o assunto, a fim de observar a consonância das matérias e ratificar a unicidade do Direito no tratamento da questão, José Afonso da Silva, considerado o pai do Direito Constitucional Brasileiro, em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, ultrapassa os limites traçados pela Biologia para definir a vida. Sob o ponto de vista do doutrinador a vida não se resume a um conjunto de células orgânicas com funções de desenvolvimento gradativo que começará de uma simples união de células a vários sistemas de funções que formam o ser humano, seu espaço ultrapassa esta barreira. Além do organismo funcional biológico, deve lhe ser atribuído elementos físicos, psíquicos e espirituais. O estudo sobre estes novos elementos atribuídos à pessoa humana não é exaustivo em sua obra, porém, possível apreciar que este novo conjunto de caracteres experimentado para definir a vida humana, demonstra-se mais nutrido e complexo em relação as definições anteriormente delineadas, tornando palpável o elemento da vida atribuído ao ser humano enquanto parte integrante de uma sociedade de alta complexidade. Esse acréscimo de características elencados por José Afonso da Silva pode ser oriundo da difícil tarefa de definir em que ponto inicia a vida humana, como explanado em sua obra, no capítulo que trata do Direito à Vida. Preleciona, Silva:  Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada . (SILVA, J.A., 2011, p.197). No seu observar, diante da desnutrida definição de vida como um simples organismo com funções de desenvolvimento, o doutrinador arrisca lançar de seus novos elementos, a fim de ingressar aquele ser vivo – antes delimitado a um conjunto biológico com suas funções que evolui gradativamente – no meio social como ser humano integral; completo não só por suas funções orgânicas e vitais, mas por suas funções e desenvolvimento orgânicos, intelectual e espiritual, fazendo do ser humano uma unidade de sistemas materiais e imateriais que faz parte de um conjunto de semelhantes que se integram e interagem entre si. Na obra, o doutrinador não aprofunda seus estudos sobre os novos elementos atribuídos à vida humana. No entanto, à baila do exposto, já é possível compreender e visualizar o ser humano como um ser que demanda sistematização para se organizar e viver como um conjunto, atribuindo-lhe deveres, obrigações e direitos. Neste ponto, trabalha os seus estudos aproximando a vida orgânica do ser humano ao direito à vida protegido na Constituição Federal de 1988, como explana o doutrinador:  A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º., caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). (SILVA, J.A., 2011, p.198). Com esta revelação primeira, José Afonso da Silva ousa e inova o mundo jurídico, levando o entendimento sobre a vida humana a ultrapassar os seus próprios limites, trazendo para o corpo legal novas interpretações sem alterar uma única letra da lei. A importância da sua introdução deverá repercutir no mundo fático-social amenizando, senão dirimindo, conflitos antes insuperáveis. Mantendo o curso da discussão entre doutrinadores constitucionalistas, nem todos arriscam avançar em seus conceitos como fez José Afonso da Silva ao explanar sobre os elementos materiais e imateriais. O constitucionalista Alexandre de Moraes, em sua obra Direito Constitucional, limita-se a tratar da importância do direito à vida conforme a literalidade do corpo textual da Constituição, deixando a definição de vida para os profissionais da Ciência da Saúde. Conforme preleciona, Moraes:  A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico da vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina . (MORAES, 2005, p.30). Neste trecho, Moraes define que o Estado, através de sua Constituição, deve proteger a vida como um direito do ser humano e sua definição de vida não ultrapassa o plano biológico. O doutrinador não pretende retirar do profissional de saúde a sua competência técnica para definir quando se dá a vida, apenas levando parte desta responsabilidade para o técnico jurídico no âmbito o qual lhe compete, porém sem ousar ultrapassar o limite da materialidade, como o fez, José Afonso da Silva. Outro olhar na seara constitucional traz nova definição que complementa de forma tímida a conceituação meramente biológica, mas ainda sem alcançar a amplitude trazida por José Afonso da Silva quando trata de seus elementos materiais e imateriais. Como ensina Ricardo Cunha Chimenti, em sua obra Curso de Direito Constitucional:  O direito à vida é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. É considerado o direito fundamental mais importante, condição para o exercício dos demais direitos. Observe que, sem vida, não há de se falar em liberdade, propriedade, segurança etc. Como dizia Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O direito à vida abrange o direito de não ser morto (direito de não ser privado da vida de maneira artificial; direito de continuar vivo), o direito a condições mínimas de sobrevivência e o direito a tratamento digno por parte do Estado . (CHIMENTI, 2006, p.60). Como se pode concluir, Chimenti (2006) consegue ultrapassar o plano biológico da definição de vida. O diâmetro da vida, traçado pelo doutrinador, agora também alcança o compromisso de segurança do Estado que atrai a dignidade para uma boa convivência em sociedade. Ainda sob o seu olhar, o percurso da vida deve ser protegida lhe garantindo meios de proporcionar um ambiente digno, declinando apenas por seu processo natural, sem interferências de outra ordem. Desta forma, uma vez que a vida humana se torna objeto de direito numa sociedade de um Estado Democrático de Direito, amplifica-se novamente sua conceituação, demonstrando que o desenvolvimento da vida humana não se dá somente por suas funções celulares quando da sua formação de vida, mas que sua maturação poderá ocorrer por estágios, sendo um deles o convívio em sociedade. Num olhar panorâmico para a definição do início da vida do ser humano e seu processo de desenvolvimento numa sociedade de alta complexidade, enxerga-se que a definição trazida por José Afonso da Silva (2011) abrange todos os requisitos necessários reclamados por uma sociedade que se desenvolve além do seu ordenamento jurídico. Este manto de elementos materiais e imateriais elencados pelo doutrinador revela a base suficiente sobre o qual se deve assentar o rol regulatório da sociedade, tendo por fim levar à sua lei maior entendimento amplo e completo que deverá ser disseminado para as leis de plano inferior, satisfazendo com plenitude os clamores sociais do qual fará emergir do seu comportamento, organização, satisfação e felicidade do seu conjunto. Para trazer substância a este entendimento, José Afonso da Silva (2011), ao elencar o conteúdo do conceito de vida, revela todos os elementos necessários para dar concretude e ritmo ao regulamento jurídico ante a sua sociedade. Conforme o doutrinador:  No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, J.A., 2011, p.198). Nesse condão, observa-se que pelo simples fato do desenvolvimento advindo da união celular, o ser humano já passa a existir para a sociedade, interage ainda que passivamente com todo o seu conjunto de semelhantes, que por força do ordenamento jurídico, lhe atribui direitos de integridade e de proteção à sua existência, para quando concluído seu estágio inicial de maturação (com o nascimento), iniciar seu novo estágio de desenvolvimento e interagir ativamente com o meio. Este mesmo entendimento emerge dos textos de Maria Helena Diniz, na oportunidade da sua obra: O estado atual do Biodireito. À luz de seus escritos:  A vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não houvesse tutela constitucional ao direito à vida, que, por ser decorrente de norma de direito natural, é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do direito positivo (DINIZ, M.H., 2008, p.20). Neste trecho, Diniz revela que não importa todo um sistema jurídico se não fosse pela existência natural do ser humano. Sem o indivíduo, não existe o regramento; porém, sem o regramento, existe o indivíduo. Em suma, toda a sociedade tem um compromisso com o ser em desenvolvimento, e tal obrigação não é justificada pelo ordenamento legal, mas pelo fato natural da existência do ser humano. José Afonso da Silva (2011) sintetiza uma abordagem mais ampla do relacionamento da sociedade com o ser humano durante o seu desenvolvimento até o seu nascer. O feto é ser humano, afirma o doutrinador sob os ensinamentos de Jacques Robert, e como ser humano lhe são assegurados direitos para manter sua existência. O princípio da moral médica é uma ponte de aproximação entre as Ciências da Saúde e Jurídicas que fundamentará o dever-ser desta parcela da sociedade. Fica a moral médica embebida da ética, não só profissional, mas também moral. Ética oriunda da consciência do profissional enquanto ser humano para com outro ser humano. Conforme ensina, José Afonso da Silva:  No dizer de Jacques Robert:  O respeito à vida humana é a um tempo umas das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori[8], a de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano . (SILVA, J.A., 2011, p. 198). Neste trecho, José Afonso da Silva, pelos dizeres de Jacques Robert, chama a atenção do leitor para o respeito à vida humana. Preciosa é a vida humana, e para garanti-la o caminho correto é o respeito – obrigação natural e comum a todos os indivíduos da sociedade. Frustrada esta diligência natural, se manifesta o Estado através do seu regramento a fim de fazer prevalecer o zelo pela vida. O Direito, como matéria de ampla discussão, permite em toda a sua extensão o embate de ideais entre os seus pensadores, estudiosos e aplicadores técnicos. Como não poderia deixar de ser, mais uma vez, José Afonso da Silva, consegue atribuir mais uma ampliação sobre o conceito da vida do ser humano quando traz em seus textos o conceito de direito à existência:  Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital . SILVA, J.A. (2011, p.201) Com este entendimento, o doutrinador fecha o cerco para qualquer interrupção da vida do ser humano em qualquer estágio que esteja. O fim da vida deve ser  pela morte espontânea e inevitável , leciona. Uma vez iniciado o processo que dá a vida ao ser humano, este, em nenhuma hipótese poderá ser interrompido pela vontade humana. Pela necessidade de defender direito tão primaz que é a vida, José Afonso da Silva, explana:  De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos (SILVA, J.A., 2011, p.201). Pela amplitude do Direito, vários são os olhares que recaem sobre si para definirem e caracterizarem os institutos da vida em comum que devem ser elencados e protegidos na seara jurídica. Por isso, existirão conceitos de maior ou menor dimensão conforme o entendimento de cada doutrinador. Desta forma, não menos importante, porém numa explanação sucinta, Vicente Paulo consegue sintetizar toda a essência trazida por José Afonso da Silva, tornando-se um fiel seguidor de seus conceitos. Em seus textos, Paulo elucida:  A Constituição protege a vida de forma geral, não só a extrauterina como também a intrauterina. Corolário da proteção que o ordenamento jurídico brasileiro concede à vida intrauterina é a proibição da prática do aborto, somente permitindo o aborto espontâneo como meio de salvar a vida da gestante, ou o aborto humanitário, no caso de gravidez resultante de estupro. Não se resume o direito à vida, entretanto, ao mero direito à sobrevivência física. Lembrando que o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, resulta claro que o direito fundamental em apreço abrange o direito a uma existência digna, tanto sob o aspecto espiritual quanto material. Portanto, o direito individual fundamental à vida possui duplo aspecto: sob o prisma biológico traduz o direito à integridade física e psíquica […]; em sentido mais amplo, significa o direito a condições materiais e espirituais mínimas necessárias a uma existência condigna à natureza humana . (PAULO, 2010, p.114). Vê-se que Paulo segue fielmente as lições de José Afonso da Silva, compartilhando da existência dos elementos materiais e imateriais que devem ser intrínsecos à vida desde o seu início, atribuindo àquele ser, vida humana. No mesmo sentido, também concorda o doutrinador Dirley da Cunha Júnior, em sua obra Curso de Direito Constitucional, o autor traz em suas palavras os elementos materiais e imateriais citados por José Afonso da Silva, conforme Júnior:  O direito à vida é o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com dignidade, a salva de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano ou degradante. Envolve o direito à preservação dos atributos físico-psíquicos (elementos materiais) e espirituais-morais (elementos imateriais) da pessoa humana, sendo, por isso mesmo, o mais fundamental de todos os direitos, condição sine qua non para o exercício dos demais. O direito à vida é garantido pela Constituição contra qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, ainda que seja para pôr termo a um sofrimento e agonia (eutanásia), salvo quando justificado, como nas hipóteses do aborto necessário para salvar a vida da mãe ou em caso de gravidez decorrente de crime de estupro . (JÚNIOR, 2008, p.657). Júnior, assim como José Afonso da Silva e Paulo, segue o raciocínio que os elementos materiais e imateriais devem seguir a pessoa humana desde o seu início. Pode-se concluir, mediante os textos dos doutrinadores defensores destes elementos, que a pessoa humana se dá desde à sua formação inicial, sendo-lhe garantido a obrigação da sociedade de não interferir em sua formação e desenvolvimento, sendo o respeito à vida, a ferramenta que os indivíduos devem se utilizar para cumprir tal obrigação. Num observar panorâmico das lições explanadas neste trabalho monográfico, conclui-se que a simples união de células com suas funções de desenvolvimento contínuo determinará um ser humano. Por conseguinte, caminha-se para uma ampliação visionária do ordenamento jurídico sob o manto da moral e da ética, quando embutido de elementos materiais e imateriais, sendo incorporado no Direito uma nova disciplina que traz em sua contextualização as Ciências da Saúde e Jurídicas. Esta atração promoverá para o mundo jurídico novos entendimentos, abrindo um leque de maior diâmetro para ventilar número maior de casos concretos e muitos ainda não elencados nos textos das leis. Tão verdade que é, e também urgente esta reforma pelo menos interpretativa  se não literal, que Maria Helena Diniz  biologiza e  medicaliza o Direito. Conforme ensinamento de Diniz:  Faz-se necessária uma  biologização ou  medicalização da lei, pois não há como desvincular as  ciências da vida do direito. Assim, a bioética e o Biodireito caminham pari passu[9] na difícil tarefa de separa o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genéticas, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as  ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana . (DINIZ, M.H., 2008, p.8). Maria Helena Diniz quer fazer o leitor entender não só da urgência da atualização do Direito com as matérias das Ciências da Saúde, mas também que esta atração deve ser tão próxima que as duas áreas tornar-se-ão única. Desta forma surge o Biodireito, que vem para aproximar estas duas grandes áreas em prol do interesse comum da sociedade, fazendo emergir para o direito novos entendimentos dos fatos sociais os quais retornaram ao mundo fático pelo regramento jurídico. A interrupção da gestação de feto anencéfalo como objeto do presente trabalho monográfico é um destes novos entendimentos advindos do seio da sociedade, que veio a despontar no mundo jurídico como uma pergunta sem resposta devido a carência de legislação positiva. O Biodireito, matéria novata no meio jurídico, ainda é enfrentada como caloura pelos estudiosos e pelo próprio Estado, levando a um acanhando da ponte que faz ligar os dois mundos (Saúde e Jurídico) para a resolução dos problemas sociais. Um breve estudo acerca da anencefalia é mais um dos elos que integra o entendimento sobre a interrupção da gravidez do feto anencéfalo. 3 ANENCEFALIA Parcela da doutrina jurídica em parceria com as Ciências da Saúde tem entendido a necessidade da interrupção da gestação de feto anencefálico pela sua inviabilidade de nascimento com vida ou nascendo com vida, sua certeza de não continuar vivo mesmo que haja qualquer tipo de intervenção médica atualmente disponível. O médico José Hib, em sua obra Embriologia médica, traz a definição e características da anencefalia. Conforme sua obra:  São malformações ocasionadas pelo fechamento defeituoso do tubo neural e dos tecidos mesodérmicos que o rodeiam, em particular a abóbada craniana e a coluna vertebral. De acordo com a sua localização, sua extensão e as estruturas afetadas, ocorre a anencefalia. A anencefalia ou falta de cérebro é acompanhada de acrania (ausência de abóbada craniana) e é devida ao não-fechamento da parte cefálica do tubo neural. Esta malformação é incompatível com a vida pós-natal e durante a gestação ocasiona a formação de poliidrâmnio, isto é, acúmulo excessivo de líquido na cavidade amniótica. O excesso de líquido se deve ao fato de que, ao não possuir cérebro, o feto carece dos centros nervosos da deglutição e não ingere o líquido amniótico . (HIB, 2008, p.228). Conforme o texto, evidente a inviabilidade da vida de qualquer ser humano diante do quadro apresentado pela anencefalia. A anencefalia tem lugar certo em todos os livros da área de saúde que trata de ginecologia, obstetrícia e áreas correlatas. A consequência de morte do ser é certa, sendo unânime o entendimento entre os estudiosos do assunto. Na obra Enfermagem Obstétrica, traduzida para o Brasil, mais uma definição da anencefalia e sua consequência inequívoca de morte para o feto:  A anencefalia é uma condição na qual considerável parte dos hemisférios cerebrais e do crânio e do couro cabeludo que os recobrem está faltando. É incompatível com a vida. (ZIEGEL, 2011, p.656). Decerto que as obras e escritos das áreas da saúde são unânimes quanto a anencefalia e sua inevitável consequência morte. É fato, comprovado cientificamente pelos estudos e procedimentos disponíveis atualmente pelas Ciências da Saúde, como um mais um é igual a dois, que a morte é inevitável para o feto acometido da anencefalia. A anencefalia é uma anomalia genética de cunho biológico e funcional em que todos os especialistas concordam com sua definição e consequência. Desta forma, importante levantar o breve entendimento sobre o tema na seara jurídica a fim de confrontar os entendimentos e observar o consenso da matéria. Maria Helena Diniz, em sua renomada obra O estado atual do Biodireito, explana longos capítulos sobre os direitos fundamentais, confrontando-os com as possibilidades trazidas pelos avanços tecnológicos das Ciências da Saúde para o campo jurídico, analisando as possibilidades de tutelarem em norma jurídica os novos procedimentos, levando o regramento jurisdicional a uma inevitável atualização e adequação aos casos concretos, como poderia ser o caso da interrupção da gestação do feto anencefálico. Conforme a doutrinadora, em sua referida obra, leciona como ocorre a anencefalia:  Como ocorre a anencefalia: O tubo neural, que dá origem ao cérebro, começa a se formar a partir dos 15 primeiros dias de gestação. A parte anterior do tubo aumenta de tamanho para formar o cérebro. A parte final evolui para a medula espinhal. Cada um desses elementos se desenvolve independentemente, de acordo com a programação genética. Por volta da quarta semana de gravidez ocorre o fechamento do tubo neural. Se esse processo, por vários motivos, não transcorrer de forma adequada, o feto pode ficar anencefálico, ou seja, sem o cérebro e sem a calota craniana. Quando há um defeito muito grave no desenvolvimento, pode haver um aborto natural. A anencefalia é diagnosticada entre o 3º e o 4º mês de gravidez. (DINIZ, M.H., 2008, p.52). Maria Helena Diniz abriu o assunto para a população jurídica. Neste norte, o universo jurídico tende a concordar com as Ciências da Saúde e com a deformidade irreversível  até os dias atuais  que é a anencefalia. Os estudos e ferramentas atualmente disponíveis na seara médica é que devem tratar com propriedade do assunto. A doutrinadora simplesmente levou aos seus textos entendimentos já consolidado pela ciência médica após muitos erros e acertos pelos quais permeiam suas atividades. De grande importância o período ideal para o diagnóstico da anencefalia. Na seara jurídica, Maria Helena Diniz, em seu trecho supracitado, ensina que o evento deve ser investigado entre o 3º de 4º mês de gravidez. Ensinamento, este, trazido das lições dos textos das Ciências da Saúde, como a obra do Professor titular da disciplina Obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge de Rezende, que ensina quando a anencefalia pode ser diagnosticada. Como preleciona o Professor:  A anencefalia, de resto, pode ser suspeitada, pela ultrassonografia, desde 15 semanas de gravidez, mas a época preferente está entre 16-18 semanas quando será rastreada em todos os casos. (REZENDE, 1998, p. 1004). Decerto, foi com a evolução da tecnologia que as Ciências da Saúde chegaram ao ponto de detectar a anomalia antes mesmo do nascimento do ser humano.  A ultrassonografia realizada nos pré-natais é capaz de detectar a anencefalia, no entanto, aconselha-se a sua feitura em um centro especializado, conforme leciona Lippincott Williams:  A anencefalia pode ser detectada com ultra-sonografia em praticamente 100% dos casos. Além disso, a probabilidade de um defeito do tubo neural aberto associado a um valor anormal do rastreamento sérico é reduzida em 95% ou mais se a ultra-sonografia for realizada em um centro especializado . (WILLIAMS, 2000, p.799). Williams levanta a importância da realização da ultrassonografia num centro especializado para não confundir uma provável anencefalia com valores errôneos que poderão ocorrer no uso do equipamento. O autor suscita o sucesso da ultrassonografia com fins de detectar a anencefalia quando realizada nestas instituições. Apesar da certeza da morte antes mesmo de nascer ou imediatamente após o nascimento do ser humano com anencefalia, existe registro de caso de sobrevivência por meses. É o que explana em seus textos Lippincott Williams, em sua obra Obstetrícia e Ginecologia:  A anencefalia é caracterizada por ausência do crânio juntamente com os hemisférios cerebrais, que são rudimentares ou estão ausentes. […] As apresentações pélvica e de face são comuns. O distúrbio é letal, embora tenha sido descrita sobrevivência por um período de meses. (WILLIAMS, 2000, p.798). Neste trecho o autor dá a certeza que a anencefalia é letal, muito embora mencione a ocorrência de sobrevivência por meses depois de nascido o feto, não pretende estimular falsas esperanças para aqueles genitores que venham a gerar um feto anencefálico. O autor não foi preciso ao explanar sobre o período de meses que sobreviveu o feto anencefálico após o seu nascimento, no entanto pode ocorrer em alguns casos de feto anencefálico a duração estendida da gravidez em que o feto permanece vivo durante toda a gestação. Ainda conforme os ensinamentos de Williams:  A duração de gestações anencefálicas […] pode ser significativamente longa. No caso bem legitimado de Higgins (1954), a duração da gravidez foi de 1 ano e 24 dias após o último período menstrual, e foram percebidos movimentos fetais até o momento do parto . (WILLIAMS, 2000, p.798). O caso em tela deixou a comunidade médica da época perplexa e parece colidir com as definições trazidas sobre a anencefalia que enfatizam a indubitável sobrevivência do feto mesmo antes do seu nascimento, principalmente pela época em que aconteceu (1954), momento em que a tecnologia médica não era tão desenvolvida quanto atualmente, particularmente porque o primeiro uso da ultrassonografia aplicada à obstetrícia se deu em 1958[10]. Entretanto, apesar da ausência do exame ultrassonográfico da época, outros métodos primitivos à ultrassonografia poderiam detectar os movimentos do feto antes de seu nascimento, como é o caso do estetoscópio de Pinard (usado para ouvir os batimentos cardíacos do feto) ou mesmo a simples palpação (exame de qualquer parte do corpo por meio da aplicação externa da mão). A causa da anencefalia já é conhecida. A tecnologia utilizada pela Ciência Médica foi extremamente importante para buscar a sua origem e tende a se debruçar aos novos desenvolvimentos para uma futura possibilidade de evitar totalmente a anomalia ou até mesmo a sua reversão. Quanto às causas da anencefalia, preleciona Maria Helena Diniz:  Causas da anencefalia: A anencefalia pode ser causada por uma mutação genética, em que o gene não se comporta de forma correta. Mas há ainda outros fatores, como a falta de ácido fólico (uma vitamina do complexo B) no organismo. Estão no grupo de risco mães com diabetes mellitus e que trabalham com agrotóxicos . (DINIZ, M.H., 2008, p.53). Pelo trecho da doutrinadora, chega-se ao entendimento que a deformidade da anencefalia é puramente biológica. Não há fatores externos que possam dar causa a anomalia. Descobriu-se que além do desenvolvimento incorreto em determinado momento da formação do feto, a carência do ácido fólico seria outro fator que poderia gerar a má formação do feto resultando na anencefalia. Lógico o entendimento que suprimindo a carência do ácido fólico reduzir-se-á a ocorrência da anencefalia. Neste ponto, ainda sob os ensinamentos de Diniz sobre como evitar a anomalia:  Como evitar: Os médicos indicam o consumo de ácido fólico um mês antes da gravidez e durante o primeiro trimestre de gestação. O ideal é que a mulher consuma 400 microgramas por dia de ácido fólico. A vitamina pode ser encontrada em comprimidos ou em vegetais de folhas verdes, como espinafre e brócolis . (DINIZ, M.H., 2008, p.53). Percebe-se que a importância do suprimento do ácido fólico se dá pela sua ação. Conforme Williams, o seu uso pode reduzir a recorrência de defeitos no tubo neural e no caso de mulheres com um lactante anterior que foi afetado pela anomalia, a dose recomendada do suplemento é de 4 miligramas por dia. (WILLIAMS, 2000). Até o ponto em que se chegou o desenvolvimento das Ciências da Saúde esta é a única forma de evitar ou pelo menos diminuir as chances de gerar um feto anencefálico. O tema tem gerado grande repercussão na seara jurídica devido ao avanço tecnológico da área médica que vem antecipando a detecção da anomalia, o que tem levado a sociedade a confrontar com a ordem jurídica a possibilidade de interromper a gestação nestes casos. 4 ADPF Nº 54 Não há que falar em interrupção da gestação do feto anencéfalo sem traçar algumas linhas sobre o aborto, tema correlato, controverso e refletido na seara jurídica brasileira de forma impactante. A necessidade se faz pelo termo aborto frequentemente ser utilizado como sinônimo da interrupção da gravidez por sua estreita aproximação conceitual, porém diversa a sua aplicação. A etimologia da palavra aborto vem do latim (abortius)[11], passando a ideia de privação do nascimento. Pode ser definido como interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, conforme leciona Suzanne C. Smeltzer, Enfermeira Professora e Pesquisadora na Universidade Thomas Jefferson na Pensilvânia  Filadélfia nos Estados Unidos da América, em sua obra Enfermagem Médico-Cirúrgica traduzida no Brasil:  A interrupção da gravidez ou expulsão do produto da concepção antes que o feto seja viável é chamada de aborto. O feto é, em geral, considerado como viável a partir do quinto ou do sexto mês de gestação . (SMELTZER, 1999, p.195) Como já delineado brevemente em trechos anteriores, a interrupção da gestação tem sua história na sociedade, não sendo necessário para o presente estudo detalhamentos, interessando, tão somente, a definição técnica definida pelas Ciências da Saúde para consequente definição no meio jurídico. A conceituação do aborto atrai o termo abortamento, termos usados como sinônimos no meio jurídico que merece breve distinção. Assim, à luz dos ensinamentos de Álvaro da Cunha Bastos, Médico Pós-Doutorado e Professor de Ginecologia da Universidade de São Paulo, em sua obra Noções de Ginecologia, explana os conceitos de aborto e abortamento. Conforme o Professor Bastos:  Abortamento é interrupção da gravidez antes de completadas 20 semanas de sua evolução, ou quando o produto conceptual eliminado pesar 500g ou menos. […] Aborto é o produto eliminado. (BASTOS, 1991, p.326). Diante destes ensinamentos de Smeltzer e do Professor Bastos, distinguiu-se o aborto do abortamento que norteia à conclusão que o abortamento se dá pela prática de ato ou ocorrência de fato que deu causa a interrupção da gravidez, podendo ser o uso de medicamentos, a prática cirúrgica por médico, o choque mecânico devido algum impacto recebido pela gestante, distúrbios emocionais da gestante causados por fatores externos ou internos à sua pessoa ou defeito biológico do próprio organismo da mulher e o aborto se caracteriza pelo produto eliminado proveniente do abortamento, que este poderá ser a formação inicial embrionária ou mesmo o feto em formação, dependendo do tempo da gestação quando ocorrido o abortamento. Dos conceitos, também se extrai que a viabilidade do feto para vida extrauterina se dá a partir do quinto mês de gestação e a sua inviabilidade até o final do quarto mês, ou quando o feto pesar até 500g. Diante deste discernimento, fica fácil identificar que os doutrinadores jurídicos comumente se utilizam do termo aborto a fim de sinalizar que houve o abortamento. Para tanto, necessário observar os estudos do penalista Damásio Evangelista de Jesus:  Aborto é a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produção da concepção). […] No sentido etimológico, aborto quer dizer privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento. (JESUS, 2008, p.119). No mesmo sentido, segue o penalista Luis Regis Prado, sobre a conceituação do aborto:  aborto é a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina. (PRADO, 1997, p.501). Deste ponto, observa-se a semelhança no emprego de palavras entre as definições de Damásio Evangelista de Jesus e Álvaro da Cunha Bastos  em seu trecho logo acima, transparecendo a similitude dos conceitos entre a área médica e jurídica, levando a concluir que o termo aborto na seara jurídica de fato é utilizado para se referir ao abortamento, afinal o rigor da lei recai sobre a prática do ato que levou a interrupção da gravidez. Partindo para os trâmites da matéria constitucional, José Afonso da Silva não traz uma definição sobre o tema. O aborto é tratado por ele como um tema controvertido que a Constituição não disciplinou ficando a cargo dos doutrinadores sua elucubração, conforme explana no capítulo Do Direito à Vida e do Direito à Privacidade. Neste sentido, ressalta que o aborto:  É outro tema controvertido, que a Constituição não enfrentou diretamente. Houve três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto . (SILVA, J.A., 2011, p.206). Esta indisposição constitucional terminou por trazer para o mundo jurídico a questão primaz sobre o início da vida, que impulsiona as diversas discussões sobre o polêmico tema da interrupção da gravidez, seja ela em qualquer situação ou estágio temporal. Diante das conceituações traçadas acima nos âmbitos da saúde e jurídico, necessário um breve escrito sobre os tipos de aborto caracterizados pela doutrinária jurídica, que funcionaram como palco de muitas disputas judiciais a fim de pleitear autorização judicial para a interrupção de fetos acometidos da anencefalia. Nestes traços, o doutrinador Ricardo Cunha Chimenti faz emergir de seus textos os tipos de aborto terapêutico, sentimental e eugênico. Conforme leciona:  Aborto necessário ou terapêutico, consiste na interrupção da gravidez realizada pelo médico quando não há outro modo de salvar a vida da gestante; aborto sentimental, humanitário ou ético, o aborto realizado pelo médico nos casos de gravidez resultante de estupro, após expresso consentimento da gestante ou de seu representante legal; o aborto eugênico, eugenésico ou piedoso consiste na interrupção da gravidez quando o feto apresenta enfermidade ou deformidade incurável. (CHIMENTI, 2006, p.61). Chimenti traz em seu texto um elenco dos três motivos mais comuns que justificavam o aborto nos moldes sociais que se viveu à época do Código Penal Brasileiro, datado de 1940. Mas foi com os rápidos e avantajados avanços tecnológicos das Ciências da Saúde sobre o Direito, que o citado Código se tornou obsoleto para as novidades proporcionadas na área da saúde, principalmente nos campos da Genética, que trabalha intensamente desenvolvendo novos métodos e soluções para manutenção da saúde, trazendo ao campo prático métodos medicinais e procedimentais inéditos para cura, mantença e prolongação da vida do ser humano. As doenças cruéis e terminais como a AIDS, hoje tem o seu efetivo controle e prolongação da vida do contaminado, já caminhando, a Ciência, para uma possibilidade de prevenção da contaminação daqueles que nunca tiveram contato com o seu vírus, evitando, desta forma, sua proliferação. É o caso também dos avanços dos exames pré-natais, hoje capaz de detectar doenças e anomalias do ser humano antes do seu nascimento, como a anencefalia, pela detecção da formação defeituosa do tubo neural do feto. Foi devido a estes avanços tecnológicos no âmbito da Saúde, que se tem discutido nas vias processuais, o tipo de aborto que melhor se encaixa nos padrões da anomalia para o deferimento da interrupção da gestação do feto anencefálico. O tipo eugênico foi uma das opções dos magistrados, pois é utilizado quando da deformidade incurável do feto. No entanto, esta deformidade entendida pelo aborto eugênico é diversa daquela do feto anencefálico, que é um natimorto[12]. Este entendimento foi trazido pelo Ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental  ADPF nº 54, em seu voto sobre o tema. Conforme o relator:  Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado,  deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não . De fato, a anencefalia mostra-se incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência não. (BRASIL, 2012). A posição do relator em afastar o aborto eugênico se faz pertinente, basta voltar aos conceitos traçados anteriormente sobre anencefalia que se verificará a total incompatibilidade da vida após o nascimento, discernindo-se das características que levam ao aborto eugênico, quais sejam as deficiências compatíveis de se ter uma vida longínqua mediante apropriada mantença. Afastada a opção de aborto eugênico para o caso da interrupção da gestação de feto anencefálico, em seguida ao esboço do aborto, este se diferencia da interrupção da gestação de feto anencefálico pelo seu objeto. Para clarear o entendimento, ainda sob o entendimento do Ministro Marco Aurélio:  Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. Na expressão do Ministro Joaquim Barbosa, constante do voto que chegou a elaborar no Habeas Corpus nº84.025/RJ, o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal . (BRASIL, 2012). Diante do texto do Ministro, conclui-se pela diferença entre aborto e interrupção da gestação no caso do feto anencefálico. No aborto o seu objeto é a vida considerada inicialmente apenas pelo desenvolvimento das funções celulares, com provável potencial à vida humana após o seu nascimento, levando a efeito o âmbito biológico que se agregará ao jurídico por um nascimento com vida  mesmo que o ser humano venha a falecer logo em seguida. Por sua vez, na interrupção da gestação do anencéfalo, o objeto se dá por um ser, que apesar de vivo biologicamente, não tem expectativa de vida humana, por isso não reconhecido juridicamente. O entendimento do Ministro sustenta as linhas da maioria dos doutrinadores jurídicos, porém contradizendo os ensinamentos explanados anteriormente por José Afonso da Silva, Dirley da Cunha Júnior e Vicente Paulo que defendem os elementos imateriais desde a concepção do ser, que irão acompanha-lo por seu desenvolvimento intrauterino até o seu nascimento. Este manto trazido primeiramente por José Afonso da Silva dá ao ser, desde a sua concepção, a qualidade de pessoa humana – a qual a sociedade tem um dever negativo para sua preservação, ao contrário da maioria doutrinária na qual se calçou o referido Ministro, que atribui a qualidade de ser humano somente ao ser já nascido e com vida  elementos cumulativos de forma continuada, nos quais, nascendo sem vida não se fala em ser humano, mas em natimorto. O tema, por sua densa consistência na camada social, vem dando trabalho ao Estado que precisa devolver respostas e dar soluções para a sociedade de forma concomitante com os avanços tecnológicos que ocorrem apressadamente no meio das Ciências da Saúde, quando buscam soluções, melhorias e grandes avanços biológicos em prol da saúde e felicidade do ser humano. Desta forma, para que venham as soluções se faz necessário responder perguntas, e a primeira delas é definir para o mundo jurídico quando é o início da vida humana, não para efeitos do negócio jurídico, que este se dá com o nascimento com vida – como já é sólido o entendimento na seara civilista, conforme os ensinamentos do doutrinador César Fiuza:  A personalidade das pessoas naturais ou físicas começa no momento em que nascem com vida. (FIUZA, 2009, p.122), mas para efeitos de interação com a sociedade através dos seus elementos materiais (e imateriais, conforme seja o entendimento da doutrina para o caso concreto), sobre os quais lhe serão assegurados direitos e deveres da sociedade para consigo. Para esta resposta, o melhor texto para delinear sobre a questão numa sociedade de um Estado Democrático de Direito é a sua Constituição Federal, no entanto, no Brasil, esta questão permanece em aberto, conforme explana em seus textos José Afonso da Silva no contínuo de suas lições sobre o aborto:  Tudo vai depender da decisão sobre quando começa a vida. A nós, nos parece que, no feto, já existe vida humana. (SILVA, J.A., 2011, p.206). Para o doutrinador, pela evidência dos elementos materiais e imateriais o feto já deve possuir direitos assegurados perante a sociedade que virá a compor. Desta forma, a interrupção da gravidez viria a ser inadmitida pelo ordenamento jurídico, ficando a maior carga legislativa para a matéria penal:  a questão será decidida pela legislação ordinária, especialmente a penal (SILVA, J.A., 2011, p.206). Neste ponto, se discute os casos em que a gestação traz para a gestante o risco à sua vida, como continua em seus textos, José Afonso da Silva:  Há casos em que a interrupção da gravidez tem inteira justificativa, como a necessidade de salvamento da vida da mãe, o de gravidez decorrente de cópula forçada e outros que a ciência médica aconselhar . (SILVA, J.A., 2011, p.206). Neste trecho, o doutrinador além de elencar as duas causas legais para uma interrupção da gravidez, abre um vasto leque de opções que não fora normatizado:  e outros que a ciência médica aconselhar . Torna-se inimaginável o diâmetro deste leque, uma vez que a evolução médica é de celeridade tamanha que a normatização jurídica não consegue acompanhar. Pode-se afirmar que nesta provável amplificação interpretativa trazida pela Ciência Médica, encontrar-se-ão os elementos imateriais do feto (trazidos por José Afonso da Silva) e, em novo ponto de vista da interpretação, os elementos imateriais da gestante, pois, não se pode esquecer os efeitos psicológicos causados à mãe  e também à sua família  que virá a dar a luz a um filho morto. Neste condão, diante da falta de sintonia com a realidade da sociedade, clama a Ciência Jurídica pela matéria do Biodireito, que neste ponto faz a ligação, a ponte entre as Ciências da Saúde e a Jurídica a fim de satisfazer os anseios da sociedade trazendo soluções e respostas para causas sociais antes muito avançadas para o presente ordenamento jurídico. Esta aproximação de dois mundos se utiliza da ética, acompanhante fiel do Biodireito, que vai exigir dos profissionais técnicos de toda e qualquer área de conhecimento uma postura ética e consoante às leis. Neste norte, foi visualizando o exercício ético que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), formada por diversos setores da área da saúde que lidam e manipulam a vida humana em seus diversos aspectos, mediante o consolidado entendimento que o feto anencéfalo morre em cem por cento dos casos, observou o aumento dos pedidos de ações judiciais com o fim de obter autorização para a interrupção deste tipo gravidez e se antecipou ao legislador, provocando o judiciário para obter uma resposta à causa da sociedade e cumprir o seu dever ético em conformidade com o regramento jurídico. A CNTS deu este passo com a ADPF nº 54, instrumento que gerou grandes discussões no meio jurídico e social, criando um marco na história da legislação brasileira por sua significante mudança nos conceitos de uma sociedade tradicionalista e resistente às modificações em grandes proporções. Antes de delinear comentários sobre a ADPF nº 54, faz-se necessário apresentar informações conceituais acerca da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, trazidos no corpo da Constituição Federal como competência do Supremo Tribunal Federal. A ADPF faz parte do sistema de controle de constitucionalidade tendo sido regulamentada pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Este controle se dá pela rigidez da Constituição, levando ao ordenamento jurídico o princípio da supremacia formal, caracterizando-se como inconstitucional toda lei contrária a Constituição. Para ratificar este entendimento, leciona Vicente Paulo:  Inconstitucional é, pois, a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte, a Constituição. Se a lei ordinária, a lei complementar, o estatuto privado, o contrato, o ato administrativo etc. não se conformarem com a Constituição, não devem produzir efeitos. Ao contrário, devem ser fulminados, por inconstitucionais, com base no princípio da supremacia constitucional. (PAULO, 2010, p.741). Conforme o doutrinador, não somente a lei, mas qualquer texto norteador da conduta dos indivíduos que confrontar a Constituição, mesmo que não integralmente, deverá perder os efeitos diante dos seus destinatários para fazer valer o texto constitucional como lei maior que deve ser obedecida. Dentro deste sistema de controle que fortifica a Constituição diante da sociedade, a ADPF é uma ferramenta que faz valer a eficácia das decisões tomadas pela Corte Suprema. Para validar este entendimento, leciona Vicente Paulo:  As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADPF são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante, o que significa dizer que as orientações firmadas pela Corte Suprema nessa ação nortearão o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico pelas diversas entidades federadas . (PAULO, 2010, p.873). À luz do texto de Paulo, a ADPF irá definir o melhor entendimento do texto que vir a ferir o texto constitucional, levando a sua decisão ao plano da obediência a todos os indivíduos para o caso discutido. Quanto aos preceitos, os quais se refere a ADPF, estão relacionados aos princípios constitucionais. Conforme leciona Vicente Paulo:  Pensamos que a utilização da palavra  preceito em vez de  princípio teve como objetivo evitar que o conceito a ser delineado pela doutrina e jurisprudência acabasse restrito aos princípios fundamentais arrolados no Título I da Constituição Federal. Além disso, a utilização de uma expressão mais genérica,  preceito , permite que sejam abrangidos pelo conceito não só os princípios, mas também as regras, em suma, qualquer norma, desde que possa ser qualificada como fundamental . (PAULO, 2010, p.879). O texto de Paulo revela uma maior amplitude dada ao preceito em relação aos princípios, no qual abrange não somente estes, mas qualquer outra norma convalidada do mesmo entendimento da Constituição Federal. Partindo para análise da ADPF Nº 54, sua propositura pela CNTS se deu pela petição inicial datada de 16 de junho de 2004. Seu conteúdo abordou o discernimento da antecipação terapêutica do parto de aborto, a inviabilidade do feto anencéfalo, uma explanação sobre os casos de aborto elencados no Código Penal Brasileiro e a exposição dos preceitos fundamentais violados. À exceção dos preceitos fundamentais, ao longo do presente trabalho monográfico todos os outros itens foram tratados. Por isso, importante valer-se de considerações acerca dos preceitos elencados na peça inicial que deu origem à ADPF Nº 54, uma vez que o foco do documento foi a manutenção da integridade física da mulher quando portadora do feto anencéfalo. Adentrando a análise dos preceitos, a peça trouxe a violação da dignidade da pessoa humana como analogia à tortura, que somente com sua subida aos palcos jurídicos nos tempos contemporâneos é que vem impedindo as barbáries antes provocadas pelo fascismo e nazismo. A positivação deste preceito levou ao Direito novas interpretações, aproximando a Ciência Jurídica da ética, resgatando valores civilizatórios. No preceito em análise estão contidos os elementos materiais e imateriais (aqueles trazidos por José Afonso da Silva), no entanto, para o caso em tela, estão voltados somente para a dignidade da pessoa da mulher (ao contrário do entendimento de José Afonso da Silva que agrega os elementos desde a concepção), gestante do feto anencéfalo. A importância da concentração destes elementos na pessoa da mulher se dá pela obrigação que tem de carregar por noves meses um feto que não sobreviverá. Este sofrimento está comparado à tortura psicológica, ferindo o texto constitucional que veda toda e qualquer forma de tortura. A peça inicial também traz o seu entendimento sobre a legalidade, liberdade e autonomia da vontade. Quanto à legalidade, invoca o entendimento genérico que permeia na sociedade quando se diz que  se a lei não proíbe, então é permitido , observando que em nenhum momento o ordenamento jurídico proíbe a interrupção da gestação de anencéfalo. Com mesma base, entende que a liberdade de escolha da gestante, bem como sua autonomia de vontade para fazer o que achar correto, não deve ser tolhida, pois não existe legislação para coibir a interrupção da gestação, devendo partir da gestante a sua escolha de interromper ou não a gestação do anencéfalo. Por fim, o último dos preceitos fundamentais explanados na inicial, é o direito à saúde. A fim de convencer a necessidade de proteção ao direito à saúde da mulher no caso da gestação do anencéfalo, a CNTS invoca o conceito de saúde definido pela Organização Mundial da Saúde, que envolve além da ausência de doença, o bem estar físico, mental e social, violados, por conseguinte, à proibição da interrupção de sua gestação. Estes danos são causados com tamanha intensidade sobre a gestante que seu sofrimento alcança os familiares mais próximos. Passadas as considerações dos preceitos para fundamentar o ingresso da ação, a CNTS se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição para explanar o seu pedido. Nesta direção, a Constituição leva para os artigos 124 a 128 do Código Penal a interpretação que o bem tutelado é a vida do feto e da gestante. Por esta razão, pautando-se, a CNTS, nos escritos e laudos médicos da ausência de vida no feto sem o cérebro, a proteção dos referidos artigos do Código Penal não alcançaria a interrupção da gestação do feto anencéfalo (pois neste não existe a potencialidade de vida humana), não podendo ser sujeito de um dos abortos tipificados nos referidos artigos. Em caráter de urgência, o pedido cautelar teve fundamento na violação dos preceitos fundamentais, representados pela dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito à saúde, todos voltados para a gestante, caracterizando a existência do direito (fumus boni iuris) ao qual a gestante faz jus, bem como a existência do grave perigo (periculum in mora), devido ações corrente pelo país, com pedido de interrupção da gravidez, que estão sujeitas a análise do magistrado pela interpretação do Código Penal, indeferindo o pedido, sujeitando a mulher a manter uma gestação sofrida e torturante. Por fim, o seu pedido principal pretende fazer valer a interpretação dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal sob a égide da técnica da interpretação conforme a Constituição, para reconhecer o direito subjetivo da gestante se submeter ao procedimento de interrupção da gravidez do feto anencéfalo sem a necessidade de prévia autorização judicial. O julgamento da ADPF Nº 54 ocorreu entre os dias 11 e 12 de abril de 2012. O Supremo Tribunal Federal decidiu, por 8 (oito) votos a 2 (dois), pela legitimação da interrupção da gestação de feto anencéfalo se for a vontade da mulher. O advogado da CNTS, Dr. Luís Roberto Barroso, postou em seu site, logo após o julgamento, no dia 14 de abril de 2012, os seus argumentos utilizados para o sucesso do pedido:  Não se trata de aborto ou, ainda que fosse, estaria fora da incidência do Código Penal, dentre outras razões, por força do princípio da dignidade da pessoa humana. Em memorial distribuído na véspera, e na sustentação oral, acrescentei o argumento da autonomia reprodutiva da mulher. Presentes determinadas circunstâncias, o Estado não tem o direito de obrigar a mulher a levar a gestação a termo. O processo foi conduzido com o apoio e consultoria do ANIS  Instituto de Bioética, Gênero e Direitos Humanos e, particularmente, da Professora Debora Diniz . (BARROSO, 2012). O raciocínio do Dr. Barroso demonstra o atraso do ordenamento jurídico em relação aos acontecimentos que ocorrem na sociedade. Acontecimentos, estes, provenientes da evolução tecnológica do campo da medicina e que a seara jurídica  por sua função reguladora do comportamento dos indivíduos, deveria tomar ciência, absorver e deliberar sobre, para proporcionar ao meio social o devido regramento conforme o caso concreto. Para ratificar tal entendimento, basta observar que a autonomia reprodutiva da mulher, tratada pelo Dr. Barroso, foi tema discutido em 1968  tendo reconhecimento como Direitos Humanos, conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida) deste trabalho, ficando o positivo jurídico brasileiro num atraso de 44 anos. Importante percorrer os escritos dos votos dos ministros que julgaram a ADPF Nº 54 a fim de extrair a essência que levou ao resultado final, e observar se o ordenamento jurídico brasileiro está tendencioso a uma aproximação mais nutrida com a realidade social proporcionada com a evolução das Ciências da Saúde. Neste passo, segue-se o relator da ADPF nº 54, o ministro Marco Aurélio, que foi a favor da interrupção de gravidez de feto anencéfalo. O ministro considerou procedente o pedido da CNTS para caracterizar a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal Brasileiro, que mesmo datado de época com outros conceitos no meio social e de tecnologia médica que não possibilitou a detecção da anomalia antes do seu nascimento, mesmo assim, não haveria aplicabilidade da interrupção da gestação, no referido Código, para o caso do anencéfalo. Suas considerações sustentaram que a vida do feto, sem possibilidades de sobrevivência, não deve prevalecer sobre as garantias constitucionais da dignidade da pessoa humana, da saúde e da integridade física, psicológica e moral da gestante. Em sua análise, Marco Aurélio relata que é defeso ao Estado a imposição de uma gravidez em que o resultado sempre será a morte do feto. Desta forma, conclui Marco Aurélio a votar pela liberdade de escolha da mulher em manter ou não a gravidez.  Ainda conforme o entendimento do ministro Marco Aurélio, fez saber que não é o caso de uma descriminalização do aborto, vez que a proteção auferida pelo texto do Código Penal tutela o ser com potencial de vida, o que não ocorre com o anencéfalo. Em conclusão, conforme o ministro, não há que proteger um direito à vida, pois, trata-se de um natimorto. A ministra Rosa Weber andou sobre os passos do ministro Marco Aurélio. Julgou procedente a ação e também entendeu que a interrupção de gestação do feto anencéfalo não cabe no Código Penal pelo mesmo discernimento que o referido código trata da vida humana em potencial, o que não ocorre com o anencéfalo. No mesmo norte do ministro Marco Aurélio, defendeu a liberdade de escolha da gestante. Neste ponto, também existiu o entendimento para a proteção da integridade física e psicológica da gestante tutelada pela garantia dos direitos fundamentais da Constituição Federal. O ministro Joaquim Barbosa os acompanhou votando pela procedência da ação. Em seu voto, Barbosa entendeu que a interrupção da gestação do feto anencéfalo não fere o princípio da dignidade da pessoa humana. O ato serve para proteger a saúde física e psíquica da mulher, uma vez que não há possibilidade de sobrevivência do feto após o seu nascimento. O ministro também defendeu a liberdade de escolha da mulher em realizar o procedimento, confiando em suas convicções morais e religiosas. O ministro Luiz Fux também entendeu pela autorização da interrupção da gravidez do feto anencéfalo e se pauta na proteção constitucional contra a tortura. Fux, também tem seu entendimento sobre a preservação da integridade física e psicológica da gestante. O ministro amplia sua análise e observa que existe no caso do anencefálico uma tragédia humana. No seu entender, a mulher não deve ser levada ao banco dos réus por algo o qual não tem culpa alguma. O Estado, segundo o ministro, deveria prestar todo apoio necessário motivado por meio de ações sociais junto à comunidade. A ministra Cármen Lúcia também entendeu que no ato da interrupção deste tipo de gravidez não há caracterização de um crime e vota a favor da interrupção da gravidez do feto anencéfalo para proteger a saúde psicológica da mulher. Seu voto se concentrou no entendimento que o Supremo Tribunal Federal estava ali cumprindo o seu papel para dar uma resposta à sociedade e não para discutir a interpretação do texto da lei penal. A deliberação, segundo a ministra, se deu para determinar a possibilidade jurídica do profissional médico levar ao conhecimento da gestante as consequências de se avançar com a gravidez do feto anencéfalo, ajudando-a a decidir sobre a continuidade ou não da gestação. A sua decisão também deveria alcançar o entendimento do pai e da família, que juntos sofrem a dor pelo simples fato da existência da anomalia. A ministra também salientou que na maioria dos casos a mulher não procura informações sobre a possibilidade de interromper a gestação, por medo de ser punida, levando a termo, uma gestação dolorosa e traumática para a sua saúde psicológica. O ministro Ricardo Lewandowski votou pela improcedência do pedido da CNTS. Seu entendimento adentrou pela não legitimidade do STF em agir de forma positiva ao apreciar o pedido, cabendo ao STF exercer a função legislativa negativa, analisando apenas os casos de contrariedade com a Constituição Federal. Ainda segundo o ministro, houve usurpação do poder constitucionalmente atribuído ao Congresso Nacional. Que a decisão favorável a interrupção da gestação de feto anencefálico poderia ocasionar insegurança jurídica, abrindo um leque para incontáveis outros casos de anomalia que poderiam ser abraçadas pela decisão. Por outro ponto de vista, ainda segundo o ministro, a decisão também não pode ser favorável devido a existência de diversos outros dispositivos legais que protegem a vida intrauterina, destacando-se o Código Civil em seu artigo segundo. O ministro Ayres Britto decidiu por autorizar a interrupção da gravidez, acompanhando o ministro Luiz Fux, entendendo que o avanço desta gravidez é um sofrimento e uma tortura para a mulher, devendo-se primar a sua integridade física e psicológica. Britto também entende que a gravidez é para a vida e não para a morte, como no caso do anencéfalo em que a mãe já sabe que o filho irá morrer. O ministro vota pela autorização da interrupção como opção de escolha da mulher. O ministro Gilmar Mendes votou a favor da procedência do pedido da CNTS. Mendes diverge dos demais que votaram a favor, ao entender que a interrupção da gestação de feto anencéfalo é uma hipótese de aborto, no entanto, deve ser interpretada como excludente de ilicitude. Sua análise também recaiu sobre o fato que este tipo de gestação causa dano à saúde da mulher. O ministro também observou a impossibilidade do legislador, à época do Código Penal, prever tal anomalia para tipificá-la em seu texto, trazendo à tona o presente caso devido aos avanços tecnológicos no campo da saúde que hoje revelam com bastante rapidez e simplicidade o diagnóstico da anencefalia. O ministro salientou o dever do Estado de promover a prevenção da anomalia e não apenas  aparecer diante da sociedade como um ente punidor. O ministro Celso de Mello entendeu pela procedência da ADPF Nº 54, salientando que a interrupção da gestação de anencéfalo é motivo terapêutico para proteger a saúde física e psicológica da mulher. Alertou também para a importância do julgamento ao tratar do início e fim da vida humana, lembrando que a constituição não determina o seu marco inicial. Desta forma, optou como base que o fim da vida se dá pela morte cerebral e no caso do feto anencéfalo, não há que falar em vida pela ausência do seu cérebro. O ministro também enfatizou que o julgado não trata de legalização do aborto, mas apenas da interrupção terapêutica da gestação e da livre escolha da mulher de continuar o avanço deste tipo de gestação. Por fim, o voto do ministro Cezar Peluso juntou-se com o do ministro Ricardo Lewandowski ao votar pela improcedência do pedido da ADPF Nº 54. No entanto, em sua análise, Peluso partiu para outro norte defendendo que existe a vida no feto anencéfalo e esta deve ser protegida. Seu entendimento envolve que o aborto é a eliminação da vida, independentemente da expectativa de sua viabilidade. Desta forma, a prática do aborto estaria ceifando uma vida em formação e que tal ato está vedado pelos textos legais. Peluso também analisou a competência do STF julgando como legislador positivo. Neste entendimento, acompanha o ministro Ricardo Lewandowski na assertiva de que compete ao STF somente a interpretação de lei contrária a Constituição Federal. O seu entendimento é de que a inércia do legislador deu causa a provocação da sociedade para obter respostas à demanda dos casos da interrupção de gestação de feto anencéfalo. O ministro Dias Toffoli, por seu valimento na ADPF enquanto Advogado-Geral da União, não participou do julgamento da ADPF Nº 54. Após este resumo dos votos dos ministros, demonstra-se forçoso o resultado final da ADPF Nº 54 ao autorizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo sem a necessidade de autorização judicial. É que a urgência da sociedade para uma resposta e a pressão exercida pela população jurídica para uma atualização do sistema judiciário positivo aos casos concretos, parece ter deixado o STF sem saída, senão a exercer função atípica de legislar. Nas observações dos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso  os únicos que votaram contra a procedência da ADPF Nº 54, houve uma usurpação do poder atribuído ao Congresso Nacional. Ao STF compete apenas a interpretação da lei quando contrária à Constituição Federal, devendo exercer função legislativa negativa. Em suma, no entendimento dos ministros, o STF não tem competência para legislar, cabendo esta função ao Congresso Nacional. Trocando o resultado da ADPF Nº 54 em números, todos os votos que foram a favor da sua procedência, teve o entendimento da não aplicação positivada dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal para o caso da interrupção da gestação de feto anencéfalo, autenticando a necessidade da proteção à saúde física e psicológica da mulher (os ministros Luiz Fux e Ayres Britto, foram mais longe e levaram o sofrimento da mulher à similitude da tortura, defesa pela Constituição Federal), fazendo jus à dignidade da pessoa humana. Também houve maioria para a mulher ter a liberdade de escolha pelo procedimento da interrupção da gravidez do feto anencéfalo, ratificando os direitos reprodutivos reconhecidos desde 1968, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã  conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida). Numa terceira observação, também foi maioria o entendimento que não há crime na interrupção da gestação do feto anencéfalo, pois não se trata de uma vida humana em potencial, não ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana. Estas três assertivas elencadas pelos ministros ao julgar a ADPF nº 54, demonstra claro estreitamento da Ciência Jurídica com as Ciências da Saúde. Esta atração das duas grandes áreas demonstra a ignorância jurídica do Direito aos casos concretos da contemporaneidade, se permitindo ser invadido pela evolução médica, para validar uma ética da qual a sociedade é credora. Neste norte, ao optar pela autonomia da mulher escolher o procedimento para realizar a interrupção da gravidez, o regramento jurídico brasileiro saiu do atraso de 44 anos neste quesito, se atualizou, mostrando para a sociedade a sua presença em seu meio. O ministro Gilmar Mendes, apesar de votar pela procedência do pedido da ADPF nº 54, acompanhou os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (que votaram contra a ADPF nº 54) apenas no entendimento que existe uma vida a ser protegida naquele feto anencéfalo e que a interrupção do seu desenvolvimento é caso típico de aborto. O ministro observa que mesmo com a ausência do cérebro do feto existe ali uma vida humana, afinal, se morre é por que esteve vivo. Sua análise muda de direção e diverge de todo o colegiado quando entende que o caso deve ser tratado como uma excludente de ilicitude, não apenando a gestante que vier a optar pela interrupção da gravidez. Mendes acrescenta e acompanha o ministro Luiz Fux, na ideia que o Estado deve promover ações sociais junto à comunidade para evitar a anomalia. Diante destas explanações dos votos ministros, se vê que a máquina jurídica neste caso específico da interrupção da gestação do feto anencéfalo, somente se movimentou com a pressão da sociedade ao clamar por uma resposta diante dos novos entendimentos antes trazidos pela ciência médica. Assim, fica ratificado o entendimento trazido pelos doutrinadores que explanaram sobre a comunicação do Direito com as Ciências da Saúde. O Direito precisa do Biodireito para se atualizar e conhecer os novos casos concretos que levará a uma amplitude de direitos já existentes e à criação de novos direitos. CONCLUSÃO O desenvolvimento tecnológico levou as Ciências da Saúde para um patamar de evolução tamanha, que a aplicação médica tem mudado continuamente a realidade das pessoas. O ordenamento jurídico não tem acompanhado esta progressão, ficando os textos positivados obsoletos para o caso concreto, levando a sociedade a exigir respostas do judiciário. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal no caso específico da interrupção da gestação do feto anencéfalo, mesmo fora de sua competência originária, devido a urgência e pressão da sociedade por intermédio da categoria dos profissionais da saúde, votou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.54, na qual o objetivo foi levar faculdade à gestante de escolher pelo procedimento da interrupção da gestação do feto anencéfalo sem caracterizar o crime de aborto, em prol da sua saúde física e psicológica, protegida pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com base no estudo apresentado, conclui-se que existe a necessidade urgente da atualização interpretativa e literal dos textos de lei, para o judiciário acompanhar o desenvolvimento acelerado da sociedade e não acontecer um rompimento da segurança jurídica. A sociedade tem conhecimento da defasagem do Direito e tem se mostrado capaz de buscar o reconhecimento dos seus novos direitos. A doutrina jurídica e da saúde tem alertado para a necessidade desta nova estruturação e das consequências que podem ocorrer se o legislador continuar inerte diante das novidades do caso concreto. Assim, o Biodireito tem aparecido como a ferramenta ideal para a efetiva atualização do Direito sobre as novidades de campo em relação ao indivíduo humano, garantindo uma proteção jurídica compatível com o caso concreto e preenchendo a amplitude dos princípios constitucionais. As informações apresentadas neste trabalho sobre a ADPF Nº 54 comprovam que a ligação entre as Ciências da Saúde e Jurídica por intermédio do Biodireito, foi imprescindível e determinante para os ministros se pautarem sobre os novos entendimentos da gestação do feto anencéfalo e decidirem os seus votos. Resta então, aguardar pelo movimento da máquina jurídica em estreitar o seu relacionamento com a sociedade através dos estudos do Biodireito e, passar a reconhecer direitos e novos direitos na máxima do princípio primaz da Constituição Federal: o da dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-111/adpf-n-54-a-luz-do-biodireito-interrupcao-da-gestacao-do-feto-anencefalo/
Anencefalia
O presente artigo tem como objetivo demonstrar as diversas respostas sobre a questão da legalidade do abortamento de fetos portadores de anencefalia. Os aspectos médicos, jurídicos e psíquicos são analisados, assim como, as duas vertentes doutrinarias sendo favorável e desfavorável, que travam o embate pela obtenção em nome da verdade. Para tanto, após a análise do conceito de anencefalia sob a ótica constitucional, é feita uma abordagem sobre as hipóteses legais do aborto, passando em seguida pelas questões polêmicas e posicionamentos jurídicos acerca do tema. Será, ainda, analisada, bem como o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos casos dos fetos portadores de anencefalia.[1]
Biodireito
1. INTRODUÇÃO O presente artigo se propõe a enfocar a questão do Aborto de Feto Anencéfalo, que vem sendo muito analisado, provocando debates fervorosos entre os vários segmentos da sociedade, em especial a comunidade religiosa e jurídica. A polêmica surgiu por ocasião da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), em que se postula não se considerar aborto a antecipação terapêutica do parto de feto que apresente anomalia irreversível que segundo a ciência médica, certamente o levará a morte logo após o parto, como se observa nos casos de anencefalia, permitindo que as gestantes interrompam a gestação quando comprovada a anomalia por médico e exames especializados sem a necessidade de autorização judicial ou qualquer outra espécie de consentimento do Estado. A questão é tormentosa, uma vez que expõe conflitos tanto de ordem moral como principalmente jurídica. Segmentos da sociedade, a exemplo de algumas comunidades religiosas, contrapõem-se radicalmente à interrupção, sustentando que a vida humana deve ser preservada a todo custo e sob todas as condições, num discurso mais que meramente jurídico religioso e até filosófico. Argumentam, sob o aspecto jurídico, que a vida surge desde a concepção e que a Constituição brasileira assegura o direito à vida como direito individual indisponível e irrenunciável (art. 5º), sendo inaceitável que se retire a própria vida, menos ainda a vida de outrem. Não por outra razão, a sociedade brasileira proíbe constitucionalmente a pena de morte e estabelece, através de um Código Penal, normas de punição àquele que mata alguém (art. 121), que comete ou provoca aborto com ou sem consentimento da gestante (arts. 125 e 126), ou ainda, que induz, instiga ou auxilia alguém se suicidar (art. 122) etc. Tais normas penais visam, em última instância, preservar a vida, confirmando seu caráter de bem de invariável valor na evolução histórica da humanidade. Por sua vez, os que pregam a legitimidade da antecipação terapêutica em casos de anomalias congênitas irreversíveis, devidamente comprovadas por análise médica, como no caso de feto anencéfalico, também se esgrimam em argumentos de toda ordem, inclusive jurídicos, afirmando em especial que para se reconhecer a ocorrência de aborto é necessário que exista potencialidade de vida extra-uterina para o feto, o que não ocorre em tais casos; e que a Constituição garante, ao lado do direito à vida, o direito à dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º), sendo admissível, assim, que se prive a mãe do prolongamento da dor e do sofrimento decorrente da certeza psicológica de que está gestando ser que natural e “inevitavelmente” morrerá após o parto. Diante deste quadro, a questão jurídica da tensão entre dois direitos humanos fundamentais deve ser solucionada. De um lado, o direito à vida a todos assegurada após a concepção, tal como tradicional e cientificamente aceitos; e, de outro, o direito à dignidade, expressamente consagrado na Constituição e que busca por a vida humana a salvo de todo tipo de dor e injustiça. Não basta viver, é necessário viver com dignidade. Direitos que naturalmente se completam, agora se conflitam, reclamando conciliação por parte do intérprete e operador do Direito para preservar seus núcleos mínimos de existência. Parece não haver dúvida que a solução para a questão passa evidentemente pela técnica da ponderação do valor de tais bens a partir da observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que devem pautar a atividade de interpretação do direito. Entretanto, o cerne da questão é justamente saber qual é o ponto de equilíbrio entre estes dois direitos em aparente tensão. Deve prevalecer o direito do feto anencéfalo de viver, ainda que somente de forma intra-uterina ou por alguns instantes após o parto, mas sem perspectiva de desfrutar efetivamente da vida extra-uterina, porquanto desprovida de massa encefálica e, pois, de consciência, inconsciência e de todos os sentidos que, ao que tudo indica, dão razão à vida? Ou, de outra parte, deve prevalecer o direito à dignidade da mãe, que sabe por comprovação médico-científica que o ser que gera não poderá viver fora de seu ventre, de modo que deve ser colocada a salvo da dor e sofrimento que o prolongamento do processo de gestação lhe causará? Neste embate entre VIDA X DIGNIDADE, direitos igualmente fundamentais do homem, qual deve preponderar sobre o outro? Pretende-se, também, explicar a anencefalia conceituada na literatura médica como à má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Tal importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central, que é responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Os dados apresentados neste artigo foram elaborados através de pesquisas bibliográficas, em consultas a doutrinas (livros de escritores renomados e especializados no tema, que buscam a solução das questões controvertidas) e jurisprudências. A coleta sobre o assunto se deu, através de artigos da Internet, jornais e revistas. O desenvolvimento do artigo está dividido em cinco partes. A primeira parte define o que a anencefalia, já a segunda parte explica o tema proposto sob uma abordagem constitucional e suas hipóteses legais do aborto. A terceira parte aborda as questões polêmicas, os posicionamentos jurídicos acerca do tema e os princípios da dignidade da pessoa humana e o direito a vida. A quarta parte fala sobre o entendimento da questão pelo Supremo Tribunal Federal. É a ultima parte aborda a anencefalia no âmbito do Direito Penal. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. BUSCA DE DEFINIÇÕES DO ASSUNTO ANENCEFALIA A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitiva, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico nessas hipóteses é de sobrevida de no máximo algumas horas após o parto. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa. Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intra-uterina. A anomalia pode ser diagnosticada, com muita precisão, a partir de 12 semanas de gestação, através de exame ultra-sonográfico, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal. De modo geral, os ultra-sonografistas preferem repetir o exame em uma ou duas semanas para a confirmação diagnóstica. A ressonância magnética, ao lado da ultra-sonografia de nível três, tem se mostrado importante meio diagnóstico na identificação desta e de outras malformações dos fetos. Ainda, constitui valioso auxiliar na identificação de outras afecções associadas, como a Espinha Bífida e a Raquisquise, presentes em grande parte dos casos. A Espinha Bífida conciste na malformação congênita provocada por um fechamento incompleto do tubo neural embrionário, diferentemente da Raquisquise. A Raquisquise é definida abertura completa da coluna vertebral que, ao colocar em comunicação direta a medula espinal com o exterior, provoca a morte da vítima. Outras malformações freqüentemente associadas a anencefalia são as cardiopatias congênitas e as alterações do sistema gênito-urinário fetal. Em que pese a facilidade no diagnóstico por ultra-sonografia avançada, tem importante papel a elevação dos níveis de alfafetoproteína no líquido amniótico. Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter à inviabilidade do feto? Não há solução?. 2.2. DA ANENCEFÁLIA E SEUS ALGUNS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS. Primeiramente, a fim de que se tenha domínio sobre o tema estudado, mostra-se indispensável à definição do que é a anencefalia[2]. Trata-se de uma má-formação congênita que ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, quando o tubo neural (estrutura fetal precursora do sistema nervoso central) sofre um defeito em seu fechamento. Tal defeito não pode ser ligado a causas específicas, sendo certo que vários eventos podem ocasioná-lo. Dentre eles pode-se citar a deficiência de vitaminas do complexo B, em especial o ácido fólico, a ingestão de álcool, o tabagismo, questões genéticas e, até mesmo, a submissão da gestante a altas temperaturas[3]. Deste defeito resulta que a estrutura encefálica é inexistente ou, caso existente, é amorfa, estando solta no líquido amniótico ou deste separada por uma membrana. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral (que constituem a estrutura cerebral). Quanto ao tronco cerebral (estrutura responsável pela respiração), por ser a estrutura encefálica mais interna, é possível que não apresente lesões, embora seja muito comum que as apresente. Percebe-se, assim, que a anencefalia é uma má-formação que diz com a lesão de parte do encéfalo – a sua parte mais importante –, qual seja, o cérebro, não sendo possível observar nos fetos portadores desta anomalia qualquer sinal de “consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade”[4]. Seu diagnóstico poderá ser feito, de forma inequívoca, já a partir do terceiro mês de gestação, utilizando-se, para tanto, de simples ultra-sonografia, eis que a estrutura craniana do feto portador desta má-formação é inconfundível: ela não possui o formato oval/circular, mas tem profunda depressão na parte superior. Outrossim, poderá ser usado o exame de sangue para seu diagnóstico, eis que gestações destes fetos geram um significativo aumento de alfa-fetoproteínas no sangue materno. Quanto à incidência desta má-formação, é difícil precisar com que freqüência se ocorre, visto que muitas vezes o abortamento ocorre espontaneamente, não chegando aos órgãos responsáveis pelas estatísticas a informação desta gravidez. Entretanto, números existentes apontam a incidência de 0,6 portadores de anencefalia para cada mil fetos nascidos vivos[5], sendo o Brasil o quarto país no mundo com o maior número de incidência de fetos anencefálicos, ficando atrás apenas de México, Chile e Paraguai[6]. A gravidez do feto anencéfalo resulta em inúmeros problemas maternos durante a gestação. A FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia enumera tais complicações maternas, dentre elas: eclampsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico e até a morte materna. Complicações maternas durante a gestação de fetos anencéfalos: A) Prolongamento da gestação além de 40 semanas; B) Associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores; C) Associação com DHEG (Doença Hipertensiva Específica da Gestação); D) Associação com vasculopatia periférica de estase; E) Alterações comportamentais e psicológicas; F) Dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo (parto entre 38 e 42 semanas de gestação, tempo considerado normal); G) Necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério; H) Necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos; I) Necessidade de bloqueio da lactação; J) Puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina. K) Maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo. Acrescente-se ainda que cerca de 15-33% dos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves, incluindo defeitos cardíacos como hipoplasia de ventrículo esquerdo, coarctação da aorta, persistência do canal arterial, atresia pulmonar e ventrículo único. Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral[7]. Segundo o CFM, em sua Resolução Nº 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por  não  possuirem  o  córtex,  mas  apenas o  tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. Sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral[8]. Essa é, pois, a realidade da anencefalia, que pode ser detectada, quando o feto ainda se acha no ventre materno. Mas, em 1940, quando editado o Código Penal brasileiro, não havia tecnologia suficiente para um diagnóstico de certeza, a respeito da malformação. Não é o que acontece, na atualidade. Em primeiro lugar, é de se perguntar: a interrupção da gravidez de um feto anencefálico pode ser considerada prática abortiva? Mais uma vez, a solução se acha em nossa ordem jurídica, precisamente em se respeitarem direitos e princípios constitucionais, que tem um custo muito alto a cada um de nós e a toda a sociedade: a) saúde; b) vida; c) dignidade da pessoa humana. Direitos e princípios detectados na Constituição Federal de 1988. a) Discutindo os Direitos a Saúde: O artigo 196, da Carta Magna, reza: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”[9]. Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um  ser  sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano. É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde[10]. A argumentação expendida em defesa desta tese encontra guarida no fato de que o objeto de proteção jurídica no crime de aborto é o direito à vida. Mas para que esta possa ser protegida, é imperiosa a sua existência, ou ao menos sua potencialidade de existência, o que não se vê presente diante do feto portador de anencefalia. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico: “O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”[11]. b) Direitos à Vida: O direito à vida é, mais do que isto é um direito a uma vida digna, com esteio nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que faz com que se opte por não fazer a mãe correr riscos para preservar um ser que não tem cérebro e, por esta razão, obviamente, é um natimorto cerebral. Violam-se, também, dois princípios fundamentais, que dizem respeito à legalidade e à dignidade da pessoa humana, previstos nos artigos 1.º, III, e 5.º, da Lei Máxima. A ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida, porque, rigorosamente, lhe falta o encéfalo. Também, haverá desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana a imposição à gestante de ter, em seu útero, um feto, durante o tempo normal exigido para um parto normal! c) Que deseja com a Dignidade da Pessoa Humana: O princípio da dignidade da pessoa humana se incorporou à maioria dos textos constitucionais, em todo o mundo, de forma expressa. Leiam-se os textos constitucionais da Alemanha de 1949, de Portugal de 1976, da Croácia de 1990, da Bulgária de 1991, da Estônia de 1992 e tantos outros, mas, detenhamo-nos na Constituição portuguesa de 1976, matriz da brasileira, que expressa em seu artigo 1.º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”[12]. O professor Pietro Alarcón teve a oportunidade de afirmar: “De outro lado, a Carta Magna de 1988 abriga a dignidade, e nesse sentido, a dignidade é um bem jurídico a ser guarnecido pelo sistema. Por outra parte, é eixo de interpretação, atravessando o sentido de constitucionalidade que deve constar em qualquer sentença de juízes e tribunais pátrios. Não exageramos se dizemos, por esses motivos, que a dignidade da pessoa humana foi erigida a padrão de referência de todo o arcabouço jurídico brasileiro”[13]. Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio. À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens. O enfrentamento de tão grave lacuna legal presente em nosso ordenamento jurídico, faz com que este momento seja histórico no judiciário brasileiro. Em boa hora, presta-se a cumprir o princípio fundamental do art. 1º da Carta Magna, respeitando “a dignidade da pessoa humana”, na medida em que assegura à gestante a liberdade de prosseguir ou interromper a gravidez na hipótese de anencefalia, bem utilizando a eqüidade para responder a uma necessidade social emergente. Resta também contemplada, a imperiosa observância ao inciso I, do art. 5º da CF, não submetendo as gestantes, quando se deparam com o diagnóstico da anencefalia, a um tratamento cruel, desumano e degradante equiparado à tortura, como o que lhe é imposto com o dever de obter um alvará judicial autorizando a interrupção da gestação, submetendo-se a toda a delonga que assombra o judiciário brasileiro. Entende-se, pois, que, assim, está-se de fato realizando “Justiça”, pois estão em pauta questões referentes aos direitos humanos garantidores dos direitos fundamentais das gestantes, previstos pela própria Constituição e, por isso, não podem estar condicionados à edição de lei, eis que gozam de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º § 1º, da Lei Maior[14]. No caso da anencefalia, e tendo em vista os princípios fundamentais consagrados, há de se ponderar os valores em jogo, sem, contudo, esquecer que espécie de justiça legitima o aborto por estupro e não a interrupção da gravidez por anencefalia: de um lado está à obrigatoriedade da mulher manter uma gravidez que não tem por objetivo dar à luz e vida a uma criança e, de outro, está o respeito à dignidade da pessoa humana de quem optou por abreviar um sofrimento que, dentro das suas razões, e no seu entender, não terá sentido se o resultado final “morte” é imutável. Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é sub-humano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer “O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que está envolvido de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher”[15]. Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia. O olhar da problemática da anencefalia com “olhos de ver” cristaliza o entendimento de que a manifestação favorável do Estado-Juiz para a realização do procedimento médico é a representação, a um só tempo, do respeito e observância do direito à saúde, do direito à liberdade em sua acepção “lato sensu”, do direito à preservação da autonomia da vontade, do princípio da legalidade e, acima de tudo, do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, pois a submissão à vontade estatal denegatória resulta em violência às vertentes do princípio em comento, de forma física, moral e psicológica[16]. 2.2.1. HIPÓTESES LEGAIS DO ABORTO. Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina[17] xvi. O Aborto é um crime de ação livre “que é aquele que pode ser praticado por qualquer meio de execução, uma vez que a lei não exige um comportamento específico”, podendo a sua provocação ser realizada de diversas formas, seja por ação, seja por omissão. O art. 128 do CP prevê duas hipóteses nas quais a interrupção da gestação ou aborto não sofrerá punição. Uma das hipóteses é o aborto necessário (art. 128, I do CP), que é a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, ou seja, quando a continuidade da gestação levará, sem sombra de dúvidas, à morte da gestante e inexistir outro meio para salvá-la. A segunda hipótese prevista no referido artigo é o aborto humanitário, sentimental ou ético (art. 128, II do CP). Trata-se de aborto realizado pelos médicos nos casos em que a gravidez decorreu de um crime de estupro, sendo requisito indispensável que a gestante consinta com a prática abortiva[18]. Nota-se que, se a interrupção da gestação for embasada nos fundamentos que veremos agora ou em qualquer outro fundamento, a conduta será tida por ilícita, sofrendo o agente a incidência da pena cominada pelos artigos 124 a 126 do CP[19]. O artigo 124 do CP cuida do aborto provocado pela própria gestante, “aborto consentido”, que consiste ainda no consentimento da gestante para que um terceiro nela pratique o aborto. A segunda hipótese prevista é a do artigo 125 do CP, que trata do aborto provocado por terceiros sem o consentimento da gestante. É a forma mais gravosa do delito de aborto, não sendo preciso que haja o dissenso expresso da gestante, bastando o emprego de meios abortivos por terceiros sem o seu conhecimento. Outra previsão é a do artigo 126 do CP, que cuida do aborto provocado por terceiros com o consentimento da gestante. Aqui há um consentimento válido, isto é, a gestante deverá ter capacidade para consentir, levando-se em conta a sua real vontade, sendo possível ainda vislumbrar a hipótese do concurso de pessoas nos caos em que há auxílio à conduta do terceiro que provoca o aborto[20]. Do que acima foi dito, resulta que não mais haverá discussão quanto à legalidade do abortamento de anencéfalos se a gestação puder ser enquadrada nas hipóteses literalmente previstas no CP de inaplicabilidade da pena. Entretanto, em não sendo possível tal enquadramento, restará a necessidade como definir se aquele que pratica do abortamento de fetos com esta característica restará submetido à incidência da norma incriminadora ou poderá, a exemplo dos demais casos, ser beneficiado, tendo sua conduta como permitida. 2.3. VISUALIZANDO AS QUESTÕES POLÊMICAS X POSICIONAMENTOS JURÍDICOS. Questões polêmicas acerca do tema envolvem importantes reflexões conceituais sobre o início da vida, direitos humanos e as conseqüências negativas da aplicação da lei, considerada por muitos ultrapassados. Ao falar do tema, discuti-se a possibilidade favorável ou contrária da autorização ou interrupção da gravidez. Muitas são as contendas que o tema remete. Ademais, toda esta polêmica movimentação que gira em torno do assunto, nos leva a perceber que a legislação penal pátria, datada de 1940, em se tratando origem, não previu a possibilidade de autorização de aborto para fetos anencefálicos. Assim, o estudo do tema é de suma relevância para o aprendizado, e, projeção para a pesquisa científica. O tema provoca várias divergências, muitos se posicionam de maneira favorável e outros são contrários à perspectiva de autorização do aborto anencefálico. Os que se posicionam a favor do aborto anencefálico enfatizam que se trata de procedimento necessário, pois o feto é indubitavelmente incapaz de sobreviver. Além disso, outro argumento utilizado é que o aborto anencefálico significaria um benefício para assegurar de forma indestrutível a vida da mãe, e, além disso, poderia, e na verdade pode minimizar o sofrimento da família, visto que, sabe-se que mesmo nascendo o feto não logrará vida por muito tempo. A corrente que se posiciona a favor do aborto nos casos de anencefalia, baseia-se no Código Penal, para tecer uma crítica, averbando que o Direito deve acompanhar a sociedade e sua evolução, pois se entende que a Ciência Jurídica sempre deve caminhar evolutivamente com a sociedade. Assim, pelo fato do Código Penal ser datado da década de 40 do século XX, fica inviável discutir a anencefalia pautando no Código Penal, haja vista que na época inexistia a possibilidade tecnológica de diagnosticar a anencefalia através de exames, durante a gravidez. Além disso, a corrente favorável leva em consideração o posicionamento da medicina, já anteriormente estudado, sobre a questão, pois, sabe-se que o feto anencefálico não logrará êxito em termos de sobrevivência. Aqueles que se manifestam de forma contrária à autorização do aborto anencefálico, guiam-se mais pelo direito positivo vigente que não prevê autorização para o caso em pauta – o aborto de feto anencéfalos. Assim, os seguidores da legislação vigente que se posicionam contra o aborto de anencéfalos, encontram abrigo tanto no Novo Código Civil de 2002 quanto no Código Penal. É considerando a possibilidade de que o anencéfalo pode chegar a viver (quer seja por um instante) que os contrários ao aborto se logram, tendo por base o Código Civil, que em seu artigo 2ª, afirma, “a personalidade civil da pessoa começada nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”[21]. O artigo em tela ressalta que independente da continuidade ou não da vida, desde que nasça com vida, a lei pôs a salvo os direitos daquele que vai nascer – o nascituro. Tal discussão gera polêmica nos diversos aspectos possíveis para discutir o tema seja pelo prisma étnicos, religiosos e até mesmo jurídicos.  Nesta idéia de a lei por a salvo os direitos do nascituro, entende-se que, uma vez concebida a possibilidade do feto vir a nascer e viver, nem que seja por alguns instantes, estará patenteada a proibição do aborto anencefálico. O Código Penal não faz menção em momento algum ao aborto anencefálico, o que o torna um fato antijurídico por não haver previsão legal a seu respeito. Então, a corrente contrária argumenta justamente nesta ausência de disposição normativa para o caso de anencefalia, conclamando inclusive o princípio da reserva legal, tocando na tese de que para poder realizar o aborto nos casos de anencefalia, deveria haver autorização legislativa[22]. Ademais, pelo fato da pesquisa ter optado pelo olhar apenas jurídico, a manifestação contrária ao aborto anencefálico, tocou apenas no aspecto da legislação não ter previsto esta possibilidade, no entanto, os que se posicionam de forma contrária, tocam também na questão religiosa, moral e ética quando se manifestam contrários à permissão do aborto anencefálico. Além disso, outro apego normativo para amparar a corrente contrária ao aborto anencefálico é o caput do artigo 5º da Constituição Federal, que versa, “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida…”. É pensando na vida do feto anencefálico que a corrente contrária ao aborto nos casos de anencefalia sustenta que mesmo sendo pouco duradoura, a vida do anencéfalo deve ser respeitada. 2.3.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA X DIREITO A VIDA. Inicialmente tentarei definir o significado de vida para que possa emoldurar a abrangência e atuação de uma inquirição. É sabido que a tarefa de definir o sentido exato de vida revela-se por demais colossal, em virtude das dificuldades sobre o tema. Mesmo porque a vida está em constante movimento, acontecendo a todo instante diante de nós. Alguns estudiosos, sobretudo das Ciências da Saúde, dizem ser a vida a continuidade de todas as funções de um organismo vivo. Ou então o período compreendido entre a concepção e morte. Trata-se, como podemos inferir, de idéia muito vago, carecedora de precisão, não correspondendo a nenhum dado sensorial ou concreto, insuficiente para conceituar, por conseguinte, a proposição em comento. Em suma, a definição não consegue apresentar características individualistas, inequívocas, do que seja vida. Por todo o respeito que a Constituição Federal de 1988 guarda ao bem-jurídico a vida, pela disposição do tema na legislação infraconstitucional, conseqüentemente, o aborto é na prática o afrontamento incisivamente o direito à vida, por razões que saltam à vista. O desrespeito aos direitos do nascituro, as funestas técnicas usadas para extirpar a vida humana de seu nascedouro, os medicamentos abortivos, são rotinas infelizes em hospitais e nos anais da polícia. É correto afirmar que o aborto, fora dos casos legais e morais, fere o direito fundamental à vida, deixando entrever casos de sua inexigibilidade jurídica. À luz do direito positivo ele se biparte em legalizado e criminoso, consoante seja ou não permitido pela lei, variável através dos tempos e no seio de todos os povos[23]. A prioridade que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida é altamente relevante.  Este se coloca à frente de outros e, a mens legistaroris, afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central e eqüidistante em relação aos demais direitos.É a coluna cervical do arcabouço jurídico, de onde emanam todos os demais direitos. O direito a vida está indiscutivelmente protegido no nosso ordenamento jurídico, onde está ressaltada sua inviolabilidade. O conceito de vida estende-se, pois, desde a concepção até a morte. Interromper-se uma gestação, ocasiona um aborto. Se o feto é portador de anomalia incompatível com a vida, tem-se o aborto eugênico ou eugenésico. A eugenia é a ciência da melhora da linhagem humana. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve. Não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é atingida pelo simples fato dessa maternidade, onde valor constitucionalmente exaltado. A gestante – em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, – não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, – revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, – cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade[24]. A violação à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III, da Constituição da República), consistiria no fato de se impor à mulher que leve adiante a gestação de um feto que certamente morrerá, causando-lhe dor, angústia e frustração. Haveria potencial ameaça à integridade física (pelos fatores de risco da gravidez de feto anencéfalo) e à integridade psíquica (pela convivência com a mórbida perspectiva do nascituro), sendo certo que “A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”, ao passo que o artigo 5°, III, da Constituição da República veda qualquer forma de tortura[25]. O anencéfalo foi erigido à categoria de natimorto cerebral. Assim sendo, confirmou-se ausência de viabilidade de vida quando o feto não possuir atividade elétrica cerebral. Deste modo julga-se injustificável submeter à mulher aos riscos de uma gravidez e aos traumas psíquicos que dela podem advir, quando não houver qualquer expectativa de que seu filho nascerá com vida. Sabe-se que os procedimentos empregados para a interrupção da gravidez possuem alta capacidade degradante no organismo da mulher, em razão de ser o útero um órgão muito vascularizado, o que aumenta a possibilidade de inflamação generalizada, se porventura o processo não for concluído devidamente. Não tendo pessoas capacitadas para tanto, o número de casos de aborto desastrosos é assustador, envolvendo desde a morte materna, até os casos em que o aborto não tenha sido consumado, tendo o bebê resistido e ficado com sequelas irreparáveis. No Brasil cerca de três milhões de abortos ilegais são praticados por ano, sendo que 340 mil mulheres são internadas por complicações advindas deste procedimento. Segundo a OMS, o aborto é, na América Latina, a causa de 30 a 50% da morte das mulheres que engravidam. Isso tudo se deve pela total falta de higiene dos ambientes clandestinos que intervém indevidamente na gravidez. Os especialistas afirmam que toda a problemática ocorre, principalmente, devido às condições sócio-econômicas das gestantes. Desta forma, não nos parece eficaz para que a situação seja controlada, concentrar as discussões no campo tão-somente da moral. Há que serem discutidas questões éticas, jurídicas e, sobretudo, humanitárias[26]. Em seguida, é incompreensível o posicionamento do ordenamento jurídico em permitir o aborto em casos em que a gravidez tenha advindo de estupro, mesmo que este ato ponha em risco a higidez do feto, o qual, a princípio, é saudável. Os legisladores atenuaram o art. 128 do Código Penal justificando-se no fato da não aceitação da mulher em carregar um filho fruto de um trágico momento de sua vida. Ora, isso é no mínimo injusto. Afinal, como pode uma mulher pôr termo à vida de um filho, a princípio saudável, pelo simples fato de rejeitar a forma como ocorreu a gravidez, e não poder uma outra abortar um feto que não terá qualquer expectativa de vida? Por vezes este último é tão mais indesejado que o primeiro, por, neste caso, a mulher carregar em seu ventre um filho que não terá condições de viver. Insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidade de êxito, quando há vontade contrária da mulher, segundo o Juiz Corregedor da Polícia Judiciária da Capital Paulista, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “representa capricho irresponsável do legislador e da sociedade que o apóia, pois este sofrimento poderá evoluir para um grave comprometimento psicológico”.  Há, ainda, a possibilidade de risco à saúde da mulher, como já mencionado, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo, por razões humanitárias[27]. Para que a lei penal fosse legítima além de legal far-se-ia a necessidade de reformulá-la. A legitimidade da norma emana da idéia que a sociedade faz do justo. E, certamente, a sociedade brasileira hodierna tem os seus conceitos de justiça alterados, desde o ano de 1940, quando o atual Código Criminal surgiu. Neste sentido, a modificação da lei é necessária para reajustar a expectativa da norma aos anseios dos sujeitos que por meio dela realizam o Direito. A eficácia da norma, nós sabemos, depende do consenso social em observá-la, o que ocorrerá quando esta refletir as vontades do seu público. As leis devem se adequar aos momentos sociais, históricos e políticos em que estão inseridas representando o clamor e anseios da sociedade. Razão pela qual o Pretório Excelso deve amoldar a legislação atinente ao aborto a fim de viabilizar a antecipação terapêutica dos partos de anencéfalos. O que não pode é o Estado se omitir e deixar de atender aos fins últimos colimados em qualquer lei, a apaziguação dos conflitos sociais e a busca do bem comum. 2.5. ANENCEFALIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O Supremo Tribunal Federal comparta-se como o “guardião” da Constituição, assim, o instituto máximo do Poder Judiciário, sempre contempla matérias que geram controvérsias nos tribunais inferiores. Nesse sentido foi pesquisado sobre ações que chegam ao Supremo, e, tem-se que dia 18 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNTS), emitiu nota ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que fosse autorizado o aborto de fetos anencefálicos, uma vez que estes, por vezes colocam a vida da gestante em risco diante dos diversos óbitos intra-uterinos que ocorrem. A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº. 54 teve como relator o Ministro Marco Aurélio. No âmbito das discussões e contemplação da  ADPF nº. 54, no dia 1º de julho a 20 de outubro de 2004, requerendo que este tribunal autorize em todo o território nacional a prática do aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia, em qualquer idade gestacional. A ação foi pedida em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que justifica o pedido com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como o direito à saúde, onde o Ministro Marco Aurélio concedeu uma liminar pelo Supremo Tribunal Federal, que autorizava interrupção da gestação para as mulheres grávidas de feto com anencefalia, baseando-se nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da autonomia da vontade, da legalidade, do direito à saúde e da dignidade da pessoa humana, argumentando no sentido de que diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos[28]: Ele concorda com o argumento de que a antecipação desses tipos de partos não caracteriza aborto. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade.  Marco Aurélio conclui que manter esse tipo de gestação “resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina”. A decisão foi um avanço para o processo civilizatório, e ainda que a medida tenha sido recentemente derrubada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, a atitude do ministro foi louvável por fazer retornar discussão tão necessária à conjuntura jurídica atual. E ainda, votaram a favor, no sentido da admissibilidade da ação, além do ministro Marco Aurélio (relator), Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda pertence e Nelson Jobim (presidente). No dia 20 de outubro de 2004, o STF repeliu a decisão do Ministro Marco Aurélio que concedia a gestante o direito de antecipar o parto na gestação de fetos anencefálicos. Foram contrários negando seguimento à ação, os ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso. A entidade registra que o Judiciário vinha firmando jurisprudência, por meio de decisões proferidas em todo o país, reconhecendo o direito das gestantes de se submeterem à antecipação terapêutica do parto nesses casos, mas que decisões em sentido inverso desequilibraram essa jurisprudência. A jurisprudência de nossos tribunais tem sido conflitante, assim como as decisões monocráticas de primeira instância. Freqüentemente, observam-se decisões que permitem o aborto em casos de anencefalia e outras em que esse direito é negado a mãe. Em determinadas situações, os casos concretos foram levados até a mais alta corte da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal. Entretanto, devido à demora na via crucis trilhada pelos pais, quando os casos chegaram ao Egrégio Tribunal, os processos perderam seu objeto, pois os fetos já haviam nascido e falecido em poucas horas após o parto. Assim, o STF ainda não teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema e de pacificar a controvérsia desta questão. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A solução desta questão, sem dúvida alguma, protegeria e privaria as gestantes de sofrimentos desmedidos, além de preservá-las e também os profissionais de saúde que participassem dos procedimentos de antecipação terapêutica do parto de serem acusados da prática do crime de aborto, daí, aliás, a razão de a ação ter sido proposta pela respectiva entidade de classe. No entanto, o desenlace deste nó e a última palavra competem agora ao Supremo Tribunal Federal. Aos senhores Ministros da Suprema Corte brasileira cabe então o encargo quase celestial de decidir sobre a vida ou a morte, a dignidade ou indignidade, enfim, sobre os valores humanos que, no caso e só no caso, devem preponderar no seio de uma sociedade. Talvez esta seja uma das tarefas mais cruciais que o ofício lhes impõe, porquanto revela a importância e expõe o alto grau de responsabilidade de suas decisões para a vida dos homens. Ressalte-se que se faz necessária à participação da sociedade na discussão sobre o tema, pois não se pode esperar que a Justiça seja obra de poucos, mas sim, obra de todos.  Embora, felizmente, a anencefalia tenha uma incidência baixa, não distingue credo, raça, cor ou classe social; ninguém pode ter certeza que não enfrentará futuramente o problema. Além disso, e principalmente, ao se fazer a Justiça para um, em realidade, está se fazendo Justiça para todos. Todavia, delas não podem se furtar, restando à sociedade civil somente esperar que a questão seja bem refletida e sabiamente decidida à luz da inspiração divina.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-111/anencefalia/
Direitos da personalidade, bioética e biodireito: Uma breve introdução
Resumo – O presente artigo busca analisar alguns aspectos atuais no sistema jurídico brasileiro, principalmente aqueles relacionados ao biodireito e aos direitos da personalidade. Para tanto é feito um breve histórico dos direitos da personalidade e suas características. Define-se os conceitos de bioética e biodireito. Nesse contexto, o artigo aborda a discussão de três assuntos relevantes: a eutanásia e diretrizes antecipadas de vontade, a cirurgia de transgenitalização e a objeção de consciência como argumento contrário à transfusão de sangue.
Biodireito
1. Introdução Os direitos da personalidade como proteção integral do ser humano em toda a sua essência são uma construção jurídico-teórica recente. “O homem não deve ser protegido somente em seu patrimônio, mas principalmente, em sua essência.” [1] Durante muitos anos na história da humanidade, a proteção a direitos fundamentais do ser humano era relegada às categorias privilegiadas da sociedade, haja vista as inúmeras atrocidades cometidas nos mais diversos períodos da história. Nesse sentido apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que essa construção teórica é fruto do cuidado da doutrina germânica e francesa, especialmente depois da II Grande Guerra mundial.[2] “Seu destaque e o desenvolvimento das teorias que visavam proteger o ser humano se devem, especialmente, ao cristianismo (dignidade do homem), ao jusnaturalismo (direitos inatos) e ao iluminismo (valorização do indivíduo perante o Estado).” [3] Os códigos civis não faziam nenhuma referência aos direitos da personalidade o que foi ocorrendo aos poucos na maioria dos países. “Uma das principais inovações da Parte Geral do Novo Código Civil é justamente, a existência de um capítulo próprio destinado aos direitos da personalidade” [4] Um grande passo para a proteção dos direitos da personalidade foi dado com o advento da Constituição Federal de 1988, que expressamente a eles se refere no art. 5º, caput, e inciso X. [5] O Código Civil de 2002, ao contrário dos anteriores, disciplina a matéria nos artigos 11 a 21 da Parte Geral. A legislação civil tratou de regular o direito ao próprio corpo, o direito ao nome, o direito à honra, à imagem e o direito à privacidade. “A inserção dos direitos da personalidade na Parte Geral do Código Civil já representa, por si só, uma admirável evolução em relação ao Código Civil de 1916, carregado de tintas patrimoniais.”[6] Características dos direitos da personalidade Os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa humana capazes de garantir um mínimo necessário e fundamental à uma vida com dignidade. Diante dessa afirmação, é imprescindível a análise de suas características que os diferenciam no arcabouço jurídico. A primeira característica dos direitos da personalidade é a sua relativa indisponibilidade. A relativa indisponibilidade decorre do fato de que é possível ao titular ceder o exercício de alguns direitos de personalidade e não a sua titularidade. “É o exemplo do direito à imagem, que pode ser cedida, onerosa ou gratuitamente durante determinado lapso temporal.” [7] Não é permitido ao titular desses direitos dispor de forma permanente e ilimitada assim como aponta o Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil ao estabelecer que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.” A característica da indisponibilidade relativa dos direitos da personalidade foi muito bem analisada no emblemático “Caso de Arremesso de Anões”. O famoso caso de arremesso de anões (dwarf tossing ou dwarf throwing) em inglês ou (lancer de nains) em francês, é um exemplo do limite de disposição dos direitos da personalidade. A situação ocorreu em uma cidade Francesa chamada Morsang-sur-Orge na qual existia uma brincadeira ou esporte, para alguns, em que anões, vestindo roupas de proteção, eram arremessados à mão livre ou através de canhões de pressão em direção a um tapete acolchoado, vencendo aquele que conseguisse lançar o anão à maior distância possível. A Prefeitura do referido município, utilizando-se de seu poder de polícia, entendeu por bem interditar o bar onde era praticado o referido arremesso de anões, argumentando que aquela atividade violava a ordem pública, pois era contrária à dignidade da pessoa humana. Não se conformando com a decisão do Poder Público, o próprio anão (Sr. Wackenheim) em litisconsórcio com os organizadores do evento, questionaram a interdição e afirmaram que necessitavam daquele trabalho para a sua sobrevivência. O anão argumentou que o direito ao trabalho e à livre iniciativa também seriam valores protegidos pelo direito francês e, portanto, tinha o direito de decidir como ganhar sua própria vida. Em outubro de 1995, o Conselho de Estado Francês, órgão máximo da jurisdição administrativa daquele país, decidiu, em grau de recurso, que o Poder Público Municipal estaria autorizado a interditar o estabelecimento comercial que explorasse o arremesso de anão, pois aquele espetáculo seria atentatório à dignidade da pessoa humana além de violar a ordem pública, reconheceu também, que o respeito à dignidade humana, conceito absoluto que é não poderia cercar-se de quaisquer concessões em função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seu respeito, (Assemblée. – Req. n° 136727 – Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. dug. ; Mes Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.). Ainda assim, o Sr. Wackenheim, mais uma vez, inconformado com a decisão, recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), alegando que a decisão seria discriminatória e violava o seu direito ao trabalho. Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU confirmou a decisão do Conselho de Estado Francês, reconhecendo que o lançamento de anão violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria realmente ser proibido. O art. 11 do Código Civil preceitua que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” Desse modo, também é característica dessa categoria de direitos a intransmissibilidade. A personalidade da pessoa humana extingue-se com morte de seu titular, já que os direitos da personalidade são vitalícios, outra característica apontada pela doutrina. Insta ressaltar o que dispõe o art. 12 do Código Civil: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” Apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que o parágrafo único do artigo mencionado refere-se aos lesados indiretos que estão legitimados a reclamar em nome próprio, a proteção de seus direitos de personalidade, com base na violação da personalidade de cônjuge ou companheiro falecido, bem como de seus parentes mortos, em linha reta ou colateral até quarto grau. [8] Nessa hipótese, o dano ocorre depois da morte, já que o falecido não tem mais personalidade, por isso são designados lesados indiretos. Os direitos da personalidade também são absolutos, ou seja, são oponíveis erga omnes, pois, todos devem abster-se de violá-los. Os direitos da personalidade são extrapatrimoniais, isto é, não podem ser apreciados economicamente, pois são valores existenciais da pessoa humana, extra commercium, todavia a violação à esses direitos dá ensejo à possibilidade de reparação pecuniária como forma, por exemplo, de compensar um eventual prejuízo ou dano ao seu portador. Também possuem a característica da impenhorabilidade, não podendo sofrer ato de constrição judicial, a penhora, em qualquer hipótese. Além das características apontadas, pode-se também elencar a imprescritibilidade como um aspecto relevante desses direitos. O tempo não impede que o lesado em um direito da personalidade cesse a violação em qualquer momento da sua vida já que não existe prazo extintivo, todavia, há que se ressaltar que a pretensão indenizatória pelo dano sofrido tem o prazo de prescricional de 3 anos, nos termos do art. 206, § 3º, V, do Código. São duas situações distintas, ou seja, na primeira hipótese o lesado em um direito da personalidade, pode a qualquer momento da sua vida fazer cessar essa lesão já que são imprescritíveis, entretanto, se quiser a reparação financeira, aspecto patrimonial desse direito, deverá ajuizar a ação no prazo estipulado na lei, sob pena de prescrição. Apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que o STJ vem entendendo que as ações de reparação por danos causados na prisão ou tortura durante o regime militar são imprescritíveis. [9] Por fim, é importante ressaltar que o rol apresentado nos artigos 11 a 21 do Código Civil é meramente exemplificativo já que o referido diploma legal, ainda que tenha dispensado elogiável tratamento da matéria, disciplinou de forma tímida e insuficiente um assunto de tamanha envergadura e importância na atualidade. Vários aspectos importantes dos direitos da personalidade não foram abordados pelo atual Código Civil, temas como reprodução assistida, gestação em útero alheio, dentre outros. Bioética e Biodireito. Dentro dessas novas perspectivas que se acortinam para os operadores do direito na atualidade, o que seriam os termos Bioética e Biodireito? De acordo com Maria Helena Diniz, a Bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só de problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas, mas também a vários aspectos das pesquisas em seres humanos, como, por exemplo, a clonagem, mudança de sexo, esterilização, eugenia, eutanásia, dentre outros. [10] Francisco Amaral define a Bioética como “a disciplina que examina e discute os aspectos éticos relacionados com o desenvolvimento e as aplicações da biologia e da medicina, indicando os caminhos e os modos de respeitar os valores da pessoa humana.”  [11] O termo Bioética foi empregado pela primeira vez pelo oncologista e biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, da universidade de Winsconsin, em Madison. Na sua obra Bioethics: Bridge to the future, publicada em 1971. [12] A bioética abarca a macrobioética, que trata de questões ecológicas, em busca da preservação da vida humana, e a microbioética, que cuida das relações entre médico e paciente, instituições de saúde públicas ou privadas e entre estas instituições e os profissionais da saúde. [13] Seu estudo ultrapassa a área da medicina abrangendo a sociologia, a biologia, a antropologia, a pscicologia, a ecologia, a teologia, a filosofia, dentre outros. Todavia, para o direito, as normas e princípios da bioética não são coercitivos, é necessário que o direito regulamente atitudes lícitas, definindo seus contornos com base no princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecendo regras e limites à investigação. [14] Daí surge então o Biodireito que nada mais é do que a normatização jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de sanções pelo descumprimento destas normas. “Biodireito e bioética são ordens normativas, e, como tais, têm caráter prescritivo. A distinção, todavia, está na forma de abordagem e na força cogente.” A sanção ética ou é interna ou é social, uma reprovação da comunidade, já o direito dispõe de meios coercitivos e sua a força institucional para exigir o cumprimento de suas prescrições. [15]  Segundo os autores Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves o Biodireito é uma disciplina incipiente no universo jurídico e ainda não ocupou seu devido lugar nos currículos das universidades e faculdades brasileiras, nem na própria dogmática. [16] O direito à morte digna O primeiro assunto que envolve os conceitos de direitos da personalidade e biodireito, é a proteção da própria vida do ser humano. A vida é pressuposto lógico de existência de qualquer ser vivo, e desse modo merece proteção do ordenamento jurídico. Os avanços tecnológicos dos últimos anos trouxe um fato novo e curioso no campo científico. Hoje a medicina possui um grande poder de intervenção sobre a vida e morte das pessoas. A morte faz parte da vida e da existência de todos os seres humanos e mesmo assim as pessoas de um modo geral não estão preparadas a enfrentá-la, seja pela cultura, religião, filosofia, ou qualquer outro aspecto do conhecimento humano. Pensar na finitude da vida é um dos aspectos mais delicados da sociedade. O direito à vida é garantido constitucionalmente em seu art. 5º, como um pressuposto lógico de existência do próprio ser humano. Desse modo a Carta Magna brasileira dedica proteção especial à vida, como direito fundamental. Diante desses aspectos, algumas discussões tem pontuado o direito ultimamente. Teria o paciente, no limite de sua autonomia privada, a possibilidade de escolher procedimentos ou a ausência deles nos momentos finais? Antes de uma possível resposta à essa questão é necessário definir alguns conceitos relevantes sobre o assunto. Em primeiro lugar é importante a definição do termo Eutanásia. O termo foi criado no Século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon e deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”. É relevante apontar que a morte nem sempre foi tratada da forma que se trata no mundo e na cultura atual. Os espartanos arremessavam os idosos e recém-nascidos deformados do alto do Monte Taijeto, em Atenas, o Senado determinava a eliminação de anciãos doentes ministrando-lhes veneno. Na Índia, lançavam no Ganges os incuráveis, mas antes vedavam-lhes a boca e a narina com lama sagrada. Os povos nômades das regiões rurais da América do Sul, para evitar que ancião, ou enfermo sofresse ataque de animais, matavam-no. [17] Vários são os exemplos do tratamento dado à morte, em diversas épocas e culturas da humanidade. O fim da vida é a única certeza que o ser humano carrega desde o seu nascimento, mas sempre tem imensa dificuldade em lhe dar com o inevitável. A distanásia é a prática pela qual se prolonga, ao máximo, a vida de um enfermo incurável. Na distanásia busca-se preservar a vida a qualquer custo, empregando para isso, todos os meios disponíveis na medicina tanto os meios ordinários quanto os extraordinários inúteis, já que não proporcionam mais nenhum benefício ao paciente a não ser o prolongamento da sua vida. Maria Helena Diniz explica o conceito de distanásia nos seguintes termos: “Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’acharnement thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta e com muito sofriemento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um doente terminal ou tratamento inútil”.[18] A mistanásia ou eutanásia social é a chamada morte miserável, antes da hora, nada tem de boa, na categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações distintas: primeiro, a grande quantidade de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e; terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. A mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana. [19] Ainda aponta Maria Helena Diniz a chamada Ortotanásia ou Eutanásia passiva, é a eutanásia por omissão, consistente no ato de suspender medicamentos ou medidas que aliviem a dor, ou suspender meios artificiais para prolongar a vida de um paciente em coma irreversível. [20] A Holanda em 1º de Abril de 2002, aprovou legislação específica sobre o tema, mas a prática da eutanásia já era bastante tolerada pela justiça se feita a pedido do paciente em estado terminal, atestado por dois médicos. No Brasil o Código Penal possibilita a redução da pena de 1/6 a 1/3 se o homicídio for cometido por relevante valor social ou moral, art. 121,§ 1º, além disso, prevê o referido Código as figuras do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, art. 122 e o crime de omissão de socorro, art. 135. O novo projeto de Código Penal em trâmite nas casas legislativas brasileiras, traz abordagens sobre a eutanásia e a ortotanásia. O projeto prevê atenuantes no caso de eutanásia e a descriminalização da ortotanásia, considerados avanços positivos pelo Conselho Federal de Medicina. Em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução n. 1.805 que permitia ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolongassem a vida do paciente em fase terminal, acometido por enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Todavia a referida resolução foi questionada judicialmente pelo Ministério Público Federal através de Ação Civil Pública por entender tratar-se tal prática de homicídio por omissão e não exercício regular da medicina. Percebe-se que a discussão do tema é extremamente polêmica, pois aspectos extrajurídicos estão envolvidos no debate. O importante é que o assunto tem sido alvo de amplo debate na sociedade e principalmente no meio jurídico, até o cinema começou a tratar da questão nos últimos anos. Pode-se apresentar como exemplos o filme “Uma Prova de Amor” (My Sister´s Keeper), dos Estados Unidos, 2009, baseado no romance de Jodi Picoult, que aborda questões polêmicas como direito ao próprio corpo, manipulação genética de embriões, eutanásia, dentre outros. O referido filme é bastante usado nos cursos de direito e já foi até alvo de um artigo científico. [21] Também pode-se apontar o filme “Mar Adentro” (Mar Adentro) Espanha, 2004 e “Dr. Morte” (You Don’t know Jack), Estados Unidos, 2009. O primeiro, baseado em fatos reais aborda o drama vivido por Ramon Sampedro, um espanhol tetraplégico que solicitou a justiça espanhola o direito de morrer que não foi concedido. Com o auxílio de alguns amigos planejou a sua morte de maneira a não incriminar os mesmos. Ele gravou um vídeo de seus últimos minutos que teve repercussão mundial. Uma das amigas de Ramón Sampedro foi incriminada pela polícia como sendo a responsável pelo homicídio. Um movimento internacional de pessoas enviou cartas "confessando o mesmo crime". A justiça, alegando impossibilidade de levantar todas as evidências, acabou arquivando o processo. O segundo filme, conta a história do Dr. Jack Kervokian, conhecido como “Dr. Morte”, por ter participado e auxiliado mais de 130 doentes terminais a cometerem suicídio, sendo que um deles foi filmado e transmitido pela TV. [22] Os debates acerca de tão relevante tema são acalorados e torna-se impossível permanece-se neutro acerca de um assunto que atinge a todos. Diante desses questionamentos, o Conselho Federal de Medicina publicou no dia 09 de agosto de 2012, a Resolução n. 1995 que dispõe sobre as diretrizes antecipadas de vontade, também conhecida como living will ou testamento vital. O testamento vital é um documento em que a pessoa, desde que juridicamente capaz e consciente, declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita caso se encontre em estado terminal irreversível. O instrumento permite ao paciente registrar, por exemplo, a vontade de, em caso de agravamento do quadro de saúde, não ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos, nem submetido a procedimentos invasivos ou dolorosos. Nos países onde existe, o testamento vital tem respaldo legal e deve ser observado pelos profissionais de saúde; o documento recebe a assinatura de testemunhas e é elaborado enquanto o paciente ainda está consciente. O testamento também tem caráter de procuração: por meio dele, o interessado pode indicar uma pessoa de sua confiança para tomar decisões sobre os rumos do tratamento a que será submetido a partir do momento em que não tiver condições de fazer escolhas. A Resolução n. 1995/2012 apresenta como fundamentos a atual relevância da questão da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente e alerta que na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos nacionais e que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios. Nesse sentido é o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, senão vejamos: “Para o presidente do CFM, Roberto Luiz d’Avila, a diretiva antecipada de vontade é um avanço na relação médico-paciente. Segundo ele, esse procedimento está diretamente relacionado à possibilidade da ortotanásia (morte sem sofrimento), prática validada pelo CFM na Resolução 1.805/2006, cujo questionamento sobre sua legalidade foi julgado improcedente pela Justiça. A existência dessa possibilidade não configura eutanásia, palavra que define a abreviação da vida ou morte por vontade do próprio doente, pois é crime. “Com a diretiva antecipada de vontade, o médico atenderá ao desejo de seu paciente. Será respeitada sua vontade em situações com que o emprego de meios artificiais, desproporcionais, fúteis e inúteis, para o prolongamento da vida, não se justifica eticamente, no entanto, isso deve acontecer sempre dentro de um contexto de terminalidade da vida”, ressaltou.”[23] Dessa forma, essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo através das chamadas diretrizes antecipadas de vontade. Diante desses argumentos merece destaque o texto da referida resolução, que assim dispõe: “Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação”. Percebe-se que o texto da resolução permite ao paciente elaborar suas diretrizes antecipadas de vontade e estabelecer quais os procedimentos a que deva ser submetido em caso de doença terminal, a chamada ortotanásia. O assunto tomou tamanha proporção que foi tema de capa da Revista Veja, de 12 de setembro de 2012, intitulada “Eu decido meu fim”. A referida reportagem traz um trecho de um testamento vital de uma médica geriatra, Ana Claudia Arantes, de 44 anos, que testemunha regularmente o óbito de pacientes em sua rotina profissional. Nesse sentido, merece destaque o referido trecho: “Eu, Ana Cláudia Arantes, diante de uma situação de doença grave em progressão e fora de possibilidade de reversão, apresento minhas diretrizes antecipadas de cuidados à vida. Se chegar a padecer de alguma enfermidade manifestamente incurável, que me cause sofrimento ou me torne incapaz para uma vida racionale autônoma, faço constar, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, que aceito a terminalidade da vida e repudio qualquer intervenção extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou demasiadamente pequenos e não superem os seus potenciais malefícios. As diretrizes incluem os devidos cuidados: admito ir para UTI somente se tiver alguma chance de sair em menos de uma semana; não aceito que me alimentem à força. Se não puder demonstrar vontade de comer, recuo qualquer procedimento de suporte à alimentação; não quero ser reanimada no caso de parada respiratória ou cardíaca”.[24] A reportagem ainda aponta que o referido testamento vital dessa médica aborda outros aspectos mais humanos desse momento. “Quero um beijo de boa-noite e de bom-dia. Sei que meu corpo pode estar frágil e muito diferente de mim, mas, acreditem, estarei nele; quero tomar banho todos os dias, com água quente. Quero privacidade. Que as portas do quarto e as janelas estejam fechadas: Ninguém deverá sentir pena de mim. Ao contrário, ao me verem, as pessoas hão de dize: que sorte morrer assim.” É importante ressaltar que o Novo Código de Ética Médica, em vigor desde abril de 2010, já explicitou que é vedado ao médico abreviar a vida, ainda que a pedido do paciente ou de seu representante legal (eutanásia), mas, atento ao compromisso humanitário e ético, o Código também prevê que nos casos de doença incurável, de situações clínicas irreversíveis e terminais, cabe ao médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis e apropriados. [25] No dia 05 de setembro de 2012 representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reuniram-se para tratar da Resolução CFM 1.995/12. Na reunião, os representantes das entidades ratificaram a importância de afirmar para a sociedade a diferença entre a eutanásia, que é crime e considerada antiética pelos médicos, e a ortotanásia, que recebe apoio da comunidade médica. [26] A ortotanásia, abordada no Código de Ética e na Resolução CFM 1.805/06, desaconselha ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas em casos de doença incurável e terminal, já a eutanásia, por sua vez, é o aceleramento do processo de morte por meios artificiais, por ação omissiva ou comissiva. Os critérios a respeito da aceitação desses novos instrumentos dependerão não só das leis, mas também da aceitação social e científica. “Logo nem tudo que é cientificamente possível é moral ou juridicamente admissível.” [27] A cirurgia de transgenitalização Outro ponto polêmico que envolve a discussão sobre o direito da personalidade, integridade física, e o biodireito, é a questão da cirurgia de transgenitalização. As questões relacionadas à sexualidade sempre foram tabus na sociedade e ponto de divergências entre culturas e religiões. O protótipo do indivíduo normal é aquele que possui o sexo biológico em harmonia com o sexo psíquico. As discussões sobre o transexualismo surgem exatamente dessa desarmonia, entre sexo biológico e “sexo da alma.” É importante apontar as diferenças entre alguns conceitos básicos da sexualidade. “Por intersexualismo entende-se o desequilíbrio entre os diversos fatores responsáveis pela determinação do sexo, levando a uma ambiguidade biológica.” [28] Não se confunde com hermafroditismo, pois não há na história da humanidade hermafroditismo verdadeiro. O homossexualismo é a prática de atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, enquanto que o bissexualismo caracteriza-se por prática sexual com ambos os sexos. Os travestis são pessoas que gostam de se vestir com roupas do sexo oposto, geralmente homossexuais. Atualmente pode-se falar também em cross-dressing que é um termo derivado dos inglês que designa, ao pé da letra, vestir-se ao contrário. São aquelas pessoas que se vestem com roupa e acessórios do sexo oposto, mas sem necessariamente terem algum desvio de comportamento sexual. No Brasil existe um cartunista famoso, Laerte Coutinho, que publica suas tiras em quatro jornais brasileiros, inclusive na Folha de São Paulo que é adepto do cross-dressing. [29] O Transexualismo refere-se à condição do indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente da própria anatomia. Segundo a Resolução n. 1955/10 do CFM, o transexual é o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou auto-extermínio. Afirma que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico. Aponta ainda a referida Resolução que o diagnóstico de transexualismo deve apresentar os critérios mínimos de: desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente, por no mínimo dois anos e ausência de outros transtornos mentais. O transexual sente que nasceu no corpo errado por isso recusa a sua situação, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o transexualismo como uma patologia médica. O Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil dispõe o seguinte: “276 – Art.13. O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.” A interpretação constitucional do art. 13 do Código Civil conduz ao entendimento de que a cirurgia de mudança de sexo é procedimento autorizado nos termos do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Carta Magna Brasileira. Diante desse entendimento, é importante ressaltar os principais aspectos dessa cirurgia destacados no texto da Resolução n. 1955/10. A seleção dos pacientes para se submeterem à cirurgia de transexualismo obedecerá a avaliação de uma equipe multidiciplinar composta de médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. [30] Esse paciente tem que ser maior de 21 anos de idade, e terá o acompanhamento da equipe por no mínimo 2 anos. Caso seja diagnosticado o transgenitalismo, o paciente só será operado se suas características físicas e anatômicas forem apropriadas para a cirurgia. Além disso, o tratamento do transgenitalismo deve ser realizado apenas em estabelecimentos que contemplem integralmente os pré-requisitos estabelecidos nesta resolução, bem como a equipe multidisciplinar estabelecida na mesma. O corpo clínico destes hospitais, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe multidisciplinar citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica. Em qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos. Existem dois procedimentos básicos, as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino (neocolpovulvoplastias) e as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino (neofaloplastias) que possem uma dificuldade técnica maior na obtenção de bons resultados tanto no aspecto estético quando funcional. Ambas independem de autorização judicial e hoje são inclusive custeadas pelo SUS, Sistema Único de Saúde, através da Portaria n. 1.707 de 2008. Afirma a referida Portaria que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade, além disso, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, menciona, explicitamente, o direito ao atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero a todos os usuários do Sistema Único de Saúde. Segundo Maria Helena Diniz, os procedimentos de transgenitalização podem ocorrer da seguinte forma: “a)Extirpação dos testículos ou seu ocultamento no abdômen, aproveitando-se parte da pele do escroto para formar os grandes lábios; b) amputação do pênis, mantendo-se partes mucosas da glande e do prepúcio para a formação do clitóris e dos pequenos lábios com sensibilidade erógena; c) formação de vagina, forrada, em certos casos, com a pele do pênis amputado; e d) desenvolvimento das mamas pela administração de silicone ou estrógeno. A mudança do sexo masculino para o feminino está aperfeiçoada, podendo até mesmo não causar suspeita no parceiro sexual. Já a conversão da aparência genital feminina para é muito problemática, porque a formação de pênis funcional é quase impossível, e, além disso, a cirurgia é complexa, uma vez que requer: a) ablação dos lábios da vulva sem eliminação do clitóris; b) fechamento da vagina; c) histerectomia, ou seja, ablação do útero; d) Ovariotomia, para fazer desaparecer a menstruação, se o tratamento com testosterona não a eliminar; e) elaboração de escroto com grande lábios, com bolinhas de silicone, o que torna os testículos insensíveis sexualmente; f) faloneoplastia, ou seja, construção do neopênis, com retalho abdominal, que reveste o pênis, e com uso de uma prótese de silicone, transferindo-se alguns nervos, para que possa haver semi-ereção”. O transexual ainda pode ter que passar por uma série de cirurgias e procedimentos para se chegar a um aspecto adequado ao desejado. Cirurgias plásticas para alteração no nariz, maças do rosto, ablação do pomo de adão, operação foniátrica para aumentar a voz em um oitavo, tratamentos hormonais e estéticos, além de acompanhamento psicológico. Depois de todo esse longo caminho percorrido os transexuais ainda enfrentavam uma certa resistência no poder judiciário brasileiro com relação à sua redesignação sexual. De nada adiantaria a uma pessoa que se submeteu a um tratamento tão longo e penoso em busca da sua felicidade se ao final do mesmo continuasse sendo identificada pelo nome e sexo de batismo. Roberta Close ou Roberta Gambine Moreira talvez seja o caso mais emblemático dessa situação aqui no país. Nascida com o nome de Luis Roberto Gambine Moreira, depois de uma cirurgia de transgenitalização realizada na Inglaterra em 1989, teve seu nome e estado sexual alterados em 10 de março de 2005, pela 9ª Vara de Família do Estado do Rio de Janeiro, depois de muitos anos de brigas judiciais. Hoje, o pedido deve ser feito através de um procedimento especial de jurisdição voluntária nas Varas de família por se tratar de verdadeira alteração do estado da pessoa, com acompanhamento do Ministério Público como custus legis. O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se posicionar sobre o assunto e o acórdão da decisão é uma verdadeira aula, senão vejamos: “Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana. – Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. – A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. – A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. – Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. – Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana. – A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo. – Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente. – Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. – Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. – Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. – Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. – De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido.” (STJ – 3ª T. REsp 1008398/SP – Rel Min. Nancy Andrighi – j. 15.10.09 – DJU 18.11.09) Atualmente, o entendimento que prevalece é que o transexual tem direito a redesignação sexual e mudança de nome sem qualquer referência ao status anterior. Tramita no Congresso Nacional um projeto de Lei PL-70B, de autoria do deputado José Coimbra que estabelece critérios sobre a cirurgia de transgenitalização e as questões relacionadas ao registro civil dessas pessoas. A transfusão de sangue e os seguidores da Religião Testemunhas de Jeová e da Seita Christian Science Tema que tem ganhado atenção nos últimos debates relacionados ao biodireito é a discussão acerca da possibilidade ou não de recusar tratamentos médicos por opção religiosa ou filosófica, a chamada objeção de consciência. Dispõe o art. 15 do Código Civil que ninguém pode ser compelido a submeter-se a tratamento médico de risco. Tal artigo consagra o princípio da autonomia no paciente, sendo dever do profissional médico atuar com o consentimento e autorização dos mesmos. É o que a doutrina chama de consentimento informado ou esclarecido que nada mais é do que a obrigação ética do médico (Capítulo, IV, art. 22 do Código de Ética Médica) de expor ao paciente todos os riscos, benefícios e complicações presentes em um determinado tratamento médico para que o paciente possa, com base no princípio da autonomia privada, determinar aquilo que seja melhor para sua situação. O médico precisa fornecer ao paciente todas as informações necessárias para que o mesmo tome uma decisão, assim como deve informar sobre as consequências da decisão tomada pelo paciente. Tal atitude requer esforço por parte do médico, que precisa dispor de tempo, paciência e conhecimento para esclarecer sobre diagnóstico, prognóstico e tratamento, em uma linguagem simples, para ter certeza de que foi entendido. Todas as dúvidas do pacien­te devem ser esclarecidas, bem como o propósito da realização de exames, cirurgias e medicamentos. Um paciente adulto mentalmente sadio, com tais informações, possui o direito de dar ou não consentimento para qualquer diagnóstico ou tratamento, mesmo quando a recusa redundar em seu próprio prejuízo. A pergunta que se faz é, seria possível alguém se recusar, com risco de morte, determinado tratamento médico? O exemplo emblemático que se tem atualmente é o dos seguidores da religião de Testemunhas de Jeová que se recusam a receber transfusão de sangue com base na interpretação de alguns trechos bíblicos e por entenderem que o sangue é sagrado: “Génesis 9:3-5 Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde. Somente não comereis carne com a sua alma, com seu sangue. Eu pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas, a todo animal; e ao homem que matar o seu irmão, pedirei conta da alma do homem Levítico 7:26, 27 E não deveis comer nenhum sangue em qualquer dos lugares em que morardes, quer seja de ave quer de animal. Toda alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do seu povo. Levítico 17:10, 11 Se alguém da casa de Israel, ou dos estrangeiros que residirem entre eles, tomar qualquer sangue, eu porei a Minha face contra a pessoa que toma o sangue, e a cortarei de entre seus parentes. Pois a vida da carne está no sangue. Levítico 17:13, 14 Ele deve derramar o seu sangue e cobri-lo de terra. Não deveis tomar o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer pessoa que tomar dele será cortada." Atos dos Apóstolos 15:28, 29 O Espírito Santo e nós próprios resolvemos não vos impor outras obrigações além destas, que são indispensáveis: abster-vos de carnes imoladas a ídolos, do sangue, de carnes sufocadas e da imoralidade. Procederei bem, abstendo-vos destas coisas. Atos 21:25 Quanto aos crentes dentre as nações, já avisamos, dando a nossa decisão, de que se guardem do que é sacrificado a ídolos, bem como do sangue e do estrangulado, e da fornicação.” Esses são alguns trechos em que o sangue é considerado precioso, símbolo da própria vida. A Bíblia contêm várias outras referências ao sangue e ao seu simbolismo, o que as Testemunhas de Jeová consideram muito significativo para a sua fundamentação. Pode-se ainda afirmar que o sangue de um cordeiro foi pintado em cada ombreira das casas israelitas no Egito, o que os poupou dos efeitos mortíferos da décima praga; o sangue de animais era derramado em sacrifício no altar do Templo em Jerusalém, representando a própria vida dos ofertantes; o sangue que Jesus derramou, como sacrifício perfeito, em favor de toda a humanidade e que é representado no cálice de vinho puro usado anualmente na comemoração da sua morte. Esses, dentre outros, são exemplos da importância do elemento sangue nessa crença religiosa. A seita Christian Science (Church of Christ Scientist) foi fundada em Boston, em 1879, por Mary Baker Eddy  e também não admite a transfusão de sangue com base da objeção de consciência. Os aspectos da objeção dessa seita são ainda mais extenso, pois acreditam que os males podem ser curados pela oração. The central texts of Christian Science are the Bible and Science and Health with Key to the Scriptures . [ 2 ] Christian Science has been described as a form of philosophical idealism . [ 5 ] She regarded the creation of Christian Science as an important event that resulted from embracing continuous divine revelation . [ 6 ] :27 Christian Scientists do not view Jesus as having died for our sins. [ 7 ] :146 Os textos centrais da Ciência Cristã são a Bíblia e “Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras”, escrito pela fundadora Mary Baker Eddy. Os adeptos dessa seita acreditam que as doenças são o resultado do medo, da ignorância ou do pecado e devem ser curados através da oração ou introspecçãoCombined with a belief that the use of medicine is incompatible with Christian Science healing methods, this has led to outbreaks of preventable disease and a number of deaths. [ 3 ] Its claim that sickness can be healed through prayer rather than medicine, its rejection of science as illusory, and its attempts to present itself as science make Christian Science a pseudoscience ., possuem a crença de que o uso da medicina é incompatível com métodos de cura da Ciência Cristã, isso levou a surtos de doenças evitáveis ​​e a um número elevado de mortes de seus seguidores. Apesar de muitos entenderem que a vida é um direito ou princípio absoluto e que se sobrepõe a qualquer outro direito ou princípio, a equação não é tão simples quanto parece. “Os princípios podem ser afastados no caso concreto em razão de um princípio preponderante.” [31] O direito à liberdade de crença ou a ausência dela é garantido constitucionalmente e é aspecto fundamental do direito da personalidade. As soluções a serem discutidas em relação a esse problema não podem ser estabelecidas de forma apriorística.  A doutrina tem apontado dois pontos importantes sobre a objeção de consciência nesses casos: A objeção de consciência de pessoas adultas e a objeção de consciência de incapazes. Em nosso país, embora a jurisprudência majoritária se posicione em favor do procedimento transfusional forçado, já existem decisões isoladas cuja motivação se harmoniza com o respeito à autonomia privada do paciente. [32] Nesse sentido, se o paciente é maior e capaz e está em perfeitas condições de consciência, a doutrina tem entendido que deve prevalecer a vontade do paciente, sendo a escolha pela recusa em se submeter à tranfusão de sangue, o médico deve adverti-lo dos riscos. Outra hipótese apontada é a do paciente maior e capaz mas inconsciente. Aqui vislumbra-se duas situações: Caso exista prova inequívoca da objeção de consciência à transfusão de sangue a vontade do paciente deve ser respeitada segundo alguns juristas, pois o princípio da autonomia privada lhes garante essa prerrogativa. Já na hipótese de paciente maior e capaz, em situação de emergência ou que não haja prova da escolha religiosa feita, a solução pode ser outra, pois o profissional médico, pelo dever de sua profissão tem a obrigação legal e moral de salvar vidas. É o que está disposto na Resolução n. 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina que autorizam os profissionais a realizarem a transfusão independentemente de autorização, quando exista perigo de morte. Dentro dessa perspectiva, Miguel Kfouri Neto aponta um interessante caso que ocorreu no Estado de Paraná. O médico realizou a transfusão de sangue em uma parturiente, seguidora da religião de Testemunha de Jeová, contra a sua vontade e a de seu marido. Após a alta médica, a paciente começou a sofrer repúdio da sua comunidade e de seu marido, não sendo inclusive admitida mais em casa ou na sua igreja. [33] Já com relação aos incapazes, é dever do Estado proteger seus interesses mesmo contra a vontade dos pais ou responsáveis e nessa perspectiva, não resta alternativa a não ser realizar a transfusão mesmo contra a vontade de seus familiares ou de sua comunidade. É importante ressaltar que o aspecto religioso, consagrado constitucionalmente não é um dado inato ao ser humano. As pessoas assumem esta ou aquela religião principalmente por elementos culturais dos locais onde vivem ou de suas famílias. Nada impede que uma determinada pessoa ao longo da vida opte por outra religião que passou a conhecer ou admirar. Desse modo, impor a um incapaz preceitos ou deveres assumidos por seus pais ou responsáveis, com o risco de colocar em jogo a sua própria vida, parece ceder diante da proteção dispensada ao incapaz pelo Estado Brasileiro. Conclusão O presente estudo procurou demonstrar, de forma sucinta os pontos de convergência entre os direitos da personalidade e o biodireito, em especial os aspectos relacionados aos direitos da personalidade integridade física e vida. Não é a pretensão deste trabalho esgotar os referidos temas, o que não seria possível no formato de um artigo científico, mas sim, despertar nos operadores do direito os pontos mais polêmicos de assunto tão novo e apaixonante. Afirmou-se que os direitos da personalidade como proteção integral do ser humano em toda a sua essência são uma construção jurídico-teórica recente. Somente o Código Civil de 2002 tratou do tema nos seus artigos 11 a 21, mas de forma tímida já que a doutrina aponta que muitos dos aspectos relevantes ficaram de fora do diploma civil brasileiro. Temas como reprodução assistida, gestação em útero alheio e também os assuntos tratados no presente trabalho são, na sua grande maioria, regulamentados por resoluções do Conselho Federal de Medicina o que de certa forma, num primeiro momento causa estranheza já que o Estado brasileiro possui um poder legislativo para tal desiderato. Vale lembrar que o Código Civil de 1916 foi obra das concepções individualistas e voluntaristas do Séc. XIX e XX cujo conteúdo só começou a se modificar depois da Segunda Guerra Mundial, momento em que o ser humano percebeu-se capaz de atrocidades que rementem às barbáries de séculos menos esclarecidos. A bioética e o biodireito são respostas éticas e normativas às evoluções tecnológicas da atualidade. Situações como a possibilidade de “mudança de sexo” com métodos avançadíssimos de cirurgia e tratamento, a manutenção da vida por meses ou anos somente por aparelhos e a possibilidade de uma pessoa preferir não se submeter a um tratamento por convicção religiosa ou filosófica são aspectos desse novo campo do saber jurídico. A evolução da ciência biomédica tem se mostrado bem mais veloz, e os operadores do direito começam a se sentir perplexos diante de tamanhas mudanças. Com base no preceito fundamental da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Carta Constitucional Brasileira, os sujeitos envolvidos nessas novas questões têm a seu dispor uma Carta de direitos condizente com valor da vida digna. Se esse valor de vida digna é alterar o fenótipo de uma pessoa que se sente no corpo errado, ou permitir que um cidadão escolha como pretende passar seus últimos dias, sem tratamentos paliativos, ou  até mesmo possibilitar que uma pessoa tenha a liberdade de escolha religiosa, todos esses questionamentos possuem como ponto de partida e chegada a dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-111/direitos-da-personalidade-bioetica-e-biodireito-uma-breve-introducao/
A tutela jurídica do embrião implantado à luz da dignidade da pessoa humana
A humanidade sempre lidou com o questionamento acerca do início da vida e debate quanto à natureza da pessoa. Nos últimos anos, em consequência da ideia de que toda pessoa tem dignidade humana pacificou o entendimento de que pessoa não poderia ser objeto de todo e qualquer tipo de experimentação em nome de pesquisas tecnológicas. É justamente esse o foco de desenvolvimento do artigo científico, tendo em vista o momento em que inicia a vida e quando essa pessoa passa a ter direito à tutela jurídica. Todavia, por envolver aspectos religiosos, científicos, filosóficos e jurídicos, alguns princípios e direitos foram empregados para alicerçar a presente pesquisa, dentre eles: a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. Dessa forma, entende-se que o embrião é pessoa humana, possui direito à vida e dignidade e, como detentor desses direitos, deve ser protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Biodireito
INTRODUÇÃO Nos últimos 150 anos a biologia e a medicina evoluíram de forma impressionante. O artigo se desenvolveu com alicerce no método dedutivo utilizando de técnicas de Documentação Indireta. Assim, a investigação foi realizada por meio de pesquisa bibliográfica, recorrendo-se, também, à pesquisa jurisprudencial atual e posicionamento dos tribunais superiores brasileiros. Dessa forma, desdobra-se a pesquisa em quatro itens de suma importância para o Direito Brasileiro, no que tange a tutela jurídica do embrião humano, dentre os quais se faz o seguinte questionamento: quando começa a vida do embrião para que ele seja detentor de dignidade humana e proteção do ordenamento jurídico? E se finaliza moldando uma conclusão pessoal do estudo elaborado. Inicialmente, no primeiro item, é de extrema importância tratar do conceito de embrião e doutrinariamente quando começa a vida humana, tendo em vista a relevância do tema e sua complexidade. Se notará que o embrião implantado recebe o mesmo tratamento jurídico do nascituro, adquirindo direitos desde a sua concepção, ou seja, sua implantação no útero materno. Todavia, há teorias como Natalista, Teoria das Primeiras Atividades Cerebrais, Gradualista que entendem diferente, conforme veremos. Mas, se observará que a Teoria da Nidação e a Teoria Concepcionista são as mais adequadas para resguardar os direitos do embrião. Assim, para a doutrina majoritária o embrião implantado tem a mesma natureza jurídica do nascituro, ser humano já concebido e cujo nascimento é dado como certo. Já em segundo momento, se busca tecer alguns comentários acerca do conceito de embrião. Desse modo, se identifica a relação existente entre embrião humano e a dignidade da pessoa humana, como questão intrínseca a todo e qualquer ser humano e como princípio constitucional. Assim, se visa tecer alguns comentários acerca do art. 5°. da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), sobre a utilização de células tronco embrionárias para fins de pesquisas e terapias. Todavia, no terceiro item, foi reservado o tema da vida como um direito resguardado constitucionalmente e também em que momento esse direito pode ser relativizado face ao tratamento jurídico do embrião no sistema brasileiro. Dessa forma, se observará que a tutela jurídica do embrião está intimamente ligada ao aborto de feto anencefálico, dicutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/2012. Assim, se finaliza a pesquisa com um apanhado da jurisprudência dos Tribunais Superiores bem como a polêmica de posicionamento dos mesmos, tendo em vista a complexidade do tema por envolver aspectos religiosos, científicos, filosóficos e jurídicos. E, inclusive princípios do mais elevado escalão na seara do direito como é a o caso da dignidade da pessoa humana, liberdade e solidariedade. 1 TEORIAS ACERCA DO INÍCIO DA VIDA: EMBRIÃO E NASCITURO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. Nota-se que há várias teorias acerca de quando se inicia a vida para o embrião e, consequentemente, também para o nascituro. De fato, independentemente da corrente adotada, é certo que há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos.      Todavia, o ordenamento jurídico reconheceu a necessidade da tutela do embrião e do nascituro, fazendo no campo das relações civis (garantindo a ele direitos personalíssimos) nos quais o art. 7º. do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) dispõe que: “a criança e o adolescente tem direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência”. (BRASIL, 1990). E, também no âmbito penal – criminalizando e proibindo o aborto, ressalvadas a exceções legais – no que dispõe o art. 124 do Código Penal Brasileiro que: “provocar aborto em si ou consentir que outrem lho provoque”, cominação de pena de 01 (um) à 03 (três) anos de detenção”. (BRASIL, 1940). Diante disso, importa tecer algumas considerações acerca das principais teorias do início da vida humana. 1.1 TEORIA CONCEPCIONISTA      A teoria concepcionista salienta que o início da vida se baseia no fato da vida humana ter sua origem na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, momento este denominado pelas ciências humanas como concepção. Desta sorte, adotada essa teoria, não poderá haver pesquisas com embriões mesmo que fertilizados in vitro pois, isto implicaria em uma conduta prevista no Código Penal Brasileiro, o aborto. A teoria concepcionista sustenta que os direitos desde a concepção do zigoto até sua transformação em embrião é feto viável e que, garantidas as condições naturais pode haver o desenvolvimento à condição humana plena.Desse modo, a Constituição e o Código Civil Brasileiro garantem a integridade de tal ser humano, o seu direito de evoluir, protegido do engenho humano contrário, da condição de vida humana em potencial à vida humana de fato. Essa teoria é adotada pela artigo 2° do Código Civil, que dispõe: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção os direitos do nascituro”. (BRASIL, 2002). Garantidos estão ainda, os direitos do embrião constitucionalmente quando prevê a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, caput, o direito à vida: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida […]” (BRASIL, 1988). Nesse contexto, Almeida diz que: “A personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como a doação e a herança. Nesses casos, o nascimento com vida é elemento do negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a”. (ALMEIDA, 2000, p.81). De acordo com Meirelles (2000, p. 138), há o seguinte posicionamento: “Porém o que a teoria assegura é que, desde o momento da concepção, encontram-se no genoma do ser que se forma as condições necessárias para o seu completo desenvolvimento biológico. Ainda que insuficientes, tais condições são necessárias, o que vem a significar que desde a concepção existe a potencialidade e a virtualidade de uma pessoa.” Com esse entendimento, se observa que as propriedades características da pessoa humana, ou seja, todo o material genético, já estão presentes no embrião, em estado de latência. Assim, nota-se que o embrião já é considerado ser humano com vida própria, garantindo o ordenamento jurídico à tutela do embrião e do nascituro. Assim, tendo em vista o embrião como pessoa em potencial, ele merece respeito e dignidade que é dado a todo homem, a partir do momento da concepção. Assim, merece o devido amparo jurídico para que não seja tratado como objeto. 1.2 TEORIA DA NIDAÇÃO Nidação é o momento em que o embrião se fixa na parede do útero, ocorrendo à partir do 4° (quarto) dia da fecundação Segundo essa corrente com o fenômeno da nidação o embrião adquire vida. Assim, é pela implantação que o ovo adquire viabilidade e determina o estado gravídico da mulher. Isto posto, antes da nidação apenas havia um aglomerado de células que constituiria posteriormente os alicerces do embrião. Completa Scarparo (1991, p. 42): “Não seria viável falar de vida humana enquanto o blastócito ainda não conseguiu a nidação, o que se daria somente no sétimo dia, quando passa a ser alimentado pela mãe”. Todavia, a teoria em baila é defendida por vários ginecologistas, dentre eles Joaquim Toledo Lorentz, que utilizam o argumento de que o embrião fecundado em laboratório morre se não for implantado no útero de uma mulher, não possuindo, portanto, relevância jurídica. Como o início da vida ocorre com a implantação e nidação do ovo no útero materno, não há nenhuma vida humana em um embrião fertilizado em laboratório e, portanto não precisa de proteção como pessoa humana.[1] 1.3 TEORIA GRADUALISTA OU DESENVOLVIMENTISTA Para esta doutrina, no início de seu desenvolvimento o ser humano passa por uma série de fases: pré – embrião, embrião e feto. Sendo que, em cada fase o novo ente em formação apresenta características diversas. Salienta essa teoria que não há vida humana desde a concepção e o embrião, ainda, não tem caráter humano, sendo comparado a um mero aglomerado celular. Sobre essa teoria, explica Meirelles (2000, p. 114): “Entendem os adeptos da referida teoria, que o embrião humano, nas etapas iniciais do seu desenvolvimento, não apresenta ainda caracteres suficientes a individualizá-lo e, desse modo, identificá-lo como `pessoa´”. Destarte para os desenvolvimentistas a vida humana vai merecer respeito à medida de seu desenvolvimento, devendo ele ser gradativo e conforme o desenvolvimento embrionário e fetal.  Para Warnock é necessário distinguir os diferentes estágios do desenvolvimento do embrião. (WARNOCK, 2003). No mesmo sentido, Frydman, Green, entre outros (FRYDMAN, 1999). 1.4 TEORIA DAS PRIMEIRAS ATIVIDADES CEREBRAIS Diante disso, se a vida acaba quando o cérebro pára, seria lícito supor que ela só começa quando o cérebro se forma. Este é o pensamento dos defensores da corrente das primeiras atividades cerebrais. Luís Roberto Barroso salienta: “Se a vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema nervoso pára de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar. E isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da chamada placa neural” (BARROSO, 2006, p.27). Também adepta a essa teoria, a vice-presidente da seccional paulista da Ordem de Advogados do Brasil, Márcia Regina Machado Melaré [2], relata: “A vida no ser humano existe somente se as funções cardíacas e cerebrais estão em funcionamento simultâneo e regular. Sob esta ótica, não basta a pessoa estar com o coração batendo para dizer que está viva […]. […] ao contrário, a Lei de Transplante de órgãos declara morta a pessoa que, mesmo com atividade cardíaca, tem constatada a sua morte encefálica.Esse critério para a definição do momento da morte, para fins de doação de órgãos, absolutamente pragmático, deve servir de orientação para a definição do início da vida, em termos legais. Nesse sentido, o embrião humano, ainda sem atividade encefálica, pode ser utilizado para pesquisas em prol de outras vidas humanas.” Todavia, no bojo dessa teoria há uma grande discussão no que tange ao exato momento em que se daria a formação encefálica no feto, já que a doutrina não é unânime nesse lapso temporal. Para alguns cientistas, como por exemplo Paul MacLean’s [3], dizem haver sinais cerebrais na 8º semana e que, à partir desse momento, o feto já teria as feições faciais mais ou menos definidas, e um circuito básico de 3 neurônios. Em uma pesquisa científica realizada pela Revista Super Interessante[4] salientou-se que “Vida é quando acontece a fecundação. Isso significa dizer que cerca de metade dos seres humanos morre nos primeiros dias, já que é muito comum o embrião não conseguir se fixar na parede do útero, sendo expelido naturalmente pelo corpo. Vida é o oposto de morte – e então ela se inicia quando começam as atividades cerebrais, por volta do 2º mês de gestação”. A segunda hipótese aponta para a 20º semana, quando a mulher consegue sentir os primeiros movimentos do feto, é nessa fase que o tálamo, a central de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está pronto. 1.5 TEORIA NATALISTA A teoria em apreço parte do pressuposto que a aquisição da personalidade opera-se à partir do nascimento com vida. Nesse contexto, salienta Pereira que: “O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustração, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito” (PEREIRA, 2001, p.79). Partindo do entendimento do autor citado acima, seria razoável compreender que, o embrião, não sendo considerado pessoa possui mera expectativa de direito. Destarte, segundo essa teoria, a personalidade da pessoa tem início a partir do parto, desde que nascido com vida. Assim, o nascituro seria um ser em potencial e com expectativas de direits, pois para que tenha os direitos que lhe são reservados ainda em sua existência intra-uterina, é necessário que nasça com vida. No entanto, para os natalistas, o nascituro não é considerado pessoa, ele apenas tem, desde sua concepção, uma expectativa de direitos, que está sob a condição do nascimento com vida. O fato de afirmar que a personalidade tem início a partir do nascimento com vida, não quer dizer que o nascituro não tenha direito antes do nascimento. Se o nascituro, durante toda a fase intra-uterina, tivesse personalidade, não haveria necessidade da lei distinguir, os direitos, ou melhor, a expectativa de direitos que se consolidam com o nascimento com vida. Para Semião inexiste qualquer tipo de vida extrauterina, ou seja, um embrião fertilizado in vitro, sequer seria considerado ser humano, quando se afirma que “A consequência lógica do nascimento com vida, no sistema adotado pelo nosso ordenamento jurídico é a existência da pessoa natural, portadora da personalidade civil plena. Portanto, em nosso Direito, em conformidade com a maioria das legislações vigentes e em harmonia com a escola natalista, hoje generalizada em todo o mundo, soa exclusivamente dois os requisitos para que a pessoa natural tenha inicialmente a personalidade civil: a) o nascimento; b) a vida intrauterina. Em outras palavras, exige-se apenas que nasça com vida. […] Antes do parto, o feto não é pessoa, é uma porção da sua mãe, uma parte das víceras desta, como se afirma nas fontes romanas. Antes do nascimento o nascituro não tem vida própria e independente, pois é alimentado pelo sangue materno. Até operar-se o nascimento, o nascituro está ligado ao corpo materno, em razão mesmo da sua existência, inteiramente dependente, alimentando através da placenta cuja vida só tem existência intra-uterinamente” (SEMIÃO, 1998, p. 153). Conclui-se que o nascituro, de acordo com esta teoria, não tem personalidade jurídica nem capacidade de direito, sendo protegido pela lei apenas os direitos que terá possivelmente ao nascer com vida, os quais são taxativamente enumerados pelo Código Civil. 2 DEFINIÇÃO JURÍDICA DO CONCEITO DE EMBRIÃO Em julho de 1978, numa maternidade londrina, os médicos Patrick Stepoe e Robert Edwards convocaram a imprensa para anunciar que havia sido dada à luz uma saudável menina, de nome Louise. Ela provinha de um embrião fecundado através de uma nova técnica, em pesquisa há mais de dez anos: a fertilização in vitro. Por essa técnica, retiram-se cirurgicamente óvulos do ovário da mãe para fertilizá-los com os espermatozoides do pai em laboratorio. Em seguida, o óvulo fecundado é implantado no útero. A imprensa chamou Louise de “bebê de proveta” (COELHO, 2010, p.148). Desde então, milhares de casais com problemas de fertilidade, em todo o mundo, têm-se beneficiado da técnica para cumprir a mais gratificante das realizações humanas – ter filho. Bernard, externando sua posição, entende que o embrião é certamente uma pessoa em potencial, ou seja, que desde a concepção existe uma potencialidade, uma virtualidade de pessoa. Segundo informa, desde a concepção, as condições necessárias ao desenvolvimento dos diversos estados de organização biológica estão claramente presentes no genoma do indivíduo (BERNARD, 1998, p.37). Casabona, propõe que estabelecer que o começo da vida humana é deflagrado com a fecundação do óvulo ou com a concepção não é mais tão simples depois de tantas inovações na ciência. Nessa perspectiva, ditar o começo e o fim da vida humana não é tarefa dos juristas, mas das ciencias biomédicas (CASABONA, 1994, p.138). Segundo Snustad, um grande estudioso da medicina genética, embrião humano “É o conceito de quando se está em sua fase de diferenciação orgânica, da segunda à sétima semana depois da fecundação, etapa conhecida como período embrionário. O período embrionário termina na 8ª semana depois da fecundação, quando o concepto passa a ser denominado de feto” (SNUSTAD, 2001, p.102). Assim, de acordo com a Dra. Márcia Mattos Gonçalves Pimentel, PhD em Genética Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: “[…] Embora , ao final do séc. XX, muitos processos biológicos ainda se apresentam que não podem ser modificados. No que diz respeito ao momento em que tem início a vida humana, alguns fatos biológicos são incontestáveis. São eles: Primeiro: O indivíduo humano começa a existir biologicamente a partir do momento em que ele tem um corpo, e a formação do corpo, de qualquer pessoa inicia-se no momento da fecundação. Ou seja, o primeiro passo para a formação de um novo indivíduo é a fusão de duas células altamente especializadas, denominadas gametas. Desta forma, todo ser vivo começa sua existência a partir de uma única célula quando, então, tem início um processo contínuo de multiplicação e diferenciação celular, até que, ao tornar-se adulto, o indivíduo terá cerca de 100 milhões de células. Segundo: Uma conseqüência da fusão do óvulo com o espermatozóide é que estas duas células perdem a capacidade de operar independentemente uma da outra, passando a trabalhar como uma unidade chamada zigoto ou embrião unicelular. (…) Terceiro: Os genes começam a expressar suas informações, sintetizando RNA mensageiro a partir do DNA, logo após a fertilização. A ativação dos genes no embrião ocorre antes da primeira divisão celular, que se dá de 15 a 20 horas após a fertilização. O zigoto, portanto, começa a existir e a operar como unidade desde o momento da fecundação (…). Quarto: O zigoto possui um genoma (conjunto gênico) absolutamente único, que lhe confere uma identidade biológica. Cada embrião é uma combinação gênica singular. Nunca ocorreu nem ocorrerá outro genoma igual” (NALINI, 1999, p.263-283). Desse modo, sob o enfoque biológico podemos definir o embrião como uma célula, ou grupo de células, capazes de se desenvolver em ser humano, desde que interagindo em ambiente adequado. Haverá embrião a partir da fecundação, isto é, da união dos gametas masculino e feminino, que constituem uma nova célula composta de 46 cromossomos e vocacionada à vida autônoma. Com esse entendimento, nota-se que o embrião humano, fruto da fecundação natural, no ventre materno, está compreendido no conceito de nascituro, para efeito da salvaguarda de direitos, de modo que a palavra "embrião", de forma generalizada, atingiria aos provenientes da fertilização in vitro, antes, portanto, de sua implantação no organismo da mulher, inclusive os excedentários, que se encontram crioconservados. Sob um enfoque puramente filosófico, que se ocupa da natureza essencial dos seres e que o embrião é um ente vivo da espécie humana, reconhecido como indivíduo. Admitindo a diversidade de pontos de vista sobre a fixação do instante t, a partir do qual o embrião, como ente vivo humano, deverá ter direito absoluto à vida, muitos filósofos adoptam a postura tuciorista (de tutior) que é a de escolherem a opção mais segura quando há incerteza: a vida do embrião, desde o zigoto, deve ser protegida para se não correr o risco de discriminar seres humanos, instrumentalizando uns em benefício de outros. Para os moralistas e filósofos que adoptam a posição definida pela Igreja Católica não se pode afirmar que o embrião é uma pessoa mas é preferível protegê-lo como uma pessoa para evitar o risco de o discriminar, ao admitir a sua destruição para o benefício de outras pessoas. Outras tradições religiosas fazem uma interpretação moral diferente dos factos científicos ou continuam a apoiar-se em noções antigas como a percepção, pela mãe, dos movimentos fetais, para que o feto receba o estatuto legal de pessoa (SANTOS, p.129). Para a reflexão ética o que está em causa, nas decisões pessoais, é a ética individual e os valores individuais, entendendo que cada cidadão, como pessoa individual, tem o direito e o dever de assumir uma posição, após informação honesta e compreensível, segundo os seus valores. Dessa forma, leciona o mestre José Afonso da Silva que: “[…] a vida humana de que trata a Constituição Federal, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais), sendo abrangente do direito à dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade, do direito à integridade físico-corporal, do direito à integridade moral, e, especialmente, do direito à existencia” (SILVA,1994, p.182). Do mesmo modo, ensina, ainda, que: “[…] o respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do abordo, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado um ser humano” (SILVA, 1994, p.182-183). Assim, em um breve estudo realizado em legislação estrangeira, o Artigo 2º da Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, do Conselho da Europa, já vigente em Portugal, diz textualmente: “O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência” (PORTUGAL, 1986). Esta disposição cria uma norma orientadora que nos deve conduzir à ponderação do interesse e do bem-estar do embrião antes de ponderar o que a sociedade ou a ciência podem querer desse embrião. Em uma linha ética, o Art. 18º, nº 1, da citada Convenção, afirma que a lei deve proteger adequadamente o embrião sempre que seja autorizado usá-lo em investigação. E reforça este cuidado no nº 2 do mesmo Artigo, proibindo a constituição de embriões apenas para os usar em investigação; subjacente a esta proibição está o conceito ético de que o embrião humano não é algo de que se possa dispor livremente, não é uma coisa ou um simples bem de consumo.[5] Todavia, o embrião humano, resultado da fertilização in vitro, enquanto não for implantado no organismo materno, não goza da proteção conferida ao nascituro, pois a ele não se equipara. Não pode ser considerado ente humano por nascer. Contudo, o nascimento do primeiro bebê de proveta, em meados de 1978, concretizou a possibilidade de concepção de um ente humano fora do corpo da mulher, gerando reflexos no mundo científico e jurídico.  E aqui no Brasil, no entanto, para limitar os riscos da gravidez múltipla, a recomendação é de que seja feita a transferência de apenas dois embriões, sendo comum que se chegue a três (BARROSO, 2006, p.264). A Lei 11.105/2005 – Lei de Biossegurança – permite, em seu artigo 5º, a utilização de células-tronco embrionárias, para fins de pesquisa e terapia, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e que não foram transferidos para o organismo materno, atendidas algumas condições: “Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitê de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (BRASIL, 2005) Desse modo, um casal pode recorrer a técnicas de reprodução assistida – incluindo a fertilização in vitro – de forma que a propia Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226 e seguintes dispõem que o homem e a mulher são as células formadoras da familia e que, nesse conjunto normativo, estabelecem a figura do planejamento familiar, fruto da libre decisão do casal e fundado nos principios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, §7°, CF). Entretanto, inexiste o deber jurídico desse casal de aproveitar todos os embriões eventualmente formados e que se revelam genéticamente viáveis, porque nao imposto por lei (art. 5°, II, CF) e incompatível com o próprio planejamento familiar. Recentemente, o Ministro Marco Aurélio, relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, mencionou em seu voto que: “[…] mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. (…). O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição.”[6] Para Daniel Sarmento “não existe equivalência entre o direito não apenas à vida, mas também à saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda deve tornar-se” (SARMENTO, 2006, p.103). Nas palavras da Ministra Cármen Lúcia, “há que se distinguir […] ser humano de pessoa humana […] o embrião é […] ser humano, ser vivo, obviamente […] Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana” (ROCHA, 2004, p. 22). No Brasil, enquanto não editada norma legal a respeito, a operacionalização dos conceitos jurídicos com vistas a precisar o início da existência do sujeito de direito deve ser feita com cautela. Não há dúvidas, nesse contexto, de que o embrião fertilizado in vitro, a partir da implantação no útero, deve ser já considerado nascituro, quer dizer sujeito despersonificado. A sua natureza jurídica, enquanto não verificada a implantação in útero ou caso nunca esta venha a ocorrer, é ainda incerta (COELHO, 2010, p.164). Dessa forma, se entende a doutrina majoritária que o embrião implantado tem a mesma natureza do nascituro, ser humano já concebido e cujo nascimento é dado como certo. Já o embrião humano resultado da fertilização in vitro, enquanto não for implantado no organismo materno, não goza da proteção conferida ao nascituro, pois a ele não se equipara. Não pode ser considerado ente humano por nascer. Em curso pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 6.960/2002 (arquivado em 31.01.2007 pelo fim da legislatura) propôs nova redação ao art. 2º do Código Civil, por sugestão da Professora Maria Helena Diniz, para fazer referência expressa ao embrião, sob a justificativa de que: "antes de implantado e viabilizado no ventre da mãe, não pode ser considerado nascituro, mas que também é sujeito de direitos". A nova redação seria a seguinte: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e os do nascituro" (DINIZ,2010, p.196).  Mas, repita-se, o embrião humano fruto da fecundação natural, no ventre materno, está compreendido no conceito de nascituro, para efeito da salvaguarda de direitos, de modo que a introdução da palavra "embrião" no citado dispositivo, de forma generalizada, atingiria aos provenientes da fertilização in vitro, antes, portanto, de sua implantação no organismo da mulher, inclusive os excedentários, que se encontram crioconservados. Destarte, é necessário que o direito se ajuste a essas novas realidades, quais sejam, as inovações tecnológicas. De tal modo, no caso especifico, é inegável que o Brasil precisa definir qual a proteção jurídica que dará a esses embriões, bem como, dizer se permitirá que sejam realizadas pesquisas e até que ponto estas podem ser feitas. 3 TUTELA JURÍDICA DO EMBRIÃO No decorrer da pesquisa, percebe-se que a questão da tutela jurídica do embrião está intimamente ligada ao caso de aborto de feto anencefálico, discutida na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54, tendo em vista o respeito pela vida e pela dignidade humana.[7] Tendo em baila, ainda, a premissa de que o feto é pessoa e a mãe não corre perigo. Na questão do feto anencéfalo o ministro Lewandowski  afirmou que "uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões".[8] É incontestável que a retirada da vida humana (até mesmo pelo aborto) é crime contra a pessoa. A interrupção da vida de um embrião congelado, como qualquer outra forma de interrupção voluntária da vida, também seria um fato antijurídico. Há de se salientar contudo que: "Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal" (JESUS, 2002, p. 269) BITENCOURT (2003, p. 11-12) enumera, de modo elucidativo, as funções do tipo penal que são “[…] a função indiciária, pela qual o tipo circunscreve e delimita a conduta penalmente ilícita e também a função de garantia, refletindo que o tipo de injusto é a expressão mais elementar, ainda que parcial, da segurança decorrente do princípio da reserva legal. Todo cidadão, antes de realizar o fato, deve ter a possibilidade de saber se sua ação é ou não punível. Em verdade, o tipo cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito do penalmente relevante. Assim, o que não corresponder a um determinado tipo será penalmente irrelevante.” Dessa função limitadora do tipo abstrai-se que foi penalmente relevante proteger a vida do embrião fruto da concepção intra-uterina. Contudo àquele que resultou de uma ectogênese, ainda que tenha o mesmo status do primeiro embrião e, igualmente, tenha vida, é irrelevante proteger – o que se deduz pela inexistência do tipo penal. Não cabendo, em Direito Penal, analogia para obter a condenação, jamais poderiam ser comparadas a criopreservação e a gestação como meio pelo qual se mantém vivo o conceptus. Desse modo, o que se tutela no aborto é a vida. Se no ventre da mãe o embrião se desenvolve e se no congelamento o seu desenvolvimento é suspenso, isso não retira inegável existência de vida em um ou em outro caso. BARBOZA (apud MEIRELLES, 2000, p. 65) manifesta-se a respeito da discussão entre a vida do conceptus in vitro e a questão do aborto dizendo que: “[…] ainda que não se reconheça na hipótese da ocisão voluntária do conceptus in vitro o crime de aborto, não se pode negar existir destruição de vida humana, o que colide frontalmente com a proteção do direito à vida, que não admite gradações: a vida existe ou não; é um fenômeno único.” Como dissemos, no crime de auto-aborto ou no do aborto consentido, o sujeito passivo é o nascituro, que é o "produto da concepção" em qualquer fase da gestação. O tipo que engloba essas duas figuras é o art. 124 do Código Penal que diz: "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque", pelo qual é evidente que, para realizar as manobras abortivas em si mesma ou para permitir que outra pessoa as realize, deve-se estar grávida, ser gestante. Dessas observações, pode-se inferir que o crime possui elementares e circunstâncias (BRASIL, 1940) No art. 121 do Código Penal, "matar" e "alguém" são elementares do crime de homicídio; no art. 124, que trata de aborto praticado ou consentido pela gestante, o estado de gestante (gravidez) é elementar do tipo (BRASIL, 1940) JESUS (2002, p. 552) esclarece a questão das elementares e circunstâncias de forma bastante elucidativa, dizendo que: "Se tirarmos a cabeça de um homem, a vítima não subsiste como pessoa humana. Assim, a cabeça é elemento do homem. Se tirarmos, porém, a sua vestimenta, ela subsiste como homem. Logo, a sua vestimenta constitui uma circunstância da pessoa humana". Por isso, quando se supõe que os embriões laboratoriais não são pessoa ("alguém") e não têm vida (somente "expectativa"), não há que se falar em crime de homicídio. Da mesma forma, quando se tipifica que só há aborto quando há gravidez, está a se dizer que tais embriões podem ser descartados impunemente. Assim, como as elementares do crime são essentialia delicti, diz Damásio que, quando " a ausência da elementar exclui o crime de que se trata e qualquer outra infração penal (atipicidade absoluta), […] o sujeito não responde por crime algum" (JESUS, 2002, p. 552) Nessa perspectiva, os embriões in vitro não sofrem ameaças enquanto estiverem nesta condição. Após a sua implantação em útero materno, ainda pode ocorrer a chamada "redução seletiva" na gestação múltipla, que é a eliminação de um ou mais embriões para permitir que os demais se desenvolvam. Nesta hipótese, o médico reduzirá, discricionariamente, qualquer um deles que considere anormais ou defeituosos. Destarte, nota-se que esta interrupção voluntária da vida embrionária em formação no útero materno (portanto, há gestante) não é denominada de aborto, e sim de "redução seletiva", porquanto não a consideram como crime. Entendemos que, quando não se tratar de aborto necessário (que não é punido, "se não houver outro meio de salvar a vida da gestante" – art. 128, I, CP), a situação em epígrafe configurar-se-á mais do que como o crime de aborto puro e simples, mas como um aborto eugênico, e não há causa excludente de ilicitude. Apesar disso, justificam que esta técnica difere do aborto porque: “[…] na redução seletiva o embrião destruído pode ser absorvido pelo corpo da gestante e não expelido e, além disso, a gestação não é interrompida. Na Inglaterra, a redução embrionária é considerada legal em duas situações: quando o embrião apresenta qualquer anormalidade que se considere grave; ou, ainda que não haja anormalidade alguma, mas a gestação plúrima em si represente sérios riscos para a gestante; neste último caso, o médico pode escolher qualquer um dos embrião a ‘reduzir’” (MEIRELLES, 2000, p. 68) Como demonstra a realidade científica, a atipicidade absoluta tem sido gozada aos extremos. BARBAS (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), dentre outros empenhados no biodireito, já faz referência ao termo "embrionicídio" para remeter ao fato da destruição dos embriões excedentários. Porém esta denominação específica tem sido substituída por outras expressões sinônimas de um cunho valorativo que retrata com fidelidade o caos instaurado com essa prática como, por exemplo, "cobaísmo humano", que é usada em relação à utilização dos embriões humanos em pesquisas. No entanto, lamentavelmente, tudo não passa de discussões, pois, Leis específicas e sanções ainda não existem. Conforme assinala LEITE (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), é relevante a tipificação da destruição dos embriões excedentários caso contrário, o atentado contra a vida do conceptus in vitro permanecerá a descoberto da lei penal, por força do princípio romano nullum crimen nulla poena sine praevia lege (impossibilidade de crime ou pena sem uma lei prévia que o comine), adotado pelo sistema brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Verificou-se, no decorrer da pesquisa, que o embrião implantado possui sua tutela equiparada a tutela do nascituro e que o embrião humano, resultado de fertilização in vitro, enquanto não for implantado no organismo materno, não goza da proteção conferida aos demais e, desse modo, não pode ser considerado ente humano por nascer.  Restou demonstrado que, as teorias acerca do início da vida são várias. Todavia, foram citadas as principais teorias: Teoria Concepcionista, Teoria da Nidação, Teoria Gradualista, Teoria das Primeiras Atividades Cerebrais, Teoria Natalista. Nesse contexto, em análise as Teorias do início da vida, a Teoria Concepcionista é a mais adequada em tutelar os direitos do embrião implantado, pois considerado-o pessoa humana em estado de latência. Assim, tendo em vista o embrião como pessoa em potencial, ele merece o respeito e dignidade que é dado a todo homem. Adepta a esse entendimento também está a Suprema Corte que na ADPF n. 54, ora demonstrada, firmou sua decisão no sentido de que ao embrião é garantido o direito à vida. Tal questão, envolve a proteção da vida consagrado constitucionalmente e em diversos tratados internacionais subscritos pelo Brasil, inclusive a Convenção Americana de Direitos Humanos. Desse modo, uma decisão favorável ao aborto proclamada pelo STF, em tese, teria o condão de tornar lícita a interrupção da gestação de qualquer embrião que ostente, seja pouca ou nenhuma expectativa de vida extra-uterina. Isto posto, o embrião é, sem dúvida, um bem a ser protegido.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-111/a-tutela-juridica-do-embriao-implantado-a-luz-da-dignidade-da-pessoa-humana/
Considerações sobre direito de morrer
O que se pretende com o presente artigo é relatar a possibilidade de o indivíduo exercer sua autonomia privada diante de um futuro estado vegetativo, optando por morrer ou continuar vivendo de maneira artificial, ou seja, através de aparelhagens. O ordenamento jurídico brasileiro não permite que ocorra o desligamento dos aparelhos de uma pessoa no estado vegetativo, para tanto, propõe-se ainda, que a eutanásia seja permitida, assegurando ao indivíduo o exercício de seus ideais, de sua vontade, considerando assim seus direitos fundamentais, uma vez que viver com dignidade não significa viver a qualquer custo, mas ter uma vida digna, saudável e consciente.
Biodireito
1.INTRODUÇÃO Vivemos em uma sociedade diversificada culturalmente, de várias raças, religiões, idades, onde nem todos possuem visão única e absoluta, as pessoas possuem pensamentos e opiniões conflitantes, e com o intuito de acompanhar a maneira de pensar e de agir da sociedade, ou seja, com a intenção de participar do desenvolvimento da humanidade, a ciência do Direito também se modifica de forma a regular tal desenvolvimento. Atualmente, o mundo tem evoluído de maneira acelerada, principalmente na área das ciências médicas e biológicas, os seres em constante evolução, realizam pesquisas científicas, como consequência, novas descobertas que auxiliam na qualidade da vida humana até mesmo no seu prolongamento, pois as pessoas geralmente temem a morte, não a aceita de forma natural e certa, por isso médicos e cientistas estão sempre buscando a cura para todos os males almejando prolongar a vida, porém se esquecem que para a morte não tem cura, ela será inevitável ocorrendo prévia ou tardiamente. Existe o direito à vida, existiria também um direito de morrer? Ou deveria haver um prolongamento da vida a qualquer custo? A vida não pode se transformar em um dever, apesar de ser protegida como um bem supremo, como um direito fundamental e principal, os seres humanos possuem autonomia, liberdade de escolha, sendo assim, poderiam optar, dependendo do caso concreto, em continuar vivendo ou morrer, afinal, viver bem não significa viver muito, mas sim viver de forma digna, pois a vida é singular, subjetiva, é feita de inúmeras sensações, é dinâmica e intensa, não podendo ser resumida a mero funcionamento do organismo, portanto, caberá ao indivíduo, de acordo com seus pensamentos e conceitos de vida, de dignidade, exercer sua autonomia privada caso esteja em um estado deplorável de vida vegetativa, onde aparelhagens médicas possibilitam que o organismo humano continue ativo, escolhendo até quando deseja viver. As disposições de vontade do indivíduo (com plena capacidade) deverão ser consideradas, quanto a não submissão a tratamento ou até mesmo a não continuidade de uma vida artificial, respeitando-se o grande pilar do Estado Democrático de Direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana, aceitando dessa forma a eutanásia como um procedimento natural, uma maneira de efetivar muita das vezes a vontade do indivíduo. Sendo assim, o sistema jurídico nacional deveria permitir e positivar a prática de eutanásia. 1.1. EUTANÁSIA ESTUDO COMPARATIVO Diversos povos da antiguidade tinham como hábito dar fim a vida das pessoas, muitas das vezes os familiares por esses estarem velhos e doentes. “Na Índia antiga, os incuráveis de doenças eram atirados no Ganges, depois de terem a boca e as narinas vedadas com lama sagrada. […] Na Idade Média, dava-se aos guerreiros feridos um punhal afiadíssimo, denominado misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento prolongado da morte e para não caírem nas mãos do inimigo. O polegar para baixo dos Césares era uma permissão à eutanásia, facultando aos gladiadores uma maneira de fugirem da morte agônica e da desonra.” (SÁ; NAVES, 2011: 311) Talvez esse ato provoque repulsa em muitas pessoas de cultura diferente, gere até mesmo discussões, mas em tais atitudes estavam implícitos valores sociais, culturais e religiosos que deveriam ser respeitados já que se vivia em uma sociedade que acreditava ser essa a melhor opção. Alguns países tratam com naturalidade a eutanásia e já a positivaram em sua legislação: “O Uruguai, em 1934, incluiu a possibilidade da eutanásia no seu Código, através da possibilidade do "homicídio piedoso". Esta legislação uruguaia possivelmente seja a primeira regulamentação nacional sobre o tema. Vale salientar que esta legislação continua em vigor até o presente. A doutrina do Prof. Jiménez de Asúa, penalista espanhol, proposta em 1925, serviu de base para a legislação uruguaia.” (GOLDIM, 2010: 01). Outros países também não responsabilizam criminalmente aquele que retira a vida de um paciente terminal, desde que haja prévio consentimento desse; como amostra, cita-se a Corte Colombiana: “Em 1997, a Corte Constitucional da Colômbia abriu uma exceção ao Código ao isentar de responsabilidade criminal aquele que tira a vida de um paciente terminal com o seu prévio consentimento.” (RÖHE, 2004: 08). Passemos então para um breve conceito de Eutanásia, que significa a prática pela qual terceira pessoa, na maioria das vezes com formação médica, busca abreviar sem dor ou sofrimento a vida de um enfermo incurável ou em estado terminal. Tal prática ainda não possui amparo legal. É a conduta onde o médico emprega meios eficientes para produzirem a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida. Eutanásia não é um suicídio assistido (hipótese em que o indivíduo orientado ou auxiliado por terceiros ou pelos médicos, pratica sua morte), mas sim uma aceitação de sua condição humana e o desejo de não receber um tratamento que não condiz com os resultados. Nesse caso, não estará o médico, por exemplo, desvirtuando-se de sua finalidade humanitária, nem atentando contra a dignidade do ser humano, ao contrário, o profissional da saúde estará respeitando o livre arbítrio de seu paciente, cumprindo uma vontade do mesmo, ajudando-o a ter uma morte digna, já que essa é iminente e inevitável, afinal é dever do médico, atenuar as angústias e os horrores da agonia quando se apresentem, não havendo obrigação de prolongar a vida indefinidamente, em uma luta incessante contra a morte, ficando o paciente submetido a equipamentos eletrônicos, perdendo sua qualidade de vida humana, sua identidade. É necessário distinguir a eutanásia (conceito supracitado) da distanásia, que no sentido vernacular significa “morte lenta, com grande sofrimento”; seria um prolongamento artificial da vida ao máximo e a qualquer custo, garantindo quantidade e não qualidade da vida humana. Impõe o que se denomina tratamento fútil, ou seja, um tratamento inútil, sem resultados. Tal tratamento não é aconselhável por muitos autores, por exemplo, Léo Pessini que considera: “No curso de uma doença que não pode ser curada e quando a morte está próxima e é inevitável, existem situações em que prolongar a vida não é aconselhável. Prolongar a vida a todo custo pode ser desumano para os pacientes. Isso tem sido reconhecido desde a introdução da terapia intensiva na segunda metade do século XX. De outra forma, o abençoado progresso da medicina facilmente se transformaria numa maldição se negasse o que chamamos de morte com dignidade. Isso significa que a responsabilidade do médico não se limita a sustentar a vida, mas abarca também o dever de oferecer cuidados paliativos se manter a vida não é mais razoável. Se um tratamento torna-se não razoável não significa que todo o tratamento vá ser interrompido. Significa uma mudança de objetivos de tratamento. Neste ponto, quando uma terapia é interrompida, os objetivos do tratamento devem ser definidos novamente. Manter a vida não é mais o objetivo principal, e alívio e cuidados humanos passam a ser as preocupações exclusivas”. (PESSINI, 2001: 100). Observamos com a citação acima que a distanásia somente prolongaria um sofrimento desnecessário, visto que, a doença já não tem mais cura e a morte é inevitável, o médico estaria sustentando uma agonia enquanto poderia aliviar possíveis dores, até mesmo dos familiares que veem o paciente em tal situação. Assim, o médico não deixaria de exercer o seu dever, qual seja, oferecer o tratamento adequado a cada caso, sendo que, nos casos de eutanásia, estaria também preservando por inteiro e de pronto a dignidade do paciente. 1.2. AUTONOMIA DA VONTADE VERSUS AUTONOMIA PRIVADA Autonomia seria a autoderteminação do homem, ou seja, sua liberdade para tomar decisões, todo o movimento psicológico destinado a um fim específico. A autonomia da vontade tem início por volta do século XVIII com a evolução do comércio e da indústria principalmente na Europa, como forma de facilitar transações individuais e consequente circulação de riquezas. Nessa época, o Estado apenas fixava regras básicas para a economia, sendo assim, os indivíduos possuíam plena liberdade negocial, ficando, muitas vezes, entregues a própria sorte. Em tal período histórico, pode-se destacar a figura de um Estado liberal, onde a autonomia da vontade é entendida como a não intervenção do estado na esfera individual, aquilo que fosse estabelecido em função dessa autonomia deveria se respeitado.  Com o surgimento do Estado social se observou que a não intervenção poderia ser um manancial de injustiças, ou seja, o mais forte econômica e culturalmente poderia se sobrepor de maneira desmedida frente a seu semelhante, logo a preocupação se volta a atender aos reclamos não somente de um indivíduo, mas de toda a coletividade; a autonomia da vontade recebe assim nova roupagem, passando a se denominar autonomia privada. Devido ao nascimento da autonomia privada o que ocorre é uma releitura da autonomia da vontade, tornando essa menos subjetiva, estabelecendo regras para o comportamento dos agentes, a fim de impor-lhes limites em prol das necessidades/ interesses sociais, da justiça material e da valorização dos seres humanos como foco do ordenamento jurídico brasileiro. Então, a autonomia da vontade é um fenômeno meramente volitivo, de dentro para fora. Já a autonomia privada, há um condicionamento da vontade a fatores externos e jurídicos para se evitar o arbítrio individual; procurando conciliar a autonomia pessoal com os interesses sociais, os deveres e responsabilidades que o ser humano deve possuir, assim, na atualidade se permite o indivíduo atuar em todos os ramos do direito exercendo a sua autonomia, desde que não se choque com normas do ordenamento, as quais prevalecerão em caso de conflito. Assim, o que se pretende é demonstrar que as disposições de última vontade do indivíduo devem ser respeitadas e fazem parte de sua autonomia privada, já que o nosso ordenamento não condena essa possibilidade de exercício de um direito a qual se consubstancia em submeter a tratamento ineficaz, somente para prolongar uma vida já condenada ao fim. 2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO DE MORRER Até quando deverá se prolongar a vida exageradamente causando atroz sofrimento ao paciente? Prolongar um tratamento inútil de um paciente em fase terminal será dever de um profissional da saúde? De acordo com Maria Helena Diniz, pode-se dizer que não, a prática da distanásia gera efeitos nocivos, pois a cura é impossível e o benefício esperado é menor do que os males causados pelo processo terapêutico, seria então, um tratamento fútil. Todos os seres humanos possuem direito a vida, porém, “[…] o direito à vida é por vezes referido sob um modo qualificado, num sentido amplo, a abranger não apenas a preservação da existência física, mas designando, além disso, um direito a uma vida digna.” (MENDES, 2009: 400). A vida é considerada pelo ordenamento jurídico como um bem indisponível, ou seja, o Estado a preserva acima de qualquer outro vetor, porém, dada peculiaridade de determinada situação brota a teoria de disponibilidade da vida, já que o Direito é uma ciência inexata e de evolução constante, nos permite, no caso concreto, aplicar tal teoria com base em um princípio que rege e orienta todo o Estado de Direito, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. A CRFB/88 traz em seu artigo 1º, inciso III, como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 2012: 21). Ou como podemos ler em Regina Maria Macedo Nery Ferrari: “A expressão ‘dignidade humana’ não é uma fórmula única e fechada, mas um conceito vago e indeterminado, na medida em que é possível reconhecer que está em constante processo de desenvolvimento e construção.” (FERRARI, 2011: 569). Observa-se que não há possibilidade de restringir ou mesmo ponderar a dignidade, pois é um campo amplo, livre, porém, adequado à realidade e a razoabilidade. Ter dignidade não quer dizer possuir condições materiais básicas para a existência, ou seja, não significa possuir apenas o mínimo existencial, pois esse corresponde, tão somente, a uma parcela do que compõe a dignidade da pessoa humana, uma vez que é evidente que as pessoas necessitam muito mais que o “mínimo existencial”, almejam qualidade de vida, bem estar, afinal pode se considerar medíocre nivelar a vida pelo mínimo. Além do mais, “[…] quando a Carta de 1988 consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana – tornando-se a primeira Constituição brasileira a reconhecê-lo expressamente – foi aberta uma porta, não só para o direito a uma vida digna, também para o direito de morrer com dignidade.” (RÖHE, 2004, p.31). Considerando o princípio da dignidade da pessoa humana, é possível apresentar um direito antagônico ao direito à vida, qual seja o direito de morrer, pois a CF/ 88 em um contexto geral preserva não só a vida, mas a vida digna, respeita o ser humano em si, zelando também pela individualidade e liberdade de escolha de cada um. 2.1. EUTANÁSIA: O DIREITO DE MORRER Quando fica evidenciado que para a doença não existe mais tratamento com a possibilidade de cura, pois existem apenas tratamentos paliativos, que não permitam a recuperação mas estacionam a doença, a dor, um intolerável estado vegetativo, onde somente algumas funções fisiológicas ainda persistem e nada mais além disso, quando haja irreversibilidade e permanência da situação, insuficiência global e profunda de faculdades psíquicas, ausência total de vida consciente, onde o enfermo não pode mais compreender seus atos e nem dirigir suas ações; os médicos poderiam praticar a eutanásia com o prévio consentimento do paciente, que não estarão negando seus cuidados, mas sim auxiliando-os em uma “boa morte”, uma morte digna. “Uma ‘boa morte’ conduz ao direito ao alívio da dor e do sofrimento inútil; ao direito de escolher onde morrer e como morrer. Significa dar amparo físico e espiritual nos momentos finais.” (RÖEH, 2004: 31).Atuando de tal forma, o médico estará agindo por compaixão, dando ao paciente incurável a possibilidade de morrer com nobreza e integridade. “Por sua vez, quando se refere ao direito de morrer, não se procura alcançar a morte a qualquer custo, e sim a permissão para morrer com serenidade e dignidade humana.” (RÖEH, 2004: 17).  O que importa não é a quantidade de vida, mas sim sua qualidade. O estado vegetativo não traz qualidade de vida, pois os pacientes vegetam, ficam inanimados, inertes, não apresentando resposta a estímulos externos, porém, ainda não apresentam estado de morte cerebral, a pessoa está fisiologicamente viva, mas durante meses, anos, permanece alheia, incapaz de esboçar qualquer reação, qualquer comportamento intencional, não tendo nenhuma consciência. O estado vegetativo é a mais frustrante das condições humanas. Os pacientes podem sorrir, chorar, fechar e abrir os olhos, emitir barulhos, gemidos, porém, são apenas reflexos do córtex cerebral e não tem relação consistente com estímulos; a pessoa pode permanecer nesse estado durante anos e os que estão ao seu redor, como por exemplo, familiares, devido a tais sinais de aparente vida, se equivocam e, infelizmente acabam alimentando falsas esperanças de melhora do paciente. 2.2. TESTAMENTO VITAL: O MEIO DE UM DIREITO A MORTE COM DIGNIDADE E AUTONOMIA “As diretivas antecipadas surgiram nos Estados Unidos, no final da década de 1960 e, desde então, são entendidas como gênero, do qual são espécies o testamento vital e o mandato duradouro.” (BOSTIANCIC; PENALVA, 2010: 181). O testamento vital é um documento em que a pessoa determina que tipo de tratamento deseja se submeter em estado incurável ou terminal. “O testamento vital consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma. Ao contrário dos testamentos em geral, que são atos jurídicos destinados à produção de efeitos post mortem, os testamentos vitais são dirigidos à eficácia jurídica antes da morte do interessado.” (GODINHO, 2010: 01). O mesmo texto, ainda esclarece: “Em 2009, no Uruguai, foi aprovada a lei que instituiu naquele país o denominado "testamento vital", também conhecido como "declaração de vontade antecipada", já admitido em alguns países europeus e nos Estados Unidos, onde se consagrou o "living will". A lei uruguaia, de número 18.473, contém onze artigos, estabelecendo o primeiro deles que toda pessoa maior de idade e psiquicamente apta, de forma voluntária, consciente e livre, pode expressar antecipadamente sua vontade no sentido de opor-se à futura aplicação de tratamentos e procedimentos médicos que prolonguem sua vida em detrimento da qualidade da mesma, se se encontrar enferma de uma patologia terminal, incurável e irreversível. Isso permite que a pessoa possa antecipadamente declarar que recusa terapias médicas que apenas prolongariam sua existência, em detrimento da sua qualidade de vida”. (GODINHO, 2010: 01). O paciente incurável que não desejar o estado vegetativo, deverá conscientemente declarar sua vontade, para tal, no momento da declaração o mesmo deverá possuir plena capacidade, procurando ser objetivo (sem deixar margens de interpretações para sua escolha). O instituto do testamento vital não encontra previsão legal no nosso país, por isso, não se pode afirmar quais seriam os requisitos (formais) de validade para tal. O ordenamento jurídico brasileiro não permite a eutanásia, pois há tipicidade da mesma no Código Penal Brasileiro, no artigo 121, §1º, considerada como homicídio, ainda que privilegiado. Houve vários projetos para reforma do Código Penal: “Um dos textos da primeira Subcomissão de Reforma da Parte Especial do Código Penal brasileiro de 1993, introduzia o § 6º ao artigo 121: §6º – Não constitui crime a conduta de médico que omite ou interrompe terapia que mantém artificialmente a vida de pessoas, vítima de enfermidade grave e que, de acordo com o conhecimento médico atual, perdeu irremediavelmente a consciência ou nunca chegará a adquiri-la. A omissão ou interrupção de terapia devem ser precedidas de atestação, por dois médicos, da iminência e inevitabilidade da morte, do consentimento expresso do cônjuge, do companheiro em união estável, ou na falta, sucessivamente do ascendente, do descendente ou do irmão e de autorização judicial. Presume-se concedida a autorização, se feita imediata conclusão dos autos ao juiz, com condições exigidas, o pedido não for por ele despachado no prazo de três dias. Posteriormente em 24 de março de 1998, o Diário Oficial da União fez publicar o texto que alteraria os dispositivos da Parte Especial do Código Penal, e, em relação a eutanásia, ficou consignado o seguinte : art. 121. […]§3º Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave: Pena- Reclusão de três a seis anos”. (SÁ; NAVES, 2011: 323). Haveria também um parágrafo 4º no artigo 121 com a seguinte redação: “§4º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão”. (SÁ; NAVES, 2011: 323 – 324).  O parágrafo 4º positiva a eutanásia, sendo uma forma de solucionar a polêmica com relação à prática da mesma. Porém, nenhum dos projetos supracitados, seguiu adiante, permanecendo atravancados no Congresso Nacional. A decisão de morrer, não pode ser tomada de forma leviana, já que só pertence ao paciente, visto que ele é o titular de sua vida e caso venha ficar em estado vegetativo, a solução seria o testamento vital, antes de tudo, a proposta seria de elaborar um laudo técnico de conteúdo interdisciplinar, envolvendo pareceres nas áreas da Psicologia, Direito e Medicina. Afinal, a decisão é irreversível e tanto o profissional envolvido, quanto o paciente ou familiar do individuo devem estar convictos de que a solução mais adequada é a eutanásia. A opção de um indivíduo capaz e consciente deve ser respeitada, não devendo haver possibilidade de interferência externa, já que sua atitude diz respeito ao âmbito de sua vida particular, não prejudicando interesses de terceiros, pois é um direito do paciente resguardar sua morte com dignidade e autonomia, visto que ninguém tem a obrigação de viver; a pergunta a ser feita diante da declaração (testamento vital) deixado é: qual a real intenção do paciente? Devendo sempre criar uma correlação da vontade elementar com a declaração. O testamento vital deve ser elaborado pelo paciente de forma clara e objetiva, visto que, servirá para externar a aceitação ou não de intervenção médica, sobretudo aquela que prolongue desnecessariamente a vida do paciente. Através de tal declaração, o paciente deverá exercer sua autonomia e essa autonomia já é tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro, especificamente pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, além, da proibição de tratamento desumano. Segue abaixo o voto da juíza Kogan no denominado caso M.D.C.S, que foi analisado pela Suprema Corte de Justiça de Buenos Aires, onde ela expõe sua opinião a respeito do assunto: “Perante a irreversibilidade do quadro médico de pacientes em estado crítico, não é moralmente obrigatória a manutenção da vida mediante todo tipo de tratamento de suporte vital quando o paciente claramente rejeita essa terapia ou seus parentes em forma coincidente deixam transparecer essa vontade. Apesar disso, essa vontade não deve ser interpretada como uma afirmação genérica posto que é preciso estudar cada caso em particular e especialmente, se ater ao diagnóstico e prognóstico de cada paciente, assim como à opinião do Comitê de Bioética correspondente.”[1] (KOGAN apud BOSTIANCIC; PENALVA, 2010: 183). Visto isso, o paciente deverá expressar sua vontade em não submeter-se a tratamento médico, caso futuramente esteja em estado vegetativo sem possibilidade de reversão, devendo ser observado cada caso concreto, além da vontade do paciente expressamente declarada, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. “Para o filósofo Hans Jonas, a existência de um direito à morte decorre do próprio direito à vida. Protege-se juridicamente o direito à vida, o qual, todavia, não deve ser entendido como pressupondo uma obrigação de viver, exigível pela sociedade – ao menos, segundo o autor, não nas situações de prolongamento penoso do final da vida dos pacientes terminais”. (MÖLLER, 2010: 95-96). Diante o exposto, é conveniente a edição de uma lei federal regulamentando o tema, a fim de dar maior segurança jurídica aos pacientes, aos médicos e a família. 3. CONCLUSÃO  O objetivo desse artigo não é considerar a eutanásia como uma forma de “higienização social”, uma forma de eugenia, como ocorreu no apogeu nazista, onde se matava deficientes, doentes incuráveis e pacientes terminais, com o intuito de “purificar a raça”, aqui a intenção não é banalizar a vida, mas sim, garantir aos interessados seus direitos a uma morte digna, preservar sua liberdade de escolha, sua autonomia para dispor da própria vida se a mesma não lhes fizer sentido, visto que, não existe cura, estando cientes de que não serão tratados, pois o tratamento também não há ou somente prolongará um estado vegetativo, onde conviverão com a matéria, sem contínua atividade, sem vitalidade, isso não é vida, é apenas um adiamento da morte. A Eutanásia deve ser entendida, dentro do ordenamento jurídico, através de uma leitura dos direitos fundamentais, do respeito do Estado para com o cidadão, onde cada ser possa guiar sua vida de acordo com seus valores sem a total interferência externa, sob a égide dos preceitos fundamentais. Sendo assim, os pacientes incuráveis, cientes de sua futura e sólida condição, que não queiram permanecer em um estado vegetativo, possuem pleno direito de externarem através de um documento, uma declaração prévia, positivando sua vontade pela prática da eutanásia, onde os médicos se comprometem a realizá-la, caso sobrevenha o estado vegetativo. A inserção de uma nova premissa com determinados requisitos, no Código Penal, visando a prática da eutanásia, seria uma maneira de garantir a concretização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois, serviria de auxílio para aqueles que se encontram em estado deplorável, em fase tormentosa e irreversível de alguma doença grave. Então, o consentimento do paciente funcionaria como causa excludente de antijuridicidade. Conclui-se que o direito a vida protegido pela Constituição Federal deverá ser considerado indisponível quando se puder viver bem e de forma digna, forma essa, considerada individualmente de acordo com os valores e entendimentos de cada ser, de modo subjetivo, devendo se fazer respeitar todos os direitos fundamentais, na busca pela realização como ser humano.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-110/consideracoes-sobre-direito-de-morrer/
Direito sexual e reprodutivo: breves considerações críticas sobre a distância do reconhecimento do multiculturalismo
O texto trata da evolução do Direito Sexual e Reprodutivo e dos enfrentamentos preconceituosos até os dias de hoje. Da mesma maneira, dividi o sexo da reprodução, tratando-os de forma específica e com maior importância. Assim, o texto revelará que o reconhecimento das diferenças e do multiculturalismo é obrigatório, e o afastamento da leitura sensacionalista carregada de julgamentos morais deverá ser realizado, pois relevante será a inclusão para proteção na ordem jurídica.
Biodireito
1. Introdução Qualquer abordagem que se faça acerca dos Direitos Sexuais é sempre um momento de reflexão complexo e intenso, pois apesar de todo o cuidado no trato deste tema, alguma polêmica é causada, seja por falta de atenção na exteriorização de uma determinada idéia, ou porque o escritor quisesse efetivamente o resultado, e mesmo se assim não planejasse, alguém, certamente, criaria uma discussão para expor uma posição diferenciada. Aliás, todos têm um posicionamento, seja religioso, jurídico, político, social, discriminatório, preconceituoso, tanto faz, o fato é que, embora tenhamos, pessoalmente, um entendimento sobre o assunto, podemos e devemos separar e disciplinar esta compreensão solitária, de modo a respeitar a opção do outro. Não se pode esquecer que o direito deve abranger todas as relações humanas, no sentido de protege-las de nós mesmos, desta instabilidade e necessidade pessoal de apedrejar e criticar tudo aquilo que foge do mundo moral padronizado e dogmático que criamos no desiderato de fortalecer uma segurança que só existe em nossas mentes. E quando saímos, muito medrosamente, desta bolha transparente de preconceitos, ainda assim, não discutimos sobre a proteção da relação humana, pelo contrário, ampliamos o desrespeito e questionamos sobre a intimidade do outro, não que queiramos saber da opinião diferenciada, mas julga-la, tripudiando com sorrisos amarelados e sem qualquer ação de humanidade. O conceito de família é amplo, e não pode ser reduzido às discussões de opção sexual, não pode ser dimensionado pelo que os grupos religiosos pregam com o seus microfones no último volume, e muito menos com a imagem do sol radiante clareando os lisos cabelos de um menino e sua irmã, sentados sobre móveis de madeira, tomando suco de laranja, como se vende nos comerciais televisivos de margarina e manteiga! Também não é possível relacionar família aos laços de sangue, pois este não passa de uma coincidência, basta observar que as uniões (famílias, portanto) são edificadas por pessoas que não tem o mesmo sangue! Historicamente, tanto os gregos quantos os romanos tiveram duas concepções acerca da família e do casamento: a do dever cívico e da formação da prole. Isto é, a união do homem e da mulher era o dever cívico, para a procriação, pois assim os exércitos seriam formados para servir seus países. Pouco depois, foram compreendo a idéia de filhos como continuidade da entidade familiar.[1] Verifica-se que os direitos sexuais e reprodutivos estavam intimamente ligados, o que não acontece mais nos dias de hoje. Outro aspecto interessante é a análise da antiga moral da família, apontada na obra “A Cidade Antiga”[2], de Fustel de Coulanges, que esclarece que a religião e a moral eram práticas domésticas, e a família era o grupo que estava ali, pois todos os outros eram estranhos e, portanto, inimigos. A reza doméstica pedia à divindade em favor da sua família e não pelos outros homens. Talvez tenha havido alguma evolução, pois atualmente as pessoas rezam à divindade e pedem a favor de todos, mesmo que o outro não faça parte da sua família, do seu templo, dos seus deuses, e daí por diante, querem inclusive, discutir e julgar sobre a sexualidade do outro, e retirar-lhe a condição de “família”, e as consequentes proteções jurídicas. Claro que somos pelo não isolamento das famílias em seus credos e culturas, mas pela sua liberdade, e nela o respeito pelas outras! As discussões sobre as novas entidades familiares[3] ocorrem por diversos fatores, e um deles é a opção sexual de pessoas, que passam a se relacionar com outras do mesmo sexo, ou até mesmo alterar fisicamente a sua genitália para harmonização psicossexual. Aspectos a serem trabalhados neste estudo. 2. Breve histórico dos direitos sexuais e reprodutivos A desenvoltura e aparição dos direitos sexuais e reprodutivos estão vinculadas aos movimentos sociais, especialmente ao movimento de mulheres, e ao movimento homossexual, que tinham como objetivo a articulação crítica às políticas e ao gerenciamento da sexualidade. Certamente que a cidadania fora construída na Revolução Francesa no final do século XVIII, pois observa-se as desigualdades e opressões absurdas, pelo que as mulheres forte no movimento feminista, nos séculos XIX e XX, romperam com o processo social de opressão. Também foi possível detectar que as idéias marxistas determinaram a percepção das formas de dominação entre os indivíduos. A partir de então, outras formas de dominação e opressão foram evidenciadas e trabalhadas pelo movimento das mulheres. Ressalte-se que a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres teve início com as primeiras normas internacionais de proteção à maternidade, em 1919 na OIT. Na década de 30 a 50, o direito de voto. Na década de 70 a Convenção da ONU, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, em 1979, pode simbolizar um marco na conquista dos direitos das mulheres porque além de dispor sobre direitos da mulher, obriga diretamente os países membros às ações concretas, caracterizando como uma Convenção com poder delegado, além de discricionário. Em 1993, a 2ª Conferência sobre Direitos Humanos de Viena endossou a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos universais. A Conferência de Viena acrescentou que a violência contra a mulher constituiu violação aos direitos humanos, afrontando a dignidade humana. Em dezembro de 1993, a ONU adotou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, que serviu como base à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, aprovada pela OEA, em 1994. Muitas foram as discussões sobre direito sexual e reprodutivo, e algumas preocupações eram exageradas, pois até a questão populacional passou a ser discutida, isto é, se o Estado deveria ou não impor limites ao crescimento ou diminuição das populações. Ainda se discutiu se a definição de aumento ou diminuição seria feita pela sociedade, pela família ou pelo indivíduo. No Brasil o discurso do Planejamento Familiar[4] existia no período colonial, passando pelo Império até a República, e a Igreja Católica defendia o ideário com a construção de uma sociedade portuguesa cristã, e promove a mentalidade de subordinação, obediência e servidão da mulher em relação ao homem[5]. Já em 1930, com o desenvolvimento pós-guerra e por parte do governo de Getúlio Vargas, havia uma tendência pró-natalista. Em 1970, o regime militar brasileiro, instigava o discurso de que a segurança nacional estaria ameaçada pelo grande contingente de pobres e numerosas famílias (idéia de sub-raça brasileira). No ano de 1984, no Congresso Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, em Amsterdã, denunciaram as políticas demográficas do sul, e incremento de técnicas conceptivas no norte. Nos anos de 1983/1984, criou-se o PAISM – Programa de Assistência Integral à Mulher, que foi o embrião da linguagem posteriormente legitimada pela Constituição Federal de 1988. Em 1994, na Convenção do Cairo, criou-se uma linguagem mais condizente dos direitos sexuais e reprodutivos, afastando a idéia das políticas demográficas. 3. Acerca da sexualidade No século XX, a sexualidade é desmistificada por Freud nos 3 (três) ensaios sobre sexualidade infantil, concluindo que há uma separação entre sexualidade e relação sexual genital; que há uma quebra da inocência das crianças, quando fala do processo de erotização que ocorre desde o nascimento; a sua independência frente ao objeto de desejo, ou seja,  a singularidade; admitir a existência da bissexualidade[6]. Após, Foucault, com relação entre corpo e poder, desnaturalizando-a e compreendendo-a como dimensão cultural. A década de 60 influencia as décadas de 80 e 90, como resultado de movimentos sociais: publicização das condutas e da cultura gay e lésbica. A relação sexual é separada de vez da reprodução pela pílula anticoncepcional, e a questão da saúde é colocada em evidência com aparição do HIV/AIDS, mudando a prática sexual e visando uma construção social, com o direito à livre orientação sexual. A construção do conceito sobre direitos sexuais e reprodutivos inicia-se com o Destaque ao Princípio 4 da Conferência do Cairo[7], que trata da equidade e igualdade dos sexos e os direitos da mulher. Ainda na construção do conceito, podem ser vistos como direitos sociais, havendo necessidade de perceber as práticas e garantir direitos, pois as pessoas exercerão anticoncepção pelo serviço de saúde ou outro qualquer, por esterilização, comprarão pílulas no mercado e nas farmácias, e para resolver isso dependerá da forma como o Estado desenvolve suas políticas neste setor. 4. Aspectos legislativos No que toca à legislação relevante, apontamos a Constituição Federal de 1988, artigo 1º, inciso III[8]; artigo 4º, inciso II[9]; artigo 5º, §§ 1º e 2º.[10] Nota-se que a Constituição Federal de 1988, incorpora os postulados internacionais acerca do tema, da Conferência sobre população e desenvolvimento, realizada pela Organização das Nações Unidas, 1994, realizada no Cairo, Egito. Ainda sob o aspecto internacional, observa-se a Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, que trata de direitos fundamentais nos artigos 4º e 5º.[11] A Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, no seu artigo 1º [12] orienta para novas práticas sobre sexualidade e reprodução. 5. Críticas e polêmicas no Poder Judiciário: União de pessoas do mesmo sexo e transexuais Sem desconsiderar outros temas atinentes aos direitos sexuais e reprodutivos, preferimos delimitar o estudo, ainda que singelo, às uniões de pessoas do mesmo sexo e aos transexuais. As uniões de pessoas do mesmo sexo e a transexualidade não são fatos desconexos ao conceito de “família”, pois a discussão sobre família é feita de maneira independentemente da sexualidade. Quando se misturam numa manifestação, a sexualidade e a família, provavelmente ela será preconceituosa e odiosa, mesmo porque o ódio é fácil e num ato simples alcança imensas multidões, diferentemente do amor, que é seletivo e muito mais difícil. Numa breve análise histórica evidencia-se o contraposto entre o holocausto de Hitler e a Vida de Mohandâs Karamchand GANDHI, que conseguiu colecionar o desprezo ingênuo e a antipatia irracional de alguns, inclusive de contemporâneos.[13] Seja qual for o tema, o ódio, a discriminação e o preconceito está presente, seja na política, na economia, nos meios acadêmicos, não importa, as pessoas arrastam outras para uma, quase consciente, equipe partidária de não reconhecimento do outro ou diferente, porque o multiculturalismo é impudico diante do egoísmo e formação débole da maioria. Nesse sentido, muitos escrevem, inclusive o italiano Umberto Ecco[14]. Então, percebe-se que o que importa é a afetividade entre pessoas e não a sexualidade, muito menos sexual(ismo), portanto, designa-se “homoafetividade”, expressão profunda e representativa, iniciada e encontrada em quaisquer manifestações da renomada e humana jurista, Maria Berenice Dias. As relações e opções citadas aqui não precisam ser legitimadas ou validadas pelo instituto do casamento, que padroniza o comportamento e não corresponde com a dinâmica das relações sociais hodiernas. De fato, existem outras entidades familiares, e não somente aquelas formadas a partir do casamento, e é perfeitamente normal que isso aconteça, considerando que desde os primórdios, o que sempre existiu foi a união estável (independentemente da opção sexual) e não o casamento, que instituiu-se muito tempo depois. A sexualidade do outro incomoda tanto as pessoas, porque isso? Que racionalidade e moral é essa de desprezo pela afetividade entre pessoas, alheias à vida de quem acredita poder julgar o outro, olhando do seu trono almofadado e acorrentado às próprias convicções de destruição? Claro, as respostas serão menos verbalizadas, porque serão expressadas no sorriso do desprezo e de superioridade, que darão conta de transmitir o recado oposto ao reconhecimento (principalmente jurídico) do relativismo cultural. Não obstante a discussão propedêutica, o Poder Judiciário caminhou com maturidade, e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, garantindo-lhes a liberdade sexual, a segurança jurídica, igualdade, o bem estar de todos. E o fez com fundamento na própria Constituição Federal, pois existe uma relação que não pode ficar à margem da proteção jurídica. Daí em diante, alguns esclarecerão que não possuem qualquer preconceito em relação à opção sexual de cada pessoa, e por outro lado argumentarão que não são contra as relações homoafetivas, mas simplesmente discordam que sejam reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal, porque é uma decisão inconstitucional. Em que pese a argumentação de “notáveis”, temos que a Constituição Federal é principiológica e analítica, e em questões de intensa relevância social, há autorização para que se decida sobre tais. A Constituição silencia sobre a união estável entre pessoas do mesmo sexo, e sem proibição é juridicamente permitido, e considerando Kelsen, tratando do fechamento hermético do direito, é possível afirmar, neste caso, a existência de uma “norma geral negativa”, e na maioria das obras, os juristas e filósofos não param de perguntar o que é Justiça! Na dúvida, a justiça pode ser captada das decisões de reconhecimento da união estável do Supremo Tribunal Federal e do casamento homoafetivo reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça, apesar de este não ter o efeito vinculante daquele. Em consequência, no que se refere à adoção, o direito é explícito e inegável para, se quiserem, faze-lo, dentro da ordem estabelecida para tanto. Todas as pessoas falam em sexo, a Constituição Federal fala em sexo, especialmente quando veda o preconceito e a discriminação, pois o objetivo da Lei é o bem estar de todos, o que envolve reprodução e prazer. Mas isso não está tão claro, nem para aqueles que atuam no legislativo.[15] Se já não fosse motivo suficiente para polêmicas, além da união homoafetiva há a discussão acerca dos transexuais. O transexual se identifica psicológica e socialmente com o sexo oposto, e há uma necessidade de harmonização psicossexual, pois refere-se a direitos personalíssimos, que existem muito antes da formação do Estado. O indivíduo possui todas as características físicas do sexo constante da sua certidão de nascimento, porém se sente como pertencente ao sexo oposto, um homem vivendo em corpo de mulher e vice-versa. “O transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação ou auto-extermínio”.[16] Para considerar uma pessoa como sendo transexual, esta não poderá sofrer nenhum outro sintoma de transtorno mental, como esquizofrenia, nem estar associado a qualquer anormalidade intersexual. Portanto, os homoafetivos e lésbicas, não têm dúvidas ou desconforto quanto ao seu gênero ou sexo, apenas têm preferências por pessoas do mesmo sexo; travestis, podendo vir até mesmo modificar o corpo com silicone, não sentem desconforto com seu sexo anatômico; também não se considera transexual um homem efeminado que ainda sente-se homem, ou mulher masculina que ainda assim não tem dúvida de que é mulher. Uma maneira de propiciar o bem estar é pela “cirurgia de redesignação sexual”, obviamente não foi e nem é bem vista pela sociedade, mas por outro lado, não é possível reprimir a vontade das pessoas, sob pena de violação de tratados internacionais, especialmente a declaração dos direitos do homem (mulher). No Brasil, a que mais chamou a atenção foi a cirurgia de Roberta Close, nascida como Luis Roberto Gambine Moreira, realizada na Inglaterra em 1989, e logo após a intervenção cirúrgica, deu início a luta pelo direito de trocar o seu nome, que se deu quinze anos depois na 9ª Vara de Família do Estado do Rio de Janeiro. Porém, para isso acontecer, foi necessário que passasse por vários médicos especialistas para comprovar que possuía aspecto hormonal feminino. Em relação às mulheres é comum a cirurgia para a retirada das mamas. Para sustentar as decisões de mudança de prenome, o apontamento do artigo 3º, IV, da Constituição Federal de 1988[17], é fundamental. O casamento é autorizado para as pessoas transexuais, mas discute-se acerca da possibilidade do parceiro descobrir sobre a condição de transexual somente após o casamento e pleitear a anulação do mesmo. Outros ainda sustentam que o reconhecimento de sua condição feminina desautoriza a anulação, por ser contraditório ao direito conferido. Então, porque não inserir à margem do registro, que se trata de um transexual? Talvez, seja uma discussão sobre o direito à intimidade do transexual e do hipotético direito de quem se relaciona com ele. Em relação à adoção, também neste caso, não encontramos empecilhos, nem em relação ao depósito de óvulos, pois no tocante à filiação a garantia é indiscutível e Constitucional. A aposentadoria tratada na Lei de Previdência Social nº 8213/91, artigos 48 e 52[18], por interpretação lógica, deverá permitir o enquadramento na condição de mulher e vice-versa. O objetivo jurídico é atender e tutelar os direitos das pessoas, não importando as condições físicas e/ou psicológicas, tratando-se apenas de reconhecimento do direito de liberdade das pessoas. Trata-se de humanos que precisam ser reconhecidos de fato e juridicamente no que optarem. O que resta, portanto, é o reconhecimento das diferenças e do multiculturalismo, e não da leitura sensacionalista carregada de julgamentos morais, ainda mais quando trata-se de inclusão para proteção na ordem jurídica.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-109/direito-sexual-e-reprodutivo-breves-consideracoes-criticas-sobre-a-distancia-do-reconhecimento-do-multiculturalismo/
Conduta médica no atendimento a pacientes testemunhas de jeová
O presente estudo apresenta discussão acerca de uma grande e contínua preocupação que atinge os profissionais médicos e os demais profissionais da área da saúde de uma forma global: o atendimento e o tratamento médico de pacientes Testemunhas de Jeová. A análise desta problemática exige avaliação da legislação constitucional, infraconstitucional e ética, bem como do entendimento dos Conselhos de Medicina e dos Tribunais pátrios. Pode-se afirmar, apesar de toda controvérsia alimentada no mundo jurídico e em especial pelos indivíduos Testemunhas de Jeová que questionam a matéria, que é permitido ao profissional médico atuar em favor do paciente, submetendo-o à transfusão de sangue, apenas em casos de iminente risco de morte, mesmo contrariando a vontade do paciente ou de seu representante legal. Havendo respaldo para tanto da legislação pátria, do entendimento jurisprudencial, e, finalmente, o enfoque especial gerado pelo Código de Ética Médica e pelo entendimento dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem grande importância nos atendimentos médico-hospitalares em todo o território brasileiro, pois afeta a conduta médica e o dever de salvar vidas, bem como afeta o direito constitucionalmente garantido à liberdade de crença religiosa e consequentemente a dignidade da pessoa humana. Será abordada de forma muito sucinta a questão religiosa que cerca a recusa da transfusão de sangue pelos pacientes Testemunhas de Jeová, sendo o foco as decisões e orientações dos órgãos competentes, dos tribunais e da legislcação em vigor sobre a problemática, de modo a verificar a realidade da situação em si discutida. Para finalizar, o objetivo precípuo do estudo é observar na prática estas complexas situações e delimitar as condutas devidas a serem tomadas pelos profissionais médicos que se deparam com estes lamentáveis, mas reais e cada vez mais ocorrentes, casos. 2 CONDUTA MÉDICA NO ATENDIMENTO A PACIENTES TESTEMUNHAS DE JEOVÁ O grande litígio que cerca esta matéria na seara médica é a recusa de transfusão de sangue por parte de pacientes Testemunhas de Jeová, sendo situações cada vez mais frequentes, que geram extremo conflito na relação médico-paciente. Tal situação se configura diante de uma urgência ou emergência médica, bem como se configura em um procedimento eletivo que possa vir a necessitar de transfusão de sangue em seu interregno. Assim, de um lado figura a autonomia do paciente em recusar o tratamento médico por crença religiosa; e de outro lado figura a autonomia do médico em atuar de forma a zelar pela vida e saúde do paciente. Desta forma, nestas situações, cabe ao médico observar os dispositivos legais e éticos vigentes no território brasileiro para direcionar sua conduta. Primeiramente, cabe mencionar o artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sendo o principal deles a vida, da qual decorrem todos os demais, inclusive a garantia à liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença religiosa abarca a liberdade de cultos, bem como a faculdade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. Para Alexandre de Moraes, "a religião é um complexo de princípio que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto" (2007, p. 119). Os pacientes e/ou seu representante legal, Testemunhas de Jeová, alegam a liberdade de crença e de consciência, o direito à intimidade e à privacidade, os princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, questões bíblicas, bem como riscos da transfusão sanguínea. Urge aclarar, desde já, que este estudo não tem o condão de analisar referido posicionamento religioso, mas tão-somente demonstrar na prática médica o devido atuar médico diante de situações onde ocorre a recusa à transfusão de hemoderivados. Denota-se, assim, um conflito de dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado, o direito à vida e, de outro, a liberdade de crença. Como será discorrido adiante, nos casos em apreço, a restrição à liberdade de crença religiosa é sopesada e adequada a fim de preservar a saúde do indivíduo, pois o direito à vida antecede o direito à liberdade de crença. Já no âmbito do direito penal, importa mencionar o artigo 135 do Código Penal, que considera crime deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparado ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. A pena é de detenção, de um a seis meses, ou multa, sendo aumentada de metade se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada se resulta morte. Ainda do Código Penal, extrai-se do artigo 146, § 3º, inciso I, que trata de crime de constrangimento ilegal, ser lícita a intervenção médica/cirúrgica sem consentimento do paciente ou seu representante legal, se justificada por iminente risco de vida. Ademais, há disposições no Estatuto da Criança e Adolescente que, de forma especial, estabelecem o dever de proteção à vida e à integridade de indivíduo menor de idade. Adentrando ao âmbito ético médico, torna-se imprescindível a análise do Código de Ética Médica, que, em sua evolução, reforçou a autonomia do paciente e o esclarecimento de forma adequada sobre as condições e todos os detalhes dos procedimentos/tratamentos propostos ao paciente. Além disso, deixa clara a prevalência da decisão do paciente ou de seu representante legal na escolha do tratamento médico, salvo em situações de iminente risco de morte, onde o mesmo Código impõe limitações. Neste norte, colhe-se do Código de Ética Médica: “Capítulo III – Responsabilidade Profissional É vedado ao médico: Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.(…) Capitulo IV – Dos Direitos Humanos É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.(…) Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.(…) Capitulo V – Relação com pacientes e familiares É vedado ao médico: Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”. (Código de Ética Médica, 2009).  No mesmo sentido, os Princípios Fundamentais mencionados no Código de Ética Médica: “Capitulo I – Princípios Fundamentais II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”. (Código de Ética Médica, 2009). Os dispositivos supracitados resguardam o respeito e a defesa da vida do paciente, sendo dever do profissional médico atuar em seu favor. Ao mesmo tempo, deixam claro que a vontade do paciente ou de seu representante legal não tem guarida em casos de iminente risco de morte. Sendo oportuno mencionar que, conforme os incisos VII e VIII do Capítulo I do CEM, ao médico é garantida a autonomia e liberdade profissional, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência, salvo em situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Ao passo que, se ocorrer qualquer fato que, a critério do médico, prejudique o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder (artigo 36, § 1º, do CEM). Desta feita, através da legislação acima analisada, apesar de haver no âmbito constitucional uma aparente colisão entre dois princípios fundamentais consagrados, em casos de iminente risco de morte, resta reconhecida a prevalência do direito à inviolabilidade da vida, com o intuito de evitar a concretização de um dano irreparável ao paciente. Neste norte, urge transcrever decisões judiciais a respeito: “APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido”. (BRASIL. AC 70020868162, 2007). Ainda: “DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. O recurso de agravo deve ser improvido porquanto à denunciação da lide se presta para a possibilidade de ação regressiva e, no caso, o que se verifica é a responsabilidade solidária dos entes federais, em face da competência comum estabelecida no art. 23 da Constituição federal, nas ações de saúde. A legitimidade passiva da União é indiscutível diante do art. 196 da Carta Constitucional. O fato de a autora ter omitido que a necessidade da medicação se deu em face da recusa à transfusão de sangue, não afasta que esta seja a causa de pedir, principalmente se foi também o fundamento da defesa das partes requeridas. A prova produzida demonstrou que a medicação cujo fornecimento foi requerido não constitui o meio mais eficaz da proteção do direito à vida da requerida, menor hoje constando com dez anos de idade. Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação pata decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida. A restrição à liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada à preservar à saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderando-se entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida, principalmente em se tratando não da vida de filha menor impúbere. Em conseqüência, somente se admite a prescrição de medicamentos alternativos enquanto não houver urgência ou real perigo de morte.Logo, tendo em vista o pedido formulado na inicial, limitado ao fornecimento de medicamentos, e o princípio da congruência, deve a ação ser julgada improcedente. Contudo, ressalva-se o ponto de vista ora exposto, no que tange ao direito à vida da menor”. (BRASIL. AC 2003.71.02.000155-6, 2006). Por fim: “CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA.” (BRASIL. AC 595000373, 1995). Além disso, interessante mencionar o posicionamento do Conselho Federal de Medicina e de seus Conselhos Regionais, a começar pelo Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina: “(…) Existem, portanto vários elementos éticos e legais que abrigam a atuação do medico em agir sem o consentimento do paciente diante de evidente necessidade de preservar a vida com base em comprovação científica.. Entretanto, são complexas suas interpretações e conseqüentemente suas aplicações, merecendo por vezes a análise concreta dos fatos para melhor conduta a ser adotada. (…) A evolução técnica e cientifica das ultimas décadas, especialmente na área  das doenças hemotransmissíveis,  trouxe novos conceitos  com relação ao uso de sangue e hemoderivados como opção terapêutica. O conhecimento dos riscos deste procedimento  exigiu das autoridade a implantação de normas para o do manuseio do sangue desde a doação ate o ato transfusional,como também restringiu as indicações do seu uso em beneficio dos pacientes.  Alternativas terapêuticas são indicadas para a  recuperação dos níveis de hemoglobina  especialmente em pacientes clínicos crônicos e  em algumas situações cirúrgicas  graves ou não, assim como fatores de coagulação recombinantes  tem sido desenvolvidos em   substituição   aos hemoderivados. O médico deve estar atualizado quanto a essas alternativas e utilizá-las sempre que for possível em respeito a vontade do paciente de não receber a transfusão. Entretanto ate o momento não há qualquer elemento terapêutico que substitua o sangue e seus componentes  quando a sua falta compromete o aporte de oxigênio aos tecidos nobres e vitais a ponto de colocar  a vida em risco. Esse é o momento  onde o medico esta abrigado ética e legalmente para agir sem o consentimento do paciente.  Em síntese, a conduta ética a ser adotada diante de testemunhas de Jeová que se negam ao uso de transfusão sanguínea o médico deve: 1) Sem iminente risco de morte: -reconhecer o direito a liberdade de crença; – atualizar-se com relação a alternativas terapêuticas à transfusão sanguínea e hemocomponentes e utilizá-las quando indicadas; – esclarecer ao paciente ou responsável legal, o diagnóstico, riscos, indicações terapêuticas e alternativas disponíveis; – esclarecer ao paciente  que respeitará sua convicção religiosa e utilizará de todos os meios para evitar a transfusão, porém em situação de morte iminente e se a transfusão foi essencial para a manutenção da vida, o paciente será transfundido. – se houver a permanência do conflito entre medico e paciente, o medico poderá renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao medico que lhe suceder ( CEM -Art. 36, inciso 1°). 2) Em situação de risco de morte iminente  e quando a transfusão de sangue e hemocomponentes for essencial para a manutenção da vida, o paciente devera ser transfundido, independente de sua vontade”. (CREMESC. Consulta nº 2044/2011). O Conselho Federal de Medicina assim se posiciona: “Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º – Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus  responsáveis. 2º  – Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue,  independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis”. (CFM. Resolução nº 1.021/80). De igual entendimento, Parecer do CRM/PB: “EMENTA: O médico pode realizar transfusão sanguínea diante da recusa de paciente testemunha de Jeová, desde que esteja configurado o perigo de vida. (…) A paciente de iniciais M.F.M.N.S., que se encontra internada no Hospital do Trauma, apresenta pelo ultra-som Doppler colorido estenose entre 60 a 90% em carótida comum direita, risco cardiológico grau II, hemoglobina de cerca de 8g/ 100ml e elevação dos níveis de uréia no sangue. Necessita ser submetida a ato cirúrgico, amputação da perna direita, por doença arterial isquêmica, não passível de revascularização e já estudada por arteriografia. No momento não está em risco iminente de vida, mas a tendência é de evolução para esse estado. A família já foi esclarecida acerca do risco trans-operatório de morte ou de acidente vascular cerebral isquêmico, caso não seja realizada a transfusão antes e durante o procedimento cirúrgico. A família e seu procurador legal já assinaram documento, anexado ao prontuário, se negando a transfusão. (…) CONCLUSÃO Com base em tudo que foi exposto concluo, respondendo ao consulente, que: 1. No caso em tela, considerando as condições clínicas da paciente, relatadas pelo consulente, quando da apresentação da consulta a esse Conselho, não restando configurado o perigo de vida, há que se respeitar a decisão da paciente de não ser submetida à transfusão sanguínea. Cabe, nesse ponto, esclarecer que perigo de vida não é uma mera hipótese, uma possibilidade, o que configura o risco, mas uma situação real. na qual a vida do paciente está ameaçada concretamente. 2. O consulente tem o direito, em face da recusa da paciente, de afastar-se da condução do tratamento, tendo para isso que observar rigorosamente as disposições dos artigos 7º e 61 do CEM. 3. Apenas diante do perigo de vida, repito, situação concreta, na qual a vida da paciente esteja ameaçada concretamente, está o médico amparado para realizar transfusão sanguínea, devendo, contudo, fazer uso desse recurso, com moderação e bom senso, na medida necessária apenas para retirar a paciente do perigo, e não para conduzi-Ia a níveis hematimétricos tradicionais. Por fim, cabe realçar, por se mostrarem absolutamente pertinentes, as recomendações contidas na parte conclusiva do parecer CRM-PB N° 03/2001 as quais, em síntese, orientam que o médico, diante de casos dessa natureza, compartilhe as suas decisões com outros membros da equipe médica (intensivista, hematologista, anestesista etc), que registre todas as circunstâncias que fundamentaram suas decisões no prontuário médico e, por fim, que se socorra da orientação e do acompanhamento da comissão de ética do hospital”. (CRM/PB. Processo-Consulta nº 11/2005). Outro Parecer do CRM/PB: “(…) Em decorrência do exposto acima, recomendo que: 1. Seja constituída uma junta médica composta pelo médico assistente, um hematologista e um intensivista para caracterizar a situação de Risco Iminente de Vida e se a reposição de sangue e/ou hemoderivados é a única alternativa capaz de reverter a situação; 2. Todo o processo de tratamento seja supervisionado pela Comissão de Ética Médica do Hospital; 3. caso a junta caracterize a situação de iminente risco de vida e que a reposição sanguínea se constitua na única alternativa capaz de salvar a vida do paciente DEVE O MÉDICO ASSISTENTE prescrever a TRANSFUSÃO DE SANGUE, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis; 4. todas as decisões médicas sejam registradas no prontuário médico.” (CRM/PB. Processo-Consulta nº 03/2001). Compartilhando o mesmo entendimento, Parecer do CRM/PR: “EMENTA: Paciente testemunha de Jeová  – Recusa transfusão de sangue – Cirurgia  – Responsabilidade profissional (…) Quanto ao atendimento de pacientes que se neguem a transfusão sanguínea, o Conselho Federal de Medicina resolveu, através da Resolução CFM nº 1021/80, que: Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico,  obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º – Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus  responsáveis. 2º  – Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue,  independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.” (CRM/PR. Parecer nº 2.382/2012). Para finalizar, Parecer do CRM/PR: “O artigo 5o da Constituição Federal trata dos direitos e garantias fundamentais do homem e o principal deles é a vida, da qual, aliás, decorrem todos os demais. A convicção religiosa, seja qual for, não pode induzir alguém ao suicídio nem permitir que o médico, ou qualquer outro cidadão, seja cúmplice na destruição do bem maior que a natureza concedeu ao homem, que é a sua vida. Por sua vez, o artigo 2o do Código de Ética Médica em perfeita consonância com os direitos e garantias fundamentais do ser humano, defere ao médico o dever de preservar a saúde de todos quantos lhe procurem e em benefício dos quais deve agir com máximo de zelo de sua capacidade profissional. É essencial para o aperfeiçoamento da raça humana que os direitos fundamentais de cada um, como à vida e à vida com liberdade e dignidade, sejam sempre respeitados, lembrando-se, outrossim, que nem a própria lei pode sobrepor-los, pois indivíduos doentes ou fanáticos com o poder de legislar, ditam e impõem as regras que melhor lhes aprouver. O dever do médico é curar, tanto que a medicina é uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza.  A religião, seja qual for, não pode pretender que o médico ignore as regras fundamentais de sua profissão, colaborando, com sua omissão, para o fim da vida de seu paciente, pouco importando que este se rebele contra suas decisões. Se a transfusão de sangue é indispensável para livrar o doente do iminente perigo de vida, não cabe ao médico perguntar-lhe ou a seus familiares ou responsáveis, quais suas convicções religiosas. Cabe-lhes, sim cumprir o seu dever profissional e também a sua missão primordial, estampada no artigo 2o do Código de Ética Médica.” (CRM/PR. Parecer nº 1.072/98). Após todo o estudo realizado, desde a legislação constitucional, infraconstitucional e ética até o posicionamento jurisprudencial e o posicionamento do CFM e dos Conselhos Regionais, nos casos em que o paciente ou seu representante legal se negar à realização de transfusão de sangue por convicções religiosas (a exemplo dos Testemunhas de Jeová), conclui-se que apenas em caso de iminente de risco de morte o profissional médico pode contrariar a vontade do paciente ou de seu representante legal.   Tendo em vista que, apesar de constranger o paciente, contrariar sua vontade e ferir frontalmente o seu direito, o profissional médico está atuando em benefício e na proteção da vida deste indivíduo, garantia fundamental diametralmente superior à liberdade de crença religiosa. Neste sentido, torna-se fundamental o devido esclarecimento ao paciente e/ou seu representante legal de que, em caso de risco fatal, a legislação e o posicionamento dos Conselhos de Medicina e dos Tribunais concedem ao profissional médico a possibilidade de ministrar hemoderivados até contrariamente a sua vontade; inserindo todas estas informações, bem como sobre a gravidade do caso (iminente risco de morte) no prontuário médico, conjuntamente com os demais profissionais de saúde atuantes no caso em específico. Em se tratando de pacientes incapazes, menores ou inconscientes, o posicionamento não se altera, pois, em que pese não deterem capacidade para expressar sua vontade e esta ser substituída pela vontade de seu representante legal, quem está sofrendo o risco é o paciente e não o representante legal, de modo que o representante legal não tem o direito de dispor sobre a vida alheia. Até mesmo porque, nestes casos, a vontade do representante legal é substituída em prol de interesses maiores, principalmente por se tratar do direito à vida. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, conclui-se que a problemática abordada é muito delicada, complexa e cada vez mais ocorrente, estando o profissional médico obrigado a proceder a transfusão de sangue no paciente Testemunha de Jeová, mesmo sem seu consentimento ou de seu representante legal, nos casos de iminente risco de morte. Tal entendimento é fruto da conclusão da legislação atual sobre a matéria, dos tribunais pátrios e dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, que privilegiam o direito à vida em detrimento do direito à liberdade de culto e demais decorrentes. Quando ocorrer, na prática, este processo sempre será desgastante, sofrido e extremamente complexo, sendo aconselhável a conversa prévia com o paciente e/ou seu representante legal sobre a possibilidade de transfusão sanguínea em determinado procedimento e a obrigatoriedade do médico optar pela transfusão em caso de risco iminente de morte. Além disso, o prontuário médico deve conter toda descrição fática, bem como ter o apoio da equipe de saúde atuante, tudo de forma a gerar uma atuação médica ética, legal e transparente para com o paciente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-107/conduta-medica-no-atendimento-a-pacientes-testemunhas-de-jeova/
Controle de natalidade como violador da Dignidade Humana
O trabalho apresentado tem o objetivo de analisar em que medida o controle de natalidade viola o princípio da dignidade humana. Fundamenta-se teoricamente em estudos doutrinários, históricos, políticos, opiniões de especialistas e legislação pertinente. Primeiramente, elabora-se uma análise da importância dos princípios no ordenamento jurídico e sua influência na atuação dos profissionais de Medicina no cuidado da vida e da saúde humana. Em seguida, expõem-se as dimensões que o princípio da dignidade humana apresenta, considerada por Ingo Sarlet como “limite e tarefa do Estado e da comunidade”, sendo ela um fator preponderante para a autodeterminação livre e consciente da pessoa. A partir daí, explica-se a fonte dos programas de controle demográfico, os argumentos sustentados por seus simpatizantes e o rompimento do mito da bomba demográfica. Finaliza-se com a exposição do controle de natalidade como forma de supressão dos direitos reprodutivos; e que historicamente, é superado pelo planejamento familiar, com o reconhecimento do dever do Estado em fornecer os recursos necessários à pessoa para a tomada de decisões nos assuntos relativos à sua reprodução.[1]
Biodireito
A reprodução humana há muito tempo deixou de ser um ato meramente fruto do acaso ou do destino. O progresso da medicina tem proporcionado ao ser humano uma infinidade de meios de torná-lo um interventor desta atividade natural. Deste modo, sua reprodução restou como uma problemática das relações interpessoais, tornando-se objeto de ciências como o Direito e a Bioética. O crescimento demográfico desordenado e a má distribuição de recursos têm suscitado, em todas as esferas sociais, indagações acerca da possibilidade de um “controle de natalidade”. Porém, esta intervenção, seja na modalidade coletiva ou individual, entra em conflito com uma outra conquista do progresso: o princípio da dignidade humana. O objetivo deste trabalho é verificar em que medida a dignidade da pessoa humana é respeitada em sua integralidade (ou seja, em ambas as dimensões autonômica e assistencial) nas ações de planejamento familiar, no sentido de limitação da prole. Esta dignidade está associada a uma série de ações que possibilitam ao homem obter um status de respeito frente a outros, garantindo-lhe direitos e deveres, inerentes a uma característica única: a sua humanidade. O trabalho é iniciado com uma abordagem dos princípios bioéticos e jurídicos. Neste momento, explicamos seu histórico e algumas concepções do que vem a ser “princípio” durante as transformações sofridas na ciência jurídica. Primeiramente como norma programática, oriundo da razão humana e integrante de um Direito Natural. E após, transmutados a princípios constitucionais, normatizados e informadores do Direito Positivo. Na sequência, explicamos o advento da Bioética, restringindo sua atuação frente à vida humana, baseada numa ordem de valores denominada principialismo. Mais uma vez, os princípios são elevados a categoria de norteadores das atividades humanas. Consolidado o entendimento da função dos princípios, abordamos a dignidade humana mediante sua hierarquização e dupla dimensão. Deste modo, explicamos a sua ligação com o princípio da autonomia nas ações de planejamento familiar. No segundo momento do trabalho, tratamos do planejamento familiar, do princípio da paternidade responsável e do controle de natalidade. Iniciamos com uma abordagem sobre a esterilização, seus tipos, argumentos e sua problemática internacional até o reconhecimento dos direitos reprodutivos. Posteriormente, analisamos como os direitos reprodutivos foram recepcionados no Brasil, através de políticas populacionais, Constituição Federal e dispositivos legais. Também faremos um panorama de como a paternidade responsável tem sido tratada por advogados, profissionais da saúde e políticos. Finalmente, explicaremos qual a ligação entre a paternidade responsável no exercício do planejamento familiar e o respeito da dignidade humana através da autonomia. 1. A DIGNIDADE HUMANA COMO UM PRINCÍPIO JURÍDICO E BIOÉTICO Os princípios são a base dogmática de uma determinada ciência. Nascido do ideário cristão, o princípio da dignidade humana figura como uma conquista de uma novidade, disseminada pelo pensamento ocidental e absorvido pelo ordenamento jurídico, através de sua normatização em nossa Constituição Federal de 1988. A dignidade humana trata-se de um princípio observado tanto nas questões relacionadas ao Direito e à Bioética. Em ambas as áreas do conhecimento, todas as ações devem ser pautadas observando-se o respeito à pessoa, oriundo de uma característica inerente ao ser humano: a sua humanidade. 1.1 PRINCÍPIOS JURÍDICOS: HISTÓRICO, CONCEITO E CONCEPÇÕES TEÓRICAS Importante se faz iniciar este trabalho monográfico através de um desenvolvimento sobre os princípios. Há muito que juristas travam um confronto doutrinário a fim de esclarecer questões referentes a um elemento tão importante na história do Direito Romano-germânico. Segundo o pensamento do jurista Picazo, os princípios são verdades objetivas. São normas jurídicas dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade e que, quase sempre, fazem parte do mundo do “dever-ser”.  Afirma ainda que os princípios têm dupla serventia: a primeira, como critério de inspiração às leis ou normas concretas de um Direito Positivo”; a segunda, por serem normas obtidas “mediante um processo de generalização e decantação dessas leis”.[2] Clemente, em meados de 1916, dizia que assim como quem nasce tem vida física, esteja ou não no Registro Civil, também os princípios “gozam de vida própria e valor substantivo pelo mero fato de serem princípios” estejam ou não nos Códigos. Nota-se claramente a posição anti-positivista do eminente jurista, que lembra a concepção de Scaevola, no sentido de conceituar o princípio como “uma verdade jurídica universal”. Por fim, Clemente chega à formulação de que “princípio de direito é o pensamento diretivo que domina e serve de base à formação das disposições singulares de Direito de uma instituição jurídica, de um Código ou de todo um Direito Positivo”.[3] A Corte Constitucional Italiana formulou, por volta de 1956, um conceito de princípio ao proferir: “Faz-se mister assinalar que se devem considerar como princípios do ordenamento jurídico aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico.”[4] Em 1952, Crisafulli introduz a normatividade nos conceitos até então existentes. Conceitua princípios como “toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.”[5] A complexidade da matéria é claramente refletida quando Guastini expôs seis conceitos distintos de princípios.[6] É necessário ressaltar que todos eles estavam vinculados a disposições normativas. O autor ensina que os princípios são normas providas de um alto grau de generalidade ou são normas providas de um alto grau de indeterminação e que por isso requerem concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam susceptíveis de aplicação a casos concretos. Posteriormente, salienta que a palavra “princípio” pode ser interpretada como normas de caráter programático ou mesmo normas cuja posição elevada na hierarquia das fontes de Direito. E continua seu raciocínio afirmando que princípios são normas que desempenham uma função importante e fundamental no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num ou noutro sub-sistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, do Trabalho, das Obrigações). E para o autor os princípios também são normas dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos casos. Importante ressaltar neste momento uma mudança na substância dos princípios. Durante a velha Hermenêutica constitucional, havia uma carência de normatividade nos princípios. Naquela os princípios eram consideradas normas programáticas. A Doutrina moderna inverteu esta situação, elevando os princípios gerais a princípios constitucionais. Este foi, definitivamente, um marco da evolução do constitucionalismo. Segundo Martins-Costa, princípios e valores são o mesmo, contemplados em um caso sob um aspecto deontológico e sob um aspecto axiológico. Nos princípios, a dinamicidade da positivação é mais nítida, pois deve existir uma adesão moral da comunidade para que a finalidade dessa orientação seja efetivamente concretizada no meio social. Para tanto, através dos princípios, o Direito está se reaproximando da dimensão ética (afastada pelo formalismo legalista), apresentando-se como um sistema axiologicamente orientado. Substitui-se o modelo da incomunicabilidade entre o Direito e as demais instâncias sociais por um modelo de conexão, comunicabilidade e complementariedade.[7] A Constituição Federal de 1988 é um exemplo do novo modelo axiologicamente orientado. As constituições anteriores se limitavam a definir as normas de organização e competência do Estado, enquanto que a atual é notadamente ”principiológica”, transformando em direito positivo, certos princípios, considerados até então, como pré-positivos. Nesta esteira seguiremos mais adiante quando tratarmos do princípio da dignidade humana, o qual ganhou evidente destaque como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito. Segundo Paulo Bonavides, a juridicidade dos princípios passa por três fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. A fase jusnaturalista (a mais antiga e tradicional) é caracterizada pela abstração dos princípios e sua deficiência normativa. Esta era posição que divergia de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça. Com o advento da Escola Histórica do Direito, o jusnaturalismo foi considerado uma variante da velha metafísica jurídica e cedeu lugar a um positivismo forte, dominante e imperial. Berger substituiu a expressão “princípio de Direito Natural” por “idéia de Direito”, manifestando-se que era de bom tom menosprezar a Filosofia do Direito e fazer do Direito Natural uma aberração. [8] Por volta de 1880, Bobbio referiu-se a um artigo de Vitório Scialoja, que marcava o auge do positivismo. Este exprimiu sua desconfiança frente a eqüidade e uma total devoção às leis. [9] Bobbio ainda escreve que: “O prestígio da concepção positivista do Direito era tal que até alguns juristas austríacos, não obstantes o chamamento aos princípios de Direito Natural contido no art. 7° do seu Código Civil, interpretaram os princípios gerais como princípios de Direito Positivo.” [10] Logo após, fixa a posição de Del Vecchio ao consumar a ruptura do domínio do positivismo tocante à teoria dos princípios, teoria cuja veracidade era posta em dúvida “ao colocar o problema nos termos desta alternativa: estão os princípios gerais do Direito dentro ou fora do sistema?”. E foi com semelhante indagação que, em 13 de dezembro de 1920, na sua aula inaugural de seu curso de Filosofia do Direito inicia uma reavaliação da problemática dos princípios debaixo da manifesta inspiração jusnaturalista. Sua intenção era um retorno por novas vias reflexivas para rebentar os cárceres do legalismo positivista. Norberto Bobbio, ao referir-se a um artigo de 1921 da autoria de Del Vecchio, diz que o mesmo rompe a “cadeia das opiniões conformes” e sustenta que os Princípios Gerais do Direito evocados pelo art. 3° do Código Civil italiano de 1865 deveriam ser entendidos como princípios de Direito Natural. No tocante a contribuição de Del Vecchio, Clemente escreveu: “Quão sugestivas são as considerações que o eminente professor italiano dedica aos sistemas jurídicos, à necessidade para o jurista e para o juiz de apropriar-se deles e dominá-los” [11]. Na Alemanha, o jusnaturalismo produziu reflexões que podem ser as causadoras do vínculo de diversos juristas à doutrina do “eterno retorno”. “Ninguém sabe nada de seguro acerca desse Direito Natural, mas todo mundo sente com segurança que ele existe”. Segundo Paulo Bonavides, tais palavras tornam explícito o apego à Velha Doutrina. O jusnaturalismo concebe os princípios gerais de Direito em forma de “axiomas jurídicos” ou normas estabelecidas pela razão (por conseqüência normas universais do bem obrar). Segue ainda o jurista brasileiro asseverando que “são os princípios de justiça, constitutivos de um Direito Ideal. São, na esteira de Flórez-Valdés, “um conjunto de verdades objetivas derivadas da lei divina e humana”. Para o jusnaturalismo, o ideal de justiça está indissociável dos princípios gerais do Direito. Porém, Enterría diz que “a formulação axiomática” de tais princípios “os arrastou ao descrédito”. Neste sentido, Paniagua entende que: “Em conclusão e em resumo, podemos dizer que a diferença mais destacada entre a tendência histórica ou positivista e a jusnaturalista radica em que esta última afirma a insuficiência dos princípios extraídos do próprio ordenamento jurídico positivo, para preencher as lacunas da lei, e a necessidade conseqüente de recorrer aos do Direito Natural, enquanto que a corrente positivista entende que se pode manter dentro do ordenamento jurídico estatal, com os princípios que deste se podem obter por analogia. (…) Mas esta é, antes de tudo, uma questão de lógica: a suficiência ou insuficiência do ordenamento jurídico; e só depois de resolvida, sem agitar o fantasma do Direito Natural, dever-se-ia começar a determinar, caso a conclusão seja a da insuficiência, os métodos de suprir essas lacunas”. [12] O juspositivismo consiste em uma concepção teórica do Direito distinta. Nele, os princípios, começam a ser inseridos nos códigos e sua força normativa ganha um contorno mais nítido. Corroborando a afirmação de Paulo Bonavides, eles atuam como fonte normativa subsidiária.     Cañas considerou a atuação dos princípios nos códigos como uma “válvula de segurança”. Esta atribuição não lhes conferia força normativa superior nem anterioridade à lei. Sua função se limitava a fazer entender sua eficácia de modo a evitar o vazio normativo. [13] O declínio do Direito Natural clássico foi ratificado com o surgimento da “Escola Histórica do Direito” e a elaboração dos códigos. Desde então, o século XIX foi marcado pelo desenvolvimento do positivismo jurídico (que perdurou em expansão até a primeira metade do século XX). O jurista espanhol Flórez-Valdés definiu que a concepção positivista (ou histórica) sustenta basicamente que os princípios gerais do Direito equivalem aos princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de fundamento. E continua: Estes princípios se induzem por via de abstração ou de sucessivas generalizações, do próprio Direito Positivo, de suas regras particulares (…). Os princípios, com efeito, já estão dentro do Direito Positivo e, por ser este um sistema coerente, podem ser inferidos do mesmo. Seu valor lhes vem não de serem ditados pela razão ou por constituírem um Direito Natural ou ideal, senão por derivarem das próprias leis. [14] Em alusão às palavras de Norberto Bobbio, Paulo Bonavides diz que o juspositivismo, ao fazer dos princípios na ordem constitucional meras pautas programáticas supralegais, tem assinalado, via de regra, a sua carência de normatividade, estabelecendo, portanto a sua irrelevância jurídica. [15] Em Teoria dell’Ordinamento Giuridico, Bobbio expõe de maneira mais clara: “Os princípios gerais são, ao meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas gerais. O nome de princípios induz em engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios são ou não normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devem ser normas também eles: se abstraio de espécies animais e obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas?” [16] A última fase dos princípios no ordenamento jurídico é conhecida como o “pós-positivismo”. A partir da segunda metade do século passado, as constituições de diversos países foram absorvendo os princípios em seus textos. A Constituição Federal do Brasil de 1988 não se distanciou desta nova concepção, assumindo sua característica de constituição principiológica. De acordo com Ávila, tanto o princípio quanto a regra são espécies normativas. A principal diferença entre elas é sua destinação no mundo material. As regras são normas descritivas (pretensão imediata) em que o ordenamento jurídico, na medida em que organiza uma escala axiológica (previamente aceita pela sociedade), “estabelecem obrigações, permissões ou proibições mediante a descrição de conduta a ser cumprida” (orienta o fazer ou o não-fazer). Os princípios são normas finalísticas (pretensão mediata) baseadas na obediência de condutas que materializam um valor. Têm a “qualidade de determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento”. [17] A função dos princípios nos ordenamentos jurídicos atuais tem sido o principal tema dos debates entre juristas. Para os que ainda analisam os princípios sob uma ótica positivista, aqueles atuam de forma supletiva e subsidiária. No entanto, a vertente pós-positivista fala de uma concepção principial do direito, devido à transformação dos princípios em normas-valores nos textos de constituições contemporâneas. Tornam-se, enfim, fundamento de toda ordem jurídica e critérios de interpretação do próprio texto constitucional. [18] Os princípios jurídicos tornaram-se normas-valores a partir de sua inserção nos textos constitucionais. São parâmetros que regulam todas as atividades de um determinado ordenamento jurídico (especificamente). Os princípios bioéticos tiveram origem em valores reconhecidos amplamente no estudo das áreas biomédicas. Estes são diferentes dos princípios jurídicos por não serem absolutos a priori. São considerados relativos (conseqüentemente respeitados de forma relativa) e carecem de um estudo de caso.     1.2 PRINCÍPIOS BIOÉTICOS O neologismo “bioética” foi publicado pela primeira vez, na língua inglesa, no livro Bioethics: bridge to the future, publicado em 1971 e de autoria do oncologista e biólogo Van Rensselaer Potter. O termo “bioética” serviria como referência das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida. Seria uma ciência que garantiria a sobrevivência do homem face aos efeitos de sua atividade no planeta (uso indiscriminado dos recursos naturais, destruição da fauna e flora, o superaquecimento global, etc). [19] Gradualmente, as questões referentes ao meio ambiente foram deslocadas para núcleos específicos. Porém, era inquestionável a preocupação da atividade humana sobre sua própria espécie. Assim, o termo bioética, de acordo com a Encyclopedia of Bioethic, passou a ser considerado o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais. [20] Durante o século XX fomos testemunhas de uma Revolução Biotecnológica. Temas como clonagem, reprodução assistida, eutanásia, aborto, entre outros, saíram dos núcleos estritamente acadêmicos e começaram a fazer parte do cotidiano. Tornaram-se uma realidade palpável e de interesse do homem comum. Com o fim do regime nazista houve a divulgação de diversas práticas biomédicas que ameaçavam valores internacionais (o respeito à vida, à pessoa e sua dignidade, por exemplo). O Governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. Foi estabelecido, como objetivo principal da Comissão, identificar os princípios éticos “básicos” que deveriam conduzir a experimentação em seres humanos, o que ficou conhecido como Belmont Report. O Relatório Belmont, divulgado em 1978, apresenta os princípios éticos, considerados básicos, que deveriam nortear a pesquisa biomédica com seres humanos: o princípio do respeito às pessoas; da beneficência e da justiça. Um ano depois Beuchamp e Childress escreveram o livro Principles of biomedical ethics. Esta obra foi um marco importante na Bioética na medida em que lhe apresentava uma linha de princípios conhecida como Principialismo. De acordo com a análise dos autores, os problemas nas áreas biomédicas devem ser analisados a partir de quatro princípios não-absolutos: respeito à autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça. [21] Conforme Fernando Lolas, a autonomia é conceituada como a independência em relação a controles externos e capacidade para atuar segundo uma escolha própria. A autonomia só pode ser evidenciada quando há uma escolha, uma decisão. Porém, o seu exercício carece das informações pertinentes aos efeitos das opções que podem ser tomadas. Neste caso, a autonomia estaria viciada por uma falta de capacidade da pessoa. A falta de capacidade certamente não se limita à educação ou escolaridade. Estende-se a todo tipo de situação a qual é prejudicada: a intencionalidade dos atos; a compreensão que o agente tem deles e a ausência de coerções ou limitações. Sua relação com o respeito à autoridade e a obediência social é tranqüila e não-contraditória. Ocorre que, podemos limitar o exercício de nossa autonomia. Neste sentido, a autonomia é limitada pela necessidade do convívio social, pela comunhão de uma crença, por outras pessoas, entre outros. Na Bioética, é fundamental a autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisões informadas. De acordo com Clotet e Feijó, o respeito à autonomia aceita a autodeterminação da pessoa e sua capacidade em decidir o que ela entende ser o melhor para si [22]. São nas regras de conduta que os princípios são praticados. Estes são traduzidos em atitudes como “respeitar a privacidade dos outros”, “dizer a verdade”, “fornecer informação fidedigna”, “pedir permissão para intervir no corpo das pessoas”. [23] A Autonomia da pessoa é gradativamente diminuída na medida em que esta, sendo inserida como pólo hipossuficiente de uma relação, tem sua autodeterminação debilitada. As causas dessa hipossuficiência podem ser de ordem psicológica, econômicas ou sociais. Charlesworth expõe claramente que Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se autônomo se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública. Da mesma forma, a assistência à saúde básica é uma condição para o exercício da autonomia. [24] A tradução mais clara desse princípio é “não causar danos intencionais”. É uma das premissas mais difundidas na ética médica e remete à idéia hipocrática de “primeiro, não causar danos”. Sugere-se que a não-maleficência é um aspecto da beneficência, devido a uma aparente proximidade entre a atitude de “não causar danos” e “fazer o bem”. [25] Porém a diferenciação entre os princípios citados deve se basear no conceito apropriado de dano ou mal. A dificuldade desta cisão está na diversidade de pontos de vista das diversas doutrinas e crenças. Um exemplo desta diversidade reside na medicina grega, juridicidade de Roma e o contexto religioso. Para os gregos a maldade era tida como a contrariedade à ordem da natureza. Já os romanos, com suas tradições jurídicas, o mal era o contrariava a lei. E no contexto religioso, o mal é o que transgredia a ordem divina. Devido a esta imprecisão de conceito a não-maleficência deve ser especificada de acordo com o contexto a que se insere. Em algumas situações podem ser refletidas em atitudes de “não matar”, “não causar sofrimento” ou “não ofender”.[26] A beneficência implica numa obrigação moral de agir em benefício dos outros. E esta idéia vai além. Deve ser analisada sob uma perspectiva de resultado, e não limitada às etapas ou procedimentos. Neste contexto devemos levar em conta a utilidade do resultado. Realizaremos um balanço sobre os efeitos positivos e negativos sobre a pessoa. A beneficência sempre será obedecida quando os efeitos positivos forem maiores que os negativos. [27] Na prática, especificamente na área da saúde, a beneficência obriga os médicos a usar todas as habilidades e conhecimento técnicos a serviço do paciente, maximizando benefícios e minimizando riscos. [28] As regras de conduta baseadas na beneficência são expressas em normas positivas, ou seja, textos que obrigam a realizar certos atos (diferente da não-maleficência, a qual somos proibidos de realizar outros). Historicamente a beneficência se sobrepunha à autonomia nos casos de enfermidade. O “estar doente”, é caracterizada também como uma dependência e a necessidade de buscar ajuda competente. O enfermo se submete aos médicos e é liberado de seus compromissos sociais (esperando-se que faça o possível para curar-se). A prática da beneficência sem autonomia denomina-se paternalismo. Apesar desta palavra indicar uma ação (ex.: intervenção médica) existe uma forma de paternalismo passivo que consiste em não fazer o que deseja um enfermo para protegê-lo de si mesmo.  Nestes casos, é flagrante um conflito entre os princípios da autonomia e da beneficência. A justiça é um conjunto de ações que visa tratar os iguais de modo igual e os iguais de modo desigual. Formalmente utiliza-se da eqüidade, porém não determina sob que pressupostos deve ser aplicado o princípio. No plano material expõe indagações sobre “o quanto deve receber cada pessoa na medida de seu merecimento”. Normalmente a justiça é vista de forma distributiva, na medida em que ocorre uma “distribuição ponderada, equilibrada e apropriada dos bens e deveres sociais, baseada em normas que detalham o sentido e o fim da cooperação social”. [29] A inquietação no plano material reside quanto à explicação de regras práticas como: “dar a cada um segundo sua necessidade”, “dar a cada um segundo seu mérito”, “tratar todos da mesma forma”. A delimitação sobre as necessidades, mérito e limitações de cada será tão variável quanto forem os partícipes de determinada relação. Ao Direito, coube a tarefa de mediar as novas relações existentes (relação médico-paciente, exercício da autonomia e da paternidade, direitos de personalidade, etc). Por isso, a ciência jurídica deve se valer de uma interdisciplinariedade, utilizando-se de uma linguagem de ampla extensão semântica, capaz de canalizar as exigências axiológicas fundamentais da comunidade, tanto na Bioética quanto no Direito. [30] Uma das tentações do discurso Bioético é enfrentar o legalismo a que constantemente se vê tentado. De uma maneira geral, no âmbito jurídico, quando existe uma lei ou norma legal que regulamenta algo, toda a reflexão sobre o tema é irrelevante. Este tipo de conduta afasta as reflexões ulteriores e extingue o caráter problemático do tema. [31] Os princípios intermediários são evidenciados na medida em que servem como “língua franca”, permitindo assim, a comunicação entre membros de distintas comunidades morais. 1.3 DIMENSÕES DA DIGNIDADE HUMANA A dignidade da pessoa humana é um princípio que é inerente ao ser humano, vinculando-o a direitos e deveres que deve ser respeitado por todos para que sejam garantidas as condições básicas para uma existência saudável. Conforme nos ensina Sarlet, a dignidade humana é  A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um plexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [32] A dignidade da pessoa humana foi recepcionada na Constituição em seu art. 1°, inciso III, como forma de reconhecer o valor que cada ser humano possui a partir de sua existência. Diante da importância do princípio da dignidade surgem reflexões sobre a hierarquização dos direitos fundamentais advindos dos princípios. A título de Direito Comparado, a Corte de Apelação de Paris reconheceu que o direito à moradia expressa de tal forma o princípio da dignidade, que este restringe o direito de proprietários de imóveis (sobre seus possuidores). O Tribunal Constitucional de Portugal (através do Acórdão n° 349/91) considerou inconstitucional a penhora da pensão em demanda executiva. No Brasil, O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul declarou como impenhoráveis os rendimentos oriundos de locativos, quando estes, à falta de outros rendimentos substanciais, assumem cunho alimentar. Em ambas as situações, os entendimentos dos magistrados são norteados por um juízo de valor entre os direitos envolvidos. E um fator relevante é a participação que cada bem jurídico possui na promoção ou proteção da dignidade da pessoa. Nos casos citados, considerou-se que os direitos à moradia e alimentos estavam numa escala de valores superior aos direitos de propriedade e creditícios. Esta escala de valores sugere uma hierarquização dos princípios. Esta atitude não visa a destituição de diretos fundamentais “menos importantes”, e sim, salvaguardar direitos que são intimamente necessários à consecução de uma vida digna para a pessoa. A Dignidade Humana possui características distintas frente ao Estado e à comunidade. De um lado, ela implica em uma garantia negativa (não-fazer), em que o Estado é obrigado a limitar suas atividades em respeito à dignidade pessoal. Do outro, origina uma garantia positiva (fazer), exigindo daquele a proteção, promoção e realização concreta de uma vida digna para todos. Os órgãos, funções e atividades estatais estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa, que impõe a eles o dever de respeito e proteção, que se estende também a terceiros. Todos são obrigados a regular as suas atividades para que não ocorram ingerências à dignidade pessoal do particular. Assim, o princípio da dignidade humana impõe deveres tanto de abstenção, quanto de efetivação (garantias negativa e positiva respectivamente).  As entidades privadas e particulares também estão vinculadas ao princípio da dignidade. Apesar da responsabilidade pela construção de uma ordem jurídica (que atenda às exigências do princípio) ser do legislador e órgãos estatais, é necessário que a ordem comunitária também esteja atenta para questões que podem ferir a dignidade pessoal. Este princípio possui natureza igualitária e exprime uma idéia de solidariedade entre as pessoas que compõem uma comunidade, vinculando todos os seus integrantes. O princípio da dignidade humana, de certo modo, pode ser considerado um “sobre-princípio”, pois dele decorrem vários outros princípios. [33] Atribuímos a ele um caráter irrenunciável, diante da premissa de que a vida digna é desejo de todo ser humano. Tão irrenunciável que se exige do Estado, atitudes intervencionistas sobre atentados da pessoa contra a própria dignidade.[34] Um dos pontos de congruência entre a Bioética e o Direito diz respeito à dignidade da pessoa humana. Esta, por sua vez, assim como qualquer um dos outros dos princípios fundamentais elencados no art. 1° da Constituição Federal de 1988, deve ser respeitado na sua integralidade. E a observância desse dever visa afastar a possibilidade de relativização, que não é apenas uma possibilidade teórica, e sim, tema presente nas ações do Estado e no meio científico. A integralidade da dignidade da pessoa humana é atendida quando o Estado assume um dever de zelar tanto na sua dimensão autonômica quanto na assistencial. Diante da dimensão autonômica, a decisão sobre “ter ou não ter filhos” e “o número de filhos” é de competência exclusiva do casal. Este, protegido através de um Estado que tem o dever de que se faça respeitada (por ele e por terceiros) a autonomia da pessoa, decidirá sobre estas questões de forma livre e autônoma. A autonomia a qual o ordenamento jurídico confere ao indivíduo é a expressão do direito fundamental de liberdade. Este direito teve origem nas revoluções liberais e tem como exclusivo titular, o indivíduo. Como todos os direitos fundamentais de primeira geração, sua característica mais marcante é a sua subjetividade, pois se traduzem nas faculdades ou atributos da pessoa. São direitos de resistência ou de oposição frente à atuação do Estado. E vão além: reforçam na ordem dos valores políticos a diferenciação entre Sociedade e Estado. São por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, na linguagem jurídica mais usual. [35] A dimensão assistencial (ou prestacional) também é fundamental para que a dignidade seja respeitada na sua integralidade. Nesta dimensão, o Estado tem o dever de fornecer todos os subsídios necessários para que a pessoa tenha condições de manter os efeitos de suas decisões. [36] O assistencialismo estatal é subsidiário frente a hipossuficiência da pessoa, que se encontra, em condições desfavoráveis à manutenção da dignidade própria e de sua família. Daí advêm ações do Estado como a Bolsa-Escola e Bolsa-Família. A dimensão assistencial do princípio da dignidade humana requer uma reflexão que tange os direitos fundamentais de segunda geração. Diferente dos direitos de primeira geração os direitos de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Estão ligados ao princípio da igualdade, através de uma reflexão antiliberal deste século. Os direitos de segunda geração foram proclamados pelas constituições marxistas e pela Constituição de Weimar, ganhando fortalecimento doutrinário após a Segunda Guerra Mundial. Porém sua aplicabilidade era instável devido à falta de instrumentos processuais equiparados aos direitos de primeira geração (por exemplo: a liberdade). Esta situação se inverteu com a sua inserção nas cartas constitucionais, como por exemplo, a brasileira. O art. 226 da Constituição Federal, em seu § 7° nos ensina que: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.     A leitura do dispositivo citado reflete as duas dimensões. A dimensão autonômica quando reconhece a “livre decisão do casal” nos assuntos referentes ao planejamento de sua família e sobre o exercício de sua paternidade. E a dimensão assistencial na medida em que ao Estado compete “propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito”. A proteção de ambas as dimensões é explícita quando o dispositivo afasta qualquer “forma coercitiva” de instituições de qualquer natureza, no sentido de interferir na autonomia do casal. A autonomia é um dos princípios bioéticos já sedimentados e, no que diz respeito às ações do Estado, este deve respeitá-la como integrante fundamental da dignidade da pessoa humana. A pessoa, na busca ou manutenção de sua dignidade, necessita ter a sua autonomia respeitada. É através dela que será assumido o controle sobre sua vida, ou mais precisamente, sobre os atos que serão escolhidos para dirimir questões provenientes de sua existência. Uma destas questões é a reprodução e, consequentemente, sua limitação. 2. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL, PLANEJAMENTO FAMILIAR E SUA DISTINÇÃO DO CONTROLE DE NATALIDADE Muito se tem falado sobre planejamento familiar utilizando-se de uma linguagem repressora às atividades reprodutivas. Isto pois, a reprodução vem sendo tratada como uma ameaça sócio-econômica e, há quem atribui ao controle de natalidade, a característica de principal solução para deter o avanço demográfico. A diferença entre ambas se deve à sua finalidade última. Enquanto o controle de natalidade visa uma ação puramente controladora sobre o crescimento demográfico, o planejamento familiar alia-se à autonomia da pessoa, na medida em que esta detém subsídios para o exercício pleno de seus direitos reprodutivos, através de uma paternidade responsável. 2.1 CONTROLE DE NATALIDADE ATRAVÉS DA ESTERILIZAÇÃO A esterilização é uma intervenção cirúrgica que elimina a capacidade de reprodução [37]. No presente trabalho há de se limitar a extensão do conceito entre as atividades reprodutivas humanas. Nos seres humanos, a esterilização consiste no ato de empregar técnicas especiais, cirúrgicas ou não, no homem e na mulher, para impedir a fecundação. A esterilização se classifica em eugênica, cosmetológica, terapêutica e por motivo econômico-social. [38] A esterilização eugênica tem por finalidade impedir a transmissão de doenças hereditárias indesejáveis. É um tipo de conduta rechaçada pelo ordenamento jurídico. Nos termos do Constituição Federal em seu art. 3°: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:(…) IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” A esterilização cosmetológica destina-se apenas a evitar a gravidez, tendo em vista que não é precedida de nenhuma indicação médica relacionada com a saúde. É o tipo de esterilização que somente leva em conta a estética, que é um valor de segunda ordem no que diz respeito à dignidade da pessoa humana. A esterilização terapêutica está ligada à idéia de estado de necessidade ou de legítima defesa. Deste modo, um médico deve expressar através de diagnóstico o risco ao qual estaria submetido a gestante ou o futuro concepto. No Brasil, a esterilização terapêutica é aceita, mas deve ser precedida de relatório escrito e assinado por dois médicos, conforme preconiza a Lei n. 9.263/96 e a Portaria n. 144/97 da Secretaria de Assistência à Saúde. Nas palavras de Lilie: “Até mesmo nas clínicas liberais irlandesas a esterilização somente é possível se existe risco grave para a saúde física ou psíquica da mãe, ou se há previsão de danos para o filho.” [39] Por fim, a esterilização por motivo econômico-social visa restringir a prole das famílias, devido a condições sócio-econômicas de um dado país. É definida também como “limitação de natalidade” e necessita de uma “indicação social”. Esta é última existe quando outro filho pode produzir uma situação familiar difícil em uma família já numerosa, ou colocar em uma situação de excessiva tensão a pessoa encarregada de sua educação. [40] A China é um dos poucos países que concebeu esta modalidade de esterilização com a finalidade de preservar o equilíbrio sócio-econômico do país, frente ao crescimento populacional exagerado. Assim, adotou a campanha "um casal – um filho". Nossa Constituição Federal veda expressamente qualquer forma coercitiva de esterilização tanto por parte de instituições oficiais como privadas. Tanto é assim que o § único do art. 2º da Lei n. 9.263/96 é enfático: É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico [41] A população mundial alcançou seu 1° bilhão em 1850. Em 1930 atingiu seu 2° bilhão. Ou seja, foram necessários milhares de anos para atingir o 1° bilhão, e em apenas 80 anos para duplicarmos em quantitativo populacional. No intuito de analisarmos os efeitos e soluções deste crescimento populacional, ocorreram três conferências mundiais sobre população e desenvolvimento: Bucareste (1974), México (1984) e Cairo (1994). Na primeira conferência os dados foram alarmantes e estudiosos se referiam a uma “bomba demográfica”. Na segunda, foi a primeira constatação que, se de um lado, haviam países com um crescimento populacional desordenado (principalmente os subdesenvolvidos), de outro, haviam aqueles que sofriam de um déficit populacional (desenvolvidos). [42] A Conferência do Cairo foi marcada por um consenso internacional em questões relacionadas aos direitos reprodutivos, planejamento familiar e controle de natalidade. Dentre os pontos mais importantes há de se destacar o reconhecimento da existência de um direito humano sobre o planejamento da natalidade; a decisão de que o planejamento de natalidade não pode ser realizado por intermédio do aborto e esterilização; a urgência no tocante à superação da pobreza estrutural no mundo e a mudança no comportamento de consumo dos países do Hemisfério Norte; a necessidade de prover melhor formação básica à mulher e melhorar sua posição em todos os aspectos; a urgência de planos especiais de ação com o escopo de proporcionar o planejamento de natalidade; e finalmente, uma preocupação mútua no tocante à “saúde da reprodução”. Esta última, de acordo com o plano de ação do Cairo significa “Direito à informação e acesso a métodos seguros, baratos e inofensivos para a regulação da fertilidade, bem como o direito a serviços adequados de saúde que proporcionem à mulher uma gravidez e parto seguros e ajudem os pais a ter um filho saudável.” [43] Também fazem parte deste conceito toda questão referente a reprodução humana tais como educação sobre a sexualidade, doenças venéreas, gravidez, etc. A problemática acerca do crescimento populacional foi estudada pelo economista e demógrafo inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834). O cientista inglês criou a teoria de contenção demográfica (conhecida com malthusianismo). De acordo com Pessini e Paul de Barchifontaine, a tese é a de que “É impossível alcançar o bem-estar geral sem contenção demográfica, pois o crescimento demográfico é sempre maior que a produção de bens: a produção de bens cresce em proporção aritmética e a população, em proporção geométrica.” As teses malthusianas se limitavam apenas a demonstrar a desproporcionalidade entre o crescimento demográfico versus disponibilização de alimentos [44]. Os autores contrapõem esta teoria, pois, contrariamente do que havia sido previsto por Malthus, a humanidade nunca dispôs de tantos bens materiais. E a principal causa da carência de recursos básicos se deve à má distribuição destes. “Pessini e Paul de Barchifontaine afirmam que apesar das crises populacionais, a chamada “bomba demográfica” é um mito baseado em uma ideologia do “imperialismo contraceptivo” que em sustenta a concepção de que “uma população menos numerosa permite realizar uma melhor economia”. Porém a densidade populacional não é necessariamente a causa original da fome e da pobreza quando se leva em conta o potencial existente na produção alimentar e os o desenvolvimento dos recursos. Na esteira dos autores: “o imperialismo contraceptivo impôs aos novos povos e às culturas toda forma de contracepção, esterilização ou aborto julgado “eficaz”, sem nenhum respeito pelas tradições familiares, étnicas ou religiosas de uma determinada população ou cultura.””[45] E vão além. Afirmam que o choque negativo do imperialismo contraceptivo poderia ser superado com a aceitação de que crescimento populacional não é o fator determinante dos problemas econômicos, e sim, a falta de justiça econômica, fruto de um desenvolvimento centralizado. Um comparativo entre a França e o Brasil, os autores revelam que não há relação direta entre o crescimento demográfico e os problemas econômicos. Enquanto que, em 1990, a densidade demográfica na França era de 103 hab./km², o Brasil estava na marca dos 17 hab./km². Os autores concluem que a fertilidade deve ser encarada como um sinal de saúde e não de doença. Por isso a importância do desenvolvimento de um planejamento familiar pautado na medicina sanitária (com a finalidade de diminuir a taxa de mortalidade relacionadas à reprodução), paralelamente ao fornecimento de informações por parte dos profissionais médicos e do Estado. Somente desta maneira haverá a comunhão entre os direitos reprodutivos, autonomia e a conseqüente paternidade responsável. No Brasil, o tema vem sido discutido principalmente no que tange às condições subjetivas para a esterilização. O Projeto de Lei n° 7020/2002, de autoria do então deputado federal Wigberto Tartuce (PPB/DF), dispunha sobre a permissão da “esterilização voluntária”. O projeto tinha como finalidade proporcionar o acesso aos meios eficazes de esterilização às mulheres de baixa renda. Para tanto, exigia-se apenas a capacidade civil e a manifestação de vontade em documento escrito. [46] Podemos citar também o Projeto de Lei n° 207/2003, da deputada Almerinda de Carvalho (PMDB/RJ), que visa a redução da idade mínima exigida para esterilização, de vinte e cinco anos (nos termos do inciso I, art. 10 da Lei 9.263/96) para vinte e um anos. [47] Analisando os projetos abordados, identificamos que há um imediatismo no que tange às políticas populacionais. Os autores de projetos e (ou) dos discursos análogos buscam a melhoria das condições sócio-econômicas do público de baixa renda mediante o processo de esterilização e relegam a um segundo plano a dimensão prestacional do Estado no sentido de prover os recursos básicos para que a pessoa exerça sua autonomia. Conclui-se que, ao evitar a discussão acerca da disponibilização de meios para o exercício da autonomia, teriam uma finalidade de controle populacional, na premissa de que a falta de recursos por parte das famílias de baixa renda é a causa primária do aumento de problemas sociais. E esta visão distorcida e limitada da realidade social faz com que os adeptos desta corrente assumam um posicionamento contra legis em relação ao disposto no parágrafo único do art. 2° da Lei n°9.263/96: É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico. E ainda o art. 12:    “É vedada a indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica” Conforme análise do art. 4° convém lembrar que o Estado se responsabiliza quanto a implementação de ações de ordem preventivas e educativas para a regulação da fecundidade. Essas ações visam o fornecimento de todas as informações necessárias para que o controle da prole seja uma opção da pessoa, respeitando sua autonomia [48]. Na esteira da promoção da autonomia, o art. 5° segue: “É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar.” (grifo nosso) Diante dos dispositivos citados, é explícito a relevância da autonomia da pessoa no tocante à autodeterminação na interrupção de sua capacidade reprodutiva. Porém a autonomia da pessoa somente é realizada quando a esta é assegurada condições de uma relação equânime com os médicos e o Estado. E a problemática se acentua quando a ideia de “Controle Demográfico” tem como público-alvo pessoas que se viram privadas de educação. [49] Oportunamente, informamos que a hipossuficiência da pessoa não deve ser medida exclusivamente devido à sua fragilidade econômica ou social. Deve ser entendida também como qualquer debilidade psicológica, emocional, física, etc. As famílias de baixa renda são sistematicamente colocadas como objeto de uma ciência (ou, “falta de ciência”, tecnicamente falando) propagadora do imediatismo de um pensamento tipicamente neoliberal. Assim, confere-se aos excluídos o ônus de sua exclusão, ao invés de proporcionar-lhes os recursos necessários ao exercício livre de seus atos e a capacidade de se autodeterminar. Comentando a prática da esterilização de 129 mulheres realizada por cinco cirurgiões em 1996, ano das eleições municipais (porém alegando ser antes da promulgação da Lei de Planejamento Familiar), o Conselheiro do CFM, o sr. Pedro Magalhães Chacel, emitiu parecer no qual considerava-se que “as lesões corporais sem perda de função não seriam consideradas atos criminosos”. Estimava-se que antes da regulamentação desta prática por parte do poder legislativo, havia cerca de 15 milhões de mulheres esterilizadas. Àquela época, o único instrumento para regularização desta prática era o Código de Ética para os profissionais de medicina. Assim, a prática era consentida pela sociedade, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. [50] Em resposta ao parecer, o advogado Roberto Lauro Lana, contrapôs as razões do parecerista. Disse que as eleições daquele ano ocorreram em setembro, quando a Lei de Planejamento Familiar já tinha sido promulgada. Na premissa de que “a ninguém é lícito escusar-se de cumprir a lei por alegar desconhecê-la” o crime foi efetivamente praticado e previsto criminalmente sob o inciso III, § 2° art. 129, o Código Penal (lesões corporais grave por perda ou inutilização de membro, sentido ou função). Apesar da importância que é conferida ao tema, o Estado tem sistematicamente recuado de suas obrigações (definidas pela Constituição) como provedor de assistência à saúde dos brasileiros. Contribuem ainda para o agravamento e a consolidação do estado atual, aspectos da cultura médica marcados por um exagerado intervencionismo sobre o corpo da mulher, os quais, aliados à desinformação destas mulheres, comprometem de forma definitiva o princípio da autonomia nas escolhas de cada pessoa. Desta forma, não há planejamento familiar.  3. O PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO EXERCÍCIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL: O planejamento familiar é tema cotidiano, haja vista a freqüente abordagem da imprensa acerca de temas tais como mortalidade infantil e materna, aborto, esterilização, reprodução assistida ou outros relacionados à procriação. Além da imprensa, o Estado também reconhece a importância da matéria, que é tratada em dispositivos constitucionais e infra-constitucionais. Um exemplo deste reconhecimento foi a Lei n° 9.263 de 12/01/96, que regulamenta o art. 226, § 7° da Constituição Federal e trata do planejamento familiar à luz do respeito da dignidade da pessoa humana em sua integralidade. Conforme art. 2° da Lei 9.263, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole da mulher, pelo homem ou pelo casal. Uma problemática emergente na aplicação desta lei, objeto central desta pesquisa, é em que medida a integralidade da dignidade da pessoa humana é respeitada em sua integralidade frente às ações de planejamento familiar, quanto à diminuição da prole. Como vimos no capítulo anterior, o Estado deve respeitar a dignidade da pessoa humana. Para tanto, este princípio foi incluído (normatizado) na Constituição Federal de 1988. Dentre as aplicações deste direito fundamental, podemos afirmar que a constituição e manutenção do núcleo familiar são atividades humanas intrínsecas e que, por isto, a esta ação natural deve ser estendida à dignidade da pessoa humana.  Frente à explosão demográfica e a consequente situação sócio-econômica desfavorável a qual se encontram as famílias de baixa renda, surgem indagações acerca da possibilidade de desenvolvimento de programas de esterilização. Tais programas teriam a finalidade de proporcionar o bem-estar das famílias através de melhorias na saúde das mulheres e das crianças e a plena vivência da sexualidade. Os defensores da implantação destes programas elencam uma série de argumentos [51] que justificariam a aceitabilidade de um controle de natalidade. Dentre os quais podemos destacar a falta de alimentos, a pobreza e a escassez de recursos. Sobre a falta de alimentos, uma pesquisa realizada pela FAO [52] demonstrou que, se a terra cultivável dos países em desenvolvimento fosse aproveitada de maneira plena, haveria alimentos para 18 bilhões de pessoas, o equivalente ao triplo da população mundial; Já em relação à pobreza, pode-se verificar que não é fator determinante, pois os países mais desenvolvidos são os mais populosos. Bons exemplos são o Japão, com 840 hab./km², e as nações européias, com 213 hab./km². Já a média populacional dos países em desenvolvimento é de 55 a 80 hab./km², para América Latina e a África, respectivamente. Sobre o argumento da escassez de recursos só deve ser levado em conta quando se trata dos recursos básicos de subsistência. Não há de se dar relevância quando é considerada “falta de recurso” a oportunidade de fornecer qualquer outro bem que não seja efetivamente essencial para que se exerça uma paternidade responsável e concorra para a formação de cidadão. O crescimento populacional desordenado contribuiu para o agravamento dos problemas relacionados à alimentação, habitação, saúde, qualidade de vida, educação, transporte, segurança, entre outros. Deste fenômeno social emergiu a idéia de controle de natalidade. O controle de natalidade visa “reduzir o crescimento demográfico como meio de diminuir a pobreza”. O planejamento familiar, em tese, reflete um diferencial fundamental do simples controle de natalidade: a idéia de fertilidade regulada e do controle da vida reprodutiva e sexual, através do provimento de informações sobre as opções a serem tomadas para a satisfação das necessidades sexuais. Deste modo, o controle de fertilidade não tem a finalidade de extinguir a pobreza, mas sim, suscitar no cidadão o exercício consciente de suas atividades reprodutivas, frente às suas capacidades e limitações.[53] Em 1968, foi realizado em Teerã, um encontro da Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, onde foi reconhecido o direito humano básico de controlar a gravidez. Esse direito visa resguardar aos pais a decisão livre e com responsabilidade quanto ao número de filhos e ao espaçamento das gestações e o direito à adequada educação e informação a esse respeito. No Brasil, em 1965, foi criada a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM), que visava a formação de profissionais de saúde para a prática de planejamento familiar. Esta sociedade era financiada pela International Planned Parenthood Federation (IPPF), criada em 1952, em Londres, e visava um controle demográfico, portanto restritivo às liberdades procriativas das mulheres ou dos casais. Por isso, o BEMFAM desenvolvia profissionais para que exercessem uma ação negativa, no sentido de limitar a reprodução e prestar assistência direta nas práticas de intervenções contraceptivas. [54] Ainda de maneira favorável à limitação reprodutiva, o governo criou o Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC).  Esta instituição consolidou uma ideologia intervencionista no meio médico, devido aos seus financiamentos no sentido de fomentar a atuação de profissionais da saúde nas práticas de laparoscopia e distribuindo material contraceptivo (os quais eram importados com isenção de impostos fundamentando-se na utilidade pública). [55] O Ministério da Saúde, durante a década de 70, implementou o Programa de Saúde Materno-Infantil, no qual o planejamento familiar figurava discretamente com o nome de paternidade responsável. Em 1977, havia o Programa de Prevenção de Gravidez de Alto Risco, com o objetivo de controlar o nascimento de pobres e negros. Este foi arquivado devido às reações da imprensa, partidos políticos, igreja e formadores de opiniões em geral. Em 1983, foi instituído o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (onde se incluía a fase reprodutiva). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1986 divulgou dados provenientes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) em que atestavam que 27% das mulheres em união, que usavam algum método de controle de fecundidade, estavam esterilizadas cirurgicamente. Uma diferença espaçosa do percentual de países como a França (6%), Inglaterra (7%) e Itália (4%). [56] O planejamento familiar foi consagrado através do art. 226, § 7° da Constituição Federal de 1988. Através do dispositivo foi reconhecido o direito à autonomia e a paternidade responsável, em que ao Estado cabe a tarefa de fornecer condições para que o casal tenha condições de decidir todas as questões relativas à procriação. O planejamento familiar não se volta ao problema da eugenia, ao controle demográfico para evitar ameaças econômicas e políticas, ao fato de a mulher estar no mercado de trabalho, mas está fundado no direito à saúde e à liberdade e autonomia do casal na definição do tamanho de sua prole e na escolha da oportunidade que entender mais apropriada para ter filhos. A responsabilidade pela paternidade é do casal e não do Estado (CC, art. 1.565, parágrafo 2°).[57] A primeira vez em que houve uma clara formulação da idéia de direitos reprodutivos e sexuais foi na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, organizada pela ONU e sediada no Cairo, em 1994. Um ano depois, na Conferência de Beijing foi confirmada a seguinte formulação: Os direitos reprodutivos incluem certos direitos humanos que já estão reconhecidos nas leis nacionais, nos documentos pertinentes das Nações unidas aprovados por consenso. Esses direitos firmam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número de filhos, o espaçamento dos nascimentos e o intervalo entre eles, e a dispor da informação e dos meios para tanto e o direito a alcançar o nível mais elevado de saúde sexual e reprodutiva (…) A promoção do exercício responsável destes direitos de todos deve ser a base principal das políticas e programas estatais e comunitários na esfera da saúde reprodutiva, incluindo o planejamento familiar[58] (grifo nosso) Esse documento trouxe algumas assertivas que fortaleceriam o estudo sobre o exercício da autonomia e a paternidade responsável: reconhece a influência da sexualidade e a relação entre homens e mulheres sobre a saúde a aos direitos da mulher; outorga ao homem a responsabilidade sobre seu comportamento sexual, fecundidade, contágio de doenças sexualmente transmissíveis, além do bem-estar de suas companheiras e a paternidade de todos os seus filhos; assegura a prestação de serviços médicos em condições de higiene e segurança nos casos de abortos legais. Oportunamente esclarecemos que quando falamos de paternidade responsável, estamos nos referimos à adoção de medidas para que o direito à concepção e descendência seja exercido pelo casal de maneira autônoma e livre, sem a interferência do qualquer outro ente. [59] E este direito não é absoluto, pois, frente à escolha sobre questões de ordem reprodutivas, há de se reconhecer os direitos da prole e os deveres para com os interesses da comunidade. O reconhecimento destes limites harmonizará o direito à vida e o direito à liberdade do casal de planejar a família. O planejamento familiar responsável é um direito reprodutivo, ou melhor, um direito humano básico reconhecido pela ONU, na Resolução de 1968, e pela Constituição, em seu art. 226, parágrafo 7°, sendo, com base nos princípios do respeito à dignidade humana e da paternidade responsável, um paradigma da política populacional [60] O planejamento familiar possui um campo de abrangência mais completo que o controle de natalidade. Este tem se concretizado como políticas de simples regulação da prole e baseadas em argumentos controversos. Já o planejamento familiar se estende ao exercício integral dos direitos reprodutivos, garantindo ao cidadão a proteção do exercício de sua autonomia sobre as questões acerca do aumento ou diminuição da prole.  CONCLUSÕES Verificou-se que os princípios, tanto bioéticos quanto jurídicos, são importantes fontes de Direito na atualidade. Através deles existe uma exteriorização de valores comuns em uma sociedade os quais devem ser respeitados por serem fundamentos que norteiam todas as atividades humanas e suas relações consigo mesmo, com o outro e com a coletividade. O respeito a essas normas axiológicas é fundamental do ponto de vista do Direito e da Bioética. Constatamos que o princípio da dignidade humana é uma conquista dogmática que emerge com força normativa a partir do reconhecimento de que a pessoa humana possui uma característica intrínseca: a humanidade. E, em respeito a essa característica comum a todas as pessoas humanas, lhes são garantidos tanto propiciar e promover uma participação ativa e corresponsável da sua vida, quanto, proteger contra qualquer ato que retire suas condições existenciais mínimas. Garantir a autonomia da pessoa humana é fundamental para a realização de sua dignidade. Através daquela é que concretiza a independência da pessoa frente a controles externos ou alheios à sua vontade, e, consequentemente, uma dignidade. Por isso, é dever do Estado fornecer todos os recursos necessários para que a pessoa tenha conhecimento e discernimento acerca das questões relativas à sua fertilidade e procriação. Há uma preocupação acerca do crescimento demográfico. Esta afirmativa é verificada a partir do estudo sobre políticas populacionais em vários países, que implementaram programas de controle de natalidade através da disseminação das práticas esterilizadoras. Contudo, essas políticas se limitavam a uma atuação controladora da prole, que afinal, era o principal enfoque no seu campo de atuação. É demonstrado que, apesar das teorias suscitadas sobre a influência do crescimento demográfico no agravamento das condições sócio-econômicas dos países, estas variantes não são absolutas. Deste modo, relacionam-se com outros aspectos como, por exemplo, a falta de uma política que garanta uma melhor distribuição de recursos. O crescimento demográfico foi desmistificado e reconheceu-se o direito reprodutivo. Tomamos conhecimento de que a paternidade responsável deve atuar como critério diretivo sobre os direitos reprodutivos. Por esta razão, a paternidade responsável se tornou o meio pelo qual a pessoa exerce sua autonomia frente aos direitos reprodutivos que lhe são garantidos. E, neste caso, a autonomia somente é concretizada mediante ações que forneçam à pessoa as informações básicas para a uma decisão consciente e livre dos assuntos referentes à sua atividade reprodutiva, a saber: ter ou não filhos, o espaçamento entre uma gestação ou outra e a adoção de meios contraceptivos ou esterilizações. Esse é o diferencial que o planejamento familiar propõe. Conclui-se que o controle de natalidade, por ser limitador e não prestar a assistência necessária para o exercício da autonomia, enseja na violação da dignidade humana, na medida em que nega à pessoa os subsídios para o exercício de sua autonomia e seus direitos reprodutivos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-107/controle-de-natalidade-como-violador-da-dignidade-humana/
Aspectos controvertidos da situação jurídica do nascituro
Objetiva-se neste artigo apontar os entendimentos doutrinários controvertidos sobre a situação jurídica do nascituro no ordenamento jurídico brasileiro. Destacou-se os principais temas que envolvem o nascituro, principalmente no que tange ao início da personalidade. Ao final, buscou-se propor em que medida deve ser assegurada tutela jurídica ao nascituro e, se para tanto, é necessário adquirir personalidade jurídica.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A situação jurídica do nascituro está atualmente tratada nas diversas áreas do direito. Mas é no direito civil que se tem o seu ponto de partida. Afinal, ao tratarmos do nascituro estamos nos referindo ao início da personalidade. E é justamente neste ponto de partida em que já nos deparamos com a polêmica: afinal, para o direito, a partir de qual momento é protegida a vida? A resposta para esta pergunta e muitas outras a serem discutidas nestes estudos não será única, mas buscar-se-á trazer discussões que envolvem o nascituro. Início da vida e da personalidade, capacidade sucessória, imputação de responsabilidade de dano ao nascituro, alimentos gravídicos e o polêmico “Estatuto do Nascituro” e outros assuntos, serão objeto de análise. Entretanto, não será objeto deste trabalho aprofundar cada tema, pois cada qual se permite produzir verdadeiros tratados, mas trazer ao leitor o panorama atual que envolve o nascituro no direito. Fonte do direito civil brasileiro, o direito romano não fora diferente na dificuldade de se tratar o nascituro como pessoa ou não. Sérgio Abdalla Semião informa que: “Em algumas vezes era reconhecida personalidade ao nascituro; em outras, se estabelecia uma personalidade condicional, colocando-se a salvo seus direitos, sob a condição de que nascesse viável […]. Em outras ainda, considerava-se a criança não viável como despida de personalidade e finalmente, às vezes, negava-se personalidade aos monstros ou crianças nascidas sem a forma humana. Conclui-se, pois, que inobstante admita-se a controvérsia sobre o início da personalidade no Direito Romano, há que se ater ao fato que a maioria da doutrina romanista não considera o nascituro como pessoa, já que nem o monstrum, mesmo que nascido com vida era considerado pessoa” (SEMIÃO, 2000, p. 46/48). A lei civil confere proteção ao nascituro, desde o instante da concepção, ainda que sob a condição dele nascer com vida. Nesse sentido, reconhece-lhe os direitos da paternidade reconhecida no útero, de ser credor de prestações alimentícias, de receber doações e legados e de recolher a título sucessório. Permite sua inserção na família, presumindo-o concebido na constância do casamento, se nascer entre os 180 dias depois de estabelecida a convivência conjugal e 300 dias subsequentes à dissolução dessa sociedade conjugal (BERTI, 2008). Antes de se adentrar a partir de qual momento deve ser assegurado estes e outros direitos ao nascituro, faz-se necessários estabelecer-se os conceitos de nascituro, embrião e feto. 2 CONCEITO DE NASCITURO, EMBRIÃO E FETO Esses são os três termos utilizados na linguagem do mundo científico para designar o ser concebido, ainda em vida intra-uterina, que se prepara para nascer. O direito não os define: nem embrião, nem feto, nem nascituro. Embrião, feto, nascituro são expressões próximas, bem ligadas entre si, quanto ao sentido que se lhes dá em linguagem científica (BERTI, 2008, p.70). Explica Silma Mendes Berti (2008) que “a expressão nascituro, preferida pela linguagem jurídica brasileira, para indicar apenas o ser concebido, durante o tempo em se encontra no seio materno, que o acolhe e o protege. Melhor dizendo, e para ser fiel ao sentido que se lhe dá a língua latina, para indicar aquele que vai nascer, embora se lhe aplique também o sentido do ser concebido que ainda se encontra no ventre materno”. Diferente do nascituro é o concepturo, aquele que ainda não foi concebido. É o caso da chamada prole eventual, isto é, aquele que será gerado, concebido, a quem se permite deixar benefício em testamento, dês que venha a ser concebido nos dois anos subsequentes à morte do testador, conforme art. 1.800, §4º do CC/02. Enquanto, o nascituro é o filho que alguém já concebeu, mas ainda não nasceu, o concepturo é o filho que alguém ainda vais conceber (FARIAS; ROSENVALD, 2009). Já o embrião é considerado na área médica o germe fecundado nos primeiros meses de vida intra-uterina; é o que se encontra no começo da vida e que ainda não tem forma definida (BERTI, 2008). Entretanto, não se pode utilizar referido conceito de forma genérica, considerando a existência dos embriões não implantados na reprodução assistida, que são concebidos, como no caso da fertilização in vitro, fora do útero. Conforme Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2009), os embriões laboratoriais (embriões in vitro) são aqueles remanescentes de fertilização na proveta (embriões excedentários) ou que foram preparados para serem implantados em uma mulher, mas ainda não o foram (embriões pré-implantatórios). Por outro lado, o feto representa a fase do desenvolvimento intra-uterino que segue à embrionária até o nascimento, e que acontece após o segundo ou terceiro mês de fecundação. O feto apresenta uma morfologia reconhecível: seus órgãos já estão formados, ele já começa a apresentar caracteres distintivos da espécie humana. A transição entre o estágio embrionário e o estágio fetal opera-se por volta da 8ª semana após a fecundação, ou da 7ª após a implantação (BERTI, 2008). Cabe asseverar que tais definições não são fechadas, sendo, inclusive, muitas vezes confundidas no meio jurídico, o que leva a interpretações diversas, como se verá mais adiante. Todavia, é a partir destes termos que se pode compreender a teorias desenvolvidas acerca do início da personalidade e por conseguinte, de proteção jurídica ao nascituro, as quais serão tratadas a seguir. 2.1 TEORIAS DO INÍCIO DA PERSONALIDADE PARA O DIREITO De acordo com o art. 2º do CC/02 “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Com base neste artigo é possível afirmar que o nascituro possui personalidade? Como assegurar direitos a um ser que ainda não nasceu? E, afinal, o que é nascimento com vida? Para podermos esclarecer estas perguntas, iniciemos com as teorias do início da personalidade para o direito: a) teoria natalista: defende que a personalidade civil do homem tem início com o nascimento, com vida. Quanto ao ente por nascer, não o considera uma pessoa; entretanto, defende os adeptos dessa teoria que, como o nascituro possui expectativa de vir a ser uma pessoa, os direitos que lhe reconhecem encontram-se em estado potencial. São adeptos dessa teoria Silvio Rodrigues, Eduardo Espínola, Pontes de Miranda, Orlando Gomes. b) teoria da personalidade condicionada: sustenta que a personalidade começa a partir da concepção, mediante a condição suspensiva do nascimento com vida, que vindo a se concretizar, os efeitos da personalidade retroagem à data de sua concepção. Teoria adota por Serpa Lopes, Washington de Barros, Arnoldo Wald. c) teoria concepcionista: afirma que, desde o momento da concepção, tem-se a personalidade do homem. Entre os defensores dessa teoria têm-se Teixeira de Freitas, Silmara Chinelato e Francisco Amaral (BORGES, 2009, p.99-100). Embora existam estas e outras teorias, a adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro é a natalista, ou seja, a personalidade só tem início com o nascimento com vida. Sendo assim, como considera a doutrina majoritária, o nascituro possui alguns direitos, assegurados para permitir o seu livre desenvolvimento, porém, só terá personalidade se nascer com vida. Mas o que é nascer com vida? A esta pergunta o direito não responde. Entretanto, define o fato morte para fins de transplante e doação de órgãos. Conforme o artigo 3º da Lei n.9434, de 4 de fevereiro de 1997, a Lei  dos Transplantes, “é considerada para fins de término da vida humana a morte encefálica”. Assim, pode-se entender que o nascer com vida seria a presença de atividade cerebral e a respiração. 3 A CURATELA DO NASCITURO A lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, que deverão ser entendidos como expectativas de direito. Em defesa dessas expectativas de direito do nascituro, que enquanto expectativas são postas a salvo, é que o Código Civil manda que se lhe dê um curador, se o pai falecer, estando a mulher grávida, e não tendo o pátrio poder. É o que se denomina na doutrina “curador ao ventre” (SEMIÃO, 2000). Conforme o Código Civil de 2002: “Art. 1.779. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro.” Com o nascimento com vida termina a curatela, e assim, não tendo a mãe o pátrio poder, deverá ser nomeado ao nascido um tutor. A curatela ao nascituro não deve ser entendida como representação, já que este não possui personalidade, e não figura como pessoa absolutamente incapaz. Segundo Sérgio Abdalla Semião: “Não tendo o nosso diploma civil declinado o nascituro como pessoa absolutamente incapaz ou relativamente incapaz, chega-se à óbvia dedução de que a curatela a ele conferida não é no sentido de representação, mas, sim, de vigiar, de cuidar e de pôr a salvo suas expectativas de direito, para o caso de vir a nascer com vida, resguardando assim os interesses do ser humano por nascer, que, juridicamente, ainda não é pessoa, mas mera expectativa de pessoa. A defesa que porventura o curador tenha que fazer das expectativas de direito do nascituro será enquanto vigilante e protetor dessas expectativas, e não representando o nascituro Destarte, cabe ao curador ou mesmo aos pais que geraram o nascituro praticar apenas atos provisórios em prol de uma pessoa prestes a constituir-se e que a lógica deduz como futuro sujeito de direitos, no sentido jurídico do termo” (SEMIÃO, 2000, p.90). Coaduna Maria Helena Diniz: “O nascituro tem capacidade de direito, mas não de exercício, devendo seus pais ou, na incapacidade ou impossibilidade deles, o curador ao ventre ou ao nascituro zelar pelos seus interesses, tomando medidas processuais ao seu favor, administrando em seu nome a posse, resguardando sua parte na herança, aceitando doações ou pondo a salvo suas expectativas de direito. Com o nascimento com vida, seus pais assumem o poder familiar; se havia curador ao ventre, cessar-se-ão suas funções, terminando a curatela, nomeando-se um tutor ao nascido” (DINIZ, 2011, p.229-230). Assim, não há como representar uma pessoa que ainda não existe. 4 POSSÍBILIDADE DE SER DONATÁRIO O art. 542 do CC/02[1] atribuiu ao nascituro o direito de ser donatário, desde que liberalidade seja aceita pelos pais. No contrato de doação, a capacidade exigida varia, conforme a posição da parte. Por ser benéfico o contrato, do donatário não se exige capacidade de fato para aceitar a liberalidade. Há de se fazer necessário, entretanto, o consentimento de seu representante legal (BEVILÁQUA apud BERTI, 2008). Todavia, ainda que tenha o direito de ser donatário, a doação somente surtirá seus efeitos após o nascimento com vida do nascituro, seja para bem imóveis ou móveis. De acordo com Sérgio Abdalla Semião (2000), o entendimento é muito lógico: se a expectativa de pessoa não nasce com vida, a conseqüência óbvia é que a doação será considerada como se nunca tivesse sido conferida, já que o nascituro que não nasce com vida, não pode ser sucedido hereditariamente, e, assim, o bem em vez de transferir-se para seus herdeiros, voltará para o patrimônio do doador, operando os mesmos efeitos, como se fora uma verdadeira cláusula resolutiva expressa, tudo por pura lógica jurídica. Pactua Maria Helena Diniz: “O nascituro poderá receber bens por doação ou por herança, mas o direito de propriedade somente incorporará em seu patrimônio se nascer com vida, mesmo que faleça logo em seguida, hipótese em que os bens, recebidos por liberalidade, transmitir-se-ão aos seus sucessores. Se nascer morto, caduca estará a doação ou a sucessão legítima ou, ainda, a testamentária. Enquanto estiver na vida intrauterina seus pais ou o curador ao ventre serão meros guardiães ou depositários desses bens doados ou herdados, bem como se seus frutos e produtos. Logo, não são usufrutuários; deverão guardá-los sem deles gozar” (2011,p.230). Basta um instante de vida após o nascimento para que a doação produza seus efeitos. 5 CAPACIDADE SUCESSÓRIA E DIREITO DE FILIAÇÃO Defere-se a sucessão ao nascituro, desde que já concebido no momento da abertura da sucessão. Como ainda falta-lhe personalidade, nomeia-se curador. Irá adquirir de imediato a posse da herança como se já fosse nato desde o momento da abertura da sucessão. Entretanto, se nascer morto, deve ser considerado como se nunca tivesse existido, pois a sucessão somente surtiria efeito caso nascesse vivo. De acordo com o CC/02: “Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz. § 3o Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. § 4o Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.” Caso especial é o da morte da mãe no trabalho de parto, ou quando o filho é retirado das entranhas da genitora falecida em conseqüência de acidente ou colapso. Não se nega ao filho legitimação para suceder, embora não haja coexistido com a mãe (PEREIRA, 2010). È válida a disposição testamentária contemplando a prole eventual de determinada pessoa. Neste caso, a transmissão hereditária é condicional, subordinando-se a aquisição da herança a evento futuro e incerto. O prazo é de dois anos, contados da abertura da sucessão. Assim, se a qualquer tempo dentro do biênio nascer com vida o herdeiro esperado, considera como se estivesse vivo ao tempo da morte do testador; se, no mesmo prazo, ocorrer ao menos a concepção, deve-se aguardar o nascimento do sucessor e o implemento da condição; se, porém escoar-se o prazo sem que ocorra a concepção, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos, tornando-se sem efeito a disposição testamentária (PEREIRA, 2010). Enquanto não encerrado o prazo ou até que nasça, com vida, o herdeiro esperado, (se tal nascimento se der antes do termo final do biênio), os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz, cujos poderes, deveres e responsabilidades regem-se no que couber, pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, e cuja identidade há de ser definida no próprio testamento, recaindo o encargo, na falta de nomeação, na pessoa cujo filho testador esperava ter por herdeiro (PEREIRA, 2010). Situação bastante discutida é a sucessão e reprodução humana assistida. O Código Civil dispõe que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido. Segundo Caio Mário da Silva Pereira: “Em realidade, ocorrendo a concepção por processo artificial, depois da morte do pai, não há que presumir sua contemporaneidade com um casamento sabidamente dissolvido por aquele óbito anterior: a hipótese é, claramente, de ficção jurídica, e não de verdadeira presunção. Resta saber como semelhante presunção se harmoniza com a regra do art. 1.798, que apenas reconhece legitimação sucessória às pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Se o filho havido artificialmente, após a morte do pai, reputa-se concebido na constância do casamento, estaria aparentemente preenchido o requisito para sua legitimação sucessória: seria ele, para os efeitos legais, um nascituro, plenamente equiparado ao que, já concebido por processo natural, apenas não houvesse ainda nascido quando da abertura da sucessão” (PEREIRA, 2010, p.27). Nesta ordem de ideias, o Código Civil de 2002 dispõe que: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” Considerações de ordem puramente prática têm sido, por vezes, invocadas para justificar a falta de legitimação sucessória de filhos artificialmente concebidos post mortem, pois a partilha que se fizesse hoje estaria indefinidamente sujeita a ser alterada (ASCENSÃO apud PEREIRA, 2010). Debate-se a igualdade entre os filhos, conforme o art. 226, §3º da Constituição de 1988[2]. Taisa Maria Macena de Lima e Bruno Torquato de Oliveiras Naves, acerca do referido dispositivo constitucional, pontuam que: “A capacidade de gozo diferenciada entre pessoas nascidas e pessoas por nascer não influi na personificação destas. A gama de direitos albergada pela capacidade de gozo é variável ainda entre as pessoas nascidas, em virtude da situação específica de cada uma delas. A questão não é ter maior ou menor número de direitos, mas titularizar aqueles imprescindíveis à dignidade do ente nascido ou por nascer” (LIMA; NAVES, 2010, p.21). Se, na sucessão legítima são iguais os direitos sucessórios dos filhos, e se o CC/02 trata os filhos resultantes de fecundação artificial homóloga, posterior ao falecimento do pai como se houvessem sido concebidos na constância do casamento, como justificar, a exclusão de seus direitos sucessórios? Caio Mário da Silva Pereira (2010) informa que a doutrina divide-se em duas correntes: a) para uns, não têm legitimidade sucessória (Jussara Maria Leal de Meirelles e Eduardo de Oliveira Leite). b) para outros autores, tais filhos têm legitimação sucessória, cabendo-lhes reivindicar sua parte na sucessão por meio de ação de petição de herança, como já efetivada a partilha ao tempo de seu nascimento (Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Débora Gozzo). Ainda, Caio Mário defende que no caso de embriões excedentários, deve prevalecer o entendimento que têm legitimação para suceder, em virtude de já estarem efetivamente concebidas ao tempo do óbito do de cujos. 6 ALIMENTOS GRAVÍDICOS O direito a alimentos ao nascituro, chamados de alimentos gravídicos são regulados pela lei n. 11.804/2008, que na verdade disciplina o direito a alimentos da mulher gestante. Referida lei prevê que: “Art. 2o  Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes.  Parágrafo único.  Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de ambos.” Tais alimentos em sentido abrangente visam a garantir a formação e desenvolvimento do nascituro, na proporção dos recursos dos pais, conforme o art. 6º da Lei de Alimentos Gravídicos[3]. Nota-se que o nascituro nascendo com vida, os alimentos serão convertidos em pensão alimentícia. Serão admissíveis quaisquer provas admitidas em direito para comprovar os indícios da paternidade. Não é mais exigível o exame pericial, art. 8º vetado, pois além de colocar a perícia como condição para a procedência da demanda coloca em risco a vida do nascituro. “Há consenso médico que o exame de DNA em líquido amniótico pode comprometer a gestação” (RIZZARDO, 2009). 7 RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AO NASCITURO Para os defensores da teoria concepcionista é cabível indenização por dano ao nascituro. Conforme Maria Helena Diniz (2011), o embrião, ou o nascituro, tem resguardados, normativamente, desde a concepção, os seus direitos, porque a partir dela passa a ter existência e vida orgânica e biológica própria, independente da de sua mãe. Se as normas o protegem é porque tem personalidade jurídica. Na vida intrauterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos de personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião que será titular dos direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido. Se o nascituro não pode exercer seu direito de viver, em razão de sua morte ter sido, por exemplo, provocada por negligência médica, atropelamento ou acidente de trânsito sofrido por sua mãe, terá ela direito de ser indenizada não só por isso, mas também por lesão a sua própria integridade física. Indenizável é, por dano moral, a morte prematura do nascituro pelo sofrimento que provoca pela perda de uma possibilidade a que seus pais tinham legítimo interesse, qual seja, a de que ele um dia pudesse prestar-lhes auxílio pessoal ou econômico (DINIZ, 2011). A autora enumera uma séria de situações em que o nascituro e os embriões obtidos da fertilização in vitro teriam seus direitos resguardados, como: a) manipulação genéticas que somente serão lícitas para corrigir alguma anomalia genética; b) experiência científicas que envolvam sexagem, retirada de órgãos, testes de cura, clonagem, eugenia, aproveitamento de células e tecidos; c) uso de espermatogone ou espermátide; d) reprogramação celular; e) congelamento dos embriões excedentes na RA, não implantados; f) comercialização de embriões excedentes para fins ilícitos; g) defeitos apresentados nos materiais fertilizantes doados, devido ao mau funcionamento dos aparelhos da clínica; h) distorção dos fins e erro médico nos exames de prénatal; g) erro na técnica de utilização de tecido fetal; h) falhas em cirurgias intrauterinas; i) eritroblastose fetal; j) ausência de vacinação; k) transfusão de sangue contaminado no feto;  l) transmissão de doenças infectocontagiosas; m) omissões em terapias gênicas; n) medicação inadequada ministrada à gestante;o) radiações; p) fumo; q) tóxicos consumidos pelos pais; r) alcoolismo; s) uso errôneo de hormônios; t) recusa da gestante de tomar medicamentos ou se submeter a tratamentos médicos para preservar a vida e saúde do nascituro; u) inocuidade de pílula anticocepcional; v) problema ocorrido no parto por falha médica; x) uso de abortivos; z) ocorrência de acidentes (DINIZ, 2011). O nascituro deve ter asseguarado o direito à indenização por morte de seu pai como compensação pelo fato de nunca tê-lo conhecido. A perda do genitor, argumenta Adail Moreira, ainda que não sentida no ato de sua ocorrência pelo nascituro, afeta-lhe, contudo, posteriormente, quando nascido com vida, o psiquismo pelo sentimento de frustração ante a ausência da figura paterna, sendo que a reparação por dano moral poderá, a título de compensação, minorar a “dor” da orfandade (DINIZ, 2011). Consagrado está o direito à imagem do nascituro, pois poderá ser ela captada por ultrassonografia, câmeras fotográficas miniturizadas ou radiografias. Assim, se captada, utilizada ou publicada sem autorização de seus pais ou do curador ao ventre, causando-lhe dano, poderá pleitear uma indenização (DINIZ, 2011). Segue esta assertiva Silma Mendes Berti: “Não é difícil, pois, imaginar e admitir o nascituro como titular do direito à imagem. Existindo a possibilidade de uma mulher grávida ter, como todo indivíduo, direito ao respeito à sua imagem, pode-se facilmente conceber a idéia de que seu direito à imagem estende-se ao do filho que ela traz no ventre, até mesmo se tratar de filho natimorto. Colocando em pauta, especificamente, o direito à imagem de um filho simplesmente concebido, é possível admitir que possa ter lugar, durante a vida pré-natal, um atentado ao seu direito de imagem, distinto ao direito à imagem de sua mãe. Fotos do embrião no ventre materno para campanhas contra o aborto, fotos revelando experimentos médico-científicos em andamento, ou já realizados com sucesso, são divulgadas, frequentemente, em revistas científicas, em congressos, nos vários meios de comunicação visual. É, portanto, absolutamente necessário o consentimento da mulher, na qualidade de representante, para a divulgação da imagem do filho que concebeu, o que evidencia e até fortalece a afirmação de ser o nascituro titular do direito à imagem” (BERTI, 2008, p.88). O nascituro também tem direito à honra e poderá pleitear indenização se sofrer imputação de bastardia, por exemplo, conforme defende as autoras. 8 PROJETO DE LEI 478/2007 – ESTATUTO DO NASCITURO Ao dispor sobre o Estatuto do Nascituro, o projeto de lei em questão trata de seus direitos fundamentais, tais como direito a tratamento médico, a diagnóstico pré-natal, a pensão alimentícia ao nascituro concebido em decorrência de ato de violência sexual, a indenização por danos morais e materiais, além de tipificar como crime atos como dar causa, de forma culposa, a morte de nascituro; anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto; congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação; fazer a apologia de aborto, dentre outros. Como justificativa, seus autores sustentam pretender tornar integral a proteção ao nascituro, realçando-se, assim “o direito à vida, à saúde, à honra, à integridade física, à alimentação, à convivência familiar” e a proibição de “qualquer forma de discriminação que venha a privá-lo de algum direito em razão do sexo, da idade, da etnia, da aparência, da origem, da deficiência física ou mental, da expectativa de sobrevida ou de delitos cometidos por seus genitores” (SENADO, 2010). À proposição principal, foram apensados os seguintes projetos: – PL 489/07, de idêntico teor, também dispõe sobre o Estatuto do Nascituro; – PL 1.763/07, que dispõe sobre a assistência à mãe e ao filho gerado em decorrência de estupro; – PL 3.748/08, que autoriza o Poder Executivo a conceder pensão à mãe que mantenha criança nascida de gravidez decorrente de estupro. Referido projeto dispõe que o nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido, incluindo os embriões in vitro, antes de serem implantados no útero. São reconhecidos alguns direitos como dignidade, vida, saúde, integridade física e os demais direitos da personalidade previstos nos arts. 11 a 21 do Código Civil de 2002. Os direitos patrimoniais ficam sujeitos à condição resolutiva, pois caso o nascituro não nasça com vida, seus efeitos serão extintos. Defende Zélia Maria Cardoso Montal que o nascituro é sujeito de direito, pelos simples fato de estar na condição de ser humano, devido ao princípio da igualdade material ou substancial. A autora é a favor do Estatuto do Nascituro, pois a realidade demonstra a vulnerabilidade deste ser e o seu reconhecimento como específico sujeito de direito, portanto, se faz exigível proteção específica, com legislação própria (MONTAL, 2009). Favorável ao estatuto, Silma Mendes Berti pontua que: “Admitir ser o embrião uma potencialidade de pessoa é aceitar que, entre o que é hoje e o homem e que ele será, no futuro, há uma distância a ser percorrida. O ser concebido deve ser visto, isto sim, como uma pessoa humana in fieri, ou pessoa humana com um potencial. Assim ele próprio sinalizará o reconhecimento de sua dignidade e a proteção de sua pessoa. O direito do embrião deve harmonizar-se com outros direitos, talvez menos fundamentais que a dignidade. Além do mais, é preciso ressaltar a impropriedade do postulado, para pensar que o caráter contínuo do desenvolvimento do fenômeno vital torna improvável o corte da vida, desde a concepção à morte, em categorias submetidas, cada uma delas, a um direito diferente. Assim, dotar um embrião de um estatuto, como se propõe, será sempre uma louvável ideia” (BERTI, 2008, P.90-91). Jussara Meirelles (2000) mostra-se favorável à criação de legislação especifica para proteger os embriões in vitro, ao afirmar que “considerados em si mesmos portadores de vida, afastada resulta sua caracterização como bens suscetíveis de subordinação a interesses econômicos. Forçoso, por conseguinte, afirmar a indubitável necessidade de sua proteção jurídica específica, impondo-se para tanto, distanciá-los da categorização estabelecida tradicionalmente, bem como, sob o enfoque do amparo, equipará-los aos demais seres humanos”. Criticáveis são os arts. 7º e 9º do estatuto ao disporem: “Art. 7º O nascituro deve ser destinatário de políticas sociais que permitam seu desenvolvimento sadio e harmonioso e o seu nascimento, em condições dignas de existência. Art. 9º É vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro, privando-o de qualquer direito, em razão do sexo, da idade, da etnia, da origem, de deficiência física ou mental.” Políticas sociais que permitam seu desenvolvimento sadio e harmonioso são um tanto difíceis de concretizarem. É forçoso imaginar que este ser possa ser destinatário de políticas sociais, seja estando no útero ou no laboratório criopreservado. Ademais, como imaginar discriminação em razão de sexo, etnia e deficiência física e mental? Até então, a medicina não evoluiu ao ponto de na fase embrionária diagnosticar o sexo, cor de pele e possível deficiência do embrião, salvo na hipótese de ser oriundo de técnica de reprodução assistida, que ainda assim tem restrições éticas, dispostas na Resolução 1.957 do CFM e no Código de Ética Médica. O PL 478/2007 está atualmente para análise pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, desde 09/04/2012. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após exaustiva pesquisa e exposição de diversos temas que comportam a situação jurídica do nascituro concluo que o tema como antes afirmado é polêmico e bastante debatido. Acerca do início da vida e da teoria a ser adotada não se coaduna nestes estudos a nenhuma, posto que será o caso concreto que determinará o direito ou não a ser aplicável, posto que as relações jurídicas não são estáticas, ao contrário, são complexas e dinâmicas. Não se pode entender que mesmo em determinadas situações o nascituro possua personalidade, pois esta, como já referendada no código civil, somente ocorre com o nascimento com vida. Haverá situações em que o nascituro possa ser titular ou não de direitos, e isto não implica em personalidade, pois a própria lei já põe a salvo seus direitos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/aspectos-controvertidos-da-situacao-juridica-do-nascituro/
Código de Nuremberg: a construção histórica da pesquisa com seres humanos
Durante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, foram perpetradas as mais tristes torturas já registradas na história mundial, produzindo as mais vergonhosas e abjetas chagas para toda a coletividade, principalmente quando se verifica o emprego de seres humanos reduzidos a condição de “cobaias” pelos médicos nazistas. A partir desta perspectiva, o presente artigo adota como pilar fundamental a necessidade de discorrer acerca do Código de Nuremberg, documento internacional que consagra em seu bojo princípios éticos de experimentação com seres humanos, traçando, para tanto, um liame com os elementos que lhe contribuíram com o substrato de confecção. Nesta toada, igualmente, o presente visará explicitar, de modo objetivo, a singular importância do referido diploma para a comunidade científica, ao tempo em que destaca todo o ideário proveniente dos princípios constantes de sua redação.
Biodireito
Abstract: During the course of World War II, were perpetrated the saddest torture already registered in world history, producing the most shameful and abject toward whole collectivity, especially if the employment of humans reduced the condition of "guinea pigs" by doctors Nazis. From this perspective, this article adopts, as a fundamental pillar of rhapsodize about the necessity of the Nuremberg Code, international document embodying ethical principles in his underwear, experimentation with human beings, plotting, for both, a connection with the elements which have contributed to the substrate manufacturing. This tone also, this will cover, objectively, a singular importance degree for the scientific community, all the highlights from the principles set out in your essay. Keywords: Nuremberg Code, principle of beneficence, principle of autonomy and principle of justice. Sumário: I – Comentário Introdutório; II – Substrato Histórico: Segunda Guerra Mundial (1939-1945); III – Eugênia Nazista e a Experimentação com Seres Humanos; IV – Código de Nuremberg: A Disciplina da Experimentação Humana. I – Comentário Introdutório. Em uma primeira plana, preponderante se faz tecer alguns comentários acerca de toda a feição de estrutura que alicerça o Direito. É cediço que, dentre os muitos aspectos que integram a Ciência Jurídica, a mutabilidade é digno de nota e como tal deve ser observada quando propulsiona a adequação das normas, abstratas e genéricas, ao caso concreto. Nesta situação, busca-se atender as necessidades da população de modo geral, ao tempo que extirpa do seio da coletividade os ideários de vingança particular, resquícios do primitivismo proveniente da Lei de Talião. Nesta senda, como a boa técnica aconselha, pode-se citar o célebre brocardo jurídico ubi societas, ibi jus, que demonstra, de maneira clara e robusta, a interdependência mantida entre o Direito e a sociedade. Aliás, Ulpiano, no período romano, já alardeava que ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus (onde está o homem, aí está a sociedade; onde está a sociedade, aí está o direito). Pois bem, pode-se vislumbrar, desta sorte, uma dupla consequência. Para a Ciência Jurídica, tal relação é pedra de sustento para atalhar a anacrosidade das normas, eliminando qualquer ranço de inalterabilidade e estagnação de seu arcabouço. Já para a sociedade, configura elemento magno de pacificação, pois evita que a força física suplante a lei e os ideários dela advindos, assim como a exploração dos mais fracos pelos abastados. Cuida pontuar, ainda, que quid sit iuris, isto é, o Direito, como ciência detentora de um arcabouço maciço de conhecimento, se funda, mormente, em uma conversão de fatores históricos que “conspiram” para a sedimentação de seus dogmas. Como manifesto exemplo do esposado, pode-se fazer menção a construção do Código de Nuremberg, fruto da mais ampla e triste sorte de experiências fomentadas na Segunda Guerra Mundial pelas forças alemãs em seus prisioneiros de guerra. II – Substrato Histórico: Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Como gizado anteriormente, fato é que o sucedâneo de elementos históricos tem o condão de construir ou ao menos ofertar o substrato indispensável para a edificação de documentos legais que rechacem o que ocorrera. Nesta esteira de pensamento, pode-se destacar que o Código de Nuremberg teve suas bases e baldrames fincados com a gama de atos horrendos e animalescos produzidos, sobretudo, durante o desenrolar da Segunda Grande Guerra. Foi durante os negros anos de 1939 e 1945 que as descompassadas ideias de Hitler em sua busca de uma raça pura se desenvolveu, produzindo chagas e úlceras que aviltaram a dignidade de tantos milhões e desencadearam a repulsa do ser humano para com o seu semelhante. As consequências produzidas há mais de cinquenta anos ainda sussurram na história e, felizmente, não permitem que cada indivíduo esqueça o que a sanha desmedida de um é capaz de produzir em relação a toda humanidade. O sangue de milhões de inocentes, em um Holocausto estúpido e infundado, banhou a Europa e revelou o ser humano em seu lado mais primitivo e, ao mesmo tempo mais maléfico, o homem como algoz do próprio homem, a ambição de um como flagelo de milhões. Calha pôr em destaque que no período em comento, pode-se verificar, de maneira robusta, a depreciação dos direitos humanos basilares, sendo suprimidos e sufocados pelo ideário fanático dos defensores do nazismo. Ao lado disso, pode-se ainda arvorar como premissa o fato que a concepção de dignidade da pessoa humana, tão festejada nas últimas décadas do século XX, reduz-se a um mero e utópico conceito, algo estéril e incapaz de atuar, tendo como marco de limitação, a vontade caprichosa e insensata de um governante atormentado. Neste apocalíptico quadro, as maiores perversões ganharam corpo e toda triste sorte de práticas subumanas de experimentação biológica gozam de grande destaque. Aqui, não mais se consegue distinguir o ser humano como criatura dotada de potencialidade a serem desenvolvida, ao revés, vê-se tão-somente milhões de cobaias à disposição de “médicos” e “enfermeiros”. III – A Eugênia Nazista e a Experimentação com Seres Humanos. Tendo por sedimento primário as breves ponderações tecidas alhures, pode-se considerar que a mola motriz para o desencadear de tais fatos repousa nas premissas de eugênia entabuladas pelo cientista inglês Francis Galton, que “propôs a seleção artificial para o aprimoramento da população humana segundo os critérios considerados melhores à época”[1]. Ao escrever a obra Hereditary Genius (O gênio herdado), em 1869, Galton observou que a inteligência em vários membros de múltiplas famílias inglesas durante sucessivas gerações, permitindo-lhe alcançar como conclusão de que “a inteligência acima da média nos indivíduos de uma determinada família se transmite hereditariamente”[2]. Destarte, acreditando que a condição inata, e não os múltiplos fatores oriundos do meio-ambiente, tinham o condão de determinar a inteligência, Galton propôs uma eugênia positiva, que se daria por meio de casamentos seletivos. Hitler, após ter contato com os ideários da eugênia americana, da qual, aliás, demonstrava ser profundo conhecedor, consolida sua posição eugenista ao ter contato com múltiplas publicações acerca do tema, moldando, por conseguinte, seu fanatismo à pseudociência da eugênia. “Ele (Hitler) preferiu legitimar seu ódio racial envolvendo-o numa fachada médica e pseudocientífica mais palatável – a eugenia. De fato, foi capaz de recrutar mais seguidores entre alemães equilibrados ao afirmar que a ciência estava a seus lado”[3] . Ainda nesta linha de ideia, pode-se citar a obra Mein Kampf, no qual Hitler declara que: “A exigência de que pessoas defeituosas podem ser impedidas de procriar descendências igualmente defeituosas parte da razão mais cristalina e, se sistematicamente executada, representa o ato mais humano da humanidade” (Hitler, Mein Kampf, v.I cap. X, p. 255, apud Edwin Black, op. cit. p. 443)[4]. “O Estado dos Povos deve estabelecer a raça no centro de toda vida. Precisa tomar cuidado para mantê-la pura… Precisa cuidar para que somente os saudáveis tenham filhos; pois existe apenas uma única desgraça: deixar que alguém, a despeito da própria doença e deficiência, traga crianças ao mundo… É necessário que sejam declarados incapazes para procriar todos os que são doentes de modo visível e que herdaram uma doença e podem, dessa maneira, passá-la adiante, e colocar isso em prática.” (Hitler, Mein Kampf, v.II cap. II, p. 403-404, apud Edwin Black, op. cit. p. 443)[5] “A prevenção da faculdade de procriadora e da oportunidade para procriar, da parte dos fisicamente degenerados e mentalmente enfermos, durante um período de seiscentos anos, não somente libertará a humanidade de uma incomensurável desgraça mas levará a uma recuperação que hoje parece escassamente conceptível… O resultado será uma raça que, pelo menos, terá eliminado os germes da nossa atual decadência física, e consequentemente, espiritual.” (Hitler, Mein Kampf, v.II cap. II, p.p. 402, 404-405, apud Edwin Black, op. cit. p. 443)[6]. Cumpre destacar que a razão motivadora para que a medicina se dedicasse ao campo eugênico foi à busca da sociedade perfeita, pois, segundo os nazistas, a inferioridade dos não arianos, não decorria de qualquer desigualdade social existentes, mas sim dos laços sanguíneos existentes, da etnia que pertenciam. Logo, esse era a causa que motivava a inferioridade racial e que acarretava os problemas sociais. Portanto, o extermínio seria apenas uma seleção natural que traria benefício à sociedade, verifica-se, desta feita, a clara amoldagem do fanatismo de Hitler aos ideais de eugênia propostos por Galton. Um ponto que merece ser apontado está relacionado ao fato curioso dos médicos usarem até mesmo ambulâncias da Cruz vermelha, para demonstrarem que as execuções se resumiam a um favor humanitário, necessário para a obtenção de uma raça pura e superior às demais. É possível traçar entre os doentes incuráveis, sessenta (60) mil epiléticos, quatro (04) mil cegos, dezesseis (16) mil surdos, vinte (20) mil deficientes físicos, dez (10) mil alcoólatras, duzentos (200) mil deficientes mentais, oitenta (80) mil esquizofrênicos e vinte mil (20) mil maníacos depressivos foram executados. Tudo em busca de uma raça ariana pura.  As experiências, lideradas principalmente pelo Dr. Josef Mengele, o “Anjo da Morte”, eram, essencialmente, de cunho genético, desenvolvendo seus experimentos em Auschwitz. Conta-se que no referido campo de concentração, o “Anjo da Morte”, propositalmente, contaminava judeus sadios com o bacilo do tifo, no intuito de criar vacinas (antídotos). Inclui-se também a utilização de injeções de tintas de cor azul nos olhos de crianças ou ainda amputações de cunho diverso e cirurgias caracterizadas pela brutalidade acentuada, assim como a tentativa de, pelo menos uma vez, criar siameses de forma artificial, mediante a união de veias de irmãos gêmeos (Wikipédia, 2010). Narra-se, ainda, que com o intuito de avaliar a resistência do corpo humano, médicos empregavam câmaras de alta e baixa temperatura, composta por dezenas de prisioneiros. Registra-se que com as referenciadas práticas de hipotermia, centenas de pessoas foram vitimizadas. Todos esses atos científicos compreendiam a política biológica defendida pelos nazis, que em nome da busca da raça perfeita, fizeram seres humanos como meras cobaias. Outro exemplo de médico nazista que perpetrou verdadeiros atentados contra a humanidade foi Dr. Carl Clauberg que injetou uma sucessão de substâncias químicas no útero de milhares de mulheres de origem judia e cigana. Segundo é narrado, as vítimas passavam por um processo de esterilização oriundo das injeções que produziam uma dor extrema, sendo comum a inflamação dos ovários, espasmos estomacais e hemorragias internas. Além disso, o Dr. Carl Clauberg posicionava homens e mulheres repetidamente durante vários minutos entre duas máquinas de radiografia apontadas aos seus órgãos sexuais. Contudo, a maioria das vítimas morriam imediatamente e aqueles que conseguiam sobreviver, eram levados para câmaras de gás e devido aos graves ferimentos causados pela radiação, tornava-se um impedimento para o regresso ao trabalho forçado (Tortura.wordspress, 2010). Célebre pelas atrocidades cometidas, a Drª. Herta Oberheuser se valia de injeções de óleo e evipan para assassinar suas vítimas, preferencialmente, crianças. Conforme é descrito, posteriormente, a médica retirava os órgãos vitais para análise. “O intervalo entre a injecção e a morte variava entre 3 e 5 minutos estando à pessoa perfeitamente consciente até ao último momento” (Tortura.wordspress, 2010). É considerada como o indivíduo que fez as experiências mais repulsivas e cruéis já tentadas pelo ser humano, uma vez que o objetivo primordial era tão-só infringir dor em suas “cobaias”, pois, entre os objetos que utilizava estava a inserção de pregos enferrujados, lascas de vidro e madeira, desse modo, simulando as condições de batalha de um soldado alemão (Tortura.wordspress, 2010). IV – O Código de Nuremberg: A Disciplina da Experimentação Humana. Um dos principais documentos que surgiram no pós-Segunda Guerra Mundial é o Código de Nuremberg, que consiste em um documento internacional que em seu âmago compreende um conjunto de princípios de essência ética e que regem as experiências com seres humanos, observando o tratamento digno dos indivíduos que servem como elementos para experimentação médica. Em um primeiro contato, pode-se considerar que o documento em comento teve como fito repudiar, expressamente, toda a multiplicidade de crimes motivados pelo “avanço” médico impensado, propulsionado tão-somente pela incontida busca da raça pura ariana. Tal fato se torna ainda mais palpável quando se observa que dos vinte e três julgados pelo Tribunal Militar Internacional, em Nuremberg, vinte eram médicos, considerados como criminosos de guerra justamente pelos brutais experimentos desenvolvidos com seres humanos nos campos de concentração nazistas. Devido a todo o substrato sobre qual se construiu o diploma internacional em análise, é possível extrair como principal característica a estruturação de dez princípios básicos, que determinam em seu texto as normas do consentimento informado e da ilegalidade da coerção da experimentação humana. Verifica-se, também, os sustentáculos da regulamentação dos experimentos científicos com seres humanos, bem como a defesa pela beneficência como um dos fatores justificáveis sobre os participantes dos experimentos. Aliás, isso é perceptível no primeiro artigo do referido documento: “1 – O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que a pessoa envolvida deve ser legalmente capacitada para dar o seu consentimento; tal pessoa deve exercer o seu direito livre de escolha, sem intervenção de qualquer desses elementos: força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição ou coerção posterior; e deve ter conhecimento e compreensão suficientes do assunto em questão para tomar sua decisão. Esse último aspecto requer que sejam explicadas à pessoa a natureza, duração e propósito do experimento; os métodos que o conduzirão; as inconveniências e riscos esperados; os eventuais efeitos que o experimento possa ter sobre a saúde do participante. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento recaem sobre o pesquisador que inicia, dirige ou gerencia o experimento. São deveres e responsabilidades que não podem ser delegados a outrem impunemente”[7]. Ao esmiuçar a redação do referido artigo, infere-se a consagração da liberdade daquele participante que servirá como elemento na experimentação, salvaguardando o consentimento voluntário, sem qualquer intervenção ou ingerência, repudiando, expressamente, a forma coercitiva e arbitrária com que se deu durante o conflito armado. Trata-se, desta feita, da consagração do princípio da autonomia, que, “em resumo, diz que todo ser humano deve ser livre para decidir sobre o que é melhor para si, não podendo, de forma alguma, ser coagido a tomar decisões que firam seus interesses” (PIRES et all, 2010). Ademais, como bem pontua Pires e Trindade (2010), para que tal fato ocorra, é indispensável que o indivíduo esteja devidamente informado sobre as vantagens e desvantagens, como também dos riscos dos procedimentos ao qual está submetendo, o que se pode perceber, inclusive, taxativamente entalhado na redação do dispostivo em exame. Igualmente, pode-se ainda trazer à baila o art. 2º do Código de Nuremberg que consagra o princípio da beneficência, como aduz a redação do referido: “2 – O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, os quais não possam ser buscados por outros métodos de estudo, e não devem ser feitos casuística e desnecessariamente”. (Wikipédia, 2010). Aliás, em atinência ao referido princípio, alguns pontos são dignos de comentários, como bem pondera Jussara de Azambuja Loch[8], beneficência quer dizer fazer o bem. Assim, em uma perspectiva prática, significa ter a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Como pontua a supracitada articulista, “este conceito, quando é utilizado na área de cuidados com a saúde, que engloba todas as profissões das ciências biomédicas, significa fazer o que é melhor para o paciente, não só do ponto de vista técnico-assistencial, mas também do ponto de vista ético”. Ainda nesta trilha de raciocínio, insta frisar o robusto entendimento firmado por Pires e Trindade (2010), mormente, quando destacam que a finalidade última do desenvolvimento da ciência deveria repousar sobre o conforto e o bem-estar dos seres humanos. Em sua ponderação, os referidos articulistas ainda destacam que: “Portanto, as pesquisas, principalmente as biomédicas, jamais poderiam provocar sofrimento físico ou submeter seus sujeitos a situações humilhantes. O que sobressai nesse princípio é a obrigatoriedade de se fazer o bem, de procurar a cura ou tratamento de doenças sem que, para isso, seja necessário prejudicar ou sacrificar uma pessoa para atingir os objetivos”. (PIRES et all, 2010)  Verifica-se, também, consagrado no Código de Nuremberg a ótica de não infringir sofrimento naquele que serve como voluntário nos experimentos, o que revela o repúdio do agir de figuras como Dra. Herta Oberheuser, Dr, Carl Clauberg e Dr. Josef Mengele. Isto é, a experimentação com seres humanos não pode ser feita ao acaso ou ainda de forma desmedida, em razão de não ser o voluntário uma mera “cobaia”, ao contrário trata-se de um indivíduo que com o seu “sacrifício” auxilia a evolução médica e o aprimoramento das técnicas em prol da humanidade. Pode-se, inclusive, construir tal ideário a partir da redação dos artigos 4º ao 7º do Código de Nuremberg: “4º – O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo o sofrimento e danos desnecessários, físicos ou mentais. 5º – Nenhum experimento deve ser conduzido quando existirem razões para acreditar numa possível morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, no caso de o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento. 6º – O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o pesquisador se propõe resolver. 7º – Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade, mesmo remota, de dano, invalidez ou morte.” (Wikipédia, 2010) O terceiro e último princípio que se pode considerar consagrado no Código de Nuremberg tange à justiça. Desta forma, compreende-se que os seres humanos são iguais desde seu nascimento,“não lhes podendo ser negado qualquer tratamento ou assistência em função de discriminação oriunda de seu status social, raça ou qualquer outro fator subjacente a sua identidade” (PIRES et all, 2010). Logo, todos aqueles que participarem de experimentos biomédicos devem, imperiosamente, ser tratados com a imparcialidade por parte do pesquisador, porquanto os eventuais venefícios devem ser, obrigatoriamente, de forma equânime entre os sujeitos participantes. Face ao esposado, é possível salientar que a utilização do ser humano em pesquisas médicas usufrui de grande importância, sobretudo quando se lança mão de múltiplos exemplos consagrados pela história, como a vacina contra a varíola, a vacina contra a hidrofobia, a descoberta da insulina, os estudos sobre a febre amarela, a prevenção da pelgra e a história das pesquisas em anestesiologia. Todavia, estas devem se pautar em um procedimento norteado pela tecnicidade do médico que a produz, aliado com a conscientização do voluntario e o respeito à sua integridade, objetivando evitar que novas sanhas impensadas e desmedidas venham a ser produzidas em nome do avanço da medicina.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/codigo-de-nuremberg-a-construcao-historica-da-pesquisa-com-seres-humanos/
Aborto de anencéfalos: direito a vida e impacto sucessório
O presente trabalho demonstra como a decisão do STF, prolatada no último dia 11 de abril na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sob nº 54, que teve como objetivo ver declarada inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, fere a Constituição Federal Brasileira, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil Brasileiro, e relata em especial, os reflexos que a permissão do aborto dos fetos anencefálicos produz no âmbito do Direito Sucessório.
Biodireito
INTRODUÇÃO Polêmica e, para alguns, assustadora foi a decisão do Supremo Tribunal Federal – no STF ao julgar, no último dia 11 de abril, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 54, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A arguição teve como objetivo ver declarada inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal Brasileiro, no sentido de penalizar o que a entidade denominou de “antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos” e, em consequência, reconhecer o direito da gestante de antecipar o parto nos casos de gravidez de feto anencefálico, devidamente diagnosticado por médico habilitado, sem a necessidade de autorização judicial prévia. O pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, teve como fundamento a violação dos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II) e do direito à saúde (art. 6º, caput, e art. 196), todos da Constituição Federal. A autora indicou como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal. O Pleno do Superior Tribunal Federal julgou, por maioria dos votos, procedente a referida ação e, assim, declarou inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de tipificar o aborto quando se tratar de feto anencefálico. Esta decisão afronta olimpicamente o direito à vida – bem maior tutelado pela Constituição Federal Brasileira e pelo Pacto de São José da Costa Rica. Afronta também o Código Civil que põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro e pode, em alguns casos, repercutir no âmbito do Direito das Sucessões. O presente trabalho tem como objetivo justamente demonstrar como a decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sob nº 54 fere a própria Constituição Federal, os preceitos constitucionais postos pelo Pacto de São José da Costa Rica e as determinações do Código Civil, além de relatar as possíveis consequências que a permissão do aborto dos fetos anencefálicos traz no aspecto sucessório. Considerando-se o objetivo mencionado, este trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro trata da anencefalia e busca trazer o entendimento do que é esta anomalia e quais as consequências que dela podem surgir. O segundo capítulo tem a finalidade de destacar, no ordenamento jurídico brasileiro, as regras que protegem o direito à vida e demonstrar que este direito é o bem jurídico de maior valor e, em consequência, merece ser tutelado em toda e qualquer circunstância. No capítulo seguinte, pretende-se demonstrar que a decisão do Superior Tribunal Federal em questão afronta a própria Constituição Federal, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil. Por último, demonstrar-se-á uma das sérias consequências advindas do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54: o impacto que a possibilidade do aborto dos fetos portadores de anencefalia irá provocar no Direito das Sucessões. Com as considerações feitas nos capítulos acima enumerados, pretende-se, ainda que se isole a acirrada discussão e divergência doutrinária e jurisprudencial entre o conflito do “direito” da mulher gestante “já nascida” ao aborto de fetos anencefálicos e o direito de nascer do nascituro, provocar a observação dos operadores do Direito, quanto a todos os efeitos de tal fato produzidos no mundo jurídico, incluindo àqueles reportados ao direito de terceiros, o que não deve e não pode ser ignorado pelo Direito. 1 Anencefalia Para desenvolver o assunto abordado, necessário se faz entender o que é a anencefalia e quais são as suas consequências. A anencefalia é definida na literatura médica como a “má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico”[1]. A enciclopédia Wikipédia define anencefalia como “uma malformação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária”[2]. Como não há ossos frontal, pariental e occipital, o cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientares. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, na realidade, a anencefalia não consiste, necessariamente, na ausência total de encéfalo; existem graus variados de danos encefálicos. Trata-se de uma má-formação que passa de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Esta realidade torna impossível uma definição exata e uma classificação rigorosa da anencefalia. A divergência conceitual pode ser demonstrada nas definições trazidas por Moore e Persaud, para os quais “anencefalia é a existência de uma massa esponjosa, existindo parte do encéfalo e não é a ausência dos hemisférios”[3]; e por Moreira que, ao contrário do entendimento anterior, define anencefalia como “uma alteração congênita do qual resulta a ausência dos dois hemisférios celebrais e estrutura óssea do crânio”[4]. O que não se duvida é que a anencefalia é uma patologia letal; a vida extrauterina é, em 100% dos casos, fatal. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável. Todavia, embora se saiba que bebês com anencefalia possuem expectativa de vida muito curta, não há como precisar o tempo de vida que terão fora do útero materno. Thomaz Gollop[5] afirma que aproximadamente 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero e que, dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que cessa, na maioria dos casos, em 24 horas, e os demais nas primeiras semanas de sobrevida. Conclui-se que, independentemente do aspecto conceitual, psicológico ou científico, a questão unânime sobre a anencefalia é que não havendo atividade cerebral, a chance de sobrevivência deste feto, mesmo que por horas ou dias, é mínima. Mas não é nula! 2 Direito à vida A Constituição Federal, no seu art. 5º que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, assevera que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida". Deste modo, não há dúvida de que o direito à vida é posto como “marco primeiro no espaço dos direitos fundamentais”, de acordo com as palavras do então Procurador Geral da União, Cláudio Lemos Fonteles[6], quando encaminhou seu parecer ao Supremo Tribunal Federal sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Como se não bastasse a Constituição Federal Brasileira tratar do direito à vida como uma das cláusulas pétreas, o Código Civil Brasileiro também o protege e, mais, esclarece e define que, se há processo normal de gestação, há vida intrauterina, ou seja, a vida se forma no ventre materno e deve, desde então, ser protegida. Assim determina o art. 2º do Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Logo, nas palavras de Teixeira de Freitas, o nascituro é pessoa por nascer, já concebida no ventre materno, e que por tal fato, já tem o direito intrínseco à vida, livre dos prematuros e falíveis julgamentos humanos. Nesse contexto, abstendo-se da discussão doutrinária moderna acerca do início da personalidade jurídica do homem – teoria concepcionista ou teoria natalista – fato é que o começo da vida do homem vai desde o encontro dos gametas masculino e feminino com a fusão dos núcleos (singamia) até o nascimento. Eis, pois, aí, o fundamento do direito de nascer, como o primeiro direito do homem, antes mesmo deste adquirir a personalidade jurídica, em se considerando esta a partir da teoria natalista do art. 2º. Primeira parte do Código Civil Brasileiro. Se ainda assim persistirem dúvidas acerca da necessidade primeira de proteção do direito à vida e do momento em que este direito passa a existir e, em consequência, o momento em que sua proteção deve iniciar-se, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, determina o seguinte, no seu art. 4º: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Vale lembrar que as regras do Pacto de San José da Costa Rica incorporam-se ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, vez que os tratados internacionais e convenções sobre direitos humanos, aos quais o Brasil tenha aderido, são equivalentes às emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da CF). A Convenção sobre os Direitos da Criança também protege o direito à vida, mesmo antes do nascimento. O Preâmbulo desta Convenção define que “a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento”[7]. Desta maneira, demonstrado está que os diplomas legais, internos e internacionais, estabelecem que há vida desde a concepção e que ela deve ser protegida desde então. No item anterior vislumbrou-se que o bebê portador de anencefalia invariavelmente nascerá e que se apurou no levantamento estatístico, citado por Thomaz Gollop[8], que 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero e que, dos 25% que chegam a nascer, podem viver segundos, minutos, horas, dias ou meses. A questão central é definir se os fetos anencefálicos, unicamente por terem, estatisticamente, 25% de chance de nascerem vivos e, se isto ocorrer, viverão por um indefinido, mas curto espaço de tempo, não merecem a proteção jurídica do seu direito à vida. É juridicamente possível legitimar a morte, aniquilar o direito constitucionalmente previsto, unicamente em função do tempo de previsão humana de vida que o bebê terá fora do útero materno? Pode-se aferir o direito à vida apenas pelo tempo provável, humanamente calculado, de sobrevida extrauterina? Obviamente que não! E a razão, não se sustenta em cálculos e previsões humanas, mas em fatos. Fatos, cuja força probatória contradiz no todo o argumento que embasa a legitimação da morte a fim de prestigiar o direito de quem já teve o direito de nascer e viver. A menina Marcela de Jesus, é exemplo do citado[9]. Nascida em 20 de Novembro de 2006, no Município de Patrocínio Paulista, sem o córtex cerebral, apenas o tronco cerebral, responsável pela respiração e batimentos cardíacos. O caso gerou divergências, pois alguns especialistas levantaram a hipótese de que a menina sofria na realidade de uma má formação do crânio (encefalocete) associado a um desenvolvimento reduzido do cérebro (microcefalia). Outros acharam que o que ocorreu foi uma forma ¨não clássica¨ de anencefalia. Marcela faleceu em 31 de Julho de 2008, em consequência de uma pneumonia aspirativa. E segundo os médicos a sobrevivência surpreendente de Marcela mostra que o diagnóstico não é nada definitivo. Em entrevista feita quando Marcela ainda estava viva, a pediatra Marcia Beani Barcelos, profissional que mais acompanhou o caso, afirmou que a discrepância não era só em relação ao diagnóstico intrauterino, mas aos prognósticos geralmente feitos. Ela não pode ser comparada com uma criança com morte cerebral que não tem sentimentos. A Marcela não vive em estado vegetativo. Agora como ela processa isso, é um Mistério. Vitória de Cristo, é outro caso raro diagnosticada com anencefalia que sobreviveu além dos prognósticos médicos. Nascida em 13 de Fevereiro de 2010 em uma cidade de São Paulo, tendo completado dois anos agora em 2012. Com 12º semanas de gestação, ela foi diagnosticada com Acrania, situação que evolui para anencefalia, e seus pais foram contra a interrupção da gravides, e ao nascer Vitoria foi diagnosticada como anencéfala e aos quatro meses de vida, um exame de Ressonância Magnética relatou ¨Anencefalia Incompleta¨. Aos dois anos de idade, Vitoria faz fisioterapia, alimentasse normalmente, responde à estímulos, engatinha e até manifesta sorrisos. Os seus pais acreditam que isso só vem demostrar que como o diagnóstico de anencefalia é complexo. Cláudio Lemos Fonteles[10] avalia as questões referidas afirmando que “o direito à vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana”. Não se desconsidera a dor da gestante. Não se desconsideram as consequências psicológicas que a gestante poderá vir a ter que suportar. O que se pretende é demonstrar que o direito à vida do bebê anencefálico é infinitamente mais valioso e é juridicamente protegido, assim como o é a dignidade humana da gestante e a autonomia da vontade; todavia, entre estes valores jurídicos tuteláveis, o direito à vida é primordial e deve prevalecer em qualquer circunstância. Destacam-se, neste ponto, mais uma vez as palavras Cláudio Lemos Fonteles: “o sofrer uma dor, mesmo que intensa, não ultrapassa o por cobro a uma vida, que existe, intrauterina, e que, seja sempre reiterado, goza de toda a proteção normativa, tanto sob a ótica do direito interno, quanto internacional”. Outra não é a razão para que a legislação penal, assim como as legislações acima mencionadas, estabelecerem de forma contundente a proteção do direito à vida. Pelo tempo que for possível! 3 A decisão do STF frente ao direito à vida O Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 54, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Com esta decisão, o STF declarou inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos e, em consequência, reconheceu o direito da gestante de optar pelo aborto do feto anencefálico, sem a necessidade de autorização judicial prévia, quando a anomalia for devidamente diagnosticada por médico habilitado. A decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal foi por maioria dos votos. Somente os Ministros Ricardo Levandovski e Cezar Peluso votaram no sentido de que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 deveria ser julgada improcedente. O ministro Ricardo Levandovski, sexto a votar no julgamento, destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da interpretação das normas conforme a Constituição Federal a serem desempenhados pelo STF. Afirmou o ministro que o STF só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição. Com isto quis o ministro deixar claro que a Corte usurpou os poderes atribuídos aos integrantes do Congresso Nacional, ou seja, jamais pode promover inovações no ordenamento jurídico brasileiro – cabe ao Congresso Nacional alterar a legislação penal para incluir, dentre os casos em que o aborto não é criminalizado, o dos fetos anencéfalos. Destacou, também, que a decisão do Tribunal de descriminalizar o aborto de feto anencefálico, ainda que a legislação penal não contemple esta hipótese, pode dar azo à interrupção da gestação em inúmeros outros casos de patologias que resultam em pouca ou nenhuma perspectiva de vida fora do útero materno. O ministro Cezar Peluso foi o último a votar e destacou seu entendimento de que o feto anencefálico é portador de vida e, em consequência, deve ter os seus direitos tutelados. Afirmou o ministro que para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina e, portanto, o aborto de feto portador desta anomalia é uma conduta vedada pela legislação penal. Acerca da alegação de liberdade e autonomia da gestante, o ministro afirmou que a liberdade jurídica é limitada pela existência das leis, sendo, nestes casos, alegações inócuas. Cezar Peluso destacou, por último, que não cabe ao STF atuar como legislador positivo – posicionamento defendido pelo ministro Ricardo Levandovski, conforme mencionado. Todos os demais ministros votaram pela procedência da ação, por entenderem que o direito à vida do feto anencéfalo que não tem chance de sobreviver e, se sobreviver, o será por pouco tempo, não pode prevalecer a qualquer custo, em detrimento dos direitos constitucionais da gestante: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, integridade física, psicológica e moral. Afirmaram os ministros que obrigar a gestante a manter a gestação de um feto portador de anencefalia equivale a uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, “assemelha-se à tortura”. Entenderam, em suma, que os direitos da mulher devem prevalecer frente ao direito do anencéfalo, vez que não se trata de vida em potencial, mas de um natimorto por não ter atividade cerebral, aplicando-se a Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, por analogia. Pois bem. Afora a questão posta pelos Ministros Ricardo Levandovski e Cezar Peluso, de que o Superior Tribunal Federal só pode exercer o papel de legislador negativo, ou seja, a Corte não pode usurpar funções do Legislativo – cuja análise não cabe neste artigo –, a decisão do STF em julgar procedente a arguição afronta a Constituição Federal Brasileira, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil Brasileiro. É, pois, e nesse sentido, uma decisão tomada ao arrepio da lei e que aniquila o maior bem jurídico a ser tutelado: o direito à vida. 4 O impacto da decisão do STF no Direito das Sucessões Sem embargos e afora toda altercação antecedente quanto ao maior e por isso principal direito afetado pela incongruente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal a qual fere toda ordem do Direito, em especial, a ordem dos Direitos humanos, há que se se deter, ainda, aos demais aspectos daquela resultantes. Ora, sabe-se que, a ordem jurídica existe para, e em prol da tutela do homem enquanto sujeito de direitos. Contudo, tal deve se processar sempre, que de nenhum modo prejudique a um terceiro, incluindo, neste caso, o nascituro por nascer. Por isso, há que atentar-se e não enganar-se com os fatos que estão a ocorrer e com eles os variados efeitos jurídicos, sobretudo contra direitos de terceiros no que se reporta ao Direito das Sucessões.  Não há dúvida de que o nascituro tem direito à sucessão legítima e testamentária, conforme as variantes a seguir apontadas. Os já concebidos, legitimam-se a suceder no momento da abertura da sucessão (art. 1784 CC), cujo direito se consolida com a aquisição da personalidade jurídica, no caso do Código Civil, do nascimento com vida, bastando para tanto, que o nascituro venha a respirar, independentemente da sua viabilidade humana. Os não concebidos, sob a modalidade testamentária, na condição de filhos, ainda não concebidos, de pessoa indicada pelo testador, desde que viva esta, no momento da abertura da sucessão e a concepção do herdeiro nascituro, se consume até dois anos da abertura da sucessão. Nesse contexto, a princípio, a defesa dos direitos sucessórios do nascituro está devidamente assegurada e em nada se altera por efeitos da decisão citada da suprema Corte em relação ao feto anencefálico. Entretanto, a análise do direito não está e não pode estar, engessada pelos limites aparentes a que se propõe diretamente o debate. E é por tal razão que se impõe examinar, além do impacto ao direito à vida do nascituro, o impacto nos direitos sucessórios deste, e por consequência de seus eventuais sucessores. Pois bem, do ponto de vista legal, pelo Código Civil Brasileiro, o nascituro tem a expectativa de vida e por consequência, a expectativa de aquisição da personalidade jurídica, acaso venha a nascer e inspirar pela primeira vez. Por derradeiro, pelo Direito Civil Brasileiro, qualquer nascituro que venha a falecer ainda durante a gestação, não terá direito a sucessão ou herança. No caso dos anencéfalos, após o nascimento, eles respiram e têm batimentos cardíacos por segundos, minutos ou horas a partir do nascimento, e isso basta para a capacidade de aquisição e também transmissão de direitos, independente da polêmica versão da Lei 9.434/1997, que reconhece o fim da vida com a morte encefálica. Com efeito, nesse caso, quem será o herdeiro do pai que morreu durante a gestação do anencéfalo?. Se ao feto anencéfalo, for permitido o nascimento, ainda que não tenha potencial de vida, mas, acaso, venha a nascer, respirar e morrer, pelo Código Civil Brasileiro, adquiriu personalidade jurídica. Com isso, tornou-se, portanto, sujeito de direitos e obrigações, em particular dos direitos sucessórios.  Esta circunstância induz à conclusão óbvia de que o nascituro adquirirá o direito sucessório de seu ascendente progenitor, tornando-se seu legítimo e necessário herdeiro, condição sob a qual irá também ocupar a condição de autor de herança e transmissão de tais direitos no momento de sua morte. A transmissão se dará aos seus legítimos sucessores, no caso à mãe, ou, na falta desta, aos demais herdeiros legítimos, segundo a ordem de vocação hereditária, descrita no art. 1829 do CC. Ao reverso, acaso ocorra a interrupção da gestação do feto, este, pelas razões acima, não adquirirá os direitos sucessórios do pai e por consequência não os transmitirá à mãe e a ordem de sucessão se altera por completo, seguindo-se pelo ditame e regra seguinte do art. 1829 do CC. Logo, ressalvada a hipótese desta ser casada com o autor da herança e de acordo com o regime de bens, manter eventual direito de concorrência com os ascendentes daquele, não fará jus a qualquer parte da herança deixada pelo progenitor do feto, em especial em se tratando dos regimes de separação de bens. Na mesma linha de raciocínio, siga-se pelo exemplo de alteração da ordem sucessória, com reflexos sobre terceiros no seguinte caso: Falecimento após o parto e sem relação necessária com este, de mulher casada pelo regime de separação total de bens com o pai do feto anencéfalo, o qual vem a falecer depois da mãe. Pergunta-se, acaso ocorrida a interrupção da gravidez, o pai do feto, à época marido da autora da herança, seria sucessor dos bens da mesma forma? Semelhante tumulto poderá incidir em caso dos direitos sucessórios que possam ser adquiridos e transmitidos pelo nascituro anencefálico, na sucessão testamentária. Isso, tanto em relação ao nascituro anencefálico já concebido ao tempo da abertura da sucessão, seja em relação aos filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas pelo testador, e que por ventura venham a ser concebidos com a deficiência de anencefalia, no prazo estabelecido pelo Código Civil. Do todo, corresponde o destaque para tão somente pretender dar ensejo ao início do debate voltado ao impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal – autorizadora e a partir de então, motivadora da interrupção da gravidez dos fetos anencefálicos, totalmente desvinculada de preocupação com seus principais reflexos e lesões ao direito de terceiros, incluindo nestes, o próprio nascituro, cujos interesses se divorciam da esfera patrimonial e se unem à esfera estritamente humana, até então, largamente difundida e ecoada como de principal defesa pelas vozes do próprio Supremo Tribunal Federal. Considerações finais Todo direito pressupõe o direito à vida. E cada vida humana é única e insubstituível. Se o nascituro não goza, ao menos deveria gozar de igual dignidade tal goza a mãe, digo – nesse caso – mulher, sobre seu corpo. Assim se esperava devesse continuar ecoando as vozes do Supremo Tribunal Federal. Ao que parece, como já outrora citado em artigo, com a multiplicação dos direitos, está a ocorrer uma horizontalização e inflação de direitos fundamentais, a qual pode não ser boa, gerando um desequilíbrio e por consequência, um conflito, e surge aí o efeito da neutralização e nesse sentido, se todos estão protegidos, ao mesmo tempo ninguém está na verdade do modo como merecem, a exemplo: ao proteger o direito da dignidade, da liberdade e autonomia da vontade e o direito à saúde da mulher que já teve o direito de nascer, o Supremo Tribunal Federal desprotegeu o direito de nascer de terceiros, primeiro e maior direito do ser humano, o que, sucessivamente, por efeito “dominó”, veio a atingir outros direitos envolvidos na cadeia, ainda que secundários, no caso, os direitos sucessórios do nascituro e de terceiros. Ademais, colhendo-se da fundamentação do Ministro Ricardo Levandovski quanto ao limite de objetivo de controle de constitucionalidade do STF, depara-se com os riscos de desequilíbrio e conflito de faculdades entre o executivo, legislativo e judiciário, com resultado de tensão entre os poderes do Estado Democrático de Direito. Segundo Ricardo Luis Lorenzetti (1998, p. 145 e 253), “o grupo de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual se pretende que gire o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual o Sol seja a pessoa”. Não se pode admitir, sob a versão do exercício do “direito” de autodeterminação procriativa e de liberdade sobre seu próprio corpo, o exercício do direito de matar, sob pena de, em se desviando da justiça, se perder o próprio Direito. Afinal, onde na verdade o direito é injusto, e me parece que o direito de decidir pela morte o é, não há o próprio Direito. Aliás, Gustav Radbruch concluiu em sua doutrina pós segunda guerra: O “direito” extremamente injusto, não é Direito. O debate é inexaurível e o diálogo, espera-se poder continuar.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/aborto-de-anencefalos-direito-a-vida-e-impacto-sucessorio/
A biodiversidade e o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direitos humanos
O presente trabalho tem como escopo introduzir a concepção de que a biodiversidade e o meio ambiente ecologicamente equilibrado, apregoado pelo nosso ordenamento jurídico, tem como fundamento os próprios direitos inerentes ao ser humano, ou seja, trata-se de um verdadeiro direito humano. A metodologia utilizada foi a qualitativa do tipo bibliográfica e chegamos a conclusão de que a importância da conservação ambiental não é uma questão puramente ética, mas uma questão de imprescindibilidade para a existência do próprio homem na Terra.
Biodireito
1. Introdução Antes mesmo de qualquer postulado máximo jurídico assegurar aos seres humanos determinados direitos subjetivos, é fundamental que estes seres estejam dotados das condições mínimas de proteção à sua integridade existencial. Afinal, para que o indivíduo se desenvolva de maneira plena na sociedade, é imprescindível que este possua elementos que assegurem a sua vida no mundo em que vivem.  Munidos destas informações, um dos elementos que asseguram esta plena capacidade de viver, e diga-se de passo, a nosso ver, o elemento mais importante, é a existência de um ambiente ecologicamente equilibrado, pois é neste que o homem está inserido e é dele que retira todas as demais condições que lhe asseguram a plena capacidade de viver, como a alimentação, a moradia, a saúde, etc. Logo, não nos resta explicar o quão é importante manter íntegro o espaço natural em que vivemos, pois este é o sustentáculo de nossa vida harmônica com o planeta e elemento indispensável para a vida. Por isso, não é nenhum exagero inferir que a manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado se torna um verdadeiro direito humano, posto que ofereça as condições de existência deste. 2. A Biodiversidade e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado como Direito Humano Como verdadeiro bem difuso, o meio ambiente como um todo não pertence a um ser individualmente isolado, muito menos a um grupo restrito de pessoas ou categoria social. A titularidade deste transcende tudo e a todos, indo recair de forma universal a todos que se beneficiam direta e indiretamente de tudo o que diz respeito ao espaço ambiental. Logo, o meio ambiente pertence a todos, sendo de todos também a prerrogativa de cuidar e zelar por este. Sendo, pois, bem difuso e universal que é, o meio ambiente pode ser postulado como verdadeiro direito humano, pois é ele que assegura a plena capacidade de vida dos seres. Mas, esta capacidade só pode ser plenamente desenvolvida se o meio natural estiver assegurado com as condições mínimas de equilíbrio ecológico, ou seja, se não houver qualquer índice de degradação relevante que ponha em risco o desenvolvimento deste espaço e em conseqüência disto ponha em risco a própria saúde humana. Logo, o direito humano não se restringe somente ao meio ambiente em si, mas ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois é desta forma que fica assegurada a vida e a integridade humana. O artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como o artigo 5º, caput, da Constituição Federal do Brasil de 1988, assegura à todos o direito à vida. Ora, o direito a vida não se restringe só a respirar ou vir a nascer no mundo, mas sim o direito de possuir as condições necessárias para se garantir a plena sobrevivência. E dentre estas condições necessárias para a vida é de citar-se como a mais importante, para as propostas deste estudo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado.  “O meio ambiente é, atualmente, um dos poucos assuntos que desperta o interesse de todas as nações, independentemente do regime político ou sistema econômico. É que as conseqüências dos danos ambientais não se confinam mais nos limites de determinados países ou regiões. Ultrapassam as fronteiras e, costumeiramente, vêm a atingir regiões distantes. Daí a preocupação geral no trato da matéria que, em última análise, significa zelar pela própria sobrevivência do homem."(FREITAS, 2001, p. 07) Segundo Silva (2009) o núcleo normativo do direito ambiental contido no artigo 225 da Carta Magna, está dentro do título constitucional denominado da "Ordem Social", o que faz concluir, que o meio ambiente é um direito social do homem. Deste modo, é de se deduzir que o conteúdo da norma inserida no mencionado artigo coaduna-se com o sentido de que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 1972 trouxe contundentes influências sobre a nossa Constituição Federal de 1988, pois foi um documento que ilustrou e proclamou a necessidade de considerar o meio em que vivemos como um direito inerente à todos, afirmando que o homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente. Esta mesma declaração trouxe o princípio de que o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar sendo portador solene da obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. Tudo indica que o art. 225 da Carta Constitucional teve a intenção precípua de preservar o meio ambiente não só para as presentes gerações, mas para as gerações futuras, preservando-o e recuperando as áreas já degradadas. Tal preocupação encontra na Declaração de Estocolmo as origens de seu fundamento como já observado anteriormente. Logo, a Constituição impôs a todos uma obrigação protetiva de cuidado e respeito com o meio ambiente. O direito ao ambiente como um dos direitos fundamentais da pessoa humana é um importante marco na construção de uma sociedade democrática, participativa e socialmente solidária. Na mesma esteira de pensamento, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92 reafirmou os princípios da Declaração de Estocolmo, e introduziram outros sobre o desenvolvimento sustentável, ou seja, de que o ser humano tem direito à uma vida saudável e em harmonia com a natureza, devendo ainda, estar no centro do desenvolvimento. Não como negar que o direito humano e o direito a um ambiente sadio permanecem conexos, afinal ambos buscam preservar a vida. Neste sentido, podemos identificar que ambos são direitos que mutuamente são violados se houver atentado contra apenas um deles. Constituem, desta forma, direitos conjugados que se equilibram e desequilibram conjuntamente. Mondaini (2006) nos traz a concepção de que embora estejamos acostumados a reivindicar direitos que protegem nossa liberdade e igualdade, garantidos por lei, infelizmente nem sempre eles existiram e garantiram nossa dignidade. Por isso, faz-se necessário reivindicarmos e lutarmos por um ambiente desprovido de poluição e ameaças, pois não é ao meio que se agride, mas sim á nós mesmos. É a nossa própria integridade existencial que está em risco. Lutar pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado é lutar pela nossa própria vida, luta que simboliza uma das batalhas travadas no campo dos direitos humanos. A biodiversidade é um elemento intrínseco ao conceito de meio ambiente, por isso, um não estão em dissociação com o outro, logo também é considerado como um direito humano da qual os indivíduos gozam direta ou indiretamente, pois possui valor em si e representa a variabilidade genética contida nos componentes vivos ambientais. A importância da biodiversidade reside no fato de que, dentro de um espaço ecológico, é o que caracteriza geneticamente aquela dada região, um atributo significativo que muitas vezes pertence àquele local e em mais nenhum outro, são as chamadas espécies endêmicas, aquelas adstritas somente aquele lugar, não sendo mais encontrada em nenhum outro. Segundo o Instituto Mundial de Recursos (World Resources Institute, 1992), a conservação da biodiversidade tornou-se a preocupação central da agenda internacional para a conservação ambiental no desenvolvimento do Terceiro Mundo. Por isso, não podemos vilipendiar a sua significação para o equilíbrio ecológico ambiental. Para não incorremos em erro terminológico, não podemos confundir os conceitos de biodiversidade com sustentabilidade, um elemento de preservação do outro. Segundo Wilson (1994) podemos considerar biodiversidade como:  “a variedade de organismos considerada em todos os níveis, variações genéticas da mesma espécie aos grupos de gênero, famílias, e níveis taxonômicos ainda mais altos; inclui a variedade de ecossistemas, que compõem tanto as comunidades de organismos num habitat particular como as condições físicas em que vivem” (WILSON, 1994, p. 389). E ainda mais, temos como principal norte jurídico em relação ao tema a Convenção da Diversidade Biológica – CDB, que foi apresentada na reunião das Nações Unidas do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente, a ECO-92. Tal documento por hora mencionado visa objetivar: “a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqùitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado” (art. 1º da CDB). E também conceitua diversidade biológica afirmando: “Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas” (art. 2º da CDB). Quando falamos em diversidade biológica, ou simplesmente biodiversidade, não restringimos sua finalidade a meros recursos naturais, uma vez que representa fundamental importância para o desenvolvimento dos seres humanos, posto que propicia múltiplas possibilidades para seu uso, como no fabrico e descoberta de novos medicamentos extraído de plantas e animais, fonte de renda através de sua exploração sustentável como o ecoturismo de ecossistemas singulares, a exemplo da Amazônia e o Pantanal, etc. Enfim, é um termo que revela não só valor em si, mas valor para a humanidade, visto que representa direitos transindividuais dos homens, é um verdadeiro direito humano, um patrimônio inestimável que a todos pertence. Logo, ao equipararmos a relevância da proteção da biodiversidade como a própria importância da proteção ambiental e revelarmos tratarem-se de direitos humanos, chamamos atenção que toda e qualquer discussão em nível de proteção/conservação ambiental não se circunscreve a mero discurso ideológico de movimentos ecologistas, mas faz parte de uma discussão afeta ao próprio ser humano. 3. Considerações Finais Identificamos, pois, no meio ambiente ecologicamente equilibrado um verdadeiro direito humano. Um direito subjetivo e difuso que a todos afeta e a todos pertence. Por isso, cabe a nós todos, independentemente da iniciativa do Poder Público, zelar por tal integridade harmônica do meio, pois nossa vida depende de tal zelo. E, como parte integrante desse sistema de preservação ambiental, inserimos igualmente a biodiversidade como faceta desse direito humano. Afinal, sabemos que o atual paradigma da biodiversidade implica na sua relevância frente ao desenvolvimento libertário em prol do meio ambiente. É de grande importância deixar claro que tal direito integra o patrimônio subjetivo da humanidade, pois a intenção é chamar atenção para a importância da conservação ambiental, não identificado como um benefício para a própria natureza, mas como para o próprio ser humano. Tal discussão é necessária para despertarmos a atenção pública para a forma como os recursos ecológicos e dos ecossistemas estão sendo violados e lutarmos cada vez mais para a proteção dos mesmos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/a-biodiversidade-e-o-meio-ambiente-ecologicamente-equilibrado-como-direitos-humanos/
Inseminação artificial post mortem e suas implicações no âmbito sucessório
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597, dispôs sobre a presunção de paternidade, ao considerar como concebidos na constância do matrimônio os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido. Este artigo fará uma explanação sobre a reprodução assistida, onde serão observados os princípios norteadores da medicina e do Direito fazendo uma análise conceitual e interdisciplinar com o objetivo de aclarar os conflitos existentes no campo sucessório. A conclusão é de que a legislação vigente é pouco avançada ao tratar do tema no âmbito do Direito sucessório, no que gera uma insegurança jurídica que se respalda em princípios inerentes ao Direito para dirimir tais conflitos. Enfim, o presente tema tem por base a metodologia teórico-descritiva, a partir de revisão bibliográfica.*
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Analisar-se-á o direito sucessório dos filhos concebidos post mortem. Hodiernamente, o avanço da ciência proporcionou inovações na medicina reprodutiva, contemplando novos modelos de técnicas conceptivas. Dessa maneira, será exposta a inseminação artificial post mortem na égide do direito sucessório, tratando de questão não pacífica na doutrina, estabelecendo assim diversas interpretações. O art. 1.597 do Código Civil de 2002, em seu inciso III, dispõe que os filhos concebidos por fecundação artificial do tipo homóloga são abarcados pela presunção de paternidade, ainda que falecido o cônjuge ou companheiro. Em contrapartida, o art. 1.798 do atual Código Civil, assevera que se legitimam a suceder as pessoas já nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão, tratando dessa forma, em seu inciso I, que podem ser chamados a sucessão, os filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas no testamento, desde que estejam na condição de vivas no momento da abertura da sucessão. Ao tratar do tema, foram observados princípios norteadores da medicina e do Direito em uma análise conceitual e interdisciplinar para dirimir os conflitos existentes no campo sucessório. O filho concebido post mortem gera incertezas jurídicas no âmbito das sucessões pela ausência de norma regulamentadora, procurando serem sanadas por princípios constitucionais, onde se preserva o direito do filho post mortem, bem como a proteção para que não sejam tolhidos tais direitos. Assegura-se a proibição de limitar o direito desses filhos concebidos por inseminação post mortem, uma vez que, o princípio da igualdade da filiação veda qualquer tipo de lastro de desigualdade e discriminação. Ainda nessa vertente, os demais colaboram com a existência do princípio da dignidade da pessoa humana, da isonomia, entre outros contemplados. A problemática não se verifica na concepção do filho concebido post mortem, e sim em seu campo sucessório, onde ao provocar uma insegurança jurídica, gera controvérsias doutrinárias, por ausência de norma regulamentadora específica, onde a solução deve ser dirimida não derrogando qualquer direito a sucessão. Enfim, o presente artigo está fundado na metodologia teórico descritiva, utilizando-se de bibliografia e documentos específicos atinentes ao tema. 2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E AS HODIERNAS PESPECTIVAS DA PARENTALIDADE. 2.1 A evolução do Direito Civil O direito civil perdura-se em uma longa elaboração concernente ao campo interdisciplinar entre o direito público e o privado. Neste sentido, Lôbo[1] (1999), preconiza na atualidade a inserção de um pós-positivismo fundamentado em uma mudança, sob a qual, o código civil deve ser interpretado segundo a constituição, e não o inverso. A constitucionalização do Direito Civil passou por significativas fases. A primeira fase consistia no do direito civil sendo compreendido como “Mundos apartados”, sendo assim, com o advento da Revolução Francesa, a Constituição era uma carta política e era o embasamento para a relação entre Estado e a sociedade, já o Código Civil era o que regia as relações particulares. Já a segunda fase consistia numa nuance de publicização presente no século XX, que tinha como característica o Estado liberal. De acordo com Lôbo[2] (1999), a intervenção estatal era compreendida no âmbito legislativo, onde apurava-se do direito privado, onde havia a intervenção do Estado e a restrição da autonomia privada, havendo a subtração de diversas matérias do Código Civil. A constitucionalização do direito civil é a etapa de grande importância, pois provoca mudanças pertinentes nas realidades sociais, aclarando institutos básicos, tais quais: a propriedade, o contrato, entre outros. Diferentemente da publicização, trouxe uma contribuição para que o direito civil não se limitasse apenas as relações de ordem privada, passando a evidenciar a subordinação da norma positivista a um conjunto de disposições, valendo-se de princípios que não devem ser dissociados da interface constituída entre a constitucionalização do direito brasileiro e a igualdade de filiação. É uma inserção constitucional dos fundamentos jurídicos das relações civis. O direito civil atual consiste na incorporação dos princípios constitucionais para atender a necessidade do coletivo fundado no interesse particular, ou seja, é a devida interferência do Estado para disciplinar a extremada liberdade individual. Havendo ocorrido uma quebra de paradigma, a partir de uma repersonalização do direito civil. A atual Constituição Federal de 1988 preceitua a proteção integral desses direitos, valendo-se de tal forma, que a filiação no plano sucessório é isonômica, restando a todos os filhos independentemente da natureza de filiação a plenitude de igualdade para todos os efeitos jurídicos. Os direitos fundamentais contemplam as relações públicas e privadas, regem-se pelos princípios gerais. Neste sentido Pereira (2010, p. 19) preconiza que hodiernamente os princípios constitucionais geram instrumentos abstratos e complexos e requerem uma sobreposição anteriormente ocupada pelos princípios gerais do direito. Nesse diapasão analisar-se-á a socialização do direito sendo reconhecido pelas normas constitucionais. A instituição de princípios da constituição trouxe uma hermenêutica diferenciada, concretista, sendo dotada de um direito civil constitucional. Neste sentido, Pereira (2010, p. 19) assevera que: “Cabe, portanto, ao intérprete evidenciar a subordinação da norma de direito positivo a um conjunto de disposições com maior grau de generalização, isto é, a princípios e valores dos quais não pode ou não ser mais dissociada”. Em arremate, entende-se que, o Código Civil de 1916 remetia ao filho natural reconhecido na constância do matrimônio, apenas metade da cota do filho considerado a época, legítimo. A concepção dos filhos era distinguida entre os concebidos nas relações na constância do casamento e nas extraconjugais, pautando-se em restringir os direitos dos filhos concebidos em relações extras ao matrimônio. A Lei de Divórcio trouxe diversas evoluções no cenário pátrio, dentre elas, a igualdade de filiação no tocante á origem de seus direitos, o que se mostra afeita a citada fase de constitucionalização. 2.2 Breve histórico do direito sucessório O direito sucessório postula as relações familiares e foi justificado ao longo dos anos pela religião, que tinha caráter absoluto. Por meio desta, elaboravam-se explicações para todos os acontecimentos, buscando formas de esclarecer os conflitos existentes nas sociedades primordiais. Conforme lições de Diniz (2011, p. 31), o direito sucessório trata de uma transmissão de bens, direitos e até mesmo obrigações em razão da morte, sendo assim, a liberdade de testar e o parentesco são expoentes que se baseiam as normas de sucessão. O direito sucessório tem base no direito à propriedade, no que nos remete a lição de Dias (2011, p. 27): “O direito sucessório tem origem remota, desde que o homem deixou de ser nômade e começou a amealhar patrimônio”. Desde os primórdios havia uma preocupação com a propriedade privada, fundamentado no ideal de família.”. Segundo Coungales (apud VENOSA, 2007, p. 4): “A íntima conexão entre o direito hereditário e o culto familial nas sociedades mais antigas. O culto dos antepassados constitui o centro da vida religiosa nas antiquíssimas civilizações, não havendo castigo maior para uma pessoa do que falecer sem deixar quem lhe cultue o altar doméstico, de modo a ficar seu túmulo ao abandono. Cabe ao herdeiro sacerdócio desse culto. Assim sendo, a propriedade familial a ele se transmite, automaticamente, como corolário do fato de ser o continuador do culto familial.” O modelo de sociedade do século XX, segundo Dias (2011, p. 28) trata da família exclusivamente constituída pelo casamento, os filhos havidos fora do casamento não tinham direitos sucessórios. A prole gerada fora de uma relação de matrimônio não recebia tutela do Estado, não atribuindo direitos inerentes a filiação. O Direito romano não contemplava a aplicação conjunta dos tipos de herança, neste sentido, Wald (2009, p. 20) menciona que em Roma, estabelecia-se que as heranças testamentárias e legítimas não admitiam aplicação simultânea, possuindo uma inaplicabilidade na divisão em parte pelo testamento e outra parte por lei. No concernente a evolução da família romana, Wald (2005, p. 10) preceitua:“a evolução da família romana foi no sentido de se restringir a autoridade do “pater”, dando-se maior autonomia á mulher e a aos filhos e substituindo-se o parentesco agnatício pelo congnatício”, ou seja, substituiria o parentesco que se transmite apenas por homens, pelo de sangue, tanto por via masculina, quanto feminina. A continuidade familiar em Roma preponderava na religião, onde seus preceitos deviam ser prioritariamente religiosos, segundo Dias (2011, p. 27): “Em Roma, o titular do patrimônio era o pater familiae. Passa de um a outro por meio de testamento, pois precisava ser mantido mesmo depois da morte do seu titular. Havia interesse mais de ordem religiosa do que patrimonial em proceder-se á transferência de bens. A morte de alguém sem sucessor ensejava a extinção do culto doméstico, trazendo infelicidade aos mortos. Daí a importância da figura do herdeiro para dar continuidade á religião familiar. Como o conceito da família era extensivo, não havia limitações para herdar quantos aos degraus de parentesco. Na ausência de herdeiros, a adoção (grifo do autor) era a forma de assegurar a perpetuação da família.” Segundo a lição de Rizzardo (2008, p. 3) em Roma, numa primeira fase, o herdeiro continuava a personalidade do de cujus, havia uma preocupação com a necessidade de perpetuação da tradição familiar.  No concernente ao Direito alemão era o critério consanguíneo e que estabelecia os laços familiares, neste sentido, Wald (2009, p. 33), afirma que: “No direito germânico, por sua vez, só se admitiam herdeiros que tivessem vínculo de sangue com o falecido, sendo todos os outros beneficiários, herdeiros irregulares ou legatários […]”. No defasado Código de 1916, inspirava-se apenas a proteção ao patrimônio, sem vincular a proteção das pessoas, dessa forma, preconizava-se uma discriminação entre os filhos concebidos fora da constância do matrimônio. Destarte, a unificação do sistema de constitucionalidade evoluiu e trouxe inovação ao direito sucessório, onde no texto maior assegura-se em seu art. 227, §6, a igualdade de direitos inerentes entre todos os filhos, possuindo como princípio norteador a proteção da dignidade da pessoa humana. No direito pátrio, a filiação era a continuação das relações familiares, onde apenas os filhos concebidos na constância do casamento possuíam direitos de regular o patrimônio. Posteriormente, as influências políticas e sociais estabeleciam critérios que iam contra a discriminação da natureza do filho concebido, onde a filiação passa a ser tratada com uma proteção. 2.3 O avanço da ciência e a inseminação artificial No campo da medicina reprodutiva, principalmente ligada aos casos de esterilidade, foram desenvolvidas técnicas conceptivas para a busca de métodos mais seguros e eficazes e, simultaneamente, menos nocivos. A reprodução assistida trata-se de um conjunto de técnicas, empregadas por médicos especializados, as quais objetivam a viabilização da reprodução humana em casos de infertilidade do casal ou de um de seus membros. As principais técnicas utilizadas para essa finalidade são: a inseminação artificial homóloga ou heteróloga, a fecundação “in vitro” e as chamadas “mães de substituição”. Sendo assim, há dois modos possíveis de fecundação, a heteróloga e a homóloga. Naquela há impossibilidade, do cônjuge ou convivente, de utilizar o seu material genético, sendo necessária a utilização de gametas de um terceiro (doador) para que haja a reprodução. Na homóloga, o material genético inoculado na mulher é o do próprio marido ou companheiro. A fecundação “in vitro” é uma técnica sob a qual o material genético do casal é obtido e manuseado em laboratório, ocorrendo a fecundação antes de o embrião ser implantado no útero. Uma das principais características desse tipo de reprodução assistida é que apenas alguns embriões são implantados, sendo os demais mantidos em criopreservação, ou seja, resfriados e congelados, para que possa vim a ser utilizado no futuro. Portanto, em decorrência dos avanços científicos, é plenamente possível que o material sujeito a tal técnica, possa ser utilizado após o falecimento do homem, o que é chamado de reprodução “post mortem”. Para os casos em que a mulher não consegue suportar a gestação em seu próprio corpo, existe a possibilidade de se fazer uso das conhecidas “mães de substituição”. Essas emprestam o seu útero, para que nele possa ser implantado o embrião e ocorra a gestação. A inseminação artificial tem como função auxiliar os casais estéreis, segundo lição de Diniz (2009, p. 544) facilita a reprodução humana, baseada no direito a descendência. A embriologia e a engenharia genética contribuem para que tais problemas de infertilidade não inviabilizem a perpetuação da espécie humana. Ainda na lição de Diniz (2009, p. 543) os métodos para as técnicas de reprodução são dois, respectivamente, GIFT[3] e ZIFT[4]. Segundo Lisboa (2009, p. 251), o primeiro dos métodos concerne na transferência intratubária dos gametas, através da injeção do óvulo e espermatozoide na trompa de falópio. Já o método ZIFT, consiste na transferência intratubária dos zigotos, com o seu transporte para a trompa uterina. Tais métodos são propriamente formas de solucionar os problemas de infertilidade e esterilização, corroborando para o desejo de descendência e procriação da espécie humana. Nesta rota, a infertilidade humana não pode privar o direito a procriação, ou seja, inadmite a extinção do direito de descendência, porém deve pautar-se em limites jurídicos para assegurar essas técnicas de reprodução humana. Destarte, tais técnicas de reprodução assistida trouxeram muitas inovações ao campo da medicina reprodutiva, com o surgimento dos bancos de sêmen e a facilidade de congelar ou criopreservar o esperma para utilização futura, viu-se então a possibilidade de realizar a inseminação depois da morte do cônjuge ou companheiro. 2.4 Princípios norteadores do biodireito A reprodução assistida, conforme já mencionado, deve ser vista como técnica por meio da qual os casais inférteis ou com dificuldades para gerar filhos recorrem para ter o seu anseio realizado. O fato de o casal se submeter às dificuldades de tais métodos, que são profundamente desgastantes, tanto psicológicas quanto fisicamente, demonstra a prova de amor entre eles e, destes para com o filho que tanto pretendem gerar. Tal fato não pode ficar alheio à Constituição Federal, que busca tutelar o bem-estar da família, privilegiando esta ao trazer em seu texto, que a família é a “base da sociedade brasileira, tendo especial proteção do Estado”, separando um Capítulo para discipliná-la. Assim, determinados princípios do Direito de Família podem ser cedidos ao biodireito, tendo em vista que este protege um dos fatores basilares da família: a procriação. Ensina Diniz (2011, p. 14) que os princípios do biodireito têm caráter humanístico e vinculação direta à justiça. Possuindo como função esclarecer e estabelecer limites para as técnicas médicas, impõem-se de modo peculiar, contribuindo para grandes evoluções no ramo da saúde. Ver-se-á, abaixo, os que regem o biodireito de modo a analisá-los em sua aplicabilidade. Tais princípios são respectivamente: o da autonomia, da beneficência, da não maleficência, da justiça e o da dignidade da pessoa humana. O primeiro dos princípios condiz com o dever do profissional da área médica de pautar-se na vontade do próprio paciente, respeitando seus valores morais e religiosos, no caso da testemunha de Jeová, onde a crença e a vida se contrapõem, prevalecerá na ética médica, a vida. Destarte, o consentimento livre, desde que informado, não preceitua o modo de tomar decisões quando tratar-se de pacientes incapazes ou não tiver como fazê-lo por não possuir independência para tanto. Os indivíduos que possuem capacidade devem ter sua vontade respeitada. Já o da beneficência preconiza-se nas premissas de auxílio ao paciente, onde o médico só pode intervir se for para o bem do paciente. Ou seja, não são permitidas técnicas que degradem o paciente. O princípio da não maleficência contém caráter ético, e decorre do primum non nocere, vigorando se não acarretar dano de modo intencional ao paciente. Atuando na proposta de sempre atuar com cuidados pertinentes a boa ética médica, evitando assim, possíveis danos. O princípio da Justiça, por sua vez, postula a imparcialidade, onde os iguais devem ser tratados de modo igual. É ligada a justiça distributiva. Legitima, assim, a racionalização dos potenciais médicos que atentem ao bem estar da sociedade, embasados nos princípios permeadores que contribuem para auxiliar e limitar técnicas que vão contra a boa ética médica. Ademais, o da dignidade humana visa atribuir significância na igualdade, não consagrando tratamentos desiguais e nem discriminatórios. É acessório ao ser humano instituído no ordenamento jurídico. Tal princípio consagra que a dignidade deve ser perpetuada sob todas as relações jurídicas, é vista no caráter de princípio de grande importância, no qual a liberdade não pode ser jamais suprimida, devendo ser valorada sob a égide de verificar a concretização desse princípio em todas as relações sociais, garantindo, assim, o mínimo necessário para se ter uma vida digna atribuída ao vínculo de preceito fundamental inerente ao ser humano. Tal princípio é consagrado na Constituição Federal no art. 1°, inciso III. A dignidade humana é universal e pautada na humanidade empregada no teor de sua essência. Sendo imprescindível para a instituição do ordenamento jurídico. Tem fundamento no Estado democrático e no cunho social que permeiam as mais variadas relações jurídicas. A bioética estabelece valores que devem ser respeitados pela ingerência da inseminação artificial, bem como outras técnicas de reprodução humana. O valor ético deve prevalecer no respeito à vida, compondo-se de limites a evolução da medicina, não podendo ter condutas que reduzam a sua dignidade. Sendo assim, institui-se o sentido humanístico, preservando a dignidade e garantindo a efetividade dos direitos inerentes ao ser humano. 3 A FILIAÇÃO CONTEMPORÂNEA 3.1 Do modelo clássico a socioafetividade Os surgimentos de novos núcleos familiares derivados das inovações tecnológicas proporcionaram uma série de evoluções em técnicas de reprodução, como exemplo, a inseminação artificial, a doação de óvulos e sêmen, entre outros. A evolução da sociedade decorrente da urbanização, industrialização, moldaram novas formas de valores, refletindo no aspecto familiar, promovendo na atualidade variados tipos de filiação. De acordo com Pereira (2007, p. 92), a nova tipificação de modelo familiar é mais adequada às novas realidades sociológicas, por ser mais autêntico e mais igualitário, possuindo caráter menos opressor e dessa forma, menos formal. Os modelos familiares se estabelecem pela filiação. De acordo com Falavigna e Costa (2003, p. 208), os moldes são três, respectivamente: pelo matrimônio pela presunção pater iset (filiação formal); pelo vínculo biológico; e pela filiação socioafetiva formada pelo critério sociológico. O art. 1597 do Código Civil de 2002 trata da técnica de reprodução assistida, nos incisos III, IV e V. Ressaltando se os filhos provenientes de fecundação artificial homóloga, ainda que falecido o marido; os havidos a qualquer tempo, em se tratando de embriões excedentários de concepção artificial do tipo homóloga; e os de inseminação artificial heteróloga, desde que com autorização do marido. A filiação socioafetiva, de acordo com Falavigna e Costa (2003, p. 216), é dirimida por condições estabelecidas como a ostentação do nome dos pais socioafetivos, o vínculo de criação e ser educado no seio familiar como filho pelos pais e ser reconhecido no meio social dessa forma, como filho. Dessa forma, o princípio da igualdade de filiação veio para modificar as relações discriminatórias. Segundo Lôbo (2011, p. 217-8), o princípio da igualdade na filiação veio para reprimir qualquer interpretação que se refira a desigualdade de tratamento aos filhos, acarretando a extinção dos traços diferenciadores nas relações no que concerne aos laços de parentesco. Os movimentos societários da época trouxeram um novo modelo de instituição familiar, neste sentido, Pereira (1997, p. 15-6), os movimentos societários e os costumes contribuíram para que fossem então incorporados a atual Constituição Federal de 1988, passando então a permear novos moldes familiares não decorrentes do casamento. A Constituição brasileira de 1824, outorgada por D. Pedro I, apenas se referia a família imperial. Pereira (1997, p. 15-6) complementa ainda, que a primeira Constituição da República de 1891, não se dedicou especialmente a família, apenas ao casamento civil. A segunda Constituição da República de 1934 preocupou-se com a família, onde estabeleciam se regras de casamento, até então, indissolúveis. As demais constituições adiante se pautaram no mesmo sentido que a de 1934, estabelecendo regras do casamento. Em detrimento de o direito subjetivo de família ser funcionalista, deve-se haver uma obrigação de direito-dever. De acordo com Dias (2011, p. 37), o titular deve exercê-lo, não concedendo só direitos, e sim também deveres. 3.2 Os embriões excedentários e a filiação post mortem A inseminação do tipo homóloga consiste na manipulação de gametas da mulher e do homem, permitindo uma possível fecundação. No que concerne aos embriões excedentários preceitua Lôbo (2011, p. 223): “Apenas é admitida a concepção de embriões excedentários se estes derivarem de fecundação homóloga, ou seja, de gametas da mãe e do pai, sejam casados ou companheiros de união estável. Por conseqüência, está proibida a utilização de embrião excedentário por homem e mulher que não sejam os pais genéticos ou por outra mulher titular de entidade monoparental.” A I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal de 2002, enunciado n° 107, contempla que ao termino da sociedade conjugal , segundo a regra do art. 1.597, IV do Código Civil, somente haverá uma forma de aplicação se houver autorização prévia expressa dos ex cônjuges para a devida utilização dos embriões excedentários, apenas possuindo o fulcro de ser revogada até o início da implementação[5]. A paternidade presumida do marido falecido citada por Lôbo (2011, p. 222) é tratada na I Jornada de Direito Civil, do Conselho Federal de 2002 e assevera ainda que para que se institua a paternidade presumida do marido falecido, a mulher deve na condição de viúva, ao se submeter ao método de inseminação artificial, ter autorização prévia e expressa do marido para que possa utilizar seu material genético após sua morte. O sêmen para ser utilizado deve está submetido a uma expressa vontade do marido para que possa utilizar seu material genético para fins de inseminação artificial. 3.3 Posicionamento da doutrina Dentro do ponto de vista da moralidade da Igreja Católica, a respeito da reprodução humana, considera-se como procriação responsável aquela que advém do matrimônio, ou seja, resultado do contato sexual entre cônjuges. Numa concepção positivista, assevera Diniz (2009, p. 550) ao indagar quanto a inseminação post mortem poder pretender o nascimento de órfão e que não se deve ter a presunção de paternidade desses filhos concebidos após a morte do marido (convivente), visto que, o casamento se extingue com a morte. A mesma assevera ainda que se quer poderia conferir direitos sucessórios a esses filhos, já que não foi gerado na ocasião de morte do pai genético. Seria possível se por via testamentária herdeiro, se inequívoca for a vontade do doador genético fundado em testamento. Segundo Carbonera (apud FALAVIGNA e COSTA, p. 214). “O Direito não deve decidir de que forma a família deverá ser constituída ou quais serão suas motivações juridicamente relevantes. Em se tratando de relações familiares, seu campo de atuação deve se limitar ao controle de observação dos princípios orientadores, deixando às pessoas a liberdade quanto à formação e condução das relações.” A inseminação artificial gera um o direito a procriação, segundo Pereira (2007, p. 88), a mesma atua como um auxílio de extrema importância para os casais sem filhos impossibilitados de gerarem sua prole. Contribuindo assim a ciência para um avanço no ramo da medicina reprodutiva ao permitir o direito de procriação. No que concerne aos materiais preservados nos bancos de sêmen, eles são de propriedade daquele que o produziu, podendo requerer dessa forma, a sua inutilização em qualquer instante. Requerer tal ato equivaleria a uma invalidação do fato praticado e, portanto, da autorização do depósito. Do mesmo modo, o manuseio do material em técnicas de inseminação estaria sujeito, assim, à autorização prévia e expressa, respeitando-se ao direito inerente que cada um possui de decidir sobre ser pai ou não. Destarte, surge o seguinte questionamento: o que diferencia um filho gerado após o falecimento do pater, haja vista, que houve o consentimento de forma expressa deste, por meio de ato legítimo, na preservação de seu material genético para o uso após a sua morte? Tal questionamento surge por restar evidente, na Constituição Federal, a consagração da igualdade entre os filhos, independente da situação jurídica dos pais. Por tal motivo, não é concebível que haja, em nosso ordenamento, qualquer limitação, pela lei, aos direitos dos filhos gerados pela fecundação post mortem. Colacionando a respeito do tema, Dias (2011, p. 123), afirma: “Na concepção homóloga (grifo do autor), não se pode simplesmente reconhecer que a morte opere a revogação do consentimento e impõe a destruição do material genético que se encontra armazenado. O projeto parental iniciou-se durante a vida, o que legaliza e legitima a inseminação post mortem. A norma constitucional que consagra a igualdade de filiação não traz qualquer exceção. Assim, presume-se a paternidade do filho biológico concebido depois do falecimento de um dos genitores. Ao nascer, ocupa a primeira classe dos herdeiros necessários. (Grifo nosso).” “Neste sentido, a resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina traz, em seu item V, o seguinte teor: "no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.” Dessa forma, há de se entender que a esposa poderá dar alguma destinação ao sêmen até então criopreservado do cônjuge ou convivente já falecido, desde que haja anuência expressa deste autorizando que haja a fertilização. Além disso, o direito à procriação caracteriza-se por ser um direito fundamental, devendo a decisão tomada pelo casal ser livre de qualquer empecilho. Dessa forma, por exemplo, uma viúva cujo falecido marido deixou depositado o material genético para que fosse gerado um filho, não pode ter esse direito negado, pois sua decisão deve ser respeitada, principalmente se este deixou declaração expressa e legítima neste sentido. O Código Civil, em seu art. 1.565, § 2º, assegura que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo dessa forma, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas, motivo pelo qual não pode haver interferência pela lei na vida privada dos cônjuges ou conviventes. Defendendo o livre planejamento familiar do casal, Freitas[6] (2008), alude que: “A nossa Carta Magna em seu art. 226, §7º, defende a livre decisão do casal quanto ao planejamento familiar, vedando qualquer minoração deste direito, por quem quer que seja, e, se houver, estará atacando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. A vontade do doador (cônjuge ou companheiro) na reprodução assistida sempre será expressa por força da Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, sem que, necessariamente, haja o doador realizado um testamento, por isto, é importante prever uma solução para o caso concreto de haver material genético para reprodução assistida sem testamento indicando a prole futura. Havendo clara vontade do casal em gerar o fruto deste amor não pode haver restrição sucessória alguma, quando no viés parental a lei tutela esta prática biotecnológica.” Ao art. 1.597, III, do Código Civil, declara que se presumem se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido. A inseminação post mortem faz parte da reprodução homóloga, e por tal motivo, não deveria haver controvérsias a respeito, logo que a criança gerada através dessa técnica tem direito à presunção da filiação, como se fosse concebida na constância de um casamento. Alguns doutrinadores entendem que deve ser aplicado não somente ao matrimônio, mas também à união estável, dessa forma preceitua Diniz (2009, p. 549) “A coleta do material e sua utilização dependerá de anuência expressa dos interessados, ligados pelo matrimônio ou união estável, uma vez que têm propriedade das partes destacadas de seu corpo, como sêmen e óvulo; logo, deverão estar vivos, por ocasião da inseminação, manifestando sua vontade, após prévio esclarecimento do processo a que se submeterão, conscientes da responsabilidade assumida pela criação e educação do filho”. (Grifo nosso). No que concerne a I Jornada do Conselho da Justiça Federal de 2002, enunciado n° 106, quanto a paternidade[7] do marido falecido tem-se que: “Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte. (Grifo nosso)”. Destarte, tendo em vista a multiplicidade de entidades familiares presentes, hodiernamente, no ordenamento jurídico brasileiro, no qual assegura a plena liberdade do casal de planejar a geração dos filhos, é plenamente aceitável a existência da fecundação post mortem, estando resguardados todos os direitos civis e sucessórios à criança gerada, uma vez que haja autorização expressa desse desejo pelo doador do material genético, tal como foi interpretado no enunciado da Jornada de Direito Civil supra transcrito. Essa autorização do consorte ou convivente deve ser dotada de alto valor normativo e imperativo, tendo em vista que o direito do reconhecimento à filiação deve incidir, igualmente, sob os filhos gerados por meio da técnica da inseminação homóloga post mortem. Enfim, a Constituição Federal de 1988 é nítida ao destacar o tratamento igualitário que se deve conceder aos filhos de um casal, não sendo lícito mitigar ou negar os seus direitos sucessórios, principalmente por terem sido frutos de um desejo recíproco e expresso de seus progenitores. Não seria cabível, portanto, que um infortúnio da vida afastasse essa possibilidade de reprodução do sentimento do parceiro sobrevivente, razão pela qual se defende essa técnica de concepção. 4 FILHOS E HERDEIROS POST MORTEM? A questão de herança repercute em uma situação atípica, há de se analisar a capacidade de herdar pela falta de regulamentação específica de lei. O art. 1.799 do Código Civil de 2002 preceitua que podem ser chamados a suceder: os filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas ao abrir-se a sucessão; as pessoas jurídicas que sejam instituídas pelo testador na forma de fundação. Dessa forma, há de analisar ser possível o individuo gerado por reprodução post mortem herdar, desde que esteja de forma expressa, em testamento, a indicação de quem será sua progenitora.  O princípio da igualdade de filiação veda a discriminação quanto a criança, consagrando que os filhos são considerados todos iguais. O direito de herdar será o mesmo para todos os filhos, prevalecendo a igualdade, não podendo tolher os direitos do filho concebido post mortem. A problemática sobre a possibilidade de herdar se controverte pela inexistência de norma regulamentadora específica sobre o direito sucessório, mas pelos preceitos de igualdade de filiação se vêm o alcance sucessório dos filhos gerados post mortem. A proteção desses direitos ainda vai mais além, ao se buscar no texto maior, demais princípios que se enlaçam a busca inerente ao Direito sucessório. Trata-se de não tolher esses direitos, devendo levar a base principiológica assegurada pela atual Constituição da República, onde em seu regramento pátrio prega a igualdade. Nesse diapasão, considera-se filho, aquele nascido a qualquer tempo, resguardado os seus direitos desde a concepção. Assegurados pelo Código Civil em seu art. 2° a tutela protetiva inerente ao nascituro. A transmissão da herança se verifica no momento da morte, onde o princípio de saisine consagra a transmissão de forma integral do seu patrimônio aos seus herdeiros, contemplando os herdeiros legítimos e testamentários. Numa visão positivista e avessa, assevera Diniz (2009, p. 550) : “ Filho póstumo não possui legitimação para suceder, visto que foi concebido após o óbito de seu “pai” genético e por isso é afastado da sucessão legítima ou ab intestato.” A possibilidade de não contemplar um filho póstumo, em detrimento de falta de norma regulamentadora, cercearia seu direito de herança, visto que, violaria princípios constitucionais, tais quais: o da isonomia e o da igualdade de filiação. No que tange ao posicionamento do tempo estabelecido pelo legislador, elabora-se o prazo para ser concebido de até dois anos a contar da data de abertura da sucessão para ser concebido herdeiro, é o que se extrai do art. 1.800, §4°. Analisar-se-á Súmula n°149 em consonância com o art. 205 do CC, que impõe a incidência do prazo prescricional de dez anos para se arguir petição de herança.Nesse diapasão, ao ser considerado herdeiro, deve-se ingressar com a devida ação no prazo decenal, sob pena de prescrição do direito de herança. A grande problemática continua ao tentar estabelecer o tipo de sucessão que se sujeitará o filho concebido após a morte, há de se compreender que o s filhos nascidos pela inseminação artificial post mortem são herdeiros legítimos, com fulcro no princípio constitucional da igualdade de filiação. 4.1 As implicações no direito sucessório A abertura da sucessão é consagrada pelo art. 1.784 do Código Civil: “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. O princípio de saisine preconiza que a sucessão não ocorre entre pessoas vivas, mas que apenas no momento da morte é que o testador transfere seu patrimônio como um todo. Como consequência desse princípio, no momento da abertura da sucessão, a herança do falecido é transmitida aos herdeiros legítimos e testamentários imediata e automaticamente, independentemente de qualquer formalidade. O art. 1.798 do citado diploma é claro ao mencionar que "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”, o que, em tese, afastaria a criança nascida após a morte do autor da herança, através de inseminação artificial, da participação na sucessão, tendo em vista que, teoricamente, apenas as pessoas físicas, ainda que não nascidas, mas já concebidas, teriam capacidade para suceder como herdeiros legítimos. Observando-se a dicção dos mencionados artigos, percebe-se que não há previsão legal da técnica conceptiva post mortem, uma vez que nessa espécie, há tão somente o material genético de um dos pais biológicos, devidamente criopreservado em laboratório para uma possível e futura fertilização.  Contudo, ao prever a legislação civil a chamada sucessão testamentária, em seu art. 1.799, amplia o rol de legitimados a suceder. Através do testamento, podem-se instituir outros beneficiários da herança: pessoas sequer concebidas, pessoas jurídicas e até mesmo pessoas jurídicas ainda não constituídas, para tornarem-se fundação. Assim, pela leitura do citado artigo, percebe-se que não apenas à pessoa nascida e o nascituro tem garantia ao direito sucessório. Conforme o disposto, a pessoa ainda não concebida possui legitimidade para ser herdeiro testamentário, ou seja, a chamada prole ou filiação eventual. Portanto, para que seja herdeiro aquele antes da concepção, o testador deve indicar a pessoa cujo filho quer contemplar.  Sobre o assunto, Dias (2011, p. 33), preceitua: “A determinação de que se interprete as cláusulas testamentárias (grifo do autor) buscando identificar o desejo do testador nada mais é do que lhe assegurar as garantias constitucionais mesmo após a morte. Porém, há que se relativizar a garantia de respeito á última manifestação de vontade. Justifica-se a restrição á liberdade de testar do titular do direito de propriedade para assegurar a preservação de sua família. Daí a instituição dos herdeiros necessários (grifo do autor), que limita á metade a disponibilidade do titular do patrimônio”. 4.2 Regramento pátrio e soluções Passando-se à análise jurídica, na vigência do Código Civil de 1916, o art. 338 trazia uma presunção de paternidade (Pater is est), prevendo situações nas quais o cônjuge será presumidamente declarado pai. Neste, presumiam-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, e os nascidos dentro dos 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite ou anulação. É possível realizar a inseminação post mortem sem ter reflexos quanto á à filiação, se a concepção já tiver ocorrido no momento da morte do genitor ou acontecido posteriormente, nascendo a criança nos 300 dias subsequentes à morte, enquadrando-se, assim, no inciso II do mencionado artigo. Quanto à inseminação homologa post mortem, não há problemas quanto à declaração da filiação, visto que, o inciso III do art. 1.597 presume filho do marido morto a criança concebida por meio desse método, além da facilidade de se provar a relação de parentesco neste caso. Alguns doutrinadores tratam da ausência de norma regulamentadora específica ao tratar-se de reprodução assistida.  Neste sentido, Venosa (2005, p. 256) : “(…) advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema.” A inseminação homóloga, por si só, não deveria gerar grandes discussões em relação à filiação, por estar tutelada pelo art. 1.597, III e IV, do Código Civil, que assegura a filiação da criança gerada, independente da data do nascimento. Contudo, há amplos debates doutrinários acerca da inseminação artificial post mortem, principalmente em virtude das suas implicações no campo sucessório. No que concerne ao direito de herança, questiona-se, sobretudo, a capacidade de sucessão da criança nascida por meio dessa técnica de reprodução assistida, haja vista, que ela será concebida em momento posterior à morte do genitor. Quanto ao embrião fecundado, não há dúvidas quanto ao fato de serem gerados por meios de técnicas de reprodução, sendo classificados como os demais filhos, sem nenhum critério de descriminação.  A problemática surge quanto à capacidade sucessória do embrião conservado fora do útero, uma vez que, o mesmo não é considerado nascituro, embora tenha proteção. Em nosso entendimento, quanto a possibilidade desse embrião vim ser implantado e contemplar a possibilidade de ser herdeiro, desde que haja expressa vontade do testador e a indicação da mãe (genitora). A I jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal[8] 2002, Enunciado n° 106, assegura semelhante pensamento, neste sentido: “Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte." (Grifo nosso)” Sendo o filho gerado post mortem por inseminação homóloga, a não consideração do mesmo como herdeiro, contemplaria a violação de direitos inerentes e fundamentados na Constituição Federal, como o princípio da isonomia, entre outros elencados na legislação pátria. Dessa forma, não se pode distinguir ou discriminar um filho concebido post mortem, tendo em vista, seu direito de herdeiro ser protegido por princípios que contemplam a igualdade de filiação. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No que concerne ao tema apresentado, os novos métodos de concepção contribuíram para solucionar divergências de questões no âmbito do Direito, repercutindo na doutrina de modo a contemplar dissensões no campo da sucessão do filho concebido post mortem. A legislação vigente é pouco avançada ao tratar do Direito Sucessório de um filho concebido após a morte, o que gera uma insegurança jurídica que se respalda em princípios inerentes ao Direito para dirimir tais conflitos. A igualdade de filiação preconiza o tratamento isonômico a todos os filhos, bem como a dignidade da pessoa humana que veda qualquer discriminação, devendo todos serem tratados de modo igualitário, sendo defeso qualquer limitação ao filho concebido post mortem. A filiação contemporânea moldou um novo modelo de família sendo resultado de inovações das relações humanas pautadas ainda mais pela modernidade e autenticidade, por serem menos opressoras, instituíram uma expressão sociológica com fulcro na evolução da sociedade. O ponto relevante do presente artigo diz respeito ao reconhecimento da capacidade de herdar na condição de filho post mortem. A questão se contrapõe e passa a ser dirimida por princípios, sendo defeso qualquer discriminação ao herdeiro post mortem, sendo ocupante da classe de herdeiros legítimos. Conceituam-se interpretações doutrinárias, baseadas no enlace do princípio da igualdade de filiação corroborado com a integração de outros demais constitucionais inerentes que permeiam o direito de sucessão do herdeiro post mortem. Conclui-se que a progressão do Direito não acompanha as aceleradas relações humanas, que cada vez se encontram mais complexas, tornando a legislação muitas vezes ultrapassada e desraigada de solução, haja vista, a falta de norma regulamentadora específica. Por fim, sustentamos que o filho concebido após a morte deve ter todos os seus direitos protegidos tanto no campo sucessório quanto no âmbito do direito de família. Sendo contemplado ao nascer, como herdeiro legítimo, baseado no princípio constitucional da igualdade de filiação.   Notas:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/inseminacao-artificial-post-mortem-e-suas-implicacoes-no-ambito-sucessorio/
Em conformidade aos direitos humanos o reconhecimento da dignidade humana: deficientes
a deficiência mental é a redução da capacidade intelectual, comportamento adaptativo, traços poligênicos, ou seja, há uma predisposição genética quantitativa, são multifatoriais, assim sendo a inteligência está associada ao cérebro, quão plástico podem ser os relacionamentos partilhados pelos agentes do sistema, isto é sua neuroplasticidade, o potencial de inteligência é um traço genético, sua expressão depende de fatores biológicos, psicológicos e sócio – culturais, há de se estabelecerem capacidade cogntiva sensória e motora quando reconhecidas e treináveis, para um futuro qualificado de inserções neste mundo globalizado.
Biodireito
Abstract: The mental defective is reduction capacity intellectual, adaptive behavior , poligênicos charater, so be i intelligence associate brain, is your neuroplasticity, potential, intelligence charater genetic, , your expression depend , factors of psychology, biologic, socio cultured determine, capacity cognitive , sensory and motora while acknowledged, practice, for future qualified; insertion on this globalize, world. Keywords:eugenics;defective;system;intelligence;inclusion. Sumário:I-Eugenia; II- Direito da Minoria, expressões eufemísticas; III- Direitos Humanos; IV-Sistemas; V-Universalização da Educação Básica; VI-Considerações Finais; VII- Referência Bibliográfica : I-Eugenia: Durante o decorrer da história, a forma pela qual os povos antigos eliminavam seus deficientes físicos, mal formados, ou ainda, os muitos doentes, era através do extremínio, por não compreenderem a causa e, até mesmo, por medo de serem contagiados por um suposto “ castigo divino “. Mas a eugenia só foi reconhecida como ciência e, posteriormente como movimento social, em 1865, com a obra de Francis Glaton, Hereditary Talent and Genius, onde ele defende a idéia de que a inteligência é predominante herdada e não fruto da ação ambiental, concluindo referido pensamento com base no estudo da biografia de muitas pessoas, inclusive de sua própria família. Defendia que as forças cegas da seleção natural, são como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução, isto naqueles tempos passados, a fim de promover o progresso físico e, moral do futuro. Posteriormente elabora o termo eugenia, derivado de eugens, que significa ‘boa origem’, e passou a ser utilizado para definir ‘ o estudo dos agentes ‘ sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações, sejam físicas ou mentalmente. Em 1900, o argentino José Ingenieiros, propõe que a eugenia deveria concentrar em três pontos : obtenção de uma descendência saudável, consecução do matrimônio eugênico e por fim, a paternidade ou a maternidade conscientes. Em 1908, em Londres foi fundada a primeira forma organizada e ostensiva na defesa do eugenismo. Em 1935, surgem Leis de Nuremberg que proibiam o casamento e o contato sexual de alemães com judeus, o casamento de pessoas com transtornos mentais, doenças contagiosas ou hereditárais. Para casar era preciso obter um atestado de saúde. Isso ocorreu antes que os experimentos científicos fossem auxiliados pela tecnologia de ponta, principalmente nas áreas biológicas. Mas em face do surgimento acelerado e desenvolvimento da biotecnologia, da engenharia genética, é capaz de “ fabricar” um ser humano com matéria – prima herdada da natureza. Atualmente a eugenia tem sido uma das maiores preocupações de vários especialistas, em diversos ramos do conhecimento, por causa, das possibilidades que podem resultar das práticas realizadas na manipulação do DNA humano. No Brasil, o primeiro evento ocorreu em 1929, no Congesso Brasileiro de Eugenismo, no Rio de Janeiro, abordando entre outros temas, a intenção de findar toda a imigração não- branca. Em 1993, com a criação da Comissão Central de Eugenismo, as discussões passarama a atender os seguintes objetivos : manter o interesse do estudo de questões eugenistas no país, difundir o ideial de regeneração física, psíquica e moral do homem, prestigiar e auxiliar as iniciativas científicas ou humanitárias de caráter eugenista que sejam dignas de consideração. II- Direito da Minoria, expressões eufemísticas É fato: ninguém está a salvo de se tornar uma pessoa com deficiência. Contudo mesmo aquele que se sente parte desta minoria talvez não tenha questionado acerca da extensão ou da profundidade desse conceito, o qual, além de muito recente, pode, em função das diversas realidades culturais, históricas, regionais e até lingüísticas, repercutir de maneiras diferentes, inclusive sobre a ordem jurídica de um país, efetivação de políticas públicas de inclusão – no que se dá destaque à recente alteração. O Decreto Federal n° 60.501 de 1967, nota-se que a legislação hoje mantém o instituto da aposentadoria por “ invalidez” , caso em que o segurado é considerado ‘incapaz‘ e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência(art.42 da Lei 8.213/1991), ou seja quando se afere sua ‘ incapacidade total e definitiva para o trabalho’ (art.43 § 1°, da Lei 8.213/1991). A relevância do termo ‘incapacitado’, que é relacionado por estar em evolução pela noção de indivíduo sem capacidade para indivíduos com capacidade residual, ou seja, circunscrita.Para outros fins assume uma conotação diferente daquela utilizada na legislação civil ( art.3° do C.C.) e penal (art.26 do C.P.). Retardo:- prolongamento de um dos sons de um acorde, do verbo: tornar tardio.Mental:-próprio da mente.Retardado:- indivíduo cujo desenvolvimento mental está aquém do índice normal para sua idade.No mesmo estudo, prossegue pelas expressões ‘defeituosos’ (alguma deformidade),’deficientes’ (abarcando indivíduos com deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla),’excepcionais’( deficiência intelectual ) na Lei Orgânica de Assistência Social promovida pela Lei 12.435. de 1981 a 1987, vigorou a expressão ‘ pessoa deficiente’, sendo a primeira vez em que o substantivo ‘deficiente’ foi utilizado como adjetivo da pessoa.Esta expressão foi largamente difundida nos meios normativos, que começavam a ater-se mais detidamente, a esta minoria. A exemplo: a Lei n°7.070 de 20/12/1982 e, mais especificamente, o Decreto n° 93.481 de 29/10/1986, a Lei n°7.853 de 24/10/1989, a Lei n°8.742 de 07/12/1993 e a própria Constituição nos arts. 7° e 37. Paralelamente, surgiram expressões eufemísticas, dentre as quais ‘pessoas com necessidades especiais’ ou ’pessoas portadoras de necessidades especiais’ (PNE), fazendo uso da mesma lógica que gerou a noção de ‘pessoa especial’ para as pessoas com deficiência intelectual, tendo recebido grande aceitação. Contudo, com a promulgação de Salamanca, de 10/06/1994, a ONU começou a evidenciar uma distinção, utilizando a expressão’special educational needs ’ concomitantemente com a expressão ‘persons with disabilities – já usada na The Standard Rules on the Equalization of Opportunitis for Persons with Disabilities, de 20/12/1993. A diferença se tornou clara no Brasil com a publicação da Resolução n°2,de 11/09/2001, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (arts.3° e 5°) e, mais especificamente, com a publicação das Leis n°10.048, de 08/11/2000, e n° 10.098, de 19/12/2000, passando a ‘pessoa portadora de deficiência’ a ser apenas mais uma dentre as ‘ pessoas com necessidades especiais’, grupo que abarca também as pessoas com 60 anos, as gestantes, as lactantes, dentre outras. Por sua vez, a expressão ‘ pessoa com deficiência’ (PcD) influenciou profundamente a linguagem dos textos oficiais de documentos nacionais e internacionais e foi muito bem aceita pelas pessoas as quais se refere, ficando sedimentada junto à ONU como a promulgação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio da Resolução n° 61/106, de 13/12/2006, (SIQUEIRA,et.al.2011),também contou com a ajuda e contribuição do Cedipop. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 10% da população mundial, ou 650 milhões de pessoas, conviva com alguma deficiência, figurando, assim, como a menor minoria do mundo. Informa, ainda, que 80% dessas pessoas vivam em países em desenvolvimento – um dado que foi confirmado no Brasil pelo Censo de 2000, quando se calculou que 14,5% da população, ou cerca de 24,6 milhões de pessoas, tem alguma deficiência. O conceito de minoria poderia ser designado na epistemologia por definição negativa e afirmativa. Considerando que tudo foi negado às minorias, construir-se – a´ o seu conceito a partir daquilo que a distingue da maioria, ou das massas, ou seja a diferença. Pensar a diferença por si é pressuposto fundamental para se discutir as grandes questões da justiça e da igualdade. Considerar que o conceito de diferença, como todos os outros conceitos, e todas as idéias, não passa de virtualidade, de ficção, é imperioso concluir que o homem não existe, muito menos a Humanidade como essência metafísica, o que existe são homens in concreto, são seres diferentes do ponto de vista biológico, social, econômico, antropológico etc… que convivem e partilham um mesmo macro-espaço. Reconhecer a alteridade é pressuposto ético para a construção /reconhecimento do direito à diferença. Disso vale concluir que aos formadores de opinião cumpre, por sua função social, esforçar-se para o emprego de uma linguagem cada vez mais democrática, transparente e, por isso, inclusiva e ética, empreendendo num processo contínuo e crescente de esclarecimento – e que não tenha na coerção do Estado seu principal instrumento – para a construção de uma sociedade cada vez, mais livre, solidária e sem preconceitos. Nota-se ainda que a ONU, através da Resolução n°3.447/30 de 09/12/1975, publicou a Declaration on the Rigths of Disabled Persons, e por meio da resolução n° 31/123 de 16/12/1976, proclamou o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. O fato, é que a expressão ‘pessoa deficiente’ foi contestado por algumas organizações a pretexto de que dariam a noção de que a pessoa inteira seria deficiente. Por isso operou-se, de 1988 a 1993, a substituição por ‘pessoas portadoras de deficiência (PPD) ou, legal a utilizar a expressão ‘ pessoa com deficiência’ no Brasil, pois a título de exemplo, já figurava no art. 4° do anexo ao Decreto n° 6.214, de 26/09/2007, mostrando-se não só mais adequada consoante os documentos internacionais sobre direitos humanos, como também melhor recebida pela população com deficiência, que ( não obstante a freqüente sugestão de outras simplesmente), ‘portadores de deficiência’. Este documento do qual o Brasil é signatário, foi o primeiro a fazer uso do regime previsto no art. 5°§3° da CF/88, inserido pela EC n°45/2004 ( Decreto Legislativo n° 186 de 09/07/2008 ), passando a ter status material e análogo –formal de emenda constitucional com a publicação de Decreto n°6.949, em 25/08/2009.Apesar da sua grande importância, deve –se anotar que este não foi o primeiro diploma expressões, eufemísticas ou não) parece ter encontrado uma identidade, (Siqueira, 2011). Cedipod – Centro de Documentação e Informação do Portador de Deficiência, é uma entidade civil, sem fins lucrativos, fundado em 1990 a partir da constatação da falta de uma entidade especializada na coleta, organização e divulgação de informações sobre pessoas com deficiência. A proposta de trabalho do Cedipod está voltada para a criação de material informativo para as entidades de pessoas com deficiência e para a sociedade. As principais áreas de trabalho são : Legislação ( Direitos Civis), Eliminação de Barreiras Arquitetônicas, Transportes , Comunicação e Participação Social. III- Direitos Humanos A declaração dos Direitos Humanos prevê -que : Direito à vida; toda pessoa têm direito de que se respeite sua concepção. Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988, em seu corpo se preocupou em tutelar as garantias fundamentais do homem, prevê art.5°, caput, a proteção à vida, como claúsula pétrea .O art.5°, caput, a proteção à vida, é previsto como claúsula pétrea. Sendo um dispositivo da Carta Magna, interpretada por Alexandre Moraes, início da mais preciosa garantia deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente dar-lhe um enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando em ovo e zigoto. Assim a vida viável, portanto começa com a nidação, inicia a gravidez.Não obstante a isto, antes de se implantar no endométrio sob ação das células trofoblásticas, obtém a nutrição de secreções, por conseguinte, esta implantação ocorrerá por volta do sétimo a oitavo dia após a ovulação, o embrião desenvolve na cavidade, forma placenta e membranas. Gradualmente no décimo sexto dia, será substituído a nutrição placentária, começa o sangue simultaneamente a fluir entre mãe e feto. Desde o início da gravidez o organismo armazena substâncias, desta maneira, se a dieta não apresentar elementos nutricionais poderão ocorrer várias deficiências maternas, contribuindo-se para as heranças multifatorias; modificações no genótipo derivadas de mutações covalentes, no seu DNA, carcinógenos, bem como, seus coadjuvantes, os fatores identificados com os ambientais, os agentes químicos, os poluentes, os aditivos alimentares e as epidemias, não sendo destituídos de mal formações fetais, da mesma forma que, há relatos de casos, em que a pessoa precisa fazer uso de medicamentos, podendo ocorrer uma lesão fetal induzida. `A medida que placenta permite a difusão dos alimentos do sangue da mãe para o feto, se faz necessário, conhecer o grau de permeabilidade da membrana placentária, expressa por várias substâncias, avaliadas, devido a uma diferença de concentração, assim explica-se que o feto tem capacidade de absorver ativamente, diversas substâncias inclusive, tal atividade é percorrida até a fase final da gravidez. A deficiência mental é resultado, quase sempre, de uma alteração na estrutura cerebral, provocada por fatores genéticos, na vida intra-uterina, ao nascimento ou na vida pós-natal e, fatores ambientais. O espectro de patologias que tem a deficiência mental como expressão de seu dano, nos deparamos com um conjunto de mais de 200 doenças. Praticamente quase todos os traços poligênicos são multifatoriais, há uma predisposição genética quantitativa, assim temos a herança dominante e as recessivas, (OTTO, et.al., 1998). IV – Sistemas  Os distúrbios de inteligência podem, portanto, ser causados pela lesão de sistemas específicos que afetem, os sistemas de emoção, pois neste caso se perde a capacidade de avaliação ou lesão de sistemas mais genéricos, que participam da coordenação e recrutamento de outros circuitos neurais, porque há esta globalidade e distribuição de tarefas. Inteligência é uma propriedade real de certos sistemas que partilham conceito uma estrutura definida : os sistemas distribuídos, são compostos de subsistemas ou agentes que se especializam para determinadas tarefas, em objetivos: áreas frontais ou límbicas; outros em definir estratégias: memória executiva; outros em colocar em planos de ação: áreas motoras para movimentos ou fala; outros para avaliar o resultado destas ações: áreas emocionais básicas. A inteligência depende muito de como estes agentes se associam, de resolver os problemas surgidos, emerge como uma função de quão versáteis são as relações partilhadas por diferentes agentes; quão plástico podem ser os relacionamentos partilhados pelos agentes do sistema. Os distúrbios de inteligência podem, portanto, ser causados pela lesão do desenvolvimento da inteligência que guarda certa relação com o desenvolvimento neurológico, assim a medida que o sistema nervoso amadurece, manifesta-se a capacidade intelectual, cerca de 50 % da inteligência instala-se no período que vai de 0 a 4 anos de idade; e 30% no período que vai de 4 a 8 anos ;e 20 % no período de 8 a 18 anos. Não se pode esquecer pelo o qual a inteligência (expressão potencial) como um todo, vai sendo moldada, sofre influência considerável dos fatores psicológicos e sócio-culturais. Os diferentes fatores que atuam no desenvolvimento da inteligência, sejam eles biológicos ou não, nem sempre são positivos. Pelo contrário, muitas vezes são negativos e podem até causar retardamento mental, problema cujos aspectos biológicos, a média é o QI 100- QI- 85, 86 normais. VI- Universalização da Educação Básica  Todo professor deve ter esse conceito em mente, pois baixo rendimento escolar não é sinônimo de retardo mental. Os professores e pais devem ter sempre presente a necessidade de um comportamento cuidadoso em toda atividade que envolva crianças retardadas. Aceitar a criança a demonstrar carinho- ensina as partes mais fáceis sempre em primeiro lugar – ensinar uma parte de cada vez, passando para seguinte somente depois de a criança ter dominado totalmente a anterior; -associar cada parte e as coisas agradáveis para a criança; – elogiar a criança a cada item apreendido; para que ela se sinta capaz e desenvolva segurança; – manter a paciência e a uniformidade de comportamento; o valorizar a criança, não compará-la com as outras;- não exigir um rendimento que a criança não pode oferecer; as atividades para as crianças retardadas devem incluir não apenas linguagem e aritmética, mas também higiene, educação. A universalização da educação básica, com indicadores precisos de qualidade, é uma condição fundamental para o desenvolvimento de processos de democratização na sociedade, para a cidadania; outros agentes e instituições sociais intervêm neste processo, e têm uma responsabilidade na formação de personalidades e construção de saberes, valores, práticas e visões de mundos em educação de direitos humanos. O ser humano implica, antes, o ser homem vivo, independe do lapso temporal que medeia o nascer com vida e perecimento. Por outro lado, a pessoa representativa de um ato jurídico é pessoa, a sua existência aparece na esfera do direito como da decorrência à exteriorização consciente da vontade do Homem em obter um resultado juridicamente protegido ou não. O homem constrói o seu próprio mundo, porque, precisa atender ações necessárias de crescimento de sorte que, a verdade, a justiça e a igualdade aspira a uma sublime fraternidade. A instituição educacional enfatizam seus padrões e valores, têm uma concepção de mundo considera os programas para a formação de indivíduos conscientes de sua inserção histórica na sociedade. A incidência do retardo mental na população é de aproximadamente 3 % Quando esse valor é distribuído por faixas etárias,sofre modificação na população em idade pré –escolar ( 0 a 4 ) anos, fica em torno de 1 % e em torno de 2 %. A diferença decorre do fato de, na população em idade pré-escolar ( 5 a 7), tem o sistema nervoso central ainda em processo de maturação,e várias funções intelectuais estão desenvolvidas, sendo impossível avaliá-las. Em conseqüência, só os casos mais sérios geralmente são detectados .Do total de pessoas com retardamento, cerca de 0 % têm QI entre 50 e 70 ( Grau Leve) e cerca de 10 % tem QI abaixo de 50 ( graus moderado, severo e profundo). Admite-se que a base genética da inteligência é a herança poligênica, esta deriva da análise estatística de amostras de numerosas populações, QI, amostra normal, em genética, está é uma curva poligênica, cada gen tem grande influência no desenvolvimento e manutenção da inteligência.O critério psicométrico, QI, segundo as características desse desenvolvimento, e a capacidade de aprendizagem e o ajustamento social, é um adaptação da pessoa à sociedade, significa capacidade para ter emprego, ter relações inter- pessoais adequadas, não há meio seguro para prever o ajustamento social .Um grande número de retardo mentais de grau leve,identificados na idade escolar, ajusta-se bem a sociedade. Sob esse aspecto, não são deficientes. O desempenho escolar e os teste de QI são válidos para a identificação de retardamento em idade escolar, mas não significam necessariamente, um mau prognóstico para vida do adulto fora da escola. Algumas características do portador de retardamento mental: Grau do retardamento mental: 1-leve ( QI 55 a 69);2-Moderado ( QI 40 a 54); 3-Severo (QI 26 a 39); 4-Profundo(QI a 25). Desenvolvimento( idade pré-escolar );1- atraso sensório–motor significativo.Comunica-se ;2- atraso sensório- motor significativo. Comunica-se; 3-atraso sensório- motor grave, pouca capacidade de comunicação;4- desenvolvimento sensório-motor mínimo. Capacidade de comunicação inexistente ou mínma. Aprendizagem ( idades pré- escolar ) 1- aprende lentamente, com dificuldade; 2- treinável ; 3- treinável com dificuldade; 4- dependendo do desenvolvimento motor, treinável em alguns aspectos; Ajustamento social (idade adulta): 1- independentemente. Pode necessitar de assistência quando sob situações estressantes incomuns; 2- semidependente. Necessita de assistênncia quando sob situações estressantes comuns; 3- semidependente, necessitando de orientação constante. 4- dependente,necessitando de cuidados de enfermagem. Todavia em muitas regiões do Brasil a escola não dispõe desses professores, cabendo ao professor comum ao atendimento às crianças portadoras de retardamento leve esse trabalho que precisa ser marcado pela compreensão, pela dedicação e ela paciência, já que na maioria dos professores, infelizmente, possui os mesmos preconceitos das pessoas em geral com relação aos retardados mentais. O Papel do professor: em três níveis: identificando à criança retardada; grande maioria dos casos de retardamento leve somente é identificada quando a criança inicia suas atividades pré-escolares e, sobretudo, escolares; -educando a criança portadora de retardamento leve ( retardo mental educável), seja nas classes comuns, seja em classes especais da rede escolar ; – treinamento a criança portadora de retardamento grave ( retardamento mental treinável ), nas instituições especializadas. Os professores que trabalham com classes especiais de retardados graves devem ter necessariamente especialização. A Lei N. 7.853, De 24 DE Outubro De 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências.O Presidente da República: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Artigo 1º – Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei. § 1º – Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito § 2º – As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade.Artigo 2º – Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico. Parágrafo único – Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:I – na área da educação:a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como modalidade educativa que abranja a educação precoce, a pré-escolar, as de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais, com currículos, etapas e exigências de diplomação próprios;b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas;c) a oferta, obrigatória e gratuita, da Educação Especial em estabelecimento público de ensino;d) o oferecimento obrigatório de programas de Educação Especial a nível pré-escolar, em unidades hospitalares e congêneres nas quais estejam internados, por prazo igual ou superior a 1 (um) ano, educandos portadores de deficiência;e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos aos demais educandos, inclusive material escolar, merenda escolar e bolsas de estudo;f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino; Artigo 5º- O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas. VII-Considerações Finais  O termo eugenia, derivado de eugens, que significa ‘boa origem’, e passou a ser utilizado para definir ‘ o estudo dos agentes ‘ sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações, sejam físicas ou mentalmente. Atualmente a eugenia tem sido uma das maiores preocupações de vários especialistas, em diversos ramos do conhecimento, por causa, das possibilidades que podem resultar das práticas realizadas na manipulação do DNA humano. A criação da Comissão Central de Eugenismo, as discussões passarama a atender os seguintes objetivos : manter o interesse do estudo de questões eugenistas no país, difundir o ideial de regeneração física, psíquica e moral do homem, prestigiar e auxiliar as iniciativas científicas ou humanitárias de caráter eugenista que sejam dignas de consideração.  A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 10% da população mundial, ou 650 milhões de pessoas, conviva com alguma deficiência, figurando, assim, como a menor minoria do mundo. Informa, ainda, que 80% dessas pessoas vivam em países em desenvolvimento – um dado que foi confirmado no Brasil pelo Censo de 2000, quando se calculou que 14,5% da população, ou cerca de 24,6 milhões de pessoas, tem alguma deficiência. As expressões eufemísticas, dentre as quais ‘pessoas com necessidades especiais’ ou ’pessoas portadoras de necessidades especiais’ (PNE), fazendo uso da mesma lógica que gerou a noção de ‘pessoa especial’ para as pessoas com deficiência intelectual, tendo recebido grande aceitação. Contudo, com a promulgação de Salamanca, de 10/06/1994, a ONU começou a evidenciar uma distinção, utilizando a expressão’special educational needs ’ concomitantemente com a expressão ‘persons with disabilities – já usada na The Standard Rules on the Equalization of Opportunitis for Persons with Disabilities, de 20/12/1993. A diferença se tornou clara no Brasil com a publicação da Resolução n°2,de 11/09/2001, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (arts.3° e 5°) e, mais especificamente, com a publicação das Leis n°10.048, de 08/11/2000, e n° 10.098, de 19/12/2000, passando a ‘pessoa portadora de deficiência’ a ser apenas mais uma dentre as ‘ pessoas com necessidades especiais’, grupo que abarca também as pessoas com 60 anos, as gestantes, as lactantes, dentre outras. Por sua vez, a expressão ‘ pessoa com deficiência’ (PcD) influenciou profundamente a linguagem dos textos oficiais de documentos nacionais e internacionais e foi muito bem aceita pelas pessoas as quais se refere, ficando sedimentada junto à ONU como a promulgação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio da Resolução n° 61/106, de 13/12/2006.  A declaração dos Direitos Humanos prevê -que : Direito à vida; toda pessoa têm direito de que se respeite sua concepção. Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988, em seu corpo se preocupou em tutelar as garantias fundamentais do homem, prevê art.5°, caput, a proteção à vida, como claúsula pétrea.  A deficiência mental é resultado, quase sempre, de uma alteração na estrutura cerebral, provocada por fatores genéticos, na vida intra-uterina, ao nascimento ou na vida pós-natal e, fatores ambientais. O espectro de patologias que tem a deficiência mental como expressão de seu dano, nos deparamos com um conjunto de mais de 200 doenças.  Os distúrbios de inteligência podem, portanto, ser causados pela lesão de sistemas específicos que afetem, os sistemas de emoção, pois neste caso se perde a capacidade de avaliação ou lesão de sistemas mais genéricos, que participam da coordenação e recrutamento de outros circuitos neurais, porque há esta globalidade e distribuição de tarefas. A Inteligência é uma propriedade real de certos sistemas que partilham conceito uma estrutura definida : os sistemas distribuídos, são compostos de subsistemas ou agentes que se especializam para determinadas tarefas, depende muito de como estes agentes se associam, de resolver os problemas surgidos, emerge como uma função de quão versáteis são as relações partilhadas por diferentes agentes; quão plástico podem ser os inteligência é a herança poligênica, esta deriva da análise estatística de amostras de numerosas populações, QI, amostra normal, em genética, está é uma curva poligênica, cada gen tem grande influência no desenvolvimento e manutenção da inteligência.  Todo professor deve ter esse conceito em mente, pois baixo rendimento escolar não é sinônimo de retardo mental. Os professores que trabalham com classes especiais de retardados graves devem ter necessariamente especialização. A universalização da educação básica, com indicadores precisos de qualidade, é uma condição fundamental para o desenvolvimento de processos de democratização na sociedade, para a cidadania; outros agentes e instituições sociais intervêm neste processo, e têm uma responsabilidade na formação de personalidades e construção de saberes, valores, práticas e visões de mundos em educação de direitos humanos. ). A Lei N. 7.853, De 24 DE Outubro De 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências, art..1° e,2° . A diferença se tornou clara no Brasil com a publicação da Resolução n°2,de 11/09/2001, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (arts.3° e 5°) e, mais especificamente, com a publicação das Leis n°10.048, de 08/11/2000, e n° 10.098, de 19/12/2000, passando a ‘pessoa portadora de deficiência’ a ser apenas mais uma dentre as ‘ pessoas com necessidades especiais’, grupo que abarca também as pessoas com 60 anos, as gestantes, as lactantes, dentre outras. Por sua vez, a expressão ‘ pessoa com deficiência’ (PcD) influenciou profundamente a linguagem dos textos oficiais de documentos nacionais e internacionais e foi muito bem aceita pelas pessoas as quais se refere, ficando sedimentada junto à ONU como a promulgação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio da Resolução n° 61/106, de 13/12/2006.  Para o que há de viver, compõe –se a nobre força, concessões que nos permitirão fazer o bem, constituirão núcleos, para uma humanidade,melhor, adquirindo consciências a fins de uma dignidade pensante, ao texto que se refere, a crianças portadoras de deficiências, é constatado que, podem responsabilizar-se pela união estável celebrada pelo casamento civil, uma instituição mista, confere capacidade, titulariedade de exercício, não obstante a união são com os iguais não há discriminação entre eles. Em termos de democracia, não são observados seus próprios representantes de seus direitos civis e políticos. Tenhamos que repensar no atual sistema, e quando referimos em inclusão esta e´ conferir autonomia à estas pessoas, futuros professores, empreendedores, estudantes, poderão estar em faculdades, bem como fundado sua própria, instituição, centro educacionais, mas certamente precisão de apoio do Poder Público. Nota-se que a justiça é um assunto para todos, sendo esta um bem da vida essencial, é preciso, cultivar a coragem de uma nação que já enfrentou e continuará a enfrentar desafios e que merece um destino de dignidade para seu povo. A Constituição olhou o cenário social e enxergou esse quadro de contradições, deliberando estabelecer normas no seu interior, cuja aplicação deveria gerar a superação dessa realidade, é fruto de um consenso democrático, desejar, aplicação dos direitos por ela reconhecidos,transformar a realidade social, a educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam, reproduzam, entre outros os que ensinam – e aprendem, o saber que atravessa as palavras, sendo assim, ser homem é ser livre .
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-105/em-conformidade-aos-direitos-humanos-o-reconhecimento-da-dignidade-humana-deficientes/
Contratos de comercialização de material genético animal
Este trabalho apresenta uma abordagem teórica sobre o tema proposto “Contrato de comercialização de material genético animal”, visando a fornecer informações iniciais básicas, necessárias à elaboração de contratos firmados entre as partes. Pretende-se, ainda, tecer considerações sobre o procedimento de fiscalização desse tipo de contrato, com ênfase no papel dos órgãos responsáveis pela comercialização de material genético animal. O tema é relevante devido à preocupação com meio ambiente equilibrado, que já se fazia presente na Constituição de 1988, ratificada, em 1992, pela Convenção sobre Diversidade Biológica, a qual gerou a Lei de Biossegurança demonstrando a posição do Direito face os novos tempos e dada a constante evolução da Biologia, em especial da genética; donde se percebe a preocupação com uma legislação que venha regulamentar as questões relativas ao patrimônio genético. [1]
Biodireito
1-INTRODUÇAO O tema contrato comercialização de material genético animal, e mais propriamente, a comercialização, provoca certo grau de entusiasmo e também alguns questionamentos nas pessoas, que devem refletir sobre que tipo de uso dessas informações deve ser feito e, ainda, posicionarem-se contra o homem ou a favor deste a partir de bases jurídicas e biológicas. Entretanto, constantemente surge uma nova possibilidade dentro da biotecnologia, com o advento de conhecimentos surgem também a proteção jurídico-legal de nosso ordenamento que acompanha este processo evolutivo. Neste diapasão, portanto, e em linhas gerais, situar-se-á o presente trabalho, procurando demonstrar e inserir alguns comentários sobre o meio ambiente e material genético, noções gerais sobre contrato, a biodiversidade e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que se mostra um dos principais tratados internacionais resultantes da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente: aplicação da biotecnologia na área animal, abordando desde as formalidades na elaboração dos contratos para comercialização do material genético até a discussão sobre o objeto contratual em si. A proteção e acesso ao patrimônio genético trazidos pela legislação através da CDB, possui o propósito de conservação da biodiversidade, promovendo a utilização sustentável e a repartição justa e traz em seu bojo a atividade exploratória comercial a bioprospecção, todos com reflexos e aplicabilidade no âmbito econômico, o que, por certo, exige a presença do Direito. 1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE MEIO AMBIENTE E MATERIAL GENÉTICO O planeta Terra vem sofrendo constantes mudanças desde o Big Bang inicial até hoje, mas talvez seja correto dizer que um dos fatores mais marcantes desse processo está no surgimento do homem, o qual atua constantemente sobre a base da natureza, modificando-a e modificando a si mesmo. Partindo da mesma premissa, mas aliando-lhe o fator trabalho, Franciele Soares dos Santos, lembra que Marx já asseverava que o homem é um ser que trabalha, e que ao fazer isso, transforma e é transformado pelo processo de trabalho. O homem atua na natureza, a qual atua sobre ele, modificando, assim, sua própria natureza. Entre a natureza e o homem interpõe-se o processo de trabalho comandado pelo homem enquanto ser de trabalho. “Pelo trabalho o homem põe em movimento todo seu ser – cérebro/corpo – de forma conjunta na transformação da natureza”[2]. Historicamente é possível perceber-se que as modificações vêm ocorrendo tanto no processo de evolução do próprio ser, como também no tocante ao grande desenvolvimento industrial e alimentício, cada vez mais importante devido ao crescente aumento da população e suas necessidades em relação à sobrevivência. O aumento da demanda gerou a necessidade e a necessidade, a invenção, tanto que, modernamente, discutem-se temas como melhoramento genético, fertilização in vitro, transgenia, bioética, enfim, todo um rol de estudos voltados ao desenvolvimento de processos e técnicas ligados ao ser humano e sua atuação no universo natural. Assim, neste artigo, pretende-se lançar luzes sobre as questões jurídico-contratuais envolvendo material genético animal. Evidentemente, todo processo evolutivo traz em seu bojo a necessidade de normas protetivas e cautelares para manuseio e comercio, tanto que a Constituição Federal de 1988 elevou a proteção ao meio ambiente à condição de direito fundamental coletivo, dedicando um capítulo inteiro à temática ambiental. Assim, o patrimônio genético brasileiro passou a receber tratamento jurídico constitucional (art. 225, §1º, II), em face da relevância social que hoje possui, não só pela degradação que o meio ambiente vem sofrendo, mas também considerando a demanda populacional por alimentos e remédios, e ainda ao desenvolvimento tecnológico e científico na matéria. A existência de normas de conservação do patrimônio genético e de sua diversidade, a previsão de sua fiscalização e o fomento dado às entidades de pesquisa e manipulação de material genético, demonstram a importância do tema e, segundo André Augusto Duarte Monção[3], são pressupostos essenciais para a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é direito pertencente a todos, como se vê na previsão constitucional colacionada a seguir: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações: § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; […] IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; […] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” [grifou-se]. Assim, de acordo com a previsão constitucional contida no inciso II do dispositivo legal invocado acima, as entidades voltadas à pesquisa e à manipulação do material genético devem ser fiscalizadas, tendo em vista os riscos ambientais relacionados com tal atividade. Prevendo-se, desta feita, que tais pesquisas (envolvendo manipulação de material genético), possam afetar a diversidade e a integridade de tais patrimônios, o que ratifica a necessidade da fiscalização pelo Poder Público. Por sua vez, no inc. VII do art. 225 evidencia-se a proteção ao meio ambiente e sua função, o que inclui os códigos genéticos de plantas e animais envolvidos em pesquisas. Finalmente, a Lei n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995,“estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte,comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente”. 2. NOÇÕES GERAIS SOBRE CONTRATOS. Segundo Rafael de Menezes[4], um contrato, conceitualmente tratado, é um “negócio jurídico resultante de um acordo de vontades que produz efeitos obrigacionais”. Tal negócio jurídico possui elementos e requisitos próprios, consolidados pela doutrina e sacramentados pela legislação. São Elementos, requisitos e pressupostos contratuais, segundo o mesmo autor: “a) capacidade das partes: dever ser celebrado por pessoas capaz ou por representante legal nos demais casos. b) Objeto do contrato: corresponde a uma prestação licita, possível, determinada e de valoração econômica. c) Forma: a forma do contrato é livre, esta é a regra. Mas existem exceções tais como, “escritura pública” (feita por tabelião de Cartório Notas, com as solenidades do art. 215). d) Legitimidade: A legitimidade é um limitador da capacidade em certos negócios jurídicos. e) Causa: Em termos econômicos, as pessoas contratam para ganhar dinheiro ninguém contrata para ter prejuízo. f) Prestação: O contrato é uma fonte de obrigação, e toda obrigação tem por uma prestação que corresponda a um dar, fazer ou não-fazer”. Orlando Gomes[5], por sua vez, aprofunda a discussão: “O conceito de contrato é, conforme o ensinamento dessa escola (Pandectista), o de uma categoria geral e abstrata reduzida à unidade no sistema conceituai, segundo as regras da lógica formal. O sistema assemelha-se a uma pirâmide em cujo vértice se encontra um conceito generalíssimo ao qual se reconduzem os restantes conceitos, como outros tantos tipos e subtipos, levando esse método do pensamento formal à jurisprudência dos conceitos.' Na seqüência desse pensamento, Puchta estabelece a conexão lógica dos conceitos como a suprema tarefa do jurista, explicando que, para possuir a consciência sistemática, é preciso estarem condições de acompanhar em sentido ascendente e descendente a proveniência de qualquer conceito através de todos os termos médios que participam de sua formação.” Seja qual for a seara: empresarial, familiar, tributaria ou administrativa, faz-se necessária a presença de todos os elementos acima citados. Tais elementos exigem, ainda, a inequívoca manifestação da vontade das partes, posto ser esta vontade, elementos fundamental nos contratos, o que gera o requisito da consensualidade. Os contratos refletem negócios jurídicos dotados de pressupostos que são eles; capacidade das partes, objeto do contrato, forma, legitimidade, causa e prestação, sendo a vontade fundamental requisito na elaboração do contrato que por sua vez são regidos por princípios: Autonomia da vontade, Consentimento, – Boa-fé, Relatividade, Principio da onerosidade excessiva e Principio da Força Obrigatória. Tais princípios devem ser respeitados em todo e qualquer contrato. Atualmente, o último princípio citado foi relativizado (clausula rebus sic stantibus) – o contrato faz lei entre as partes desde que não ocorra um evento futuro imprevisível e extraordinário que tornem excessivamente onerosa para uma das partes o cumprimento de sua obrigação (CC art. 478 e CDC, art. 6º, V). Ocorrendo o citado imprevisto, os contratos podem ser revistos. Com todos este requisitos na formação do contrato estes geram efeitos: obrigatoriedade, irretratabilidade, intangibilidade e efeito pessoal.O contrato faz parte do direito das obrigações, o que relaciona também com direito das coisas, abordagem do contrato no tema, contratos de comercialização de material genético animal aborda também o direito do consumidor. 3. BIODIVERSIDADE E PATRIMÔNIO GENÉTICO A Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992[6], trouxe uma nova consideração ao sistema jurídico, a da preservação de conhecimentos tradicionais como patrimônio de caráter intelectual, assim como a pretensão do controle de cada Estado sobre seu patrimônio genético próprio. Embora, à primeira vista, a matéria rescenda mais a uma questão ideológica ou política do que propriamente econômica ou jurídica, a consideração de que entre 8 a 78 milhões de espécies ainda não tenham sido identificadas – para um total conhecido de 1, 4 milhões – e que os vinte produtos farmacêuticos mais vendidos nos Estados Unidos resultam de modificações produtos naturais certamente modifica a perspectiva dos mais incrédulos[7]. A questão dos conhecimentos tradicionais de fundo cultural – e não tecnológico – também merece consideração em momento oportuno. O primeiro tema em questão é o dos conhecimentos tradicionais. A CDB assim diz: “Preâmbulo As Partes Contratantes, Reconhecendo a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais, e que é desejável repartir equitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes, (. … .) Artigo I Objetivos Os objetivos desta Convenção, a serem compridos de acordo com as disposições pertinentes, São a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado. . (. … .) Artigo 8 Conservação In-Situ Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso: (. … .) j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas; (. … .) Artigo 10 Utilização Sustentável de Componentes da Diversidade Biológica Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso: (. … .) c) Proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de conservação ou utilização sustentável;” Por meio da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de Agosto de 2001[8], a União instituiu as normas brasileiras de proteção aos objetos jurídicos mencionados na CBD. A primeira referência do texto, porém, não é à Convenção, mas à Carta de 1988: A segunda questão introduzida pela CDB foi o eventual conflito entre a titularidade dos recursos genéticos e das patentes ou breeder’s rights (direitos de obtentor) nascidos da elaboração sobre tais recursos. . A colisão apontada pelos autores estaria nos art. .15 e 16 da CBD: “Artigo 15 Acesso a Recursos Genéticos 1. . Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional. . 2. . Cada Parte Contratante deve procurar criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção. . 3. . Para os propósitos desta Convenção, os recursos genéticos produzidos por uma Parte Contratante, a que se referem este Artigo e os Artigos 16 e 19, são apenas aqueles providos por Partes Contratantes que sejam países de origem desses recursos ou por Partes que os tenham adquirido em conformidade com esta Convenção. . 4. . O acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo e sujeito ao disposto no presente Artigo.. 5. . O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por essa Parte. . 6. . Cada Parte Contratante deve procurar conceber e realizar pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos providos por outras Partes Contratantes com sua plena participação e, na medida do possível, no território dessas Partes Contratantes. 7. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso e em conformidade com os Artigos 16 e 19 e, quando necessário, mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos Artigos 20 e 21, para compartilhar de forma justa e equitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos. . Essa partilha deve dar-se de comum acordo. . Artigo 16 Acesso à Tecnologia e Transferência de Tecnologia 1. Cada Parte Contratante, reconhecendo que a tecnologia inclui biotecnologia, e que tanto o acesso à tecnologia quanto sua transferência entre Partes Contratantes são elementos essenciais para a realização dos objetivos desta Convenção, compromete-se, sujeito ao disposto neste Artigo, a permitir e/ou facilitar a outras Partes Contratantes acesso a tecnologias que sejam pertinentes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica ou que utilizem recursos genéticos e não causem dano sensível ao meio ambiente, assim como a transferência dessas tecnologias. . 2. O acesso a tecnologia e sua transferência a países em desenvolvimento, a que se refere o parágrafo 1 acima, devem ser permitidos e/ou facilitados em condições justas e as mais favoráveis, inclusive em condições concessionais e preferenciais quando de comum acordo, e, caso necessário, em conformidade com mecanismo financeiro estabelecido nos Artigos 20 e 21. . No caso de tecnologia sujeita a patentes e outros direitos de propriedade intelectual, o acesso à tecnologia e sua transferência devem ser permitidos em condições que reconheçam e sejam compatíveis coma adequada e efetiva proteção dos direitos de propriedade intelectual. . A aplicação deste parágrafo deve ser compatível com os parágrafos 3, 4 e 5 abaixo. . 3. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso, para que as Partes Contratantes, em particular as que são países em desenvolvimento, que provêem recursos genéticos, tenham garantido o acesso à tecnologia que utilize esses recursos e sua transferência, de comum acordo, incluindo tecnologia protegida por patentes e outros direitos de propriedade intelectual, quando necessário, mediante as disposições dos Artigos 20 e 21, de acordo com o direito internacional e conforme os parágrafos 4 e 5 abaixo. . 4. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso, para que o setor privado permita o acesso à tecnologia a que se refere o parágrafo I acima, seu desenvolvimento conjunto e sua transferência em beneficio das instituições governamentais e do setor privado de países em desenvolvimento, e a esse respeito deve observar as obrigações constantes dos parágrafos 1, 2 e 3 acima.” As Partes Contratantes, reconhecendo que patentes e outros direitos de propriedade intelectual podem influir na implementação desta Convenção, devem cooperar a esse respeito em conformidade com a legislação nacional e o direito internacional para garantir que esses direitos apóiem, e não se oponham aos objetivos desta Convenção. 4. APLICAÇÕES DA BIOTECNOLOGIA NA ÁREA ANIMAL Karl Ereky, em 1917, conceituou biotecnologia como a ciência que “engloba todas as técnicas que utilizam organismos vivos, em particular, animais, plantas ou microorganismos ou qualquer tipo de material biológico que pode ser assimilado aos microorganismos ou parte dos mesmos, para provocar neles mudanças orgânicas.” (OMPI – Comissão de Expertos em Invenções Tecnológicas). Assim, Segundo Tomazzini Freire, a biotecnologia se constitui num processo tecnológico que permite a utilização de material biológico para criação ou aperfeiçoamento de um produto ou um serviço (processo). Para ele, a biotecnologia sofreu nas últimas décadas uma grande evolução tanto na aquisição de novos conhecimentos, quanto no desenvolvimento de processos tecnológicos e de sua aplicação na área de produção de insumos para saúde e de prestação de serviços[9]. No Brasil, no ano 2000, a pesquisa em biotecnologia apresentava os seguintes números: 6.616 pesquisadores, distribuídos em 1.718 grupos e 3.814 linhas de pesquisas. As ciências agrárias e médicas contavam, respectivamente, com 1.075 e 503 linhas de pesquisa. (Salles Filho et al., 2002). Esta biotecnologia moderna também teve sua aplicabilidade no âmbito animal e tem contribuído significativamente para melhoramento das espécies no interesse zootécnico, tais como bovinos, suínos, aves, entre outras no século XX a produção animal deixa de ser apenas para o sustento. As aplicações da biotecnologia moderna na área animal são múltiplas e têm um mercado potencial de bilhões de dólares por ano. A competição por tal mercado exige que as empresas façam investimentos significativos em pesquisa para desenvolver produtos, que incrementem a produção e gerem animais que sejam: capazes de produzir proteínas terapêuticas, modelos de estudos para doenças humanas e fornecedores de órgãos para os seres humanos. Essas pesquisas utilizam ferramentas genéticas que foram desenvolvidas pela tecnologia do DNA recombinante e da transgênese[10]. Segundo informações veiculadas pelo site do Ministério da Agricultura, todo estabelecimento produtor, comercial ou prestador de serviço que trabalha com material genético bovino, bubalino, caprino, ovino, equídeo e suíno (sêmen e embriões), avícola (ovos férteis) e sericícola (ovos e larvas de bicho-da-seda) deve ser registrado no Ministério da Agricultura. Esse controle é fundamental para assegurar a qualidade do material genético dos animais e seus derivados comercializados no mercado brasileiro ou para exportação. Os processos de registro dos estabelecimentos e inscrição dos reprodutores — animais doadores de sêmen — permitem a rastreabilidade da produção de sêmen e embriões no País. Somente pode ser comercializado material genético dos reprodutores que passam por exames sanitários, de identificação genética e desempenho zootécnico, o que assegura a identidade e qualidade do produto final. Ainda segundo o MF, na estrutura do Ministério, o trabalho de normalização e fiscalização da produção e comercialização de material genético animal é realizado pela Divisão de Fiscalização de Material Genético Animal (DMG), do Departamento de Fiscalização de Insumos Pecuários (DFIP), vinculado à Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA). A DMG é responsável pelo registro e fiscalização dos estabelecimentos que produzem, coletam, processam e comercializam material genético, bem como pela inscrição dos animais doadores de sêmen. Ela monitora os exames e as centrais de coleta e processamento de sêmen e embriões no país, assegurando ao consumidor um produto que contribua para o progresso genético dos rebanhos e a produtividade nacional. O registro dos estabelecimentos e a inscrição de reprodutores devem ser feitos na SFA do estado do estabelecimento. 4.1 Produção animal Há séculos, produtores têm realizado seleção artificial em várias raças e linhagens de animais domésticos, a fim de aumentar a frequência de genes favoráveis economicamente. No entanto, segundo Vasco Azevedo[11], quando o objetivo é a obtenção de mudanças mais drásticas no potencial genético, a exemplo da mudança da base alimentar (pasto x grãos) ou dos requerimentos de mercado (redução de gordura), os produtores lançam mão de estratégias de substituição de raças ou cruzamentos, transferindo genes de uma população para outra, dentro de uma mesma espécie. Esse tipo de seleção é lento, pois tem de respeitar o intervalo de gerações, ou seja, a idade média dos pais na época da procriação. No caso dos bovinos, que têm um intervalo de geração de quatro anos, um programa de melhoramento tradicional envolve décadas de trabalho, e pode não alcançar os seus objetivos[12]. A seleção assistida usando testes de DNA permite verificar, imediatamente após o nascimento, se os genes de interesse foram eliminados ou adicionados. Então, há a certeza da obtenção das características de interesse daquele animal e só é preciso que ele chegue à idade adulta para transferir tais características para os seus filhos – pelas técnicas clássicas de transferência de embriões ou pela clonagem. Na Europa e nos Estados Unidos, esses testes estão sendo usados para eliminar o gene que confere à carne suína uma aparência pálida e aqüosa. Um programa governamental ambicioso, desenvolvido na Inglaterra, faz 10.000 testes de DNA de ovinos por semana para identificar animais resistentes ao " scrapie" (doença que causa tremor, semelhante ao mal da vaca louca) e somente depois disso os animais são usados nos programa de seleção[13]. A clonagem ainda não é usada no melhoramento animal, pois é um procedimento moroso e altamente ineficiente. O primeiro mamífero clonado por meio de células de um doador adulto foi a ovelha Dolly, em fevereiro de 1997. A técnica constitui na transferência nuclear de duas células. A célula receptora, normalmente um óvulo não-fertilizado, e a doadora, com o seu núcleo do indivíduo a ser clonado, são fundidas e implantadas em uma mãe de aluguel. Clones de bovinos, eqüinos, suínos e caprinos estão sendo anunciados com frequência pela mídia. No Brasil, o Dr. Rodolfi Rumpf, em 2001, foi o primeiro a conseguir a clonagem de bovinos quando nasceu "Vitoria", pela técnica de transferência nuclear[14]. 5. DAS FORMALIDADES PARA A COMERCIALIZAÇÃO DO MATERIAL GENÉTICO A legislação conceitua contrato de utilização do patrimônio e de repartição de benefícios como o “instrumento jurídico multilateral, que qualifica as partes, o objeto e as condições de acesso e de remessa de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, bem como as condições para repartição de benefícios”. A multilateralidade deste negócio jurídico, de plano, evidencia que não se trata de um instituto sujeito ao clássico regime do direito civil dos contratos. Isto porque o procedimento de acesso à sociobiodiversidade não é uma relação linear bipolar, mas sim, um complexo cipoal ou emaranhado de links jurídicos entre as partes em que o ponto de intersecção comum é o núcleo de negociações dos distintos interesses, consubstanciado num PIC (consentimento prévio informado) ou num contrato de acesso e repartição de benefícios[15]. Segundo a Medida Provisória nº 2186-16/01, que regula a matéria no Brasil: “O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) tem a atribuição de dar anuência aos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios e de registrá-los, numa instância ad referendum ou de ratificação para a validade e eficácia do contrato. Isso significa que hoje esses contratos no Brasil são regidos pelo regime jurídico de direito privado, ad referendum do Poder Público, visto que depende da anuência do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que tem natureza de autarquia federal, salvo quando a própria União for parte. Neste último caso, o contrato estará sob a égide do regime jurídico de direito público.” Sandra Akemi Shimada Kishi, estudando o tema, assevera: “Diante da natureza do objeto do contrato, consubstanciado num bem de interesse público ou difuso, por óbvio não se trata de um negócio jurídico regido pelas normas do regime jurídico dos contratos, mas por um sistema jurídico sui generis contratual, dotado de elementos próprios de proteção de bem de interesse difuso ou coletivo lato sensu. Essa concepção é inevitável, pois em se tratando de acesso ao conhecimento tradicional, não apenas o objeto do negócio jurídico é bem de interesse difuso, mas também as partes – uma comunidade ou indivíduos ou grupos representativos de direitos coletivos – e ainda o tempo e o modo dessa relação contratual sui generis invocam diferentes dinâmicas e instrumentos, próprios do direito das minorias e dos povos tribais.” A autora ainda explica que a MP dispõe que “sempre que houver perspectiva de uso comercial de produto ou processo resultante da utilização de componente do patrimônio genético será necessária a prévia assinatura de Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios”. Para ela, seria errôneo concluir que “o acesso para pesquisas, sem perspectivas de utilização comercial dispensa sempre o contrato de acesso e repartição de benefícios, mas apenas que a formalização do contrato de utilização e repartição de benefícios prescinde de ser prévia”. Assim, ela recomenda “desde o acesso até a efetiva utilização dos recursos biológicos sejam efetiva e equitativamente compensados os valores humano, além dos valores econômicos da biodiversidade, sendo certo que o Preâmbulo da Constituição Federal enleva tais valores fundamentais”.  Prevê o art. 14, V da MP 2186-16/01 que compete à instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins credenciada no CGEN acompanhar a implementação do contrato de utilização e repartição de benefícios. Segundo Kishi, há cláusulas essenciais mínimas no contrato de utilização e repartição de benefícios, elencadas na legislação, tais como: “I – objeto, seus elementos, quantificação da amostra e uso pretendido; II – prazo de duração; III – forma de repartição justa e eqüitativa de benefícios e, quando for o caso, acesso à tecnologia e transferência de tecnologia; IV – direitos e responsabilidades das partes; V – direito de propriedade intelectual; VI – rescisão; VII – penalidades; VIII – foro no Brasil.” A supracitada pesquisadora explica, ainda que, como penalidades, o contrato pode definir entre: “apreensão das amostras ou dos produtos obtidos do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional; suspensão da venda do projeto do acesso, embargo da atividade, interdição parcial ou total da atividade ou empreendimento; suspensão de registro, patente ou autorização; perda ou restrição de incentivo fiscal; perda ou suspensão em linhas de financiamento em estabelecimento oficial de crédito; intervenção no estabelecimento; proibição temporária de contratar com o Poder Público”.  6. NOVO OBJETO CONTRATUAL Evelise Leite Pâncaro da Silva[16], explica que se está diante de um “novo objeto contratual”, no qual a definição de vivo e a sua relevância nos estudos de contratos envolvendo materiais biológicos avulta. Para a autora, “não há mais dúvidas hoje de que todos os seres vivos, animais ou vegetais, e pertencentes a qualquer reino ou espécie, desde de uma simples bactéria até o ser humano, são formados a partir de uma mesma estrutura de genes e possuem igual funcionamento de genomas”. Dadas tais circunstâncias, a partir da metade do século XIX, desenvolveram-se muitos estudos científicos que possibilitaram “a manipulação de mensagens genéticas contidas nas células dos organismos vivos através das técnicas de corte ou modificação das moléculas de DNA, viabilizando a coleta e a exploração de recursos vivos provenientes da qualquer espécie existente na natureza”. Assim, reflete a pesquisadora: “Pode-se, então, considerar que os materiais guardados em bancos de recursos biológicos, justamente com acervo de informações genéticas correspondentes, elaborado por técnicos e cientistas da área de biotecnologia, fazem parte do universo dos vivos. E, em si tratando de material humano, o anonimato dos doadores e dos dados referentes a saúde e a constituição genética dos indivíduos contribui para sua despersonalização ou “coisificação”, provocando uma ruptura entre o elemento vivo e a sua vida da ele se originou. Tal ruptura mostra-se indispensável para possibilitar a utilização e a regulamentação de tais bens com fins científicos e industriais”. Para Silva, os textos legislativos, além de escassos são imprecisos, o que deixa as questões sobre o tema ainda mais obscuras, contudo, não há negar-se o rol de “interesses políticos e econômicos das nações e de grandes empresas na exploração de objetos de pesquisas decorrentes da biotecnologia e da biomedicina”. Desta feita, conclui Evelise Silva: “Cumpre, pois, ao jurista, a tarefa de fixar os limites concernentes á legitimidade das formas de apropriação da natureza a das normas de direito positivo que devem regulamentar as relações comerciais envolvendo materiais biogenéticos, especialmente aqueles de origem humana. Entretanto, a reflexão sobre o direito contratual aplicável aos bens vivos, por envolver interesses sociopolíticos dos países, suscita dificuldades de ordem teórica e pratica, que exigem, de inicio, uma correta compreensão do vivo no sentido empregado pelos biólogos, isento de subjetividade.” Logo, a existência dos contratos nessa área, regulados por lei eficiente, podem não só trazer benefícios aos seres humanos, mas também ao próprio meio ambiente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Face ao exposto, pode-se concluir que os contratos de comercialização de material genético animal, são temas de enorme relevância, pois se caracterizam como um dos instrumentos científico-econômico mais evoluídos dos últimos séculos, capaz de se tornar, conforme a legislação que lhe aplicável, tanto um elemento de preservação quanto de destruição de patrimônio genético. A correta utilização dos recursos naturais, da fauna e da flora, do meio ambiente como um todo goza de proteção constitucional, mas precisa de um marco regulatório hábil a concretizar tanto o respeito aos seres vivos (estejam eles envolvidos em pesquisa ou em contratos de compra e venda). Quando o ser humano respeitar o animal como componente dessa biodiversidade que forma a humanidade, terá por consequência, o respeito à sua própria existência sobre a face da Terra. Seja nos contratos convencionais ou nos mais modernos, deve prevalecer o princípio da boa-fé. É fato que se trata de um ramo novo da ciência e que se encontra em plena ascensão, daí exsurge a importância do estudo e da pesquisa, e a necessidade do direito acompanhar seu desenvolvimento, embora, encontre dificuldades uma vez que seus conhecimentos e pesquisas são extremamente técnicas. Os processos de transformação apresentam soluções acerca de questões quantitativas e qualificativas na produção e comercialização de material genético animal que não podem ser desprezadas no mundo globalizado em que quase tudo carrega um valor econômico e uma implicação jurídica, eis a importância desse breve estudo. Se por um lado o tema interessa, por outro, assusta, pois, conforme dito anteriormente, aliado a esse aspecto surgem as normas constantes na Constituição e no Código Civil 2002 que estabelece o direito de meio ambiente equilibrado e a formalização de contratos, embora o caráter particular desse tipo de contrato possa trazer à tona lacuna legais que precisam ser sanadas. É indispensável que a Lei e o Direito sirvam de suporte para de tornar possível a exploração consciente e equilibrada destes recursos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-104/contratos-de-comercializacao-de-material-genetico-animal/
Breves notas sobre a natureza jurídica do genoma humano: controvérsias conceituais
Este recorte de uma tese busca a natureza jurídica do genoma humano, as relações sociais em que está fincado e sua utilidade econômica, moral e ética desse bem. Cogita-se algumas peculiaridades que a doutrina tradicional atribui aos direitos de personalidade e analisa-se se realmente podem elas atrelar-se aos direitos de personalidade e aos dados genômicos. A defesa dos bens genéticos evidencia que existe uma distância entre o contexto teórico e o da prática, por isso traz-se uma breve informação da relação jurídica e a personalidade conforme as posições doutrinárias. Entretanto, sabe-se que nem sempre são direitos subjetivos, podendo se portar como objetivos. A interpretação da natureza jurídica do genoma humano comporta um debate argumentativo das partes. Os dados genéticos não podem ser considerados de interesses difusos, pois são noções extrajurídicos, que pode auxiliar na alegação de defesa já que se completa politicamente pela importância social.
Biodireito
Introdução Atualmente os debates sobre a urgência de regulamentações do acesso aos benefícios oriundos de pesquisas científicas com genes humanos e a sua manipulação tem surgido num processo de celeridade ante os avanços da biociência e da biotecnologia para o seqüenciamento genético do DNA humano que ocorre no mundo, na Argentina e no Brasil, como resultado dos objetivos do Projeto Genoma Humano internacional. A partir da divulgação do mapeamento genético humano, ficaram acessíveis conhecimentos diagnósticos e terapêuticos para muitas das doenças genéticas até então incuráveis. Para este progresso da biologia genética e da bioindústria são requeridos grandes investimentos econômicos visando o desenvolvimento da ciência e das tecnologias previstos nas constituições da Argentina e do Brasil, em especial. (ZARINI, 2010 e BRASIL, 1988). Os estudos ampliados com genomas humanos, também provoca reflexões que perpassam as questões da bioéticas para a definição da natureza jurídica do genoma humano. Nesse sentido a ação do direito nesse período da história da humanidade torna-se essencial para tentarmos obter o objetivo deste estudo. Nossa preocupação maior nesse momento é traçar alguns delineamentos relevantes para a discussão, como a caracterização dessa nova dimensão dos Direitos, a importância dos princípios referentes ao tema e a natureza jurídica das informações genéticas contidas no genoma humano. Na discussão da natureza jurídica, visa-se qualidade de vida do homem, no momento do aumento da manipulação genética do material humano, o objeto da proteção do gênero humano. A complexidade do assunto deste artigo, mesmo que de forma breve encontra-se no problema de se enquadrar a importância geradas da manipulação genética: ora o direito subjetivo (individual) de defesa do patrimônio genético e o direito difuso do gênero humano de ter amparada sua dignidade e de ter acesso aos benefícios das pesquisas genômica. Entende-se que é relevante a definição de interesse, que possuem em seu cerne a vantagem de natureza econômica ou moral que permite a passagem de uma relação entre um estipulado bem e uma pessoa. Segundo Mancuso, “a nota comum é sempre a busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir um interesse na posse ou fruição daquela situação" (MANCUSO, 1991, p.13). Do ponto de vista metodológico esse artigo resulta de uma revisão bibliográfica em literatura, periódicos, artigos na internet, sobre conhecimentos da natureza jurídica do genoma humano. Enfim, na busca pela verificação da natureza jurídica dos dados genômicos humanos, envereda-se por uma breve análise de alguns argumentos sobre a temática, visando as possibilidades e asseverações a respeito da natureza jurídica dos genomas humanos, destacando-se entre esses as categorias de direito de personalidade, direitos inatos, subjetivos e de interesse econômico, dentre outras circunstâncias subjetivas. 1. A Natureza Jurídica e suas Bases Conceituais Hoje é corriqueiro descrever as transformações múltiplas que os avanços das biociências, biotecnologia, bioinformática e das pesquisas genéticas podem provocar, em relação a benefícios e malefícios ao individuo e à humanidade. Dentre essas modificações, encontra o patrimônio genético humano que se alcançou como bem jurídico pelas conseqüências que traz para a pessoa humana. Na busca da natureza jurídica do genoma humano, ou seja, sua designação explícita por uma norma, buscam-se as relações sociais em que o genoma humano está fincado. Procuram-se a sua utilidade, valor econômico, moral e ético desse bem. Segundo Naves (2007, p.57-58), “(…) os dados genéticos humanos são expressões biológicas da personalidade humana. Logo, diz o autor: “é fácil relacioná-los aos direitos de personalidade”. Os questionamentos são muitos: uns indagam se seriam direitos de personalidade ou de direitos subjetivos. O acompanhamento do Direito vem no Brasil com o Código Civil  de 2002, que introduziu os Direito de Personalidade, embora a doutrina e a jurisprudência  tenham se antecipado em seus pareceres e julgamentos, tendo por base a Constituição Federal de 1988. Sem o objetivo de aprofundamento, antecipamos que os Direitos de Personalidade são aqueles que abarcam os diversos caracteres da personalidade humana. Entre estes direitos, destacam-se, os direitos de personalidade à vida, à integridade física, psicológica, honra e imagem, pois todos são valores da pessoa humana. Logo, personalidade e direito de personalidade apesar de interdependentes, são estatutos distintos. (NAVES, 2007 e ECHTERHOFF, 2007). Sendo a pessoa detentora de personalidade, têm direitos e deveres na ordem jurídica. Assim, personalidade enfatiza a pessoa em seu aspecto subjetivo, mantendo-se como sujeito de relações e situações jurídicas que devem ser resguardadas pelas leis de cada país em concordância com as declarações internacionais de defesa dos Direitos Humanos, e do genoma, em especial. Enquanto isso, o Direito de Personalidade objetiva tem como meta os aspectos objetivos das relações e situações jurídicas. (NAVES, 2007). Na busca pela natureza jurídica dos Direitos de Personalidade, a doutrina optou por duas correntes: (1) a afirmativistas e (2) a negativistas. Mesmo não sendo objeto deste estudo é de bom alvitre que expressemos a dificuldade em definir a categoria dos direitos de personalidade. Esta dificuldade dá-se em virtude da falta de consenso entre os doutrinadores sobre tal conceito. Enquanto alguns negavam seguindo a lógica da existência, outros afirmavam o direito de personalidade como enquadrado como direito subjetivo.  Já a corrente negativista tinha como argumento a tese da impossibilidade (…) de uma categoria em que o sujeito ativo coincidiria com o próprio objeto da relação jurídica. Diziam que a personalidade não pode ser objeto de direito, pois não se poderia conceber a “apropriação” da pessoa. Falta consensos entre os doutrinadores pois, enquanto alguns negavam seguindo a lógica a existência, outros afirmavam o direito de personalidade como enquadrado como direito subjetivo. (NAVES, 2007, p.57-58). Para Ascensão (2000, p.187), essa base conceitual ocorre “quando utiliza-se a expressão “direitos de personalidade”,destaca-se o individuo frente ao Direito Privado, enquanto as demais definições focalizam o Direito Público”. Quando incluímos os bens genéticos como direitos humanos, estamos nos referindo à proteção do indivíduo ante as ilegalidades do Estado e por isso, se regula pelas normas de caráter internacional. Continuando Naves (2007), acrescenta que os direitos humanos têm características diferentes dos direitos de personalidade, quando assinala que os direitos humanos abrangem maior número de bens jurídicos, protegendo desde a pessoa física até os direitos políticos de participação, como sujeito coadjuvante de sua história e o da cultura de determinada sociedade, incluindo, também, a proteção de bens de grupos e comunidades. Já sob a categoria dos “direitos fundamentais” também, diz Naves, “(…) são reunidos vários direitos, de direitos individuais e direitos coletivos. Entretanto, enquanto os direitos humanos historicamente estiveram dirigidos para a esfera internacional, “(…) adquirindo até meios próprios de proteção, como os tribunais e cortes internacionais, os direitos fundamentais voltam-se à seara interna, sendo estabelecidos constitucionalmente a partir de opões que definem a própria identidade do Estado”. (NAVES, 2007, p.101-102). Nesse caminho, Von Tuhr (1946, p.187) acrescenta que são “(…) os interesses sobre os quais o indivíduo não exerce senhorio. Assim, não é necessário a tese a um Direito subjetivo para se conceder a devida proteção jurídica”. Para ele, a ordem jurídica protege bens e interesses seja sobre seu corpo, vida, liberdade e honra. Desta forma enfatiza o autor: “Tal protección se realiza, em forma preventiva, mediante normas de La administración pública, em forma represiva mediante penas y efectos jurídicos de derecho privado que derivan de La lesión de dichos bienes, especialmente mediante derecho a La reparación Del dano por delito. Nace así La cuestión de si debemos reducirnos a comprobar que determinadas lesiones a las personas traen aparejados determinados efectos, o si estos bienes jurídicos deben considerarse como derechos subjetivos, y ser coordinados com los demás derechos, de propriedad, crédito, etc”. Pontes de Miranda (2000, p.38) ensina que o objeto dos direitos de pessoa não é a própria pessoa “(…) mas o direito subjetivo a exercer os poderes que se contêm no conceito de Personalidade”. Para a corrente do Direito Naturalista, o Direito de Personalidade é anterior ao Estado. Criticando o jusnaturalismo quanto à natureza dos Direitos de Personalidade, De Cupis, (2004, p.24-25) assinala sua posição positivista do Direito de Personalidade, ao afirmar que, “[…] Quando os direitos da personalidade estão vinculados ao ordenamento positivo tanto como os outros direitos subjetivos, uma vez admitido que as idéias dominantes no meio social sejam revestidas de uma particular força de pressão sobre o próprio ordenamento. Por conseqüência, não é possível denominar os diretos da personalidade como “direitos inatos”, entendidos no sentido de diretos relativos, por sua natureza, à pessoa”. Assim, o Direito da Personalidade, para esse autor, é formado por outros direitos subjetivos, sem o que este perderia todo o interesse para o direito do indivíduo (DE CUPIS, 2004, p.24). Logo, os direitos de personalidade são definidos como fundamentos à dignidade e integralidade humanas, pois resultam da proteção de seus bens existenciais, como vida, dignidade humana e liberdade etc. Acrescentamos que os Direitos de Personalidade são vitalícios, pois só se extinguem com a morte; são indisponíveis, não podendo ser apartados pelo seu titular – seria o fato de o sujeito renunciar à própria dignidade. Eles são extrapatrimoniais, ou seja, o direito em si não tem impactos no patrimônio, mas pode ocorrer que o Direito de Personalidade possa ter reflexos econômicos, como o dano contra a imagem de uma pessoa. (NAVES, 2007, p.101-103). Dentro das dificuldades de consenso sobre o conceito da natureza jurídica dos dados genéticos, percebemos que hoje predominam os postulados doutrinários de que os Direitos de Personalidade têm natureza jurídica de Direito subjetivo. Só se pode falar em direito subjetivo se há existência da pessoa. Infere-se: como seriam enquadrados os Direitos de Personalidade dos dados genéticos e dos doadores de órgãos pósmorte? A trajetória evolutiva das concepções ao longo da história, sobre o Direito de Personalidade, perpassou da base jusnaturalista à juspositivista, chegando à contemporaneidade com poder respeitável e crescente. Por esse motivo, o Estado Democrático de Direito abraça a tese de que o ordenamento jurídico só tem sentido dentro de um contexto linguístico, pela argumentação doutrinária e jurisprudencial. Revisitando Naves (2007, p.101-103), assinala que os conceitos de direito subjetivo, personalidade e Direito de Personalidade foram criados com fulcro no modelo científico cartesiano “de observar a realidade”. Logo, as normas jurídicas surgem da constatação dos fatos no cotidiano da realidade da pessoa e da sociedade como um todo. O ordenamento jurídico brasileiro, desde a década de 1980, vem incluindo a pessoa como ser humano. Portanto, no tocante à classificação jurídica da informação referente à Genética, o estudo de documentos internacionais sobre dados genéticos humanos, “(…) do ordenamento jurídico brasileiro, assim como de ordenamentos estrangeiros, e, ainda, da bibliografia especializada, nos leva a identificar alguns consensos, mas também algumas contradições”. (CORREA, 2009, p.23). Na Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO (2004), em dispositivo art. 2º, (i), são definidos dados genéticos humanos como “informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucléicos ou por outras análises científicas”. Nessa Declaração, fazem parte marcante os princípios destinados à defesa da pessoa referente às informações contidas em seus dados genéticos, onde a exigência essencial é o consentimento prévio e informado para a seleção, tratamento, utilização e conservação dos dados “(…) e amostras biológicas; no direito de acesso a seus próprios dados; e na confidencialidade dos dados em relação a terceiros, corolário do direito à intimidade”. (CORREA, 2009, p. 23). Continuando, a autora enfatiza o fato de que os enunciados dessas Declarações apontam caminhos ainda incertos quanto à natureza jurídica da informação dos dados genéticos. Assinala, ainda, que: “[…] Permitem, contudo, vislumbrar, desde logo, a existência de regimes jurídicos distintos atribuídos às informações genéticas, cujas fronteiras não são claras, mas que já indicam que esses objetos oscilam entre o campo dos direitos da personalidade e o dos direitos patrimoniais”. Em razão dos progressos da biotecnologia, a Argentina e o Brasil preocupam-se no sentido de encontrar os instrumentos para defesa da identidade genética, porém, ainda existem controvérsias quanto ao local dos dados genéticos no ordenamento jurídico. Dentre as dúvidas que cercam a natureza jurídica dos dados genéticos, destacam-se: que o Direito de Personalidade não são inatos, absolutos, vitalícios e extrapatrimoniais. São necessários, imprescindíveis e intransmissíveis, pelo menos em princípio. Portanto, os dados genéticos incorporam natureza múltipla, indeterminável a priore. A partir desta situação jurídica da personalidade, os dados genéticos, podem ser enquadrados, ora como direito subjetivo; como dever jurídico, faculdade, direito postetativo, sujeição, ônus e poder. (NAVES, 2007, p.111-114). Assim, a relevância dos dados genéticos é que aciona o Direito para a revisão de várias situações jurídicas de Direito de Personalidade, personalidade e, também, a reconstrução da noção de pessoa. Finalmente, a natureza jurídica do genoma humano somente pode ser definível com maior clareza se conjugarmos o processo hermenêutico com fundamento na combinação de qualquer lei substantiva, ou adjetiva, com a Constituição Federal de cada país, foco deste estudo. Conclusão As mudanças repentinas na hermenêutica jurídica, nas últimas décadas pôs o operador do direito em situações por vezes delicadas. A compreensão de um sistema aberto de regras e princípios, albergados pelos novos preceitos do Direito Constitucional, e seguidos ultimamente pelos civilistas, ocasionou uma série de imposições aos antigos dogmas da Ciência do Direito. No Direito Civil, ainda há uma inclinação à naturalização no Direito, que lhe nasce com o homem, negando a visão positivista e hermética do Direito das Normas na atualidade. Seguramente no processo de análise da natureza jurídica dos dados genéticos na concepção clássica do Direito Civil, demonstrou os problemas por que passa o intérprete em utilizá-las com base no arquétipo positivista. O ordenamento jurídico deve estar sempre acompanhando as mudanças de cada tempo histórico do homem e da sociedade no instante da reconstrução de novas interpretações, enveredando por uma visão de que o destinatário do regulamento deixou de ser simples objeto e espectador para um cidadão ativo e coadjuvante de sua vida e dignidade humana. Diante das inúmeras dúvidas que cerca a natureza dos dados genes humanos, destacamos, os “direitos” de personalidade. Aprendeu-s que os “direitos” de personalidade não são, constantemente, inatos ou originários, absolutos, vitalícios e extrapatrimoniais. No entanto, são imperativos, intransmissíveis e imprescritíveis, pelo menos em princípio, pois a recriação de um sistema aberto não pode idealizar a impossibilidade de transformação determinada pela argüição de um fato real. Difícil, também, é asseverar que os direitos de personalidade serão sempre subjetivos sempre direitos subjetivos. Podem em determinadas circunstâncias deixarem a subjetividade para tornar-se em objetivos. Com o avanço inegável da Biotecnologia, cresce o espaço privado. A defesa da intimidade genética da pessoa humana solicita novas concepções dos operadores jurídicos quanto aos “Direitos” de Personalidade. Talvez, mais livres das inflexibilidades dos Direitos Natural e Positivista, dentro de um situação visível. Outrossim, os genomas humanos não dados de interesses difusos, apesar de existir lugar para esse tipo de debate na prática jurídica. Representa apenas um bem extrajurídico que almeja prever a aquiescência de valoração para a humanidade do presente e para as gerações futuras. Ao mesmo tempo não podemos recusar a proficuidade da dogmática no sistema jurídico. Sua existência é conhecida, porém, deve ancorar-se como já enfatizado num processo sistemático de reconstrução dos construtos sobre a natureza jurídica em cada tempo histórico do homem e da sociedade. Por fim, constata-se os dados genéticos adéquam-se a natureza múltipla e indeterminada a priori. Assim, diante dessas várias “situações jurídicas da personalidade”, o genoma humano possui a faculdade de apresentar-se como faculdade, dever jurídico, direito subjetivo, direito potestativo, condicionamento, ônus e poder. Os dados genômicos promovem não só a expectativa para novas pesquisas sobre situações jurídicas de personalidade, mas também para uma nova concepção de pessoa. Finalizando a personalidade não é algo inerente ao homem; é referencial de atribuição, construída no cotidiano da prática de hermenêutica jurídica.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-103/breves-notas-sobre-a-natureza-juridica-do-genoma-humano-controversias-conceituais/
Avanços e retrocessos da reprodução assistida
O presente artigo tem por objetivo identificar de forma abreviada as técnicas mais utilizadas em reprodução assistida, tendo como grande pano de fundo o impacto sobre as estruturas jurídicas positivadas.
Biodireito
1.INTRODUÇÃO A revolução biológica que tem alterado o futuro da medicina, como o conhecimento da própria base genética da vida, pode ser considerado por alguns como o “Oitavo Dia da Criação”, visto que parece ser uma nova etapa do Gênesis, onde no sétimo dia Deus descansou, abençoou e o santificou, contudo, agora, no oitavo dia, o homem toma as rédeas e intenta reprogramar a si mesmo. Não é de se surpreender que essa alteração da base genética da vida, antevisto em o Admirável Mundo Novo, por Aldous Huxley, em 1927, deixa de ser ficção e entra no cenário real da vida como uma chave para desvendar os mistérios de nosso corpo, o que ocorreu com o sequenciamento do código genético, deflagrando-se um dos maiores projetos tecnológicos do século XX, o Projeto Genoma Humano (PGH), ressaltando-se que o Brasil, mesmo contando com infra-estrutura de pesquisa que justificaria sua participação, esteve excluído do PGH. E nessa esteira de descobertas, no contexto da reprodução humana, os cientistas dão um grande salto, na medida em que descobriram e desenvolveram técnicas de fertilização, enquanto, até o momento, o processo reprodutivo era exclusivamente controlado pela natureza. Falar em avanços e retrocessos da reprodução assistida, nos impulsiona a noção de tempo e espaço, porquanto não é tema recente, pelo contrário, o humanista Jean Bernard[1] afirma que: “As primeiras tentativas são antigas: a primeira inseminação com esperma do cônjuge aconteceu na Grã-Bretanha, em 1780, e a primeira inseminação com esperma de doador, um século mais tarde, também se deu na Grã-Bretanha, em 1884. Durante muito tempo, tais tentativas permaneceram muito raras” (g.n.). As hipóteses de aplicação da técnica eram restritas, aplicava-se à reprodução assistida quando o homem tinha defeito peniano, ou porque tinha problemas de ejaculação, ou ainda, pelo fato do homem ou a mulher apresentarem características que identificavam um pseudo-hermafroditismo, ou porque tinham más formações congênitas ou adquiridas. Hodiernamente, casais transmitem vida, com rapidez, a uma descendência que, de outra maneira não teriam vida, ou seja, não existiriam, sendo inconcusso que questionamentos se levantam a cada momento, consoante Pessini e Barchifontanie[2]: “É necessário observar, contudo, que a aplicação dessas tecnologias a determinadas situações trouxe muitas interrogações filosóficas e éticas fundamentais sobre a natureza e dignidade da pessoa humana, sobre o tipo de ser humano que queremos plasmar para o futuro, sobre os limites a impor aos novos poderes que a ciência nos dá, sobre a unidade e estabilidade da família, bem como a respeito da realidade científica e tecnológica da sociedade em que vivemos” (g.n.). O presente trabalho tem por objetivo identificar de forma abreviada as técnicas mais utilizadas em reprodução assistida, tendo como grande pano de fundo o impacto sobre as estruturas jurídicas positivadas. 2. Reprodução Assistida 2.1 Conceito Segundo Genival Veloso de França[3] reprodução humana assistida é o:  “(…) conjunto de procedimentos tendentes a contribuir na resolução dos problemas da infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas ou condutas tenham sido ineficazes para a solução e obtenção da gravidez desejada”. É cediço que durante muitos anos, explica citado autor, que a reprodução humana assistida recebeu diversas denominações como: “fertilização artificial, fecundação artificial, fecundação por meios artificiais, impregnação artificial, concepção artificial, semeadura artificial, inseminação artificial, fecundação in vitro  ou  fertilização matrimonial”. Em termos simples, a técnica da reprodução assistida é auxiliar a fertilização ao aproximar espermatozóides dos óvulos. Existem vários tipos de procedimentos que podem ser realizados e a indicação deles depende de cada caso, podendo envolver desde inseminação artificial até um ciclo de tratamento de fertilização in vitro, (FIV) também conhecido popularmente como método do bebê de proveta. Utilizamos a expressão “reprodução assistida”, porquanto além do Conselho Federal de Medicina identificar problemas e reconhecer avanços na engenharia genética, esta é a expressão adotada pelo referido órgão, ou seja,  utilizamos esta terminologia baseada em sua própria orientação, conforme Resolução 1.358/92, a seguir elencada: “CONSIDERANDO a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la; CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários dos casos de infertilidade humana; CONSIDERANDO que as técnicas de Reprodução Assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias em que isto não era possível pelos procedimentos tradicionais; CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso destas técnicas com os princípios da ética médica; CONSIDERANDO, finalmente, o que ficou decidido na Sessão Plenária do Conselho Federal de Medicina realizada em 11 de novembro de 1992; RESOLVE: Art. 1º – Adotar as NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA, anexas à presente Resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos. Art. 2º – Esta Resolução entra em vigor na data da sua publicação.” (g.n.) Assim, falar em reprodução assistida, a luz da orientação em epígrafe, é sinônimo de análise do tema infertilidade, que segundo a Organização Mundial de Saúde, tem definido a infertilidade como a ausência de concepção depois de pelos menos dois anos de relações sexuais não protegidas. 2.2. Avanços – Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) A tecnologia de reprodução assistida (TRA) que é um grupo de tratamentos de fertilidade que envolve o espermatozóide e o óvulo, pode ser: Fertilização in vitro (FIV) que é o tipo mais comum de reprodução assistida. Na FIV, o óvulo é fertilizado fora do corpo da mulher, de modo que os médicos o reimplantam no útero, na esperança de uma gravidez bem sucedida. Outras formas de tecnologia de reprodução assistida são: a injeção intracitoplásmica de espermatozóide (IIE), a transferência intrafalopiana de gameta (TIG) e a transferência intrafalopiana do zigoto (TIZ). Em termos históricos, a fertilização in vitro (FIV) é recente, com o nascimento de Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”, em 25 de julho de 1978 (Patrick Stpton e Robert Edwards, comunicaram à revista Lamet, em agosto de 1978, pesando 2.500 g.), o que marcou o início da idade da engenharia genética. E Segundo Pessini e Barchifontanie[4]: “Foi a primeira tentativa com sucesso de levar a cabo uma criança concebida fora do ventre materno através da fertilização in vitro. Desde aquele dia, o “choque do futuro” não é mais um futuro; ele está aqui e nós temos que lidar com as possibilidades e/ou perigos para os quais estamos suficientemente preparados e sobre os quais não existe um consenso público. (…) Dos bebês de proveta até a energia nuclear parece haver uma grande distãncia, mas as questões estão claramente umbricadas e pode trazer alguma luz para ambas realidades. Em ambos os casos defrontamos com as questões: A ciência deve fazer tudo que é capaz de fazer? Existem limites? Como decidir?” (g.n.) Segundo Melissa Jeffries[5], para os casais que estão iniciando o processo de fertilização in vitro, caso a mulher não tenha alterações graves nas trompas, ela pode tentar outros tratamentos antes da FIV. Dependendo da fonte do problema, as mulheres podem tomar antibióticos, medicamentos para fertilidade ou hormônios prescritos para aumentar as chances de gravidez. A cirurgia poderia ser a resposta para as mulheres que sofrem de problemas estruturais nas trompas de falópio ou no útero. Para os homens, uma opção é a medicação que aumenta a produção de espermatozóides. Eles também podem tomar antibióticos e hormônios prescritos ou tentar mudar o estilo de vida, como vestir roupas de baixo mais folgadas e evitar banhos quentes e saunas. Insiste MELISSA que, se esses tratamentos não funcionarem, a inseminação artificial (IA) pode ser o próximo passo. Nesse procedimento, o espermatozóide é coletado e, manualmente, colocado no útero ou nas trompas de falópio da mulher. Quanto ao que seja inseminação artificial, Reinaldo Pereira e Silva[6] leciona: “A inseminação artificial consiste em técnica de procriação assistida mediante a qual se deposita o material genético masculino diretamente na cavidade uterina da mulher, não através de um ato sexual normal, mas de maneira artificial. Trata-se de técnica indicada ao casal fértil com dificuldade de fecundar naturalmente, quer em razão de deficiências físicas (impotentia coeundi, ou seja, incapacidade de depositar o sêmen, por meio do ato sexual, no interior da vagina da mulher; má-formação congênita do aparelho genital externo, masculino ou feminino; ou diminuição do volume de espermatozóides [oligoespermia], ou de sua mobilidade [astenospermia], dentre outras), quer por força de perturbações psíquicas (infertilidade de origem psicogênica)” (g.n.). Outra opção antes do TRA é a inseminação intra-uterina (IIU), em que o espermatozóide é colocado diretamente no útero da mulher por meio de um cateter, que dá ao espermatozóide um empurrão na corrida ao óvulo.  Geralmente, quando tudo falha, as pessoas experimentam os tratamentos de TRA, e a maioria recorre à FIV. As pessoas utilizam mais o FIV quando os culpados pela infertilidade são baixa contagem de espermatozóides ou trompas de falópio bloqueadas ou lesadas. 3. Tipos de Paternidade No que pertine à primeira análise dos retrocessos, insta verificar que antigamente reconhecíamos como mãe a mulher que dava a luz e como pai, aquele que havia tido relação sexual com esta, fecundando-a. Tanto que este protótipo é herança romana ao afirmarem mater semper certa est e por outro lado, diziam pater semper incertus est. Neste diapasão, pai e mãe eram aqueles exclusivamente biológicos, visto que contribuíram com material genético, para fecundação do filho, daí a expressão “pai de sangue” ou “filho de sangue”. Por outro lado, não podemos excluir o brocardo popular: “mãe e pai, são aqueles que criam e educam e não aqueles que somente põem no mundo”, levando-nos a uma nova leitura do conceito de paternidade, visto que o direito não é estaque, onde está a sociedade está o direito – ubi societas ibi ius, a sociedade mudou e o direito deve manifestar-se, o que nos traz não mais apenas a verdade biológica da paternidade, mas também a sócio afetiva. Os defensores da tese da possibilidade da investigação de paternidade sócio-afetiva como Belmiro Pedro Welter[7], que citando outros autores, professa: “Comungamos com o mais moderno e recente pensamento jurisprudencial, isto é, de que é viável o ingresso de ação de investigação de paternidade (e não de adoção), para o reconhecimento da perfilhação sócio-afetiva. Com efeito, de acordo com o artigo 349 do Código Civil, "na falta, ou defeito do termo de nascimento, provar-se-á a filiação legítima por qualquer modo admissível em direito: I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos" (g.n). LUIZ EDSON FACHIN [8]professa, com absoluta razão, o seguinte: "Ressente-se o Brasil de um necessário movimento de reforma legislativa que, partindo de um novo texto constitucional, possa organizar, no plano da legislação ordinária, um novo sistema de estabelecimento da filiação. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação sócio-afetiva, aquele, enfim, que, além de emprestar o nome de família, o trata como sendo verdadeiramente seu filho perante o ambiente social. E no fundamento da posse de estado de filho é possível encontrar a verdadeira paternidade, que reside no serviço e no amor que na procriação. Esse sentido da paternidade faz eco no estabelecimento da filiação e, por isso, reproduzindo a modelar frase do Professor João Batista Villela, é possível dizer que, nesse contexto, há um nascimento fisiológico e, por assim dizer, um nascimento emocional" (g.n.). Determina o artigo 1597, do Código Civil: “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (g.n.). É necessária a análise do artigo em epígrafe, tendo em vista que, não mais podemos restringir a discussão do temo da paternidade somente em paternidade biológica ou sócio-afetiva, surge uma terceira modalidade, que é a paternidade jurídica ou presumida, oriunda do estudo dos incisos III a V do artigo 1597 do Código Civil. Assim nos deparamos com três situações, a concepção homóloga, a inseminação artificial homóloga e a inseminação heteróloga como formas de presunção de paternidade. E deste ponto surgem emergem questões éticas e jurídicas, como por exemplo: Se erros acontecerem no processo de fertilização, o aborto será aceito como um simples corretivo? Zigotos e fetos danificados serão rejeitados pura e simplesmente por causa dos desejos dos pais de terem uma criança sadia? A respeito do tema vida humana, no dia 10 de março de 1987 o Vaticano divulgou o documento “Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação”, segue trecho deste documento: “A investigação médica deve renunicar a intervir sobre embriões vivos, a não ser que exista a certeza moral de que não se causará dano algum à sua vida e à sua integridade, nem à da mãe, e somente caso os pais tenham outorgado seu consentimento, livre e informado, à intervenção. (…) A experimentação não diretamente terapêutica sobre embriões é ilícita. É imoral produzir embriões humanos destinados a serem explorados como “material biológico” disponível. (…) Por isso não é moral expor deliberadamente à morte embriões humandos obtidos in vitro...” (g.n.) 4. Natureza Jurídica dos Embriões Preliminarmente, devemos discorrer sobre a visão de alguns autores no que pertine o conceito de embrião. E começamos por Heman Nys[9] segundo ele: Em biologia, antes da implantação, o óvulo fecundado chama-se “zigoto”[10], em vez de embrião. O embrião é a entidade em desenvolvimento a partir da implantação no útero até oito semanas depois da fecundação; no começo da nona semana começa a ser denominado feto e conservará essa denominação até nascer. Os termos doação de embriões, transferência embrionária e experimentação embrionária são, portanto, inapropriados, já que em todos esses casos estamos falando do zigoto e não do embrião, segundo o autor. Axel Kahn[11], por sua vez, não faz menção às etapas do desenvolvimento embrionário – como Heman Nys – nem tampouco ao método que deu origem a esse embrião. Entende Kahn que embrião é um organismo em via de desenvolvimento, depois de seu estado celular até a realização de uma forma capaz de vida autônoma e não importa a natureza dos fatos que o produziram: fertilização de um gameta feminino por um masculino, partenogênese ou clonagem. Jean Bernard[12] externa sua posição no sentido de que o embrião é certamente uma pessoa em potencial, ou seja, que desde a concepção existe uma potencialidade, uma virtualidade de pessoa. Segundo informa, desde a concepção, as condições necessárias ao desenvolvimento dos diversos estados de organização biológica estão claramente presentes no genoma do indivíduo. Assim, unido os pensamentos de Axel e Jeal aos de Fábio Ulhoa Coelho[13], o tema de fundo é o surgimento de novo ser humano, devemos pensar em um novo ser humano, e segundo este: “A partir da fecundação, o que sucede é apenas a evolução do processo biológico. Em outros termos, para tais argumentos, não há nenhuma diferença essencial entre o embrião (mesmo fecundado in vitro) e um ser humano adulto, em termos de dignidade. A mesma proteção conferida pelo direito a este deve estender-se àquele, por conseguinte. A conclusão de tais argumentos é a de que os embriões in vitro são sujeitos de direito e merecem, como nascituros, tutela da lei” (g.n.). O tema é delicado e com base no exposto acima, entendo que o ser humano em desenvolvimento in vitro, não só no ventre materno é titular de proteção jurídica, entretanto, o que dizer dos embriões excedentários, que natureza jurídica possui? É cediço que o embrião, não é mero objeto, contudo, posicioná-los quanto à sua natureza ou personalidade jurídica, não parece ser o mais viável, dada à expectativa de direito e/ou potencialidade. Questionamento este, cuja resposta demanda outro estudo. 5. Conclusão A Resolução n.º 1358/1992, do Conselho Federal de Medicina não possui qualquer força legal, somente ética, a qual permanece inalterada desde a sua edição, faltando a aprovação de legislação específica sobre o tema, visto que é garantia constitucional a todo cidadão a constituição de uma família. E também o planejamento familiar é garantia da nossa constituição, e a ausência de normas regulamentadoras das técnicas de reprodução humana assistida, mesmo diante os avanços científicos nessa área do conhecimento e a proteção constitucional à constituição de família e ao planejamento familiar, faz com que a execução das técnicas pelos profissionais da ciência demanda diretrizes jurídicas urgentes.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-101/avancos-e-retrocessos-da-reproducao-assistida/
Alimentos transgênicos: para ou continua?
Os alimentos transgênicos são colocados atualmente na mesa de debates das mais variadas classes e grupos sociais. Consumi-lo ou não? Incentivá-lo ou não? São perguntas frequentemente realizadas nessas discussões. O que é inegável, porém, é que o avanço tecnológico está presente em todo o mundo, agora basta saber usá-lo para tentar reverter algumas mazelas do mundo atual, como a fome. Para se chegar à resposta do tema, foi feita uma análise doutrinária e conclui-se que não se pode atravancar o avanço tecnológico, mas tudo deve ser feito com respeito aos princípios jurídicos constitucionais e éticos.
Biodireito
1. Introdução Alimentos transgênicos, apesar de ser uma expressão nova no vocabulário popular, sua técnica já vem sendo utilizada há anos pelos pesquisadores. Como será demonstrado nos próximos tópicos, há relatos de transgenia desde meados de 1719. Com o passar dos anos desenvolveram-se a pesquisa e a polêmica dos organismos geneticamente modificados, os quais têm como espécie os alimentos transgênicos. O presente estudo, partindo de uma análise dedutiva, visa, primeiramente, conceituar os alimentos transgênicos e fazer uma breve evolução histórica. Posteriormente, discorrer em poucas linhas sobre a tão debatida questão da rotulagem dos alimentos transgênicos, fazendo um estudo comparado com outros países e por último, para se chegar à resposta do tema “para ou continua?”, serão mostrados os prós e os contras e as opiniões doutrinárias sobre o tema dos alimentos transgênicos. 2. O que são alimentos transgênicos? Transgênico para o dicionário Houaiss (2001, p. 2.751) significa: “organismo que contém um ou mais genes transferidos artificialmente de outra espécie”. As expressões Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e transgênicos são comumente utilizadas como sinônimos. Apesar de ambas envolverem técnicas de engenharia genética, deve-se lembrar que os transgênicos são uma espécie de OGM. Os OGMs são organismos cujo material genético – ADN/ARN tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética (Lei. Nº. 11.105/05, art. 3º, V). No que concerne aos alimentos transgênicos, pode-se dizer que são aqueles provenientes de sementes modificadas em laboratório. Essas sementes recebem material genético de outro ser vivo, como uma bactéria ou fungo, visando à produção de alimentos com uma maior resistência a um determinado tipo de herbicida ou, ainda, a alimentos ricos em proteínas e nutrientes. 3. Breve evolução histórica Ao contrário do que parece, as ideias da engenharia genética remontam de longa data. Pode-se citar como um dos marcos mais antigos a data do primeiro registro de uma planta híbrida[1], em 1719. Nos anos de 1865 e 1866, a genética ganhou impulso com a publicação do trabalho de Gregor Mendel[2], também chamado de o pai da genética, sobre cruzamentos de ervilhas. Em meados de 1900, os Estados Unidos cultivaram milho híbrido desenvolvido a partir da seleção e dos cruzamentos de duas plantas de milho. Ernest Messenger, em 1931, trouxe a ideia de que cada célula de um organismo vivo traz, em si, as informações que caracterizam determinada espécie e dada raça. Em 1953, James Watson e Francis Crick[3] descobriram a estrutura de dupla hélice do DNA, sendo uma evolução importante no mundo científico à medida que possibilitou a obtenção de informações genéticas dos organismos. O período entre 1970 e 1973 é marcado pelo nascimento da engenharia genética. Foi nesse espaço de tempo que Stanley Cohen Herbert Boyer[4] realizou recombinações de partes do DNA de uma bactéria depois da inclusão de um gene de sapo. Essa experiência provou aos meios científicos que o código genético é universal. No ano de 1980, foi concedida a primeira patente de um ser vivo. Por meio de decisão da Suprema Corte Norte-Americana, entendeu-se que uma linhagem de bactéria capaz de digerir petróleo derramado em acidentes era patente civil. A primeira planta geneticamente modificada foi criada em 1983; em 1986 o Embrapa elaborou a primeira planta transgênica no Brasil. O primeiro dano ocorrido pelo consumo de alimento transgênico data de 1989, nos Estados Unidos. O suplemento alimentar feito a partir de uma bactéria geneticamente modificada, produzida por uma empresa japonesa, gerou 37 mortes, 1.500 pessoas ficaram inválidas e outros 500 ficaram doentes, após o seu consumo. Os Estados Unidos colocaram o primeiro alimento transgênico nas prateleiras do mercado em 1994. Esse produto era um tomate que demorava mais para amadurecer do que os convencionais. No ano de 1999 a Universidade de São Paulo – USP e a Universidade de Campinas – Unicamp, desenvolveram um milho com gene humano. Vale ressaltar também com marco histórico dessa evolução em âmbito nacional, a promulgação da Lei n.º 11.105/05, que além de regulamentar alguns incisos do parágrafo 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança entre outras providências. 4. Rotulagem de alimentos transgênicos Ao analisar o uso dos alimentos transgênicos na atualidade, uma questão que não pode ser deixada de lado diz respeito à rotulagem desses alimentos. Com a chegada desses produtos às prateleiras dos supermercados e levando-se em consideração o direito de informação, muito se discutiu sobre a necessidade de avisar aos consumidores qual era a real procedência do que eles estavam consumindo. Sendo assim, o legislador pátrio disciplinou a questão por meio do Decreto nº. 3.871/01, que dispõe sobre a rotulagem de alimentos embalados que contenham ou sejam produzidos com organismo geneticamente modificado, e dá outras providências. A partir desse decreto, passou a ser obrigatória a discriminação, no rótulo, para os produtos que contenham um percentual superior a 4% de ingredientes transgênicos, utilizados na sua formação. No que concerne ao direito de informação, lembra Sirvinskas (2003, p. 250), “o direito à informação é supedâneo constitucional e deve ser observado quanto à rotulagem do produto geneticamente modificado. Essa necessidade também está prevista nos arts. 6º, 7º e 9º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078 de 11-9-1990)”. 5. A rotulagem no direito comparado Não é só no âmbito nacional que se discute a questão da necessidade de se inserir nos rótulos dos produtos informações de que se trata de alimentos transgênicos. Dois exemplos podem ser trazidos para ilustrar essa polêmica. Nos Estados Unidos, a rotulagem é voluntária. Nesse país, quem decide se informará ou não é a própria empresa. Já no Canadá a rotulagem é obrigatória. 6. Os prós e os contras dos transgênicos Os alimentos transgênicos são, atualmente, temas de diversos debates envolvendo desde ambientalistas e agricultores até mesmo grandes multinacionais, políticos e classes religiosas. Primeiramente, é mister ressaltar que as técnicas de produção dos alimentos transgênicos trazem como vantagens a produção de alimentos mais nutritivos e baratos, podendo ser até mesmo uma alternativa no combate à fome no mundo. Quanto às desvantagens, pode-se resumi-las naquelas advindas do consumo desses alimentos, podendo causar alergias ou danos ao sistema imunológico humano. No exemplar de 29 de outubro de 2003, a revista Veja (2003, p, 94) exemplifica bem o clima proveniente da polêmica: transgênicos: para ou continua, com os seguintes dizeres: “Poucos temas são discutidos num clima de tanta paixão e irracionalidade quanto a transgenia. Compreende-se. Os transgênicos representam uma ruptura cultural sem precedentes na história da humanidade, e um desafio à crença segundo a qual o homem pode pagar caro se mexer naquilo que Deus fez. O acerto de contas viria em forma de uma vingança da natureza, como aconteceu no caso da vaca louca. (…) No caso dos transgênicos, as pessoas, mesmo sem ter idéia precisa do que significam essas mutações, adotam uma postura contra ou a favor, em geral sem grandes reflexões. De um lado concentram-se os que tendem a aprovar os avanços científicos e os benefícios que trazem para a humanidade e para os fabricantes dos novos produtos que saem dos laboratórios. De outro, estão os que reprovam, principalmente ambientalistas e, de maneira geral, militantes de partidos de esquerda”. Os impactos positivos e negativos do uso dos alimentos transgênicos podem ser analisados sob a ótica da agricultura, da relação de consumo e alimentação, do meio ambiente natural e da saúde. Quanto à agricultura o grande impacto reside na produção de plantas mais resistentes a determinados tipos de herbicidas. Para o professor Fiorillo (1999, p. 61): “isso é positivo, mas o desconhecimento dos malefícios que os produtos transgênicos podem causar aos seres humanos é um aspecto negativo a ser levado em conta”. Já o professor Sirvinskas (2003, p. 248) só enxerga desvantagens no cultivo das sementes transgênicas: “As sementes, além disso, poderiam transmitir seu material genético a outras espécies, gerando ‘superpragas’. Os herbicidas, por fim, inoculados nas sementes modificadas, poderiam afetar animais e insetos importantes ao equilíbrio do meio ambiente”. No aspecto da relação de consumo e da alimentação, pode-se enumerar como impacto a criação de alimentos mais produtivos e baratos, além disso, a possibilidade de combater o problema da fome no mundo. O professor Paulo Affonso Leme Machado (2003, p. 931) traz em sua obra as opiniões favoráveis e desfavoráveis sob o aspecto da alimentação: “Argumenta-se que a engenharia genética faria crescer a produção de grãos e, com isso, seria eliminada a fome no mundo. Em sentido contrário, afirma-se que não é a escassez de alimentos o que condena à fome de milhões de pessoas no planeta, mas o desigual acesso aos alimentos”. Quanto à relação de consumo, mais uma vez deve ser lembrado o direito de informação, pelo qual os consumidores devem ter sempre em mente que os produtos que estão comprando são geneticamente modificados, optando, então, pela sua escolha ou não. Já no que tange ao meio ambiente natural, um aspecto importante diz respeito à possibilidade de surgimento de certos vírus e moléculas e, ainda, à possibilidade de prejuízos ao meio ambiente caso haja transferência incontrolada de genes. Por fim, no que concerne à saúde, o uso da técnica do DNA recombinante para a produção de alimentos com propriedades novas e mais nutritivas, pode ocasionar danos irreparáveis à saúde humana. Além disso, o professor Sirvinskas exemplifica essa possibilidade de dano à saúde em seu artigo científico (2003, p. 9): ”Os alimentos oriundos de cultivos transgênicos poderiam prejudicar seriamente o tratamento de algumas doenças de homens e animais. Isto ocorre porque muitos cultivos possuem genes de resistência antibiótica. Se o gene resistente atingir uma bactéria nova, pode conferir-lhe imunidade ao antibiótico, aumentando a lista, já alarmante, de problemas médicos envolvendo doenças ligadas a bactérias imunes”. 7. Conclusão Levando-se em consideração que o progresso da ciência não pode ser atravancado pelo “medo do novo” e que a ciência deve sempre se pautar pelo respeito aos princípios éticos e constitucionais, pode-se concluir, feitas as analises anteriores, que os transgênicos devem continuar, nos mesmos termos de Fiorillo (1999, p.60): “Analisando alguns aspectos da engenharia genética, principalmente a utilidade de seus experimentos, quando associada à produção farmacêutica, medicinal, alimentícia, a finalidades ambientais e demais benefícios ao homem, merece ser incentivada, mas não se pode afrontar princípios jurídicos constitucionais e alguns princípios éticos que envolvem esse tipo de atividade”. Os transgênicos se mostram sim uma ótima oportunidade para o problema da escassez dos alimentos tão debatidas nas rodadas da OMC (Organização Mundial do Comércio) e, também uma excelente alternativa para o fim do uso dos agrotóxicos e na conseqüente diminuição do preço da produção. Como já pronunciava o famoso economista Thomas Malthus em 1798, pelo consagrado princípio da população, a população tende a crescer em progressão geométrica e os alimentos em progressão aritmética. Assim, já se buscava em 1798 um modo de superar essa escassez de alimentos e, na atualidade, a ciência apresentou um caminho.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-100/alimentos-transgenicos-para-ou-continua/
Direito à saúde: um discurso acerca do patenteamento da biotecnologia
O presente artigo realiza considerações a respeito da necessidade ou não de patentear as células, microorganismos, plantas e demais elementos relacionados à biotecnologia e ao progresso científico. Pontua-se que é necessária uma análise dos fatos pela bioética para, só então, oferecer subsídios para que o legislador imponha, de forma coercitiva, limitações, acerca do patenteamento em determinadas ocasiões que muito interessam à humanidade. Destarte, nota-se que o direito não pode deixar de lado as evidências sociais do avanço científico, tendo que apoiar e incentivar o progresso através de medidas razoáveis e ponderadas. Ponderação que é feita neste artigo através da analise de três interesses em confronto: os dos cientistas, através de incentivos financeiros para suas criações, visando o desenvolvimento da ciência; os limites da bioética; e o da população em geral, que tem o direito de acesso a insumos baratos, tendo em vista diversos preceitos morais e constitucionais.
Biodireito
INTRODUÇÃO O desenvolvimento científico pode trazer muitos benefícios para a sociedade e ao mesmo tempo desperta polêmicas a respeito dos limites da legislação e sobre diversos pontos inerentes a evolução da ciência. Nesse mister, à medida que as descobertas avançam, sempre há questionamentos de ordem moral, ética e jurídica, entre eles, está a discussão sobre o patenteamento de elementos relacionados à biotecnologia. Nesse contexto, surgem debates acerca das proteções patentárias de elementos derivados do progresso da biotecnologia, que podem incentivar criadores e inventores a produzirem ainda mais, já que haveria lucro financeiro, o que poderá trazer mais esperanças de avanços científicos em prol da humanidade. No Brasil, somente em 1996, com o advento da lei de patentes (Lei 9.279 que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial), permitiu-se a proteção patentária de micro-organismos modificados pelo ser humano por meio de processos biotecnológicos não naturais (parágrafo único do art. 18), proibindo o patenteamento de micro-organismos encontrados na natureza e de seres vivos como plantas e animais ou elementos do ser humano, modificados ou não, inclusive o gene e o genoma humano (inciso III do art. 18). Nesse prisma, investiga-se se é prudente alargar o rol de situações possíveis de patenteamento, pois, analisando a questão, nota-se o perigo de aumentar o custo final dos medicamentos oriundos desses processos biotecnológicos, o que pode dificultar a universalização do acesso à saúde, prejudicando especialmente os mais carentes. Assim, é cediço que a lei nº 9.279/96 imprimiu importantes contornos a respeito dessa matéria, porém, alguns acreditam que o debate não pode terminar, pois sempre pode haver uma rediscussão sobre patenteamentos na seara na biotecnologia, e é por isso que a confrontação com outras normas está se tornando cada vez mais importante, sendo salutar uma rigorosa análise de questões bioéticas antes de permitir legalmente o patenteamento de qualquer organismo relacionado à biotecnologia. Sob o prisma mundial, observa-se que a tradicional figura do Estado está cada vez mais se modificando com a globalização das relações inseridas em âmbito internacional. As grandes empresas e corporações superam barreiras protecionistas em busca da lucratividade e não são submetidas a uma rigorosa análise inerente à observância de certos aspectos, como a busca pelo respeito à solidariedade entre os povos. Nesse contexto, empresas poderosas de medicamentos vendem seus produtos a alto custo para países periféricos, buscando o lucro, sem observar a função social da propriedade industrial e sem se preocupar com a erradicação de doenças em nível global. Já no âmbito interno, observa-se que as normas constitucionais podem ser usadas como importante alicerce para a matéria ora debatida, pois além de servir de base para a criação de limites acerca do patenteamento de seres vivos, alavanca uma série de preceitos importantes para a bioética e a efetividade dos direitos fundamentais (especialmente o direito à saúde). Por outro lado, segundo a Constituição Federal, além do Estado ser proibido de imprimir empecilhos nos processos de investigação científica, salvo para proteger outros direitos consagrados constitucionalmente, é seu dever promover o desenvolvimento da pesquisa, visando ao bem público e ao progresso das ciências (§ 1º do art. 218 da CF), e tudo isso tem relação direta com o patenteamento de elementos relacionados à biotecnologia. Nesse sentido, até mesmo o art. 2º da lei de patentes (Lei 9.279), prescreve que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial deve considerar o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Diante disso, o presente artigo faz uma análise de diversos preceitos constitucionais, especialmente aqueles que garantem o desenvolvimento científico (art. 218 da CF), os que alavancam o direito à saúde (art. 6º e 196 da CF) e os preceitos relacionados a bioética, que podem servir como guia para os limites de patenteamento de elementos relacionados à biotecnologia. 1. O patenteamento da biotecnologia e o desenvolvimento da ciência Preliminarmente, cumpre lembrar que segundo o art. 2º da Convenção sobre Diversidade Biológica, a biotecnologia é definida como “qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica”. Deveras, é cediço que a biotecnologia causou grande impacto no desenvolvimento dos elementos existentes na natureza, sendo posteriormente apropriada através do sistema de propriedade intelectual, para que seus criadores recebessem incentivos pelas boas novidades que apresentassem à humanidade. Tal cenário é retratado por alguns pesquisadores do Núcleo de Propriedade Industrial do Centro Universitário do Estado do Pará, que vislumbram um novo momento para o sistema de propriedade intelectual: “Perceba-se que o Sistema de Propriedade Intelectual vive um momento de “fronteira”, debatendo-se entre as novas necessidades da indústria biotecnológica, que clama pela concessão ampla de patentes para esse setor, e a necessidade de preservar a lógica do sistema, isto é, privilegiar invenções e não meras descobertas. Ademais, é evidenciado um profundo dilema ético, a respeito da “coisificação” da vida humana, iniciando uma nova onda de dominação do homem sobre o próprio homem”[1]. Ainda segundo tais autores, o termo “biotecnologia” surgiu em 1919, através de um método de produção de alimentos, sendo mais difundido na década de 50, por meio da biologia molecular[2]. Conforme já apregoado, o sistema de propriedade intelectual é feito para garantir aos criadores recompensas pelo esforço desprendido, uma vez que, é justo que recebam por isso, o que os incentiva a trabalhar pelo progresso tecnológico. Nesse Panorama, para Vanessa Iacomini “os direitos de propriedade intelectual referem-se a um conjunto de instrumentos legais que fornece proteção para criações do engenho humano e do conhecimento, cuja característica é de ser um bem incorpóreo[3]”. Dessa forma, os inventores e criadores necessitam de amparo e proteção da legislação contra cópias, que vêm a ser observada num conjunto de regras pertencentes aos direitos de propriedade intelectual. Diante deste contexto, é salutar prestar relevo a atual situação brasileira no que se refere ao patenteamento da biotecnologia. Nesse mister, ao fazer uma busca no site do INPI[4] (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), a pesquisa selecionou alguns dados relativos a pedidos de patentes biotecnológicas. Utilizando palavras-chaves, encontrou-se um número de 1.557 processos envolvendo pedidos relacionados à biotecnologia com as seguintes expressões assim distribuídas: Biodiversidade: 2; Organismo vivo: 15; Gens: 6; Transgênico: 156; Meio Ambiente: 86; DNA: 860; Genética: 107; Organismo geneticamente modificado: 10; Célula animal: 14; Célula vegetal: 103; Seres Humanos: 112; Engenharia genética: 5; Genoma: 56 e Mutações: 25. Também foi constatado que os pedidos cresceram acentuadamente nos últimos 3 anos, o que faz notar que o patenteamento (especialmente o biotecnológico) é tema relevante e importante para o país. Vanessa Iacomini defende o patenteamento biológico, aduzindo que tal medida poderia alavancar o progresso científico, ressaltando, porém, que não concorda com todo o tipo de patenteamento, consoante se extrai das seguintes palavras: “Nesse sentido, impedir qualquer forma de proteção intelectual de seres vivos significa impedir o acesso e o uso da biotecnologia, protelando irresponsavelmente processo de desenvolvimento e aplicação dessa tecnologia em áreas de extrema relevância social, o que, sem dúvida, acarretaria questionamento de natureza ética ainda mais grave. Por outro lado, tão condenável quanto essa condição é a oposta, totalmente permissiva, que aceita até mesmo o patenteamento de elementos do corpo humano. Como situar a linha divisória entre o que é desejável, o que é aceitável e o que repugna nossa consciência moral?”[5]. É certo que o patenteamento favorece o desenvolvimento tecnológico, sendo que o poder público tem a obrigação constitucional de promover o progresso da ciência (art. 218 da CF). Ademais, o reconhecimento social por conquistas, descobertas e inventos iria incentivar a classe científica a produzir ainda mais, impulsionando universidades, estudantes e pesquisadores, aliado ao fato de que o titular da patente tem o direito de impedir que terceiros, sem o seu consentimento, usem ou comercializem o objeto de seu trabalho (art. 42 da lei 9.279/96). O patenteamento também ressoa importante na medida em que protege o criador brasileiro contra cópias, principalmente diante de cientistas estrangeiros, mostrando-se imprudente proibir certos patenteamentos em território nacional, mesmo nos termos da legislação vigente, pois, o que é proibido aqui, poderá ser permitido em outro país, em que “piratas” poderão copiar e patentear um invento ou descoberta de um brasileiro. Ademais, note-se que, com essa espécie de proibição no Brasil, o progresso científico nacional também poderia ficar engessado, o que traria enormes prejuízos ao nosso país. Além disso, note-se que pela forma na qual o direito é posto, a situação poderá ficar sem controle, pois se sabe que as legislações de patentes são impostas dentro do território de cada Estado isoladamente, mas com a intenção de tutelar perigos abstratos cuja vítima é a humanidade. Sem a regulação do mesmo fato em todos os Estados, a intenção perderia a força, pois, com interesses econômicos fortes, os cientistas facilmente deslocariam-se para outros países, onde o fato fosse patenteado, para realizar livremente suas pesquisas e obter seus lucros, inclusive, vendendo para seu próprio país de origem por um preço maior. Tal situação poderia mais facilmente ser resolvida com o desenvolvimento mais efetivo de instrumentos de tutela internacional, que ajudariam a dar mais efetividade a diversas normas internacionais sobre patentes. Existem outros argumentos que podem servir a favor do patenteamento, como o próprio direito à saúde, pois, com o incentivo aos cientistas, as pesquisas podem aumentar, o que poderá trazer mais esperanças à população, especialmente com investigações acerca da cura de doenças tidas como incuráveis ou de difícil solução. Outrossim, os cientistas do Núcleo de Propriedade Industrial do Centro Universitário do Estado do Pará informam que o trabalho para definir o que é, ou o que não é patenteável, é uma tarefa difícil, consoante se observa nas seguintes palavras: “As alterações de paradigmas provocadas pela “Revolução Biotecnológica”, não permitiram que o Sistema de Patentes se mantivesse ileso. Essa realidade coloca o Sistema de Patentes sob pressão internacional favorável ao patenteamento de genes e seres vivos, conduzindo à mercantilização e à apropriação da vida. Sendo assim, esta é uma matéria sobre a qual está cada vez mais difícil estabelecer limites normativos de condutas e procedimentos, sendo uma das tarefas mais árduas definir o que pode ser patenteável e se a patente traria mais benefícios ou mais prejuízos à sociedade humana”[6]. Diante disso, os mesmos pesquisadores mostram argumentos contrários à concessão de patentes biotecnológicas: “Outro ponto contrário relacionado às Patentes Biotecnológicas é a dificuldade de alcançar a suficiência descritiva que um pedido de patentes deve ter. É extremamente complicado reduzir a termos escritos as minúcias dos processos e das matérias biológicas. Da mesma forma, a reprodução dos resultados das pesquisas em Biotecnologia é complexa, necessitando-se de equipamentos caros de alta tecnologia, o que dificulta a análise do pedido de patente pelo órgão governamental responsável, não sendo possível saber se o pedido atende ou não a suficiência descritiva, prejudicando a função social das patentes. Existe, ainda, o problema de terceiros terem acesso ao material genético fundamental na reprodução do produto que, em regra, é um material biológico raro”[7]. Assim, como pode ser constatado, existem bons argumentos que favorecem, bem como outros, que vão de encontro ao patenteamento da biotecnologia. 2. Princípio bioético da justiça como obstáculo ao patenteamento Ao longo da história, os proveitos descobertos pelos cientistas chegaram à população progressivamente. É o caso do “teste do pezinho[8]”, que beneficia muitas crianças por meio da prevenção de uma série de doenças, situação não vivida pelos bebês que nasceram antes do aparecimento do exame. Atualmente, qualquer pessoa facilmente alega que não é admissível a ausência do teste nas maternidades do país, especialmente quando se observa que o próprio Estado brasileiro proclamou que o acesso à saúde é universal e igualitário. Neste contexto, pode-se imaginar que acaso os cientistas criassem um novo invento (de alto custo) e que fosse capaz de prevenir doenças de forma muito mais avançada do que o “teste do pezinho”, diminuindo acentuadamente a mortalidade infantil, o discurso da falta de recursos econômicos para beneficiar todos os recém-nascidos surgiria novamente. Então, é de imaginar que a tendência é que a demanda e os custos financeiros aumentem no futuro. E com o patenteamento de elementos inerentes à biotecnologia, a situação iria ficar muito mais difícil, tendo em vista à onerosidade dos insumos. Ou seja, com o encarecimento das novas tecnologias, a distribuição gratuita dos benefícios iria ficar mais difícil, o que, justamente, vai de encontro a um dos princípios basilares da bioética. Assim, a inserção dos direitos de propriedade intelectual nesta seara, justifica-se em virtude da discussão acerca do encarecimento no preço de produtos importantes para a vida humana. Destarte, na instituição de regras acerca do patenteamento de materiais biológicos, deve-se levar em consideração a situação de que pode surgir monopólio ou encarecimento dos produtos, o que, com certeza, irá dificultar a distribuição dos insumos, especialmente, para beneficiar os mais carentes. No contexto dessas premissas, nota-se que a própria dignidade da pessoa humana fundamenta o acesso a tais benefícios e justifica a própria quebra ou relativização de patentes, pois conforme vaticina Ingo Sarlet, o princípio “(…) impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade[9]”. Nesta vereda, indaga-se em que medida os princípios bioéticos poderão ajudar na busca por uma adequada resposta à proteção intelectual de elementos biológicos, especialmente, levando em consideração a distribuição menos custosa dos benefícios oriundos do progresso da ciência, aí também incluindo o barateamento na aquisição por particulares. Assim, a proposta deste item é ressaltar a importância das normas éticas, especialmente as bioéticas, na orientação de regras acerca do patenteamento da biotecnologia. O surgimento de normas éticas[10] deve-se a situações em que se mostra imprudente outorgar aos cientistas a possibilidade de autodeterminação em relação aos limites da liberdade de sua pesquisa, pois não é razoável depender da autocompreensão individual desses pesquisadores que está sempre entregue a consideração particular de cada um. Já o surgimento da bioética deu-se com o médico oncologista norte-americano Van Rensselder Potter, que publicou em 1970 o artigo intitulado “Bioethics, the science of survival[11]”, oportunidade em que primeiro se ouve falar em bioética[12] no mundo. O mesmo autor, em 1971, publicou o livro denominado “Bioethics: bridge to the future[13]”, onde ficou assentado que o progresso técnico-científico não pode prescindir de valores éticos, sob pena de colocar em risco a existência da humanidade. O termo bioética também recebeu importante impulso através do “Joseph and Rose Kennedy institute for the study of huma reproduction and bioethics, Washignton DC[14]”, fundado por André Hellegers em 1971, introduzindo a nova ciência como disciplina acadêmica e facilitando a sua divulgação. Mas o principal marco ainda estaria por vir, quando, em 1977, o Congresso Americano criou uma comissão especial, denominada “National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral research”[15], com a intenção de estabelecer algumas normas éticas. Assim sendo, a comissão elaborou, em 1978, o relatório Belmont, que veio a consolidar a bioética no mundo, oportunidade em que foram lançados três princípios éticos: o da autonomia, o da beneficência e o “princípio da justiça”. O princípio da autonomia preceitua que os indivíduos devem ser tratados como seres humanos autônomos e com autodeterminação, tomando ciência de todo procedimento a que for submetido, devendo o médico respeitar seus valores e crenças. Ademais, as pessoas que, por algum motivo, não podem expressar sua vontade, devem ser protegidas. Já o princípio da beneficência proclama que se devem evitar danos às pessoas, tendo que perseguir o maior benefício possível e afastar-se, ao máximo, dos possíveis prejuízos. O ponto central da investigação neste item gira em torno do princípio da justiça, que aduz que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual “na distribuição de riscos e benefícios da ciência”. Sílvia da Cunha Fernandes, ao tecer comentários sobre o princípio bioético da justiça, argumenta que todos, independentemente da situação financeira, devem ter acesso aos benefícios do progresso da ciência, visto que devem ser tratados de forma igual, sendo dever do Estado colocar à disposição da população uma medicina moderna e avançada[16]. Olga Krell também defende que o princípio bioético da justiça preste ensejo à participação popular no progresso científico, especificamente nas técnicas de reprodução humana assistida, aduzindo que “a população, de uma maneira geral e independentemente de sua situação social e econômica, deve ser privilegiada com os avanços de reprodução assistida, tendo em vista o princípio de justiça[17]”. Então, constata-se que é cada vez maior o número de pessoas que podem ser beneficiadas com as novas descobertas, razão pela qual, diante do princípio bioético da justiça, o patenteamento de muitos elementos relacionados à biotecnologia deve ser visto com cuidado, a fim de baratear os benefícios. Dessa forma, apregoa-se que tal princípio abre oportunidade para discussões sobre a efetividade do direito de acesso à moderna ciência, especialmente no Brasil, onde a maioria das pessoas tem enorme dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Dessa forma, o principialismo bioético aponta caminhos para que o patenteamento não seja a regra dominante, pois poderá haver prejuízo na distribuição dos benefícios. Maria Auxiliadora Minahim apregoa que a bioética questiona o papel da tecnociência na busca do bem-estar da sociedade, somente validando decisões que ajudam o ser humano, servindo como uma instância mediadora de conflitos morais. Além disso, a bioética vai abrir debates sobre a conveniência de estabelecer regramentos na caminhada da ciência, sem prejuízo à essência do ser humano[18]. É preciso também levar em consideração que as normas bioéticas possuem uma característica diferente na tecnicidade, pois são elaboradas por profissionais da respectiva área médica e que entendem do assunto, sabendo melhor avaliar os riscos e benefícios que cada norma pode trazer. Por isso, é que se defende que a opinião de especialistas na matéria é também importante na discussão acerca do patenteamento da biotecnologia. Ivelise Fonseca da Cruz presta relevo à temática sobre a Bioética, ao afirmar que “(…) é imprescindível sua presença nos avanços das ciências biológicas a fim de humanizar tais atividades[19]”. Assim, a bioética serviria como uma mola impulsionadora para melhor distribuir os benefícios oriundos das novas descobertas, o que traduz a “humanização” das atividades científicas. Deveras, é válido ressaltar que questões ligadas à bioética encontram-se na mesma abrangência de algumas normas constitucionais, sendo, por consequência, inseridas no âmbito da hermenêutica constitucional. Com efeito, pode-se haver uma ponderação da liberdade de patenteamento com as normas constitucionais de direitos fundamentais, a fim de que possam surgir regras limitadoras de eventuais concessões. A importância da hermenêutica constitucional se faz evidente para encontrar o caminho mais salutar no confronto entre a necessidade do desenvolvimento científico e o direito de acesso a insumos de baixo custo, como forma de fomentar o direito à saúde. Nesse prisma, nota-se que a interpretação constitucional tem por objeto as próprias normas constitucionais, que possuem regras específicas de aplicação. Dirley da Cunha Júnior lembra que “(…) enquanto as normas legais possuem um conteúdo material fechado e preciso, as normas constitucionais apresentam um conteúdo material aberto e fragmentado[20]”, daí a grande importância de confrontar algumas normas constitucionais, para investigar os limites da liberdade do patenteamento tendo em vista o progresso científico e os direitos fundamentais. Nessa oportunidade, saliente-se que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o art. 5º da Lei de Biossegurança[21] (Lei nº 11.105/2005), permitiu a liberdade de análise científica nos termos do dispositivo impugnado, afastando qualquer interpretação que possa implicar em restrição as pesquisas[22], o que faz notar a importância do desenvolvimento científico perante a corte. Ressalte-se, porém, que a necessidade do progresso das pesquisas tem por objetivo justamente salvaguardar os direitos fundamentais da pessoa humana que é o fim da República Federativa do Brasil. Destarte, não só as normas e os princípios éticos devem caminhar junto com o progresso das ciências, mas também as normas jurídicas, e em especial, as normas constitucionais. Assim, à medida que a ciência avança, é dever do Estado acompanhar as mutações, sob pena de ficar muito atrás na proteção jurídica da sociedade. Portanto, além do Estado ser proibido de imprimir empecilhos nos processos de investigação científica, salvo para proteger outros direitos consagrados constitucionalmente, é seu dever promover o desenvolvimento da pesquisa, visando ao bem público e ao progresso das ciências (§1º do art. 218 da CF). Então, o que se evidencia é que a bioética cumpre importante papel na construção de qualquer norma jurídica, constituindo importante produto de trabalho elaborado pelos profissionais da área científica que poderá ser aproveitado pelo direito na elaboração de normas acerca do patenteamento da biotecnologia. 3. Produtos a baixo custo: uma face do direito fundamental à saúde. Dentro de um contexto mundial em que muitas Constituições não reconheceram os direitos sociais, a exemplo da americana, válido ressaltar que a Constituição Federal do Brasil fez consignar os direitos sociais em seu texto, outorgando-lhes o caráter de fundamentalidade e dotando-os de aplicabilidade imediata. Desta sorte, não é preciso um esforço maior para deduzir que o direito fundamental à saúde pode encontrar obstáculo no alto custo de alguns produtos, visto que a maioria da população não possui recursos suficientes para custear determinados medicamentos. Esse cenário revela que o direito à saúde tem influência direta na questão do patenteamento da biotecnologia. Ao elaborar ensinamentos sobre a geração dos direitos fundamentais, Ingo Sarlet aponta a evolução no âmbito de abrangência de certos direitos já consagrados, através de “(…) uma transmutação hermenêutica e da criação jurisprudencial, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já tradicionais[23]”. Em outras palavras, a evolução dos direitos fundamentais não se dá somente com a positivação de novos direitos, mas também, com o alargamento do conteúdo dos “velhos” direitos. Por isso esta pesquisa subentende que o direito de acesso à medicamentos baratos (através da relativização do patenteamento da biotecnologia) pode perfeitamente ser aplicado nesse panorama, constituindo-se numa das facetas da proteção do direito à saúde. Importante contribuição foi dada por Jorge Miranda que destacou a possibilidade do surgimento de outros direitos a partir dos já proclamados, “(…) através de novas faculdades para além daquelas que se encontram definidas ou especificadas em cada momento[24]”. Para esta pesquisa, é o caso do direito à saúde e sua nova vertente. Lançada essa observação, cumpre dar relevo ao disposto no § 1º do art. 5º da Constituição da República, que realça a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Nessa conjectura, anote-se que o dispositivo também alberga o direito à saúde, já que esse também está elencado no rol dos direitos fundamentais (Título II da Constituição Federal), imprimindo importante status constitucional, não carecendo de qualquer espécie de intermediação legislativa ou administrativa para que o cidadão reclame imediatamente sua aplicabilidade. Ainda seguindo a linha do direito a prestações de serviços públicos de saúde, cuja efetividade deve ser perseguida pelo Estado, calha ressaltar que a Constituição, em seu art. 196, preconiza que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", e ainda impõe ao Estado o dever de promover políticas públicas de garantia de acesso à saúde. Diante disso, e tendo em vista as crescentes necessidades da população, o Estado deve fornecer aparato econômico e político para universalizar o acesso à saúde. Além disso, como sempre surgem novidades na área da ciência, o legislador constituinte também obrigou o Estado a sempre buscar meios para encontrar soluções para os problemas surgidos, tendo em vista o progresso científico do país (art. 218 da CF). Diante desse contexto, apregoa-se que o novo constitucionalismo trouxe à lume a aplicação direta de princípios constitucionais abertos, além da força normativa da Constituição, ao lado de uma nova hermenêutica que chega desprendida de aplicação subsuntiva das regras, rejeitando o formalismo que tanto imperou no Brasil. Assim essa interpretação abrangente das normas constitucionais, consoante destacado por Daniel Sarmento, “(…) deu origem ao fenômeno de constitucionalização da ordem jurídica, que ampliou a influência das constituições sobre todo o ordenamento, levando à adoção de novas leituras de normas e institutos nos mais variados ramos do Direito[25]”. À vista disso, pode-se extrair desse panorama que o direito à saúde no Brasil caminha com inúmeros outros postulados constitucionais, visando a sua completa e máxima efetividade, que na visão de Mônica Serrano traduz a ampliação das políticas públicas a serem implementadas pelo Estado[26]. Dessa forma, retumba plausível que o direito à saúde alberga a relativização das patentes de produtos derivados da biotecnologia, pois, através desse meio, os insumos podem ficar mais baratos, tanto para o cidadão, como para o próprio poder público, que poderá adquirir produtos com menor valor a fim de serem distribuídos entre as pessoas carentes. Assim, como já se pode entender, a proposta deste artigo também direciona o direito à saúde como um dos fundamentos para impedir o total patenteamento da biotecnologia. Nesse diapasão, vale dizer que, atrelado a tais premissas encontra-se um dos fundamentos basilares da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana, que está posicionada logo no primeiro artigo (art. 1º, III) da Constituição Federal, e que, por isso, não poderia somente ter um valor moral, mas sim um consistente valor jurídico apto a impregnar todos os direitos fundamentais, entre eles, o direito à saúde, razão pela qual devem ser abordados conjuntamente. Por outro lado, é importante destacar que os direitos e garantias fundamentais, que antes vinham posicionados estruturalmente após a organização do Estado na Constituição de 1969, desta feita se inserem em um novo contexto valorativo, pois o constituinte originário de 1988 fez questão de elencá-los logo no início da Constituição. Especialmente o direito à saúde, que mal tinha espaço nas Constituições anteriores, agora está elencado na Carta Magna de 1988 dentro do Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais, fazendo parte de um contexto normativo privilegiado ante a regência de uma nova hermenêutica constitucional, que ampara e garante o exercício dos direitos da pessoa humana através de uma série de princípios e métodos de interpretação. Ingo Sarlet sintetiza bem esse panorama ao preconizar que: “A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático”[27]. Dessa forma, o legislador e o administrador devem promover atos que concedam a efetividade[28] do direito à saúde, não permitindo o absoluto patenteamento de insumos biotecnológicos, para que o produto chegue com mais facilidade e em maior quantidade a seus destinatários. É importante ressaltar, nesta oportunidade, que a própria legislação de patentes (Lei nº 9.279/96) estabelece casos em que o Poder Executivo Federal aplicará a licença compulsória em casos de emergência nacional ou interesse público. Com efeito, ao regulamentar o art. 71 da lei supracitada, o Decreto nº 3.201, de 6 de outubro de 1999, apregoa que a licença compulsória, nos casos de interesse público, será praticada pelo ministro de Estado responsável pela matéria, e dar-se-á para uso público não comercial, considerando-se de interesse público os fatos relacionados à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País. Ademais, o ato de concessão da licença compulsória estabelecerá o prazo de vigência da licença, a possibilidade de prorrogação e a remuneração do titular. Percebe-se ainda que o decreto é genérico ao estabelecer os casos de interesse público no § 2º do art. 2º, ao aduzir que “(…) consideram-se de interesse público os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País”, o que reforça o cuidado que se deve ter na apreciação da matéria. Por tudo isso, parece verossímil admitir que a liberação de patentes deva ser relativizada, no sentido de não conceder a totalidade dos lucros financeiros a seus produtores, sendo certo que outros direitos oriundos da invenção ou descoberta devem ser preservados, desde que não atrapalhem em demasia a distribuição dos benefícios. Tudo isso deve ser feito levando-se em consideração os postulados bioéticos e constitucionais, especialmente os de direitos e garantias fundamentais. CONCLUSÃO A busca incessante pela lucratividade com as novas descobertas na área da biomedicina pode desviar os verdadeiros e justos fins das normas humanitárias. Hospitais, laboratórios e planos de saúde não podem buscar fins científicos atropelando valores básicos defendidos pela sociedade, por isso, o patenteamento total dos produtos trazem discussões políticas, econômicas e jurídicas que devem estar presente na prática diária. Ainda vale dizer que a ciência deve desenvolver-se em busca do bem e trazendo esperanças positivas para as pessoas e jamais baseando-se exclusivamente em interesses econômicos. À vista disso, o que se percebe é que a própria legislação brasileira encontrou um caminho respeitável acerca do patenteamento nesse ramo científico, até por que, é salutar homenagearmos a medida adotada por nosso poder legislativo, que chegou a conclusão após muita análise das normas internacionais sobre o tema e debates com especialistas na matéria. Além disso, tal decisão, proclamada através da Lei 9.279/96, é dotada de ampla legitimidade, já que é oriunda de um poder que, queiram ou não, representa o povo brasileiro. Porém, isso não significa dizer que o debate está encerrado. Noutro prisma, percebe-se que a bioética ainda carece de muitas premissas para adquirir um status efetivo de barreira de contenção de abusos, por isso, invoca-se o direito como forma de proibir e evitar que cientistas construam monopólios com a biotecnologia em detrimento do interesse da população. Vale dizer aqui, que não se ignora a importância da bioética no contexto, pois ela, sem dúvida, serve como parâmetro para que o legislador crie regras jurídicas para tanto. A nova hermenêutica constitucional e o direito fundamental à saúde são de suma importância no debate, pois como foi visto neste trabalho, constituem justificativas para que o sistema do patenteamento seja rediscutido. Dessa forma, a solução estaria em analisar cada caso, concedendo a patente apenas para resguardar o interesse público ou o interesse nacional. Observa-se que a patente deve ser concedida para privilegiar os pesquisadores brasileiros em detrimento da pirataria estrangeira. No âmbito interno, a patente deve ser analisada com cuidado, de forma a resguardar a melhor distribuição dos benefícios à população. Por fim, advirta-se que o direito de patentes não pode ter caráter absoluto e somente com uma boa análise de cada hipótese, conjugando com a moderna hermenêutica constitucional é que se podem encontrar caminhos para uma razoável solução. Note-se também que o Decreto nº 3.201/99 andou de forma genérica ao preconizar as hipóteses de licenciamento compulsório, podendo surgir novos debates e discussões, especialmente as levantadas por este trabalho.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-100/direito-a-saude-um-discurso-acerca-do-patenteamento-da-biotecnologia/
Diretivas antecipadas: instrumento que assegura a vontade de morrer dignamente
Nesta pesquisa realizou-se um breve estudo acerca das diretivas antecipadas, instrumento que pode assegurar a vontade do paciente terminal em morrer com dignidade. Para tanto, foi tratado o conceito e origem das diretivas antecipadas; as situações nas quais este documento pode ser utilizado; e análise do projeto de lei n.524/2009, o qual legaliza as diretivas antecipadas.
Biodireito
1 ORIGEM E CONCEITO DE DIRETIVAS ANTECIPADAS Frente aos grandes avanços na Medicina, principalmente com o desenvolvimento de tratamentos que visam prolongar o evento morte, discute-se acerca do direito do paciente em manifestar a sua vontade em relação a estes em situações de incapacidade. Corrobora-se, assim, a possibilidade de se constituir um instrumento que conste o interesse ou não do indivíduo em se submeter a terapêuticas médicas, o qual tenha validade caso o paciente esteja incapaz de manifestar a sua vontade. Neste sentido, surgiu as Diretivas Antecipadas, que se vinculam a possibilidade do paciente manifestar previamente sua vontade acerca de quais tratamentos médicos quer ou não se submeter caso futuramente estiver em estado de incapacidade. As Diretivas Antecipadas, denominadas de Advences Directives, estão previstas na PSDA – The Patient Self-Determination Act ou Ato de Auto-Determinação do Paciente, lei aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos que entrou em vigor a partir de 1º de dezembro de 1991. Esta lei reconhece a recusa do tratamento médico, reafirmando a autonomia do paciente, em que da sua entrada nos centros de saúde, serão registradas as objeções e opções de tratamento em caso de incapacidade superveniente do doente. Estas manifestações de vontade, diretivas antecipadas, são realizadas de três formas: o living will (testamento em vida), documento o qual o paciente dispõe em vida os tratamentos ou a recusa destes quando estiver em estado de inconsciência; o durable power of attorney for health care (poder duradouro do representante para cuidados com a saúde), documento no qual, por meio de um mandato, se estabelece um representante para decidir e tomar providências em relação ao paciente; e o advanced core medical directive (diretiva do centro médico avançado), que consiste em um documento mais completo, direcionado ao paciente terminal, que reúne as disposições do testamento em vida e do mandato duradouro, ou seja, é a união dos outros dois documentos. O termo living will, cuja tradução literal para o português corresponde a “testamento vital”,  surgiu nos EUA, em 1967. O testamento vital prevê os procedimentos médicos aos quais o paciente não gostaria de se submeter, se algum dia estiver incapaz de manifestar sua vontade, seja por estar inconsciente ou por estar em um estado terminal, do qual poderá decorrer a incapacidade. Entrementes, critica-se o termo “testamento vital”, devido ao sentido de testamento no Brasil. Visto que este instrumento trata-se de um ato unilateral de vontade, com eficácia pós morte, não seria a nomenclatura correta, considerando que o testamento vital possui eficácia em vida. Adota-se, portanto, a nomenclatura “declaração prévia de vontade”, sugerida por Luciana Dadalto Penalva (2009). 2 RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E DIRETIVAS ANTECIPADAS NAS SITUAÇÕES DE TERMINALIDADE DA VIDA A relação médico-paciente consiste precipuamente em um contrato de prestação de serviços, no qual são estabelecidos direitos e obrigações entre as partes, em que o profissional médico, via de regra, utilizará de todos os recursos e meios necessários para restabelecer a saúde do paciente que requer os seus cuidados. Ocorre que esta relação vai além de um vínculo contratual, pois os deveres do médico para com o paciente devem ser sempre pautados na ética e no respeito à pessoa, já que o objeto do contrato é o próprio paciente. Neste contexto, aplica-se a Bioética na relação médico-paciente, a qual surge intrinsecamente ligada ao conhecimento biológico, “(…) buscando o conhecimento a partir do sistema de valores” (SÁ; NAVES, 2009, p.2). Hoje, de paciente passou-se à cliente, aquele que sabe e exige os seus direitos, que participa na tomada de decisões junto ao profissional médico. Como nem sempre avanço e evolução estão ligados somente a benefícios, com este rápido desenvolvimento da tecnologia na área médica, surgiu uma desproporção entre os conhecimentos técnicos adquiridos e os aspectos humanísticos e éticos na formação do profissional médico. Elio Sgreccia (1996, p.111) trata desta desproporção, ao explicar o problema da falta da humanização da medicina. Segundo o autor, há quem entenda essa expressão como a importância da relação intersubjetiva entre o paciente e o pessoal da saúde diante da invasão da tecnologia ou da massificação dos hospitais. Todavia, deve-se entender que o dever de salvar vidas não é salvá-la a qualquer custo, mas garantir a dignidade do doente, tratando-o como pessoa.  Neste sentido, as diretivas antecipadas entram na relação médico-paciente como meio para que a autonomia privada do paciente, antes de um possível estado de incapacidade, possa ser exercida, assegurando a sua dignidade e autodeterminação. Ainda, direcionará o profissional médico e sua equipe para que seja empregado o tratamento e cuidados previamente escolhidos pelo próprio paciente. Deve-se ressaltar que as diretivas antecipadas servirão de meio hábil a resguardar o médico de eventual responsabilização ao fazer ou não fazer uso dos tratamentos e cuidados dispensados pela escolha prévia do paciente ainda capaz. Nesta seara, o Novo Código de Ética Médica, a Resolução n. 1.931 de 24 de setembro de 2009, em vigor desde 13 de Abril de 2010, trouxe significativas inovações, principalmente em alguns artigos, onde se subentende a possibilidade da formalização e validade das diretivas antecipadas entre médico e paciente, conforme a seguir: “Capítulo I XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. (grifo nosso) […] É vedado ao médico Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. (grifo nosso) […] Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (grifo meu) […]” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). Vislumbra-se, portanto, ante o exposto, da aplicabilidade das diretivas antecipadas na relação médico-paciente, tornando este último partícipe da tomada de decisões acerca da sua própria saúde, pois ninguém melhor que o próprio paciente-cliente, sujeito e detentor de autonomia, para decidir acerca de qual tratamento ou não deseja submeter-se em um possível estado de incapacidade. Para tanto, devido o paciente não possuir conhecimento técnico-científico, faz-se mister que o médico lhe fornece e esclareça todas informações para que possa tomar a decisão mais adequada, por meio do consentimento informado livre e esclarecido[1], o qual consiste na exposição pelo médico de todas as terapêuticas possíveis a que o paciente possa se submeter, informando-lhe os riscos e benefícios em linguagem acessível, para que o paciente livremente possa escolher se quer ou não se submeter aquele determinado tratamento. O consentimento informado deve ser, via de regra, escrito, para a segurança de ambas as partes. Neste sentido, não se deve entender que o dever de salvar vidas não é salvá-la a qualquer custo, mas garantir a dignidade do doente, tratando-o como pessoa, e não como instrumento de uma terapêutica inútil e que cause mais dores e sofrimentos ao paciente terminal, configurando a distanásia. A Constituição da República de 1988 nos revela que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do nosso Estado. Desta forma, na medida em que a estes doentes não tem mais chance de cura, e para evitar tratamentos que lhe causem mais dores e sofrimentos que somente prolongam a morte, deve ser-lhes dado o direito de morrer com dignidade[2]. É importante ressaltar que em um determinado momento o paciente em estado terminal ficará inconsciente ou incapaz de manifestar sua vontade. Nesse ponto, destaca-se a importância das Diretivas Antecipadas como instrumento pelo qual o indivíduo poderá declarar previamente sua vontade quanto à submissão ou não a determinados tratamentos médicos que vão somente prolongar a sua morte causando-lhe mais dores e sofrimentos inúteis, facultando-lhe, portanto, em optar por um morrer digno. 3 O PROJETO DE LEI N. 524/2009 O projeto de lei do Senado brasileiro n. 524/2009, de autoria do senador Gerson Camata, visa dispor sobre os direitos em fase terminal de doença. Este documento tem objetivo de regulamentar a prática da ortotanásia, via devido processo legislativo, ampliando a participação do Parlamento brasileiro no assunto. O referido projeto basicamente possui os mesmos dispositivos da Resolução n. 1.805/2006 do CFM, porém de forma mais detalhada. No que tange às diretivas antecipadas o projeto de lei em seu artigo 6º dispõe que: “Art. 6º Se houver manifestação favorável da pessoa em fase terminal de doença ou, na impossibilidade de que ela se manifeste em razão das condições a que se refere o § 1º do art. 5º, da sua família ou do seu representante legal, é permitida, respeitado o disposto no § 2º, a limitação ou a suspensão, pelo médico assistente, de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida. § 1º Na hipótese de impossibilidade superveniente de manifestação de vontade do paciente e caso este tenha, anteriormente, enquanto lúcido, se pronunciado contrariamente à limitação e suspensão de procedimentos de que trata o caput, deverá ser respeitada tal manifestação. § 2º. A limitação ou a suspensão a que se refere o caput dever ser fundamentada e registrada no prontuário do paciente e será submetida a análise médica revisora, definida em regulamento”. (SENADO, 2009). Assim, pelo disposto no artigo 6º, §1º, caso o paciente tenha se manifestado contrário à limitação ou suspensão do tratamento antes de se tornar incapaz, esta vontade deverá ser respeitada. O próprio artigo 6º trata da autonomia privada do paciente, retratando a diretiva antecipada. Por conseguinte, entende-se que, caso o paciente tenha se pronunciado previamente em relação à recusa aos procedimentos extraordinários ou desproporcionais, tal pronunciamento deve ser considerado como válido. Desse modo, caso o paciente, em estado terminal e inconsciente tenha manifestado anteriormente sua rejeição a um determinado procedimento, sua vontade deverá ser respeitada.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-98/diretivas-antecipadas-instrumento-que-assegura-a-vontade-de-morrer-dignamente/
A novela Fina Estampa e a ovodoação
O presente artigo traça breves linhas sobre a realidade jurídica por trás do tema reprodução medicamente assistida com recepção de gametas discutido na novela Fina Estampa, exibida no ano de 2012, na emissora TV Globo. Discute a quem pertence a maternidade de criança gerada por via desta técnica reprodutiva e as relações jurídicas existentes, ou não, entre ela e a doadora e a receptora do oócito que lhe deu origem.
Biodireito
Introdução: A novela Fina Estampa apresentada pela emissora Rede Globo conta a história de uma mulher que, decidida a gerar uma criança em seu ventre, se valeu da técnica de reprodução medicamente assistida denominada fertilização in vitro com recepção de gameta doado para conseguir a gestação desejada. Na história contada, a doadora do óvulo que resultou o nascimento da filha da personagem foi informada desta ocorrência pela própria médica responsável pelo procedimento. Sentindo-se mãe da criança, a doadora deu entrada em ação judicial solicitando a sua guarda. Uma novela, por óbvio, é uma obra de ficção, não necessariamente tendo respaldo na realidade. Todavia, aproveitamos a oportunidade para tecermos algumas considerações sobre os aspectos jurídicos reais por trás desta obra de ficção. 1. A doação/recepção de gametas de doador(a): A doação/recepção de gametas de doador é atualmente no país regulada pela Resolução nº 1.957/2010, publicada no D.O.U. de 06 de janeiro de 2011, Seção I, p.79, pelo Conselho Federal de Medicina. Este dispositivo legal, válido e obrigatório diante da inexistente de lei ordinária que disponha sobre o assunto, pretende harmonizar o uso das técnicas de reprodução medicamente assistida com os princípios da ética médica através da previsão de normas de cunho ético para a sua utilização. Como princípios gerais a Resolução estabelece que “é proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não a procriação humana” e que “as técnicas de reprodução assistida podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso” (grifo nosso) Determina também que “o consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores” (grifo nosso). Para tanto “os aspectos médicos envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de reprodução assistida serão detalhadamente expostos”. O consentimento informado deverá ser expresso em documento consistente “em formulário especial e (que) estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas submetidas às técnicas de reprodução assistida” (grifo nosso). Assim, todo aquele que pretenda doar material germinativo seu somente o poderá fazer após ser detalhadamente esclarecido sobre as implicações do seu consentimento, e, principalmente, que tal material será sempre utilizado para a obtenção de gestações que resultarão na geração de indivíduos que portarão a sua carga genética. Não há, diante da lei que regula a matéria nos dias atuais, como haver doação de material germinativo (oócitos e sêmem) sem que se compreenda e aceite expressa e voluntariamente a geração de indivíduos portadores da carga genética do doador. A Resolução determina ainda, no que tange à doação de gametas ou embriões, que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa” e que “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores”. É então imposição da norma que se mantenha sigilo quanto às identidades de doadores e receptores quando houver doação/recepção de gametas ou embriões. Na história a personagem doadora doou seus oócitos, o que, segundo a legislação atual, somente poderia ter feito após ter sido esclarecida exaustivamente quando às implicações de sua decisão, inclusive de que eles seriam utilizados para a obtenção de gravidezes em receptoras que necessitem de gametas doados para realizarem o desejo de gestarem filhos. Saberia ela também que nunca poderia ter, diretamente, acesso à identidade da receptora e que esta garantia seria recíproca. Os médicos e funcionários do Centro Médico onde o tratamento fosse levado a efeito estão também obrigados ao sigilo, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal. Não pretendemos tratar de tão complexo assunto nestas breves linhas, limitando-nos unicamente à questão tratada na novela Fina Estampa, na qual a doadora se surpreende com a notícia de que oócito seu doado resultou no nascimento de uma criança gerada no útero de uma receptora. Diante da legislação em vigor, fora da ficção novelística, impossível tal ocorrência, já que somente poderia ter havido doação mediante declaração voluntária de vontade por parte da doadora, após a indispensável e obrigatória informação das implicações de caráter biológico, jurídico, ético e econômico, sem o que jamais poderia existir doação de gametas. Ao ser explicada sobre as consequências da doação de gametas, a personagem doadora estaria cientificada de que ela jamais seria, salvo geneticamente, mãe da criança resultante da utilização de oócito seu que tenha voluntariamente doado. Assim, injustificável o espanto e a revolta demonstrados pela personagem doadora quando, também ficcional, já que vedado pela lei, lhe foi informado pela médica responsável pelo procedimento o nascimento da criança a partir de oócito seu. Infelizmente esta obra de ficção faz crer ao espectador desavisado que esta é uma reação natural e esperada de uma “mãe” que se vê alijada de um “filho” seu. Melhor teria sido se mostrasse a situação como se apresentaria na realidade não ficcional, esclarecendo assim os telespectadores quanto a este maravilhoso avanço da medicina. 2. Da filiação da criança gerada através da doação/recepção de gametas: O Código Civil Brasileiro em vigor estabelece, em seu art. 1.593, que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A “outra origem” a que a lei faz referência consistem no parentesco socioafetivo. Aquele que resulta do afeto que vincula os membros de uma família uns aos outros. Nele está inclusa a filiação pela adoção e resultante das técnicas de reprodução medicamente assistidas com emprego de gameta doado. O art. 1.597, V, cria a presunção de terem sido “concebidos na constância do casamento os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”. O dispositivo legal aponta a técnica de reprodução medicamente assistida “inseminação artificial” e faz referência ao consentimento prévio e indispensável do “marido” para que se utilize gameta doado para a obtenção de filhos que serão, por tal presunção legal, legalmente seus. Apesar de o Código Civil datar de 2002 ao tempo da elaboração do texto do dispositivo em comento, que em muito antecedeu a sua entrada em vigor, as demais técnicas reprodutivas eram no país ainda muito incipientes para merecer a atenção do legislador. Assim, a interpretação a ser dada ao dispositivo legal amplia sua aplicação a todas as técnicas de reprodução medicamente assistidas hoje existentes, dentre elas a fertilização in vitro. Se deve interpretar como obrigatória a prévia autorização para uso de oócito doado também para a mulher que pretenda dele se valer para obter gestação e filhos próprios. O art. 1.604 do mesmo Código impõe que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Pela leitura do dispositivo legal temos que a personagem doadora da novela Fina Estampa jamais poderá vindicar a maternidade da criança filha da personagem receptora, já que é presunção absoluta para o direito pátrio que, tendo havido recepção de oócito após a assinatura do indispensável instrumento de consentimento informado, é esta última incontestavelmente mãe da criança assim gerada. Isso por que as únicas hipóteses que autorizam a contestação da eficácia absoluta do registro civil do nascimento consistem na existência de erro ou falsidade do registro. O erro, ao qual faz referência o dispositivo legal, é vício do consentimento consistente numa falsa interpretação da realidade a ser feita pelo agente. No caso estudado, teria havido erro caso a receptora registrasse a criança como sua, crendo ser ela sua filha genética, quando na realidade não o era. Ou que a doadora não houvesse dado seu consentimento informado para que a doação ocorresse. Ou seja, haveria erro no registro de nascimento capaz de autorizar o pedido de rescisão caso as personagens receptora e doadora acreditassem que a criança registrada como filha da primeira fosse geneticamente sua. Este não é o caso apresentado na novela, pois ambas as personagens sabiam de antemão que ao doar/receber oócitos seriam gerados embriões cuja maternidade, caso resultassem no nascimento de crianças, a lei atribuiria à receptora, excluindo qualquer possibilidade jurídica de reconhecer-se a doadora como mãe de tais indivíduos. Clóvis Beviláqua é claro ao dizer que “o erro, para viciar a vontade, deve ser tal que, sem ele, o ato não se celebraria”. Ora, o ato fecundação in vitro dos oócitos da personagem doadora para transferência de embriões para o útero da personagem receptora somente ocorreu após ambas as duas terem sido minuciosa e exaustivamente esclarecidas sobre tal procedimento. Se a criança foi gerada e parida pela personagem receptora o foi com a expressa e incontestável anuência de ambas, o que afasta definitivamente qualquer alegação de erro quanto ao assento de nascimento. Também não se poderia alegar a ocorrência de falsidade no registro. Haveria, exemplicando, falsidade do registro caso a personagem receptora soubesse não ser a criança filha sua, segundo as leis civis, privando-a, e à personagem doadora, do direito ao conhecimento de sua ascendência. No caso da ficção aqui tratada, a lei civil prevê a filiação da criança em questão como pertencente à personagem receptora, excluindo de forma absoluta a maternidade da personagem doadora. É mãe da criança em questão, com presunção absoluta ou juris tantum, a personagem receptora, já que a filiação aqui tratada é a civil, ou seja, decorrente da utilização de técnica de reprodução medicamente assistida com emprego de gameta doado que resultou no nascimento de prole que não compartilha com a genitora ascendência genética, mas cujo parentesco civil é a ela atribuído pela lei civilista. Assim, para o Direito é mãe da criança a personagem receptora, com exclusão absoluta da maternidade da doadora. Não havendo como se entender ter ocorrido no caso ficcional erro ou falsidade de registro, é vedado à doadora a propositura de ação de rescisão de registro civil de nascimento bem como de ação de investigação de maternidade. Isso, pois a lei civil atribui com presunção absoluta, logo juris tantum, a maternidade dos filhos resultantes do emprego das técnicas de reprodução medicamente assistidas com uso de gametas doados, desde que cumpridas todas as exigências legais, aos receptores, com exclusão da maternidade/paternidade dos doadores. 3. Da ação de guarda da criança resultante da ovodoação/recepção: Determina o art. 1.634, I e II, do Código Civil Brasileiro, que “compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda” (grifo nosso), dentre outros direitos e obrigações. Ora, se a lei civil reconhece com presunção absoluta a maternidade da criança à personagem receptor, com exclusão da da doadora, não há qualquer lastro legal para uma ação onde se solicite, cuja motivação recaia sobre a suposta maternidade da doadora, a guarda da infante. Não tem ela com a criança qualquer vinculação jurídica sua com a criança que autorize que tal pedido venha a ser julgado procedente. Legalmente não há entre ela e a criança qualquer vínculo de ordem jurídica que dê lastro a tal esdrúxulo pedido. O pedido não é juridicamente impossível, já que pedir-se a guarda de criança ou adolescente é pedido perfeitamente possível. Todavia, quanto ao seu mérito, consistente na apreciação da relevância do pedido formulado e a sua subsunção às normas legais, é clara a imposição de julgamento que dê pela total improcedência do pedido de guarda. Não há qualquer respaldo legal que justifique que a personagem doadora formule pedido de guarda da criança, filha reconhecida em lei, da personagem receptora. Assim o é na realidade, e deverá se confirmar também na ficção. Considerações finais: De tudo o quanto se discutiu acima temos que: O direito reconhece como mãe aquela que, tendo se sujeitado à técnica de reprodução medicamente assistida com ovorecepção, gerou prole com quem não compartilha o DNA. Tanto é assim que a lei veda que os receptores de gametas doados mediante prévio consentimento esclarecido pleiteiem em juízo ação negatória de maternidade/paternidade. Quanto aos doadores de gametas somente poderão doar após terem sido esclarecidos minuciosamente sobre as consequências biológicas, jurídicas, éticas e econômicas da doação que pretendam fazer. Dentre elas a vedação legal de futuro pleito que vise o reconhecimento judicial da sua maternidade/paternidade. Estes são os fatos jurígenos tratados no presente artigo e que vêm sendo retratados na novela Fina Estampa exigida na TV Globo. O hábito do brasileiro de “seguir” novelas as torna uma fonte importante de formação de conceitos e preconceitos culturais. Este importante veículo de difusão de informações se apresenta hoje como verdadeira ferramenta para a democratização dos saberes. Todavia, não raro os espectadores confunde a ficção com a realidade, se referindo aos artistas pelos nomes de seus personagens, dedicando-lhes o afeto ou o ódio que a estes dedicam. É notório e sabido que as informações prestadas nas ficções das novelas televisivas são recebidas pelo público assistente com verdadeiras e fonte confiável de referência. Assim é que o público alvo da novela Fina Estampa está sendo levado a crer que aquele que consciente, voluntária e informadamente doa gameta poderá um dia vir a clamar sua maternidade/paternidade frente à prole dos receptores que tenham feito uso dele em seus tratamentos reprodutivos. Fazer tais esdrúxulas afirmações, sobe a alegação de ser a novela Fina Estampa obra de ficção, é um desserviço público, pois gera na mente e corações de inúmeros doadores e receptores a ideia de que os filhos assim gerados lhes pertencem e não pertencem, respectivamente. Quantos pais e mães hoje, após os episódios onde a questão foi tão fantasiosamente apresentada, não passaram a recear por seus filhos, adquirindo o medo recôndito de um dia depararem-se com “as verdadeiras” mães ou “os verdadeiros” pais de seus filhos. Estes tão longamente desejados e pelos quais abriram mão do vínculo genético para realizarem o sonho da maternidade/paternidade. Não há que se falar em censura à novela, mas sim na exigência de uma maior eticidade no tratar com questões tão sensíveis ao povo do qual fazem parte os seus espectadores. A mesma ética que inibe que nas novelas globais se valorize o racismo, o chauvinismo, o nazismo e tantos outros “ismos” repudiados pelo povo brasileiro. Nestas poucas linhas se tentou explicar o real e o legal por trás da ficção televisiva, tornando públicas e acessíveis informações que esclareçam os indivíduos que tendo passado, ou que passaram no futuro, pelas técnicas de reprodução assistida com doação/recepção de gametas sobre a relação reconhecida pelo direito que os ligam ou ligarão às proles que gerarão.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-98/a-novela-fina-estampa-e-a-ovodoacao/
A evolução da matriz energética brasileira: O papel dos biocombustíveis e outras fontes alternativas
O presente estudo visa discorrer acerca da matriz energética brasileira, ancorada no discurso da sustentabilidade, a qual é representada principalmente pelo etanol, produzido com a cana-de-açúcar. Diante disso, apresentamos o panorama histórico, que marcou os rumos da produção de combustíveis renovados, apontando para a necessidade de se trocar as matrizes energéticas por fontes renováveis. Nesta etapa, verificamos a posição favorável em que se encontra o Brasil diante do cenário internacional. No entanto, observamos também as barreiras tarifárias que o produto brasileiro encontra para sua comercialização no mercado externo. Por fim, discorremos acerca dos possíveis efeitos negativos que tal escolha pode representar, concluindo que a destinação de amplas áreas para a monocultura destinada à produção de biocombustíveis pode acarretar em malefícios econômicos e sociais e devem ser pleiteados sob a égide da racionalidade, pensando no global, mas considerando as necessidades regionais.
Biodireito
INTRODUÇÃO Ao longo das últimas décadas vivenciamos um período de grande industrialização, no Brasil e nos demais países, de uma maneira geral. Este crescimento acentuado só foi possível, primeiramente, pelo aumento da capacidade de fornecimento de energia, independentemente de sua origem. No entanto, o sentimento de que vale a pena crescer a qualquer custo parece ter sido alterado, e atualmente já podemos notar preocupações reais quanto à necessidade de um crescimento sustentável, que se faça valer dos recursos naturais sem impactar demasiadamente o meio ambiente. O discurso pela sustentabilidade ganhou projeção no cenário global defendendo que as nações devem priorizar a obtenção de recursos energéticos a um custo baixo e com pouco impacto ambiental, afim de que estejam melhor posicionadas em relação aos países que ainda mantêm suas bases energéticas majoritariamente em energia não renovável, por exemplo. E é exatamente neste cenário atual que as atenções são voltadas ao modelo brasileiro de produção de biocombustíveis, por exemplo, por enquanto um modelo de sucesso de aproveitamento da energia mais limpa e renovável. Diante desse panorama, o presente artigo busca: (i) abordar a necessidade de troca das matrizes energéticas; (ii) destacando os avanços ocorridos na área dos combustíveis alternativos, sendo os biocombustíveis o exemplo de maior sucesso até então; (iii) questionando-se também sobre os possíveis efeitos negativos dos biocombustíveis, à maneira com que o avanço da cultura agrícola para a produção de combustíveis tira da mesa da população a oportunidade de acesso a alimentos mais baratos. À medida que é mais vantajoso ao produtor agrícola destinar sua produção para os biocombustíveis do que vender o grão in natura no mercado interno, o que é tratado como uma benesse no setor energético pode, na verdade, estar causando uma grande revolução nos preços dos alimentos, um setor muito mais sensível para a população em geral. Com isso, esperamos refletir acerca da questão da sustentabilidade no mundo atual, a partir das análises empreendidas acerca do tema, buscando em publicações especializadas e em eventos econômicos da atualidade as bases teóricas para a sustentação de nossas reflexões. 1. PANORAMA HISTÓRICO No início da História do Brasil, a lenha foi o principal recurso energético, impulsionando o ciclo da cana de açúcar e o ciclo do ouro. Com o ciclo do café, houve a alteração para o uso do carvão mineral. No entanto, com a Primeira Guerra Mundial, a importação do carvão se torna difícil, alavancando investimentos na geração de energia elétrica, entre 1901 e 1930 (crescimento de 15,6%). A partir da década de 1920 começamos a verificar que a importação de petróleo e derivados era desprezível, coincidindo com o crescimento do uso de automóveis e caminhões. Paralelo a isto, o governo começa adotar medidas protecionistas para os recursos hídricos brasileiros, criando em 1934, o Código de Águas, que garantiu à União a posse de todo o recurso hídrico nacional. Nos anos 1940 várias empresas estatais foram criadas, sendo duas na década de 40, nove na de 50, dez nos anos 60 (sendo que em 1966 a criação da CESP absorveu várias empresas estatais), duas nos anos 70, sendo uma delas, a ITAIPÚ, binacional (Brasil/Paraguai), com 96% da energia destinado ao Brasil. Com o petróleo não foi diferente. Desde 1934 o governo passou adotar medidas de controle, criando o Código de Minas, situação que perdurou até 1938 com a Lei nº 395 que criou o Conselho Nacional do Petróleo (CNP). Esta lei decretava que todas as atividades petroleiras eram de utilidade pública, as quais deveriam ser regulamentadas pelo CNP. O Estado, por meio do CNP, controlaria as atividades de refino, prospecção e exploração das jazidas de petróleo. Nos anos 50 e 60, devido aos investimentos estatais, o setor energético também se industrializou. As áreas de petróleo, hidroeletricidade e carvão adquiriram dimensões de indústria, somando os esforços do governo na construção de indústrias de base e infra-estrutura. A era desenvolvimentista prosseguiu com Juscelino e seu plano de metas, desenvolvendo a indústria nacional e reduzindo a dependência brasileira da exportação de commodities agrícolas e minerais. O fator responsável pela grande penetração do petróleo no mercado nacional e mundial era o preço. Um grande impacto se deu na economia nacional e mundial quando a OPEP aumentou significativamente o preço em 1973.  O mundo reagiu de diferentes formas e o governo brasileiro, na época, controlado pelos militares, desencadeou ações e programas, tais como: a prospecção e extração de petróleo em águas profundas; a intensificação da construção de hidrelétricas para reduzir a dependência do petróleo na indústria; a associação com a Alemanha de repasse de tecnologia nuclear, resultando na construção de Angra 1 e Angra 2 e compra dos principais itens de Angra 3; e o Proálcool, maior programa mundial de sucesso em renováveis. Em 1975 teve início o projeto nacional de combustíveis renováveis, com a criação do Programa Nacional do Álcool (Proalcool), que levou a todo um progresso na área energética do etanol, de biodiesel de soja, entre outras fontes. (HAGE, 2008). Este panorama demonstra que historicamente a demanda por energia no Brasil tem apresentado taxas que acompanham aquelas do crescimento econômico, ocasionando na necessidade eminente de substituição das matrizes energéticas a fim de se atender às demandas da economia nacional. 1.1 Substituição da Matriz Energética Por estar intimamente ligada à produção econômica, a demanda por energia é um excelente termômetro da atividade econômica do país, como evidencia o gráfico abaixo, com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia:   Conforme se depreende do gráfico, o início da década de 1990 alavancou a demanda de energia. Isto se explica pela busca da retomada do crescimento econômico no país, em uma tentativa de superar a crise da década de 1980, considerada uma década perdida para a economia brasileira, devido aos inúmeros problemas políticos e econômicos que assolaram o país, com os indicadores de desempenho macroeconômicos inferiores aos da década anterior. Os anos 1990, por sua vez, trazem alguns dados positivos: controle inflacionário, relativa estabilidade econômica, abertura e integração da economia brasileira com o mercado externo, podendo ser os dois últimos interpretados como positivos ou negativos, se considerarmos as consequências e o ônus que a economia brasileira passou a incorrer. Os dados do gráfico demonstrando o crescimento da demanda energética no início da década de 1990 são justificados pelos estudos de Theis (1990), segundo o qual a correlação entre crescimento econômico e demanda energética pode ser observada em razão de que “o processo de desenvolvimento econômico ser o processo de utilização de mais energia para aumentar a produtividade e a eficiência do trabalho humano. De fato, um dos melhores indícios da riqueza de uma população é a quantidade de energia que ela consome por pessoa” (THEIS apud RODRIGUES, 2008, p. 12). É notável, também, ao compararmos os dados históricos com os atuais, que há um crescimento da diversificação da matriz energética brasileira. Enquanto na década de 1970, quase 80% da energia eram provenientes da exploração de carvão, lenha e petróleo, hoje quase 50% vem dos derivados da cana-de-açúcar, da energia hidrelétrica, entre outras fontes alternativas. Este é um padrão que deve continuar e até mesmo ser expandido nos próximos anos, com uma participação cada vez maior de fontes energéticas renováveis ou ao menos um pouco menos agressivas. De acordo com Abrepo (2008), haverá um balanço negativo na energia hidroelétrica no ano de 2020, sendo que nesse estágio, 80% do potencial de geração provavelmente já estará sendo utilizada e restrições ambientais não permitirão o uso pleno dos 20% restantes. A EPE também publicou um recente estudo trazendo previsões sobre o crescimento do consumo energético no Brasil, apontando que: “A demanda de energia elétrica no Brasil ao longo da década deverá crescer a uma taxa média de 4,8% ao ano, saindo de um patamar de consumo total de 456,5 mil gigawatts-hora (GWh) no ano de 2010 para 730,1  mil GWh em 2020. As estimativas constam da Nota Técnica ‘Projeção da demanda de energia elétrica para os próximos 10 anos’, produzida pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE. Considerando o período em questão, o acréscimo do consumo total de eletricidade será de 274 mil GWh, volume superior ao atual consumo de eletricidade do México e próximo ao atual consumo de eletricidade da Espanha.  O estudo trabalha com a hipótese de a economia brasileira expandir-se ao ritmo de 5% ao ano nos próximos 10 anos” (EPE, 2011). Ao analisarmos projeções como estas, de um crescimento anual muito próximo de 5%, fica reforçada a necessidade de substituição de fontes energéticas, visto que o país não comporta dobrar, por exemplo, seu fornecimento de energia por meio das usinas hidrelétricas sem causar imensos impactos ambientais, conforme já apontando no estudo da Abrepo (2008). Segundo a análise da Abrepo (2008), o pico do saldo energético, que representa a produção descontada do consumo, no que tange ao Petróleo, ocorre em 2015 e decresce nos anos posteriores. Já em relação à energia hidráulica, o saldo já começa a declinar a partir de 2010 e apresenta problemas a partir de 2015, quando a capacidade de produção não atende a demanda projetada. Inexiste, ao menos, previsão no sentido de um movimento inverso, de retorno à utilização de energia não renovável no país, sendo que os dados e previsões demonstram a tendência brasileira avançando na utilização de energia renovável (BRASIL, Minas e Energia, 2007). Após a coleta de dados e previsões que consideraram diversos aspectos da economia nacional, chegou-se ao estudo que demonstra que o país deve continuar avançando, ao menos até o ano de 2030, na utilização de energia renovável, graças à diversificação das fontes energéticas e maior participação das fontes limpas atualmente em utilização. O gráfico evidencia a diversificação da matriz energética brasileira, ao passo que também sinaliza para acentuada queda do petróleo, praticamente se esgotando no ano de 2030. Por outro lado, intensifica-se a exploração do gás natural e de fontes renováveis, tais como cana-de-açúcar, energia solar, eólica e residuais. Destas, predomina o crescimento da matriz energética, a base de cana-de-açúcar e seus derivados, para os quais se estima a geração superior a 500 TWh no ano de 2030. Esta previsão nos conduz à reflexão de que o destino de áreas plantáveis para o cultivo de cana-de-açúcar pode acarretar em carências de áreas plantadas com culturas alimentícias. O balanço energético brasileiro da Abrepo (2008) ratifica ainda a grande diversificação ocorrida no setor e nos faz revisar as informações históricas referentes aos anos 70, quando os derivados do petróleo e do carvão respondiam por quase 80% do parque energético brasileiro. Com o passar dos anos, esta participação ficou cada vez mais reduzida, de forma que a energia hidráulica, a cana-de-açúcar e o gás natural vêm sendo utilizados com muita frequência, conforme havia sido publicado no estudo de 2007, do Ministério de Minas e Energia: “[…] os estudos apontam para uma maior diversificação da matriz energética brasileira. De fato, pode-se perceber uma tendência clara nessa direção: em 1970, apenas dois energéticos (petróleo e lenha), respondiam por 78% do consumo de energia; em 2005, eram quatro os energéticos que explicavam 80,3% do consumo (além dos dois já citados, mais a energia hidráulica e produtos da cana); para 2030, projeta-se uma situação em que cinco energéticos serão necessários para explicar 84,6% do consumo: entram em cena o gás natural e outras renováveis, permanecem com grande participação o petróleo, a energia hidráulica e os produtos da cana, havendo significativa perda de participação da lenha” (BRASIL, MINAS E ENERGIA, 2007, p. 168). Há uma tendência, que parece ser irreversível: a substituição dos derivados de petróleo, por exemplo. Por muitas décadas fomos bombardeados por informações alarmistas de que nossa até então principal fonte energética poderia estar próxima de se esgotar. No entanto, se a tendência de substituição se mantiver por mais alguns anos, é bem possível que a necessidade de uso dos derivados do petróleo acabe muito antes do esgotamento das reservas, o que parecia impossível há 10 ou 15 anos atrás. Se esta substituição trará apenas aspectos positivos, não podemos assegurar ainda, até mesmo porque as novas fontes energéticas não passaram por estudos sobre o impacto ambiental de longo prazo, principalmente pelo fato de terem crescido em importância muito recentemente. No entanto, outro ponto que é destacado do estudo sobre a matriz energética nacional é o aumento da participação dos combustíveis renováveis em todo o país. A simples diversificação de fontes energéticas não é garantia de benefícios ambientais, uma vez que as novas fontes energéticas adotadas podem ser tão poluentes quanto as fontes já utilizadas. Mas a partir do momento em que a diversificação envolve cada vez mais o uso da energia limpa, além dos ganhos ambientais, podem ser evitados os riscos inerentes à dependência de uma ou restritas fontes energéticas. A preocupação com as mudanças ambientais é muito recente, e passam a ser discutidas formas de regulação deste novo tema. No entanto, a evolução deste tema pelo Direito Internacional ainda é lenta, por depender da disposição dos Estados em se comprometerem com a causa. (OLIVEIRA, 2008). 2. AVANÇOS NA UTILIZAÇÃO DAS MATRIZES ENERGÉTICAS RENOVÁVEIS O estudo empreendido pelo Ministério de Minas e Energia enfatiza a participação das fontes renováveis na matriz energética nacional: “Outro ponto que merece destaque é a manutenção do alto percentual de energia renovável que sempre caracterizou a matriz energética brasileira. Cabe lembrar que em 1970, essa participação era superior a 58%, em razão da predominância da lenha. Com a introdução de energéticos mais eficientes, deslocando principalmente esse energético, tal participação caiu para 44,5% no ano 2005. No horizonte de estudo, 2005-2030, observa-se uma clara quebra de tendência na qual há um aumento da participação de energia renovável que alcança 46,5% em 2030. Muito desse movimento deve-se a introdução da biomassa, do biodiesel e do processo H-bio no conjunto de opções para o desenvolvimento energético nacional, os dois últimos a partir de 2010. Com esta dinâmica de fontes alternativas, a matriz energética brasileira continua em 2030 com forte presença de fontes renováveis, de 46,6%, percentual superior ao de 2005, de 44,5%. Assim, o Brasil continua em situação bem confortável em termos de emissões de partículas pela queima de combustíveis quando comparado com a matriz energética dos países ricos, com apenas 6% de participação de renováveis e com a matriz energética do mundo, com 16% de participação de fontes renováveis” (BRASIL. MINAS E ENERGIA, 2007, p. 269). O cenário brasileiro é tido muitas vezes como modelo de diversificação energética, e um dos exemplos mais citados é o da utilização do etanol proveniente da cana-de-açúcar no abastecimento de veículos. Quase 90% dos veículos comprados no Brasil já saem de fábrica com a tecnologia flex, que possibilita o abastecimento com etanol ou gasolina. Conforme a frota nacional for sendo atualizada, os veículos flex terão cada vez mais mercado, em um movimento natural. Macedo (2007) afirma que nos últimos trinta anos, a produção de etanol da cana-de-açúcar no Brasil avançou para 17 milhões de metros cúbicos, crescimento este motivado pelo investimento tecnológico, geração, importação, adaptação e transferência interna. Carvalho (apud MACEDO, 2007) diz que apenas em 2006, 425 milhões de toneladas de cana foram processadas em 310 usinas no Brasil, produzindo 30 milhões de toneladas de açúcar e 17 milhões de metros cúbicos de etanol. Estes dados possibilitam projeções para 2012-2013, quando se estima que a produção nacional será de 685 milhões de toneladas de cana, cultivadas em 6,4 milhões de hectare. “Em 2012-2013, cerca de 60% da cana seria destinada ao mercado interno; no total, além do açúcar seriam produzidos 35,7 milhões de metros cúbicos de etanol (7 milhões de metros cúbicos para exportação)” (MACEDO, 2007). Outras matrizes energéticas também estão sendo incentivadas no Brasil e tendem ao crescimento nos próximos anos. É o que vem ocorrendo com a energia eólica, cuja primeira concessão, realizada em 2009, prevê a construção de 71 empreendimentos, com uma capacidade somada de 1.805 megawatts (MW). As regiões mais favorecidas para esta matriz são o Nordeste e o Sul do país. No caso da energia solar, o Plano de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2), lançado pela presidente Dilma Rousseff determina a instalação de aquecedores solares nas moradias destinadas à população de baixa renda. As chamadas energias limpas, tais como solar e eólica, juntas devem gerar quase 500 TWh, em 2030. Isso possivelmente deixará o Brasil em vantagem diante de outras nações, visto que a dimensão territorial e o clima predominantemente tropical possibilitam a captação de energia de fontes diversificadas. No ano de 1997, foi assinado na cidade japonesa de Kyoto um protocolo, no qual os países deveriam se comprometer em reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2). O Protocolo entrou em vigor em fevereiro de 2005 e prevê que o efeito estufa seja reduzido em 5% até 2012. Ainda que não aderida por todas as nações, como os Estados Unidos, que afirmam ser o protocolo de Kyoto um risco para a economia, o documento impulsionou a pesquisa e o desenvolvimento dos combustíveis renováveis. No Brasil, onde a mistura do etanol à gasolina é praticada desde 1975, tornando-se uma das soluções mais estudadas para reduzir as emissões. As políticas ambiciosas para mudanças climáticas podem ser combinadas com um desenvolvimento econômico sustentável e apontou que os países emergentes estão desenvolvendo soluções interessantes, adaptadas às suas necessidades específicas, para reduzir emissões, explicou a assessora sênior do Presidente da UNICA para Assuntos Internacionais, Geraldine Kutas (ÚNICA, 2009). Com o aumento das vendas para uso como combustível, as exportações de álcool em 2004 deram um salto no Brasil, atingindo 2,4 bilhões de litros exportados. Espera-se que seja apenas o começo. Com isto, o Brasil conseguiu ficar menos vulnerável às variações de preço do petróleo, por exemplo, uma vez que os motoristas têm a alternativa de utilizarem o etanol nacional. A revista Time, no ano de 2009, em um artigo que questiona se os biocombustíveis são realmente menos agressivos ao meio ambiente, já destacava o cenário brasileiro e a forma com que conseguiu substituir a dependência do combustível fóssil: “The promise of biofuels like ethanol is that they will someday help the world grow its way out of its addiction to oil. Nine billion gallons of corn ethanol were produced in the U.S. in 2008, while countries like Brazil have already widely replaced gasoline with ethanol from sugar cane and countless start-ups are working to bring cellulosic and other second-generation biofuels to market. The reasoning is that if we use greener biofuels in place of gasoline, it will significantly enhance our effort to reduce greenhouse-gas emissions”[1] (TIME, 2009). As constatações acerca do destaque dado ao etanol brasileiro devem-se a outras características da produção nacional: como ampla área de cultivo no Brasil, mão de obra barata e competitividade em relação ao etanol produzido a partir da colheita do milho. Estes fatores proporcionam preços mais competitivos que outras formas de produção, desencadeando ações internacionais para dificultar a entrada do etanol brasileiro no mercado externo. Os Estados Unidos, por exemplo, aplicam uma sobretaxa fixa de 54 centavos de dólar por galão (medida que corresponde a aproximadamente 3,8 litros) para os produtos que entram em seu território, fato este que praticamente inviabiliza a exportação do produto brasileiro. Além disso, com a finalidade de proteger seus produtores, o governo norte-americano também subsidia de outras formas todo o mercado de milho, tornando a concorrência de fato desleal. No final de 2010, o Senado dos EUA prorrogou por pelo menos mais um ano a política protecionista em relação ao etanol: “O Senado dos Estados Unidos aprovou nesta quarta-feira [14/12/2010] a extensão por mais um ano da tarifa sobre as importações de etanol e também dos créditos tributários do setor nos níveis atuais, apesar de críticas no país sobre a validade das medidas. A extensão é parte de um projeto de lei maior que propõe a manutenção de menores taxas de tributos implementadas durante a administração do ex-presidente George W. Bush. O projeto tem de passar pela Câmara. O crédito de US$ 0,45 o galão é direcionado para os distribuidores do etanol nos EUA. A taxa para importação situa-se em US$ 0,54 por galão” (REUTERS, 2010). Infelizmente, ainda é muito comum que os Estados adotem a prática de impor barreiras aos produtos estrangeiros mais competitivos que os seus, por meio de tarifas aduaneiras, de modo que facilitem a disputa do mercado interno pelos produtores locais (TONUS, 2008). Desta forma, as relações internacionais saem prejudicadas, uma vez que cada vez que tenha um de seus produtos barrados, o Estado prejudicado geralmente reage com novas barreiras. Cavalcante (2010) explica estas barreiras protecionistas ao etanol brasileiro, afirmando que os Estados Unidos, maior produtor e maior importador do produto, utilizam-se deste procedimento desde os anos 1980. No caso da União Europeia, em dezembro de 2008 foi estabelecida a incorporação obrigatória de 20% de energias renováveis na matriz energética europeia até 2020, determinando que metade deste percentual deverá ser alcançada pelo setor de transportes, ou seja, um mínimo de 10% de energias renováveis será utilizado por veículos, medida que beneficia diretamente o Brasil. Por outro lado, Cavalcante (2010) expressa a dificuldade que o Brasil deverá superar para se manter no mercado europeu, que será, possivelmente, o primeiro mercado a exigir uma Certificação Socioambiental dos biocombustíveis. “Assim, para atender os requisitos europeus, os ditos combustíveis consumidos na UE, independente de sua origem, também deverão demonstrar uma redução inicial de pelo menos 35% dos gases de efeito estufa – GEEs” (CAVALCANTE, 2010, p. 18). As barreiras protecionistas acarretam em efeitos relevantes no âmbito jurídico e, por isso, necessitam de regulamentação, ou seja, da criação de regras e critérios concernentes às suas especificidades. Neste sentido, verificam-se alguns esforços na tentativa de regulamentar o comércio internacional do etanol. O parágrafo 31.III da Declaração Ministerial de Doha, adotada em 14 de novembro de 2001, prevê a redução e, até mesmo, a eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias sobre bens e serviços ambientais. Esta resolutiva acarretaria uma série de vantagens para o Brasil, assim como para outros países que pleiteiam o livre comércio na área dos biocombustíveis, como a Índia e Cingapura. A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi um grande passo dado na esfera das negociações multilaterais de comércio. O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC é o principal foro comercial multilateral, com um significativo volume de litígios instaurados. A efetividade de suas decisões beira os 75%, de acordo com a própria OMC, um índice superior a muitos tribunais nacionais (VARELLA, 2011). Dependendo da classificação a ser adotada no âmbito da OMC, poderá o país pleitear a redução ou mesmo a exclusão de barreiras tarifárias e não tarifárias que sobre ele incidam, o que acarretaria grandes vantagens econômicas para o Brasil, como também para a comunidade internacional, facilitando-se as relações comerciais entre os países. “No entanto, não depende apenas do Brasil para que a existência de um comércio mais justo e equitativo aconteça. A oposição que o país recebe dentro da OMC quanto ao enquadramento do etanol parte dos países desenvolvidos, detentores de economias fortes, que tentam defender a todo custo seus interesses nacionais, não levando em consideração as necessidades globais” (CAVALCANTE, 2010, p. 22). Enquanto o cenário internacional do biocombustível se configura em termos normativos e legais, o que se verifica atualmente é que grande parte da produção nacional de grãos é destinada ao mercado externo, que proporciona um retorno maior ao produtor. Neste panorama, mesmo sendo nosso país um dos maiores agroprodutores do mundo, vivenciamos nos últimos anos uma escalada no preço dos alimentos no mercado interno, já que a prioridade é vender para o mercado externo, que dá uma margem de lucro mais interessante a quem produz. Este fato pode estar vinculado aos possíveis efeitos negativos dos biocombustíveis. 3. POSSÍVEIS EFEITOS NEGATIVOS DOS BIOCOMBUSTÍVEIS Esforços diversos podem ser observados na tentativa de instaurar o biocombustível como matriz energética primeira.  De acordo com modelo matemático de Solow (apud RODRIGUES, 2008), era necessário criar mecanismos de adaptação na relação entre o meio ambiente e o sistema econômico, possibilitando a substituição de insumos escassos e o desenvolvimento de mecanismos de mitigação de impactos ambientais prevenindo os colapsos econômico-sociais preditos com a possível escassez das fontes de energia não-renováveis, conforme relatamos anteriormente. No caso brasileiro, estudos acenam que é promissor o mercado da produção de etanol, entretanto se questiona se esta opção terá aspectos benéficos superiores aos negativos, justificando-se a longo prazo. Ao observarmos pelo prisma da produção e comercialização agrícola, em 2010, o Brasil se tornou o terceiro maior exportador de produtos agrícolas do mundo, superando o Canadá. Os especialistas reconhecem o potencial significativo brasileiro, principalmente para carnes, milho e álcool, e apontou que no etanol, a exportação deve aumentar muito quando o mercado se consolidar (LANDIM, 2010). Há em uma parcela da população uma cultura de exportação a todo custo, como se quanto mais o país exporta, melhor fica. Ainda que a substituição das importações deva ser perseguida gradualmente, exportar grande parte da produção de etanol e deixar o mercado interno refém dos preços internacionais não parece ser uma alternativa interessante. Deve ser encontrado um ponto de equilíbrio entre expandir a fatia do mercado interno atendida por fontes nacionais ou buscar uma participação maior no cenário internacional (WILLIAMSON, 1988). A verificação de que os alimentos produzidos no Brasil são muito bem aceitos no mercado externo conduz à expectativa de crescimento no interesse pelos biocombustíveis aqui produzidos. Competitivos em relação ao preço e de boa qualidade, estes são exportados em proporções que crescem a cada ano. Não cresce, no entanto, a produção que deveria abastecer o mercado local, o que, mais uma vez, gera instabilidade nos preços cobrados internamente. Se comparado com o mesmo período de 2010, as exportações de manufaturados cresceram 20,4%, saltando de US$ 311,0 milhões para US$ 374,5 milhões em razão dos crescimentos em óleos combustíveis, polímeros plásticos, máquinas para terraplanagem, veículos de carga, motores e geradores, açúcar refinado e autopeças. Com isso, verifica-se atualmente no Brasil que uma parcela enorme da terra é utilizada para cultivar alimentos que serão exportados in natura, ou então transformados em combustíveis renovados, que, mais adiante, também terão como destino final o mercado externo. Apesar da grande demanda por estes produtos ser positiva em relação à mão de obra que é gerada, além da produção de riqueza nacional, há um efeito muito negativo que é a grande variação de preços a que é submetido o consumidor local. Em 2007 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), juntamente com a Pastoral da Juventude Rural (PJR), entre outros órgãos representativos da sociedade, lançaram em 2007 a cartilha “Soberania Alimentar, os Agrocombustíveis e a Soberania Energética”, na qual expõem seu posicionamento desfavorável à produção de alimentos para que depois sejam destinados à fabricação de combustíveis: “À escala mundial, empresas e governos estão a fazer uma intensa campanha para apresentar os biocombustíveis como alternativas ambientalmente amistosas que ajudariam a combater as alterações climáticas, a substituir uma parte do consumo de petróleo destinado a combustíveis para transportes. Mas a lógica de fundo não é abandonar o petróleo nem mudar os padrões de consumo que produzem a mudança climática e sim aproveitar a conjuntura para criar novas fontes de negócios, promovendo e subsidiando a produção industrial de cultivos para essas finalidades. Já existem estudos que mostram que os cultivos industriais de biocombustíveis colocam muitos problemas. Brian Tokar, do Instituto de Ecologia Social de Vermont, Estados Unidos, dá conta de duas análises recentes das universidades de Cornell e de Minnesota que mostram que o ciclo completo da produção de biocombustíveis deixa um saldo ambientalmente destrutivo. Uma vez que o processamento destes cultivos exige uma quantidade significativa de energia, o saldo energético final é muito limitado. Mesmo que os biocombustíveis substituam em alguma percentagem a utilização do petróleo, necessitam de grandes áreas de produção agrícola industrial intensiva, incrementando o uso de agrotóxicos que provocam erosão e contaminam o solo e a água, além de retirar essas áreas à produção de alimentos. Segundo o investigador Lester Brown (citado por Tokar), “agora são os automóveis, não as pessoas, os que demandam a produção anual de cereais. A quantidade de grãos que se exigem para encher o reservatório de uma camioneta SUV com etanol é suficiente para alimentar uma pessoa durante um ano. (grifo meu)” (RIBEIRO apud VIA CAMPESINA, 2007, p. 76). Este documento foca claramente nos aspectos negativos gerados, ainda que indiretamente, pelo crescimento dos biocombustíveis. É levada em conta a questão ambiental, já que os biocombustíveis são, via de regra, associados a um nível menor de poluição. No entanto, no trecho acima, este fato é posto em dúvida, quando afirmam que o saldo de tudo isso (a adoção dos biocombustíveis de forma massificada) é destrutivo para o meio ambiente. O trecho final, grifado, trata de outro problema causado pelos biocombustíveis. Como é necessária uma grande quantidade de produto agrícola para gerar combustível suficiente para abastecer o tanque de um veículo, como exemplificado acima, um dos problemas gerados é a de escassez de área disponível para a produção de alimento. No entanto, esta é uma visão que não é compartilhada pela totalidade dos especialistas, já que parece ser, de fato, muito tendenciosa, focando apenas nos aspectos negativos, sem citar possíveis benefícios trazidos pelo uso dos combustíveis renováveis. Com relação ao preço dos alimentos, observa-se que este tem subido muito recentemente, principalmente a partir de 2008, ano em que o tema “inflação dos alimentos” foi muito discutido e, com bastante frequência, os biocombustíveis foram apontados como maiores culpados pelo aumento dos preços. No entanto, não podemos afirmar que a disparada dos preços das commodities deve-se unicamente à maior presença dos biocombustíveis.  O jornalista William Waack publicou no jornal O Globo, à época, artigo sobre a inflação dos alimentos, que destacamos a seguir: “No meio da crise de crédito internacional – com a queda do preço de várias commodities – quase passa desapercebido um tipo de produto que deu muito lucro a quem apostou numa subida de preços: alimentos. Perdoem-me aqui pelo “quase”. Na verdade, protestos de ruas em lugares tão distantes entre si quanto Índia e Haiti deixaram claro que a inflação dos preços dos alimentos já é um grave problema político para países emergentes. Segundo o jornal “Financial Times”, os preços do arroz, por exemplo, subiram 50% apenas nos últimos 15 dias. E continuam subindo por um motivo central: os países do Sudeste asiático estão competindo com os africanos na compra de um tipo de produto que alimenta, segundo a ONU, cerca de 3 bilhões de pessoas. Mas não só. Alguns dos principais produtores, como Egito, Vietnã, a própria Índia e a China baniram exportações. Os países africanos estão tentando evitar distúrbios sociais assegurando a compra de estoques de arroz entre os produtores que ainda estão vendendo no mercado internacional, afirma o ‘FT’. Uma porta voz do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas qualificou a situação atual de ‘tempestade perfeita’” (WAACK, 2008). Observa-se, portanto, que a alta dos preços não pode ser vista como consequência apenas da produção agrícola voltada à produção de combustíveis, mas também ao aumento da população e, mais ainda, ao aumento do poder aquisitivo dos povos do Sudeste Asiático, por exemplo, local que reúne alguns dos países mais populosos do mundo. Se contabilizarmos que Índia e China juntas possuem quase 3 bilhões de habitantes, e, conforme suas populações alcançam condições de se alimentar mais e de forma melhor, o impacto em todo o mercado não é pequeno. Muito pelo contrário, é necessário que a produção pudesse crescer nos mesmos patamares com que crescem as economias emergentes. No entanto, enquanto países como Brasil, China, índia e Rússia crescem entre 5 e 10% anualmente, a produção de alimentos não chega a crescer 4% ano a ano, como demonstra um estudo da FAO (Food and Agriculture Organization)[2], órgão da ONU que trata, entre outros assuntos, da questão alimentar. O mapa produzido pela FAO expressa que a pesquisa,  o investimento e as políticas adequadas são a chave para satisfazer as necessidades de alimentos no futuro de o mundo. Outro estudo, desta vez do Departamento Americano de Agricultura (USDA), cita índices ainda menores de crescimento da produção de alimentos. Com previsão de que a população mundial possa alcançar 9 bilhões de pessoas até 2050, o USDA calcula que a taxa anual de crescimento da produção de alimentos deveria ser de, no mínimo 1,75% anualmente. No entanto, entre os anos 2000 e 2007, este crescimento não teria ultrapassado os 1,4% ao ano: “Doubling agricultural output to m eet global demand by 2050 will require and annual average growth of at least 1.75 percent in total factor productivity, according to Neil Conklin, president of the Farm Foundation and author of the report. USDA economists estimate global agricultural TFP growth averaged 1.4 percent per year between 2000 and 2007”[3]. (DELTAFARMPRESS, 2011) As variações climáticas também podem afetar drasticamente o mercado de grãos, uma vez que impactam diretamente na oferta do produto. Com a constante industrialização, os impactos da poluição e do uso de recursos naturais já podem ser sentidos em nosso clima, de maneira com que fica difícil prever com exatidão o clima para os próximos meses, por exemplo. Ainda que a previsão do tempo não trabalhe com índices totais de acerto, os produtores de alimentos dependem muito de uma constância climática para que possam se programar; consigam prever a data correta de plantio e colheita a fim de obterem resultados positivos com seu trabalho. E é exatamente esta previsão que tem falhado cada vez mais, uma vez que os padrões climáticos até então conhecidos e seguidos não tem se repetido com tanta frequência. E a partir do momento em que as alterações climáticas levam a uma “quebra” de safra, por exemplo, a oferta de determinado alimento é rapidamente reduzida, não consegue atender a demanda, o que gera um aumento de preços quase que instantâneo. De acordo com estimativas recentes da FAO, a produção de cereais nos principais países exportadores recuou 4% em 2005 e mais 7% em 2006 devido a condições climáticas adversas. Como consequência, espera-se que a dependência pela importação destes alimentos cresça em várias regiões do mundo em desenvolvimento. As enchentes ocorridas na Austrália, por exemplo, reduziram a colheita de trigo em mais de 60% no ano de 2006, um fato que, sozinho, representou uma queda de 4% na exportação global do grão. As cheias também afetaram em quase 25% a produção do Canadá no mesmo ano, além de reduzir, ainda que em menores quantidades, o total produzido em países como Turquia e Argentina. Como muitos grãos são produzidos de forma que dão apenas uma colheita por ano, não há tempo suficiente para que os impactos de um desastre ambiental como o citado acima sejam amenizados pelos países produtores. Diante do exposto, fica claro que são várias as razões pelos recentes aumentos de preço dos alimentos. Mas ainda que o crescimento populacional, as alterações climáticas e o aumento do consumo pelo incremento da renda da população sejam fatores importantes, uma das causas mais apontadas nos últimos anos tem sido mesmo a questão dos biocombustíveis, que estariam tirando alimento da mesa da população para transformá-los em energia. No entanto, este direcionamento tem sido combatido por muitos estudos recentes, que apontam não haver relação entre o crescimento dos biocombustíveis com a escassez de alimentos ou aumento de preços. O aumento de preços dos alimentos começou, mais profundamente, no início do século XXI, após um longo período de queda. No entanto, períodos de altos e baixos nos preços são muito comuns, mas no início deste século presenciamos um aumento de maior monta que o usual. Um estudo publicado em meados de 2008, por Alessandro Flaminni, membro da FAO, destaca, entretanto, que enquanto os preços das commodities agrícolas cresceram mais de 60% nos últimos dois anos (à época da pesquisa – de 2006 a 2008), um índice que mede as commodities de forma geral, não apenas as agrícolas, apresentou as mesmas taxas de crescimento. Ainda, o índice que mede os preços do petróleo apresentou crescimento superior. Desde 1999, quando os 3 índices estavam praticamente no mesmo patamar (e no mesmo nível em que se encontravam 10 anos antes), o preço das commoditties agrícolas subiu 98%, enquanto que as commoditties em geral tiveram um aumento de preços da ordem de 286%. O aumento de preço do petróleo superou os 500% no mesmo período analisado, como demonstra o trecho destacado: “Periods of high commodity prices as well as low prices are natural in the agricultural markets, although often high prices tend to be short-lived compared with low prices which persist for longer periods. Furthermore the current price hike involves all the major food and feed commodities and not just a few, as normally happens. Although the food commodity index has risen more than 60 percent in the last two years, the index for all commodities has also risen 60 percent and the index for crude oil has risen even more. Since mid-1999, when all three indices were at about the same level and were about where they had been 10 years earlier, food commodity prices have risen 98 percent (as of March 2008); the index for all commodities has risen 286 percent; and the index for crude oil has risen 547 percent (USDA 2008) as shown in the figure below. According to FAO standards, a price spike is identified as an annual percentage change that is above two standard deviations of the five years preceding the year from which the percentage change is calculated. Using this definition, it is possible to identify the years in which high price events for basic food commodities occurred.Four distinct periods can be identified when prices exhibited significant increases: 1972-74, 1988, 1995, and the current period (2007-2008). The only price events in consecutive years are those that occurred in the first and the last period (three years in a row in the first, during the oil crisis and two years at the moment)” (FAO, 2008)[4]. Visto este aspecto, não conseguimos ser taxativos ao ligar o aumento dos preços aos biocombustíveis, conforme demonstra o gráfico 3, que evidencia uma escalada surpreendente dos preços do petróleo e de outras commodities, superando a oscilação observada nas commodities alimentares. Por outro lado, o mesmo relatório da FAO não rechaça totalmente este vínculo, afirmando que commodities agrícolas são dependentes de outros mercados (como o mercado de petróleo) e da direta competição com combustíveis fósseis, ao passo que se a procura aumentar haverá mudança estrutural no mercado de commodities agrícolas: “Agricultural commodities are much more dependent on other markets (such as the oil market) and the direct competition with fossil fuel on the demand side add complexity to the current scenario and signal a structural change in the agricultural commodity Market”. (FAO, 2008, p. 5). Nas análises da FAO, a oscilação dos preços dos alimentos não está unicamente relacionada à produção de combustíveis renováveis no mundo, visto que o boom populacional em algumas regiões do planeta e as intempéries climáticas também interferem no valor dos alimentos, mas reconhece que a baixa nas reservas nacionais faz os preços de commodities muito mais sensíveis aos choques no a demanda ou mercado de fornecimento. No Brasil observou-se a proliferação da monocultura de cana-de-açúcar durante o Proálcool, na década de 1970. Com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2007, contribuiu para a homogeneização da paisagem agrícola de algumas regiões do país. Especialistas afirmam que o estímulo dado à monocultura da cana-de-açúcar traz desvantagens ambientais, porque agride o solo; sociais, porque reduz o uso da mão-de-obra e afugenta as populações rurais; e econômicas, pois a queda do preço pode por a perder toda a cadeia produtiva regional. Segundo Luiz Cortez, pesquisador da Unicamp, a produção atual do Brasil é de 16 bilhões de litros por ano e ocupa 5,5 milhões de hectares e se quiséssemos aumentar essa marca para 110 bilhões, as lavouras de cana-de-açúcar ocupariam 75 milhões de hectares. A área total utilizada por toda agricultura brasileira hoje é de 55 milhões de hectares. Dentre os demais possíveis efeitos negativos da disseminação dos biocombustíveis, a monocultura constitui-se em um problema, uma vez que pode gerar desvantagens econômicas, já que uma única doença ou praga ou a queda do preço do produto no mercado podem gerar um déficit na cadeia produtiva regional. Se por um lado seria precipitado atribuir à produção de biocombustíveis os problemas com a produção de alimentos no mundo; por outro precisamos dar vasão às preocupações de alguns estudos, que relacionam o cultivo de áreas destinadas aos combustíveis renováveis. Conforme discutido neste artigo, vimos que a redução mundial no volume dos estoques de alimentos, as mudanças climáticas, crescente demanda de mercados consumidores e o uso de grãos para fabricar biocombustíveis são fatores apontados para a alta nos preços dos alimentos. Diante disso, pontua-se que a adoção de um biocombustível como o álcool em escala internacional traria benefícios econômicos ao Brasil e para o meio ambiente, considerando o discurso da sustentabilidade. No entanto, ocorre que esses ganhos podem vir acompanhados de prejuízos sociais e ambientais, se não forem tomadas as medidas adequadas para uma produção racional de grãos destinados aos biocombustíveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS O assunto combustível renovável frequenta as principais mesas de discussão da atualidade. Fruto da preocupação com o futuro da humanidade, engloba temas como poluição, efeito estufa e a própria escassez dos combustíveis não-renováveis, uma vez que estudos demonstram que estes atingiram seu ápice de extração em 2015, visto a demanda mundial por energia.  No caso específico do Brasil, verifica-se uma grande diversificação ocorrida no setor, principalmente a partir dos anos 1970, quando os derivados do petróleo e do carvão respondiam por quase 80% do parque energético brasileiro. Com o passar dos anos, esta participação ficou cada vez mais reduzida, dando vasão a outras fontes: energia hidráulica, cana-de-açúcar e o gás natural. Surge o álcool como a grande vedete nacional na tentativa de manter a economia do país em atividade, mesmo diante da crise do petróleo internacional. Com ampla área de cultivo no Brasil, mão de obra barata e competitividade, a produção do etanol brasileiro vem ganhando mercado, concorrendo inclusive com o produto norte-americano, produzido a partir da colheita do milho. Estes fatores proporcionam preços mais competitivos do que outras formas de produção, desencadeando ações internacionais para dificultar a entrada do etanol brasileiro no mercado externo, que vem enfrentando barreiras protecionistas criadas pelo governo norte-americano. A criação da Organização Mundial do Comercio (OMC) constitui-se em uma esperança para as negociações multilaterais de comércio, uma vez que dependendo da classificação a ser adotada no âmbito da OMC, poderá o país pleitear a redução ou mesmo a exclusão de barreiras tarifárias e não-tarifárias que sobre ele incidam, o que acarretaria grandes vantagens econômicas para o Brasil. Por outro lado, especialistas questionam os possíveis efeitos negativos da produção etanol, estimulando a monocultura. Organizações como o MST acusam o etanol de contribuir para a escassez de alimentos e, consequentemente, o aumento nos preços dos alimentos. O relatório elaborado pela FAO, por sua vez, aponta que são várias as razões pelos recentes aumentos de preço dos alimentos: crescimento populacional, alterações climáticas e aumento do consumo pelo incremento da renda da população. Entretanto, não eximem de culpa os biocombustíveis, que estariam tirando alimento da mesa da população para transformá-los em energia. A conclusão, ainda que arriscada, nos conduz afirmar que a utilização do biocombustível como o álcool em escala internacional traria benefícios econômicos ao Brasil e ao meio ambiente, mas este procedimento necessita ser previamente pensado, de modo que se respeitem as demandas regionais, minimizando os possíveis males sociais e ambientais, inerentes à prática.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-96/a-evolucao-da-matriz-energetica-brasileira-o-papel-dos-biocombustiveis-e-outras-fontes-alternativas/
A tutela do patrimônio genético
O patrimônio genético é protegido constitucionalmente. Incumbe, nos termos do art. 225, § 1º, II, da CF, ao Poder Público preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético. Protegem-se, nesse dispositivo, a biodiversidade e o patrimônio genético do país. Isso não impede a realização de pesquisas científicas de manipulação genética. Incumbe ainda ao poder Público exercer um controle efetivo dessas atividades, concedendo as licenças competentes para as empresas e cientistas. Por isso, necessário se faz a análise da legislação protetiva do patrimônio genético, bem como sua efetividade.
Biodireito
1. INSTRUMENTOS LEGAIS DE DEFESA DO PATRIMÔNIO GENÉTICO O patrimônio genético é protegido constitucionalmente. Incumbe, nos termos do art. 225, § 1º, II, da CF, ao Poder Público “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” (BRASIL, 2011, p.78). Protegem-se, nesse dispositivo, a biodiversidade e o patrimônio genético do país. Isso não impede a realização de pesquisas científicas de manipulação genética. Incumbe ainda ao poder Público exercer um controle efetivo dessas atividades, concedendo as licenças competentes para as empresas e cientistas.  Esse dispositivo é complementado pelos incisos IV e V do § 1º do art. 225 da CF, que diz incumbir também ao Poder Público o dever de “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade” (BRASIL, 2011, p.78), e exercer o controle sobre a “produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substancias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (BRASIL, 2011, p.78). Após a permissão da produção e da comercialização dos OGM, o Poder Público deverá exercer um controle especial no que tange à liberação desses produtos no meio ambiente. Foi com a intenção de evitar os excessos na área da engenharia genética que o legislador regulamentou os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da CF, sete anos depois da sua promulgação, com o advento da Lei nº 8.974/95, a qual foi recentemente revogada pela Lei nº 11.105/2005. Referida lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam OGM e seus derivados, cria o CNBS (Conselho Nacional de Biossegurança), reestrutura a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) e dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB). O CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), por fim, baixou a Resolução nº 305, de 12 de junho de 2002, que dispõe sobre o Licenciamento Ambiental, Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto no Meio Ambiente de atividades e empreendimentos com OGMs e seus derivados. Como aponta Sirvinskas (2010, p.625), estes são os instrumentos normativos que disciplina, por ora, a matéria sobre o patrimônio genético. 2. ENGENHARIA GENÉTICA E A LEI 11.105/2005 Engenharia Genética, como já mencionamos, é a atividade de produção e manipulação de moléculas de ADN/ARN, recombinante, conforme dispõe o art. 3º, IV, da Lei n. 11.105/2005 (BRASIL, 2011a, p.297). Tais moléculas são aquelas “manipuladas fora das células vivas mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético e que possam multiplicar-se em uma célula viva, ou ainda as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação; consideram-se também os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN natural” (BRASIL, 2011a, p.297). Recombinação gênica é a troca ou adição, biologicamente normal, de genes de diferentes origens para formar um cromossomo alterado que possa ser replicado, transcrito e traduzido. Genes ou conjunto de genes podem também ser recombinados no tubo de ensaio para produzir novas combinações que não ocorrem biologicamente. A molécula de ADN é o material cromossômico possuidor da informação genética das células vivas. O ADN é armazenado e replicado no núcleo do corpo nuclear da célula. O cromossomo é uma molécula longa e única de DNA que contém muitos genes e funciona no armazenamento e na transmissão da informação genética. Nas células somáticas humanas há 46 cromossomos. O excesso de cromossomo poderá ocasionar a doença conhecida por síndrome de Turner (infantilismo genital). Os genes, por sua vez, carregam consigo todas as informações genéticas de determinado indivíduo (fenótipo e genótipo). (SIRVINSKAS, 2010). Com receio das conseqüências do exercício da engenharia genética, o Legislativo resolveu disciplinar essa atividade mediante a criação da Lei n. 11.105/2005. 3. Objetivos da Lei n. 11.105/2005 De acordo com o art. 1º da Lei n. 11.105/2005, é objetivo da referida legislação “Estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de OGM e seus derivados, tendo como diretriz o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente” (BRASIL, 2011a, p.296). A lei procura estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização. Tais normas criam critérios rígidos para a segurança do homem, das plantas e dos animais, nos casos de construção, cultivo, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte no meio ambiente de OGM. Incumbe também ao Poder Público exercer uma fiscalização rígida por meio das comissões criadas na esfera federal e estadual, bem como estabelecer critérios técnicos de engenharia genética, limitando a conduta do cientista à manipulação das moléculas de ADN/ARN. 4. Exercício das Atividades de Engenharia Genética Vê-se, pois, que as atividades e os projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial, ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos da Lei n. 11.105/2005 e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu descumprimento. Assim, as atividades, os projetos, as pesquisas científicas, o desenvolvimento tecnológico e a produção industrial relacionados a OGM só podem ser realizados por entidades de direito público ou privado. Somente as pessoas jurídicas de direito público ou privado podem exercer essas atividades, sendo responsáveis pelos eventuais atos danosos causados ao homem, aos animais, às plantas e ao meio ambiente. Machado (2005, p.966) diz tratar-se de dispositivo de constitucionalidade duvidosa. Entendem-se por “atividades e projetos aqueles conduzidos dentro das instalações próprias ou sob a responsabilidade administrativa, técnica ou científica da entidade”. (BRASIL, 2011a, p.297). Tais atividades e projetos “são vedados a pessoas físicas enquanto agentes autônomos independentes, mesmo que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro com pessoas jurídicas”. (BRASIL, 2011a, p.297). Para que as entidades possam realizar essas atividades e projetos, precisam de registro próprio, que será concedido pela CTNBio. O pedido deverá ser instruído com os documentos necessários da entidade, bem como os nomes dos cientistas responsáveis pelas atividades e projetos. Todas as organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou projetos deverão exigir o Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB), nos termos do art. 14, XI, da Lei n. 11.105/2005, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento da Lei n. 11.105/2005 ou de sua regulamentação (BRASIL, 2011a, p.302). 5. Fiscalização e Engenharia Genética A fiscalização de projetos relacionados com OGM, segundo o art. 16, caput, da Lei n. 11.105/2005 caberá: “aos órgãos e entidades de registro e fiscalização do Ministério da Saúde, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Ministério do Meio Ambiente e da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República, entre outras atribuições, no campo de suas competências, observadas a decisão técnica da CTNBio, as deliberações do CNBS e os mecanismos estabelecidos nesta Lei na sua regulamentação.” (BRASIL, 2011a, p. 303). De acordo com o mesmo dispositivo legal, suas atribuições são: a) fiscalizar as atividades de pesquisa de OGM e seus derivados; b) registrar e fiscalizar a liberação comercial de OGM e seus derivados; c) emitir autorização para importação de OGM e seus derivados para uso comercial; d) manter atualizado no Sistema de Informações em Biossegurança (SIB) o cadastro das instituições e responsáveis técnicos que realizam atividades e projetos relacionados a OGM e seus derivados; e) aplicar as penalidades de que trata a lei n. 11.105/2005 e; f) subsidiar a CTNBio na definição de quesitos de avaliação de biossegurança de OGM e seus derivados. Para Sirvinskas (2010, p. 629), tais medidas poderão também ser estabelecidas e exigidas pelos órgãos públicos estaduais e municipais com fundamento nos arts. 24, VI, e 30, I, da CF. 6. Registro dos Produtos que Utilizam OGM e a Autorização para o Descarte Os produtos e atividades que utilizem OGM e seus derivados destinados ao uso animal, na agricultura, pecuária, agroindústria e áreas afins, dependerão de registro ou autorização. O registro, ou a autorização, será emitido, “após manifestação favorável da CTNBio, ou do CNBS, em caso de avocação ou recurso” (BRASIL, 2011a, p.303), pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, aos órgãos competentes do Ministério da Saúde e do Ministério do Meio Ambiente e da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da Republica. A emissão do registro ou autorização para uso, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de produto contendo OGM ou derivados dependerá de decisão técnica favorável elaborada pela CTNBio, devendo o processo ser encaminhado aos órgãos e entidades acima referidos. Só depois dessa decisão é que o órgão público fiscalizador concederá o registro ou a autorização competente para a liberação comercial de OGM e desde que não haja necessidade de audiência pública requerida pela própria CTNBio, pelas partes interessadas ou pelas organizações da sociedade civil. No entanto, a autorização para a liberação e descarte de OGM nos ecossistemas naturais, de acordo com a legislação em vigor e segundo o regulamento da Lei n. 11.105/2005, exigirá, se necessário, o licenciamento ambiental, caso o OGM seja efetiva ou potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente. Compete à CTNBio, em última e definitiva instancia, deliberar sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, exigindo-se o licenciamento ambiental (BRASIL, 2011a, p.304). Nesse caso, será necessária a realização de estudo prévio de impacto ambiental (EPIA) e o seu respectivo relatório de impacto ambiental (RIMA) de projetos e aplicação que envolvam a liberação de OGM no meio ambiente, além das exigências específicas para o nível de risco aplicável. 7. CONSELHO NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA – CNBS O Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) é o órgão superior ao CTNBio e ao CIBio, podendo em grau de recurso ou por avocação do processo, tomar decisões definitivas. Trata-se de órgão criado para dar acessoria à Presidência da República no que tange a implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB). Sua competência não fica restrita somente à apreciação dos recursos, mas também poderá analisar os pedidos de liberação das atividades e produtos OGM e seus derivados para fins comerciais, tendo-se por base o princípio da precaução (SIRVINSKAS, 2010). É um órgão administrativo e vinculado à Presidência da República, regendo-se pelos princípios de discricionariedade e da precaução. Deve-se, assim, evitar conceder o registro ou a autorização se houver dúvida sobre as conseqüências que poderiam advir daquela intervenção no meio ambiente. Em caso tal, o órgão deverá analisar o grau de risco e, se necessário, exigir o estudo prévio de impacto ambiental e seu respectivo relatório (EPIA/RIMA). (SIRVINSKAS, 2010). Conforme o art. 9º da Lei n. 11.105/2005, o CNBS é composto pelos seguintes membros: “a) Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que presidirá; b) Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia; c) Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário; d) Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; e) Ministro de Estado da justiça; f) Ministro de Estado da Saúde; g) Ministro de estado do Meio Ambiente; h) Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; i) Ministro de Estado das Relações Exteriores; j) Ministro de Estado da Defesa; e l) Secretário Especial da Aquicultura e Pesca da Presidência da República”. (BRASIL, 2011a, p. 299-300). A reunião poderá ser instalada com a presença de seis membros, e as decisões serão tomadas com votos favoráveis da maioria absoluta (BRASIL, 2011a, p.300). O parágrafo primeiro do art. 8º da referida lei confere as seguintes competências ao CNBS: “a) fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com competências sobre a matéria; b) analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados; e c) avocar e decidir, em ultima instância, com base em manifestação da CTNBio e, quando julgar necessário, dos órgãos e entidades referidos no art. 16 da Lei n.11.105/2005, no âmbito de suas competências, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados” (BRASIL, 2011a, p. 299). Como se vê, cuida-se de um órgão eminentemente político e não técnico. O parecer emitido pela CTNBio poderá ser derrubado por esse órgão se for desfavorável ao governo. Mas tal fato deverá sempre ser comunicado aos órgãos e entidades referidos no art. 16 da Lei n. 11.105/2005, seja favorável ou desfavorável a decisão (BRASIL, 2011a, p.303). 8. COMISSÃO TÉCNICA NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA – CTNBio A Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio) é o órgão brasileiro responsável pelo controle das tecnologias de OGMs. É responsável pelas emissões de pareceres técnicos sobre qualquer liberação de OGMs no meio ambiente e acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico na Biossegurança e áreas afins, com o objetivo de promover uma segurança à população em geral, com permanente cuidado à proteção ambiental. A CTNBio está vinculada ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia. Trata-se de instância colegiada multidisciplinar, com a finalidade de prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao governo federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB) relativa a OGM. A CTNBio deverá “constituir subcomissões setoriais permanentes na área de saúde humana, na área animal, na área vegetal e na área ambiental, e poderá constituir subcomissões extraordinárias, para análise prévia dos temas a serem submetidos ao plenário da Comissão” (BRASIL, 2011a, p.301). São atribuições da CTNBio, de acordo com o art. 14 da Lei n. 11.105/2005: “I – estabelecer normas para as pesquisas com OGM e seus derivados; II – estabelecer normas relativamente às atividades e aos projetos relacionados a OGM e seus derivados; III – estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramente de risco de OGM e seus derivados; IV – proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados; V – estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança (CIBio), no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial que envolvam OGM ou seus derivados; VI – estabelecer requisitos relativos à biossegurança para autorização de funcionamento de laboratório, instituição ou empresa que desenvolverá atividades relacionadas a OGM e seus derivados; VII – relacionar-se com instituições voltadas para a biossegurança de OGM e seus derivados, no âmbito nacional e internacional; VIII – autorizar, cadastrar e acompanhar as atividades de pesquisa com OGM ou derivado de OGM, nos termos da legislação em vigor; IX – autorizar a importação de OGM e seus derivados para atividade de pesquisa; X – prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao CNBS na formulação da PNB de OGM e seus derivados; XI – emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB) para o desenvolvimento de atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa e enviar cópia do processo aos órgãos de registro e fiscalização referidos no art. 16 da Lei n. 11.105/2005; XII – emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso; XIII – definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e os respectivos procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, conforme as normas estabelecidas na regulamentação da Lei n. 11.105/2005, bem como quanto aos seus derivados; XIV  classificar os OGM segundo a classe de risco, observados os critérios estabelecidos no regulamento da Lei n. 11.105/2005; XV – acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico-científico na biossegurança de OGM e seus derivados; XVI – emitir resoluções, de naturza normativa, sobre as matérias de sua competência; XVII – apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de prevenção e investigação de acidentes e de enfermidades, verificadas no curso dos projetos e das atividades com técnicas de ADN/ARN recombinante; XVIII – apoiar tecnicamente os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 da Lei n. 11.105/2005, no  exercício de suas atividades relacionadas a OGM e seus derivados; XIX – divulgar no Diário oficial da União, previamente à análise, os extratos dos pleitos e, posteriormente, dos pareceres dos processos que lhe forem submetidos, bem como dar ampla publicidade no SIB a sua agenda, processos em trâmite, relatórios anuais, atas das reuniões e demais informações sobre suas atividades, excluídas as informações sigilosas, de interesse comercial, apontadas pelo proponente e assim consideradas pela CTNBio; XX – identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana; XXI – reavaliar suas decisões técnicas por solicitação de seus membros ou por recursos dos órgãos e entidades de registro e fiscalização, fundamentado em fatos ou conhecimentos científicos novos, que sejam relevantes quanto à biossegurança do OGM ou derivado, na forma da Lei n. 11.105/2005 e seu regulamento; XXII – propor a realização de pesquisas e estudos científicos no campo da biossegurança de OGM e seus derivados; e XXIII – apresentar proposta de regimento interno ao Ministro da Ciência e Tecnologia.” (BRASIL, 2011a, p. 301-302). 9. COMISSÃO INTERNA DE BIOSSEGURANÇA – CIBio Para Sirvinskas (2010, p. 649), a Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) tem por incumbência adotar as medidas necessárias de segurança no interior de cada instituição ou entidades que manipulem OGM e avaliar os eventuais riscos dessas atividades para a comunidade e para o meio ambiente. Assim, “toda instituição que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética ou realizar pesquisas com OGM e seus derivados deverá criar uma CIBio, além de indicar um técnico principal responsável para cada projeto específico” (BRASIL, 2011a, p.304). São atribuições da CIBio, conforme dispõe o art. 18 da Lei n. 11.105/2005: “I – manter informados os trabalhadores e demais membros da coletividade, quando suscetíveis de ser afetados pela atividade, sobre as questões relacionadas com a saúde e a segurança, bem como sobre os procedimentos em caso de acidentes; II – estabelecer programas preventivos e de inspeção para garantir o funcionamento das instalações sob sua responsabilidade, dentro dos padrões e normas de biossegurança, definidos pela CTNBio na regulamentação da Lei n. 11.105/2005; III – encaminhar à CTNBio os documentos cuja relação será estabelecida na regulamentação da Lei n. 11.105/2005, para efeito de análise, registro ou autorização do órgão competente, quando couber; IV – manter registro do acompanhamento individual de cada atividade ou projeto em desenvolvimento que envolvam OGM e seus derivados; V – notificar à CTNBio, aos órgãos e entidade de registro e fiscalização, referidos no art. 16 da Lei n. 11.105/2005, e às entidade de trabalhadores o resultado de avaliações de risco a que estão submetidas as pessoas expostas, bem como qualquer acidente ou incidente que possa provocar a disseminação de agente biológico; e VI – investigar a ocorrência de acidentes e as enfermidade possivelmente relacionados a OGM e seus derivados e notificar suas conclusões e providências à CTNBio.” (BRASIL, 2011a, p. 304). 10. DIREITO À INFORMAÇÃO Ressalte-se que o público tem o direito de receber as informações necessárias dos riscos a que está submetido em caso de liberação ou descarte de OGM ao meio ambiente, podendo, inclusive, externar seu inconformismo sobre a concessão da autorização, se for o caso, mediante audiência pública, garantindo-se a participação da sociedade civil, na forma do regulamento. Se a liberação ou o descarte de OGM e seus derivados causar potencial degradação ambiental, a CTNBio deverá exigir o estudo prévio de impacto ambiental (EPIA) e o seu respectivo relatório de impacto ambiental (RIMA) para avaliar os riscos e adotar as medidas adequadas para minimizar ou evitar eventuais danos causados ao meio ambiente (SIRVINSKAS, 2010).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-95/a-tutela-do-patrimonio-genetico/
Biotecnologia, engenharia genética e organismos geneticamente modificados
A técnica atual de biotecnologia moderna, empregada nos melhoramentos das espécies, utilizada pela engenharia genética, tem despertado preocupações, principalmente quando se trata da liberação desses organismos no ambiente. Diante da demonstração de incertezas científicas acerca dos possíveis danos que a disseminação dessas variedades genéticas na natureza, os quais jamais ocorreriam não fosse a intervenção humana, poderão acarretar, é que se tem invocado a aplicação do princípio da precaução, imperativo constitucional que materializa a tutela cautelar do meio ambiente.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO. Durante cinco séculos, elementos como carvão, petróleo e gás natural vêm impulsionando a era da economia industrial, que ficou marcada pela realização das tarefas de fundir, derreter, soldar, forjar e queimar, através da utilização do fogo. Esse período (século XX) revelou-se pela relevância atribuída às ciências da física e química, pois proporcionaram ao homem “o poder de desfazer o mundo inanimado e transformá-lo em um mundo de absoluta utilidade”. (RIFKIN, 1999). No entanto, o fato de as reservas de combustíveis fósseis estarem se extinguindo continuamente vem fazendo com que a civilização se veja, no século XXI, obrigada a buscar novas formas alternativas de aproveitamento dos recursos da natureza, o que começa a por em cheque à idade da pirotecnologia (arte de empregar o fogo ou os explosivos). É dentro desse contexto de escassez de combustível que, para manter as “fornalhas econômicas acesas”, os cientistas começam a catalogar a informação genética de plantas, animais e seres humanos, criando um novo gênero de banco de dados – o biológico, para servir de recurso primário bruto à emergente economia biotecnológica. Dessa forma, o crescimento econômico, agora da era bioindustrial, passa a ter como recurso básico a diversidade biológica ou biodiversidade. Paralelamente a essa consciência global de exaustão das reservas de energia, desencadeia-se, também, uma preocupação cada vez maior com a proteção ambiental, surgindo, assim, a idéia de desenvolvimento sustentável, pois não apenas os recursos dos quais depende o crescimento econômico é que começam a se comprometer, mas também, e principalmente, pelo fato de estar em questão a saúde do meio ambiente, da qual depende a qualidade de vida da humanidade, que se manteve negligenciada durante muitas décadas em prol do progresso. A biotecnologia começa, assim, a apresentar-se como a nova “matriz operacional” da economia do século XXI, tornando, via de conseqüência, o momento propício para a ascensão das ciências biológicas, que passam a encontrar lugar de destaque dentro da nascente era que se avizinha. Atualmente, organismos vivos são utilizados pelas indústrias, sendo que o reconhecimento do direito de patentes aos processos técnicos empregados na fabricação de produtos dentro dos campos da medicina, agricultura, saneamento, alimentação, energia, farmácia, química e meio ambiente, foi o fator determinante para que a biotecnologia adentrasse de fato no mercado. Segundo definição de Sirvinskas (2010, p.620), “Biotecnologia é a técnica empregada por cientistas, biólogos e engenheiros na realização de pesquisas em organismos vivos existentes no meio ambiente para melhoria das plantas e dos animais, tornando-os mais resistentes aos herbicidas, no primeiro caso, e mais produtivos, no segundo, beneficiando os setores da pecuária, agricultura, indústrias químicas e farmacêuticas etc.” Importante lembrar ainda, que a Agenda 21, documento elaborado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), abordando tipos de ações a serem realizadas na prática para fins de atingir um desenvolvimento sustentável, considerou, no seu capítulo 16, a biotecnologia como sendo um conjunto de técnicas que possibilitam a realização pelo homem de mudanças específicas no ácido desoxirribonucléico (DNA), ou material genético, em plantas, animais e sistemas microbianos, conducentes a produtos e tecnologias úteis. Assim, como bem se pode constatar das definições esposadas, a biotecnologia traduz-se no emprego de agentes biológicos e na utilização integrada de diferentes ciências e técnicas para potencializá-los, isto é, pra obter um produto, processo ou serviço. Sendo que, dentre essas ciências e técnicas usadas na aplicação de suas capacidades (dos agentes biológicos) estão a química e engenharia bioquímica, do que se conclui que a biotecnologia é uma ciência complexa, possuindo áreas específicas de desenvolvimento. Dentre as mencionadas técnicas, que são tidas como sistemas de catalisadores biológicos, por serem empregadas na dinamização e estimulação do agente biológico, a engenharia genética é a tecnologia que vem alcançando posição de destaque no campo da biotecnologia, em decorrência da descoberta da fusão celular e do DNA recombinante e suas aplicações nos processos de fermentação e cultura de tecidos. (DOMINGUES, 1989). O melhoramento genético de animais e plantas já vem sendo utilizado há muitos anos. Os criadores cruzam indivíduos para criar variedades e, dessa forma, de acordo com as técnicas da Genética clássica, as características de muitos organismos utilizados comercialmente têm sido alteradas. Segundo Machado (2010, p.1039), “A Genética mudou radicalmente nos últimos 30 anos. Novas técnicas foram desenvolvidas, aplicando-se aos microorganismos. Saliente-se a descoberta da estrutura e da função do ácido desoxirribonucléico (ADN). Desde os anos 70, pesquisadores começaram a manipular diretamente o DNA e, hoje, a Engenharia Genética tornou-se a empresa de bilhões de dólares. Pesquisa-se o uso de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) em muitas áreas diferentes, como agricultura, produtos farmacêuticos, especialmente produtos químicos, e despoluição ambiental.” A Engenharia Genética é a ciência que estuda o patrimônio genético e a biodiversidade existente no meio ambiente, consubstanciada no exercício da “atividade de produção e manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante”, conforme o art. 3º, IV, da Lei n. 11.105/2005 (BRASIL, 2011a, p.297). ADN (ácido desoxirribonucléico) /ARN (ácido ribonucléico) é o “material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência” de acordo com o art. 3º, II, da Lei n. 11.105/2005 (BRASIL, 2011ª, p.297). Segundo o art. 3º, III, da Lei 11.105/2005, tais moléculas são definidas como aquelas “Manipuladas fora das células vivas mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético e que possam multiplicar-se em uma célula viva, ou ainda as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação; consideram-se também os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN natural”. (BRASIL, 2011a, p.297). Chama-se de organismo geneticamente modificado (OGM) o material genético (ADN/ARN) que tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética (BRASIL, 2011a, p.297). Assim, afirma Sirvinskas (2010, p.617) que, “Essa manipulação de genes de diferentes espécies realizada no laboratório pode dar origem a novas espécies animais e vegetais, no primeiro caso, mais produtivos e, no segundo, mais resistentes às pragas. As informações contidas nas moléculas são armazenadas e replicadas no interior de outras células, formando-se uma nova espécie.” 2. UTILIZAÇÃO DA ENGENHARIA GENÉTICA A manipulação genética tem sido utilizada para a produção de proteínas de alto valor econômico. Muitas dentre elas – insulina, hormônio do crescimento, interferon – são atualmente produzidas por células em cultura. Trabalhos de laboratório tem demonstrado que o coelho, o porco e o carneiro podem apresentar quantidades importantes de proteínas estrangeiras. Técnica e economicamente, os animais “transgênicos” representam uma alternativa interessante às culturas de células, se for possível recuperar essas proteínas a partir de seu leite e seu sangue. As transformações mais profundas a esperar da transgênese são aquelas que conferem aos animais novas propriedades biológicas, interessantes para os criadores e para os consumidores: alta capacidade de reprodução, produção de carne mais magra e contendo lipídios menos nocivos, resistência ao stress. Argumenta-se que a Engenharia Genética faria crescer a produção de grãos e, com isso, seria eliminada a fome do mundo. Em sentido contrário, afirma-se que não é a escassez de alimentos o que condena à fome milhões de pessoas no planeta, mas o desigual acesso aos alimentos. (MACHADO, 2010). 3. BENEFÍCIOS E RISCOS CAUSADOS PELA ENGENHARIA GENÉTICA Conforme salienta Sirvinskas (2010, p.622-623), “A engenharia genética, sem dúvida alguma, será a solução dos problemas que o homem vai enfrentar neste terceiro milênio. Cuida-se de uma revolução científica que se iniciou na década de setenta. Hoje o homem conseguiu solucionar muitos problemas por meio da manipulação genética. A biotecnologia, por seu turno, tem sido aplicada nas mais variadas áreas das atividades humanas. O Brasil é o pioneiro no mapeamento dos principais genes das pragas da lavoura. Estes são alguns dos benefícios que podem trazer a engenharia genética à humanidade, a saber: produção de carne mais nutritiva e com menos gordura; aumento da produtividade na lavoura; criação de animais geneticamente modificados para serem utilizados em transplantes sem que haja rejeição; terapia gênica, consistente na retirada de genes humanos defeituosos para serem reparados e recolocados nos organismos do paciente; detecção de enfermidades hereditárias no embrião; aumento da durabilidade de alimentos, como, por exemplo, o tomate; a descoberta de vacinas para doenças; produção de bactérias para a produção de insulina; criação de plantas transgênicas resistentes aos herbicidas; criação de animais para a produção de proteínas humanas; produção de leite mais vitaminado etc.” As técnicas empregadas pela engenharia genética têm por objetivo o barateamento dos alimentos, o aumento da produção de carne com mais proteínas, a redução da agressão ao solo e ao ecossistema, a eliminação do uso de agrotóxicos, o aumento da fixação de nitrogênio do ar pelas plantas, a despoluição dos rios e mares etc. São muitas as possibilidade da utilização da engenharia genética, como, por exemplo, nas indústrias químicas e farmacêuticas, na saúde, na lavoura, na pecuária, no meio ambiente etc. A manipulação genética envolve a transferência de genes humanos para animais, entre animais, de animais para vegetais e vice-versa. Cuida-se da manipulação de moléculas ADN/ARN recombinantes. Todos esses benefícios têm um custo, embora ainda desconhecido cientificamente. A liberação de organismo geneticamente modificado – OGM no meio ambiente poderá trazer muitos riscos, os quais também são desconhecidos cientificamente, razão pela qual somente as pessoas jurídicas poderão desenvolver projetos que envolvam a produção de OGM, conforme disposto no art. 2º, §§ 1º e 2º, da Lei 11.105/2005. Tais pessoas jurídicas devem sofrer rígida fiscalização por parte do Poder Público competente. (SIRVINSKAS, 2010). Diante desses riscos, o renomado doutrinador, faz questionamentos pertinentes quanto à utilização dos organismos geneticamente modificados: “Quais as reais conseqüências, a longo prazo, das transformações biotecnológicas? Quais os efeitos que, no futuro, poderão advir das mutações genéticas artificiais, praticadas em laboratório, em animais e plantas? Quais os riscos que o meio ambiente poderá sofrer com a introdução dessa civilização transgênica ou com a criação de organismos geneticamente modificados? Será que o ser humano teria o direito de alterar geneticamente um vegetal ou um animal, criando espécies diferentes das existentes, para atender a seus interesses ou à carência de alimentos? Poderia o homem pôr em xeque o que a natureza levou milhões de anos para construir? Poderia o ser humano saciar sua ganância desafiando a natureza, causando danos ao meio ambiente e às gerações futuras? Seria possível admitir o transporte de genes de uma espécie a outra? A formação de novas espécies mais resistentes não seria um modo de fazer uma seleção natural artificial? Qual o verdadeiro impacto ao meio ambiente e à saúde produzido pela planta transgênica? Poder-se-ia acatar a criação da vida em laboratório? A terapia gênica não seria uma forma disfarçada de eugenismo, por conter em seu bojo o melhoramento genético? Como resolver a questão da patentealidade dos OGMs? […]Diante dos avanços biotecnológicos, como manter o respeito à dignidade da pessoa humana? Com a identificação de todo o código genético do ser humano, no meio previdenciário e empregatício, não poderia haver uma discriminação, mediante a seleção dos contratados de acordo com seus genes?” (SIRVINSKAS, 2010, p.623-624).   Como tais indagações estão longe de ser respondidas, incumbe ao Poder Público, mediante a criação de mecanismos eficientes de fiscalização, limitar a criação de novos projetos que possam colocar em risco a humanidade. Toda liberação ou descarte de OGM ao meio ambiente deve ser precedida de prévio estudo de impacto ambiental, adotando-se o princípio da precaução (da prevenção ou da cautela). Assim, conforme aponta Sirvinskas (2010, p.624). “Não é preciso que se tenha prova científica absoluta de que ocorrerá dano ambiental, bastando o risco de que o dano seja irreversível ou grave para que não se deixe para depois as medidas efetivas de proteção ao ambiente. Existindo dúvida sobre a possibilidade futura de dano ao homem e ao ambiente, a solução deve ser favorável ao ambiente e não a favor do lucro imediato – por mais atraente que seja para as gerações presentes.” 4. REAÇÃO PÚBLICA E POLÊMICA EM TORNO DA ACEITAÇÃO DOS OGMs A reação mundial existente frente aos OGMs é semelhante a enfrentada quando da divulgação da descoberta da técnica do DNA recombinante pela engenharia genética, pois, assim como naquela época (1974), os riscos e incertezas que os envolvem (tecnologia e produtos dela advindos) continuam longe de serem suficientemente esclarecidos ou conhecidos. Do que se percebe, a engenharia genética nasceu e permanece polêmica, por mais que seus apologistas considerem ter demonstrado cientificamente sua segurança às autoridades competentes. Até mesmo os geneticistas, seguidamente à descoberta no campo da engenharia genética do DNA recombinante, manifestaram seu receio quanto à utilização da nova técnica, tanto assim o foi que, nos dizeres de Leite (2000), deram um exemplo sem precedentes de precaução, ao proporem uma moratória voluntária para a realização desse tipo de pesquisa, chamando atenção também para a necessidade de sua auto regulamentação: “Os próprios pioneiros do DNA recombinante pautavam-se pela intuição de que poderia haver algo de muito arriscado e imprevisível nessa capacidade recém-adquirida de modificar o patrimônio genético de indivíduos e mesmo de espécies, para não mencionar a transferência de genes de uma espécie à outra: As novas técnicas, que permitem a combinação de informação genética de organismos muito diferentes, colocam-nos numa área da biologia com muitas incógnitas.” (LEITE, 2000, p.27). A questão em torno da técnica descoberta chegou, inclusive, a ser no ano seguinte (1975) objeto de reunião internacional (Conferência de Asilomar, Califórnia), na qual foram debatidas suas implicações éticas e de segurança. Ganhava, assim, projeção internacional a discussão que se instaurava, resultando em certas restrições aos avanços biotecnológicos. Essa discussão, no entanto, acabou limitando-se a fóruns qualificados (debates científicos e acadêmicos) uma vez que ainda não existiam produtos para uso fora do laboratório, permanecendo distante o suficiente da sociedade a ponto de não perturbar o imaginário da população com temas como ameaça à saúde e ao meio ambiente. Posteriormente, quando a tensão parecia diminuir entre os cientistas, a medida em que se chegava a um consenso sobre as exigências mínimas de segurança para os locais que desenvolviam atividades relacionadas a OGMs, já se indagava se os requisitos estabelecidos pela Conferência de Asilomar não seriam excessivamente rigorosos e contraproducentes para as pesquisas científicas. Começava, então, a preponderar promessas e benefícios da biotecnologia nascente sobre a incerteza dos riscos indeterminados. (LEITE, 2000). Destaca-se, porém, que existe uma polêmica ainda por ser decidida em torno dos transgênicos. Muito embora seus apologistas defendam a segurança de sua utilização, a maioria das pessoas sensibiliza ou não pelos argumentos de ordem religiosa ou ética (contrários á manipulação da vida como um bem sagrado e intocável), ignorante ou não das particularidades científicas, consegue intuir que a engenharia genética ultrapassa uma linha fundamental, pois, a transferência de genes inteiros de uma espécie para outra para além das forças da natureza (casos em que só poderia ocorrer em situações excepcionais e sob o controle da seleção natural em anos de evolução), é bem diferente das técnicas de melhoramento de espécies até então aplicadas. Com a nova tecnologia o melhoramento genético não se restringe ao organismo, mas ao seu gene, o que permite exceder-se às fronteiras impostas por cada espécie. A engenharia genética ultrapassa as barreiras das espécies. Com essa nova tecnologia, a manipulação ocorre no nível genético e não no nível da espécie. A unidade de trabalho não é mais o organismo, e sim o gene. As implicações são enormes e de longo alcance. Portanto, a questão não é tão simples quanto à campanha pró-biotecnológica quer fazer crer, no que diz respeito à propaganda de irrecusabilidade dos organismos transgênicos frente às promessas e benefícios que poderão advir de sua utilização. Tal intervenção no genoma das espécies, segundo acredita Leite, (2000, p. 33) “pode até ser útil, justificável e desejável, mas nada disso está garantido inicialmente”, chamando a atenção, ainda, o mencionado autor, para o fato de que essas “ciências da vida deveriam ser governadas por algo mais que a simples lógica de mercado”. Dizendo o seguinte: “Mesmo em setores esclarecidos da sociedade, parece predominar uma mentalidade algo paranóica em relação aos transgênicos, o que no final das contas pode revelar-se em uma saudável forma de auto defesa diante do rolo compressor da indústria.” (LEITE, 2000, p.13). Apesar de os benefícios do recém descoberto poder de manipular o código genético da vida parecerem, em um primeiro momento, sedutores, há que se atentar para os possíveis danos e riscos que dessa intervenção poderão advir para a humanidade: se a história ensinou-nos alguma coisa é que toda revolução tecnológica traz benefícios e custos. Quanto mais poderosa a tecnologia é na expropriação e no controle das forças da natureza, mais severo será o preço que seremos forçados a pagar em termos de desordem e destruição causadas aos ecossistemas e aos sistemas sociais que sustentam a vida. Na mesma linha de raciocínio segue o entendimento de outros doutrinadores que, compreendendo estar a utilização de OGMs diretamente relacionada às vantagens que se almeja obter das inovações daí decorrentes, pensa não ser suficiente, para legitimar o uso disseminado de uma dada tecnologia, a sua eficácia e os benefícios que dela se espera. Para a legitimação do desenvolvimento e da utilização de OGMs, quando da análise de riscos, além da consideração aos aspectos biológicos, deverão ser avaliados os riscos relacionados a questões socioeconômicas ligadas ao controle corporativo da maioria dos OGMs e aos direitos financeiros de propriedade industrial relativos às sementes. Colocando, ainda, que a legislação requer em primeiro lugar, que os OGMs não causem riscos sérios à saúde humana, ao meio ambiente, às relações sociais, às instituições democráticas e à integridade cultural. Em segundo lugar, que não excluam alternativas agrícolas que prometem benefícios mais amplos para a população como um todo. Como se vê, a discussão está longe de se encerrar, acreditando Leite (2000) que provavelmente seria mais sensato primeiramente realizar estudos mais amplos antes de espalhar, sem nenhum critério, variedades transgênicas pelo mundo. No entanto, como conseqüência do crescimento mundial de culturas geneticamente modificadas, em especial de soja, houve repercussão direta no aumento da presença dos resíduos desse grão transgênico em produtos alimentícios que o levam em sua composição. No caso do Brasil, apesar de serem proibidos o plantio e a comercialização de espécies geneticamente modificadas no país, a Agrogenética verificou, através da análise de amostras de diferentes tipos de alimentos, que eles já se encontravam presentes em nosso mercado desde 2000. Todavia, a constatação da presença, por si só, de soja transgênica entre nossos alimentos, não seria suficiente para provocar maiores reações por parte da população, até mesmo pela dificuldade em se detectar o OGM nos alimentos. Por outro lado, foi quando da emissão pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) de parecer consultivo favorável à autorização do plantio e comercialização da soja geneticamente modificada Round up Ready pela empresa multinacional Monsanto do Brasil Ltda, no ano de 1998, dispensando a realização do estudo prévio de impacto ambiental (EIA) exigida pela Legislação em vigor em atendimento ao princípio da precaução, que eclodiu a discórdia em torno da aceitação e incorporação de OGMs às culturas de plantas e à dieta alimentar brasileiras, pois conforme observado, até o momento existe incerteza científica quanto aos possíveis danos que a liberação das espécies geneticamente modificadas podem implicar para a saúde humana e do meio ambiente. (MACHADO, 2004).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-95/biotecnologia-engenharia-genetica-e-organismos-geneticamente-modificados/
Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspectiva ético-jurídica
No presente trabalho faz-se uma breve contextualização da normatização ética e jurídica sobre a sexagem – seleção de sexo -, além de uma análise concisa dos limites da seleção sexual sob a luz de princípios constitucionais e princípios bioéticos clássicos a fim de responder à questão: deve ser permitido aos pais selecionar o sexo dos filhos? [1]
Biodireito
INTRODUÇÃO Os progressos acelerados e espetaculares da biotecnologia, marcadamente acentuados a partir do final do século XX, em especial das técnicas de reprodução assistida, trazem consigo inúmeras questões antes inexistentes, as quais suscitam questionamentos e controvérsias. A evolução das ciências biotecnológicas propiciou a seleção de sexo (sexagem), por meio da Reprodução Humana Assistida (RHA), podendo ser conceituada como a técnica ou intervenção planejada para aumentar a probabilidade de concepção, gestação e nascimento de uma criança de um sexo em detrimento de outro[2]. As razões para selecionar o sexo do filho podem ser de cunho “não médicas”, “não terapêuticas”, equilibrar a frequência entre os sexos em uma família ou por motivações culturais, sociais, econômicas, pessoais; ou “médicas”, “terapêuticas”, caso em que casais portadores de graves doenças hereditárias ligadas ao cromossomo X, as quais afetam predominantemente o sexo masculino, recorrem à procriação assistida visando a assegurar que tais males não sejam transmitidos à prole. São conhecidas mais de duzentas doenças com herança ligada ao sexo, as quais “comprometem uma em cada mil crianças nascidas” (BADALOTTI, 2004:14). Exemplificam essas doenças: hemofilia A, distrofia muscular de Duchenne e adrenoleucodistrofia. A seleção de sexo é polêmica e nos remete a discussões éticas e jurídicas, tendo sido o tema tratado no recém-publicado livro de nossa autoria “Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspectiva ético-jurídica” e no site www.sexagem.com. 1 sexagem: regulamentação ético-jurídica No Brasil, no que tange à sexagem, vislumbram-se normas éticas presentes na Resolução n. 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM), a qual dispõe sobre a reprodução humana assistida, e no Novo Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM n. 1.931/2009, em vigor desde 13 de abril de 2010. No tocante à seleção de sexo, a Resolução n. 1.957/2010 proíbe a aplicação de técnicas de reprodução assistida, cuja intenção seja “selecionar o sexo (sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”. A Resolução n. 1.957 entrou em vigor em 06 de janeiro de 2011, revogando a Resolução n. 1.358 de 1992, que compilava as normas éticas a respeito da procriação assistida, já prevendo, dentre outras matérias, a proibição da aplicação de técnicas de reprodução assistida com o objetivo de “selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças”. O Novo Código de Ética Médica, por sua vez, documento que reúne normas e princípios a orientar o exercício da Medicina, abordou questões vinculadas à RHA. No que tange à seleção do sexo, o Código veda ao médico, no Artigo 15, § 2º, inciso III, a realização da procriação medicamente assistida para criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras. Inexiste no Brasil legislação especial que regule a utilização das novas tecnologias reprodutivas. Diante de tal ausência, os centros de procriação humana assistida proliferam e trabalham conforme suas próprias convicções éticas (QUEIROZ, 2001:82). Ressalta Borges, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), in Mascarenhas (2005), que inexiste lei no país acerca do assunto: “o que existe é uma sugestão de conduta que deve ser seguida por todos aqueles que pertencem à classe médica. Quem fizer estará faltando com a ética profissional, mas não infringirá a lei”. Sobre o tema, Fachin (2003:247) observa que, “não obstante a realidade social e econômica não seja congruente com o fulgor tecnológico, centros de fertilização atuam onde o Direito ainda não alcançou.” 2 SEXAGEM: LIMITES A lei deve ser sempre privilegiada diante dos avanços científicos.  Entretanto, é impossível disciplinar, mediante formulação de leis, todas as novas tecnologias. “Desta feita, não obstante a ausência de legislação acerca da reprodução assistida, vários são os princípios constitucionais que tutelam expressamente a pessoa e, consequentemente, podem ser invocados para a solução de conflitos” (GONÇALVES, 2003:42).  Se a formulação de leis não acompanha o acelerado avanço dos progressos científicos, tal fato não significa que possa haver um desrespeito aos princípios da República Federativa do Brasil, bem como aos princípios orientadores da discussão bioética. Os princípios expressam valores defendidos pela sociedade e são enunciados genéricos que condicionam e informam a criação, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas. Na ausência de legislação específica sobre determinada matéria, devem orientar a interpretação do intérprete. A liberdade de procriar é um direito subjetivo, personalíssimo, o qual não pode ser exercido de forma absoluta, encontrando, pois, limites na ordem jurídica. A teor de tais limites, destacam-se o princípio da dignidade humana e o princípio da paternidade responsável como limitadores lícitos ao exercício do planejamento familiar, consoante o texto constitucional, permitindo a imposição de restrições e de medidas protetoras.  O princípio da dignidade da pessoa humana, como o mais alto princípio geral do nosso ordenamento jurídico, deve orientar toda e qualquer discussão no campo da reprodução assistida e, assim, em torno da viabilidade jurídica de selecionar o sexo do bebê. O recurso à sexagem, sem a existência de um motivo relevante, deve ser tolhido. A utilização da biotecnologia com finalidades que acarretem na reificação do filho e na bestificação da vida não é aceitável do ponto de vista ético e jurídico. Considerando-se que a “vida humana não é um joguete, progenitores não podem, por capricho, ter o condão de predestinar uma vida” (VIEIRA et al., 2007:12). O filho não pode ser visto como um simples meio de realização dos desejos e das preferências dos pais. A ciência, na medida em que realiza desejos, deve ser ponderada, pois o ser humano não pode ser um simples objeto científico, sendo necessário preservar o sentido humano em uma sociedade cada vez mais dominada pela biotecnociência. Em outra perspectiva, tendo em vista o princípio da beneficência, se a escolha do sexo do bebê visar a contribuir para a saúde da criança que irá nascer, por evitar doenças hereditárias, deve ser vista como benéfica e, logo, deve ser permitida. As técnicas de reprodução assistida devem ser usadas para o bem-estar do ser humano e limitadas aos casos em que haja indicação terapêutica: tratamento de esterilidade e de infertilidade, bem como diante de riscos, comprovados por especialistas, de transmissão de enfermidades de origem hereditária diretamente relacionadas aos cromossomos sexuais, mais especificamente ao X. Não se pode, contudo, esquecer que, de todo modo, os pais devem ser informados sobre os riscos e as limitações inerentes ao uso das técnicas de reprodução humana assistida. O princípio da paternidade responsável, por sua vez, consagrado no texto constitucional como limitador do planejamento familiar, deve ser sempre observado, de modo a atender ao melhor interesse da criança. À criança deve ser assegurado o direito de não nascer de forma baseada em seleção de características físicas ou intelectuais, como mero produto dos interesses paternos, e de não ser um agente perpetuador de preconceitos e discriminações. Entendendo que as novas tecnologias reprodutivas, assim como todo o avanço científico, devem ser vistas sob o prisma do princípio da solidariedade e da precaução, as ações humanas devem se vincular aos interesses e às responsabilidades da humanidade. Por essa razão, todas as práticas que ameacem o futuro da natureza da espécie humana devem ser coibidas, independentemente de ainda não podermos vislumbrar concretamente tais ameaças, uma vez que a reprodução humana não pode, em hipótese alguma, desvincular-se de seu caráter humano. CONCLUSÃO Por tudo isso, respaldamos o teor da Resolução n. 1.957/2010, do Conselho Federal de Medicina: as tecnologias reprodutivas devem ser restritas aos casos de infertilidade e esterilidade, bem como ao tratamento de doenças ligadas aos cromossomos sexuais, de modo que a seleção do sexo deve ser restrita às hipóteses em que se busque evitar enfermidades graves e, portanto, não deve ser permitida por outros motivos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/sexagem-a-escolha-de-sexo-dos-filhos-numa-perspectiva-etico-juridica/
Obtenção e utilização de imagens de pacientes: proposta de termo de consentimento à luz do direito brasileiro
Ao atender um paciente, muitas vezes o profissional da saúde fotografa ou filma o caso. Há, via de regra, duas razões básicas para tal atitude. A primeira é para a documentação do caso per se, e as imagens ficarão restritas ao prontuário clínico do paciente. E, se porventura algum dia houver um litígio envolvendo aquele determinado tratamento, tais imagens poderão ser utilizadas como meio de prova. A segunda razão diz respeito à divulgação do caso clínico, com a sua publicação em periódicos científicos, apresentação em aulas, cursos, congressos e similares. Pode-se citar ainda uma outra razão: o uso das imagens para a divulgação dos serviços do profissional que conduziu o tratamento/procedimento. Para a obtenção/gravação das imagens, faz-se necessário o consentimento do paciente, ou de seu responsável legal (no caso de incapaz). Porém, a imagem produzida somente poderá ser utilizada para os fins específicos a que se destinou inicialmente. Se porventura o profissional tiver intenção de usá-la, por exemplo, em publicações, precisará do consentimento específico para este fim. Vale lembrar que a própria Constituição Federal da Brasil assegura tal direito. A produção de imagens de pessoas e a sua divulgação em meios acadêmicos, por exemplo, ocorre não somente em atendimentos clínicos, como também em pesquisas que envolvam seres humanos. É necessário respeitar as normas éticas e legais relacionadas ao uso de imagens. Este trabalho apresenta uma proposta de Termo de Consentimento para obtenção e uso de imagens de pacientes de profissionais da saúde.
Biodireito
INTRODUÇÃO O direito à imagem é um direito constitucional, protegido explicitamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 3 , como a seguir transcrito: “Art. 5o, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” O Código Civil 1 determina: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.” Ao atender um paciente, muitas vezes o profissional da saúde fotografa ou filma o caso. Há, via de regra, duas razões básicas para tal atitude. A primeira é para a documentação do caso per se, e as imagens ficarão restritas ao prontuário clínico do paciente. As fotografias são efetivo meio de prova e, se porventura algum dia houver um litígio envolvendo aquele determinado tratamento, tais imagens poderão ser utilizadas para aquela finalidade. A segunda razão pela qual muitos profissionais da saúde tiram fotografias dos pacientes e respectivos tratamentos/procedimentos realizados, diz respeito à divulgação do caso clínico, com a sua publicação em periódicos científicos, apresentação em aulas, cursos, congressos e similares. Pode-se citar ainda uma outra razão: o uso das imagens para a divulgação dos serviços do profissional que conduziu o tratamento/procedimento. Da mesma forma que é preciso o fornecimento do Consentimento Livre e Esclarecido (CLE) do paciente para que possa ser realizado determinado tratamento/procedimento 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, para a obtenção/gravação das imagens também é necessário o consentimento do paciente, ou de seu responsável legal (no caso de incapaz). Porém, a imagem produzida somente poderá ser utilizada para os fins específicos a que se destinou inicialmente. Se porventura o profissional tiver intenção de usá-la, por exemplo, em publicações, precisará do consentimento específico para este fim. Vários Códigos de Ética Profissional pátrios fazem referência e estabelecem normas para a utilização de informações e imagens de pacientes, para diferentes finalidades. O Código de Ética Médica vigente 5  possui norma específica sobre o uso de imagens de pacientes. Determina: “CAPÍTULO IX – SIGILO PROFISSIONAL É vedado ao médico: Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.” Este Código, em vigor desde 13 de abril de 2010, proíbe o uso de imagens de pacientes na publicidade médica, ainda que o paciente autorize. Não obstante, esta Resolução não faz referência ao uso de imagens de pacientes em publicações científicas, aulas, cursos, etc… O Código de Ética Odontológica em vigor 6 possui também normas aplicadas ao uso de imagens de pacientes. Determina: “CAPÍTULO VI DO SIGILO PROFISSIONAL Art. 10. Constitui infração ética: III. fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos odontológicos em programas de rádio, televisão ou cinema, e em artigos, entrevistas ou reportagens em jornais, revistas ou outras publicações legais, salvo se autorizado pelo paciente ou responsável. CAPÍTULO XIV – DA COMUNICAÇÃO SEÇÃO I DO ANÚNCIO, DA PROPAGANDA E DA PUBLICIDADE Art. 34 – Constitui infração ética: VI. divulgar nome, endereço ou qualquer outro elemento que identifique o paciente, a não ser com seu consentimento livre e esclarecido, ou de seu responsável legal, observadas as demais previsões deste Código e legislação pertinente; SEÇÃO III DA PUBLICAÇÃO CIENTÍFICA Art. 38. Constitui infração ética: III. publicar, sem autorização por escrito, elemento que identifique o paciente preservando a sua privacidade;” Em âmbito internacional, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos 11, aprovada em Assembléia Geral pelos 192 países-membros da UNESCO em 19 de outubro de 2005, determina, nos seus artigos 5o e 6o, a necessidade do Consentimento Livre e Esclarecido: “Art. 5o  – Autonomia e responsabilidade individual A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.” “Art. 6o  – Consentimento 1. Qualquer intervenção médica de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.” Na mesma Declaração, o artigo 9o – Privacidade e confidencialidade, determina o respeito à privacidade das pessoas e à confidencialidade de suas informações pessoais. Se utilizada imagem de paciente sem o seu consentimento prévio e específico, o responsável por tal veiculação pode ser responsabilizado ética e juridicamente, podendo inclusive, ter que indenizar o paciente pelo uso indevido de suas imagens 1, 2, 5, 6, 10. TERMO DE CONSENTIMENTO PARA OBTENÇÃO E USO DE IMAGENS Apresentamos a seguir uma proposta de Termo de Consentimento para obtenção e utilização de imagens de pacientes, em que os mesmos são adequadamente esclarecidos. O exemplo dado diz respeito ao uso das imagens para a sua divulgação no meio científico. Se a finalidade do uso for outra, ou se posteriormente o profissional tiver intenção de utilizar tais imagens para outro propósito, deverá ser elaborado novo Termo. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para obtenção e utilização de imagens Eu, _______________________________________________________, RG n. _____________________, residente à Av./Rua ____________________________ n. _______, complemento _________, Bairro ____________________, na cidade de ____________________________________, por meio deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consinto que o Dr. ____________________ tire fotografias, faça vídeos e outros tipos de imagens de mim, sobre o meu caso clínico. Consinto que estas imagens sejam utilizadas para finalidade didática e científica, divulgadas em aulas, palestras, conferências, cursos, congressos, etc… e também publicadas em livros, artigos, portais de internet, revistas científicas e similares, podendo inclusive ser mostrado o meu rosto, o que pode fazer com que eu seja reconhecido. Consinto também que as imagens de meus exames, como radiografias, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas, ultrassons, eletromiografias, histopatológicos (exame no microscópio da peça cirúrgica retirada) e outros, sejam utilizadas e divulgadas. Este consentimento pode ser revogado, sem qualquer ônus ou prejuízo à minha pessoa, a meu pedido ou solicitação, desde que a revogação ocorra antes da publicação. Fui esclarecido de que não receberei nenhum ressarcimento ou pagamento pelo uso das minhas imagens e também compreendi que o Dr. ___________________ e a equipe de profissionais que me atende e atenderá durante todo o tratamento não terá qualquer tipo de ganhos financeiros com a exposição da minha imagem nas referidas publicações. Local, _______ de _________________ de 2___. Assinatura*: ____________________________________ Paciente CPF RG *Pais ou responsáveis em caso de menores de idade (neste caso, adequar o texto) CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante que fique claro o objetivo do uso das imagens. Há situações em que o foco de interesse está na face, em função da especificidade do caso. Assim, a possibilidade de reconhecimento deve também ser explicitada. No exemplo dado, a utilização das imagens é para fins científicos, e os profissionais não auferirão lucro algum com a divulgação das mesmas. Porém, há situações, como o emprego de imagens de pacientes para propaganda de serviços profissionais (lembrando que isto está proibido para médicos), em que o objetivo final, se não imediato, do uso das imagens, é o lucro financeiro. Se isto não for esclarecido para o paciente, e previamente estabelecidas as condições de uso de suas imagens, o mesmo poderá solicitar, em juízo, indenização pelo uso indevido – e quiçá parte nos lucros auferidos graças à divulgação de suas imagens. O pedido de indenização pode ser realizado também independentemente de comprovação da obtenção de lucros, ou quando do emprego das imagens sem finalidade lucrativa, em função do uso não autorizado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/obtencao-e-utilizacao-de-imagens-de-pacientes-proposta-de-termo-de-consentimento-a-luz-do-direito-brasileiro/
Responsabilidade do profissional da saúde no esclarecimento equivocado do paciente para obter o seu consentimento livre e esclarecido
Ao paciente é necessário fornecer esclarecimentos sobre as possibilidades terapêuticas, apresentando os riscos, benefícios, prognóstico e custos de cada alternativa possível e indicada. Esta é uma determinação ética e jurídica. Não obstante, o profissional da saúde detém o conhecimento clínico/técnico/científico, e determina quais informações serão (ou não) fornecidas. O paciente decide submeter-se a um tratamento, fornecendo o seu Consentimento Livre e Esclarecido com base nos dados a ele apresentados. Infelizmente, pode ocorrer de alguns profissionais não fornecerem todas as informações necessárias a uma tomada de decisão esclarecida ou, depois de obtido o consentimento do paciente, apresentarem-lhe informação que cause sua desistência do tratamento inicialmente aceito. Esta última informação, se pertinente, e não se tratando de fato superveniente, deveria ter sido fornecida inicialmente. Porém, a informação pode não ser de todo verdadeira, e levar o paciente a decidir baseado, por exemplo, em riscos apresentados e mensurados de forma equivocada. A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Este trabalho apresenta um caso e discute questões éticas e legais, incluindo a responsabilidade civil, do fornecimento parcial e inadequado de esclarecimentos a um paciente.
Biodireito
INTRODUÇÃO Até a década de 1960, o atendimento na área da saúde teve como característica o paternalismo hipocrático, a beneficência. Os profissionais da saúde tratavam seus pacientes da forma que entendiam ser a melhor, com a intenção de cuidar e restabelecer a saúde dos mesmos. Porém, os pacientes normalmente não tinham participação alguma no processo de decisão sobre suas possíveis alternativas de tratamento, e sequer eram informados sobre as características de seu atendimento. O entendimento predominante até aquela época – amiúde tácito – era cuidar de seus pacientes da melhor forma possível, e a obrigação destes era seguir as orientações que lhes eram fornecidas. Porém, em determinado momento, na década de 1960, os pacientes passaram a pleitear os seus direitos – direito à informação sobre sua saúde, sobre as possíveis alternativas de tratamento, e direito à decisão sobre seus corpos, sua saúde e suas vidas. Isto provocou uma significativa mudança de paradigmas. Com o surgimento da Bioética, no início da década de 1970, e a proposta dos quatro pilares bioéticos no final da mesma década – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – o adequado esclarecimento ao paciente sobre sua condição de saúde e alternativas de tratamento, para que ele possa optar pela alternativa que julgar melhor, de acordo com seus valores pessoais, passou a ser conseqüência do atendimento ao princípio bioética da autonomia. Ao mesmo tempo, normas éticas (deontológicas) e legais surgiram, determinando o respeito à autonomia do paciente – lembrando que esta também possui limites. Assim, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor 3, o Código de Ética Médica 5, e o Código de Ética Odontológica 6, são exemplos de normas que obrigam o profissional ao esclarecimento de seu paciente. O Código do Consumidor, aplicável às relações entre profissional da saúde/paciente, estatui: “Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.” O Código de Ética Médica 5 em vigor, determina: “Capítulo IV – DIREITOS HUMANOS É vedado ao médico: Art. 22 – Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu responsável legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Capítulo V – RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES É vedado ao médico: Art. 34 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.” O Código de Ética Odontológica 6, em seu, determina: “CAPÍTULO V – DO RELACIONAMENTO SEÇÃO I – COM O PACIENTE Art. 7o – Constitui infração ética: IV . deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do tratamento; XII – iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento prévio do paciente, ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou emergência.” Em nível internacional, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos 16, aprovada em Assembléia Geral pelos 192 países-membros da UNESCO em 19 de outubro de 2005, explicita, nos seus artigos 5o e 6o, a necessidade do Consentimento Livre e Esclarecido: “Art. 5o  – Autonomia e responsabilidade individual A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses. Art. 6o  – Consentimento 1. Qualquer intervenção médica de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.” Vale lembrar que o esclarecimento deve ser fornecido tanto em casos de assistência à saúde como em pesquisas envolvendo seres humanos. Desta maneira, depois de devidamente esclarecido, o paciente/sujeito da pesquisa consente (ou não) em se submeter a determinado tratamento ou experimento, por meio de seu Consentimento Livre e Esclarecido (CLE). A formalização do CLE dá-se por meio de um documento denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 4, 7, 13. Como anteriormente mencionado, o profissional da saúde tem o dever bioético, ético e jurídico de esclarecer adequadamente o seu paciente, antes do início do tratamento. As alternativas, riscos, prós, contras, custos, por exemplo, precisam ser apresentados, e em linguagem simples, acessível ao nível de compreensão do paciente. Se não o fizer, poderá responder ética e legalmente pela omissão de informações. A necessidade de obtenção do consentimento após o devido esclarecimento é voz uníssona entre os autores da área 1, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15. ESCLARECIMENTO INADEQUADO PARA A OBTENÇÃO DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO O profissional da saúde é o detentor do conhecimento clínico/técnico/científico que deverá ser transmitido ao paciente. Na prática, ele decide o que informar – e é responsável pelos esclarecimentos fornecidos. Há profissionais que se empenham no correto esclarecimento de seus pacientes. Todavia, infelizmente, pode haver profissionais que, deliberada e conscientemente, não fornecem todas as informações necessárias ao devido esclarecimento de seus pacientes, profissionais que manipulam as informações a seu bel-prazer, com o objetivo de induzir o paciente a tomar (ou não) uma decisão de acordo com o que os profissionais desejam, de acordo com seus próprios interesses. Nesta situação, o paciente é o grande prejudicado – confia em um profissional que lhe fornece informações inadequadas, ou mesmo não verdadeiras, e com base nestas, toma a sua decisão. Algumas vezes, a informação equivocada ou incompleta é fornecida no início do atendimento. Outras vezes, é fornecida após a obtenção do Consentimento Livre e Esclarecido (CLE), determinando a desistência de um tratamento/procedimento anteriormente aceito. Óbvio que podem ocorrer fatos supervenientes, e que devem ser informados tão logo ocorram. Não obstante, não sendo este o caso, esta última informação, se pertinente, deve ser fornecida no início do atendimento. A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Todos os esclarecimentos, tanto relacionados à prótese de ATM, como procedimento cirúrgico e seus riscos, devem ser fornecidos antes do paciente consentir em receber tal prótese. Uma informação de última hora, apresentando um risco de infecção, por exemplo, pode causar a desistência do tratamento, e com isso a frustração do paciente, quebra de suas expectativas, além de subtrair-lhe a oportunidade de um adequado, indicado e necessário tratamento reabilitador. Se este risco – causador da desistência do paciente – não houver sido bem dimensionado, causará um dano ao paciente, pois será determinante de sua desistência. O paciente somente tem condições de exercer a sua autonomia se for adequadamente esclarecido. Se o esclarecimento que recebeu for inadequado, o mesmo, na prática, estará fazendo uma escolha com base em informações que não são pertinentes, o que acarreta em perda de sua autonomia. Os profissionais que agem desta forma – prestando informações inadequadas a seus pacientes – devem ser responsabilizados tanto ética como juridicamente. Com informações inadequadas ou não verdadeiras, induzem seus pacientes a um julgamento equivocado, prejudicando-os. A responsabilidade jurídica cinde-se em responsabilidade civil e penal. A primeira envolve, antes de tudo, o dano, o prejuízo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação no patrimônio de alguém 15. O Código Civil 2 estatui o dever de indenizar, afirmando:   “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” O Código de Defesa do Consumidor 3 determina o direito do consumidor (paciente) à informação e assegura, explicitamente, a indenização por danos morais: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;” O profissional que não esclarece adequadamente o seu paciente, fere dispositivos deontológicos de sua categoria profissional. Exemplificando com profissionais médicos e cirurgiões-dentistas, os mesmos, descumprindo respectivamente os Códigos de Ética Médica e Odontológica, ficam sujeitos às sanções de seus Conselhos profissionais. Tirar do paciente o direito a um tratamento indicado e necessário, não lhe fornecendo informações adequadas e pertinentes, ou mesmo fornecendo-lhe informações não pertinentes, equivocadas, prejudicando o seu julgamento, é atitude que pode obrigar o profissional que assim age a indenizar o paciente, pois, com sua atitude, causa-lhe um dano moral, passível de reparação pecuniária. CONSIDERAÇÕES FINAIS O dever de somente iniciar tratamento ou realizar procedimento com o consentimento do paciente é embasado em normas deontológicas e jurídicas. Porém, este dever deve ser obtido somente após o paciente ter sido adequadamente esclarecido, pois só então estará apto a escolher. Se o profissional presta informações inadequadas, infundadas, ou mesmo não verdadeiras, equivocadas, subtrai do paciente a possibilidade de exercitar sua autonomia, e de até mesmo escolher a opção que será melhor para o seu tratamento e para a sua saúde. Agindo assim, o profissional causa sérios prejuízos ao paciente, e deve responder tanto eticamente, perante o seu Conselho profissional, como juridicamente, indenizando o paciente pelo mal que lhe causou.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/responsabilidade-do-profissional-da-saude-no-esclarecimento-equivocado-do-paciente-para-obter-o-seu-consentimento-livre-e-esclarecido/
Breves reflexões sobre a eutanásia
A eutanásia é um dos tema que merece maior atenção dos estudiosos do biodireito, sobretudo no que concerne às implicações penais. Há que se sopesar, à luz da dignidade humana, o exercício dos direitos à liberdade e à vida com o interesse do Estado na criminalização de certas condutas.
Biodireito
INTRODUÇÃO Pensar em biodireito importa pensar em vida, morte e liberdade. E, ao se pensar em vida, morte e liberdade, não há como escapar da discussão acerca da eutanásia. Desde já é preciso esclarecer que se entende eutanásia, para fins deste artigo, de maneira ampla, como todas as formas de encurtamento da vida. Não haverá preocupação, portanto, em distingui-la da ortotanásia ou da distanásia, pois não se considera fértil, dentro do escopo deste trabalho, uma discussão que gire em torno de questões terminológicas. A preocupação é com as repercussões jurídicas das variadas formas de eutanásia. Pois bem. Falar em eutanásia é falar em dor. Nas palavras da poetisa Emily Dickinson, a “dor tem um elemento de vazio/ não se consegue lembrar/ quando começou, ou se houve/ um dia em que não existiu”.[1] Há um discurso, infelizmente frequente, que busca legitimar o dogma de que a vida seria absolutamente inviolável, sendo possível evoluir e aprender com a dor. Segundo essa teoria, a experiência da dor deve ser vivida, assim como as demais. Contudo, é possível identificar nesse dogma um caráter pretensiosamente humanitário, e que, no fundo, traduz o que há de mais cruel no ser humano. Considerando-se que o tema é debatido calorosamente não apenas por juristas como também por teólogos, filósofos e médicos, são oportunas as palavras de Cesare Beccaria no prefácio que acrescentou ao seu Dos delitos e das penas, após ter recebido críticas ácidas dos nobres e religiosos por suas idéias humanistas e contramajoritárias: “Quem (…) desejar honrar-me com críticas, não comece, portanto, supondo em mim a existência de princípios destruidores da virtude ou da religião (…); ao invés de achar-me incrédulo ou sedicioso, procure ver, em mim, um mau lógico ou um político despreparado; não trema a cada proposta que apóie os interesses da humanidade; convença-me da inutilidade ou do dano político que poderia resultar dos meus princípios; mostre-me a vantagem das práticas recebidas.”[2] 1. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO BIODIREITO O Direito não pode desprezar as demandas que surgem no seio da Medicina, vendando-se para a realidade como se bastasse em si mesmo. Urge reconhecer a transdisciplinaridade entre esses dois ramos do saber humano, podendo-se definir, simploriamente, Biodireito como o ramo jurídico que incorpora os princípios bioéticos. Nas palavras de Maria Elisa Villas-Bôas, o Biodireito é “a face jurídica que espelha a reflexão bioética”.[3]    VILLAS-BÔAS faz alusão a quatro princípios da Bioética[4], cuja principal corrente é o principialismo, o qual ganhou vida com a obra “Principles of Biomedical Ethics”, de Tom Beauchamp e James Childress. Cuida-se dos princípios da beneficência, da não-maleficência, da autonomia e da justiça, considerados fundamentais na abordagem médica de um paciente e muito úteis para a resolução de casos concretos, inclusive a eutanásia. Do mesmo modo como os demais princípios jurídicos, a aplicação de um não exclui a do outro, devendo haver uma ponderação entre eles para que se determine qual a melhor solução[5]. O princípio da beneficência determina que o médico deve sempre buscar promover o bem do paciente. A regra para a identificação de qual é esse bem é o de promoção da cura e da vida, e não da manutenção de um mal. Algumas questões polêmicas podem surgir, tal qual o impedimento de um suicida que se encontrava profundamente angustiado, sendo-lhe mais penoso viver, e que estava à beira de se jogar de um prédio. O princípio da não-maleficência tem raízes no juramento de Hipócrates de “primum non nocere”, isto é, antes de tudo não se deve causar mal. Quando não for mais possível levar benefício para o paciente, normalmente terminal, o médico não deve empreender novas tentativas de cura que lhe causem dores. O princípio da autonomia privilegia a vontade do paciente, corolário de sua própria dignidade. É importante que as decisões tomadas pelo paciente sejam informadas e conscientes, mas isso não deixa de ser um consectário lógico da vontade, uma vez que não se pode querer algo que não se conhece. Finalmente, o princípio da justiça determina uma igualdade – entendida como uma moeda cujos lados são a isonomia e a diferença – na distribuição dos recursos de saúde, assegurando que as pessoas tenham acesso aos meios que lhe possibilitarão a cura ou, ao menos, a diminuição da dor.      2. MODALIDADES DE EUTANÁSIA Antes de proceder à análise da adequabilidade do tratamento da eutanásia no sistema jurídico pátrio, convém tecer algumas considerações na tentativa de tornar um pouco mais claras as turvas águas que cobrem esse polêmico tema. Na definição de Claus Roxin, eutanásia é a “ajuda prestada a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou pelo menos em consideração à sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte compatível com a sua concepção de dignidade humana”.[6] Alguns autores[7] fazem a distinção entre eutanásia terapêutica, eliminadora e econômica. Afastamos, de plano, as duas últimas hipóteses, evidentemente atentatórias à dignidade humana. A eutanásia eliminadora, também chamada de selecionadora, muito utilizada na Alemanha nazista, visa a “melhorar” a espécie humana erradicando todos aqueles que portam distúrbios biológicos ou sociológicos indesejáveis. É a conhecida “eliminação das vidas indignas de viver”. A econômica busca disponibilizar os recursos destinados a pacientes terminais, tidos como irrecuperáveis, para outros enfermos, privilegiando-se os interesses coletivos em detrimento de um interesse particular (como se o interesse da sociedade prescindisse do interesse de proteger os seus membros individualmente, sendo paradoxal dizer que o corpo social é mais importante do que o indivíduo; violando-se o indivíduo, viola-se a sociedade). Tanto a eutanásia eliminadora quanto a econômica estão fora do que aqui se entende por eutanásia. Neste trabalho, cogita-se apenas da eutanásia terapêutica. Pois bem. Claus Roxin[8] distingue quatro espécies de eutanásia: a “pura”, a indireta, a passiva e a ativa. A eutanásia “pura” ocorre quando se ministra ao paciente meios que irão apenas reduzir a dor, sem que dos anestésicos decorra qualquer risco de morte. Na indireta, diminui-se a dor com determinadas substâncias que criam um risco à vida do paciente, isto é, a morte ou o encurtamento da vida podem figurar como um dos efeitos colaterais. Já a eutanásia passiva se configura quando o paciente é mantido vivo por aparelhos, quaisquer que sejam, sem os quais a morte seria um fim inexorável, e tal tratamento é suspendido, sobrevindo-lhe, portanto, o fatal destino. Finalmente, a eutanásia ativa é a morte que ocorre atendendo-se à vontade de quem se encontra nos últimos estágios da vida, e engloba o auxílio ao suicídio. Quanto à primeira hipótese, dificilmente se poderá vislumbrar alguma ilicitude ou desaprovação social na conduta daquele que diminui a dor alheia. Em seara penal a punição é devida apenas nos casos em que alguém se recusa a aliviar o sofrimento do paciente, conduta que facilmente se amolda no tipo do art. 135 do Código Penal ou mesmo no do art. 129, se quem omite a ajuda for o garantidor. Da mesma forma, se os anestésicos forem ministrados contra a vontade do paciente não se estará diante de uma conduta lícita, eis que se trata de uma intervenção não autorizada no organismo do paciente. 3. EUTANÁSIA INDIRETA A eutanásia indireta, por sua vez, traz à tona discussões um pouco mais complicadas de serem resolvidas e, por isso, merece maior ponderação. A medicina não dispõe de todos os meios de cura, tanto que a obrigação do médico não é de resultado, mas de meio. Cuida-se de situações, portanto, em que não é mais possível romper o nexo entre a doença e a morte. Ocorre que durante o lapso temporal entre uma e outra o paciente sofre de intensas dores. Para reduzi-las, ministram-se a ele substâncias que, porém, criam um risco – desnecessário distinguir o risco concreto do abstrato – de morte ou encurtamento da vida. Nesses casos é possível se vislumbrar um dolo eventual de homicídio, o que, com os demais elementos do tipo do art. 121, tornariam punível a conduta do sujeito que fornece ao paciente a substância que cria o risco. Quem se posiciona nesse sentido defende, portanto, que haveria homicídio, tentado ou consumado, conforme a concretização do risco. Neste trabalho, rejeita-se esse posicionamento. Diferentemente do que se passa na eutanásia “pura”, não há um dever de aliviar a dor como disposto na norma do art. 135 ou pela norma do art. 13, § 2º, c/c a do art. 129, ou mesmo, quem sabe, com a do art. 121. Isso porque o risco de morte produzido colateralmente pela substância permite a imputação do resultado ou da tentativa ao seu fornecedor. Porém, não se pode desconsiderar que a importância da diminuição da dor pode ser tão grande que o possível encurtamento da vida passa a não ter significado, assim como não se pode interpretar a legislação tomando-se por base artigos isolados. É de se indagar: é possível, no ordenamento pátrio, encontrar uma brecha pela qual se poderia sustentar a impunibilidade da conduta consubstanciada na eutanásia indireta? Parece que sim, por meio da ideia de consentimento do ofendido, tomado aqui não como aquele que opera dentro do tipo penal, configurando-o (aborto consentido pela gestante, por exemplo), mas sim do que afasta a tipicidade da conduta. Nessa tentativa, rejeita-se a tradicional corrente que vislumbra no consentimento do ofendido a natureza jurídica, em alguns casos, de causa de justificação supralegal. O que se adota, neste estudo, é a doutrina elaborada por Zaffaroni, que, afora os casos em que o consentimento constitui elementar típica, ora entende afastar a tipicidade objetiva sistemática, ora a tipicidade objetiva conglobante. Em suas palavras, a “eficácia eximente da aquiescência tem base constitucional: não há lesividade quando uma conduta não afeta, por dano ou por perigo, o bem jurídico, nem quando o sujeito consente certas condutas que podem ser perigosas ou lesivas”.[9] Assim, se o paciente exteriorizar o seu consentimento sério de que deseja receber os medicamentos que lhe aliviarão a dor – com a concriação do risco de morte – e a pessoa que os ministra tiver a finalidade de proceder conforme tal consentimento, não haveria conduta típica. Respeita-se, assim, a autonomia da vontade do paciente concomitantemente ao princípio da não-maleficência. Além disso, para se imputar objetivamente um resultado a alguém como obra sua é preciso que o agente tenha dominabilidade da ação,[10] principalmente em se tratando de crimes dolosos. No caso da pessoa que ministra as substâncias ao paciente é difícil argumentar que ela teria a dominabilidade do fato. Ocorre que, com a não-configuração do dolo, poder-se-ia pensar em conduta culposa. Afastá-la também não constitui tarefa simples, diante da convergência entre a conduta querida e a praticada, além da falta de imprudência ou de negligência. 4. EUTANÁSIA PASSIVA No caso da eutanásia passiva, a morte é um resultado certo e decorrente da suspensão de um tratamento sem o qual a vida não seria possível. Se o agente, por exemplo, desligar os aparelhos que mantêm a respiração do paciente, não haverá criação de risco de morte, pois essa sobrevirá como decorrência direta e certa da falta daquele elemento responsável pela vida. Não se pode confundir esta modalidade de eutanásia com a ativa. O fato de a suspensão do tratamento depender de uma ação como, por exemplo, apertar o botão de liga/desliga da aparelhagem, não caracteriza a modalidade ativa, porquanto não é dessa ação que a morte decorre, mas, sim, da omissão de um tratamento. Por um lado, há o dever de prolongar a vida (princípio da beneficência). Mas é preciso, antes, fazer a seguinte pergunta: do prolongamento da agonia se pode retirar algum sentido para o paciente? Frise-se que, nesta modalidade de eutanásia, não se trata mais tão-somente de aliviar a dor física, mas também, possivelmente, de um tipo de sofrimento moral, que pode surgir da completa falta de esperança e do profundo pesar de se levar uma vida dependente de uma máquina. Na Alemanha, a prática da eutanásia passiva é permitida, em razão do princípio, também aplicável aos demais casos, de que impera a vontade do paciente, não havendo um direito de titularidade do médico de lhe impor um tratamento ou cirurgia não desejado. Segundo Claus Roxin, essa “solução é deduzida, corretamente, da autonomia da personalidade do paciente, que pode decidir a respeito do alcance e da duração de seu tratamento”.[11] O Tribunal alemão abre, porém, uma exceção, relativa aos pacientes suicidas, os quais, se chegarem vivos ao hospital, após frustrado o derradeiro ato, devem se submeter aos tratamentos indicados, mesmo que tenham expressamente se manifestado anteriormente por escrito em sentido contrário. Tal entendimento, contudo, é bastante criticado pela doutrina. Há uma questão que merece ser ponderada, principalmente em sede de suspensão de tratamento (não se exclui, por essa razão, que o que segue seja eventualmente adequado para as outras modalidades de eutanásia): trata-se do consentimento presumido. Há situações em que o paciente está impossibilitado de se manifestar, seja porque sofreu uma lesão muito grave que lhe tirou a consciência indefinidamente, seja porque uma doença ou síndrome o acomete a ponto de lhe retirar a capacidade de se auto-determinar, como acontece na síndrome da descerebração. Em se tratando de eutanásia, com criação de um perigo de morte ou mesmo com a certeza de que um determinado procedimento a produzirá, todo cuidado é pouco, pois a disposição da própria vida cabe ao paciente, e não às demais pessoas que, a princípio, não têm condições de decidir por ela. A regra da presunção do consentimento é a de que o paciente deseja prolongar a própria vida, sendo elidida, apenas, em casos excepcionais, de modo a não se cair na hipótese – jurídica e eticamente combatida por nós – de eutanásia econômica, uma vez que o se deve levar em consideração para a presunção do consentimento favorável à eutanásia é, apenas, a ponderação acerca da continuidade de um tratamento que pode, ou não, prolongar ou intensificar os sofrimentos do paciente, e não aspectos de ordem econômica. Quando for possível chegar à conclusão medicamente bem fundamentada de que o paciente nunca retornará à consciência, pois ele apenas se mantém vivo por aparelhos e em estado absolutamente vegetativo, acredita-se ser possível a presunção pela exceção, isto é, pela realização da eutanásia, valorizando-se o princípio da não-maleficência, eis que nenhum bem poderia surgir do prolongamento sem sentido de uma vida fadada não apenas à morte, como também às trevas da inconsciência. Para torná-la segura, seria recomendável que uma equipe de médicos realizasse o diagnóstico e o Poder Judiciário fosse ativado para um Juiz se manifestar sobre o caso, concedendo a permissão, fundamentando a sua decisão no laudo médico, obviamente. Se houver qualquer dúvida quanto à possibilidade de o paciente retomar a consciência, a presunção do consentimento não pode fugir à regra, suspendendo-se quaisquer procedimentos que pudessem vir a colocar em risco a vida do paciente. Uma solução interessante consiste na determinação, por escrito e regularmente atualizada, de uma pessoa que, baseada em previsões, oferece diretrizes de como deseja ser tratada caso venha a se encontrar em determinado quadro clínico e incapacitada de manifestar a sua vontade. 5. EUTANÁSIA ATIVA Por fim, a última hipótese de eutanásia, a ativa, possivelmente a mais controvertida, consiste em o agente matar, comissivamente, uma pessoa que deseja profundamente morrer, mas não dispõe da coragem ou da capacidade necessária para, por exemplo, injetar em si, com as suas próprias mãos, um veneno, recorrendo, então, a outrem, que satisfaz a sua vontade. O auxílio ao suicídio que, em nosso direito, está tipificado no art. 122 do CP, também pode ser visto sob a ótica da eutanásia ativa. Na Alemanha, excepcionalmente, não se pune o auxílio à morte. Há um tipo específico cuja rubrica é “homicídio a pedido” (§216): “(1) Se o autor foi determinado a realizar o homicídio por pedido expresso e sério de quem foi morto, será imposta pena privativa de liberdade de seis meses a cinco anos. (2) A tentativa é punível”. Segundo parte da doutrina,[12] o critério para diferenciar o auxílio, impunível, do homicídio a pedido é a dominabilidade do ato final que causa a morte. Assim, uma pessoa que prepara uma injeção letal e coloca a seringa nas mãos do suicida, deixando que este aplique a dose em si próprio, não teve o controle do ato final, pois toda a responsabilidade era de quem retirou a própria vida. A participação do terceiro é impune. No Brasil, contudo, a solução seria diferente, nos termos do art. 122 do CP. Caso diverso é o da pessoa que deseja profundamente morrer e não tem coragem de dar um tiro na cabeça, pedindo a um amigo íntimo que o faça. Como disparar o revólver foi o último ato, quem tinha a dominabilidade era o amigo, que responderia por homicídio a pedido. No Direito brasileiro sua conduta se enquadraria, na melhor das hipóteses, no § 1º do art. 121. Ainda sobre o suicídio, podemos levantar a hipótese de a conduta do terceiro auxiliador ser quase que contemporânea à do suicida. Roxin[13] narra o caso de um médico, idoso e doente, que decidiu, de modo responsável, injetar em si um veneno. Temendo não ser suficiente e visando garantir a morte, pediu ajuda a seu sobrinho. No dia combinado, o médico se auto-envenenou e adormeceu, e o sobrinho, buscando assegurar que a vontade final de seu tio se realizasse, aplicou nova dose. O médico veio a falecer duas horas depois. Descoberto o evento, realizou-se perícia e ficou constatado que, não fosse o reforço do sobrinho, o médico teria morrido não duas, mas uma hora depois do auto-envenenamento. O Tribunal Federal condenou o sobrinho por homicídio a pedido ao fundamento de que apesar de a morte de seu tio ter sido inexorável, o sobrinho retirou-lhe uma hora de vida. A doutrina minoritária, incluindo Roxin, criticou a decisão do Tribunal Federal argumentando que a conduta do sobrinho não alterou o resultado final, tendo apenas tido a força de causar pequenas modificações no curso causal. Na Holanda, um texto legislativo de 2001, que entrou em vigor em 2002, legalizou a eutanásia ativa. Conta Walburg de Jong, da “Associação para a eutanásia voluntária”, que “discutiu-se o assunto por 30 anos antes da lei ser aprovada. A discussão teve início com os cidadãos e acabou na política”. Os médicos holandeses refletiram sobre o fato de que manter, a qualquer custo, a vida de pessoas que sofrem intensamente seria, na prática, torturar quem mais necessita de morrer rapidamente e sem dor. A partir de então eles passaram a contar com o apoio do Poder Judiciário, que tolerava a prática. Entretanto, por carecer de uma regulamentação expressa, as portas à clandestinidade estavam abertas, dando lugar a abusos, sendo relatados, inclusive, casos de eutanásia realizada sem o consentimento do paciente.[14] A partir de 2002, a nova lei trouxe alterações ao Código Penal holandês.[15] Alguns requisitos devem, porém, ser satisfeitos. O médico deve: (1) ter chegado ao convencimento de que o pedido do paciente é voluntário e pensado; (2) ter chegado ao convencimento de que o padecimento do paciente é insuportável e sem esperanças de melhora; (3) ter informado ao paciente a situação em que se encontra e as suas perspectivas de futuro; (4) ter chegado ao convencimento junto ao paciente de que não existe nenhuma outra solução razoável para a situação em que este se encontra; (5) ter consultado ao menos um médico independente que tenha visto o paciente e tenha emitido o seu parecer por escrito sobre o cumprimento dos requisitos de cuidado acima delimitados; (6) ter levado ao fim a morte do paciente ou ao auxílio ao suicídio com o máximo cuidado e esmero profissional possíveis. Essa iniciativa holandesa denota que a eutanásia ativa deve, no mínimo, ser regulamentada em lei, pois não se pode mais sustentar, mesmo entre os que defendem a punibilidade irrestrita da eutanásia ativa, que as peculiaridades do tema não exigem uma diferenciação do homicídio privilegiado, que é, por enquanto, a melhor descrição típica do CP brasileiro para que o Direito Penal não gere mais violência do que a eutanásia em si – desde que, como se sustenta, valorize-se a vontade do paciente e se entenda a eutanásia como um meio válido para uma morte consentânea com o conceito de dignidade desse paciente. Cabe, aqui, invocar a lição de Zaffaroni sobre o tema do consentimento do ofendido, a disponibilidade de um direito pelo seu titular e o poder punitivo (com a ressalva, porém, de que o trecho a seguir não se encontra inserido em um contexto em que o autor defende a eutanásia ativa): “A intervenção punitiva alcança um grau intolerável de irracionalidade quando pretende que o sujeito use o bem jurídico apenas de certo modo; esta pretensão é própria de um direito que não respeita a autonomia moral da pessoa e pretende submeter o humano a metas transcendentes de sua humanidade, ou seja, idolátricas (…). A pretensa tutela de um bem jurídico que se arrogue predominar sobre a vontade de seu titular constitui um pretexto para criminalizar um pragma não conflitivo.”[16] CONCLUSÃO Por tudo o que foi exposto, conclui-se que a eutanásia deve ser a ultima ratio em termos de medidas a serem adotadas pelas pessoas que estejam sofrendo, física ou moralmente. Uma reforma da lei penal, não obstante, seria bem-vinda, desde que o legislador não pecasse pelo rigor ou por uma redação lacônica que mais traria prejuízos do que vantagens, que é o que se almeja alcançar por meio da flexibilização da suposta indisponibilidade do direito à vida e do maior grau de autonomia do paciente. O correto dimensionamento da realidade nos tipos penais pelo legislador, ainda que a missão não seja fácil, já seria um importante passo para um Direito Penal brasileiro adequado às modificações sociais – que foram muitas desde a década de 1940 – e aos princípios da bioética, reconhecendo-se a sua força jurídica. Concomitantemente a tais medidas, é aconselhável o desenvolvimento de programas de assessoramento e acompanhamento às pessoas atormentadas, não só com o objetivo de, quem sabe, desmotivá-las de sua decisão pela morte, como também de diminuição do sofrimento, possibilitando maior contato humano, pois, não raro, isso é o essencial. Ressalte-se, porém, que no Brasil as desigualdades sociais são severas e as condições dos hospitais públicos, que atendem ou deveriam atender de forma eficaz a grande maioria da população, são deploráveis.  Nesse contexto, a eutanásia poderia ser uma ponte dourada entre a vida e a morte para diversas pessoas que não têm os seus direitos fundamentais assegurados na prática, em um fenômeno que por alguns é denominado de “mistanásia”, que significa morte infeliz, miserável, “transcendendo o contexto médico-hospitalar para atingir aqueles que nem sequer chegam a ter um atendimento médico adequado, por carência social”,[17] tornando-se, para essas pessoas, uma opção preferencial diante da inapetência do Estado em dirimir questões de saúde pública e sócio-econômicas, o que é inaceitável. Quanto ao direito à vida, inviolável nos termos do caput do art. 5º da CR, valem as palavras de Alexandre de Moraes, segundo o qual cabe ao “Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência”.[18] A partir da redefinição do direito à vida seria, então, possível sustentar que ele engloba a dignidade, permitindo que, diante de um conflito entre os direitos à vida e à liberdade, caberia ao titular de ambos optar por aquilo que considerasse mais adequado à sua noção de dignidade, ainda que envolvendo a disposição de sua vida. Prolongamentos artificiais e desnecessários da vida e paternalismo médico são fatos que devem ser encarados à luz desta nova definição, bem como a eutanásia deve ser contraposta à morte lenta e cruel, a qual não pode ser acobertada pela Constituição da República. Como disse Miguel Reale, a morte faz parte da “esfera do que é mais íntimo e intocável na pessoa humana (…) como elemento essencial de sua vida, e, mais ainda, de sua hora de morrer”.[19] Ao que se poderia acrescentar – sem dor, sem sofrimento. Em paz.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/breves-reflexoes-sobre-a-eutanasia/
A eugenia liberal a partir do pensamento de Habermas
Este trabalho busca, circundando a temática afeta à Bioética e ao Biodireito, a partir dos aspectos mais relevantes da argumentação habermasiana, quanto ás práticas eugênicas, de modo a se construir um justificativa ético-jurídico sobre os limites necessários a essa prática.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO A discussão que se pretende realizar, em grande medida, tem como embasamento as questões éticas lançadas por Jürgen Habermas, em sua obra Die Zukunft der menschlichen Natur, a partir da tradução portuguesa de tal livro, publicado pela Editora Martins Fontes, com o título O Futuro da Natureza Humana. O livro, em grande parte, compõe-se de algumas conferências proferias por Habermas, nos anos de 2000 e 2001, acrescidas de um Posfácio; no qual o autor esclarece e responde sua posição, quanto a eugenia liberal. Utilizando-se do itinerário sugerido no título, constrói-se um manuscrito que traça derivações filosóficas e jurídicas, considerando as dilações que emergem dessa temática tão obscura e fundamental, adstrita à gênese humana. Assim, a partir das ponderações lançadas pelo Filósofo Alemão, apresenta-se uma reflexão sobre as práticas eugênicas, valendo-se de outras correntes de pensamento, para se buscar uma necessária justificação entre as práticas científicas e a sua limitação ético-jurídica, como imperativo imprescindível à preservação da dignidade da pessoa humana. 2. O SENTIDO DA VIDA HUMANA. O texto proposto por Habermas em seu livro O Futuro da Natureza Humana já começa com duas perguntas muito intrigantes: “O que o homem faz com o tempo de sua vida?” e “O que devo fazer com o tempo da minha vida?”[1]. Ocorre que a filosofia não é capaz de responder, mesmo que minimamente, essas questões. Tal indagação é em tal medida tão percuciente, que nem mesmo Habermas se arrisca a propor uma argumentação que visasse a dar cabo de problemas, como documenta em sua obra referida. Aliás, tal questão é abordada sobre o signo da metafísica, visto que após essa não é possível obter respostas definitivas que envolvam a conduta de vida pessoal ou coletiva. Dentro desse raciocínio, a filosofia não deixa de lado a reflexão normativa, há um esforço concentrado que busca desvendar o “ponto de vista moral que adotamos para julgar normas e ações sempre que se trata de estabelecer o que é de igual interesse de cada um e igualmente bom para todos.”[2]. Desse modo, conclui-se que a teoria moral e ética são imantadas pela pergunta: “O que eu devo fazer, o que nós devemos fazer?”[3]. Ora, a reflexão sobre a pergunta acima não pode ser feita sem levar em consideração as duas questões, já que o que fazemos de nossa vida está diretamente interligado com o que é desejado para o nosso interesse e possivelmente, mas nem sempre, será bom para todos. Assim, podemos realizar outra pergunta: “Qual interesse devemos colocar em primeiro plano, o pessoal ou o coletivo?”[4] Para Habermas, a moral que devemos abstrair para buscar uma elevação de nossa ética e o consequente bem comum, são transmitidas pela metafísica e religião, que de uma forma ou de outra, sempre procuram dar ao ser humano uma maior compreensão de como deve se comportar diante de inúmeras situações cotidianas, a partir de uma ponderação que permita à coletividade uma convivência harmônica e de paz. Citando Kierkegaard[5], Habermas nos diz que através da auto-reflexão ética podemos melhorar a nossa moral, assim como toda a nossa existência, privilegiando a comunidade, não em detrimento do indivíduo, mas proporcionando que o projeto de vida escolhido possa ter êxito. Portanto, através da autocrítica, o indivíduo analisa sua vida pregressa, e através de reflexão sobre suas atitudes e os acontecimentos através dos tempos, pode visualizar as possibilidades futuras que a vida lhe dispõe. O objetivo aqui é o indivíduo se arrepender dos erros de sua vida passada e poder agir de forma que não tenha mais vergonha de si mesmo, se esforçando para ser a pessoa que ele quer que os outros reconheçam nele. Desse modo, a partir dessa visão pós-religiosa, Kierkegaard, em sua ética pós-metafísica, também possibilita “a caracterização de uma vida não fracassada”[6] Inobstante, há que se ponderar, como aponta Habermas[7]: “Os enunciados universais sobre os modos do poder ser si mesmo não são descrições estanques, mas possuem um valor normativo e força de orientação. Na medida em que essa ética do juízo se abstém não do modus existencial, mas do direcionamento determinado de projetos de vida individuais e de forma de vida particulares, ela satisfaz as condições do pluralismo ideológico. É, porém, interessante observar que a moderação pós-metafísica esbarra nos seus limites, quando se discutem questões relativas a uma “ética da espécie”. Tão logo a autocompreensão ética de sujeitos capacitados para a linguagem e para a ação entra totalmente em jogo, a filosofia não pode mais se furtar de tomar posição a respeito de questões de conteúdo.” Tal discussão tem sua pertinência com a temática que se pretende desenvolver na medida em que precisamos saber se já estamos em estágio avançado suficiente, ou seja, se já estamos maduros para lidar com todas as descobertas científicas com as quais os maiores cientistas da humanidade já fizeram e continuam fazendo, dia após dia. Então, explica, Habermas, que[8]: “Não se trata de uma atitude de crítica cultural aos avanços louváveis do conhecimento científico, mas apenas de saber se a implementação dessas conquistas afeta a nossa autocompreensão como seres que agem de forma responsável e, em caso afirmativo, de que modo isso se dá.” Com tal afirmação, portanto, Habermas nos abre os olhos para que haja uma reflexão a respeito de nossas atitudes, como um todo, para que cada um de nós possa responder, minimamente que seja, se nos consideramos responsáveis o suficiente para lidar com as inovações tecnológicas que dispomos atualmente; assim como, as que advirão em um futuro próximo. Dessa reflexão, surge uma nova pergunta suscitada por Habermas[9]: “Devemos considerar a possibilidade, categorialmente nova, de intervir no genoma humano como um argumento de liberdade, que precisa ser normativamente regulamentado, ou como a autopermissão para transformações que dependem de preferências e que não precisam de nenhuma autolimitação?” Assim, o exercício de lógica dessa questão, sem sombra de dúvida, nos leva à questão da liberdade como enfoque principal, uma vez que ao manipularmos o genoma humano estamos interferindo diretamente na liberdade de outro ser humano. Isso é um ponto fundamental, na medida em que todo o embasamento teórico-filosófico que fundamenta a noção de dignidade da pessoa humana, a partir dos postulados Kantianos, tem acento na idéia de autonomia. Nesse sentido, Georges Pascal[10] ponderando sobre o pensamento de Kant, explica que: “A idéia de autonomia prende-se a idéia de dignidade da pessoa. Autor de sua própria lei, o homem não tem apenas um preço, ou seja, um valor relativo, mas uma dignidade, ou seja, uma valor intrínseco (…). É perfeitamente compreensível que Kant faça da autonomia o princípio supremo da moralidade (cf. p. 104), dado que a autonomia implica, ao mesmo tempo, a vontade de uma legislação universal e o respeito à pessoa humana que lhe deve a sua dignidade.” Aliás, não é sem razão, que o Biodireito, apresenta como um de seus princípios fundantes, o chamado Princípio da Ubiquidade. Nesse sentido, Enéas Castilho Chiarini Júnior[11], em trabalho desenvolvido sobre o tema, pondera que: “No âmbito do nascente Biodireito, o princípio da ubiqüidade quer dizer que o direito ao patrimônio genético da humanidade enquanto espécie é também onipresente, de forma que deve-se preservar, a qualquer custo, a manutenção das características essenciais da espécie humana. Tal princípio tem aplicabilidade, no âmbito do biodireito, principalmente como impedimento das experimentações científicas em células germinais humanas, as quais, uma vez alteradas, poderiam trazer “mutações” indesejáveis para toda a espécie humana, uma vez que a alteração das células germinais de um indivíduo poderia iniciar um processo de disseminação desta “mutação” perante os indivíduos das gerações futuras. Assim, pelo princípio da ubiqüidade, deve-se considerar que o patrimônio genético da espécie humana deve ser preservado, evitando-se a “contaminação” indesejada de indivíduos de gerações vindouras, de forma que se constitui em um dos fundamentos para a observância do próximo princípio, o princípio da cooperação entre os povos.” Portanto, os pais, ao terem a possibilidade de desenhar o DNA de seu filho, retirando a combinação espontânea e imprevisível da união cromossômica de pai e mãe, para dar origem a uma nova vida; na verdade também tolhe desta, a liberdade que teria, uma vez que alguém está determinando o que este virá a ser, não deixando margem ao acaso da forma como isso possa ocorrer. Tal encruzilhada experimentada pela humanidade não é ignorada pelas Ciências Sociais, em especial o Direito e a Filosofia. E, se no Direito surge o Biodireito; na filosofia, a Bioética embasa e aponta direções àquele. Nesse sentido, Francisco Amaral[12] pondera que: “Desenvolve-se a bioética, termo designativo da ética específica das questões biológicas, a traduzir o valor da pessoa humana e também a metodologia multidisciplinar de abordagem dessa mesma problemática, constituindo para o direito um novo campo de atuação, na medida em que este é chamado a criar normas que protejam o ser humano contra o abuso à sua integridade física, moral e intelectual, o que constitui, presentemente, o cerne da proteção universal dos direitos humanos. Urge, consequentemente, precisar o papel do direito em face desses novos desafios, elaborando o instrumental jurídico necessário à garantia dos valores fundamentais da ordem jurídica. Nessa matéria, vale dizer, a dignidade da pessoa humana, a justiça e o bem comum.” Retomando a linha de raciocínio anterior, portanto, o ponto de convergência das ciências médicas e jurídicas volta-se à experimentação do genoma humano, a partir de acepções particulares de concepção, a incidir sobre seus futuros filhos. Nesse sentido, Habermas[13] é enfático, ao frisar que: “Com efeito, um dia quando os adultos passarem a considerar a composição genética desejável dos seus descendentes como um produto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um design que lhes pareça apropriado, eles estarão exercendo sobre seus produtos geneticamente manipulados uma espécie de disposição que interfere nos fundamentos somáticos da autocompreensão espontânea e da liberdade ética de uma outra pessoa e que, conforme pareceu até agora, só poderia ser exercida sobre objetos, e não sobre pessoas.” Fazendo uma pequena altercação com o Direito Privado, consequências de tais atitudes poderão aparecer mais tarde, com tais pessoas que foram manipuladas geneticamente, traindo o eventual projeto pessoal de vida; podendo, essas, exigir algum tipo de indenização ou compensação por tais alterações artificiais, pois não necessariamente serão desejadas pela pessoa que vive diariamente com elas. E nesse pormenor, Giselda Hironaka[14] explica, apontando os paroxismos da eugenia, através da lentes da Bioética, que: “À Bioética, neste contexto, cabe o papel de levantar as questões, registrar as inquietações, alinhar as possibilidades de acerto e de erro, de benefício e de malefício, decorrentes do desempenho indiscriminado, não-autorizado, não limitado e não-regulamentado de práticas biotecnológicas e biomédicas que possam afetar, de qualquer forma, o cerne de importância da vida humana sobre a terra, vale dizer, a dignidade da pessoa humana. Mas o papel da Bioética certamente esgota-se neste perfil, sem decidir qual a humanidade que a atual geração quer para si e para as futuras gerações. Este papel é o papel do Biodireito, como se tem convencionado chamar.” E ainda nesse sentido, pergunta-se como poderia ser realizada a responsabilização de quem toma essa decisão, e qual seria a abrangência de uma compensação eventualmente exigida pela pessoa afetada. Ocorre que a alteração genética efetuada nos descendentes são irreversíveis, fazendo surgir uma relação interpessoal desconhecida nos dias atuais, e pior, imprevisível do ponto de vista normativo e social sobre como devemos e poderemos lidar com tudo isso num futuro próximo, sem ser possível imaginar de forma categórica todas as possibilidades e consequências de tais atos, sendo impossível saber como isso afetará o ser de quem teve seu genoma alterado, sem sequer ter tido sua opinião levada em consideração, por óbvio impossível, mas que inegavelmente teve sua constituição natural violada em vários aspectos. Entre as consequências, Habermas[15] destaca: “Na medida em que um indivíduo toma no lugar do outro uma decisão irreversível, interferindo profundamente na constituição orgânica do segundo, a simetria de responsabilidade, em princípio existente entre pessoas livres e iguais, torna-se limitada. Perante nosso destino determinado pela socialização, preservamos fundamentalmente uma liberdade diferente da que teríamos com a produção pré-natal de nosso genoma. O jovem em crescimento poderá um dia ele mesmo assumir a responsabilidade por sua história de vida e por aquilo que ele é.” Desse modo, questiona-se se a pessoa que teve seu genoma manipulado pode através da auto-avaliação analisar sua vida pregressa, formular uma auto-compreensão revisória e assim compensar de alguma forma o que lhe foi determinado sem opção de escolha, buscando dar um sentido à sua vida que aparentemente foi projetada por um terceiro? Ou será que essa pessoa estaria atrelada indefinidamente àquela que fez a alteração em seu genoma? Por consequência, seria o autor de tais alterações responsável por tudo o que acontecesse na vida de seu descendente? Buscando um parâmetro normativo, Habermas lembra que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, em seu artigo 3º[16] já traz várias garantias: “(…) garante o direito à integridade física e mental, contém a ‘proibição de práticas eugênicas, sobretudo das que visam à seleção de pessoas’, bem como ‘a proibição da clonagem reprodutiva de seres humanos’”. Portanto, essa questões nos conduzem, de retorno, às ponderações  iniciais, quais sejam, se devemos pensar o que estamos fazendo de nossa vida, e o que queremos fazer com nossa vida. Se a ética e a moral que temos em vigor dentro de nosso íntimo e também com a sociedade, deve nos levar a uma “vida correta” e não o contrário. E nesse sentido, lançando subsídios a um laivo de lucidez, de nossa parte, Mário Emílio Forte Bigotte Chorão[17] aponta que: “Pois bem, aplicando esta doutrina ao nosso problema, resulta o dever de advertir a presença do ser embrionário e de o respeitar como pessoa humana (mesmo no caso de eventual dúvida acerca da sua identidade pessoal). Esse respeito tem de entender-se num sentido forte, que inclui, não apenas o dever de não causar dano (neminem laedere), mas também o de dispensar, positivamente, ao conceptus, a atenção e os cuidados que ele merece, atentas a sua natureza e dignidade, bem com as circunstâncias particulares da sua extrema fragilidade e vulnerabilidade. Cabem aqui, os imperativos da justiça (suum cuique tribuere) e do amor de benevolência.” Portanto, a preocupação sobre a temática afeta à manipulação genética não deve passar ao largo da ética ou da normatização jurídica. Necessário, ao revés, que tal discussão não seja relegada apenas aos biólogos e engenheiros, pois a filosofia exerce papel principal dentro da compreensão do todo, da vida da sociedade e também de como conduzimos a nossa própria vida, de forma que ao realizarmos a análise de nossa vida pregressa tenhamos bons motivos para almejar um futuro melhor e ponderável com tudo aquilo que já realizamos e pretendemos fazer; principalmente, buscando o bem estar comum de todos e a racionalidade para deixar que a vida não seja guiada e criada por meios artificiais por mero capricho de pessoas que não analisam as consequências de seus atos em sua totalidade. 3. PROPOSTA DE UMA EUGENIA LIBERAL. Em sua obra, Habermas relata que em 1973 conseguiu-se separar e voltar a combinar componentes elementares de um genoma. Aponta que, desde então, as técnicas genéticas evoluíram muito e foram empregadas, no mesmo ano, no diagnóstico pré-natal; e, em 1978, na inseminação artificial. Desse modo, a concepção “in vitro” torna possível o acesso das células tronco para pesquisas. A reprodução assistida já havia possibilitado revolução no campo do parentesco, tais como barrigas de aluguel, doadores de óvulos e esperma, entretanto, foi somente com a junção da medicina e da reprodução assistida, com as técnicas genéticas, que se possibilitou a existência do que se convencionou denominar de DGPI (diagnóstico genético de pré-implantação), criando perspectivas para a produção de órgãos e intervenções genéticas com fins terapêuticos. Portanto, o diagnóstico genético de pré-implantação torna possível submeter o embrião a um exame genético de precaução, o que foi usado inicialmente para se evitar futura interrupção de gravidez. De outra parte, as pesquisas sobre células tronco caminham na perspectiva de prevenção de doenças e há expectativa de que a escassez de transplantes seja superada, em breve, por meio da produção de tecidos e órgãos, a partir de células tronco embrionárias. A partir das conquistas científicas, existem aqueles que defendem a impossibilidade de se retroceder ao status quo ante; recusando-se a abrir mão de qualquer prática eugênica; em nome de argumentos éticos ou jurídicos. E justamente nesse contexto, a partir da necessidade de se dar uma resposta convincente ao mundo científico, embasando um discurso ético-moral; viabilizando o disciplinamento jurídico dessas práticas científicas, vêm a lume essas ponderações que apontam em uma direção fundamentada na preservação da dignidade humana. É nesse sentido que se insere a temática do Biodireito ou Bioética. Assim, a desnudar tal concepção, Maria Lúcia Luz Leiria[18] pondera que: “Cunhado pela primeira vez o termo bioética pelo oncologista Van Rensseler Potter, ao publicar seu livro Bioethic: bridge to the future, em 1971, o termo “bioética” incorporou-se ao vocabulário dos profissionais das áreas científicas, principalmente nas instituições de ensino e institutos de pesquisas médicas. Alçada a disciplina, a bioética representa o estudo de todos os aspectos éticos das práticas médicas e biológicas, buscando avaliar suas implicações nas relações em sociedade.” E prossegue, asseverando que: “Há de ser anotado que discussões persistem sobre o próprio termo, fazendo-se diferença entre a bioética e o biodireito, porque o termo “biodireito” traria para a ciência jurídica um possível aprisionamento de todos os valores que são discutidos na bioética, podendo representar apenas as questões que foram enfrentadas pelos textos legais. Não se vê, no entanto, tamanha dificuldade, desde que, em atual e boa interpretação, entenda-se direito, no termo biodireito, não como direito positivado em textos legais, mas sim direito como objeto da ciência jurídica, portanto capaz de albergar todos os enfrentamentos da bioética.” Entretanto, considerando que a pesquisa biogenética uniu-se a interesses de grandes investidores e à pressão de governos, a tendência é de que a dinâmica da situação hoje vivida ameace derrubar longos processos normativos conquistados. Ocorre que os processos políticos de autocompreensão precisam de tempo para amadurecimento. Assim, devem ter como objetivo o desenvolvimento global, não devendo, ante a falta de perspectivas, ater-se à necessidade de regulamentação e ao estado atual da técnica. Por tal razão, Habermas, a partir dos elementos éticos que estão em xeque, sugere que um cenário de desenvolvimento a médio prazo, seria limitar os casos de aplicação do diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI), avançando-se lentamente conforme fossem obtidos resultados satisfatórios. Outro ponto que mereceria consideração, a partir do filósofo alemão, diz respeito à separação entre a chamada eugenia “negativa” da eugenia “positiva”. Ocorre que o limite entre essas duas práticas é flutuante, demandando a imposição de fronteiras normativas, de forma a precisar suas dimensões. Essa falta de limites é argumento para se defender uma eugenia liberal, a qual não reconhece limite entre intervenções genéticas terapêuticas e de aperfeiçoamento. Tal é a situação que em 18 de maio de 2001 o Presidente da República Federal Alemã advertiu: “Quem começa a fazer da vida humana um instrumento e a distinguir entre o que é digno ou não digno de viver perde o freio”[19] Nesse contexto, a técnica da pré-implantação vincula-se à seguinte questão normativa: “É compatível com a dignidade humana ser gerado mediante ressalva e, somente após um exame genético, ser considerado digno de uma existência e de um desenvolvimento?”[20]. Ainda, podemos dispor livremente da vida humana para fins de seleção? E na mesma senda, como justificar eticamente a disposição de embriões para enxertar tecidos transplantáveis, sem ter de enfrentar o problema da rejeição? Acontece que na medida em que o uso de embriões para pesquisas se disseminam e normalizam, perde-se a sensibilidade moral para os limites dos cálculos custo-benefício, como aponta Habermas. Ocorre que ambos os temas, ou seja, o do Diagnóstico Genético de Pré-Implantação e o da pesquisa sobre células tronco, partem da perspectiva da auto-instrumentalização e da auto-otimização, que o homem está prestes a acionar com fundamentos biológicos de sua existência. Nesse ponto vemos a combinação entre a intangibilidade da pessoa e a indisponibilidade do modo natural de sua representação corporal. Assim, com o DGPI, já nos dias de hoje, é extremamente difícil respeitar a fronteira entre a seleção de fatores hereditários indesejáveis e a otimização de fatores desejáveis. Fica claro, portanto, que o limite conceitual entre a prevenção do nascimento de uma criança gravemente doente e o aperfeiçoamento do patrimônio hereditário, ou seja, de uma decisão eugênica, não é mais demarcado. Assevera Habermas, ainda,  que a questão ganha importância prática sob o aspecto da intervenção corretiva do genoma humano para se evitar doenças. Com isso, o problema da delimitação entre prevenção e eugenia transforma-se numa questão de legislação política, daí a importância de se precisar os limites normativos disciplinadores de tais práticas; justamente considerando que o já presenciado em nossos dias, vicejará, provavelmente, em pouco tempo, na possibilidade da própria raça humana possa controlar sua evolução biológica. Nesse sentido, Maria Lúcia Luz Leiria [21]aponta que: “As questões enfrentadas passaram em um primeiro momento a ser vistas, estudadas e analisadas por meio de uma visão teológica, após filosófica, tudo na procura de solução de regras que enfeixassem e não maculassem valores e bens universalmente reconhecidos. Daí, surgem grandes disputas: de um lado pelos pesquisadores das ciências biológicas na busca de uma eticidade própria dos enfrentamentos surgidos com as novas descobertas; de outro, os operadores das humanidades, buscando valores próprios e supremos, muita vezes parciais e locais.” Desse modo, as intervenções genéticas não podem ser decididas exclusivamente com base na dignidade humana, propriamente, ou, tão somente, no “status dos direitos fundamentais dos óvulos fecundados”[22] mas, também, considerando as exigências morais, sob pena de instrumentalização da vida humana, ante a acepção do embrião como bem. Por tal razão, Habermas busca promover uma distinção entre as questões morais e das questões éticas. Assim, as questões morais dizem respeito às questões relativas à convivência baseada em normas justas, o modo como os membros de uma comunidade compartilham noções comuns de direitos e obrigações. Por sua vez, as questões éticas referem-se as crenças que formam a identidade de cada ser humano. Nesse sentido, Habermas[23] pondera que: “Em contrapartida, a forma de lidar com a vida humana pré-pessoal suscita questões de um calibre totalmente diferente. Elas aludem não a esta ou àquela diferença na variedade de formas devida cultural, mas a autodescrições intuitivas, a partir das quais nos identificamos como pessoas e nos distinguimos de outros seres vivos – portanto, nossa autocompreensão enquanto seres da espécie.” A partir dessa perspectiva, Habermas[24] questiona se a “tecnicização da natureza humana altera a autocompreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos”. E, é justamente fulcrado em tais ponderações, que Habermas defende as intervenções genéticas exclusivamente para fins terapêuticos em alguns casos, sintetizando seus temores na seguinte construção[25]: “O corpo repleto de próteses, destinadas a aumentar o rendimento, ou a inteligência dos anjos, gravada no disco rígido, são imagens fantásticas. Estas apagam as linhas fronteiriças e desfazem as coerências que até o momento se apresentaram a nosso agir quotidiano como transcendentalmente necessárias. De um lado, o ser orgânico que cresceu naturalmente se funde com o ser produzido de forma técnica; de outro, a produtividade do intelecto humano separa-se da subjetividade vivenciada.” Assim, por exemplo, doenças monogênica sugerindo que os pais tenham o poder de autorizar a intervenção, partindo do pressuposto de que a pessoa potencial preferiria não ter uma doença que levaria a uma expectativa de vida reduzida ou uma vida de grande sofrimento tratando-se, portanto, de uma presunção de consentimento informado. Contudo, o autor posiciona-se contrário as melhorias genéticas que seriam as hipóteses onde se busca o aperfeiçoamento da célula embrionária, sob pena de ofender a moral e o respeito à humanidade e autonomia das pessoas. Habermas sustenta, ainda, que na intervenção genética há a figura do programador e do programado e questiona a questão da moralidade na intervenção genética. Para o autor, o programador ao impor suas preferências sobre uma pessoa em potencial, acaba por tratá-lo como um objeto, ao invés de tratá-lo como um sujeito, um indivíduo autônomo. Desta forma, ao impor a outrem uma decisão sobre sua composição genética de acordo com suas preferências, restringe sua capacidade como pessoa de auto-realizar, sendo esta atitude de dominação, de instrumentalização. Por outro lado, o programado, ou seja, a pessoa manipulada geneticamente pelo programador, teria sua capacidade reduzida de ser a pessoa que efetivamente seria, caso não houvesse a intervenção humana. Isso geraria, certamente, uma mudança na autonomia e poder de decisão do próprio indivíduo. Portanto, Habermas aponta que não seria moralmente aceitável alguém alterar o genoma das gerações futuras uma vez que ao permitir que alguém assim o faça, estaria infringindo a autonomia, igualdade e poder de decisão que deve existir entre todos os membros de uma comunidade. 4. CONCLUSÃO. À guisa de conclusão, seguindo os passos de Habermas, o mesmo nos apresenta uma análise extremamente densa sobre as implicações correlatas à utilização das novas tecnologias em intervenções e formas assistidas de reprodução. Articula a problemática da ética da espécie humana aos contornos da prática tecnológica, enfileirando polêmicas em torno da disponibilidade dos recursos genéticos para fins de instrumentalização do corpo humano; redundando na alteração de suas qualidades originais. Coloca em xeque a existência de uma concepção natural de homem, no futuro, apontando os potenciais eugênicos que subjazem as estratégias biotecnológicas de programação de seres humanos. Aduz pelo esmaecimento das fronteiras que separam o humano do não-humano, assim como a possibilidade anunciada pela tecnociência de redução do gene humano a um código entre outros redundarão no rompimento da idéia de humanidade. A partir desse paradigma, situa os riscos frente às práticas eugênicas, quanto a nossa capacidade de auto-compreensão, como membros de uma mesma espécie, e por conseqüência, adstritos a um mesmo contexto discursivo, entre pessoas iguais. Dai a inserção da Bioética e do Biodireito, a balizar os comportamentos fundando um arcabouço ético próprio. Aduz, finalmente, que o processo de hetero-determinação, a partir de uma eugenia liberal, idealizada por valores de mercado, determinará alteração de nossa auto-compreensão ética da espécie, de tal modo que não mais nos poderemos reconhecer como autores únicos de nossa própria vida, e sim produtos da intervenção de terceiros. Prática essa que irá destroçar a noção de indisponibilidade da vida humana; bem como, a manutenção de condições igualitárias de comunicação entre os seres morais, como garantia da auto-compreensão da espécie.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/a-eugenia-liberal-a-partir-do-pensamento-de-habermas/
Bioética, biodireito e meio ambiente
A ética é a ciência da boa convivência dos humanos entre si e com a natureza. O princípio básico da ética é o respeito às pessoas e à natureza. É o respeito ao direito e à dignidade das pessoas e dos outros seres vivos. Assim, temos que a bioética nada mais é do que a conduta humana adequada para que se possa viver em harmonia, preservando a dignidade da pessoa. É o reconhecimento do valor ético na vida humana. A reflexão sobre a conduta ética e as práticas sociais, em um contexto marcado pela amoralidade e a degradação acelerada do meio ambiente, faz com que estudemos a Bioética (conduta ética em relação à vida), o Biodireito (positivação das normas sugeridas pela Bioética) e o Meio Ambiente. O Biodireito é um ramo do Direito Público que se associa a bioética, assim um depende do outro para que seja compreendido. Temos que o Biodireito é a positivação das normas bioéticas. Estamos em constante busca pelo conhecimento e é necessário que se tenha ética para que possamos saber os limites do que vem a ser “certo” e “errado”, é necessário de uma regulamentação, assim a bioética diz quais são os limites e o biodireito as regulas. É preciso que haja uma ética ambiental, que nada mais é do que o estudo dos juízos de valor da conduta do homem em relação ao meio ambiente. Assim, o presente estudo tem como objetivo definir o que vem a ser a Bioética e o Biodireito, fazendo um paralelo com o Meio Ambiente.
Biodireito
INTRODUÇÃO A Bioética é uma ciência que busca preservar a dignidade humana de acordo com princípios que levam a uma conduta ética em relação à vida, para que haja uma harmonização entre os seres. Ela é dividida em Macrobioética e Microbioética, nos adentraremos em relação à Macrobioética, pois ela busca o estudo de questões ambientais e a preservação da vida humana. O Biodireito é um ramo do Direito Público que se associa a bioética, assim um depende do outro para que seja compreendido. Temos que o Biodireito é a positivação das normas bioéticas. O conjunto de leis positivas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos mandamentos bioéticos, é o Biodireito. É a positivização das normas sugeridas pela Bioética. Os principais princípios são o da autonomia, beneficiência, não-maleficência, justiça e o da dignidade da pessoa humana. Adentraremos-nos na importância do meio ambiente, na busca de um ideal do que vem a ser um meio ambiente saudável e equilibrado, a definição de meio ambiente está prevista no art. 3º, I a Lei no 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), que o define como sendo: “o conjunto de condições, leis, influencias, alterações e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. A partir dessa definição podemos concluir que o meio ambiente é tudo aquilo que nos circunda, ou seja, temos o meio ambiente, natural, cultural, artificial e do trabalho. 1 BIOÉTICA 1.1 Conceito e Seus Problemas O referencial fundamental da Bioética é preservar a dignidade humana de acordo com princípios que apontem para uma conduta ética em relação à vida. A ética é a ciência da boa convivência dos humanos entre si e com a natureza. O princípio básico da ética é o respeito às pessoas e à natureza. É o respeito ao direito e à dignidade das pessoas e dos outros seres vivos, assim como o respeito a todos os componentes do universo, mesmo os minerais amorfos. A convivência perfeita provavelmente é uma utopia, mas um objeto desejável é que a Ética cada vez mais a permeie. A bioética é multidisciplinar, é uma inegável dimensão social, o que a obriga a situar-se em zonas de interseção de vários saberes nomeadamente das tecnociências (sobretudo a biologia e a medicina), das humanidades (filosofia, ética, teologia, psicologia, antropologia), ciências sociais (economia, politologia, sociologia, impactos sociais) e outras disciplinas como o direito. Temos que a Bioética, em um primeiro momento, “como uma ramificação da Ética, preocupada particularmente com o respeito aos valores morais, na medida em que questiona à dignidade humana, em meio ao progresso das ciências”. (Regina Fiuza Sauwen & Severo Hryniewicz, O Direito “in vitro”, p.7). E em seguida, a Bioética fala a qualquer pessoa, tendo em vista que: “É um estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, na área das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular”. (ibid., p.10). A ética é algo que deve ser aplicado no cotidiano das pessoas, ela está presente na vida do ser humano, para que se possa viver em sociedade e com dignidade é necessário que haja uma conduta ética, principalmente por parte do ser humano. “A reflexão bioética nada mais é do que um antigo esforço em reconhecer o valor ético da vida humana. Tendo por fim a cidadania plena, ela se consolida mediante a incorporação dos direitos de quarta geração e de quinta geração” (N. Bobbio, Era dos Direitos). Assim, a bioética “estuda a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida.” (Leo Pessini e Christian Barchifontaine, Fundamentos da bioética, p.11). Estamos em constante busca pelo conhecimento e é necessário que se tenha ética para que possamos saber os limites do que vem a ser “certo” e “errado”, é necessário de uma regulamentação, assim a bioética diz quais são os limites e o biodireito os regulas. Temos que a Bioética divide-se em Macrobioética e Microbioética, sendo a macrobioética é a área que estudas as questões ambientais e abordas as matérias como a ecologia, educação ambiental, entre outras, ou a medicina sanitária, dirigida para a saúde de determinadas comunidades ou populações. E a microbioética é voltada basicamente para o relacionamento entre os profissionais de saúde e os pacientes.  1.2 Princípios Básicos Os princípios considerados básicos da Bioética são: autonomia, beneficiência, não-maleficência e a justiça. A beneficiência e a não- maleficência andam juntas, a beneficiência está ligada como o bem da pessoa é o objetivo principal. Quer seja na assistência ou na pesquisa científica, o bem da pessoa é prioritário em relação aos interesses da ciência ou da sociedade. A não-maleficência obriga evitar dano à pessoa, mesmo sabendo que em princípio a conduta envolvendo o ser humano seria benéfica. A beneficiência e não-maleficência são deveres independentes e condicionais (ou não-absolutos), eles são princípios da ética, fundamentais e independentes. O princípio da autonomia expressa-se como princípio de liberdade moral, que pode ser assim formulado: todo ser humano é agente moral autônomo e como tal deve ser respeitado por todos os que mantêm posições distintas, nenhuma moral pode impor-se aos seres humanos contra os ditames de sua consciência. Ou seja, é o respeito à pessoa na sua integridade. Para isso ela deve ser responsável pelos seus atos e por suas escolhas. A Constituição Brasileira assegura o direito à autonomia a todos os cidadãos ao incluir a determinação de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E o Código Penal Brasileiro exige o respeito a esse direito ao punir, em seu artigo 146, aquele que constranger outrem a fazer o que a lei não manda ou a deixar de fazer o que a lei manda. Essa nossa legislação penal, coloca, porém, uma exceção à autonomia: quando se trata de caso de iminente perigo de vida ou para evitar suicídio, o constrangimento da vítima deixa de ser crime. Em outras palavras, a nossa legislação garante ao cidadão o direito à vida, mas não sobre a vida; ele tem plena autonomia para viver, mas não para morrer. A justiça caracteriza-se pela justa distribuição dos bens e serviços de forma universalizada e igualitária. 2 BIODIREITO 2.1 Conceito O Biodireito é um ramo novo do Direito, ele engloba os direitos de quarta geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos cada vez mais traumáticos dos avanços tecnológicos na biomedicina, nos quais se quer fundamentar a esperança de construção de uma nova humanidade. Ele é o ramo do Direito Público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia; peculiaridades relacionadas ao corpo, à dignidade da pessoa humana. O Biodireito se associa a Bioética, ao Direito Penal, ao Direito Civil, Direito Ambiental e ao Direito Constitucional. “A esfera do Biodireito é um campo em que se caminha sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a pessoa ou a espécie humana”. (v. SAUWEN &HRYNIEWICZ, ob. cit., p.17). Temos que o Biodireito é a positivação -ou a tentativa de positivação- das normas bioéticas. Seria, portanto, a positivação jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de sanções pelo descumprimento destas normas. Biodireito é um termo que pode ser entendido, também, no sentido de abranger todo o conjunto de regras jurídicas já positivadas e voltadas a impor -ou proibir- uma conduta médico-científica e que sujeitem seus infratores às sanções por elas previstas. No REsp 1144720 / DF o STJ decidiu que o Biodireito é o direito a saúde. Pode-se dizer de forma mais concisa que Biodireito é o conjunto de leis positivas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos mandamentos bioéticos, e, ao mesmo tempo, é a discussão sobre a adequação -sobre a necessidade de ampliação ou restrição- desta legislação. “Biodireito, por fim, é a ciência jurídica que estuda as normas jurídicas aplicáveis à bioética e à biogenética, tendo a vida como objeto principal, não podendo a verdade científica sobrepor-se à ética e ao direito nem sequer acobertar, a pretexto do progresso científico, crimes contra a dignidade humana nem estabelecer os destinos da humanidade.” (Maria Helena Diniz, O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2001, p.8). Ele deve estabelecer normas rígidas, fundadas na bioética, para se evitar o abuso por parte dos cientistas responsáveis pela manipulação genética, limitando-se sua atuação nas ciências da vida contra as agressões à dignidade da pessoa humana. 2.2 O Papel das Leis As leis servem para justificar algumas práticas, de modo que evitem demandas judiciárias e eliminem interpretações comprometedoras ou socialmente inaceitáveis. Temos que, sem lei, nada está fora da lei e tudo é possível, ou seja, tudo que não é proibido é permitido. O Direito implica valores, assim uma lei aborda algum valor, seja ele dominante ou não na sociedade. Por isso a lei é sempre invocada; não só porque as leis servem como “meios” perante as finalidades que são os valores, mas e sobretudo porque sua ocorrência é expressão inquestionável de segurança, de sua determinação via normativa, como parâmetro de conduta a ser observada por todos. O direito procura organizar a conduta de cada um no respeito e promoção dos valores que servem de base à civilização. Com isso a lei é a maneira pela qual o Biodireito se exterioriza, fazendo com que a população “obedeça”. Ela se revela um instrumento maleável para regular questões relativas à bioética. Ela deve interferir rapidamente, se ajusta às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de vasto debate parlamentar, vem coberta de legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social. No Brasil temos como exemplos de leis que regulam a bioética e o meio ambiente como a Constituição Federal (em seu art. 225), a Lei 8.723/93 (alterada pela Lei 10.696/03, que dispõe sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores); Lei 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos); Lei 9.795 (Política Nacional de Educação Ambiental); temos inúmeras leis que regulam como deveria ser uma conduta ética do ser humana em relação ao meio ambiente. Assim, temos que, a lei é o instrumento privilegiado para o desenvolvimento das ciências da vida, pois ela pode intervir rapidamente e se aplica a todos. 2.3 Princípios Além dos princípios já mencionados em relação à Bioética, podemos acrescentar o princípio da ubiqüidade, o da dignidade da pessoa humana e da preservação da espécie humana. O princípio da ubiqüidade esta no âmbito do Direito Ambiental, tem-se que, pelo princípio da ubiqüidade, o bem ambiental é onipresente, de forma que uma agressão ao meio ambiente em determinada localidade é capaz de trazer reflexos negativos a todo o planeta Terra e, conseqüentemente, a todos os povos e a todos os indivíduos, não só para os membros da espécie humana, mas para todas as espécies habitantes do planeta. No âmbito do nascente Biodireito, o princípio da ubiqüidade quer dizer que o direito ao patrimônio genético da humanidade enquanto espécie é também onipresente, de forma que deve-se preservar, a qualquer custo, a manutenção das características essenciais da espécie humana. O Princípio da Preservação da Espécie Humana é uma transposição para o âmbito do Biodireito do princípio ambiental do desenvolvimento sustentável. Quanto ao desenvolvimento sustentável do Direito Ambiental, que tratar-se de um duplo direito: o direito do ser humano de desenvolver-se e realizar as suas potencialidades, quer individual quer socialmente, e o direito de assegurar aos seus pósteros as mesmas condições favoráveis. Neste princípio, talvez mais do que em outro, surge tão evidente a reciprocidade entre direito e dever, porquanto o desenvolver-se e usufruir de um Planeta plenamente habitável não é apenas direito, é dever precípuo das pessoas e da sociedade. Direito e dever como contrapartidas inquestionáveis. Assim, na esfera do Biodireito, este princípio significa que o ser humano é livre para realizar as pesquisas que julgue úteis para seu aprimoramento enquanto espécie, sem, entretanto, esquecer-se, jamais, de sua responsabilidade perante as futuras gerações, o que implica no dever de preservação das características essenciais da espécie humana, impondo-se limites objetivos às experimentações científicas que sejam capazes de alterar o ser humano, não apenas como indivíduo, mas também enquanto espécie. Tal princípio seria uma conseqüência lógica necessária dos princípios da dignidade humana e da sacralidade da vida, de forma que sustentar-se a dignidade da pessoa humana e a sacralidade da vida não teria sentido se não se garantisse, ao mesmo tempo, a preservação da espécie humana. Para o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a vida humana deve ser, sempre, respeitada e protegida contra agressões indevidas. Trata-se de se respeitar a vida, decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual considera o ser humano como valor em si mesmo. Para os juristas Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha, o princípio da dignidade da pessoa humana: “[…] é o principal norteador da bioética, na medida em que consideram a vida como sagrada e inviolável. Neste sentido, não se justifica a causa do sofrimento e da dor desnecessária, a imputação de um ônus superior ao que a pessoa possa suportar, ainda que, por decisão sua, mesmo para a realização de pesquisas ou qualquer atividade científica. Combate-se assim, a consideração do homem como objeto, como uma ‘coisa’, a favor da compreensão da vida humana como algo sagrado, intangível. Ainda que fora dos aspectos teológicos que a questão envolve, a expressão ‘sagrado’ não necessariamente estará ligada a Deus, mas sim ao caráter inviolável de seu objeto […] a vida humana não pode ser sacrificada em prol da ciência, e da experimentação […]” 3 MEIO AMBIENTE 3.1 Conceito O art. 3º, I a Lei no 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), define o meio ambiente como sendo: “o conjunto de condições, leis, influencias, alterações e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. José Afonso da Silva, conceitua meio ambiente como: “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. (Direito Ambiental Constitucional, São Paulo, Malheiros Ed. 1998, p.2). O conceito de meio ambiente dado pela Política Nacional do Meio Ambiente foi recepcionado pela CF/88, pois a Lei Maior buscou tutelar não só o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural e o do trabalho. O art. 225 da CF/88 aduz que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”. Com isso temos que o legislador estabeleceu dois objetivos na tutela ambiental: “um imediato, que é a qualidade do meio ambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população, que se vêm sintetizando na expressão da qualidade de vida”. (José Afonso da Silva, Direito Constitucional ambiental, São Paulo, Malheiros Ed., 1994, p.54). Para o Supremo Tribunal Federal o meio ambiente é de titularidade coletiva, assim ele pertence à coletividade social, sendo um direito fundamental indisponível, é nesse sentido que o STF se manifesta, in verbis: “O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-1995, Plenário, DJ de17-11-1995.) grifos da autora. Por fim, temos que o meio ambiente relaciona-se a tudo aquilo que nos circunda, sendo um dos valores fundamentais indisponíveis. 3.2 Ética Ambiental A ética ambiental é amparada pela Constituição Federal ao estabelecer que: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225, caput, da CF). Com isso, a Constituição Federal consagra uma tutela de proteção ao meio ambiente, impondo a todos que é dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, e para que isso ocorra é necessário uma conduta ética por parte das pessoas. A ética ambiental nada mais é do que o estudo dos juízos de valor da conduta do homem em relação ao meio ambiente.  “O desenvolvimento de uma Ética Ambiental nos levará, inexoravelmente, para mudanças de estilo de vida e de civilização, a partir de atos corriqueiros e “inconscientes” do dia-a-dia, como passear de automóvel, dar destino ao lixo e às embalagens, usar água e energia elétrica. Sem dúvida, muitas outras formas de vida e de consumo serão naturalmente colocadas em questão, atingindo a economia global.” (Peter Singer, Ética prática, 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.295). É a partir de pequenas atitudes que temos uma conduta ética e que se tomadas a partir do dia-a-dia das pessoas farão bastantes diferenças em nossas vidas e onde estamos, no ambiente em que vivemos, é necessário mudanças no estilo de vida, uma consciência ambiental, pois é preciso preservar para que ele continue apto saudável. 3.3 Princípios O meio ambiente é protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil, assim temos que ela prevê alguns princípios que regem o direito ambiental, quais sejam: ubiqüidade, desenvolvimento sustentável, prevenção, dentre outros. O princípio da ubiqüidade vem evidenciar que o objeto de proteção do meio ambiente, localizado no epicentro dos direitos humanos, deve ser levado em consideração toda vez que uma política, atuação, legislação sobre qualquer tema, atividade, obra etc. tiver que ser criada e desenvolvida. Isso porque, na medida em que possui com ponto cardeal a tutela constitucional a vida e a qualidade de vida, tudo que se pretende fazer, criar ou desenvolver deve antes passar por uma consulta ambiental, enfim, para saber se há ou não a possibilidade de que o meio ambiente seja degradado. Ou seja, visa demonstrar qual é o objetivo de proteção ao meio ambiente. “Os recursos ambientais não são inesgotáveis, assim o princípio do desenvolvimento sustentável tem como base a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à disposição.” (Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria, Biodiversidade e patrimônio genético no direito ambiental, São Paulo, Max Limonad, 1999, p.31). Os recursos ambientais tendem a se acabar, se não houver uma preservação ou uma conscientização que é preciso mudar o modo de vida, por isso o princípio do desenvolvimento sustentável é de suma importância para o meio ambiente. O princípio da prevenção está expressamente previsto na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), que diz:  “para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente”. Esse princípio é tido como um dos mais importantes que norteiam o direito ambiental. O próprio STF em seus informativos aborda a importância do princípio prevenção para se ter um meio ambiente saudável, trago a baila um dos julgados, nesse sentido, in verbis: “O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada pelo Presidente da República, e declarou inconstitucionais, com efeitos ex tunc, as interpretações, incluídas as judicialmente acolhidas, que permitiram ou permitem a importação de pneus usados de qualquer espécie, aí insertos os remoldados. Ficaram ressalvados os provimentos judiciais transitados em julgado, com teor já executado e objeto completamente exaurido (…).” (ADPF 101, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 24-6-2009, Plenário, Informativo 552). “A relatora, ao iniciar o exame de mérito, salientou que, na espécie em causa, se poria, de um lado, a proteção aos preceitos fundamentais relativos ao direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cujo descumprimento estaria a ocorrer por decisões judiciais conflitantes; e, de outro, o desenvolvimento econômico sustentável, no qual se abrigaria, na compreensão de alguns, a importação de pneus usados para o seu aproveitamento como matéria-prima, utilizada por várias empresas que gerariam empregos diretos e indiretos. (…) Na sequência, a Min. Cármen Lúcia deixou consignado histórico sobre a utilização do pneu e estudos sobre os procedimentos de sua reciclagem, que demonstraram as graves consequências geradas por estes na saúde das populações e nas condições ambientais, em absoluto desatendimento às diretrizes constitucionais que se voltam exatamente ao contrário, ou seja, ao direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Asseverou que, se há mais benefícios financeiros no aproveitamento de resíduos na produção do asfalto borracha ou na indústria cimenteira, haveria de se ter em conta que o preço industrial a menor não poderia se converter em preço social a maior, a ser pago com a saúde das pessoas e com a contaminação do meio ambiente. Fez ampla consideração sobre o direito ao meio ambiente – salientando a observância do princípio da precaução pelas medidas impostas nas normas brasileiras apontadas como descumpridas pelas decisões ora impugnadas –, e o direito à saúde. (…) A relatora, tendo em conta o que exposto e, dentre outros, a dificuldade na decomposição dos elementos que compõem o pneu e de seu armazenamento, os problemas que advém com sua incineração, o alto índice de propagação de doenças, como a dengue, decorrente do acúmulo de pneus descartados ou armazenados a céu aberto, o aumento do passivo ambiental – principalmente em face do fato de que os pneus usados importados têm taxa de aproveitamento para fins de recauchutagem de apenas 40%, constituindo o resto matéria inservível, ou seja, lixo ambiental –, considerou demonstrado o risco da segurança interna, compreendida não somente nas agressões ao meio ambiente que podem ocorrer, mas também à saúde pública, e inviável, por conseguinte, a importação de pneus usados. (…) Concluiu que, apesar da complexidade dos interesses e dos direitos envolvidos, a ponderação dos princípios constitucionais revelaria que as decisões que autorizaram a importação de pneus usados ou remoldados teriam afrontado os preceitos constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, especificamente, os princípios que se expressam nos arts. 170, I e VI, e seu parágrafo único, 196 e 225, todos da CF.” (ADPF 101, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-3-2009, Plenário, Informativo 538.) (grifos da autora). No julgado transcrito podemos observar uma grande preocupação na preservação da saúde do homem e do meio ambiente, pondera também que a matéria é de grande complexidade, mas é necessário que o texto constitucional seja assegurado, ou seja, o direito a saúde e um meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim é necessário que os princípios sejam seguidos. Temos que esses princípios estão relacionados diretamente com a conduta humana, assim para que possamos ter uma vida saudável é necessário que tenhamos uma conduta ética em relação ao meio ambiente em que vivemos, pois é necessário que ele seja adequado e que tenhamos educação ambiental. 4 RELAÇÃO ENTE O BIODIREITO, BIOÉTICA E MEIO AMBIENTE Precisamos encontrar um equilíbrio entre o indivíduo, sociedade e o meio ambiente, visando estabelecer quais seriam os limites para a ciência evoluir, paralelamente ao anseio do mundo por uma melhor qualidade de vida para a espécie humana, inter-relacionada com a fauna, flora e o ecossistema, é a função reservada à bioética. É a busca pelo ideal de uma convivência harmônica, com o objetivo de se ter uma sadia qualidade de vida, preservando o meio ambiente, pois o “homem é o produto do meio em que vive”. Claire Neirink, em sua obra De la bioétique, 1994, P.153, diz que: “o Direito não pode ignorar os avanços da ciência e ainda deve integrá-los à sociedade como elemento útil à promoção dos valores a serem a base da civilização”. Assim, temos que o Biodireito é o meio pelo qual pode-se intervir na aplicabilidade das técnicas utilizadas pelo ser humano, que para legitimá-las, quer para proibir ou regulamentar outras, pois o progresso científico tem inquestionavelmente uma incidência jurídica. O Biodireito é a regulamentação da bioética, e para que tenhamos um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futuras e presentes gerações é necessário que seja aplicado o Biodireito, de forma que possamos ter uma melhor qualidade de vida. Um depende do outro. CONCLUSÃO A ética é a ciência da boa convivência dos humanos entre si e com a natureza. O princípio básico da ética é o respeito às pessoas e à natureza. É o respeito ao direito e à dignidade das pessoas e dos outros seres vivos. Assim, temos que a bioética nada mais é do que a conduta humana adequada para que se possa viver em harmonia, preservando a dignidade da pessoa. É o reconhecimento do valor ético na vida humana. O ser humano precisa de algo que o regule, pois “tudo que não é proibido é permitido”, assim temos algumas leis para regular a conduta humana, sendo essas leis e o comportamento humano regulado pela disciplina do Biodireito. Ele é a exteriorização da Bioética, ou seja, cada um depende do outro, pois a Bioética não teria praticidade se não existisse algo que a regulamentasse. O meio ambiente é o conjunto de todos os elementos que existem de modo que se tenha uma vida equilibrada, havendo uma harmonização entre eles. Para que haja uma interligação entre a bioética, o biodireito e o meio ambiente existem alguns princípios que devem ser utilizados, sendo eles comuns, assim pode-se ter uma vida saudável e em harmonia com o resto do meio ambiente, concluímos que as pessoas tem que fazer a sua parte para que se possa ter um meio ambiente saudável e equilibrado, para as futuras e presentes gerações, algo que está previsto no art. 225 da Constituição Federal. O meio ambiente é protegido pela Constituição Federal e pela Legislação, com isso, para que possamos ter um meio ambiente saudável é preciso que haja ética ambiental (nada mais é do que o estudo dos juízos de valor da conduta do homem em relação ao meio ambiente). Assim, temos que é preciso uma ação interligada do Biodireito, Bioética e Meio Ambiente. O Biodireito é o direito a saúde, assim para que se possa ter uma vida saudável (saúde) é necessário que se tenha um meio ambiente equilibrado. Elas são disciplinas que dependem uma da outra e é necessário que as pessoas tenham mais ética e consciência de sua ações, para que possamos ter um meio ambiente adequado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/bioetica-biodireito-e-meio-ambiente/
A anencefalia e o princípio da dignidade da pessoa humana no regime neoconstitucional brasileiro
A anencefalia causa deformidades irreversíveis no sistema nervoso do feto, ainda na fase de formação, impedindo o desenvolvimento do cérebro e de duas estruturas acessórias. A Medicina já permite a descoberta precoce do mal, assim, é justo o pedido de antecipação terapêutica do parto. A solução jurídica aponta para este caminho, mesmo porque envolve a análise do princípio da dignidade da pessoa humana que será atingida com a continuidade da gestação.
Biodireito
1 Da anencefalia A humanidade, de um modo ou de outro, sempre guardou especial preocupação com a perfeição física. Tais cuidados já chegaram a extremos reprováveis, mas a rejeição ao que não é belo, ou não coaduna com determinados padrões sociais pré-fixados é uma questão antropológica que parece arraigada no DNA humano. Nessa linha, desde priscas eras o homem rejeita as anomalias, de modo mais, ou menos drástico. Inicialmente, a questão resolvia-se no plano do divino. Apenas Deus, ou os deuses, poderiam justificar o nascimento de uma criança que fugisse aos escorreitos padrões de perfeição social. Na Grécia e Roma antigas a mitologia respondia estas questões rapidamente, inclusive com criação de seres míticos extraordinários. Na cultura helênica era comum a existência de seres híbridos resultantes da união de humanos com animais reunindo virtudes e defeitos de ambos. São exemplos notáveis: os centauros (metade cavalo), o minotauro (metade touro), os sátiros (metade bode) e as sereias (metade peixe). Ademais, invariavelmente a responsabilidade pela anomalia era atribuída à mulher, decorrência direta da sociedade patriarcal. Da união destes elementos emerge a secular condição repressiva que paira sobre as mães e perturba-as permanentemente. Esse pensamento perpetuou-se no tempo permeando as tradições populares. Apenas em meados do século XIX com o desenvolvimento das ciências médicas impulsionado pela Revolução Industrial foi possível jogar luzes sobre o caso. Os estudos passaram a ser realizados diretamente com as pacientes e o corpo humano pode ser devassado, possibilitando o conhecimento das estruturas orgânicas internas de modo mais apropriado. A obstetrícia prosseguia, entretanto, um passo atrás nesse avanço por envolver os recônditos do corpo feminino em uma sociedade que se ligava umbilicalmente ao pudor. Nesse período, continuava em voga a atividade das parteiras, o médico só era consultado em última hipótese. O progresso científico continuou timidamente na primeira metade do século XX, mas acelerou seu desenvolvimento espetacularmente após a 2ª Guerra Mundial. Na ocasião o mundo em frangalhos precisava ser reconstruído e o acesso ao saber científico era uma das formas mais lucrativas de fazê-lo. Não bastasse isso, as descobertas até então utilizadas apenas para fins bélicos, passaram a ter função mais nobre, servindo à medicina. Nesse grupo, adentram os exames de diagnóstico por imagem realizados com certos produtos radioativos ou com tecnologias militares. O correto aproveitamento dos conhecimentos oriundos da guerra propiciou avanços desmesurados nos exames de imagem. O avanço tecnológico associado à pesquisa resultou em um enorme desenvolvimento da obstetrícia, neste momento as anomalias fetais iniciaram a transição da crendice popular centrada na punição divina e passaram à seara das patologias.  “Os progressos na tecnologia da ultra-sonografia têm contribuído para aumento da detecção de fetos com anomalias estruturais em populações de baixo risco, tornando-se paulatinamente parte da rotina dos cuidados pré-natais. O exame de ultra-sonografia permite identificar diretamente alterações morfológicas individuais, sinais indiretos relacionados (crescimento fetal restrito e alterações do volume de líquido amniótico, entre outras), além das malformações associadas, que apresentam estreita correlação com quadros sindrômicos”. (BARINI, 2002) A importância desse saber centra-se na possibilidade palpável de minorar os danos ao feto e a mãe, e aumentar a qualidade de vida de ambos. Para muitos, entretanto, oculta por trás dos fins nobres da medicina, encontra-se a centelha abortiva da eugenia. Na realidade, é inquestionável que os avançados métodos permitem a descoberta precoce de inúmeras doenças, algumas das quais, como será visto à frente, levarão, inevitavelmente, o feto ao fenecimento. “Grande parte das doenças e deficiências diagnosticadas pelas técnicas modernas de diagnóstico pré-natal não possui tratamento ou cura, o que faz com que, nos casos mais graves e limitantes, as mulheres desejem a interrupção seletiva da gestação. No Brasil, raríssimas são as mulheres grávidas que, diante de um diagnóstico de má-formação fetal incompatível com a vida, não buscam apoio médico e jurídico para interromper a gestação”. (DINIZ,2003) Nesses casos, em que a antecipação do parto significará apenas o encurtamento de um processo irreversível, não se pode falar em aborto ou eugenia. O que se busca não é a destruição de uma vida (o feto não tem condições biológicas de sobreviver em ambiente externo ao útero) e menos ainda o aprimoramento genético. 1.1 Conceito médico A anencefalia é definida com propriedade por Gisleno Feitosa (2006, p. 18): “Consiste na ausência parcial ou completa da abobada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com diversos graus de má formação e destruição dos rudimentos cerebrais. Em suma, anencefalia significa ‘sem encéfalo’, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa craniana”. José Aristodemo Pinotti, por seu turno, informa que: “A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese” (PINOTTI, 2004). Assim, pode-se dizer, valendo-se da própria etimologia da palavra[1], que a anencefalia é uma doença congênita caracterizada pela ausência, completa ou parcial, dos tecidos encefálicos (cérebro com seus hemisférios e o cerebelo), comumente associada à deficiência de certos nutrientes, mormente ácido fólico. Ademais, é válido esclarecer que em decorrência do não-fechamento do tubo neural, o anencéfalo, não desenvolve o couro cabeludo, a calota craniana (ossos frontal, occipital e parietal) e as meninges. Por conta da ausência de completude das estruturas corpóreas “já se disse que o feto anencéfalo possui a aparência de uma rã, na medida em que é totalmente falto da calota craniana e da cobertura das demais estruturas neurológicas” (PIERANGELI, 2008, p. 40). A patologia é facilmente identificada e isso é possível ainda nos primórdios da gestação. “Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese” (PINOTTI, 2004). Embora indubitável a facilidade de identificação dos episódios de anencefalia é importante ter em mente que a caracterização da doença não está completa e, portanto, torna-se cabível uma análise expansionista do termo. “É também importante consignar que, ao contrário do que o termo possa sugerir, a anencefalia não caracteriza somente casos de ausência total do encéfalo, mas sobretudo casos onde observa-se graus variados de danos encefálicos. A dificuldade de uma definição exata do termo baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma má-formação do tipo ‘tudo ou nada’, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma má-formação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível” (ANALAFT, 2011). Há que se observar que os anencéfalos possuem características físicas bem peculiares que refletem fielmente a ausência dos tecidos cerebrais. Desse modo, os portadores da patologia possuem aparência semelhante a anfíbios, com os olhos saltados das órbitas e o crânio achatado, devido à ausência de alguns ossos, com a exposição da parte do cérebro que se desenvolveu ou do deformado tronco neural. 1.2 Inviabilidade do feto A ausência da completude do sistema nervoso no feto anencéfalo por si só é suficiente para inviabilizar a sobrevivência da criança. Mesmo que resista ao parto a sobrevida reduz-se a poucos instantes. “A maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado” (PINOTTI, 2004). Por outro lado, também, não existe qualquer possibilidade de reversão do quadro, tendo em conta que inexiste nas ciências tratamento capaz de obrar tal milagre. “Partimos da única certeza moral comum a todos nós: a do momento da morte. Um feto com anencefalia é um feto morto, ou potencialmente morto momentos após o parto. O feto não resiste mais do que minutos ou horas, assim como não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro” (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DA BAHIA, 2004, p. 32). Dessa maneira, a interrupção da gravidez tornar-se-ia apenas a antecipação de resultado inevitável de maneira menos traumática. Assim, as especificidades do caso não têm o condão de regularizar ou fomentar o aborto eugênico. “É inaceitável que a prática do aborto seja utilizada como método contraceptivo, mas em casos de anencefalia é hipocrisia proibi-lo. Pois deve-se levar em conta o bem estar e a segurança da gestante, já que a vida do feto é inviável. O ideal seria a possibilidade da mulher optar pela interrupção ou não da sua gravidez”.  (TAVARES FILHO, 2009) A complexidade da questão avulta-se quando se tem em mente o conceito de morte empreendido pela lei reguladora dos transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, qual seja, a morte cerebral. Adotada essa ideia ter-se-ia que o anencéfalo sequer possuiu vida, diante da completa ausência de atividade cerebral. Esta corrente de pensamento causa horror nos religiosos e é refutada fortemente. “A morte cerebral é sinal indicativo de morte humana, mas no caso do bebê, não. A criança com anencefalia não está morta, pois o tronco cerebral está presente nos fetos com anencefalia e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero materno. Além disto, as tentativas de declarar morta uma criança com anencefalia representa mais um passo na progressiva aceitação de algo menos que a morte legal para o objetivo de angariar órgãos transplantáveis”. (BARTH, 2011) Muitos defensores do direito de nascimento dos anencéfalos, alegam que após o fenecimento seria possível a retirada dos seus órgãos e tecidos para beneficiar outras crianças. A medida seria humanitária não apenas pela simples doação, mas, principalmente, por ser muito difícil a captação de órgãos para crianças nos primeiros anos de vida. Contudo, essa decisão cabe apenas aos pais da criança, desse modo, a decisão anterior no sentido do encerramento da gestação, já anteciparia o posicionamento a ser empreendido quanto ao aproveitamento dos órgãos e tecidos do bebê falecido. 2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A preocupação com a preservação da dignidade inerente ao ser humano não é uma novidade, na realidade, a externalização de tal compromisso tem sua gênese comumente associada ao desenvolvimento ao desenvolvimento dos princípios da doutrina cristã. Durante, muitos anos o dogma cristão manteve-se à margem dos textos legais estando presente na sociedade, muito mais como uma obrigação moral do que uma imposição do Estado. Pertinente observar que: “(…) uma das mais significativas tentativas de se elevar o ser humano a dogma constitucional surgiu com a eclosão da Constituição da República Italiana de 27.12.1947, eis que no intróito do seu art. 3°, dentro do âmbito dos Princípios Fundamentais, restou consignado que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Todavia, a doutrina atribui o pioneirismo de tal iniciativa como sendo pertencente à Lei Fundamental de Bonn, de 23.05.1949, responsável por solenizar, no seu art. 1.1., a seguinte altercação: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la” (BAHIA; PANHOZZI, 2006). O princípio da dignidade da pessoa humana é uma espécie de abre-alas da Constituição de 1988, seja porque é apresentado em seus primeiros momentos, logo no artigo 1º, seja porque, em decorrência de sua abrangência, acaba por abarcar direta e indiretamente inúmeros outros princípios constitucionais e representa com clareza o espírito defendido pela constituinte pós-ditadura. “Embora não esteja expresso no preâmbulo de nossa Constituição, é evidente que o constituinte originário elegeu a dignidade humana como valor supremo. Ora, a ideia de liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento e justiça revela a nítida pretensão de colocar a dignidade como valor máximo de nosso Texto Constitucional. Desse modo, a dignidade humana é um valor de onde flui uma série de direitos e garantias constitucionais” (LEITE, 2008, p. 54). Dessa maneira, o espírito defendido pelo legislador constituinte é o de garantir o máximo respeito a essência humana, compreendendo nessa visão toda a sua complexidade, ou seja, englobando a integridade física e psíquica, a saúde, a honra, a qualidade de vida etc. “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. (…) daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos a existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc, ao como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo eficaz da dignidade da pessoa humana”. (SILVA, 2001, p. 109)   Esse conceito expandido de dignidade da pessoa humana colocaria, no caso dos anencéfalos, em conflito os direitos do feto e da mãe e exigiria ponderação de valores para o alcance da solução plausível. “Uma classificação que se tornou corrente na doutrina é a que separa os direitos da personalidade, inerentes à dignidade humana, em dois grupos: direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e direitos à integridade moral, rubrica na qual se inserem os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre outros (…) Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro do seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”. (BRASIL, 2004) É desproporcional exigir que uma mulher mantenha-se grávida de um natimorto e tenha de levar a termo uma gestação que não pode prosperar vez que o produto da concepção possuirá sobrevida mínima. Exsurge, pois, que maior razão assiste àqueles que defendem o direito da mãe decidir se deseja ou não antecipar o parto, pois os sofrimentos a que será submetida, em caso de prolongamento da gestação, proporcionaram ataques frontais a sua dignidade seja por coibir a livre determinação, seja por não receber o necessário apoio por parte da sociedade e dos órgãos estatais. “(…) a dignidade possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação” (SARLET, 2008, p. 30). De outro modo a aplicação da regra de ponderação de interesses desenvolvida por Robert Alexy não causa qualquer enfraquecimento nestas posições. “Desta forma, percebe-se que os princípios têm estreita relação com a noção da proporcionalidade, através de suas máximas parciais ou subprincípios: adequação (a relativização do direito contrário é justificada pela proteção e realização de um outro direito igualmente importante e protegido pela ordem jurídico-constitucional – no caso em tela, a dignidade e a proteção do sofrimento da mãe como fatores que justificariam a pretensão de sacrifício da vida do feto, tal qual ocorre nos demais casos de aborto legal previstas pela legislação), necessidade (que, para a realização de um direito, faça-se, realmente necessário, o sacrifício ou relativização do direito contrário- no caso da anencefalia, por exemplo, tem-se que o sofrimento da mãe reside exatamente na manutenção da gestação, não sendo possível, a um só tempo, interromper-se a gestação e preservar a vida do feto) e proporcionalidade em sentido estrito (adequação entre meios e fins, ou seja, a restrição do direito fundamental contrario deve dar-se na intensidade mínima necessária a realização do direito em pauta, não se admitindo excessos)”. (LEAL, 2008) A interpretação amplificada do princípio da dignidade da pessoa humana por si só seria suficiente para embasar a defesa da antecipação terapêutica do parto no caso de diagnóstico de anencefalia. Contudo, a interpretação jurídica seria superficial se limitada a isto. O princípio da dignidade da pessoa humana possui uma ampla magnitude, podendo ser desdobrado em subprincípios, ou interrelacionar-se de modo profundo e duradouro com outros princípios de modo a formar uma amalgama de defesa dos interesses dos indivíduos. Por isto, alguns doutrinadores atribuem a ele o caráter de superprincípio, estando alocado acima dos demais. Essa proposta não prospera, visto que, como demonstrado alhures todos os princípios encontram-se em um mesmo nível hierárquico e os conflitos entre eles (colisões) são resolvidos no campo do caso concreto, com a ponderação de valores. Assim, diante da amplitude do princípio da dignidade humana, salutar que se proceda uma análise minuciosa de seus diferentes espectros. 2.1 dignidade da pessoa humana e o direito à vida O direito à vida é, indubitavelmente, o mais importante dentre aqueles assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro, mesmo porque, direta ou indiretamente, é o nascedouro de todos os outros direitos. Assim, hodiernamente se compreende que não é suficiente viver, é primordial que essa existência seja acompanhada de qualidade. É o entendimento de Carmem Lúcia Rocha (1998, p. 49). “A vida com justiça é que é o objeto do direito. E a vida é justa quando garantida a dignidade da experiência humana. Vida com fome não é justa nem digna. Vida com dor, também não, seja qualquer a espécie de dor que acometa o homem. A vida tocada pelo medo e pela angústia é experiência malsã, mais ainda se o desequilíbrio vem de fora”. Nesse diapasão, é inevitável o questionamento acerca da viabilidade dos fetos anencéfalos. Especialmente, quando se tem em mente que o conceito legal de morte adotado no Brasil, vincula-se, exclusivamente, à ausência de atividade cerebral. Ora, se o feto não possui encéfalo pode ser considerado ente vivo? Muitos são aqueles que respondem incisivamente: anencéfalo é necessariamente um natimorto. Desta feita, como pode haver tão forte grita em defesa do seu direito à vida? Na verdade, a revolta deveria ser apontada à natureza e não aos profissionais da saúde e da Justiça que autorizam e realizam os procedimentos necessários à antecipação do parto. Ainda assim, existem muitos, especialmente grupos religiosos, que defendem freneticamente a necessidade de respeitar o direito à vida do feto, independentemente, de sua condição corpórea. Estas pessoas lembram constantemente que o direito à vida é absoluto, seria um dom ofertado por Deus e somente poderia ser retirado por ele. Esse posicionamento é criticável, mormente, por ser claro o intuito do legislador constituinte de relativizar, em alguns casos especiais, o direito à vida.  “Com efeito, a tese que ora se sustenta também parte da premissa de que a proteção da vida se inicia no momento da concepção. Apenas afirma que a tutela da vida anterior ao parto tem de ser menos intensa do que a proporcionada após o nascimento, sujeitando-se, com isso, a ponderações de interesse envolvendo outros bens constitucionalmente protegidos, notadamente os direitos fundamentais da gestante. Neste particular, o uso da cláusula “em geral” evidencia que a proteção à vida intra-uterina deve ser concebida como um princípio e não como uma regra. Em outras palavras, e empregando a conhecida fórmula de Robert Alexy, a proteção ao nascituro constitui um “mandado de otimização” em favor de um interesse constitucionalmente relevante – a vida embrionária – sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais, e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias” (SARMENTO, 2007, p.79). Por outro lado, também há clara afronta ao direito à vida da mãe. Lembram Débora Diniz e Fabiana Paranhos (2004, p. 27): “Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à mulher grávida. Sem dúvida, e sobre isso há alguns dados levantados que são muito interessantes. Em primeiro lugar, há pelo menos 50% de possibilidade de polidrâmnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos anencéfalos, por não terem o pólo cefálico, podem indicar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nós chamamos de distócia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um acidente obstetrício na expulsão no parto do ombro, o que pode acarretar dificuldades muito grande no ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras complicações em uma gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida. A distorcia do ombro acontece em 5% dos casos, o excesso de líquido em 50% dos casos e a átona do útero em 10% a 15% dos casos.” A legislação penal traz em seu âmago hipóteses em que o direito à vida pode ser relativizado. Merecem destaque de forma geral a legítima defesa e o estado de necessidade. Entrementes, é interessante anotar a existência de casos em que o aborto está autorizado: quando houver risco de vida para a gestante e quando a gestação decorrer de estupro. Não merece maiores ponderações a primeira hipótese, vez que um trata-se de uma frontal ponderação entre duas existências. De outra banda, é salutar uma palavra acerca da gravidez decorrente de estupro. O legislador compreendeu o sofrimento que cercaria uma mãe, em ter de gerar e suster, posteriormente, uma criança que nasceu de ato violência tormentosa. Não há proporcionalidade em obrigar uma mulher a levar a cabo a gravidez produzida por seu algoz e, mais, não há mecanismo que possa fazer com que ela demonstre o mínimo afeto pela criança cuja presença pode trazer as piores recordações de sua existência. A violência sexual afasta por completo tudo o que de sublime há na gravidez. É certo, portanto, que uma vez mais, prevalecerá, indubitavelmente, o ânimo de preservar a saúde da mãe (física e psicológica), vez que não há sentido algum em colocar, mesmo que minimante, em risco a vida da gestante para garantir o parto de uma criança que possuirá sobrevida mínima. 2.2 dignidade da pessoa humana e o direito à integridade física, psíquica e moral Decorrência direta do direito à vida, o direito à integridade possui uma amplitude respeitável, abarca de uma só feita os aspectos físico, psíquico e moral. É dizer, pois que busca resguardar a pessoa humana em toda a sua complexidade. Nesse ponto, cabe um retorno ao que foi discutido alhures, ou seja, é possível reconhecer direito amplo à integridade aos fetos anencéfalos? Parece que não, pelos motivos decantados anteriormente. De outra banda é obvio que a mãe que gestaciona um anencéfalo necessita que todos os aspectos de sua integridade sejam respeitados, sob pena de sofrer um verdadeiro massacre. Lembra o Ministro Joaquim Barbosa (BRASIL, 2004): “Não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez já fadada ao insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é inquestionável. Logo, infelizmente nada se pode fazer para salvar o ser em formação. Assim, nossa preocupação deve ser para com o casal, em especial com a mãe, que padece de sérios problemas de ordem emocional ante o difícil momento porque passa.” Assevera Antonio Chaves (1999, p. 34-35): “(…) insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidades de êxito, como no caso da acrania, quando há vontade contrária da mulher, representa capricho irresponsável, que, a par do sofrimento natural, poderá ensejar risco potencial e grave comprometimento psicológico. Há, ainda, não se pode esquecer, a possibilidade de risco à saúde da mulher, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo por razões humanitárias.” É desarrazoado exigir que os pais de um feto anencéfalo suportem o fardo de acompanhar até o último instante uma gravidez que está fadada ao mais doloroso dos fracassos. Chega às raias da desumanidade obrigar uma mãe trocar as pecinhas do enxoval do bebê e seu berço, por vestes mortuárias e um féretro. Surgem daí os defensores do transplante de órgãos do anencéfalo para outras crianças. Os messiânicos diriam, inclusive, que os pequenos bebês desprovidos de encéfalo cumprem um papel divino de salvar a vida de outras crianças. Existem decisões administrativas do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e do Conselho Federal de Medicina autorizando tal procedimento. Não há dúvida de que a mãe pode optar pelo prosseguimento da gestação por um fim humanitário, mas não está obrigada a fazê-lo em hipótese alguma. Forçar esta gestação traria resultados desastrosos, pois: “(…) coisifica o corpo da mulher. Transformá-la em mera encubadora de feto anencéfalo no aguardo do transplante de órgãos atenta contra a dignidade da sua condição de mulher. Penalizá-la com a mantença da gravidez, para a finalidade exclusiva do transplante de órgãos do anencéfalo significa uma lesão à autonomia da mulher, em relação a seu corpo e à sua dignidade como pessoa (…). Cuida-se aqui do primeiro e fundamental princípio da ética laica contemporânea: aquele com base no qual nenhuma pessoa pode ser tratada como coisa, pelo que qualquer decisão heterônoma, justificada por interesses alheios aos da mulher, equivale a uma lesão do imperativo kantiano, segundo o qual nenhuma pessoa pode ser tratada como meio para fins a si alheios, mas apenas como fim de si mesma. Instrumentalizar a mulher grávida, tornando-a apenas um corpo útil para gestar um feto anencéfalo afim de que este forneça órgãos ou tecidos a terceiros necessitados é algo que ofende aos mais comezinhos princípios éticos.” (FRANCO, 2005) Mais uma vez a balança tenderá para o lado dos pais em desfavor da mantença do direito de nascer da criança. 2.3 dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade O direito à liberdade é outra conquista consolidada no Brasil. Interessante, entrementes, notar que é comumente associado à locomoção e expressão de opiniões. Essa é uma visão limitadora que deve ser rejeitada.  Na realidade, assim como os direitos relacionados à integridade corpórea, a liberdade deve ser compreendida em um sentido lato, concebendo diferentes possibilidades e resguardando de maneira maximizada o cidadão. É dizer, deve ser vista, também, como a autonomia da decisão sobre o destino a ser dado a vida, ao corpo ou mesmo à existência como pessoa humana. Nesse diapasão, não se pode deixar de reconhecer a liberdade decisória da mãe, mormente, no que se refere ao destino que deseja empregar à gestação fadada ao fracasso que desenvolve. Na verdade, a gravidez não é um fim em si mesmo, mas um processo que deve desembocar em um ser humano nascido e vivo. A falência desta premissa gera a necessária modificação das ideias que a precedem. Dessa maneira, forçando a continuidade da gravidez, além de todas as implicações apresentas anteriormente, haverá o desrespeito ao direito de a mulher dispor livremente de seu corpo. No Direito Romano, como mencionado, o feto era apontado como parte das vísceras maternas[2] cabendo a gestante decidir, sobre seu destino. Não se pretende, aqui, iniciar a defesa de condutas abortivas e liberalizantes, mas não é impossível deixar de reconhecer que a gravidez de um anencéfalo não pode ser tratada como uma gestação convencional e, como tal, deva estar submetida aos mesmos ditames de todas as demais. “Nesse sentido, impedir a antecipação do parto de um feto comprovadamente anencefálico fere o direito à dignidade da pessoa que gesta e o direito de fazer a sua livre escolha. Da mesma forma, não se trata de impor à gestante a interrupção da gravidez em caso de anencefalia, apenas busca-se que seja possível fazer a opção por levar adiante ou não essa gestação. As situações envolvendo equívocos diagnósticos acabam por confundir o que já está claramente estabelecido”. (RAYMUNDO, 2008) Assim, uma vez mais, assiste razão àqueles que defendem o direito de a mulher decidir livremente sobre a sua integridade corpórea e sobre o prosseguimento ou não da empreitada que está fada ao fracasso. EPÍLOGO A anencefalia não é uma novidade que passou a assombrar as mulheres há pouco tempo, ao inverso, desde épocas remotas a perda de um filho é um dos piores traumas a que uma mulher poderia ser submetida, tanto mais se a criança não possuir qualquer chance de sobrevivência fora do útero. O que há de novo é a chance de identificar com precisão a presença da patologia, o que possibilita a ação dos médicos com antecedência minorando os danos sofridos pela mãe. Contudo, de que adianta o avanço científico da medicina se existem outros obstáculos, às vezes, intransponíveis? Na seara jurídica não há qualquer consenso acerca dos procedimentos a serem adotados logo após o diagnóstico de um caso de anencefalia. A grita não facilita a busca de um acordo. Os partidários e os inimigos da antecipação terapêutica do parto recolhem-se às suas trincheiras e coordenam ataques mútuos. Com argumentos lógicos e sólidos foi possível provar, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana que a mulher pode decidir o futuro da gestação, quando estiver plenamente informada de que o feto não possui condições de sobrevivência após o parto. Fica claro que permissão e obrigatoriedade jamais serão sinônimos, assim, o fato de admitir-se a antecipação terapêutica do parto não quer dizer que todos as mulheres serão forçadas a adotar tal caminho. O poder de decisão que se deseja reconhecer não pode ser utilizado contra as mulheres, como um ato de violência. Ao inverso, esta possibilidade surge como respeito à dignidade individual.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/a-anencefalia-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-no-regime-neoconstitucional-brasileiro/
Análise constitucional da ortotanásia: O direito de morrer com dignidade
Nesta pesquisa realizou-se um estudo da ortotanásia e o direito de morrer com dignidade. Seu objetivo foi demonstrar, a partir de uma análise constitucional, a legalidade da prática da ortotanásia, na perspectiva do direito de morrer com dignidade, inserido no contexto de Estado Democrático de Direito. Foi realizada revisão bibliográfica bem ainda análise das legislações e atos normativos pertinentes ao estudo e relacionadas a este; os principais autores que estudaram ou estudam a ortotanásia, abarcando a origem histórica, a evolução do procedimento, e as correntes teóricas presentes no biodireito e na bioética. Foi realizada pesquisa sob o enfoque religioso e da ética médica acerca da ortotanásia. Este estudo verificou que a tendência atual é diminuir o elo de subordinação médico-paciente, conforme observado pelo novo Código de Ética Médica brasileiro, e que a ortotanásia assegura a autonomia e dignidade do paciente terminal. Por fim, concluiu-se neste estudo que a ortotanásia obedece à Constituição Brasileira, pois visa assegurar uma morte digna ao paciente terminal, permeada pela dignidade da pessoa humana, em contraposição aos tratamentos desumanos e degradantes, vedados pelo texto constitucional.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas presenciou-se um rápido avanço da Medicina e da Biotecnologia, questionando-se até mesmo a possibilidade da imortalidade humana. Neste sentido, com a modernização e a descoberta de novas técnicas, o Homem passou discretamente de ser, para coisa. Neste raciocínio coaduna Antônio Luiz Bento, ao pontuar que, “O risco iminente é aquele de transformar o ser humano sujeito num objeto e num escravo na evolução moderna da tecnologia. O momento atual é de profundas crises de humanismo e de incertezas no uso da tecnologia, que trouxe, sem dúvida, tantos benefícios, mas também preocupações, sobretudo em nível ético. Esse comportamento também corre o risco de desumanizar a medicina para deixar um lugar ao frio tecnicismo, impondo certa distância ou barreira entre o pessoal da saúde e o paciente. Ora, o progresso tecnológico jamais deverá ser motivo de danos à integridade psicofísica do ser humano, que deve ser protegida em todo ato médico” (BENTO, 2008, p.314). Falar em morte nos dias atuais aterroriza a todos, como se esperasse que a vida fosse eterna, sob o ponto de vista biológico. A cultura do corpo sarado, da geração saúde, nos remete a deusificação do próprio corpo, levando-nos a categoria de super-homens e de super-mulheres, a prova de qualquer doença. Esquecem que um dia se tornarão velhos, que seus órgãos com o tempo vão parar de funcionar, e que a morte é inevitável. Porém, não é essa a realidade que se encontra nas UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) dos hospitais. Pessoas com doença em estágio terminal, sem chance de cura, se agonizam nos leitos dos hospitais e sofrem demasiadamente, pois somente sobrevivem ligadas a aparelhos, que prolongam a morte, sem levar em consideração a dignidade do paciente. A Constituição da República de 1988 nos revela que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do nosso Estado. Desta forma, na medida em que a estes doentes não têm mais chance de cura, e para evitar tratamentos que lhe causem mais dores e sofrimentos que somente prolongam a morte, deve ser-lhes dado o direito de morrer com dignidade. E este direito é procedimentado pela prática da ortotanásia, que significa a morte correta, no seu tempo certo, não submetendo o paciente terminal a tratamentos desumanos e degradantes, que visam somente a prolongar a sua morte, sem chance alguma de cura, desde que respeitada a sua vontade. Diante do exposto, este trabalho abordará a ortotanásia, sob a perspectiva do direito de morrer com dignidade. Para tanto, propõe-se a constitucionalidade da ortotanásia, e sua conformação teórica ao Estado Democrático de Direito, diante dos estudos a seguir apresentados. 2 Conceitos de ortotanásia, eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido Ortotanásia, eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido são conceitos que envolvem o processo de morrer, e são muitas vezes confundidos. A eutanásia, também chamada de “boa morte”, ocorre quando o paciente sabendo que a sua doença é incurável ou ostenta situação que o levará a não ter condições mínimas de uma vida digna, solicita, ao médico ou terceiro que o mate antecipadamente, visando a evitar os sofrimentos e dores físicas e psicológicas que lhe trarão com o desenvolvimento da doença ou sua condição física. Conforme explica Maria de Fátima Freire de Sá, “O termo eutanásia foi criado no século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon. Deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”, “morte apropriada”, morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente direito de matar” (SÁ, 2005, p. 38). A eutanásia possui dois elementos configurativos, que são a intenção e o efeito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, configurando a “eutanásia ativa”, ou uma omissão, a não-realização de uma ação terapêutica, denominando a “eutanásia passiva”. Alguns autores, como Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p.39) entendem que a eutanásia passiva e ortotanásia são sinônimos. Porém, com a Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o conceito de ortotanásia passou a ter um contexto mais amplo, pois não envolve somente a omissão, mas também cuidados necessários que aliviam os sintomas, evitando os sofrimentos.  Segundo a referida resolução, “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. (Res. n.1.805/2006, CFM). Etimologicamente, ortotanásia significa morte correta, orto: certo, thanatos: morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico (BORGES, 2001, p.287). Deve-se ter em vista que a ortotanásia objetiva a morte no tempo certo, sem prolongar o sofrimento, a fim de evitar a distanásia. Para Maria Helena Diniz, “Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’ acharnement thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é morte lenta e com muito sofrimento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte […]” (DINIZ, 2006, p. 399). A distanásia é o oposto da ortotanásia, pois a distanásia fere a dignidade do paciente, enquanto a ortotanásia, visa à morte digna. Outro conceito importante é a mistanásia, também chamada de eutanásia social, ou morte miserável, antes da hora: “[…] Dentro da categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações, primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; Segundo, os doentes que conseguem ser pacientes, para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos […]” (MARTIN,1998, p.172). Compreende-se que a mistanásia é decorrente de falhas do sistema de saúde, por motivos sociais, políticos e econômicos. Diferentemente, no suicídio assistido, a morte não depende de forma direta da ação do terceiro. Ele ocorre por ato do próprio paciente, que pode ser orientado, auxiliado ou observado pelo médico ou terceiro. Maria Helena Diniz (2006, p.381), esclarece que é a hipótese em que morte advém de ato praticado pelo próprio paciente, orientado ou auxiliado por terceiro ou por médico. Depois de verificadas as terminologias mais importantes relacionadas à ortotanásia e ao processo de morrer, no próximo capítulo será estudado o direito de morrer com dignidade. 3 O DIREITO DE MORRER COM DIGNIDADE Para iniciar este capítulo é necessário que se tome os conceitos de morte e dignidade para o Direito, definidos em lei e na doutrina. Conforme o artigo 3º da Lei n.9.434, de 4 de fevereiro de 1997, a Lei de Doação Presumida de Órgãos, ou mais conhecida como a Lei dos Transplantes, “é considerada para fins de término da vida humana a morte encefálica”. De acordo com a Resolução n. 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, o estabelecimento de conceito de morte foi fixado por médicos, onde consta nesta resolução que a morte encefálica, que é o critério adotado para que se possa fazer transplantes de órgãos, é caracterizada pelo coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Maria de Fátima Freire de Sá explica que “[…] o critério para o diagnóstico de morte cerebral é a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, onde se situam estruturas responsáveis pela manutenção dos processos vitais autônomos, como a pressão arterial e a função respiratória” (SÁ, 2005, p.44). Sendo assim, sob o prisma jurídico, a morte somente ocorre após a cessação da atividade cerebral. Antes deste momento o paciente ou doente terminal encontra-se no processo do morrer, razão pela qual deve ser assegurada a dignidade até o fim da sua vida. Entende-se, pois, que se durante todo o desenvolvimento da pessoa foi garantida a dignidade, deve-se ter em vista que ao término da vida, ela também deve ser observada, sob pena de violação desta garantia. Segundo Ronald Dworkin, “[…] A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no “morrer com dignidade” – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido” (DWORKIN, 2003, p.280). A dignidade, fundamentada no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988, diz que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito que tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. A autora Roxana Borges, esclarece que: “A concepção de dignidade humana que nós temos liga-se à possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua personalidade conforme sua própria consciência, desde que não sejam afetados direitos de terceiros. Esse poder de autonomia também alcança os momentos finais da vida da pessoa” (BORGES, 2001). E estes momentos finais da vida incluem o processo do morrer, onde deve ser assegurada a autonomia daquele que busca ter um término de vida digno, o direito de morrer dignamente. O direito à morte digna, a partir da ortotanásia, e permeado pela dignidade da pessoa humana, relaciona-se com outros direitos e princípios da Constituição brasileira, os quais serão tratados nos subtítulos seguintes. 3.1 Direito à vida Aborda-se neste subtítulo a relação entre o direito à vida com a crítica do prolongamento desta mesma vida em pacientes terminais. O direito à vida está previsto no caput do artigo 5º da Constituição da República de 1988, o qual expressa que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, sendo um valor inerente à pessoa humana; é uma garantia fundamental. Portanto, é direito do paciente terminal[1] escolher qual a melhor forma de encerrar a sua vida, pois esta é um direito inviolável, de acordo com a nossa Constituição. O direito à vida não é absoluto e nem um dever, pois não existe no texto constitucional o dever de vida do próprio indivíduo, e inclusive o Código Penal brasileiro não tipifica como ilícito penal a tentativa de suicídio. Conforme explica Raquel Sztajn, “A conclusão que se segue é que vida é uma espécie de direito cuja tutela se faz pela propriedade e cujo titular é o ser humano capaz, competente, apto a se auto-determinar. Por isso, que respeito ao semelhante, à sua dignidade, provas de civilidade e urbanidade, são valores sociais que as normas incorporam” (SZTAJN, 2009, p.253-254). Neste entendimento, Roxana Borges (2001, p.298) afirma que é assegurado o direito (não o dever) à vida, mas não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento, embora haja o dever estatal de que os melhores tratamentos médicos estejam à sua disposição. A partir do momento em que ocorre a violação dos direitos e garantias fundamentais, há a violação do direito à vida. Portanto, uma vez violada a dignidade do paciente, a sua autonomia, quando submetido a tratamentos considerados inúteis[2], que se tornam desumanos e degradantes a ele já não se pode dizer que existe o respeito à vida, pois a vida deve ter qualidade, e qualidade de vida[3] infere em bem estar físico, psicológico, social e econômico. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, “A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais, não deve mais encontrar guarida no Estado de Direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indizível de sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do viver e do morrer” (SÁ, 2005, p.32). Quando não há mais qualidade de vida, não se pode dizer que existe vida digna. Entende-se que a partir do momento em que não há mais perspectivas de cura, deve ser dado ao paciente o direito de morrer com dignidade, pois o processo do morrer faz parte da vida do doente, que tem o direito à vida, digna. 3.2 Direito à saúde A saúde é um direito que está previsto no artigo 6º da Constituição da República de 1988. “É direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, conforme o artigo 196 do texto constitucional. Assim, infere-se que a saúde deve ser assegurada desde a prevenção até o estágio final da doença, o que não significa dizer usar, às vezes inutilmente, todos os meios existentes para a manutenção da vida do doente, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana, permeada no artigo 1º, inciso III da Carta Magna. O conceito de saúde vem sendo redefinido pela Organização Mundial de Saúde. Segundo Cristian Barchifontaine, “[…] Em lugar de entender a saúde como mera ausência de doença, propõe-se uma compreensão da saúde como bem-estar global da pessoa: bem-estar físico, mental e social. Quando se acrescenta a esses três elementos a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura de pensamento que permite uma revolução em termos de abordagem do doente crônico ou terminal” (BARCHIFONTAINE, 2002, p.292). A este novo conceito de saúde, promotora do bem-estar, associa-se a prática da ortotanásia, na busca do alívio da dor e sofrimento do paciente terminal[4]. Ressalta-se que o conceito de paciente ou doente terminal, apesar de não ter consenso na área médica, “é o doente crônico para quem a medicina não oferece nenhuma chance real de cura”, conforme Iberê Anselmo Garcia (2007, p.261). Já a terminalidade, conforme afirma Raquel Sztajn (2009, p.252), é estado de fato, estado da natureza, em que a superveniência da morte, seja por agravamento da doença, seja por outra causa (trauma ou acidente) é inevitável, ocorrendo esse evento em lapso temporal relativamente curto. José Roque Junges, citando a autora E. Kübler-Ross[5], explica que o paciente terminal passa por cinco fases a partir da informação médica de que pode vir a falecer: “. Fase da negação explícita: a primeira reação diante da informação é a de negar a evidência do relato dos sintomas. . Fase da ira: o doente assume atitudes coléricas contra os que o rodeiam. Ele se pergunta por que a enfermidade afeta justamente a ele sente-se mal pela vitalidade que encontra ao seu redor. . Fase da negociação: é uma espécie de trégua e colocação de prazos, enquanto se negocia com Deus. A pessoa faz promessas em troca de conseguir cura. Nesse momento, a pessoa já começa a enfrentar de frente a morte. . Fase da depressão: no começo, trata-se de uma culpabilização em relação ao passado, porque não se deu a devida atenção à família e não se atendeu bem à profissão. Depois aparece uma depressão em relação ao futuro, quando a pessoa prefere estar só; não se interessa pela comida, familiares e amigos; não quer saber nada da realidade exterior. . Fase da aceitação: o doente pode chegar a um sentimento de profunda paz interior e exterior, superando o medo e a amargura. Para esta aceitação, a atitude do doente ocupa um lugar central” (JUNGES, 1999, p.176-177). Durante estas fases deve haver a presença solidária e beneficente do médico e dos familiares do doente, de forma a lhe dar assistência em todos os sentidos, para que tenha um processo de morrer digno. O que se tem mostrado nos dias atuais é a busca incessante dos aparelhos médicos com o objetivo de vencer a morte[6], tornando o doente terminal muitas vezes um instrumento de estudos médicos, sem importar com a sua vontade e dignidade (Exposição de Motivos, Res. n.1805/2006 CFM). Nestes casos não existe o direito à saúde, pois nem mesmo é dado o consentimento do paciente. O que acontece são tratamentos desumanos e degradantes[7], proibidos na Constituição, de acordo com o artigo 5º, inciso III, os quais violam deflagradamente a dignidade da pessoa humana, chamados de obstinação terapêutica ou distanásia. Luiz Antonio Bento pondera que, “No Brasil, é preciso recuperar o valor da dignidade da pessoa humana. Existe uma degradação de humanidade no mundo da saúde, causada pela deterioração no mundo da escala de valores, tornando árdua a consideração do doente como pessoa. Tal situação vai se transformando numa doença cada vez mais grave e atinge não apenas a pessoa do doente, mas também as estruturas hospitalares e os serviços sociais de atendimento à saúde, envolvidos na ação de renovação” (BENTO, 2008, p.316). Assim, entende-se que tais medidas cerceiam o acesso universal e igualitário à saúde, violando o artigo 6º e 196 da Constituição, as quais impedem o acesso à saúde para aqueles que morrem mesmo antes de serem atendidos, configurando a mistanásia ou morte miserável, infelizmente. 3.3 Direito à igualdade e liberdade e o princípio da autonomia privada A igualdade e liberdade respaldadas no caput do artigo 5º da Constituição da República de 1988, informa que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade da igualdade e liberdade. Kildare Gonçalves Carvalho discorre que, “[…] De fato, a igualdade formal, entendida como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, tem sido insuficiente para que se efetive a igualdade material, isto é, a igualdade de todos os homens perante os bens da vida, tão enfatizada nas chamadas democracias populares, e que, nas Constituições democráticas liberais, vem traduzida em normas de caráter programático, como é o caso da Constituição brasileira. No exame do princípio da igualdade, deve-se levar em conta, ainda, que, embora sejam iguais em dignidade, os homens são profundamente desiguais em capacidade, circunstância que, ao lado de outros fatores, como compleição física e estrutura psicológica, dificulta a efetivação do princípio” (CARVALHO, 2005, p.438-439). Conclui o referido autor (GONÇALVES, 2005, p.441), que o princípio da igualdade, não é absoluto, como nenhum direito o é. Sendo assim, na medida em que já não existe o direito à vida, mas sim “um dever de vida”, aos doentes terminais deve ser assegurado a igualdade de decidir o direito de dispor da própria vida, em contraposição àqueles que têm o direito à vida quando estão sadios ou em condições mínimas de ter qualidade de vida. Assim, Maria de Fátima Freire de Sá explica que, “[…] é que a vida deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnes quando for possível viver bem. No momento que a saúde do corpo não mais conseguir assegurar o bem-estar da vida que se encontra nele, há de ser considerados outros direitos, sob pena de infringência ao princípio da igualdade. É que a vida passará a ser dever para uns e direito para outros […]” (SÁ, 2005, p.50). Para Henrique Cláudio de Lima Vaz (2002, p.347), a igualdade dos indivíduos é a igualdade das carências e da exigência de sua satisfação. Ou seja, a igualdade somente ocorre quando a vontade é atendida, e, no caso do paciente terminal, quando o seu direito de morrer dignamente é respeitado. Para que esta vontade ocorra é necessária a garantia da liberdade. A vontade normalizada pelo Direito, para ter validade, deve o seu emissor possuir capacidade. Para ser capaz o indivíduo deve ser maior de 18 anos e capaz para os atos da vida civil, ou seja, não se enquadrar nos casos dos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002, que são os casos de incapacidade. E, nestas situações legais de incapacidade não há menção às pessoas enfermas, salvo quando não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil; deduzindo-se, portanto, que os doentes e pacientes terminais podem ser capazes para decidirem morrer dignamente, uma vez que são titulares do direito às suas próprias vidas. A justificar tal ordem de idéias, o conteúdo do princípio da legalidade, expresso no artigo 5º, inciso II da Constituição, onde “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Sendo assim, se não há lei que veda a (in)capacidade dos doentes e pacientes terminais, deduz-se que eles possuem capacidade para decidirem acerca do possível término de suas vidas, em condições de dignidade. Destarte, faz-se mister que a liberdade, como garantia fundamental do indivíduo, e instituidora do Estado Democrático de Direito, deve ser assegurada ao paciente terminal. Segundo o filósofo Marcel Conche (1993, p.97), sem a liberdade de deixar esta vida, viveríamos sem a liberdade de viver porque, não tendo a liberdade de morrer, não estaríamos na vida por escolha, mas encarcerados nela como uma prisão. Neste entendimento, Ronald Dworkin (2003, p.307) afirma que levar alguém a morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania. A liberdade do paciente deve levar em consideração o consentimento esclarecido[8], para a recusa ou não do tratamento, com o intuito de verificar qual a melhor decisão a ser tomada por ele; é um dever do médico e um direito do paciente. Não respeitado o consentimento esclarecido, o profissional da saúde poderá até mesmo incidir em crime, como constrangimento ilegal, cárcere privado e lesões corporais, tipificados nos artigos 146, 148 e 129 respectivamente, do Código Penal Brasileiro. Neste entendimento, defende Roxana Borges, “A inobservância dessa vontade, por parte dos médicos, pode caracterizar cárcere privado, constrangimento ilegal e até lesões corporais, conforme o caso. O paciente tem o direito de, após ter recebido a informação do médico e ter esclarecidas as perspectivas da terapia, decidir se vai submeter ao tratamento ou, tendo esse já iniciado, se vai continuar com ele” (BORGES, 2001, p. 295). Em complemento a esta ordem de idéias, pode-se acrescentar também a norma prevista no artigo 15 do Código Civil de 2002 a qual dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”, em razão também do princípio da liberdade ao próprio corpo. No entanto, haverá casos, em que o paciente não terá condições de exprimir a sua vontade, seja em decorrência dos efeitos de medicamentos ou da própria doença, ou mesmo do estado de inconsciência, em coma, ou vegetativo. Tais situações devem ser rigorosamente analisadas, onde caberá a família decidir pela manutenção ou não dos tratamentos direcionados ao paciente terminal. A incapacidade do paciente, nos casos em que não puder expressar a sua vontade está expressa no artigo 3º, inciso II do Código Civil de 2002. Nesta situação, a família, como representante legal, pelo exercício da curatela, prevista no artigo 1.767, inciso I cominado com o artigo 1.775 do mencionado código, poderá optar ou não em submeter, ou continuar a submeter o doente àquele tratamento. E caso opte pela morte digna do seu parente enfermo, a família, como guardiã dos interesses do incapaz, terá este direito. Assim é o entendimento de Maria de Fátima Freire de Sá, “[…] a ortotanásia afigura-se no exercício regular da medicina, a consulta à família se torna necessária, a uma, porque são os parentes os guardiões do interesse do incapaz; a duas, porque tal medida traria segurança ao médico, evitando-se possível ação judicial contra o profissional”. (SÁ, 2005, p.135). Entretanto, se não houver quem possa decidir pelo paciente incapaz, é dever do médico promover as condições necessárias para a manutenção da vida digna do doente. Este dever está contido nos inciso II, VI e XXII do novo Código de Ética Médica, norma regulamentadora da atividade médica, que entrou em vigor a partir de 13 de abril de 2010[9]. Seja capaz, incapaz ou com o consentimento prévio, ao paciente terminal deve ser garantida a sua liberdade de escolha de morrer com dignidade. Conclui-se neste capítulo que a ortotanásia é a prática do direito de morrer com dignidade. Deve-se frisar que tal procedimento relaciona-se com a ética médica, e gera debates e repercussões religiosas, temas dos quais serão abordados no próximo capítulo. 4 ÉTICA MÉDICA, RELIGIÃO E TERMINALIDADE DA VIDA A prática da ortotanásia envolve não somente aspectos éticos como também religiosos. É o que abordará este capítulo. A respeito do estudo da Ética, Antônio Bastos, Fortunato Palhares e Antônio Carlos Monteiro afirmam que, “Ética é o estudo sistemático das ações voluntárias que constituem a conduta e o comportamento diários do ser humano. Pode ser classificada como descritiva ao observar e registrar o comportamento das pessoas e normativa a que analisa se determinada conduta é boa ou correta, ao considerar os comportamentos pessoal e social” (BASTOS; PALHARES; MONTEIRO, 1998, p.243). O agir ético deve empreender-se pela boa conduta, o que é correto e aceito pela sociedade, do ponto de vista social e psicológico, na intenção da ação. O profissional médico deve pautar-se pela ética no sentido de promover o bem-estar global do paciente e a sua saúde, respeitadas a sua autonomia e dignidade, inclusive no estágio terminal da vida do doente. Nesta etapa, os cuidados paliativos[10] e a promoção do bem-estar físico, psicológico e espiritual são fundamentais, onde a conduta do médico é importante para que o paciente se sinta pessoa, e não objeto de terapêuticas inúteis, que lhe tragam mais dores e sofrimentos. Pela ortotanásia, o próprio doente se beneficia quando toma consciência desse processo e nele se torna sujeito e protagonista. No campo da atuação dos profissionais da medicina[11], suas atividades são regulamentadas pela Resolução n. 1.931 de 24 de setembro de 2009 (o atual Código de Ética Médica), em que se pode entender que é dever do médico praticar a ortotanásia quando solicitada pelo paciente terminal. Entretanto, sob o prisma da sociedade complexa e de vastos e díspares valores que vivemos não se pode delimitar determinado campo ético, tendo em vista que no caso da Medicina, ela envolve outras questões que vão além do seu campo de saber. É o que afirma Fortes para quem, “[…] a abordagem ética contemporânea é fruto de uma sociedade secular e democrática; afasta-se das conotações morais e religiosas, apesar de ser um campo de estudo e reflexão de inúmeros grupos; constitui-se em uma ética pluralista que aceita a diversidade de enfoques, posturas e valores, a abordagem é interdisciplinar, servindo-se da colaboração e interação da diversidade das ciências biológicas e humanas” (FORTES, 1998, p.25). Chega-se assim, ao conceito da ética da vida, chamada de Bioética, sob a perspectiva autonômica e humanista, em que vê o indivíduo de forma global, holística, como um todo, e não na sua particularidade como antigamente[12]. A Bioética é definida por José Roque Junges desta forma: “[…] a Bioética é melhor definida no seu sentido global, como ética das ciências da vida e da saúde. Portanto, ela vai além das questões éticas relativas à medicina para incluir os temas de saúde pública, problemas populacionais, genética, saúde ambiental, práticas e tecnologias reprodutivas, saúde e bem-estar animal, e assim por diante” (JUNGES, 1999, p.19). A Bioética possui quatro princípios norteadores também aplicados à chamada “ética médica”. São eles, a autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Neste diapasão, Maria Helena Diniz assim dispõe, “Nas relações médico-paciente, a conduta médica deverá ajustar-se às normas éticas e jurídicas e aos princípios norteadores daquelas relações, que requerem uma tomada de decisão no que atina aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados. Tais princípios são da beneficência e não maleficência, o do respeito à autonomia e ao consentimento livre e esclarecido e o da justiça. Todos eles deverão ser seguidos pelo bom profissional da saúde, para que possa tratar seus pacientes com dignidade, respeitando seus valores, crenças e desejos ao fazer juízos terapêuticos, diagnósticos e prognósticos. Dentro dos princípios bioéticos, o médico deverá desempenhar, na relação com seus pacientes, o papel de consultor, conselheiro e amigo, aplicando os recursos que forem mais adequados” (DINIZ, 2006, p.648-649). Destarte, entende-se que todos eles podem ser aplicados à prática da ortotanásia, a saber: na autonomia do paciente terminal em decidir querer morrer dignamente; na não-maleficência de não extenuar um tratamento fútil que lhe cause mais dores e sofrimentos; na beneficência da promoção do alívio, do conforto e da dignidade; e na justiça, na qual se para alguns não há mais chance de cura, deve-se buscar promover o acesso ao tratamento para aquele que pode se tornar sadio. Não se olvida que além da existência de um contrato[13], a relação médico-paciente é uma relação humana, e acima de tudo, um ato de solidariedade e de amor ao próximo, do médico àquele que necessita tanto dos seus cuidados, de sua atenção, carinho e respeito. 4.1 O entendimento religioso acerca da ortotanásia e terminalidade da vida Não há como falar da terminalidade da vida sem discutir a presença do elemento religioso, elevado à categoria de direito fundamental pela Constituição Brasileira, ao garantir a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e assegurar o livro exercício dos cultos religiosos, segundo o conteúdo do inciso VI, do artigo 5º, do mencionado diploma constitucional. A morte pode ser encarada como um fato natural da vida, todos participamos do ciclo nascer, crescer e morrer. O que decerto diferencia o ser humano é como este fato natural é compreendido. E é na religião, que se tenta buscar as respostas para a vida, para a morte, e o pós-morte. Segundo Léo Pessini, “As religiões podem dar às pessoas uma norma superior de consciência, aquele imperativo categórico tão importante para a sociedade de hoje e que obriga numa outra profundidade e firmeza. Pois todas as grandes religiões exigem uma espécie de “regra de ouro” – não se trata de uma norma hipotética, condicional, mas de uma norma incondicional, categórica e apodítica – totalmente praticável diante das mais complexas situações em que os indivíduos ou mesmo muitas vezes grupos devem agir” (PESSINI, 2002, p.262). Aborda-se neste subitem a visão das principais religiões do mundo acerca da ortotanásia e a terminalidade da vida, em consonância com o Estado Democrático de Direito, e à sociedade pluralista e laica em que vivemos. Para o Budismo esta religião não vê a morte como fim da vida, mas como transição. O Budismo reconhece o direito das pessoas de determinar quando deveriam passar desta existência para a seguinte. O importante não é se o corpo vive ou morre, mas se a mente pode permanecer em paz e em harmonia consigo mesma (PESSINI, 2002, p.266). Para o budismo a qualidade mental da vida do paciente é fundamental, e a sua decisão quanto ao tempo e forma de morrer é de suma relevância, sob pena de violação aos princípios budistas.  Já o Judaísmo enfrenta a morte, no sentido de que o último período da doença deve ser encarado como o momento em que paciente deve ser assistido, consolado e encorajado (SÁ, 2005, p.63). Apesar de o judaísmo ser contra a eutanásia, não se encontra óbice na prática da ortotanásia. Conforme afirmado por Antônio Chaves, “O judaísmo distingue entre o prolongamento da vida do paciente, que é obrigatório, e o da agonia, que não é. Logo, se houver convicção médica de que o paciente agoniza, podendo falecer dentro de 3 dias, admitidas estão a suspensão das manobras reanimatórias e interrupção de tratamento não analgésico. Deveras, no Torá, livro sagrado dos judeus, acolhida está a idéia da dignidade da morte, pois assim reza: “Todo aquele cuja existência tornou-se miserável está autorizado a abster-se de fazer algo para prolongá-la” (CHAVES, 1994, p.67). Para o Islamismo, no que tange à ética médica, o Código Islâmico de Ética Médica dispõe como juramento que o médico jura proteger a vida humana em todos os estágios e sob quaisquer circunstâncias, fazendo o máximo para libertá-la da morte, doença, dor e ansiedade. O médico é um instrumento do Deus islâmico para curar as doenças, preservar a vida e a saúde. Neste sentido, pode-se inferir que a ortotanásia poderia ser admitida pela religião islâmica. Segue esta assertiva, Maria de Fátima Freire de Sá onde pondera que, “[…] torna-se imperioso concluir que o islamismo condena o suicídio e a eutanásia ativa. Contudo, traz certa simpatia em relação à ortotanásia, uma vez que condena a adoção de medidas heróicas para manter, a todo custo, a vida de alguém com morte eminente” (SÁ, 2005, p.70). O cristianismo é a religião mais difundida no mundo. Por conseguinte, é a que apresenta a maior quantidade de documentos acerca do processo de morrer. A Declaração sobre a Eutanásia, de 1980, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, conceitua a eutanásia[14], e a condena como sendo uma violação da Lei divina, de uma ofensa à dignidade humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade. Em 1995, o Papa João Paulo II, promulgou a Carta Encíclica Evangelim Vitae. Nesta carta, o papa condena a distanásia, em que este excesso terapêutico já seria inadequado à situação real do doente. Haja vista que a Igreja Católica condena a eutanásia e a distanásia, pressupõe-se que a ortotanásia poderia ser admitida, em tese, já que o cristianismo admite, por meio dos documentos referendados, a renúncia do paciente a tratamentos considerados fúteis e inúteis, e que o mantenham artificialmente vivo por métodos custosos e sofridos. Enfatiza-se que apesar de cada religião ter seus dogmas e filosofias diferentes, isto não afasta a dimensão morte, pois esta é inerente a qualquer ser vivo. Entre um limite e outro deve-se levar em conta outras dimensões do ser  humano como a promoção do amor e do respeito a si e ao próximo e, sob a ótica da presente investigação científica, no asseguramento de um término de vida digno, o morrer em paz. 5 CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO N.1.805/2006 DO CFM Busca-se neste capítulo comentar a Resolução n. 1.805/2006 do CFM e seus artigos, no intuito de demonstrar que a resolução não ofende a Constituição Brasileira; criticar a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) e a decisão liminar que suspendeu a mencionada resolução; bem como abordar a legitimidade do CFM para disciplinar a ortotanásia. Sustenta-se que a ortotanásia tem características normativas, posto assegurada constitucionalmente pelo direito à morte digna, expresso pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Visando regulamentar a prática da ortotanásia no âmbito das atividades desenvolvidas pelos profissionais da medicina, o Conselho Federal de Medicina brasileiro editou em 09 de novembro de 2006 a Resolução n. 1.805/2006, a qual dispõe sobre o conceito que aquele Conselho tem de ortotanásia e estabelece todos os procedimentos para que ela seja aplicada, nos casos concretos da relação médico-paciente. A ortotanásia é definida no preâmbulo da referida resolução deste modo: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal” (Res. 1.805/2006 CFM). Esta definição objetiva uma tentativa de assegurar a efetividade das garantias da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1º, inciso III, e que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, artigo 5º, inciso III, previstos na Constituição da República de 1988. O artigo 1º da Resolução dispõe que, “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada em prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.[…]” (Res. 1.805/2006 CFM). Neste dispositivo legal observa-se que além do respeito aos direitos e garantias da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada e liberdade, há também o direito ao acesso à informação, em sintonia com o artigo 5º, inciso XIV da Constituição, além de observar os princípios bioéticos da autonomia, beneficência, não-maleficência, e os direitos do paciente ao consentimento informado e da liberdade de uma segunda opinião médica, previsto no Código de Ética Médica. Nos dispositivos da Resolução acima mencionados, pode-se antever o respeito à autonomia privada do paciente, assegurada com a informação prévia do seu estado de saúde e suas perspectivas ou não de cura. Assim, o paciente, poderá livremente escolher entre abreviar o seu estado de terminalidade ou prolongá-lo, sempre com o apoio médico e psicológico. Prosseguindo na análise da mencionada Resolução, o artigo 2º assim escreve: “Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito à alta hospitalar.” […] (Res. 1805/2006 CFM) Infere-se neste artigo o direito do paciente em receber os tratamentos paliativos, que buscam o alívio das dores e dos sofrimentos da doença. A exposição de motivos da Resolução esclarece que a Organização Mundial de Saúde preconiza que sejam adotados tais cuidados, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem risco a vida. É de suma importância também esta assistência integral, com o acompanhamento médico para garantir o conforto físico, psíquico, social e espiritual do paciente terminal. A presença da família e de entes queridos é de grande relevância, que somados trarão melhor qualidade de vida ao doente, e respeito a sua dignidade. O direito à alta hospitalar permitirá ao paciente ter os seus momentos finais de forma mais digna, em um ambiente ao qual se sinta mais à vontade e feliz, estando mais próximo daqueles que o amam. Observa-se que o fundamento destas assertivas e do artigo 2º da resolução baseiam-se na filosofia do hospice[15]. Na filosofia do hospice o paciente deve ficar unido aos seus familiares e entes queridos e a equipe interdisciplinar deve cuidar da dor psicológica, espiritual e física, procurando uma melhor qualidade de vida, com a participação da família, inclusive no momento de sua morte. O hospice procura atender as necessidades físicas, emocionais e sociais do doente, respeitando sua integridade, ao dar continuidade ao tratamento e ao permitir que os seus companheiros sejam a imagem e voz de entes queridos e não tubos e ruídos monitores (DINIZ, 2006, p.410-411). Infere-se, portanto, que a resolução não viola dispositivo constitucional, pois visa somente regulamentar um direito que é inerente à pessoa humana, o morrer com dignidade. Trata-se de um documento que busca a transparência da prática da ortotanásia, que rompe a relação de subordinação do paciente ao médico. 5.1 O CFM como órgão autorizado a expedir a Resolução n.1.805/2006 A ação ajuizada pelo Ministério Público Federal traz como um dos fundamentos principais para o pedido de suspensão da referida Resolução n.1.805/2006 a legitimidade do Conselho Federal de Medicina para regulamentar matéria de direito constitucional e a legalidade da mencionada resolução. Com base neste argumento, a 14ª Vara Federal da Justiça Federal do Distrito Federal julgou favorável a antecipação de tutela, em que os efeitos da Resolução n.1.805/2006 foram suspensos até o julgamento final do processo. O Conselho Federal de Medicina[16] integra a Administração Pública indireta, submetida aos princípios previstos no artigo 37, caput, da Constituição da República de 1988, podendo expedir atos normativos, válidos e vinculantes a todo e qualquer médico, no exercício de sua profissão. De acordo com Ronaldo Pinheiro de Queiroz, “As atividades do CFM são típicas da Administração Pública. Os conselhos são órgãos delegados do Estado para o exercício da regulamentação e fiscalização das profissões liberais. A delegação é federal tendo em vista que, segundo a Constituição da República, a teor do art. 21, XXIV, compete à União Federal organizar, manter e executar a inspeção do trabalho, atividade típica de Estado que foi objeto de descentralização administrativa, colocando-a no âmbito da Administração Indireta, a ser executada por autarquia, pessoa jurídica de direito público criada para esse fim” (QUEIROZ, 2006). O CFM é uma autarquia federal criada a partir do Decreto-Lei n. 7.955/45, que foi revogado pela Lei n. 3.268/57 e regulamentado pelo Decreto n.4.045/58 com o objetivo, conforme o artigo 2º da Lei n.3.268, de supervisionar o exercício da profissão médica em todo o país, bem como julgar faltas no decorrer da atividade profissional e pelo seu bom conceito, atinentes à ética médica. Conforme Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Há consenso entre os autores ao apontarem as características das autarquias: 1. criação por lei; 2. Personalidade jurídica própria; 3. capacidade de autoadministração; 4. especialização dos fins ou atividades; 5. Sujeição a controle ou tutela” (DI PIETRO, 2010, p.429). Neste diapasão, coaduna-se com o entendimento de que o CFM é uma autarquia federal, classificado pela sua estrutura como autarquia corporativa (DI PIETRO, 2010, p.432-433); que foi criado por lei, possuindo, portanto, personalidade jurídica própria, com capacidade de autoadministração; especialização de seus fins para regulamentação e fiscalização das atividades dos profissionais médicos; e sujeito a controle ou tutela, submetendo-se à fiscalização pelo Tribunal de Contas.  É adepto deste entendimento, Ronaldo Pinheiro de Queiroz, para quem, “Os conselhos fiscais de profissões regulamentadas são criados por meio de lei federal, em que geralmente se prevê autonomia administrativa e financeira, e se destinam a zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina da classe dos que exercem atividades profissionais afetas a sua existência. Não raro, na própria lei de constituição dos conselhos vem expresso que os mesmos são dotados de personalidade jurídica de direito público, sendo que outras leis preferem apontá-los, desde logo, como autarquias federais. Todos os conselhos profissionais são criados por lei, dotando-os de personalidade jurídica. Citem-se, a título de exemplo, os conselhos federais de farmácia e de medicina, criados respectivamente pelas Leis 3.820/60 e 3.268/57” (QUEIROZ, 2006). Justifica ainda o autor, em face da natureza jurídica de direito público do CFM, devido a sua arrecadação tributária que, “Além disso, os conselhos de fiscalização são detentores de autonomia administrativa e financeira, característica essencial de uma autarquia, cujo patrimônio, próprio deles, é constituído pela arrecadação de contribuições sociais de interesse das categorias sociais, também chamadas de contribuições parafiscais, tendo nítido caráter tributário. Nesse ensejo, cabe enfatizar que, já que as contribuições possuem natureza tributária, segundo o art. 119 do Código Tributário Nacional, “sujeito ativo titular da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento.” (QUEIROZ, 2006). Entretanto, há divergências entre a doutrina e jurisprudência acerca da classificação do CFM como autarquia federal, bem como da sua natureza jurídica de direito público, posição defendida nestes estudos. Há quem entenda que os conselhos de fiscalização, como é o caso CFM, poderiam ser enquadrados como autarquias especiais, autarquia sui generis, entidades paraestatais ou até mesmo entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Segundo Ricardo Luiz Alves, “Durante muitos anos os referidos órgãos foram considerados por ilustres doutrinadores e juristas de peso como sendo entidades para-estatais sui generis, na medida em que desempenhavam, e ainda desempenham, por delegação estatal, funções de cunho regulatório supletivo e fiscalizatório de determinadas profissões, sobretudo as assim denominadas profissões liberais (advocacia, medicina, odontologia, economia, etc.)” (ALVES, 2005). Contrariando a posição defendida neste artigo, Ricardo Luiz Alves afirma que, “Data venia das doutas opiniões divergentes, incluo-me na corrente jurisprudencial que vê os conselhos profissionais regulatórios como pessoas jurídicas de direito privado. O fato de exercerem uma atividade inerente ao poder público não torna os conselhos profissionais regulatórios, por si só, órgãos integrantes da Administração Pública. No tocante a segunda questão, uma leitura atenta do parágrafo 3º. da Lei nº. 9.649/98 permite concluir que os empregados dos conselhos profissionais regulatórios são submetidos ao regime da CLT e não ao regime estatutário ou ao regime de trabalho especial. Neste diapasão, os conselhos profissionais regulatórios são entes jurídicos que possuem patrimônio e renda própria e que tem completa autonomia jurídica para gerir a contratação e demissão do seu pessoal respeitando, é claro, os limites legais estabelecidos pela legislação obreira” (ALVES, 2005). Todavia, é também do entendimento do Supremo Tribunal Federal que o CFM é uma autarquia federal, pessoa jurídica de direito público, submetido à fiscalização do Tribunal de Contas, conforme as jurisprudências abaixo colacionadas, “DEFINIDO POR LEI COMO AUTARQUIA FEDERAL, O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA ESTA SUJEITO A PRESTAR CONTAS AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. (MS 10272, Relator(a):  Min. VICTOR NUNES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 08/05/1963, DJ 11-07-1963 PP-00053 EMENT VOL-00544-01 PP-00052 RTJ VOL-00029-01 PP-00124) EMENTA: Mandado de segurança. – Os Conselhos Regionais de Medicina, como sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do disposto no inciso II do artigo 71 da atual Constituição. – Improcedência das alegações de ilegalidade quanto à imposição, pelo TCU, de multa e de afastamento temporário do exercício da Presidência ao Presidente do Conselho Regional de Medicina em causa. Mandado de segurançaindeferido”. (MS 22643, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/1998, DJ 04-12-1998 PP-00013 EMENT VOL-01934-01 PP-00106). A Resolução n. 1.805/2006 expedida pelo CFM, o qual é uma autarquia, ente da Administração Pública, é um ato administrativo[17], que tem caráter de imperatividade[18], gera a sua vinculação a todos os administrados[19]. Os atos administrativos, como as resoluções expedidas pelo CFM, são definidos por Hely Lopes Meirelles, nos seguintes termos, “Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública, que, agindo, nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direito, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria” (MEIRELLES,1991, p.126). É dentro dessa esfera de competência que o CFM elaborou, aprovou e publicou a Resolução n. 1.805 no Diário Oficial da União de 28 de novembro de 2006.blico, criando, mantendo, modificando ou extinguindo relaçteresse preito, ou impor obrigaç8888888888888888888888888888888888888 A Resolução n. 1.805, como ato administrativo, vincula-se à lei[20], e para tanto, está vinculada de forma coerente à Constituição. Ratifica esta assertiva Iberê Anselmo Garcia (2007, p.273), o qual afirma que a Resolução n.1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina é perfeitamente constitucional e legal, não ferindo as normas infraconstitucionais. Além disso, a matéria regulamentada na Resolução n. 1.805 é atinente à ética médica, respaldada no artigo 2º da Lei n. 3.268 de 30 de setembro de 1957. “Art. 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente” (SENADO, 1957). A ação civil pública ajuizada pelo MPF pondera que o CFM não possui poder regulamentar para dispor sobre o direito à vida. Note-se que a Resolução n. 1.805 não dispõe sobre o direito à vida, a resolução regulamenta a prática da ortotanásia, um ato médico, que trata da ética médica. O direito à vida já está disciplinado na Constituição. Compreende-se que na verdade ocorre um conflito de princípios, onde a dignidade da pessoa humana, aliada à autonomia privada sobrepõe-se à vida sem qualidade, fundada em tratamentos desumanos e degradantes, os quais são vedados pelo texto constitucional. O que ocorre é uma interpretação principiológica da Constituição. Segundo Gomes Canotilho, “Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo” (CANOTILHO, 1993, p.171). Havendo um vazio legislativo, a legalidade pode ser conferida à Resolução, sob a premissa de que deve ser dada a máxima efetividade à aplicação da norma constitucional, de acordo com o princípio da eficiência ou máxima efetividade[21]. Conforme Iberê Anselmo Garcia, tratando deste vazio legislativo sobre a disposição legal da ortotanásia, “[…] Para dirimir dúvidas, os projetos de lei que excluem a ilicitude da ortotanásia de forma clara e inequívoca, disciplinando-a em texto legal deveriam ter sua discussão retomada pelo Congresso Nacional, para que os profissionais pudessem tratar os pacientes terminais de forma tranquila” (GARCIA, 2007, p.273). Assim, na falta da atividade legiferante pelo Poder Legislativo, no sentido de positivar e disciplinar o direito à morte digna, pela prática da ortotanásia, a Resolução n. 1.805/2006 pode ser um marco importante para tentar trazer efetividade do texto constitucional, ao assegurar principalmente a dignidade e a autonomia do paciente terminal. Não se olvida de que a Resolução n. 1.805/2006 cumpre o objetivo do Estado Democrático de Direito, permeado pela Constituição, pois busca não restringir os projetos individuais de vida daqueles que querem morrer no tempo certo, evitando tratamentos fúteis, que violem sua dignidade. Coaduna com este entendimento também, Maria de Fátima Freire de Sá, para quem: “Levantar bandeiras de um Estado Democrático de Direito e desconsiderar a participação daquele que busca a materialização de seu direito nada mais é que bradar por algo oco em sentido, desprovido, exatamente, das características que lhe conferem rótulo e sustentam seus contornos lexicais. Não há como se falar em democracia, desconsiderando a pluralidade e esta não existe se excluídos os rasgos da diferença” (SÁ, 2008, p.149). Neste sentido, urge-se pelo direito à morte digna, pois a Resolução n. 1805/2006 regulamenta a ortotanásia, que não está disciplinada em lei-infraconstitucional, mas implícita pela Constituição, como co-extensão da dignidade da pessoa humana. 6 ORTOTANÁSIA E O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO A ação civil pública n. 2007.34.00.014809-3, ajuizada pelo Ministério Público Federal, noticiada no capítulo antecedente tem, entre outros, o fundamento para o pedido de suspensão dos efeitos da Resolução n.1805/2006 o fato de que a ortotanásia é considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro (CPB). Neste liame, a mencionada Resolução acabou por ser suspensa, em decisão liminar pela 14ª Vara Federal/DF, por entender também que existe um aparente conflito entre a referida resolução e o Código Penal. O artigo 121 e seu §1º do CPB dispõe que: “Art. 121. Matar alguém. Pena – Reclusão, de seis a vinte anos. §1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, (…) o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” Em que pese os argumentos postos na decisão judicial, a cominação da norma penal acima descrita deve ser interpretada tomando como critério hermenêutico a Constituição Brasileira. A partir desta interpretação, forçoso concluir que o mencionado dispositivo penal não pode ser aplicado à ortotanásia, vez que esta – considerando o texto da Resolução n.1805/2006 resultaria em uma conduta típica e lícita perante o Código Penal, posto caracterizado como exercício regular da medicina. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, “[…] Entende-se que a eutanásia passiva, ou ortotanásia, pode ser traduzida como mero exercício regular da medicina e, por isso mesmo, entendendo o médico que a morte é iminente, o que poderá ser diagnosticada pela própria evolução da doença, ao profissional seria facultado, a pedido do paciente, suspender a medicação utilizada para não mais valer-se de recursos heróicos, que só tem o condão de prolongar sofrimentos (distanásia) […]” (SÁ, 2005, p.134). Ainda, posiciona a autora (2005, p.135) que, em caso de eutanásia passiva, uma vez presente o pedido do paciente ou, na impossibilidade deste, observada a consulta à família, nem sequer haveria que se falar em imputação de qualquer penalidade. No caso concreto, entendendo o médico de praticar a ortotanásia a pedido do paciente terminal ou de seu representante legal, o profissional optando pela obstinação terapêutica (distanásia) talvez incorresse no crime de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal. De acordo com este posicionamento, Tereza Rodrigues Vieira afirma que, “Vale salientar que o médico deve assistência ao paciente, cabendo-lhe respeitar o desejo de morrer do doente terminal (abstendo-se de técnicas ilusórias e penosas), administrando medicamentos sedativos que aliviam e aceleram a chegada da morte, a qual deverá ser o mais digna e confortável possível” (VIEIRA, 2006, p.36).  Outrossim, verifica-se o atraso do Código Penal Brasileiro vigente (de 1941), se não interpretado de acordo com a Constituição, pode levar à supressão de direitos e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a liberdade. De acordo com Hans Kelsen, a norma inferior deve ser produzida de acordo com a norma superior, “A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra […]” (KELSEN, 1998, p.155). Se o Código Penal, lei infra-constitucional de 1941, repita-se, não está sendo interpretado de acordo com a Constituição, sua validade e eficácia são derrogadas pela Lei Maior. O último anteprojeto de lei, visando à reforma da parte especial do Código Penal, de 1999, tratava também da descriminalização da ortotanásia. Com a modificação do artigo 121, o parágrafo 4º teria a seguinte redação: “Art. 121, § 4º: Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.” No entanto, não há necessidade de lei para descriminalizar a ortotanásia, pois é uma prática lícita, viezada pelo direito à morte digna, assegurado pela Constituição. A Resolução n. 1.805/2006 somente procura enquadrar-se segundo o modelo teórico do Estado Democrático de Direito, procurando garantir ao médico e ao paciente maior segurança, diante de situações de grande tensão. Coaduna com este entendimento Iberê Ancelmo Garcia (2007, p. 273), para quem a Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina é perfeitamente constitucional e legal, não ferindo as normas infraconstitucionais, especialmente o Código Penal. Conclui-se, pois, que não existe nenhum conflito, mesmo aparente, entre o Código Penal vigente e a Resolução n. 1.805/2006 do CFM, tanto que, finalmente, em 06 de dezembro de 2010, o juízo da 14ª VF/DF julgou improcedente a ação civil pública e revogou a decisão liminar. 7 A ORTOTANÁSIA NO DIREITO ESTRANGEIRO Apesar de no Brasil não haver legislação específica acerca do direito à morte digna, afora, é claro, a Resolução n.1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina que, entretanto, encontra-se com seus efeitos suspensos por decisão judicial, como informado no capítulo anterior, vários países não só aceitam a ortotanásia, como também a eutanásia e o suicídio assistido. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte Americana admite a aplicação do ato da morte com dignidade (death with dgnity act) com o plebiscito que aprovou por 51% a lei de 1994 no Estado de Michigan, que permite ao médico a administração de substância letal a paciente que deseja morrer, legalizando o suicídio assistido (DINIZ, 2006, p.382). No Estado de Oregon, o departamento de saúde paga 45 dólares a cada paciente terminal que, após aprovação médico-psiquiátrica, deseja participar do programa de suicídio assistido, aprovado em referendo popular, financiando conseqüentemente, os custos hospitalares (DINIZ, 2006, p. 382). A lei de 1990 de Nova York admite que o cidadão indique um amigo, ou parente, para decidir, caso se torne paciente terminal e não puder fazê-lo, a interrupção do tratamento ou não (DINIZ, 2006, p.393). Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p.36-37) noticia a existência da PSDA (Pacient Self-Determination Act) ou Ato de Auto-Determinação do Paciente, lei aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos que entrou em vigor a partir de 1º de dezembro de 1991. Esta lei reconhece a recusa do tratamento médico, reafirmando a autonomia do paciente, em que da sua entrada nos centros de saúde, serão registradas as objeções e opções de tratamento em caso de incapacidade superveniente do doente. Estas manifestações de vontade são realizadas de três formas: o living will (testamento em vida), documento o qual o paciente dispõe em vida os tratamentos ou a recusa destes quando estiver em estado de inconsciência; o durable power of attorney for health care (poder duradouro do representante para cuidados com a saúde), documento no qual, por meio de um mandato, se estabelece um representante para decidir e tomar providências em relação ao paciente; e o advanced core medical directive (diretiva do centro médico avançado), que consiste em um documento mais completo, direcionado ao paciente terminal, que reúne as disposições do testamento em vida e do mandato duradouro, ou seja, é a união dos outros dois documentos. Segundo a autora, o PSDA acompanhou as transformações ocorridas na relação médica, que redefiniram a posição do paciente, inserindo-o como partícipe do processo decisório e atribuindo-lhe direitos. Na Espanha, há disposição do consentimento prévio do paciente, pela Lei Geral de Saúde (LGS – Ley General de Sanidad, de 25/04/1989), inclusive o direito à livre escolha entre as opções apresentadas pelo médico, sendo necessário o consentimento por escrito do doente para qualquer intervenção. Em caso de incapacidade, caberá a decisão aos familiares ou representantes legais (BORGES, 2001, p.300). Na Holanda e na Suíça, o suicídio assistido constitui prática institucionalizada, pela injeção de uma única dosagem letal. (DINIZ, 2006, p.381). Em 1º de abril de 2002, o Parlamento holandês aprovou a lei que legaliza a eutanásia e o suicídio assistido. A eutanásia apenas poderá ser praticada se o paciente não tiver a menor chance de cura e estiver submetido a insuportável sofrimento. O paciente deverá solicitar o procedimento, e não só ele como o seu médico deverão ter certeza que não existe outra alternativa, confirmada por outro médico e por uma equipe de especialistas (DINIZ, 2006, p.388). O Uruguai foi um dos primeiros países a legislar sobre a eutanásia. O Código Penal uruguaio trata o homicídio piedoso como causa de impunidade, desde que o agente tenha sido levado a praticar o ato por compaixão, mediante reiteradas súplicas da vítima, por meio da concessão do perdão judicial. É também previsto no Código Penal da Colômbia, desde que realizada com a anuência expressa do paciente terminal (DINIZ, 2006, p.387). Percebe-se que junto aos avanços da Medicina, o Direito, sob a ótica do Biodireito, busca tentar propor soluções para garantir e assegurar a dignidade do indivíduo e sua autonomia no processo da terminalidade da vida. Assim, verifica-se que alguns países, pela sua própria cultura e desenvolvimento, como a Holanda, são mais flexíveis ao legalizar a eutanásia e o suicídio assistido. Já outros, como o Brasil, ainda vê-se amarrado por um conjunto normativo não compatível com a Constituição Brasileira de 1988, como é o caso do Código Penal, que é de 1941, do que resulta que o diploma punitivo não se coaduna com a modernidade trazida pelo texto constitucional, e conseqüentemente, se não se levar em conta a Constituição como “locus” hermenêutico pode gerar violações de direitos fundamentais ao indivíduo que se encontra em um estágio de angústia, dores e sofrimentos, e que pede socorro para morrer em paz. 8 O PROJETO DE LEI DO SENADO BRASILEIRO N.524/2009: TENTATIVA DE REGULAMENTAÇÃO LEGAL DA ORTOTANÁSIA O projeto de lei do Senado brasileiro n. 524/2009, de autoria do senador Gerson Camata, visa dispor sobre os direitos em fase terminal de doença. Este documento tem objetivo de regulamentar a prática da ortotanásia, via devido processo legislativo, ampliando a participação do Parlamento brasileiro no assunto. Em consulta ao site do Senado, em 30/03/2010, este projeto encontra-se aguardando manifestação do relator na Comissão de Constituição e Justiça (SENADO, 2010). O referido projeto basicamente possui os mesmos dispositivos da Resolução n. 1.805/2006 do CFM, porém de forma mais detalhada. Porém, pelo disposto no artigo 6º, §1º, caso o paciente tenha se manifestado contrário à limitação ou suspensão do tratamento antes de se tornar incapaz, esta vontade deverá ser respeitada. O próprio artigo 6º trata da autonomia privada do paciente, ou na sua falta, dos seus familiares ou representante legal, e da fundamentação da suspensão ou limitação do tratamento em prontuário médico, submetido à análise médica revisora. Em entrevista à Pastoral Familiar, vinculada à CNBB, o Padre Luiz Antônio Bento, em relação ao projeto de lei n. 524/2009, afirmou que, “Parece-nos que haveria consenso quanto ao PLS 116/2000, tal qual aprovado no Senado e quanto ao PLS 524/2009. Faz-se necessário garantir às pessoas em fase terminal de doença (e suas famílias), em situação de morte próxima e inevitável, os cuidados e procedimentos ordinários, básicos e proporcionais, tais como alimentação, hidratação, higiene e sedação da dor. E, também, atendidas as condições estabelecidas em lei, a possibilidade de não utilização de meios extraordinários e desproporcionais, gravosos para o paciente e sua família” (PASTORAL FAMILIAR, 19/01/2010). O Projeto de Lei n. 116/2000, também de autoria do senador Gerson Camata, teve em 02 de dezembro de 2009 sua aprovação pelo Senado Federal, e agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados. O referido projeto exclui a ilicitude da ortanásia. Conforme o site do jornal “Estadão”, o senador Gerson Camata sobre fala sobre a possível aprovação de seu projeto de lei pela Câmara dos Deputados, que ficou arquivado por quase 10 anos: “Cada vez com mais freqüência a morte tem lugar em hospitais crescentemente orientados ao cuidado intensivo por meio de utilização de tecnologia agressiva, o que tem levado à profanação do corpo humano em homenagem às ciências e técnicas médicas, com a conseqüente perda da naturalidade e espontaneidade que a morte tinha em tempo não longínquo” (AGÊNCIA ESTADO, 02/12/2009). Destarte, como defendido neste estudo, não se faz necessária a criação de uma lei para legalizar a ortotanásia, nem mesmo ato administrativo do CFM regulamentando-a, visto que o direito de morrer com dignidade encontra-se assegurado pela Constituição de 1988. Porém, a fim de assegurar a segurança da atividade do profissional médico, e do próprio paciente, é importante que haja uma legislação sobre a ortotanásia complementando aquela expedida pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro. Todavia, até que haja uma lei editada pelo Congresso Nacional, pode-se adotar o conteúdo da Resolução n. 1.805/2006, seja porque dotado de força de ato administrativo com caráter imperativo, seja por não ferir norma constitucional e, principalmente, por tentar garantir a dignidade da pessoa humana e a autonomia privada do paciente terminal. Frisa-se, contudo, que não existem decisões judiciais que tratam especificamente sobre a interrupção da vida em pacientes terminais ou de doenças graves, carecendo os doentes e os médicos de proteção processual para prática da ortotanásia. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que a ortotanásia, que visa a morte no tempo certo, é o procedimento pelo qual o médico suspende o tratamento, ou somente realiza terapêuticas paliativas, para evitar mais dores e sofrimentos ao paciente terminal, que já não tem mais chances de cura; desde que esta seja a vontade do paciente, ou de seu representante legal. E esta prática é reivindicada pelo direito à morte digna, co-extensão da dignidade da pessoa humana, além de ser permeada pelos princípios constitucionais da vida, da igualdade, da liberdade, e do direito à saúde, como fora estudados nestes estudos. Também, como dantes explanado, a ortotanásia atende aos princípios bioéticos. Verificou-se que o profissional médico deve buscar tratar o doente, e não a doença, considerando-o como pessoa, e não como instrumento de uma terapêutica invasiva. Outrossim, torna-se louvável o novo Código de Ética Médica, que visa atender a dignidade do paciente, na visão global de saúde preconizada pela OMS, retirando-se a relação de subordinação entre médico e paciente. Não se olvida que ao discutir a morte, colocam-se em foco também aspectos éticos e religiosos. No entanto, respeitada a sociedade laica e pluralista, inseridas pelo Estado Democrático de Direito, violar direitos fundamentais, como a dignidade e a liberdade, fere a Constituição, Lei Maior de nosso País. Diante dos estudos ora aqui apresentados, observa-se que o Direito, representado pelo Biodireito, ainda não consegue acompanhar o avanço da Medicina, o que submete a um conselho de classe, como o Conselho Federal de Medicina, regulamentar procedimentos que envolvam princípios constitucionais e bioéticos, como a ortotanásia. Neste sentido, torna-se importante a aprovação do PLS n.524/2009, em tramite no parlamento brasileiro que, nos moldes da legalização da eutanásia e do suicídio assistido na Holanda, garantiria a vontade soberana do povo, pela via legítima do devido processo legal, adequando-se ao modelo instituído pelo Estado Democrático de Direito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/analise-constitucional-da-ortotanasia-o-direito-de-morrer-com-dignidade/
Análise constitucional da ortotanásia: O direito de morrer com dignidade
Nesta pesquisa realizou-se um estudo da ortotanásia e o direito de morrer com dignidade. Seu objetivo foi demonstrar, a partir de uma análise constitucional, a legalidade da prática da ortotanásia, na perspectiva do direito de morrer com dignidade, inserido no contexto de Estado Democrático de Direito. Foi realizada revisão bibliográfica bem ainda análise das legislações e atos normativos pertinentes ao estudo e relacionadas a este; os principais autores que estudaram ou estudam a ortotanásia, abarcando a origem histórica, a evolução do procedimento, e as correntes teóricas presentes no biodireito e na bioética. Foi realizada pesquisa sob o enfoque religioso e da ética médica acerca da ortotanásia. Este estudo verificou que a tendência atual é diminuir o elo de subordinação médico-paciente, conforme observado pelo novo Código de Ética Médica brasileiro, e que a ortotanásia assegura a autonomia e dignidade do paciente terminal. Por fim, concluiu-se neste estudo que a ortotanásia obedece à Constituição Brasileira, pois visa assegurar uma morte digna ao paciente terminal, permeada pela dignidade da pessoa humana, em contraposição aos tratamentos desumanos e degradantes, vedados pelo texto constitucional.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas presenciou-se um rápido avanço da Medicina e da Biotecnologia, questionando-se até mesmo a possibilidade da imortalidade humana. Neste sentido, com a modernização e a descoberta de novas técnicas, o Homem passou discretamente de ser, para coisa. Neste raciocínio coaduna Antônio Luiz Bento, ao pontuar que, “O risco iminente é aquele de transformar o ser humano sujeito num objeto e num escravo na evolução moderna da tecnologia. O momento atual é de profundas crises de humanismo e de incertezas no uso da tecnologia, que trouxe, sem dúvida, tantos benefícios, mas também preocupações, sobretudo em nível ético. Esse comportamento também corre o risco de desumanizar a medicina para deixar um lugar ao frio tecnicismo, impondo certa distância ou barreira entre o pessoal da saúde e o paciente. Ora, o progresso tecnológico jamais deverá ser motivo de danos à integridade psicofísica do ser humano, que deve ser protegida em todo ato médico” (BENTO, 2008, p.314). Falar em morte nos dias atuais aterroriza a todos, como se esperasse que a vida fosse eterna, sob o ponto de vista biológico. A cultura do corpo sarado, da geração saúde, nos remete a deusificação do próprio corpo, levando-nos a categoria de super-homens e de super-mulheres, a prova de qualquer doença. Esquecem que um dia se tornarão velhos, que seus órgãos com o tempo vão parar de funcionar, e que a morte é inevitável. Porém, não é essa a realidade que se encontra nas UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) dos hospitais. Pessoas com doença em estágio terminal, sem chance de cura, se agonizam nos leitos dos hospitais e sofrem demasiadamente, pois somente sobrevivem ligadas a aparelhos, que prolongam a morte, sem levar em consideração a dignidade do paciente. A Constituição da República de 1988 nos revela que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do nosso Estado. Desta forma, na medida em que a estes doentes não têm mais chance de cura, e para evitar tratamentos que lhe causem mais dores e sofrimentos que somente prolongam a morte, deve ser-lhes dado o direito de morrer com dignidade. E este direito é procedimentado pela prática da ortotanásia, que significa a morte correta, no seu tempo certo, não submetendo o paciente terminal a tratamentos desumanos e degradantes, que visam somente a prolongar a sua morte, sem chance alguma de cura, desde que respeitada a sua vontade. Diante do exposto, este trabalho abordará a ortotanásia, sob a perspectiva do direito de morrer com dignidade. Para tanto, propõe-se a constitucionalidade da ortotanásia, e sua conformação teórica ao Estado Democrático de Direito, diante dos estudos a seguir apresentados. 2 Conceitos de ortotanásia, eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido Ortotanásia, eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido são conceitos que envolvem o processo de morrer, e são muitas vezes confundidos. A eutanásia, também chamada de “boa morte”, ocorre quando o paciente sabendo que a sua doença é incurável ou ostenta situação que o levará a não ter condições mínimas de uma vida digna, solicita, ao médico ou terceiro que o mate antecipadamente, visando a evitar os sofrimentos e dores físicas e psicológicas que lhe trarão com o desenvolvimento da doença ou sua condição física. Conforme explica Maria de Fátima Freire de Sá, “O termo eutanásia foi criado no século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon. Deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”, “morte apropriada”, morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente direito de matar” (SÁ, 2005, p. 38). A eutanásia possui dois elementos configurativos, que são a intenção e o efeito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, configurando a “eutanásia ativa”, ou uma omissão, a não-realização de uma ação terapêutica, denominando a “eutanásia passiva”. Alguns autores, como Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p.39) entendem que a eutanásia passiva e ortotanásia são sinônimos. Porém, com a Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o conceito de ortotanásia passou a ter um contexto mais amplo, pois não envolve somente a omissão, mas também cuidados necessários que aliviam os sintomas, evitando os sofrimentos.  Segundo a referida resolução, “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. (Res. n.1.805/2006, CFM). Etimologicamente, ortotanásia significa morte correta, orto: certo, thanatos: morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico (BORGES, 2001, p.287). Deve-se ter em vista que a ortotanásia objetiva a morte no tempo certo, sem prolongar o sofrimento, a fim de evitar a distanásia. Para Maria Helena Diniz, “Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’ acharnement thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é morte lenta e com muito sofrimento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte […]” (DINIZ, 2006, p. 399). A distanásia é o oposto da ortotanásia, pois a distanásia fere a dignidade do paciente, enquanto a ortotanásia, visa à morte digna. Outro conceito importante é a mistanásia, também chamada de eutanásia social, ou morte miserável, antes da hora: “[…] Dentro da categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações, primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; Segundo, os doentes que conseguem ser pacientes, para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos […]” (MARTIN,1998, p.172). Compreende-se que a mistanásia é decorrente de falhas do sistema de saúde, por motivos sociais, políticos e econômicos. Diferentemente, no suicídio assistido, a morte não depende de forma direta da ação do terceiro. Ele ocorre por ato do próprio paciente, que pode ser orientado, auxiliado ou observado pelo médico ou terceiro. Maria Helena Diniz (2006, p.381), esclarece que é a hipótese em que morte advém de ato praticado pelo próprio paciente, orientado ou auxiliado por terceiro ou por médico. Depois de verificadas as terminologias mais importantes relacionadas à ortotanásia e ao processo de morrer, no próximo capítulo será estudado o direito de morrer com dignidade. 3 O DIREITO DE MORRER COM DIGNIDADE Para iniciar este capítulo é necessário que se tome os conceitos de morte e dignidade para o Direito, definidos em lei e na doutrina. Conforme o artigo 3º da Lei n.9.434, de 4 de fevereiro de 1997, a Lei de Doação Presumida de Órgãos, ou mais conhecida como a Lei dos Transplantes, “é considerada para fins de término da vida humana a morte encefálica”. De acordo com a Resolução n. 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, o estabelecimento de conceito de morte foi fixado por médicos, onde consta nesta resolução que a morte encefálica, que é o critério adotado para que se possa fazer transplantes de órgãos, é caracterizada pelo coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Maria de Fátima Freire de Sá explica que “[…] o critério para o diagnóstico de morte cerebral é a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, onde se situam estruturas responsáveis pela manutenção dos processos vitais autônomos, como a pressão arterial e a função respiratória” (SÁ, 2005, p.44). Sendo assim, sob o prisma jurídico, a morte somente ocorre após a cessação da atividade cerebral. Antes deste momento o paciente ou doente terminal encontra-se no processo do morrer, razão pela qual deve ser assegurada a dignidade até o fim da sua vida. Entende-se, pois, que se durante todo o desenvolvimento da pessoa foi garantida a dignidade, deve-se ter em vista que ao término da vida, ela também deve ser observada, sob pena de violação desta garantia. Segundo Ronald Dworkin, “[…] A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no “morrer com dignidade” – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido” (DWORKIN, 2003, p.280). A dignidade, fundamentada no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988, diz que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito que tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. A autora Roxana Borges, esclarece que: “A concepção de dignidade humana que nós temos liga-se à possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua personalidade conforme sua própria consciência, desde que não sejam afetados direitos de terceiros. Esse poder de autonomia também alcança os momentos finais da vida da pessoa” (BORGES, 2001). E estes momentos finais da vida incluem o processo do morrer, onde deve ser assegurada a autonomia daquele que busca ter um término de vida digno, o direito de morrer dignamente. O direito à morte digna, a partir da ortotanásia, e permeado pela dignidade da pessoa humana, relaciona-se com outros direitos e princípios da Constituição brasileira, os quais serão tratados nos subtítulos seguintes. 3.1 Direito à vida Aborda-se neste subtítulo a relação entre o direito à vida com a crítica do prolongamento desta mesma vida em pacientes terminais. O direito à vida está previsto no caput do artigo 5º da Constituição da República de 1988, o qual expressa que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, sendo um valor inerente à pessoa humana; é uma garantia fundamental. Portanto, é direito do paciente terminal[1] escolher qual a melhor forma de encerrar a sua vida, pois esta é um direito inviolável, de acordo com a nossa Constituição. O direito à vida não é absoluto e nem um dever, pois não existe no texto constitucional o dever de vida do próprio indivíduo, e inclusive o Código Penal brasileiro não tipifica como ilícito penal a tentativa de suicídio. Conforme explica Raquel Sztajn, “A conclusão que se segue é que vida é uma espécie de direito cuja tutela se faz pela propriedade e cujo titular é o ser humano capaz, competente, apto a se auto-determinar. Por isso, que respeito ao semelhante, à sua dignidade, provas de civilidade e urbanidade, são valores sociais que as normas incorporam” (SZTAJN, 2009, p.253-254). Neste entendimento, Roxana Borges (2001, p.298) afirma que é assegurado o direito (não o dever) à vida, mas não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento, embora haja o dever estatal de que os melhores tratamentos médicos estejam à sua disposição. A partir do momento em que ocorre a violação dos direitos e garantias fundamentais, há a violação do direito à vida. Portanto, uma vez violada a dignidade do paciente, a sua autonomia, quando submetido a tratamentos considerados inúteis[2], que se tornam desumanos e degradantes a ele já não se pode dizer que existe o respeito à vida, pois a vida deve ter qualidade, e qualidade de vida[3] infere em bem estar físico, psicológico, social e econômico. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, “A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais, não deve mais encontrar guarida no Estado de Direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indizível de sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do viver e do morrer” (SÁ, 2005, p.32). Quando não há mais qualidade de vida, não se pode dizer que existe vida digna. Entende-se que a partir do momento em que não há mais perspectivas de cura, deve ser dado ao paciente o direito de morrer com dignidade, pois o processo do morrer faz parte da vida do doente, que tem o direito à vida, digna. 3.2 Direito à saúde A saúde é um direito que está previsto no artigo 6º da Constituição da República de 1988. “É direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, conforme o artigo 196 do texto constitucional. Assim, infere-se que a saúde deve ser assegurada desde a prevenção até o estágio final da doença, o que não significa dizer usar, às vezes inutilmente, todos os meios existentes para a manutenção da vida do doente, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana, permeada no artigo 1º, inciso III da Carta Magna. O conceito de saúde vem sendo redefinido pela Organização Mundial de Saúde. Segundo Cristian Barchifontaine, “[…] Em lugar de entender a saúde como mera ausência de doença, propõe-se uma compreensão da saúde como bem-estar global da pessoa: bem-estar físico, mental e social. Quando se acrescenta a esses três elementos a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura de pensamento que permite uma revolução em termos de abordagem do doente crônico ou terminal” (BARCHIFONTAINE, 2002, p.292). A este novo conceito de saúde, promotora do bem-estar, associa-se a prática da ortotanásia, na busca do alívio da dor e sofrimento do paciente terminal[4]. Ressalta-se que o conceito de paciente ou doente terminal, apesar de não ter consenso na área médica, “é o doente crônico para quem a medicina não oferece nenhuma chance real de cura”, conforme Iberê Anselmo Garcia (2007, p.261). Já a terminalidade, conforme afirma Raquel Sztajn (2009, p.252), é estado de fato, estado da natureza, em que a superveniência da morte, seja por agravamento da doença, seja por outra causa (trauma ou acidente) é inevitável, ocorrendo esse evento em lapso temporal relativamente curto. José Roque Junges, citando a autora E. Kübler-Ross[5], explica que o paciente terminal passa por cinco fases a partir da informação médica de que pode vir a falecer: “. Fase da negação explícita: a primeira reação diante da informação é a de negar a evidência do relato dos sintomas. . Fase da ira: o doente assume atitudes coléricas contra os que o rodeiam. Ele se pergunta por que a enfermidade afeta justamente a ele sente-se mal pela vitalidade que encontra ao seu redor. . Fase da negociação: é uma espécie de trégua e colocação de prazos, enquanto se negocia com Deus. A pessoa faz promessas em troca de conseguir cura. Nesse momento, a pessoa já começa a enfrentar de frente a morte. . Fase da depressão: no começo, trata-se de uma culpabilização em relação ao passado, porque não se deu a devida atenção à família e não se atendeu bem à profissão. Depois aparece uma depressão em relação ao futuro, quando a pessoa prefere estar só; não se interessa pela comida, familiares e amigos; não quer saber nada da realidade exterior. . Fase da aceitação: o doente pode chegar a um sentimento de profunda paz interior e exterior, superando o medo e a amargura. Para esta aceitação, a atitude do doente ocupa um lugar central” (JUNGES, 1999, p.176-177). Durante estas fases deve haver a presença solidária e beneficente do médico e dos familiares do doente, de forma a lhe dar assistência em todos os sentidos, para que tenha um processo de morrer digno. O que se tem mostrado nos dias atuais é a busca incessante dos aparelhos médicos com o objetivo de vencer a morte[6], tornando o doente terminal muitas vezes um instrumento de estudos médicos, sem importar com a sua vontade e dignidade (Exposição de Motivos, Res. n.1805/2006 CFM). Nestes casos não existe o direito à saúde, pois nem mesmo é dado o consentimento do paciente. O que acontece são tratamentos desumanos e degradantes[7], proibidos na Constituição, de acordo com o artigo 5º, inciso III, os quais violam deflagradamente a dignidade da pessoa humana, chamados de obstinação terapêutica ou distanásia. Luiz Antonio Bento pondera que, “No Brasil, é preciso recuperar o valor da dignidade da pessoa humana. Existe uma degradação de humanidade no mundo da saúde, causada pela deterioração no mundo da escala de valores, tornando árdua a consideração do doente como pessoa. Tal situação vai se transformando numa doença cada vez mais grave e atinge não apenas a pessoa do doente, mas também as estruturas hospitalares e os serviços sociais de atendimento à saúde, envolvidos na ação de renovação” (BENTO, 2008, p.316). Assim, entende-se que tais medidas cerceiam o acesso universal e igualitário à saúde, violando o artigo 6º e 196 da Constituição, as quais impedem o acesso à saúde para aqueles que morrem mesmo antes de serem atendidos, configurando a mistanásia ou morte miserável, infelizmente. 3.3 Direito à igualdade e liberdade e o princípio da autonomia privada A igualdade e liberdade respaldadas no caput do artigo 5º da Constituição da República de 1988, informa que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade da igualdade e liberdade. Kildare Gonçalves Carvalho discorre que, “[…] De fato, a igualdade formal, entendida como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, tem sido insuficiente para que se efetive a igualdade material, isto é, a igualdade de todos os homens perante os bens da vida, tão enfatizada nas chamadas democracias populares, e que, nas Constituições democráticas liberais, vem traduzida em normas de caráter programático, como é o caso da Constituição brasileira. No exame do princípio da igualdade, deve-se levar em conta, ainda, que, embora sejam iguais em dignidade, os homens são profundamente desiguais em capacidade, circunstância que, ao lado de outros fatores, como compleição física e estrutura psicológica, dificulta a efetivação do princípio” (CARVALHO, 2005, p.438-439). Conclui o referido autor (GONÇALVES, 2005, p.441), que o princípio da igualdade, não é absoluto, como nenhum direito o é. Sendo assim, na medida em que já não existe o direito à vida, mas sim “um dever de vida”, aos doentes terminais deve ser assegurado a igualdade de decidir o direito de dispor da própria vida, em contraposição àqueles que têm o direito à vida quando estão sadios ou em condições mínimas de ter qualidade de vida. Assim, Maria de Fátima Freire de Sá explica que, “[…] é que a vida deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnes quando for possível viver bem. No momento que a saúde do corpo não mais conseguir assegurar o bem-estar da vida que se encontra nele, há de ser considerados outros direitos, sob pena de infringência ao princípio da igualdade. É que a vida passará a ser dever para uns e direito para outros […]” (SÁ, 2005, p.50). Para Henrique Cláudio de Lima Vaz (2002, p.347), a igualdade dos indivíduos é a igualdade das carências e da exigência de sua satisfação. Ou seja, a igualdade somente ocorre quando a vontade é atendida, e, no caso do paciente terminal, quando o seu direito de morrer dignamente é respeitado. Para que esta vontade ocorra é necessária a garantia da liberdade. A vontade normalizada pelo Direito, para ter validade, deve o seu emissor possuir capacidade. Para ser capaz o indivíduo deve ser maior de 18 anos e capaz para os atos da vida civil, ou seja, não se enquadrar nos casos dos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002, que são os casos de incapacidade. E, nestas situações legais de incapacidade não há menção às pessoas enfermas, salvo quando não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil; deduzindo-se, portanto, que os doentes e pacientes terminais podem ser capazes para decidirem morrer dignamente, uma vez que são titulares do direito às suas próprias vidas. A justificar tal ordem de idéias, o conteúdo do princípio da legalidade, expresso no artigo 5º, inciso II da Constituição, onde “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Sendo assim, se não há lei que veda a (in)capacidade dos doentes e pacientes terminais, deduz-se que eles possuem capacidade para decidirem acerca do possível término de suas vidas, em condições de dignidade. Destarte, faz-se mister que a liberdade, como garantia fundamental do indivíduo, e instituidora do Estado Democrático de Direito, deve ser assegurada ao paciente terminal. Segundo o filósofo Marcel Conche (1993, p.97), sem a liberdade de deixar esta vida, viveríamos sem a liberdade de viver porque, não tendo a liberdade de morrer, não estaríamos na vida por escolha, mas encarcerados nela como uma prisão. Neste entendimento, Ronald Dworkin (2003, p.307) afirma que levar alguém a morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania. A liberdade do paciente deve levar em consideração o consentimento esclarecido[8], para a recusa ou não do tratamento, com o intuito de verificar qual a melhor decisão a ser tomada por ele; é um dever do médico e um direito do paciente. Não respeitado o consentimento esclarecido, o profissional da saúde poderá até mesmo incidir em crime, como constrangimento ilegal, cárcere privado e lesões corporais, tipificados nos artigos 146, 148 e 129 respectivamente, do Código Penal Brasileiro. Neste entendimento, defende Roxana Borges, “A inobservância dessa vontade, por parte dos médicos, pode caracterizar cárcere privado, constrangimento ilegal e até lesões corporais, conforme o caso. O paciente tem o direito de, após ter recebido a informação do médico e ter esclarecidas as perspectivas da terapia, decidir se vai submeter ao tratamento ou, tendo esse já iniciado, se vai continuar com ele” (BORGES, 2001, p. 295). Em complemento a esta ordem de idéias, pode-se acrescentar também a norma prevista no artigo 15 do Código Civil de 2002 a qual dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”, em razão também do princípio da liberdade ao próprio corpo. No entanto, haverá casos, em que o paciente não terá condições de exprimir a sua vontade, seja em decorrência dos efeitos de medicamentos ou da própria doença, ou mesmo do estado de inconsciência, em coma, ou vegetativo. Tais situações devem ser rigorosamente analisadas, onde caberá a família decidir pela manutenção ou não dos tratamentos direcionados ao paciente terminal. A incapacidade do paciente, nos casos em que não puder expressar a sua vontade está expressa no artigo 3º, inciso II do Código Civil de 2002. Nesta situação, a família, como representante legal, pelo exercício da curatela, prevista no artigo 1.767, inciso I cominado com o artigo 1.775 do mencionado código, poderá optar ou não em submeter, ou continuar a submeter o doente àquele tratamento. E caso opte pela morte digna do seu parente enfermo, a família, como guardiã dos interesses do incapaz, terá este direito. Assim é o entendimento de Maria de Fátima Freire de Sá, “[…] a ortotanásia afigura-se no exercício regular da medicina, a consulta à família se torna necessária, a uma, porque são os parentes os guardiões do interesse do incapaz; a duas, porque tal medida traria segurança ao médico, evitando-se possível ação judicial contra o profissional”. (SÁ, 2005, p.135). Entretanto, se não houver quem possa decidir pelo paciente incapaz, é dever do médico promover as condições necessárias para a manutenção da vida digna do doente. Este dever está contido nos inciso II, VI e XXII do novo Código de Ética Médica, norma regulamentadora da atividade médica, que entrou em vigor a partir de 13 de abril de 2010[9]. Seja capaz, incapaz ou com o consentimento prévio, ao paciente terminal deve ser garantida a sua liberdade de escolha de morrer com dignidade. Conclui-se neste capítulo que a ortotanásia é a prática do direito de morrer com dignidade. Deve-se frisar que tal procedimento relaciona-se com a ética médica, e gera debates e repercussões religiosas, temas dos quais serão abordados no próximo capítulo. 4 ÉTICA MÉDICA, RELIGIÃO E TERMINALIDADE DA VIDA A prática da ortotanásia envolve não somente aspectos éticos como também religiosos. É o que abordará este capítulo. A respeito do estudo da Ética, Antônio Bastos, Fortunato Palhares e Antônio Carlos Monteiro afirmam que, “Ética é o estudo sistemático das ações voluntárias que constituem a conduta e o comportamento diários do ser humano. Pode ser classificada como descritiva ao observar e registrar o comportamento das pessoas e normativa a que analisa se determinada conduta é boa ou correta, ao considerar os comportamentos pessoal e social” (BASTOS; PALHARES; MONTEIRO, 1998, p.243). O agir ético deve empreender-se pela boa conduta, o que é correto e aceito pela sociedade, do ponto de vista social e psicológico, na intenção da ação. O profissional médico deve pautar-se pela ética no sentido de promover o bem-estar global do paciente e a sua saúde, respeitadas a sua autonomia e dignidade, inclusive no estágio terminal da vida do doente. Nesta etapa, os cuidados paliativos[10] e a promoção do bem-estar físico, psicológico e espiritual são fundamentais, onde a conduta do médico é importante para que o paciente se sinta pessoa, e não objeto de terapêuticas inúteis, que lhe tragam mais dores e sofrimentos. Pela ortotanásia, o próprio doente se beneficia quando toma consciência desse processo e nele se torna sujeito e protagonista. No campo da atuação dos profissionais da medicina[11], suas atividades são regulamentadas pela Resolução n. 1.931 de 24 de setembro de 2009 (o atual Código de Ética Médica), em que se pode entender que é dever do médico praticar a ortotanásia quando solicitada pelo paciente terminal. Entretanto, sob o prisma da sociedade complexa e de vastos e díspares valores que vivemos não se pode delimitar determinado campo ético, tendo em vista que no caso da Medicina, ela envolve outras questões que vão além do seu campo de saber. É o que afirma Fortes para quem, “[…] a abordagem ética contemporânea é fruto de uma sociedade secular e democrática; afasta-se das conotações morais e religiosas, apesar de ser um campo de estudo e reflexão de inúmeros grupos; constitui-se em uma ética pluralista que aceita a diversidade de enfoques, posturas e valores, a abordagem é interdisciplinar, servindo-se da colaboração e interação da diversidade das ciências biológicas e humanas” (FORTES, 1998, p.25). Chega-se assim, ao conceito da ética da vida, chamada de Bioética, sob a perspectiva autonômica e humanista, em que vê o indivíduo de forma global, holística, como um todo, e não na sua particularidade como antigamente[12]. A Bioética é definida por José Roque Junges desta forma: “[…] a Bioética é melhor definida no seu sentido global, como ética das ciências da vida e da saúde. Portanto, ela vai além das questões éticas relativas à medicina para incluir os temas de saúde pública, problemas populacionais, genética, saúde ambiental, práticas e tecnologias reprodutivas, saúde e bem-estar animal, e assim por diante” (JUNGES, 1999, p.19). A Bioética possui quatro princípios norteadores também aplicados à chamada “ética médica”. São eles, a autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Neste diapasão, Maria Helena Diniz assim dispõe, “Nas relações médico-paciente, a conduta médica deverá ajustar-se às normas éticas e jurídicas e aos princípios norteadores daquelas relações, que requerem uma tomada de decisão no que atina aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados. Tais princípios são da beneficência e não maleficência, o do respeito à autonomia e ao consentimento livre e esclarecido e o da justiça. Todos eles deverão ser seguidos pelo bom profissional da saúde, para que possa tratar seus pacientes com dignidade, respeitando seus valores, crenças e desejos ao fazer juízos terapêuticos, diagnósticos e prognósticos. Dentro dos princípios bioéticos, o médico deverá desempenhar, na relação com seus pacientes, o papel de consultor, conselheiro e amigo, aplicando os recursos que forem mais adequados” (DINIZ, 2006, p.648-649). Destarte, entende-se que todos eles podem ser aplicados à prática da ortotanásia, a saber: na autonomia do paciente terminal em decidir querer morrer dignamente; na não-maleficência de não extenuar um tratamento fútil que lhe cause mais dores e sofrimentos; na beneficência da promoção do alívio, do conforto e da dignidade; e na justiça, na qual se para alguns não há mais chance de cura, deve-se buscar promover o acesso ao tratamento para aquele que pode se tornar sadio. Não se olvida que além da existência de um contrato[13], a relação médico-paciente é uma relação humana, e acima de tudo, um ato de solidariedade e de amor ao próximo, do médico àquele que necessita tanto dos seus cuidados, de sua atenção, carinho e respeito. 4.1 O entendimento religioso acerca da ortotanásia e terminalidade da vida Não há como falar da terminalidade da vida sem discutir a presença do elemento religioso, elevado à categoria de direito fundamental pela Constituição Brasileira, ao garantir a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e assegurar o livro exercício dos cultos religiosos, segundo o conteúdo do inciso VI, do artigo 5º, do mencionado diploma constitucional. A morte pode ser encarada como um fato natural da vida, todos participamos do ciclo nascer, crescer e morrer. O que decerto diferencia o ser humano é como este fato natural é compreendido. E é na religião, que se tenta buscar as respostas para a vida, para a morte, e o pós-morte. Segundo Léo Pessini, “As religiões podem dar às pessoas uma norma superior de consciência, aquele imperativo categórico tão importante para a sociedade de hoje e que obriga numa outra profundidade e firmeza. Pois todas as grandes religiões exigem uma espécie de “regra de ouro” – não se trata de uma norma hipotética, condicional, mas de uma norma incondicional, categórica e apodítica – totalmente praticável diante das mais complexas situações em que os indivíduos ou mesmo muitas vezes grupos devem agir” (PESSINI, 2002, p.262). Aborda-se neste subitem a visão das principais religiões do mundo acerca da ortotanásia e a terminalidade da vida, em consonância com o Estado Democrático de Direito, e à sociedade pluralista e laica em que vivemos. Para o Budismo esta religião não vê a morte como fim da vida, mas como transição. O Budismo reconhece o direito das pessoas de determinar quando deveriam passar desta existência para a seguinte. O importante não é se o corpo vive ou morre, mas se a mente pode permanecer em paz e em harmonia consigo mesma (PESSINI, 2002, p.266). Para o budismo a qualidade mental da vida do paciente é fundamental, e a sua decisão quanto ao tempo e forma de morrer é de suma relevância, sob pena de violação aos princípios budistas.  Já o Judaísmo enfrenta a morte, no sentido de que o último período da doença deve ser encarado como o momento em que paciente deve ser assistido, consolado e encorajado (SÁ, 2005, p.63). Apesar de o judaísmo ser contra a eutanásia, não se encontra óbice na prática da ortotanásia. Conforme afirmado por Antônio Chaves, “O judaísmo distingue entre o prolongamento da vida do paciente, que é obrigatório, e o da agonia, que não é. Logo, se houver convicção médica de que o paciente agoniza, podendo falecer dentro de 3 dias, admitidas estão a suspensão das manobras reanimatórias e interrupção de tratamento não analgésico. Deveras, no Torá, livro sagrado dos judeus, acolhida está a idéia da dignidade da morte, pois assim reza: “Todo aquele cuja existência tornou-se miserável está autorizado a abster-se de fazer algo para prolongá-la” (CHAVES, 1994, p.67). Para o Islamismo, no que tange à ética médica, o Código Islâmico de Ética Médica dispõe como juramento que o médico jura proteger a vida humana em todos os estágios e sob quaisquer circunstâncias, fazendo o máximo para libertá-la da morte, doença, dor e ansiedade. O médico é um instrumento do Deus islâmico para curar as doenças, preservar a vida e a saúde. Neste sentido, pode-se inferir que a ortotanásia poderia ser admitida pela religião islâmica. Segue esta assertiva, Maria de Fátima Freire de Sá onde pondera que, “[…] torna-se imperioso concluir que o islamismo condena o suicídio e a eutanásia ativa. Contudo, traz certa simpatia em relação à ortotanásia, uma vez que condena a adoção de medidas heróicas para manter, a todo custo, a vida de alguém com morte eminente” (SÁ, 2005, p.70). O cristianismo é a religião mais difundida no mundo. Por conseguinte, é a que apresenta a maior quantidade de documentos acerca do processo de morrer. A Declaração sobre a Eutanásia, de 1980, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, conceitua a eutanásia[14], e a condena como sendo uma violação da Lei divina, de uma ofensa à dignidade humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade. Em 1995, o Papa João Paulo II, promulgou a Carta Encíclica Evangelim Vitae. Nesta carta, o papa condena a distanásia, em que este excesso terapêutico já seria inadequado à situação real do doente. Haja vista que a Igreja Católica condena a eutanásia e a distanásia, pressupõe-se que a ortotanásia poderia ser admitida, em tese, já que o cristianismo admite, por meio dos documentos referendados, a renúncia do paciente a tratamentos considerados fúteis e inúteis, e que o mantenham artificialmente vivo por métodos custosos e sofridos. Enfatiza-se que apesar de cada religião ter seus dogmas e filosofias diferentes, isto não afasta a dimensão morte, pois esta é inerente a qualquer ser vivo. Entre um limite e outro deve-se levar em conta outras dimensões do ser  humano como a promoção do amor e do respeito a si e ao próximo e, sob a ótica da presente investigação científica, no asseguramento de um término de vida digno, o morrer em paz. 5 CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO N.1.805/2006 DO CFM Busca-se neste capítulo comentar a Resolução n. 1.805/2006 do CFM e seus artigos, no intuito de demonstrar que a resolução não ofende a Constituição Brasileira; criticar a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) e a decisão liminar que suspendeu a mencionada resolução; bem como abordar a legitimidade do CFM para disciplinar a ortotanásia. Sustenta-se que a ortotanásia tem características normativas, posto assegurada constitucionalmente pelo direito à morte digna, expresso pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Visando regulamentar a prática da ortotanásia no âmbito das atividades desenvolvidas pelos profissionais da medicina, o Conselho Federal de Medicina brasileiro editou em 09 de novembro de 2006 a Resolução n. 1.805/2006, a qual dispõe sobre o conceito que aquele Conselho tem de ortotanásia e estabelece todos os procedimentos para que ela seja aplicada, nos casos concretos da relação médico-paciente. A ortotanásia é definida no preâmbulo da referida resolução deste modo: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal” (Res. 1.805/2006 CFM). Esta definição objetiva uma tentativa de assegurar a efetividade das garantias da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1º, inciso III, e que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, artigo 5º, inciso III, previstos na Constituição da República de 1988. O artigo 1º da Resolução dispõe que, “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada em prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.[…]” (Res. 1.805/2006 CFM). Neste dispositivo legal observa-se que além do respeito aos direitos e garantias da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada e liberdade, há também o direito ao acesso à informação, em sintonia com o artigo 5º, inciso XIV da Constituição, além de observar os princípios bioéticos da autonomia, beneficência, não-maleficência, e os direitos do paciente ao consentimento informado e da liberdade de uma segunda opinião médica, previsto no Código de Ética Médica. Nos dispositivos da Resolução acima mencionados, pode-se antever o respeito à autonomia privada do paciente, assegurada com a informação prévia do seu estado de saúde e suas perspectivas ou não de cura. Assim, o paciente, poderá livremente escolher entre abreviar o seu estado de terminalidade ou prolongá-lo, sempre com o apoio médico e psicológico. Prosseguindo na análise da mencionada Resolução, o artigo 2º assim escreve: “Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito à alta hospitalar.” […] (Res. 1805/2006 CFM) Infere-se neste artigo o direito do paciente em receber os tratamentos paliativos, que buscam o alívio das dores e dos sofrimentos da doença. A exposição de motivos da Resolução esclarece que a Organização Mundial de Saúde preconiza que sejam adotados tais cuidados, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem risco a vida. É de suma importância também esta assistência integral, com o acompanhamento médico para garantir o conforto físico, psíquico, social e espiritual do paciente terminal. A presença da família e de entes queridos é de grande relevância, que somados trarão melhor qualidade de vida ao doente, e respeito a sua dignidade. O direito à alta hospitalar permitirá ao paciente ter os seus momentos finais de forma mais digna, em um ambiente ao qual se sinta mais à vontade e feliz, estando mais próximo daqueles que o amam. Observa-se que o fundamento destas assertivas e do artigo 2º da resolução baseiam-se na filosofia do hospice[15]. Na filosofia do hospice o paciente deve ficar unido aos seus familiares e entes queridos e a equipe interdisciplinar deve cuidar da dor psicológica, espiritual e física, procurando uma melhor qualidade de vida, com a participação da família, inclusive no momento de sua morte. O hospice procura atender as necessidades físicas, emocionais e sociais do doente, respeitando sua integridade, ao dar continuidade ao tratamento e ao permitir que os seus companheiros sejam a imagem e voz de entes queridos e não tubos e ruídos monitores (DINIZ, 2006, p.410-411). Infere-se, portanto, que a resolução não viola dispositivo constitucional, pois visa somente regulamentar um direito que é inerente à pessoa humana, o morrer com dignidade. Trata-se de um documento que busca a transparência da prática da ortotanásia, que rompe a relação de subordinação do paciente ao médico. 5.1 O CFM como órgão autorizado a expedir a Resolução n.1.805/2006 A ação ajuizada pelo Ministério Público Federal traz como um dos fundamentos principais para o pedido de suspensão da referida Resolução n.1.805/2006 a legitimidade do Conselho Federal de Medicina para regulamentar matéria de direito constitucional e a legalidade da mencionada resolução. Com base neste argumento, a 14ª Vara Federal da Justiça Federal do Distrito Federal julgou favorável a antecipação de tutela, em que os efeitos da Resolução n.1.805/2006 foram suspensos até o julgamento final do processo. O Conselho Federal de Medicina[16] integra a Administração Pública indireta, submetida aos princípios previstos no artigo 37, caput, da Constituição da República de 1988, podendo expedir atos normativos, válidos e vinculantes a todo e qualquer médico, no exercício de sua profissão. De acordo com Ronaldo Pinheiro de Queiroz, “As atividades do CFM são típicas da Administração Pública. Os conselhos são órgãos delegados do Estado para o exercício da regulamentação e fiscalização das profissões liberais. A delegação é federal tendo em vista que, segundo a Constituição da República, a teor do art. 21, XXIV, compete à União Federal organizar, manter e executar a inspeção do trabalho, atividade típica de Estado que foi objeto de descentralização administrativa, colocando-a no âmbito da Administração Indireta, a ser executada por autarquia, pessoa jurídica de direito público criada para esse fim” (QUEIROZ, 2006). O CFM é uma autarquia federal criada a partir do Decreto-Lei n. 7.955/45, que foi revogado pela Lei n. 3.268/57 e regulamentado pelo Decreto n.4.045/58 com o objetivo, conforme o artigo 2º da Lei n.3.268, de supervisionar o exercício da profissão médica em todo o país, bem como julgar faltas no decorrer da atividade profissional e pelo seu bom conceito, atinentes à ética médica. Conforme Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Há consenso entre os autores ao apontarem as características das autarquias: 1. criação por lei; 2. Personalidade jurídica própria; 3. capacidade de autoadministração; 4. especialização dos fins ou atividades; 5. Sujeição a controle ou tutela” (DI PIETRO, 2010, p.429). Neste diapasão, coaduna-se com o entendimento de que o CFM é uma autarquia federal, classificado pela sua estrutura como autarquia corporativa (DI PIETRO, 2010, p.432-433); que foi criado por lei, possuindo, portanto, personalidade jurídica própria, com capacidade de autoadministração; especialização de seus fins para regulamentação e fiscalização das atividades dos profissionais médicos; e sujeito a controle ou tutela, submetendo-se à fiscalização pelo Tribunal de Contas.  É adepto deste entendimento, Ronaldo Pinheiro de Queiroz, para quem, “Os conselhos fiscais de profissões regulamentadas são criados por meio de lei federal, em que geralmente se prevê autonomia administrativa e financeira, e se destinam a zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina da classe dos que exercem atividades profissionais afetas a sua existência. Não raro, na própria lei de constituição dos conselhos vem expresso que os mesmos são dotados de personalidade jurídica de direito público, sendo que outras leis preferem apontá-los, desde logo, como autarquias federais. Todos os conselhos profissionais são criados por lei, dotando-os de personalidade jurídica. Citem-se, a título de exemplo, os conselhos federais de farmácia e de medicina, criados respectivamente pelas Leis 3.820/60 e 3.268/57” (QUEIROZ, 2006). Justifica ainda o autor, em face da natureza jurídica de direito público do CFM, devido a sua arrecadação tributária que, “Além disso, os conselhos de fiscalização são detentores de autonomia administrativa e financeira, característica essencial de uma autarquia, cujo patrimônio, próprio deles, é constituído pela arrecadação de contribuições sociais de interesse das categorias sociais, também chamadas de contribuições parafiscais, tendo nítido caráter tributário. Nesse ensejo, cabe enfatizar que, já que as contribuições possuem natureza tributária, segundo o art. 119 do Código Tributário Nacional, “sujeito ativo titular da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento.” (QUEIROZ, 2006). Entretanto, há divergências entre a doutrina e jurisprudência acerca da classificação do CFM como autarquia federal, bem como da sua natureza jurídica de direito público, posição defendida nestes estudos. Há quem entenda que os conselhos de fiscalização, como é o caso CFM, poderiam ser enquadrados como autarquias especiais, autarquia sui generis, entidades paraestatais ou até mesmo entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Segundo Ricardo Luiz Alves, “Durante muitos anos os referidos órgãos foram considerados por ilustres doutrinadores e juristas de peso como sendo entidades para-estatais sui generis, na medida em que desempenhavam, e ainda desempenham, por delegação estatal, funções de cunho regulatório supletivo e fiscalizatório de determinadas profissões, sobretudo as assim denominadas profissões liberais (advocacia, medicina, odontologia, economia, etc.)” (ALVES, 2005). Contrariando a posição defendida neste artigo, Ricardo Luiz Alves afirma que, “Data venia das doutas opiniões divergentes, incluo-me na corrente jurisprudencial que vê os conselhos profissionais regulatórios como pessoas jurídicas de direito privado. O fato de exercerem uma atividade inerente ao poder público não torna os conselhos profissionais regulatórios, por si só, órgãos integrantes da Administração Pública. No tocante a segunda questão, uma leitura atenta do parágrafo 3º. da Lei nº. 9.649/98 permite concluir que os empregados dos conselhos profissionais regulatórios são submetidos ao regime da CLT e não ao regime estatutário ou ao regime de trabalho especial. Neste diapasão, os conselhos profissionais regulatórios são entes jurídicos que possuem patrimônio e renda própria e que tem completa autonomia jurídica para gerir a contratação e demissão do seu pessoal respeitando, é claro, os limites legais estabelecidos pela legislação obreira” (ALVES, 2005). Todavia, é também do entendimento do Supremo Tribunal Federal que o CFM é uma autarquia federal, pessoa jurídica de direito público, submetido à fiscalização do Tribunal de Contas, conforme as jurisprudências abaixo colacionadas, “DEFINIDO POR LEI COMO AUTARQUIA FEDERAL, O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA ESTA SUJEITO A PRESTAR CONTAS AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. (MS 10272, Relator(a):  Min. VICTOR NUNES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 08/05/1963, DJ 11-07-1963 PP-00053 EMENT VOL-00544-01 PP-00052 RTJ VOL-00029-01 PP-00124) EMENTA: Mandado de segurança. – Os Conselhos Regionais de Medicina, como sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do disposto no inciso II do artigo 71 da atual Constituição. – Improcedência das alegações de ilegalidade quanto à imposição, pelo TCU, de multa e de afastamento temporário do exercício da Presidência ao Presidente do Conselho Regional de Medicina em causa. Mandado de segurançaindeferido”. (MS 22643, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/1998, DJ 04-12-1998 PP-00013 EMENT VOL-01934-01 PP-00106). A Resolução n. 1.805/2006 expedida pelo CFM, o qual é uma autarquia, ente da Administração Pública, é um ato administrativo[17], que tem caráter de imperatividade[18], gera a sua vinculação a todos os administrados[19]. Os atos administrativos, como as resoluções expedidas pelo CFM, são definidos por Hely Lopes Meirelles, nos seguintes termos, “Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública, que, agindo, nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direito, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria” (MEIRELLES,1991, p.126). É dentro dessa esfera de competência que o CFM elaborou, aprovou e publicou a Resolução n. 1.805 no Diário Oficial da União de 28 de novembro de 2006.blico, criando, mantendo, modificando ou extinguindo relaçteresse preito, ou impor obrigaç8888888888888888888888888888888888888 A Resolução n. 1.805, como ato administrativo, vincula-se à lei[20], e para tanto, está vinculada de forma coerente à Constituição. Ratifica esta assertiva Iberê Anselmo Garcia (2007, p.273), o qual afirma que a Resolução n.1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina é perfeitamente constitucional e legal, não ferindo as normas infraconstitucionais. Além disso, a matéria regulamentada na Resolução n. 1.805 é atinente à ética médica, respaldada no artigo 2º da Lei n. 3.268 de 30 de setembro de 1957. “Art. 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente” (SENADO, 1957). A ação civil pública ajuizada pelo MPF pondera que o CFM não possui poder regulamentar para dispor sobre o direito à vida. Note-se que a Resolução n. 1.805 não dispõe sobre o direito à vida, a resolução regulamenta a prática da ortotanásia, um ato médico, que trata da ética médica. O direito à vida já está disciplinado na Constituição. Compreende-se que na verdade ocorre um conflito de princípios, onde a dignidade da pessoa humana, aliada à autonomia privada sobrepõe-se à vida sem qualidade, fundada em tratamentos desumanos e degradantes, os quais são vedados pelo texto constitucional. O que ocorre é uma interpretação principiológica da Constituição. Segundo Gomes Canotilho, “Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo” (CANOTILHO, 1993, p.171). Havendo um vazio legislativo, a legalidade pode ser conferida à Resolução, sob a premissa de que deve ser dada a máxima efetividade à aplicação da norma constitucional, de acordo com o princípio da eficiência ou máxima efetividade[21]. Conforme Iberê Anselmo Garcia, tratando deste vazio legislativo sobre a disposição legal da ortotanásia, “[…] Para dirimir dúvidas, os projetos de lei que excluem a ilicitude da ortotanásia de forma clara e inequívoca, disciplinando-a em texto legal deveriam ter sua discussão retomada pelo Congresso Nacional, para que os profissionais pudessem tratar os pacientes terminais de forma tranquila” (GARCIA, 2007, p.273). Assim, na falta da atividade legiferante pelo Poder Legislativo, no sentido de positivar e disciplinar o direito à morte digna, pela prática da ortotanásia, a Resolução n. 1.805/2006 pode ser um marco importante para tentar trazer efetividade do texto constitucional, ao assegurar principalmente a dignidade e a autonomia do paciente terminal. Não se olvida de que a Resolução n. 1.805/2006 cumpre o objetivo do Estado Democrático de Direito, permeado pela Constituição, pois busca não restringir os projetos individuais de vida daqueles que querem morrer no tempo certo, evitando tratamentos fúteis, que violem sua dignidade. Coaduna com este entendimento também, Maria de Fátima Freire de Sá, para quem: “Levantar bandeiras de um Estado Democrático de Direito e desconsiderar a participação daquele que busca a materialização de seu direito nada mais é que bradar por algo oco em sentido, desprovido, exatamente, das características que lhe conferem rótulo e sustentam seus contornos lexicais. Não há como se falar em democracia, desconsiderando a pluralidade e esta não existe se excluídos os rasgos da diferença” (SÁ, 2008, p.149). Neste sentido, urge-se pelo direito à morte digna, pois a Resolução n. 1805/2006 regulamenta a ortotanásia, que não está disciplinada em lei-infraconstitucional, mas implícita pela Constituição, como co-extensão da dignidade da pessoa humana. 6 ORTOTANÁSIA E O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO A ação civil pública n. 2007.34.00.014809-3, ajuizada pelo Ministério Público Federal, noticiada no capítulo antecedente tem, entre outros, o fundamento para o pedido de suspensão dos efeitos da Resolução n.1805/2006 o fato de que a ortotanásia é considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro (CPB). Neste liame, a mencionada Resolução acabou por ser suspensa, em decisão liminar pela 14ª Vara Federal/DF, por entender também que existe um aparente conflito entre a referida resolução e o Código Penal. O artigo 121 e seu §1º do CPB dispõe que: “Art. 121. Matar alguém. Pena – Reclusão, de seis a vinte anos. §1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, (…) o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” Em que pese os argumentos postos na decisão judicial, a cominação da norma penal acima descrita deve ser interpretada tomando como critério hermenêutico a Constituição Brasileira. A partir desta interpretação, forçoso concluir que o mencionado dispositivo penal não pode ser aplicado à ortotanásia, vez que esta – considerando o texto da Resolução n.1805/2006 resultaria em uma conduta típica e lícita perante o Código Penal, posto caracterizado como exercício regular da medicina. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, “[…] Entende-se que a eutanásia passiva, ou ortotanásia, pode ser traduzida como mero exercício regular da medicina e, por isso mesmo, entendendo o médico que a morte é iminente, o que poderá ser diagnosticada pela própria evolução da doença, ao profissional seria facultado, a pedido do paciente, suspender a medicação utilizada para não mais valer-se de recursos heróicos, que só tem o condão de prolongar sofrimentos (distanásia) […]” (SÁ, 2005, p.134). Ainda, posiciona a autora (2005, p.135) que, em caso de eutanásia passiva, uma vez presente o pedido do paciente ou, na impossibilidade deste, observada a consulta à família, nem sequer haveria que se falar em imputação de qualquer penalidade. No caso concreto, entendendo o médico de praticar a ortotanásia a pedido do paciente terminal ou de seu representante legal, o profissional optando pela obstinação terapêutica (distanásia) talvez incorresse no crime de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal. De acordo com este posicionamento, Tereza Rodrigues Vieira afirma que, “Vale salientar que o médico deve assistência ao paciente, cabendo-lhe respeitar o desejo de morrer do doente terminal (abstendo-se de técnicas ilusórias e penosas), administrando medicamentos sedativos que aliviam e aceleram a chegada da morte, a qual deverá ser o mais digna e confortável possível” (VIEIRA, 2006, p.36).  Outrossim, verifica-se o atraso do Código Penal Brasileiro vigente (de 1941), se não interpretado de acordo com a Constituição, pode levar à supressão de direitos e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a liberdade. De acordo com Hans Kelsen, a norma inferior deve ser produzida de acordo com a norma superior, “A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra […]” (KELSEN, 1998, p.155). Se o Código Penal, lei infra-constitucional de 1941, repita-se, não está sendo interpretado de acordo com a Constituição, sua validade e eficácia são derrogadas pela Lei Maior. O último anteprojeto de lei, visando à reforma da parte especial do Código Penal, de 1999, tratava também da descriminalização da ortotanásia. Com a modificação do artigo 121, o parágrafo 4º teria a seguinte redação: “Art. 121, § 4º: Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.” No entanto, não há necessidade de lei para descriminalizar a ortotanásia, pois é uma prática lícita, viezada pelo direito à morte digna, assegurado pela Constituição. A Resolução n. 1.805/2006 somente procura enquadrar-se segundo o modelo teórico do Estado Democrático de Direito, procurando garantir ao médico e ao paciente maior segurança, diante de situações de grande tensão. Coaduna com este entendimento Iberê Ancelmo Garcia (2007, p. 273), para quem a Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina é perfeitamente constitucional e legal, não ferindo as normas infraconstitucionais, especialmente o Código Penal. Conclui-se, pois, que não existe nenhum conflito, mesmo aparente, entre o Código Penal vigente e a Resolução n. 1.805/2006 do CFM, tanto que, finalmente, em 06 de dezembro de 2010, o juízo da 14ª VF/DF julgou improcedente a ação civil pública e revogou a decisão liminar. 7 A ORTOTANÁSIA NO DIREITO ESTRANGEIRO Apesar de no Brasil não haver legislação específica acerca do direito à morte digna, afora, é claro, a Resolução n.1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina que, entretanto, encontra-se com seus efeitos suspensos por decisão judicial, como informado no capítulo anterior, vários países não só aceitam a ortotanásia, como também a eutanásia e o suicídio assistido. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte Americana admite a aplicação do ato da morte com dignidade (death with dgnity act) com o plebiscito que aprovou por 51% a lei de 1994 no Estado de Michigan, que permite ao médico a administração de substância letal a paciente que deseja morrer, legalizando o suicídio assistido (DINIZ, 2006, p.382). No Estado de Oregon, o departamento de saúde paga 45 dólares a cada paciente terminal que, após aprovação médico-psiquiátrica, deseja participar do programa de suicídio assistido, aprovado em referendo popular, financiando conseqüentemente, os custos hospitalares (DINIZ, 2006, p. 382). A lei de 1990 de Nova York admite que o cidadão indique um amigo, ou parente, para decidir, caso se torne paciente terminal e não puder fazê-lo, a interrupção do tratamento ou não (DINIZ, 2006, p.393). Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p.36-37) noticia a existência da PSDA (Pacient Self-Determination Act) ou Ato de Auto-Determinação do Paciente, lei aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos que entrou em vigor a partir de 1º de dezembro de 1991. Esta lei reconhece a recusa do tratamento médico, reafirmando a autonomia do paciente, em que da sua entrada nos centros de saúde, serão registradas as objeções e opções de tratamento em caso de incapacidade superveniente do doente. Estas manifestações de vontade são realizadas de três formas: o living will (testamento em vida), documento o qual o paciente dispõe em vida os tratamentos ou a recusa destes quando estiver em estado de inconsciência; o durable power of attorney for health care (poder duradouro do representante para cuidados com a saúde), documento no qual, por meio de um mandato, se estabelece um representante para decidir e tomar providências em relação ao paciente; e o advanced core medical directive (diretiva do centro médico avançado), que consiste em um documento mais completo, direcionado ao paciente terminal, que reúne as disposições do testamento em vida e do mandato duradouro, ou seja, é a união dos outros dois documentos. Segundo a autora, o PSDA acompanhou as transformações ocorridas na relação médica, que redefiniram a posição do paciente, inserindo-o como partícipe do processo decisório e atribuindo-lhe direitos. Na Espanha, há disposição do consentimento prévio do paciente, pela Lei Geral de Saúde (LGS – Ley General de Sanidad, de 25/04/1989), inclusive o direito à livre escolha entre as opções apresentadas pelo médico, sendo necessário o consentimento por escrito do doente para qualquer intervenção. Em caso de incapacidade, caberá a decisão aos familiares ou representantes legais (BORGES, 2001, p.300). Na Holanda e na Suíça, o suicídio assistido constitui prática institucionalizada, pela injeção de uma única dosagem letal. (DINIZ, 2006, p.381). Em 1º de abril de 2002, o Parlamento holandês aprovou a lei que legaliza a eutanásia e o suicídio assistido. A eutanásia apenas poderá ser praticada se o paciente não tiver a menor chance de cura e estiver submetido a insuportável sofrimento. O paciente deverá solicitar o procedimento, e não só ele como o seu médico deverão ter certeza que não existe outra alternativa, confirmada por outro médico e por uma equipe de especialistas (DINIZ, 2006, p.388). O Uruguai foi um dos primeiros países a legislar sobre a eutanásia. O Código Penal uruguaio trata o homicídio piedoso como causa de impunidade, desde que o agente tenha sido levado a praticar o ato por compaixão, mediante reiteradas súplicas da vítima, por meio da concessão do perdão judicial. É também previsto no Código Penal da Colômbia, desde que realizada com a anuência expressa do paciente terminal (DINIZ, 2006, p.387). Percebe-se que junto aos avanços da Medicina, o Direito, sob a ótica do Biodireito, busca tentar propor soluções para garantir e assegurar a dignidade do indivíduo e sua autonomia no processo da terminalidade da vida. Assim, verifica-se que alguns países, pela sua própria cultura e desenvolvimento, como a Holanda, são mais flexíveis ao legalizar a eutanásia e o suicídio assistido. Já outros, como o Brasil, ainda vê-se amarrado por um conjunto normativo não compatível com a Constituição Brasileira de 1988, como é o caso do Código Penal, que é de 1941, do que resulta que o diploma punitivo não se coaduna com a modernidade trazida pelo texto constitucional, e conseqüentemente, se não se levar em conta a Constituição como “locus” hermenêutico pode gerar violações de direitos fundamentais ao indivíduo que se encontra em um estágio de angústia, dores e sofrimentos, e que pede socorro para morrer em paz. 8 O PROJETO DE LEI DO SENADO BRASILEIRO N.524/2009: TENTATIVA DE REGULAMENTAÇÃO LEGAL DA ORTOTANÁSIA O projeto de lei do Senado brasileiro n. 524/2009, de autoria do senador Gerson Camata, visa dispor sobre os direitos em fase terminal de doença. Este documento tem objetivo de regulamentar a prática da ortotanásia, via devido processo legislativo, ampliando a participação do Parlamento brasileiro no assunto. Em consulta ao site do Senado, em 30/03/2010, este projeto encontra-se aguardando manifestação do relator na Comissão de Constituição e Justiça (SENADO, 2010). O referido projeto basicamente possui os mesmos dispositivos da Resolução n. 1.805/2006 do CFM, porém de forma mais detalhada. Porém, pelo disposto no artigo 6º, §1º, caso o paciente tenha se manifestado contrário à limitação ou suspensão do tratamento antes de se tornar incapaz, esta vontade deverá ser respeitada. O próprio artigo 6º trata da autonomia privada do paciente, ou na sua falta, dos seus familiares ou representante legal, e da fundamentação da suspensão ou limitação do tratamento em prontuário médico, submetido à análise médica revisora. Em entrevista à Pastoral Familiar, vinculada à CNBB, o Padre Luiz Antônio Bento, em relação ao projeto de lei n. 524/2009, afirmou que, “Parece-nos que haveria consenso quanto ao PLS 116/2000, tal qual aprovado no Senado e quanto ao PLS 524/2009. Faz-se necessário garantir às pessoas em fase terminal de doença (e suas famílias), em situação de morte próxima e inevitável, os cuidados e procedimentos ordinários, básicos e proporcionais, tais como alimentação, hidratação, higiene e sedação da dor. E, também, atendidas as condições estabelecidas em lei, a possibilidade de não utilização de meios extraordinários e desproporcionais, gravosos para o paciente e sua família” (PASTORAL FAMILIAR, 19/01/2010). O Projeto de Lei n. 116/2000, também de autoria do senador Gerson Camata, teve em 02 de dezembro de 2009 sua aprovação pelo Senado Federal, e agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados. O referido projeto exclui a ilicitude da ortanásia. Conforme o site do jornal “Estadão”, o senador Gerson Camata sobre fala sobre a possível aprovação de seu projeto de lei pela Câmara dos Deputados, que ficou arquivado por quase 10 anos: “Cada vez com mais freqüência a morte tem lugar em hospitais crescentemente orientados ao cuidado intensivo por meio de utilização de tecnologia agressiva, o que tem levado à profanação do corpo humano em homenagem às ciências e técnicas médicas, com a conseqüente perda da naturalidade e espontaneidade que a morte tinha em tempo não longínquo” (AGÊNCIA ESTADO, 02/12/2009). Destarte, como defendido neste estudo, não se faz necessária a criação de uma lei para legalizar a ortotanásia, nem mesmo ato administrativo do CFM regulamentando-a, visto que o direito de morrer com dignidade encontra-se assegurado pela Constituição de 1988. Porém, a fim de assegurar a segurança da atividade do profissional médico, e do próprio paciente, é importante que haja uma legislação sobre a ortotanásia complementando aquela expedida pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro. Todavia, até que haja uma lei editada pelo Congresso Nacional, pode-se adotar o conteúdo da Resolução n. 1.805/2006, seja porque dotado de força de ato administrativo com caráter imperativo, seja por não ferir norma constitucional e, principalmente, por tentar garantir a dignidade da pessoa humana e a autonomia privada do paciente terminal. Frisa-se, contudo, que não existem decisões judiciais que tratam especificamente sobre a interrupção da vida em pacientes terminais ou de doenças graves, carecendo os doentes e os médicos de proteção processual para prática da ortotanásia. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que a ortotanásia, que visa a morte no tempo certo, é o procedimento pelo qual o médico suspende o tratamento, ou somente realiza terapêuticas paliativas, para evitar mais dores e sofrimentos ao paciente terminal, que já não tem mais chances de cura; desde que esta seja a vontade do paciente, ou de seu representante legal. E esta prática é reivindicada pelo direito à morte digna, co-extensão da dignidade da pessoa humana, além de ser permeada pelos princípios constitucionais da vida, da igualdade, da liberdade, e do direito à saúde, como fora estudados nestes estudos. Também, como dantes explanado, a ortotanásia atende aos princípios bioéticos. Verificou-se que o profissional médico deve buscar tratar o doente, e não a doença, considerando-o como pessoa, e não como instrumento de uma terapêutica invasiva. Outrossim, torna-se louvável o novo Código de Ética Médica, que visa atender a dignidade do paciente, na visão global de saúde preconizada pela OMS, retirando-se a relação de subordinação entre médico e paciente. Não se olvida que ao discutir a morte, colocam-se em foco também aspectos éticos e religiosos. No entanto, respeitada a sociedade laica e pluralista, inseridas pelo Estado Democrático de Direito, violar direitos fundamentais, como a dignidade e a liberdade, fere a Constituição, Lei Maior de nosso País. Diante dos estudos ora aqui apresentados, observa-se que o Direito, representado pelo Biodireito, ainda não consegue acompanhar o avanço da Medicina, o que submete a um conselho de classe, como o Conselho Federal de Medicina, regulamentar procedimentos que envolvam princípios constitucionais e bioéticos, como a ortotanásia. Neste sentido, torna-se importante a aprovação do PLS n.524/2009, em tramite no parlamento brasileiro que, nos moldes da legalização da eutanásia e do suicídio assistido na Holanda, garantiria a vontade soberana do povo, pela via legítima do devido processo legal, adequando-se ao modelo instituído pelo Estado Democrático de Direito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/analise-constitucional-da-ortotanasia-o-direito-de-morrer-com-dignidade/
Alimentos geneticamente modificados e o Código de Defesa do Consumidor
Em uma primeira angulação, será conceituado o que vem a ser alimentos geneticamente modificados, de acordo com a legislação nacional. Após a análise conceitual, serão confrontadas questões polêmicas relativas aos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) em relação aos princípios norteadores do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078/90. O trabalho discorrerá principalmente sobre a questão da rotulagem dos alimentos que derivam de Organismos Geneticamente Modificados, em confronto com a Lei de Biossegurança Brasileira e de outras legislações estrangeiras. Dar-se-á um destaque maior ao Protocolo de Cartagena, por ser o 1º instrumento jurídico internacional que regulamentou a transferência, utilização e manipulação desses alimentos entre países acordantes do presente protocolo. Em seguida, discutir-se-á questões relativas à saúde humana, sob a dogmática do Código de Defesa do Consumidor e Constituição da República, focando-se sobremaneira na pedra de toque da nossa Carta Magna: a dignidade da pessoa humana. Por fim, veremos como as constituições dos outros países protegem os consumidores, mostrando a visão crítica que estes tem sobre o consumo ou não dos alimentos geneticamente modificados, tanto em países como o Brasil como em outros mais desenvolvidos economicamente.
Biodireito
1. Introdução Hoje abre-se discussão acerca dos riscos do uso dos alimentos geneticamente modificados, mais conhecidos como OGMs (Organismos geneticamente modificados). É importante destacar que tal polêmica envolve não só as áreas da biologia, economia e sociologia, mas também questões jurídicas. O presente trabalho abordará sob um prisma jurídico, principalmente as questões relacionadas à proteção do consumidor, sob o ângulo dos princípios basilares dispostos no Código de Defesa do Consumidor. Tais princípios, com a devida transparência das informações, devem ser respeitados, pois os consumidores tomando conhecimento de seus direitos têm mais condições de decidirem adequadamente a respeito da qualidade de sua alimentação e quais as conseqüências do uso indevido de produtos químicos para o ambiente. O Código de Defesa do Consumidor garante direitos, dentre os quais o que proíbe ao fornecedor de colocar em circulação produtos ou serviços que apresentem alto grau de periculosidade ou nocividade à saúde e à segurança. Verificado pelo consumidor, esta ocorrência, deverá ser comunicada imediatamente às autoridades competentes, mediante ampla divulgação na mídia, conforme dispõe o art. 10, § 1º,da Lei nº 8078/1990 do Código de Defesa do Consumidor, com  penalidade prevista no art. 66, relativa à propaganda enganosa. A questão da rotulagem na identificação de embalagens dos transgênicos é um ponto que merece ser abordado, para que o consumidor possa visualizar e determinar se adquire ou não aquele produto. Também, é uma forma de exigir o cumprimento do Código de Defesa do Consumidor  que determina que sejam informações seguras e precisas. Em alguns países como os Estados Unidos a rotulagem é voluntária. A biotecnologia tem acarretado discussões em diversos países, que também se preocupam com a diferenciação destes produtos. Esta discussão é importante não só pela identificação destes alimentos na forma técnica ou legal, mas, também, pelo lado ambiental. Assim, o foco desse trabalho é informar ao consumidor como são produzidos os alimentos e a criação de outros produtos com a utilização de biotecnologia, a discriminação adequada em seus rótulos mostrando o princípio ativo dos genes, seus efeitos, e que é direito do consumidor ao acesso a alimentos  seguros e  nutritivos. Tanto o fornecedor como o quem manipula fórmulas deverá, dar todas as informações relevantes sobre o produto ou serviço colocados no mercado de consumo, para que o consumidor possa decidir e agir da forma que melhor lhe aprouver. Por ética profissional deve o farmacêutico instruir o consumidor se há ou não a presença de organismos geneticamente modificados. Tais informações compreendem tanto os aspectos positivos quanto os eventualmente negativos, não sendo lícito ao fornecedor e nem ao farmacêutico deixarem de prestá-las. 2. Conceitos de alimentos geneticamente modificados (OGMS) à luz do código de defesa do consumidor O diploma legal que conceitua os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) é a Lei nº 8974/95. Em seu art.3º, incisos.IV e V,assim preceitua: “IV – organismo geneticamente modificado (OGM) – organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética; V – engenharia genética – atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante[1].”  Assim, na definição de Jorge Alberto Quadros Carvalho Silva (2001): “transgênicos são organismos que têm a estrutura genética alterada pela atividade da engenharia genética, que utiliza genes de outros organismos para dar àqueles novas características. Essa alteração pode tanto buscar a melhora nutricional de um alimento como tornar a planta mais resistente a um herbicida”[2]. Analisando o que disse Claúdia Lima Marques (2006), “vimos que a novidade inserida no Código de Defesa do Consumidor foi identificar um sujeito de direitos fundamentais construindo para protegê-lo um sistema de normas e princípios, podendo ter conotações pós – modernas fortes. Tratando-se, pois, de um direito fundamental protegido sobremaneira pelo nosso Estado Democrático de Direito, eis que o consumidor é identificado no âmbito constitucional pátrio”[3].  Desta feita, o Dec. 4.680, de 24 de abril de 2003, que substituiu o Dec. 3.871/2001, regulamenta o direito à informação, assegurado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do consumidor – quanto aos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham organismos geneticamente modificados, ou sejam produzidos a partir deles, deverá ser observado, haja vista que o seu art. 2º impõe o dever de informar aos consumidores sobre a presença de transgênicos nos produtos que os contenham acima de 1%, bem como o previsto no §1º do art. 2º os vendidos a granel ou in natura. Segundo os §§ 1º e 3º desse mesmo artigo, deverá ser destacado o rótulo no painel principal e em conjunto com o símbolo a ser definido mediante o Ministério da Justiça, previstas na Portaria do MJ 2.658, de 22 de dezembro de 2003, e a Instrução Normativa Interministerial 1,de 1º de abril de 2004. Por fim, vê-se que o presente Decreto, no seu art. 3º, impõe inclusive a informação ao consumidor de animais, que tenham se alimentado com OGMs, ou que contribuam como ingredientes para os produtos a serem consumidos, assim como em seu art. 4º, permite a rotulagem negativa, isto é, escrevendo-se “livre de transgênicos”. Assim, percebe-se que o Decreto nº 4680 de 2003 contribui para o “diálogo” das fontes, segundo Cláudia Lima Marques (2006)[4], mandando aplicar, em seu art.6º, as sanções e penalidades do Código de Defesa do Consumidor. Analisando o que disse Claúdia Lima Marques (2006), “vimos que a novidade inserida no Código de Defesa do Consumidor foi identificar um sujeito de direitos fundamentais construindo para protegê-lo um sistema de normas e princípios, podendo ter conotações pós – modernas fortes. Tratando-se, pois, de um direito fundamental protegido sobremaneira pelo nosso Estado Democrático de Direito, eis que o consumidor é identificado no âmbito constitucional pátrio. Tratando-se de um direito fundamental protegido pelo Estado, sendo o consumidor identificado constitucionalmente”[5]. Outra norma que contribui para o “diálogo” das fontes é a Lei nº 11.105/2005, em seu art. 40, pois impõe que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal, que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, tema regulamentado pela Instrução Normativa Interministerial 1, acima citada.         Nessa esteira, efetivamente quer se preservar os valores constitucionais envolvidos, caso se insira no mercado de consumo, alimentos e ingredientes geneticamente modificados, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à vida (art. 5º, caput e XVI), à liberdade (que inclui a escolha quanto ao alimento) e à informação (art. 5º, caput e XIV) e à proteção do interesse do consumidor (art.5º XXXII). Fazendo-se uma análise acerca do Sistema Jurídico do Código de Defesa do Consumidor, em conformidade com a Resolução 39/248/85 da Assembléia Geral das Nações Unidas, e as inovações biotecnológicas, percebe-se que a República Federativa do Brasil terá que intervir nas relações de consumo mais eficazmente. A Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, representou uma inovação na proteção dos consumidores, garantindo em seu art. 6º, direito à proteção, à saúde e à segurança, o direito à proteção dos interesses econômicos, o direito à reparação dos prejuízos, o direito à informação e à educação e o direito à representação. Por conseguinte, o conceito e as normas regulamentadoras dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) têm intíma relação com o Código de Defesa do Consumidor, havendo pois, um “diálogo” das fontes, extraindo-se um direito fundamental à informação dos gêneros alimentícios e alimentos geneticamente modificados, direito este derivado do art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU, de 1966, direito básico à autodeterminação alimentar dos consumidores. 3. Aspectos polêmicos dos alimentos geneticamente modificados, inseridos no código de defesa do consumidor 3.1 O princípio da transparência na ótica da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, aplicada aos OGMs. Dispõe o art. 4º da Lei nº 8078/90, acerca da transparência na relação consumerista em relação à oferta: “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”[6] Então, o que seria o princípio da transparência e que ligação teria com organismos geneticamente modificados? Ensina-nos Claúdia Lima Marques (1999), “que ele principia possibilitar uma relação contratual mais clara e que cause menos danos entre o consumidor e o fornecedor, tendo transparência nas informações acerca do produto a ser vendido, do contrato a ser firmado em todas as fases negociais dos contratos de consumo.  Assim, deve-se entender esse princípio como sinônimo de clareza, informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. A expressão provém do direito alemão, porém transparenzgebot tem sentido diferente no direito consumerista brasileiro, pois no direito alemão tem sentido estrito, enquanto que, para a nossa legislação, deve ser interpretada como um gênero derivado do dever de lealdade e respeito, na fase negocial dos contratos de consumo. Pretendeu o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor; sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações que poderia contrair, um produto que não é adequado ao que pretende, ou que não apresenta qualidade que o fornecedor afirma ter”[7]. Assim, deve-se entender esse princípio como sinônimo de clareza, informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual Nesse diapasão, quando o fornecedor não informa ao consumidor sobre a quantidade usada na produção de organismos geneticamente modificados, está afrontando claramente esse princípio basilar do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, previsto no art.4º da Lei. nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Nesse sentido também preconiza Ruy Rosado Aguiar, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, “Nesse sentido também preconiza  Ruy Rosado Aguiar, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, mostrando que a norma prevista no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor tem caráter nitidamente protetivo do consumidor, tendo em seu contraponto o princípio da harmonização de interesses conflitantes, devendo ser compatibilizada com a questão do desenvolvimento econômico e tecnológico, obrigando informar o consumidor, seja através da oferta clara e correta, em relação à publicidade ou qualquer outra informação suficiente prevista no artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de o fornecedor responder pela falha da informação, nos termos do artigo 20 do Código de Defesa do Consumidor, ou ser compelido a cumprir a oferta nos termos em que foi feita, nos moldes do art. 35 do mesmo diploma legal, caso em que o contrato, por decisão judicial, não obrigará o consumidor, mesmo que devidamente formalizado”[8]. 3.2 O princípio da devida informação, focado nos OGMs A questão relativa à violação do princípio da transparência pela falta de clareza nas embalagens dos produtos que contenham OGMs – Organismos Geneticamente Modificados, tem íntima relação com o princípio da informação, pois estabelece  o art. 31 do Código de Defesa do Consumidor: “A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”[9]. Preceitua Clovis Couto e Silva (1976)  que, “a amplitude do dever de informar prevista no art. 31, enquanto tratado como simples  obrigação secundária pela doutrina contratual, a inevitável indicação e esclarecimento tinha como origem a jurisprudência e a boa-fé e só atingia determinadas circunstâncias consideradas pelo Judiciário como relevantes contratualmente. Era um dever de cooperação entre contratantes, portanto, restrito pelos interesses individuais (e comerciais) de cada um. No sistema do Código de Defesa do Consumidor, este dever assume proporções de dever básico, verdadeiro ônus imposto aos fornecedores, obrigação agora legal, cabendo ao artigo 31, do Código de Defesa do Consumidor, determinar quais os aspectos relevantes a serem obrigatoriamente informados”[10]. As informações contidas nas embalagens dos produtos terão que ser claras, obedecendo a normas já estabelecidas, para que o consumidor possa comparar os produtos com outros de outras marcas. Em relação aos produtos perigosos ou que possam trazer algum risco à saúde e à segurança do consumidor, estes podem ir muito além da simples ameaça à vida e à saúde humanas, podendo causar verdadeiro dano ao Homem. Assim, o transgênico passa de perigoso para nocivo, o que acarretará concretamente maiores conseqüências para a sua saúde. Sendo assim, é necessário que o fornecedor informe as características do produto, de forma ostensiva e adequada bem como a periculosidade e a nocividade, como dispõe o art. 9º do Código de Defesa do Consumidor. Assim, como o fornecedor,  o bioquímico tem o mesmo dever, a ser aplicado de forma extensiva, calcado no ônus de lealdade para com o consumidor que adquire o produto por este fabricado. Dessa forma, percebe-se a importância de tal princípio, uma vez que tanto os opositores, como os defensores da liberação de produtos alimentícios geneticamente modificáveis, devem observar o disposto nos artigos 9º e 31 Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, os bioquímicos devem observar o disposto no art 11, inciso III , da Resolução nº 417 de 29 de setembro de 2004, obrigação essa oriunda do exercício da assistência farmacêutica em  fornecer informações ao usuário de serviços, mesmo sendo em produtos com pequena quantidade de transformação genética, animal ou vegetal. 3.3 A violação do princípio da confiança pelo uso de quantidade maior que a permitida em alimentos geneticamente modificados. Tendo por base a função social do contrato, o princípio da transparência é visto como simples instrumento jurídico para movimentação das riquezas do mercado a fim de viabilizar os legítimos interesses do consumidor. Nesse imperativo, faz-se necessário um regramento legal rigoroso de seus efeitos. Segundo Claúdia Lima Marques (2000), “no sistema do Código de Defesa do Consumidor as cláusulas deverão ser imperativas para proteger a confiança que o consumidor depositou em relação ao vínculo contratual. Assim, a tendência mundial é imputar responsabilidade ao fornecedor por danos à saúde e à segurança, bem como diretamente ao produtor em caso de vício contratual por inadequação da coisa adquirida, prevendo responsabilidade solidária de todos os fornecedores direitos e indiretos.Trata-se, segundo a doutrina alemã de uma relação tripla ou triangular entre o consumidor final (zwischenperson) e o fornecedor indireto, único que domina a técnica da produção”[11]. Nesse caminhar, é o princípio da confiança garantidor de adequação ao uso dos produtos e dos serviços, para evitar riscos e prejuízos deles oriundos, assegurando o ressarcimento do usuário lesado ao consumir quantidade maior que 1% de Organismos Geneticamente Modificados, percentual esse que deverá constar expressamente nas embalagens dos produtos, em razão de uma publicidade enganosa do objeto a ser consumido. 3.4 A publicidade enganosa relativa aos Alimentos Geneticamente Modificados em desconformidade com o Código de Defesa do Consumidor Deveremos analisar o que dispõe o art. 37, da Lei nº 8078/90: “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1º – É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”[12]. Entende-se na dogmática do Código de Defesa do Consumidor, como sendo publicidade, nos dizeres de Cláudia Lima Marques (1999): “(…)Publicidade é toda a informação ou comunicação difundida com o fim direito ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de serviço, qualquer que seja o meio de comunicação utilizado Publicidade é, pois, a promoção, incitação ao consumo.Este é o caminho adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo assim, o elemento caracterizador da publicidade a sua finalidade consumerista[13]. (…)A característica principal da publicidade enganosa, segundo o Código de Defesa do Consumidor, é ser susceptível de induzir a erro o consumidor[14] através de suas “omissões”. A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o “erro” é a falsa noção da realidade, inclusive falsa noção potencial formada na mente do consumidor na ação da publicidade. A veiculação de publicidade caracterizada como abusiva constitui um ilícito civil, e o responsável civilmente é aquele fornecedor que se utiliza da publicidade abusiva para promover os seus produtos, porquanto o fornecedor, segundo Claudia Lima Marques(2006) “conta com o dever de ter e manter dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem publicitária”[15]. Diante do exposto, vê-se que quando o fornecedor se omite acerca do uso de organismos geneticamente modificados, ou que estipule quantidade menor, está, pois, sujeito às penalidades previstas nos artigos 67, 68 e 69 do Código de Defesa do Consumidor, sanções estas penais, bem como de responsabilidade civil. 3.5 A questão da boa-fé objetiva em relação ao Código de Defesa do Consumidor e os Organismos Geneticamente Modificados. O caput do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, dispõe sobre o princípio da transparência, abordando enfaticamente a questão da boa-fé, pois estabelece a necessária harmonia das relações de consumo, devendo ser buscada através da exigência da lealdade nas relações entre consumidor e fornecedor. Para tecer considerações ao acima mencionado, é importante trazer o que expressa o art. 4º, III, do mesmo diploma legal. Vejamos: “Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”[16]. Nas relações de consumo, considerando o aspecto contratual, verifica-se que a boa-fé é requisito exigido do fornecedor e do consumidor para que haja transparência e que novas tecnologias e desenvolvimentos econômicos sejam aceitos e concordados sendo mantido o equilíbrio entre as partes. O princípio da transparência deve ser pré- contratual, ou seja antes da assinatura do contrato e na conclusão deste, sempre visando informar sobre produto ou serviço, integrando o conteúdo do contrato. O princípio da boa-fé é visto como cláusula geral onde há uma delegação em que o juiz elabora o real valor dos interesses em jogo.  Nesse sentido, entende Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (1984): “A cláusula geral seja da boa-fé, seja da lesão enorme, contém implícita uma regra de direito judicial, dirigida à atuação do juiz, que lhe impõe, ao examinar o caso, primeiramente fixar a norma de dever de acordo com a realidade do fato e o princípio a que a cláusula geral adere, para somente num segundo momento confrontar a conduta efetivamente realizada com aquela que as circunstâncias recomendavam. Na cláusula geral há uma delegação, atribuindo ao juiz a tarefa de elaborar o juízo valorativo dos interesses em jogo1. Ela é uma realidade jurídica diversa das demais normas (princípios e regras), e seu conteúdo somente pode ser determinado na concretitude do caso”[17]. Segundo Maria Celina Bodin (2000) “a tarefa do intérprete é como pessoa que deve proceder à ponderação, fazê-lo, em cada caso, entre liberdade e solidariedade. Essa ponderação é essencial, porque, fosse o contrário os valores da liberdade e da solidariedade se excluíram reciprocamente, contudo, quando ponderado, seus conteúdos se tornam complementares: regular-se-á a liberdade em prol da solidariedade social; da relação de cada um: um interesse geral”[18]. Assim, como ensina a doutrina alemã atual, a boa-fé objetiva, é ao mesmo tempo, uma medida objetiva (objektive masstab), a saber, um paradigma de conduta para as partes e uma medida de decisão (entscheidungsmasstab), um instrumento objetivo de apreensão da realidade pelo juiz, nos dizeres de Cláudia Lima Marques(2006). “Abusiva é a conduta ou a cláusula que viola a boa-fé e os deveres impostos por esta aos agentes da sociedade.Como preleciona a Corte Federal Alemã (BGH): “o contratante é obrigado, segundo a boa-fé, já na elaboração das condições gerais contratuais,a levar em conta de forma razoável os interesses de seu futuro co-contratante. A liberdade contratual fica limitada ao princípio da boa-fé, conforme § 242 BGB”[19]. Fica claro então que, na medida em que o fornecedor não prevê em seu contrato cláusulas que seriam de interesse de cliente, ele viola a lealdade com que se deve realizar contratos de consumo. Nesses termos, vê-se a importância da boa-fé objetiva, princípio esse norteador do Código de Defesa do Consumidor, na subsunção de fatos ao direito por parte do julgador, que deverá analisar se houve, ou não, violação aos seus princípios e também, se causou dano aos contratantes, porquanto deve ter ele (juiz) em mente que tal princípio visa a regular a elaboração das condições gerais do contrato até o término deste. 4. Rotulagem dos alimentos e derivados de organismos geneticamente modificados – posicionamento crítico Os produtos que contenham OGMs devem ser etiquetados, para que os consumidores possam ter informações a respeito da inocuidade dos ingredientes relevantes nos produtos que estão adquirindo. Segundo pesquisa coletada pela Organização Mundial de Saúde[20], “no ano de 2004, mais de trinta países do Mundo haviam apresentado certa forma de normas de etiquetagem obrigatória em alimentos produzidos com a tecnologia da engenharia genética.(…)”. Em apertada síntese[21], “vê-se que, nos debates internacionais, há dois usos diferentes na sua essência acerca da rotulagem. Na primeira hipótese, seria um requisito para comunicar a informação de relevância na saúde, já na segunda hipótese seria um mecanismo de transmissão a informação sobre o método de produção, a modificação genética. Aceita-se a imposição de etiquetagem na primeira hipótese, em quase todas as regiões do mundo, sendo usada em apenas alguns países a segunda (hipótese).” As autoridades dos países, em sua maioria, concordam que os OGMs sejam permitidos no mercado após uma série de avaliações adequadas para saber se são tão seguros quanto os alimentos convencionais. Nos Estados Unidos, a rotulagem de alimentos, em geral, não é obrigatória.[22]. Em várias nações do mundo, a legislação sobre da rotulagem de alimentos estabelece limites permissíveis de OGMs. Em razão disso, alimentos que contenham ingredientes geneticamente modificados, em níveis superiores ao permitido, devem ser rotulados como “geneticamente modificados”. Na União Européia, em 18.10.2003, dois novos regulamentos foram publicados -Regulamento 1.829, de 2003, do Parlamento do Conselho Europeu, relativo a gêneros alimentícios e alimentos geneticamente modificados para animais; Regulamento 1830/2003, referente à rastreabilidade e à rotulagem de OGMs e a rastreabilidade dos gêneros alimentícios e alimentos para animais, produzidos a partir de organismos geneticamente modificados. Nos termos do art.12.4 do Regulamento 1829 de 2003: “A Directiva 89/107/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos aditivos que podem ser utilizados nos gêneros destinados à alimentação humana, prevê a autorização de aditivos utilizados nos gêneros alimentícios. Além deste processo de autorização, os aditivos alimentares que sejam constituídos por contenham ou sejam produzidos a partir de OGM deverão também se abrangidos pelo âmbito do presente regulamento no que diz respeito à avaliação de segurança da modificação genética, enquanto que a autorização final deverá ser concedida ao abrigo do procedimento estabelecido na Directiva 89/107/CEE”[23]. Assim, percebe-se, pois, que as exigências da rotulagem não serão aplicáveis aos alimentos contenedores de material que seja constituído de OGMs numa proporção não superior a 0,9% dos ingredientes que o compõem, em países integrantes da Comunidade Européia. No Japão, “foi estabelecida o nível de 5% para a soja, e no caso do milho, nenhum percentual foi estabelecido. Na Austrália e na Nova Zelândia, para que seja necessária a rotulagem, definiu-se em 1% o limite da presença de qualquer alimento geneticamente modificado, já aprovado para o consumo; acima desse limite a rotulagem é obrigatória”[24]. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) são competentes para regular a rotulagem dos alimentos em geral e editar normas relativas às informações e especificações que devem estar contidas em cada produto, derivando, pois, o cumprimento das determinações constitucionais dos incisos XIV e XXXIII, do art.5º da CR/88, concernentes ao direito da informação. É importante destacar o que a Legislação Brasileira dispõe sobre os Organismos Geneticamente Modificados. A padronização dos OGMs (Organismos Geneticamente Modificados) está prevista no art. 40, da Lei nº11.105/05 , e no Decreto nº 5591/05 em seu artigo 91, que estatui: “Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de decreto específico”[25]. Este estudo tem como foco principal a questão da rotulagem ou identificação dos transgênicos, como forma de exigir o cumprimento do Código de Defesa do Consumidor baseando-se em seu teor, principalmente nos artigos que determinam o princípio  da boa-fé, transparência e informação. Assim, é importante frisar que o Decreto nº 4080/03, que regulamenta o direito à informação, assegurado pela Lei nº 8 078 , de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), garante quanto aos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal um percentual-limite (um porcento), de Organismos Geneticamente Modificados, conforme dispõe o art.2º caput do referido diploma legal: “Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto”[26]. Diante das colocações abordadas e fundamentadas, é importante colocar quanto à questão da rotulagem o posicionamento do ilustre doutrinador Nelson Nery Júnior (2002), já que este tem outra visão relativa ao tema abordado: “Antes da preocupação com a rotulagem dos alimentos que contenham OGM, o mais importante neste processo é a preocupação com a biossegurança do alimento. Não que a rotulagem não seja importante, por que o consumidor tem direito de saber o que está consumindo, mas no processo produtivo só haverá discussão acerca da rotulagem se o produto tiver sido liberado, verificando-se que ele não é perigoso para a saúde e para o meio ambiente, segundo parecer técnico do CTNBio”[27]. Nesse passo, cabe examinar se a permissão do percentual de 1% de tolerância não violaria o disposto no artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor, que impõe à informação do consumidor ser correta, clara e precisa. Nesse caso, se aplicam os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, vez que os padrões mundiais são os Codex Alimentarius, pequeno organismo internacional estabelecedor de normas internacionais em matéria de substâncias potencialmente nocivas para a saúde humana e o meio ambiente. Este organismo internacional foi criado em 1963, cujo parceiro dominante é a FAO( Organização para Alimentação e Agricultura). O Codex tem com o objetivo fornecer um processo confiável de definição de normas para dar assistência aos países em desenvolvimento em relação à falta de infra-estrutura e garantias à segurança alimentar e à saúde. Como há tolerância, na maioria dos países desenvolvidos, para a existência da substância não – intencional nos alimentos, é razoável, pois, que a legislação brasileira possa assim proceder, fixando o grau dada a nossa realidade, conforme bem expõe o Codex Alimentarius. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, “há incoerências significativas entre diversos países que adotaram normas obrigatórias de rotulagem de OGMs.Essa incongruência inclui diferenças no tipo e alcance dos alimentos a serem etiquetados, bem como em relação aos ingredientes principais e/ou auxiliares/aditivos de processamento.Vê-se, também, em relação ao grau de tolerância, no limite abaixo de 1%,3% ou 5% dos ingredientes totais ou não – desejados; ou para três ou para cinco dos ingredientes principais”[28]. Em conclusão, percebe-se que a correta etiquetagem, deverá ser obedecida sob pena de ofensa aos princípios previstos em códigos ou normas internacionais e Brasileiras, visando sempre a proteção das relações consumeristas. 5. Legislação brasileira e internacional regulatória dos alimentos geneticamente modificados 5.1 A Lei de Biossegurança Nacional na dogmática do Código de Defesa do Consumidor É notória a implicação potencial dos processos de engenharia genética aplicados, pois, modificar a estrutura genética dos alimentos que comemos apresenta questões de extraordinária importância para o consumidor, envolvendo questões relativas a sua segurança; são destinatários e beneficiários das biotecnologias, objeto, pois, de proteção. Os organismos geneticamente modificados são submetidos a uma série de avaliações antes de obter-se permissão para comercializá-los. Nos Estados Unidos, onde há maior quantidade de OGMs comercializados, as avaliações são efetuadas pela Food and Drug Administration (FDA), a Environmental  Protection Agency (EPA) e o United  Stated Department of Agriculture(Usda)[29]. Na União Européia, o responsável para realizar as avaliações é a European Food Safety Agency (EFSA), desde que ouvidos os comitês de biosseguridade e/ou agências de segurança alimentar dos Estados – membros. No Brasil, a responsabilidade é do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), criado pela Lei nº 11.105 de 24.03.2005, vinculado à Presidência da República. É órgão de assessoramento superior do Presidente da República para a formulação e implementação de Políticas Nacionais de Biossegurança – PNB. De igual modo, temos a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), criada pela Lei nº 8974, de 05.01.1995 , reestruturada pela Lei nº 11.105/05 e regulamentada pelo Dec. nº 5591/05. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança é uma instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, que presta apoio técnico e assessoramento ao governo federal na formulação, atualização e implementação da Políticas Nacionais de Biossegurança de OGMs e seus derivados, bem como pareceres técnicos relativos aos riscos para a saúde humana do uso comercial, segundo dispõe o art. 10, da Lei de Biossegurança e o art.4º, do Dec. 5591/05. Percebe-se, pois, que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança tem íntima ligação com o disposto no Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, relativo à proteção e à segurança dos consumidores Nossa legislação com relação à Biossegurança, adota a alternativa de autorização seletiva e restritiva, bem como os princípios “caso a caso” e “passo a passo”,contidos nos art.14,III,IV e XII, da Lei de Biossegurança Nacional; e art. 5º, III, IV e XII, do Dec. 5.591/05. O princípio, caso a caso, significa que a avaliação dos riscos associados aos organismos geneticamente modificados deve ser realizada de forma individual e singularizada, para cada um deles (case by case); já o princípio passo a passo implica uma escala de progressividade em função do conhecimento prévio e da ausência de riscos em cada função dos conhecimentos prévios e da ausência de riscos em cada fase. É, portanto, um modo de assegurar o “processo de incerteza”, somente procedendo à liberação de OGMs quando a avaliação das etapas anteriores revelar que se pode passar à seguinte sem existência de riscos, ou com riscos mínimos ou controláveis e controle adequado[30]. 5.2 Legislações Internacionais sobre Biossegurança “Na Argentina, existe o Guia de Boas Condutas, que seguem os padrões internacionais. Além deste, para testes em plantas geneticamente modificadas, há outros diplomas legislativos esparsos que direta ou indiretamente, tratam do tema, tais como a Lei de Sementes e Criações Fitogenéticas nº 20.247; o Decreto Regulamentário da Lei de Sementes e Criações Fitogenéticas nº 2.183/91; o Decreto de Criação do Instituto Nacional de Sementes nº2.817/91, sendo que os dois últimos cuidam de conceitos utilizados na legislação de biossegurança, usando para isso um glossário dos conceitos operacionais ao longo da lei e dos guias de boas condutas, evitando-se, assim, confusões entre os biotecnólogos e os consumidores que se interessam sobre o assunto. Tendo em vista o potencial de risco para a saúde humana, não se pode acusar o legislador argentino de excesso de cautela, porque está apenas garantindo a proteção da saúde pública e da própria vida humana[31]. Em relação ao Canadá, existem duas principais leis sobre alimentos: a Lei sobre Produtos Agrícolas e a Lei sobre a Inspeção de Carnes. Assim, os órgão de saúde pública verificam a segurança dos alimentos colocados à disposição do mercado consumidor, abrangendo inclusive os produtos engenheirados, avaliando características peculiares, como a inserção de seqüência de DNA de uma planta alérgica em outra de diferente espécie, capaz de provocar alergia no consumidor, devendo-se, assim, tal fato ser comunicado imediatamente ao consumidor canadense”[32],. 5.3  Protocolo de Cartagena sobre Segurança da Biotecnologia O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança data de 29.01.2000, que entrou em vigor em 11.09.2003, constitui o primeiro instrumento jurídico de “apoio ou continuidade normativa” da Convenção sobre a Diversidade Biológica[33] Em linhas gerais, o “Protocolo de Biossegurança” tem como objetivo principal garantir que o movimento transfronteiriço dos Organismos Modificados Geneticamente (OVM) se realize em condições seguras para a conservação da saúde humana. Esta medida foi tomada, visando regular a transferência, utilização e manipulação e, por outro lado, os movimentos transfronteiriços, incluído-se o trânsito, por meio do território de um terceiro Estado, de OVMs que possam causar efeitos adversos à saúde humana. “Este Protocolo, em seu artigo 4º, delimita o âmbito de sua aplicação: ”movimento transfronteiriço”, o trânsito, a manipulação e a utilização de todos os organismos vivos modificados que podem ter efeitos adversos para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, tendo em vista os riscos para a saúde humana”. Em seu artigo 18, o Protocolo de Biossegurança contém as previsões relativas à manipulação, transporte, embalagem e identificação.Essa é uma das demandas mais importantes para os consumidores europeus e para os países em desenvolvimento, tais como o Brasil, pois, para poder aplicar um sistema de rastreamento de OVMs de maneira que a rotulagem chegue ao produto final.Desse modo, se prevê no Protocolo de Cartagena que, para os OVMs destinados ao uso do alimento humano ou animal, ou ao seu beneficiamento,deverá figurar claramente na rotulagem a menção “podem chegar a conter OVMs”,junto com a advertência de que não estão destinados à introdução intencional no meio ambiente.Deverá figurar, igualmente, a identificação de um ponto de contato para solicitar informação adicional: nome e endereço do indivíduo e da instituição em que os OVMs estão consignados(art.18.2,a).Na hipótese de OVMs destinados ao uso confinado,deve-se haver uma identificação clara na etiquetagem como OVMs,especificando os requisitos de manipulação e o ponto de contato para obter a informação adicional(art.18.2,b),já que, para os destinados à introdução intencional no meio ambiente da parte importadora, aqueles deverão ser identificados claramente como OVMs,com especificação das suas características : as condições de manipulação,armazenamento,transporte e uso seguro, bem como o ponto de contato para obter informações adicionais,assim como sinais indicativos tanto do importador,quanto do exportador(art.18 2,c)” [34]. Portanto, percebe-se que o Protocolo de Cartagena, mais especificamente em seu artigo 18, é bastante genérico e se limita regular a identificação de determinados aspetos simplesmente na documentação que acompanhará os OVMs; ao não estabelecer um autêntico sistema de etiquetagem, proporcionando somente conhecimento ao importador. Assim, percebe-se, pois, a importância do Protocolo de Cartagena, principalmente na questão da rotulagem, sendo usado como fonte de interpretação. O art. 2.4, do Protocolo permite que qualquer parte adote, para a conservação, medidas mais rigorosas que as previstas. É importante informar que o Brasil e a União Européia estão protegidos por normas mais restritivas, conforme já mencionado no item relativo à rotulagem. 6. OGMS e eventuais riscos para a saúde dos consumidores A palavra saúde, de acordo com a Enciclopédia Mirador Internacional (1975)[35], se origina do latim salute, que significa “a salvação, conservação da vida, cura, bem-estar” e, segundo a Organização Mundial de Saúde[36] , é um estado de completo conforto físico, mental e social e não apenas a ausência da doença ou enfermidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 10.12.1948, pela Organização das Nações Unidas resgatou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, tornando-se um marco de grande relevância, por promover o conhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, pois a Declaração nos traz tantos os direitos civis e políticos (art. 3º a 21º), como os direitos sociais, econômicos e culturais (art.22 a 28º). A Declaração inclui o direito à saúde ao preconizar que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar (art.25). “A Constituição de 1988, seguindo os passos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, situa-se no marco jurídico da institucionalização da democracia e dos direitos humanos no Brasil, consagrando também, as garantias, os direitos fundamentais e a proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira, ao asseverar os valores da dignidade da pessoa humana como imperativo da justiça social”[37]. Observa-se que, desde o preâmbulo, a Constituição projeta a instituição do estado democrático, destinado a assegurar o exercício do direito à liberdade, à segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. No campo da saúde, a Constituição mostra-se um documento bem moderno, arrojado e de largo alcance social, ampliando os horizontes de cobertura dos riscos sociais, como forma de conquista do bem-estar coletivo, conferindo nova dimensão aos sistemas públicos de proteção social ao inserir a definição de seguridade social, nos termos do art.194 Constituição da República/88, que vem a ser um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde. É, dessa forma, a temática da saúde bastante abrangente em diversos dispositivos constitucionais, pois é mencionada expressamente como um direito social (art. 6º caput da Constituição da República/88), direito esse fundado em princípios, tais como a universalidade, eqüidade e integralidade, amplamente protegido pela ordem constitucional em vigor. Nesses termos, deve-se, portanto, observar a questão dos transgênicos e o risco da saúde humana. O Código de Defesa do Consumidor, no art. 8º e seguintes, preconiza que: os produtos colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, exceto os considerados previsíveis em razão da sua natureza e fruição.Ademais, a legislação consumerista veda expressamente a colocação no mercado de produtos que apresentem alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança do consumidor, nos preceptivos do art.6º, I, Código de Defesa do Consumidor, bem como a obrigação de retirar do mercado caso esse tipo de nocividade ou periculosidade somente seja verificada posteriormente à sua introdução, comunicando às autoridades competentes e aos consumidores mediante anúncio publicitário, art. 10 Código de Defesa do Consumidor. Assim, segundo Edgar Moreira (2001), “um dos graves perigos apontados dos organismos transgênicos refere-se à efetiva possibilidade de ocorrência de “cruzamento” de cultivos transgênicos com plantas da mesma espécie e com “parentes”da cultura”domesticada”,existentes na biodiversidade”[38]. Desse modo, faz-se, necessário, demonstrar os principais argumentos da liberação do uso dos transgênicos e também daqueles contrários, por entenderem ser altamente danosos para a saúde do homem. Aos que são favoráveis, argumentam que,  “a introdução imediata, no mercado de consumo, dos organismos geneticamente modificados,  farão com que o seu cultivo e a sua comercialização tragam uma maior produção das safras, menos fome, menos risco agrícola, menos uso de defensivos e controle maior da erosão.Segundo os defensores da utilização dos alimentos transgênicos, os riscos e danos para os consumidores não teriam acontecido depois de vários anos de uso.Vê-se que a insulina é transgênica.Sustentam que a avaliação da segurança alimentar dos produtos originários de plantas geneticamente modificadas é baseada no princípio da equivalência substancial, que emprega um conjunto dinâmico de análises para avaliar a segurança alimentar desses produtos em comparação com os alimentos originários dos métodos convencionais.Sistema, aliás, aceito pela Organização Mundial de Saúde (OMS)[39]. Ocorre que, para tais argumentos dos defensores do uso de OGMs, algumas considerações merecem ser tecidas. A respeito do argumento da diminuição da fome mundial, vê-se que o real objetivo das empresas que produzem alimentos geneticamente modificados não é tão somente de criar vias para a solução desse impasse mundial, pois a falta de alimento, slogan das empresas produtoras de alimentos geneticamente modificados, não está relacionada à baixa produtividade, mas sim na obtenção de lucros às custas da pobreza mundial. Há um interesse apenas comercial, em vender a maior quantidade possível desses produtos.Assim, não é preciso cultivar plantas para suprir a demanda de alimentos no mundo, em solos improdutivos, mas, sim, deve haver politícas públicas mais eficientes, para que se reduza cada vez mais as desigualdades sociais existentes em nosso planeta”[40]. Ao argumento de que se terá menos risco agrícola, é importante frisar as conseqüências em relação ao meio ambiente, visto que esta não é sustentável, ou seja, não se tem uma proteção ambiental.Destarte, segundo Varella, 1996: “A preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrada é reconhecida como direito de todos (princípio determinado pela Constituição Federal), um bem de uso comum do povo, essencial á sadia qualidade de vida”. Importa notar que a legislação brasileira reconhece também o direito ao meio ambiente das futuras gerações, de pessoas que ainda não nasceram. Trata-se de direito transindividual, mas com caráter de novo, o de pessoas futuras. Destruir o meio ambiente não é ato de violação de direito não só das pessoas presentes, mas também das futuras, das próximas gerações[41]. Questões relativas ao uso de defensivos agrícolas que poderiam acarretar a transferência indesejada para outros organismos, gerando uma tolerância maior a certos herbicidas, passando as pragas a terem uma maior resistência a estes e, por conseqüência, levaria ao aparecimento de plantas indesejavéis e difíceis de serem destruídas”[42]. Esse posicionamento acima é o entendimento da pesquisadora Carmen Rachel S. M. Faria. Já David Laerte Vieira, falando sobre o princípio da equivalência substancial objetiva, “objetiva a avaliação comparativa, visando a concluir que um alimento geneticamente modificado, ou substância nele introduzida, é tão seguro quanto seu análogo convencional, com histórico de uso seguro, identificando-se,assim,similaridades e diferenças[43]. O resultado do estudo de equivalência substancial é suficiente para que o produtor do alimento receba o “benefício da dúvida”e desfrute de permissão do FDA(Food and Drugs Administration) de liberar o referido alimento para consumo nos Estados Unidos,dada a incapacidade de comprovar os efeitos negativos do seu consumo à saúde humana”[44] . Em contrapartida, a União Européia, no que tange à informação dos consumidores, adota posicionamento contrário aos EUA, pois esse país exige a rotulagem em alimentos com adição de conteúdo alergênico ou nutricional. O que vemos em países europeus é uma maior proteção aos consumidores, já que há determinação de que todos os alimentos alterados geneticamente sejam rotulados, independentemente de ser um equivalente substantivo, ou não.Portanto, no sistema europeu de rotulagem dos transgênicos aplica-se o princípio da precaução, exigindo-se prova científica da segurança do alimento transgênico para a sua introdução no meio ambiente. Dessa forma, há se concluir que nos países europeus tem-se um maior respeito à natureza, visto que ao se aplicar tal princípio,segundo Paulo Antunes Bessa[45], “não pode ser realizada de maneira simplista, porque existe uma complexa relação entre progresso científico, inovação tecnológica e risco”.  Portanto, é de concluir nessa esteira, que a precaução tem que ser proporcional ao risco, devidamente avaliado cientificamente, nos dizeres de Jorge Alberto Quadros Carvalho, “de tal maneira que se o que está num dos pratos da balança for mais preconceito do que risco é socialmente injusto defender políticas públicas que apenas atendam de imediato a um desconforto elitista, travando em longo prazo o avanço de uma tecnologia”[46]. Então, conclui-se que para aqueles que são favoráveis à introdução imediata dos transgênicos, estes não acarretariam danos à saúde do consumidor, mas sem retirar,contudo, o dever de informar os consumidores sobre a quantidade de alimentos geneticamente modificados que irão consumir,caso comprem aquele produto. Todavia, existem argumentos contrários à introdução imediata dos OGMs no mercado de consumo, pois entendem que além de trazer riscos à saúde dos homens(consumidores),envolve outros interesses. Assim, é importante expor o que entendem especialistas da área, como José Maria da Silva, professor da Universidade Federal de Viçosa: “A grande indústria de capital estrangeiro, que lidera a produção de insumos para a agricultura, a grande empresa rural.Os pequenos produtores só teriam a perder, já que, normalmente, são excluídos das grandes vantagens proporcionadas pelas tecnologias de ponta.O efeito para os médios produtores seria incerto.Enfim, desperta a atenção para a questão do emprego, desde que as variedades transgênicas lançadas até agora seriam predominantemente do tipo que economizaria trabalho, a sua utilização também aumentaria o desemprego agrícola”[47]. Para o IDEC-Instituto de Defesa do Consumidor[48],os riscos à saúde dos consumidores são inúmeros, tais como: a)aumento de alergias; b)desenvolvimento de resistência bacteriana; c)potencializarão dos efeitos de substâncias tóxicas; d)aumento de resíduos de agrotóxicos; Nesse sentido, manifestou-se o Tribunal de Justiça de São Paulo: “MANDADO DE SEGURANÇA – SAÚDE PÚBLICA – MEIO AMBIENTE – ALIMENTOS QUE CONTÊM OU PODEM CONTER SUBSTÂNCIAS TRANSGÊNICAS – ATUAÇÃO PREVENTIVA DO CENTRO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – POSSIBILIDADE – O INTERESSE PÚBLICO VOLTADO À PRESERVAÇÃO DA SAÚDE E BEM ESTAR DA POPULAÇÃO GUARDA SUPREMACIA EM RELAÇÃO A INTERESSES MERAMENTE INDIVIDUAIS – ATIVIDADE ADMINISTRATIVA AMPARADA EM LEI – INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO SUBJETIVO VIOLADO POR ATO DE AUTORIDADE EDITADO COM DESVIO DE FINALIDADE, ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO (…) determinou a proibição de comercialização e a interdição cautelar de inúmeros produtos alimentícios comercializados no Estado de São Paulo, por supostamente apresentarem em suas composições material transgênico e por não haver a respectiva rotulagem com essa indicação, sem dar às empresas afetadas possibilidade de apresentar contra prova das amostras colhidas pelo IDEC, não podendo oferecer defesa administrativa prévia. Alega que os produtos recolhidos não contêm OGM quantificável, não sendo oriundos de plantas geneticamente modificadas (transgênicos)…”[49] Assim, sejam os argumentos contrários sejam os favoráveis à implementação na sociedade de consumo de organismos geneticamente modificados, a rotulagem deverá informar a quantidade de transgênicos constante nos produtos, porquanto está previsto no Decreto nº5591/05, em seu art. 91. 7. Ditames constitucionais acerca dos OGMS Não consta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a expressão Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, mas são três os artigos, de suma importância, relativos ao tema da defesa do consumidor. São os art.5º, caput, o inciso XXXII do art.5º, art.170, o inciso V do art 170, o art. 24, incisos V e VIII, bem como o art. 48 dos Atos e Disposições constitucionais transitórias, protegendo, assim, o consumidor brasileiro de forma indireta, de acordo com os ditames constitucionais. A Constituição brasileira foi pouco sistemática no que diz respeito à defesa do consumidor, pois não existe um capítulo específico, nem um artigo específico sobre o tema, o que mostra um atraso do nosso país, relativamente a outras nações. “As Constituições Nacionais de Portugal e Espanha, nos dizeres de Marcelo Gomes Sodré (2007),apresentam artigos sistematizadores a respeito da defesa do consumidor.No âmbito da América Latina, a Constituição argentina, em reforma ocorrida em 1994,passou a ter um artigo extremamente organizado sobre a defesa do consumidor.  Portanto, vê-se uma preocupação mais direta destes países, em relação ao sistema constitucional pátrio”[50]. Vejamos, assim, as disposições constitucionais relativas à proteção do consumidor em outras nações: A Constituição da República Portuguesa, assim dispõe: “Artigo 60.º Direitos dos consumidores  1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos. 2. A publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indirecta ou dolosa. 3. As associações de consumidores e as cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses colectivos”[51]. Em relação à Constituição espanhola temos: “CAPÍTULO TERCERO De los principios rectores de la política social y económica Artículo 51 1. Los poderes públicos garantizarán la defensa de los consumidores y usuarios, protegiendo, mediante procedimientos eficaces, la seguridad, la salud y los legítimos intereses económicos de los mismos. 2. Los poderes públicos promoverán la información y la educación de los consumidores y usuarios, fomentarán sus organizaciones y oirán a éstas en las cuestiones que puedan afectar a aquéllos, en los términos que la ley establezca. 3. En el marco de lo dispuesto por los apartados anteriores, la ley regulará el comercio interior y el régimen de autorización de productos comerciales”[52]. No tocante à Constituição Argentina: “Art. 42.- Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno. Las autoridades proveerán a la protección de esos derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorsión de los mercados, al control de los monopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y de usuarios. La legislación establecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatorios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control”[53]. O art.5º da Constituição da República/88 é um artigo de suma importância para o sistema nacional das relações de consumo, pois o próprio constituinte assim pensou, ao estabelecer que não é possível apresentar emenda constitucional que possa abolir direitos e garantias individuais, previstas no art. 5º, e que está bem claro na disposição no art. 60 § 4º, da CR/88.Mas, o pressuposto do inc. XXXII ,do art. 5º ,CR/88 é de que a relação de consumo é por definição desigual, pois o consumidor e o fornecedor não têm o mesmo conhecimento, merecendo, portanto, a tutela estatal. O art. 170 Constituição da República /88 permite entender os limites da defesa da proteção do consumidor. O legislador constitucional de 1988 optou por estabelecer que a livre iniciativa e a defesa do consumidor eram ambos o princípio da ordem econômica.Ocorre que a livre iniciativa deve ser limitada, para não ser tão livre quanto parecia ser, a fim de que o consumidor não seja lesado, cabendo ao Estado punir a ultrapassagem desses limites, nos termos do art.170, § único, da Constituição da República /88. É importante frisar que a Constituição de 1988 ficou conhecida como “Constituição Cidadã”, com estrutura e cúpula de um Estado Democrático de Direito Nos dizeres de José Joaquim Gomes Canotilho (2000),[54]”a articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos”. Assim, a dignidade da pessoa humana individual ou coletivamente, in casu:do consumidor,é o fundamento norteador de todo o sistema constitucional,para respeitá-la é preciso assegurar os direitos sociais. Existem vários artigos esparsos por toda a Constituição Brasileira em graus e estágios diferentes, relativos à defesa do consumidor, tais como o art.1º, III(dignidade da pessoa humana); art.3º, II e III(desenvolvimento nacional e da redução de desigualdades); art. 6º e ss. (direitos sociais).Todos esses aplicáveis em relação aos alimentos geneticamente modificados, pois está a dignidade da pessoa humana relacionada à vida das próprias pessoas e à redução das desigualdades tem íntima relação com os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor em relação à rotulagem dos OGMs,já que é notória a fraqueza do consumidor frente aos fornecedores e como direito social, direito esse transindividual que deve zelar pela proteção dos consumidores. Por fim, temos que observar o disposto no art. 24, da CR/88, ao repartir as competências legislativas entre as unidades da federação, competência essa concorrente da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal para legislarem sobre a”produção e consumo” e ”responsabilidade por dano ao consumidor” Em tese, os Estados – Membros podem legislar concorrentemente com a União sobre os direitos dos consumidores, estabelecendo que os princípios gerais da legislação federal, enquanto leis nacionais, guiam a produção das leis estaduais. Tal entendimento deve ser observado em relação aos Organismos Geneticamente Modificados. OTribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal entendeu que: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.LEI 14.861/05, DO ESTADO DO PARANÁ. INFORMAÇÃO QUANTO À PRESENÇA DE ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS EM ALIMENTOS E INGREDIENTES ALIMENTARES DESTINADOS AO CONSUMO HUMANO E ANIMAL. LEI FEDERAL Nº 11.105/05 E DECRETOS 4.680/03 E 5.591/05. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE PARA DISPOR SOBRE PRODUÇÃO, CONSUMO E PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE. ART. 24,V E XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.ESTABELECIMENTO DE NORMAS GERAIS PELA UNIÃO E COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS ESTADOS[55]. (…) a rotulagem de alimentos que contenham Organismos Geneticamente Modificados é de interesse nacional, e por isso deve ser padronizada (…)”[56]. Já é, também, o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “HORIZONTINA. REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. LEI MUNICIPAL Nº 1352/99, QUE RESTRINGE O USO E COMERCIALIZAÇÃO DE DETERMINADOS HERBICIDAS. FALECE COMPETÊNCIA AO MUNICÍPIO PARA EDITAR LEIS A RESPEITO DA MATÉRIA. INTERESSE NACIONAL. SIMILITUDE COM OS TRANSGÊNICOS. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DA UNIÃO, ESTADO E DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 24, VI. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, ART. 251, §1º, III E LEI FEDERAL Nº 7802/89”[57]. 8. Posicionamento dos consumidores sobre os organismos geneticamente modificados Nos Estados Unidos, 52,8% da população declararam uma expectativa otimista quanto à biotecnologia[58].Diante, de tais dados, o governo americano em março de 2 000 iniciou revisão das medidas adotadas em 1 986 pelo órgão FDA (Food and Drug Administration),pois, nos Estados Unidos, esses alimentos estão no mercado desde 1 994, é que os consumidores não sabem que vêm consumindo alimentos geneticamente modificados.Fato é que os Estados Unidos são hoje o principal mercado consumidor de transgênicos no planeta. 60% da comida encontrada nos supermercados norte-americanos são frutos da engenharia genética, apesar de dois terços da população não desconfiar disso. Nos países europeus os consumidores rejeitam os alimentos geneticamente modificados, o que levou os supermercados do Reino Unido a banir esses produtos de suas prateleiras. Nessa esteira, vê-se um real conflito existente entre os Estados Unidos e os países europeus,em suas relações comerciais,visto que aquele é totalmente favorável aos OGMs,mesmo que os consumidores não tenham conhecimento da quantidade de transgênicos que estão consumindo, o que é altamente lesivo para os consumidores daquele país, e o continente europeu é veementemente contrário ao consumo de alimentos geneticamente modificados. Diante de tal situação a OMC (Organização Mundial do Comércio), se manifestou em 10/02/2006[59] no sentido de que a UE rompeu as regras do comércio internacional ao restringir a importação de produtos geneticamente modificados e alimentos derivados deles, o que representou vitória para os Estados Unidos,reclamantes contra a União européia,naquela entidade. O relatório da OMC sobre o assunto declarou que os países europeus desrespeitaram regras comerciais quanto aos transgênicos, então rejeitados, e a acusou também de retardar deliberadamente a aprovação das importações, ocasionando verdadeira moratória de fato ao ingresso de produtos geneticamente modificados. As relações comerciais entre tais países não podem ser abaladas frontalmente, ocorrendo que a violação do dever de informação, transparência e lealdade também não podem ser violentados tanto para os consumidores de produtos nacionais,como de produtos importados. Portanto, deve haver uma real fiscalização: se há, ou não, violação destas garantias dos consumidores, principalmente, de produtos norte-americanos que não informam a presença de organismos geneticamente modificados na rotulagem de seus produtos. Não só os países europeus,mas também o Japão resguarda-se quanto aos produtos dos E.U.A.,visto que uma associação de consumidores se posicionou contrária, posto que descobriu milho BT em salgadinhos importados dos Estados Unidos, exigindo dessa,forma,que o Ministério da Saúde local não permitisse que os Estados Unidos exportassem transgênicos para o Japão [60] No Brasil, existem diversas ações coletivas de grupos de defesa dos consumidores, tais como IDEC-Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, diante da União e da Monsanto,perante a 6ª Vara da Justiça Federal de Brasília,que condenou a União a exigir da CTNBio,no prazo de 90 dias,a elaboração  de normas relativas à segurança alimentar,comercialização e consumo de alimentos transgênicos,em conformidade com a Constituição da República e com o Código de Defesa do Consumidor.Vejamos tal decisão[61]: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO EM RECLAMAÇÃO. ARGUMENTO NÃO SUSCITADO NAS RAZÕES DO REGIMENTAL. OMISSÃO INEXISTENTE. AFRONTA À COISA JULGADA. ALEGAÇÃO NÃO APRECIADA. OMISSÃO QUE SE SUPRE. INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO. (…), mas sem alteração do resultado do julgamento, por não se reconhecer procedência na alegação, posto que a sentença proferida na ação cautelar, que vedou o cultivo e a comercialização de transgênicos, embora confirmada neste Tribunal (…).” O IDEC, que exprime a voz dos consumidores brasileiros, obteve outra vitória em junho de 2 000, na Ação Civil Pública que objetivava a proibição de todos os alimentos transgênicos no país.A União e a Monsanto recorreram da sentença de 1ª Instância. É necessário destacar que, apesar de a Justiça Federal de Brasília ter proibido a importação de produtos transgênicos, decisão,aliás, confirmada pelo Tribunal Regional Federal local, o Tribunal Regional de Pernambuco permitiu que 38 mil toneladas de milho geneticamente modificados, importados da Argentina, desembarcasse no porto de Recife.Esse acórdão veio a ser confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, entendendo que os Tribunais Regionais tinham a mesma hierarquia, sendo melhor que fosse julgado pelo poder local.Vejamos o texto do Tribunal Regional da 5ª Região, na íntegra[62]: “ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPORTAÇÃO DE PRODUTO GENETICAMENTE MODIFICADO. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. LEI Nº 8.974/95. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DA MEDIDA LIMINAR. I – A LEI Nº 8.974/95 ESTABELECE QUE A ENTRADA NO PAÍS DE PRODUTO GENETICAMENTE MODIFICADO DEPENDE DE PARECER PRÉVIO CONCLUSIVO DA CTNBIO E AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. II – NÃO PODE A EMPRESA IMPORTADORA SE RESPALDAR EM PARECER EMITIDO PELA CTNBIO EM CASO DISTINTO DE IMPORTAÇÃO DE PRODUTO TRANSGÊNICO, PARA PLEITEAR A LIBERAÇÃO DE MILHO GENETICAMENTE MODIFICADO, DESDE QUE EM CADA IMPORTAÇÃO DE PRODUTO DESSA NATUREZA DEVE SER REALIZADO O EXAME PERTINENTE A FIM DE QUE A AUTORIZAÇÃO SEJA DADA PELO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. III – A DISCUSSÃO TRAVADA A NÍVEL MUNDIAL ENTRE OS CIENTISTAS E AMBIENTALISTAS SOBRE OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS, DEMONSTRA QUE AINDA NÃO HÁ UMA CONCLUSÃO SOBRE OS EFEITOS DESSES PRODUTOS AO MEIO AMBIENTE E A VIDA HUMANA OU ANIMAL. IV – O FATO DA EMPRESA TER COMERCIALIZADO O PRODUTO TRANSGÊNICO, COM AMPARO NA LIMINAR CONCEDIDA NESTE TRIBUNAL, NÃO TORNA SEM OBJETO O AGRAVO DE INSTRUMENTO.V – AGRAVO IMPROVIDO.” No dia 02.10.2 000, sem que nada tivesse sido feito, encerrou-se o prazo que o governo federal teria para elaborar normas relativas à comercialização, consumo e rotulagem de espécies transgênicas, conforme decisão proferida pelo juiz da 6ª Vara Federal de Brasília. Em São Paulo, foi proposta ação questionando a constitucionalidade da Lei Estadual nº 10.467/99 pela ABIA (Associação Brasileira das Indústrias de Alimento), e requerem a fixação de rotulagem de transgênicos.Mesmo assim, o Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo passou a exigir que todos os fabricantes retirassem do mercado os alimentos geneticamente modificados, que não trouxessem especificação no rótulo, visto que a ABIA foi negado seguimento à ADIN, proposta perante o STF:[63]: “Ação direta de inconstitucionalidade. Agravo regimental. 2. Despacho que, acolhendo preliminar de ilegitimidade ativa ad causam suscitada pela PGR e pelo requerido, negou seguimento à ação direta de inconstitucionalidade. 3. A agravante é entidade que congrega associações. Condição de entidade de classe de âmbito nacional, aos fins do art. 103, IX, 2ª parte, da Constituição, não reconhecida, nos termos da jurisprudência da Corte. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” Assim, nessa direção, tem-se que, através de Ações coletivas, tem cada vez uma maior manifestação no sentido de propor ações contra irregularidades nas rotulagens e quanto ao uso de alimentos geneticamente modificados, mesmo que essas ações não sejam propostas propriamente pela parte legitima para propô-la, mas o que não deixa de manifestar a irresignação dos representantes dos consumidores nacionais. 9. O lado desafiador da concorrência no mercado de transgênicos e reflexos para os consumidores brasileiros  “A realidade dos Organismos Geneticamente Modificados é muito vísivel,indicando benefícios”,como bem cita Victor Pelaez[64], no desenvolvimento de novos medicamentos,incremento na produtividade agrícola,possibilidade de minimizar a contaminação meio- ambiental,dentre outros. Ocorre que essa realidade oculta uma segunda, em que os efeitos nocivos são desconhecidos, tal como “à saúde do mercado”.Ocorre que o desenvolvimento dos Organismos Geneticamente Modificados pode alterar profundamente as estruturas mercadológicas,  elevando as barreiras à entrada de concorrentes, eliminando-os e aumentando o poder de mercado. Nos dizeres de Pedro Aurélio de Queiroz[65], “a produção de alimentos geneticamente não modificados pode tornar-se economicamente desinteressante e obrigar empresas que os produzem a deixarem o mercado, uma vez que os transgênicos, são, em geral, mais competitivos, possuem maior resistência a pragas e maior produtividade.” Por conseguinte, diante do avanço tecnológico nessa área, teríamos a transformação de um monopólio de fato, com efeitos deletários sobre o bem – estar econômico-social. Preocupada com essa nova realidade global, a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, SDE, declarou em A.C nº 08012.005135/98-01, que o Sistema de Defesa da concorrência está alerta à entrada de sementes transgênicas no mercado nacional, tendo em vista o caráter preventivo dessa instância. Sendo assim, é possível que as empresas se utilizem da produção transgênica como estratégia de fechamento de mercado, das demais etapas da cadeia produtiva.O SDE posicionou-se quanto à possibilidade dos OGMs poderem mudar as bases de concorrência do mercado de sementes e defensivos,formando um verdadeiro monopólio natural: mercado ausente de concorrência,com apenas um único fornecedor. Com o reduzido número de empresas capazes de produzir transgênicos potencializa riscos concorrenciais, conforme disposto acima, além de acarretar conseqüências danosas para os consumidores. Eis que este se vê sem opção de consumir outro produto, sobre ocasionar um aumento nos preços dos alimentos que contenham alimentos geneticamente modificados. É sabido que a patente cria um monopólio temporário, a fim de se estimular a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos, ocorrendo,pois, um conflito natural entre os valores tutelados decorrentes da proteção patentária e a defesa da concorrência.Dessa forma, os riscos da produção dos OGMs são maximizados pela possibilidade de exploração dos mesmos em regime de monopólio temporário. Desse modo, é de concluir que, não havendo uma desconsideração dos riscos da produção e comercialização dos transgênicos, se constitui um fator de legitimação de escolhas empresariais contrárias ao bem – estar econômico e social. Portanto, é necessário que o Estado desempenhe de forma adequada o seu papel no planejamento econômico, para que se evitem os riscos de desenvolvimento de transgênicos.Com apoio do setor empresarial, mudando a sua cultura, de forma que este passe a prevenir e contabilizar custos sociais decorrentes da comercialização dos transgênicos.Por conseqüentemente, agindo dessa forma, o Poder Público estará promovendo a defesa dos consumidores. 10. Produção das sementes transgênicas: impactos econômicos para o consumidor brasileiro A produção de soja é dominada por quatro países, atualmente, Estados Unidos,Brasil,Argentina e China. O Brasil é o segundo produtor mundial dessa semente, apesar do nosso país não ter aderido à produção de soja transgênica resistente a herbicidas. No entanto, é a nação com a maior riqueza genética, conhecido pela sua grande biodiversidade,matéria prima e tecnologia. Segundo dados colhidos por Marcelo Leite, “a produção de soja é dominada por apenas quatro países: Estados Unidos, Brasil, Argentina e China.Apesar de o Brasil ser o segundo produtor mundial dessa semente, nosso país ainda não aderiu à soja transgênica resistente a herbicida, tecnologia que fascina plantadores onde é regulamentada”[66]. É importante frisar que o Brasil é o país com maior riqueza genética[67],conhecido também pela sua biodiversidade, matéria prima e biotecnologia. A engenharia genética sempre esteve acompanhada de inúmeras controvérsias.Desde os seus primórdios, questionamentos surgiram de ordem ética sobre essa tecnologia e sobre a sua segurança, basicamente sobre uma nova e poderosa eugenia, não se sabendo ao certo os efeitos que poderiam se desencadear nos agentes patogênicos. Na expressão de Adriana Carvalho Pinto Vieira, “os processos biotecnológicos estão incluídos desde a produção de alimentos que estamos acostumados a consumir, tais como álcool, vinhos, cervejas, queijos e pães, pelo processo de fermentação até a produção de proteínas raras, aminoácidos, vitaminas, esteróides, antibióticos, enzimas e uma variedade de produtos químicos e medicamentos”[68]. Dessa maneira, como vimos ao longo do tempo alguns produtos de origem biotecnológica foram sendo substituídos pelo medo, passando a serem respeitados e aceitos pelos consumidores. Em relação aos transgênicos isso somente ocorrerá a partir do momento em que forem dadas as devidas informações sobre os mecanismos e as leis naturais que formam a base destas inovações, não sendo capazes de causar danos à saúde dos consumidores. Destarte, o conhecimento vencerá o medo em se consumir o novo, o desconhecido… Portanto, em relação aos OGMs devemos ficar atentos à soja RR e o milho starlink, pois estes são os principais produtos transgênicos disponíveis no mercado atualmente. Em relação a esses dois produtos, foram atribuídas inúmeras reações adversas para os consumidores. Assim, devemos observar as inúmeras pesquisas científicas em relação aos transgênicos, a fim de que se possa descobrir os reais efeitos no tangente seres humanos, consumidores potenciais, para que não haja lesão à sua saúde. É importante destacar que o plantio da soja da soja transgênica RR é ilegal hoje no Brasil, pela edição da Medida Provisória nº113 de 26 de março de 2 003, convertida na Lei nº 10.688, de 13 de junho de 2 003, que estabelece normas para a comercialização da produção de soja transgênica da safra de 2 003. Essa lei veio a autorizar a produção da soja transgênica e a comercialização até a safra de março de 2004, tanto no mercado externo, quanto no interno, levando a empresa Monsanto,empresa líder mundial na produção de alimentos geneticamente modificados, a discutir a possibilidade de cobrança de “royalties” sobre a “soja clandestina” que contenha o transgene da empresa,em cima do plantio ainda não autorizado 11. Conclusão O presente trabalho de conclusão de curso está inserido dentro da linha de pesquisa: a efetividade dos direitos fundamentais no estado democrático de direito, que tem como projeto estruturante a questão da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, enfocando a proteção, confiança e boa-fé no direito privado, tendo em vista a tutela do consumidor quanto aos riscos à saúde causados pelos alimentos geneticamente modificados. Visa ainda, a real importância da Constituição no estado democrático como bússola norteadora na proteção de direitos contidos em normas infraconstitucionais, tal como o Código de Defesa do Consumidor, objetivando garantir à sociedade brasileira uma justa e solidária proteção, buscando-se a promoção da dignidade da pessoa humana (pedra de toque da Constituição da República /88), a liberdade e a igualdade nas relações privadas. A proteção do consumidor é hoje vista como um desafio ao mundo do direito, pois vivemos hoje em uma sociedade do consumo(mass consumption society ou konsumgesellschaft).Portanto, deverá o Poder Executivo, nas esferas federal, estadual e municipal, fiscalizar de forma contundente questão relativa aos alimentos geneticamente modificados (OGMs),pois o Estado tem a função de proporcionar o bem-estar da população,visando proteger o consumidor de danos causados à sua saúde. O Poder Público é um grande prestador de serviço, ocorre que este tem – se negligenciado em fiscalizar a questão da rotulagem dos alimentos: conteriam ou não alimentos geneticamente modificados. Nessa corrente de pensamento, é necessário que haja uma maior fiscalização e controle por parte da CTNBIO, bem como órgãos de defesa do Consumidor, Procons, IDEC, etc. para que estes conjuntamente detectem e exijam que os fornecedores informem a quantidade superior a 1% na rotulagem dos alimentos modificados geneticamente. A violação da espeficação da quantidade correta ou da omissão acerca dos OGMs fere não só os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor,tais como a da transparência,informação,confiança e boa-fé,mas também a pedra de toque da nossa Constituição de 1988:a dignidade da pessoa humana,pois ao longo de todo o texto constitucional brasileiro buscou-se resguardar e tutelar,não só os consumidores,mas a sociedade de um modo geral. Partindo-se das questões protetivas do direito do consumidor, sob o enfoque nacional, quanto internacional, chega-se à conclusão de que a problemática da saúde relativa a falta ou a omissão da quantidade correta é um problema geral a todos os países. O enfoque deste trabalho não diz respeito à liberação, ou não, dos OGMs, pois tanto com a permissão do consumo, ou não, destes alimentos geneticamente modificados,a falta de espeficação correta da quantidade ou simplesmente a sua omissão levam à lesão do consumidor, com conseqüente aplicação de diversas sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor. Assim, a vulnerabilidade do consumidor é latente, justificando-se dessa forma a tutela do Estado, porque há intervenção deste no domínio econômico, devendo agir juntamente com os órgãos de defesa do consumidor e a CTNBIO, a SDE, emitindo pareceres junto ao CADE, responsável pela defesa das questões concorrenciais em nosso território, para que não se forme um monopólio de fato em relação aos OGMs, agindo dessa forma também estará protegendo os consumidores  de forma indireta,pois são estes  os frontalmente atingidos não só nos riscos à sua saúde,quanto em relação ao aumento de preços. Percebe-se através desse trabalho, que o Código de Defesa do Consumidor está em constante diálogo com outras normas jurídicas, em relação aos OGMs focados em relação à Lei de Biossegurança nacional, pois é esta que define os organismos geneticamente modificados,bem como diversas normas concernentes ao uso, quantidade e implicações desses alimentos para o meio ambiente e para a segurança do consumidor. Em especial, deve-se dar uma maior atenção à soja RR e o milho Starlink, tendo em vista a cobrança de royalties da empresa Monsanto, em cima do plantio anterior à Medida Provisória nº113 de 26 de março de 2 003, convertida na Lei nº 10.688, de 13 de junho de 2 003, que declarou a ilegalidade do plantio destas sementes, a partir da safra de 2 003,gerando inúmeras críticas em relação à aplicabilidade não anterior a safra de 2003, visto que houve claro interesse econômico em tal instrumento normativo.Dessa forma, vê-se que houve muito mais um “jogo” de interesses econômicos do que mesmo tão somente proteger o consumidor nacional. No entanto, o principal problema e de caráter urgente a ser resolvido pelas autoridades públicas, conjuntamente, com a sociedade civil é relacionado à falta de informação adequada nos rótulos dos produtos que estão no mercado consumidor, em que este deveria ser informado se o alimento importado ou nacional é composto por OGMs. Nesse sentido, a proteção do consumidor em relação à rotulagem dos OGMs deverá advir de uma ação integrada entre a sociedade e as ações governamentais, de forma constante,pois a autonomia privada merece sofrer limitações em face do modelo intervencionista estatal,em face da questão da segurança,saúde e bem – estar dos consumidores,principalmente por que modelo estatal deverá se pautar em normas mais rigorosas para os fornecedores que descumprirem as recomendações da CTNBio. Assim, somente dessa forma garantiremos os princípios basilares contidos no Código de Defesa do Consumidor, formadores junto com a Constituição de 1988 do sistema nacional de defesa do consumidor.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/alimentos-geneticamente-modificados-e-o-codigo-de-defesa-do-consumidor/
Em defesa da desjurisdicionalização e descaracterização do aborto como prática delitiva
o aborto é tipificado criminalmente e integra o rol de bens jurídicos que, por sua importância, merecem especial amparo. É hodiernamente desnecessária a proteção a um bem que pode vir a ser tutelado em esferas que não um processo judicial, no qual a mulher, em uma posição já fragilizada, expõe-se a mais uma situação conflituosa. O tema é complexo e polêmico, mas formas alternativas devem ser aventadas para lidar com esta realidade social que é, hoje, um problema.
Biodireito
1. Aspectos Introdutórios É extremamente complexo promover uma abordagem a respeito do abortamento[1] e [2] por conta da estigmatização criada em torno da palavra, ensejando, por conseqüência, posicionamentos identificados como “politicamente corretos”. Nas palavras das professoras Débora Diniz e Dirce Guilhem[3]: “Não há como se aproximar da bioética e de seus temas tão provocativos, como o aborto, a eutanásia ou a clonagem, e manter-se imune à controvérsia moral que a acompanha. A bioética provoca dois sentimentos contraditórios nas pessoas: o fascínio e a repulsa.” Desta forma, falar a favor de um tema assim tão problemático e controverso é abrir, ao autor das sentenças, a abissal possibilidade de ser desqualificado, e não os seus argumentos, sendo alvo do famigerado argumentum ad hominen. Este é um erro crasso, capaz de obnubilar o desenvolvimento de debates teóricos e científicos acerca de um assunto de relevante importância e consequências na vivência hodierna: “O abortamento representa um grave problema de saúde pública. Estima-se que ocorram, considerando apenas o Brasil, mais de um milhão de abortamentos induzidos ao ano, sendo uma das principais causas de morte materna no País. Por atravessar um emaranhado de aspectos sociais, culturais, econômicos, jurídicos, religiosos e ideológicos, é tema que incita passionalidade e dissensão, parecendo, sob consideráveis perspectivas, distante de saída.”[4] Ademais, discorrer sobre abortamento é dificultado pelo fato de as pessoas relacionarem-no com a porvindoura maternidade ou paternidade, atentando para o assunto não de uma forma racional, mas sentimental, emotiva, desprezando conceitos e determinações científicas e apegando-se a argumentos e idéias apriorísticas, preconceituosas e fundadas em anseios que ultimam por conduzir a discussão a uma grave falta de rigor técnico-científico. É imprescindível analisar a possibilidade de ser promovido o abortamento a partir de um viés não restrito ao lado emocional ou religioso, mas por uma perspectiva social, econômica, jurídica e, principalmente, racional. Do latim, abortus, de ab-ortus; tem como sentido a privação do nascimento. Segundo F. Carrara[5], o aborto pode ser definido como “morte dolosa do feto dentro do útero”, ou “violenta expulsão do feto do ventre materno, da qual resulte a morte”. Atualmente, para a maioria dos penalistas, estas são definições insuficientes, não caracterizando a prática do aborto de forma primorosa por ser um raciocínio pautado no causalismo, amplamente calcado em causa-efeito. De acordo com o entendimento sufragado por F. Antolisei[6], renomado penalista italiano, uma melhor conceituação pode ser efetuada considerando-o como a morte dada ao nascituro ainda dentro do útero (intra uterum), podendo ser também decorrente da provocação de sua expulsão. Magalhães Noronha consegue ser impressionantemente sintético em seu conceito: “é a interrupção da gravidez, com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo, embrião ou feto.” [7]. Ao partir de tal acepção, é possível identificá-lo segundo o período do desenvolvimento em que venha a ocorrer, classificando-o como ovular (sobrevém nos dois primeiros meses de gestação), embrionário (nos dois meses seguintes) e fetal (do quinto mês em diante). Após assentados tais conceitos iniciais e introdutórios, passa-se a discorrer acerca do desenvolvimento histórico da prática humana de por fim à vida intrauterina antes de decorrido todo o transcurso gravídico. 2. Breve Escorço Histórico Em períodos históricos passados, o abortamento era tido como um indiferente penal. Não obstante, seria negligente deixar de mencionar que, historicamente, a introdução da idéia de aborto, relacionada à morte de um ser humano, foi introduzida pelo cristianismo[8], o que impregna, de imediato, de forte essência religiosa qualquer tentativa de discussão que venha a ser travada sobre o tema: “A partir do século XVIII a mesma proteção penal [dada ao homicídio] passou a estender-se sobre o feto desde o momento da geração, o que veio a tornar-se regra geral no século passado. A punição do aborto como homicídio foi seguida pelos práticos e pelo Direito Penal Comum, sendo imposta comumente a pena capital.”[9] Anteriormente, era considerado o feto um apêndice ocasional ligado ao organismo materno, podendo a mesma livremente dispor sobre ele, como se objeto fosse. Nessa época, qualquer dano ocasionado por conta de uma prática abortiva era punido, mas não se pensava na proteção de uma futura vida que estava em curso, e sim na incolumidade física da mulher, ou na frustração das esperanças de um pai à sua descendência. Na codificação criminal pátria de 1830[10], não se encontrava tipificado o aborto praticado pela própria gestante. Apesar disso, tal conduta era sancionada quando executada por terceiro, com ou sem o consentimento da “mulher pejada”. O Código Penal de 1890[11] passou a promover uma distinção da prática que ocorresse com e sem a expulsão do feto, e, o auto-aborto, embora tipificado, recebia redução da terça parte se o crime fosse cometido para ocultar desonra própria. Atualmente, encontra-se albergada a tipificação nos artigos 124 ao 128, do Código Penal, havendo as possibilidades expressas de provocação de aborto por médico nos casos denominados de aborto necessário, “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”, e o aborto ético ou sentimental, em casos em que o concepto é fruto de violência sexual cometida contra a mulher. O eminente penalista, Aníbal Bruno, levanta ainda o interessantíssimo questionamento, em uma nota de rodapé: “discute-se entre os autores se a ameaça de suicídio por parte da gestante justifica a intervenção” [12], para que ocorra o sacrifício da vida do feto. Conhecido o transcurso histórico e apresentado o atual tratamento legislativo dispensado à matéria, convém analisar de forma breve e concisa algumas questões polêmicas derredor do tema. 3. Questões Controvertidas Os autores pátrios beiram a unanimidade no tocante à definição do bem jurídico tutelado, considerando como tal a vida humana em formação. Não é o objetivo restringir este trabalho a uma discussão estéril e infrutífera de contestação, impugnando o que é e quando há o inicio da vida. Este é um questionamento, segundo a professora de Bioética da UnB, Débora Diniz, “metafísico-religioso pouco suscetível a um julgamento razoável em um Estado de Direito pluriconfessional” [13]. Desta forma, se for ser levada em consideração o posicionamento majoritariamente adotado por alguns embriologistas de que o desenvolvimento humano inicia-se com a fecundação, momento em que os gametas masculinos e femininos fundem-se para a formação do zigoto (do grego zygotos, acoplados), ter-se-á algumas possíveis contradições. Para mitigar uma possível incoerência, tem sido comum a utilização de recursos e jogos semântico-lingüísticos com apelo a termos – pré-embrião, mórula, embrião somático, blastocisto, jovem embrião – na tentativa de dissimular a presença da vida em seus dias iniciais e possibilitar o uso de embriões em clonagens terapêuticas e pesquisas com células-tronco embrionárias. É possível perceber, nestes casos, o interesse de excluir o ser gerado com gametas da espécie humana, rebaixando-o, escondendo o seu verdadeiro status[14]. Entretanto, se é possibilitado o uso de embriões em tais ocasiões, por que não viabilizar a prática do aborto? O que é levado em consideração para demarcar a tênue linha permissiva existente entre os embriões (leia-se: vidas) utilizados para a prática de clonagens e pesquisas (que matam futuros seres humanos), e os que são destruídos por meio do aborto? Em ambos os casos estamos diante do bem vida humana, e tais condutas poderiam ser consideradas como típicas, afetando bens jurídicos tutelados. Porém, só uma delas é penalizada, o que demonstra uma incoerência dentro do ordenamento jurídico-penal. Uma vez que se encontra permissão para o descarte de futuras vidas humanas para pesquisas, é extremamente incoerente, desconexo, ilógico não permitir que seja efetuado o aborto. Ainda tomando-se como referência o bem jurídico protegido, há outra marcante incongruência ao ser permitida, em nossa codificação penal, art. 128, inciso II, a realização de manobras abortivas, efetivada por médico quando precedido da autorização da prenhe cuja gravidez seja decorrente de ato sexual violento e indesejado, ou seja, do estupro. Em tais situações há um conflito de direitos fundamentais que não pode ser resolvido sem que se faça uso da técnica da ponderação de interesses, usando-se o princípio da concordância prática ou cedência recíproca[15], forjado nos domínios do neoconstitucionalismo. Por intermédio de tal técnica, deverá ocorrer um sopesamento, balanceamento, ponderação dos bens jurídicos que se encontram em rota de colisão. Assim, por que, na situação supracitada (caso do estupro), permitiu-se, por meio da legislação penal, a qual é infraconstitucional, a violação do bem jurídico vida humana intra-uterina, preterindo-o, pensando-se no resguardo da dignidade da mulher que foi violentada? Malgrado não seja o direito à vida um direito fundamental absoluto, já que encontra limitações na teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais e até na própria Carta Magna, este é, pressuposto para o reconhecimento e exercício de outros direitos. Desta forma, e sendo o Código Penal anterior à Constituição Federal de 1988, não é possível ocorrer a recepção constitucional de tal dispositivo, o qual se mostra flagrantemente inconstitucional, devendo, para resguardo do ordenamento jurídico, ser expurgado de nossa codificação. Ao defender a inconstitucionalidade de tal dispositivo penal, pode parecer que há um conflito de ideias dentro deste artigo, mas esta é uma contradição apenas aparente, pois, em toda a redação, a proposta é de demonstrar que a questão do aborto não perpassa única e exclusivamente pela esfera individual, pessoal de uma mulher; vai muito além do indivíduo, pois possui fortíssimas consequências sociais. Não se pode olvidar e deve ser respeitado o viés daqueles que colocam em proeminente posição o direito individual da mulher, servindo como exemplo a postura exarada no seguinte fragmento: “Em todo caso de abortamento, a atenção à saúde da mulher deve ser garantida prioritariamente, provendo-se a atuação multiprofissional e, acima de tudo, respeitando a mulher na sua liberdade, dignidade,autonomia e autoridade moral e ética para decidir, afastando-se preconceitos, estereótipos e discriminações de quaisquer natureza, que possam negar e desumanizar esse atendimento.”[16] Contudo, não é este o argumento principal a ser utilizado neste trabalho para evitar que a figura feminina continue a ser punida caso venha a praticar um abortamento. Poderia tal comportamento ser considerado egoístico, malgrado não se possa negar a relevância e suporte do direito que está sendo posto em questão. Assim, para que possa ser uma prática abortiva legítima e constitucional deverá estar amparada por motivações mais abrangentes, como as de cunho econômico-social, por exemplo. Apesar de não ser mais possível impedir que ocorra uma prática tão comum, corriqueira e geradora de tantos encargos e ônus à Administração Pública, como será demonstrado adiante, escorá-la como possibilidade plausível de manifestação da liberdade individual ou reprodutiva feminina pode vir a ser considerada uma abordagem errônea e distorcida, a qual coloca em evidência o alto grau de individualismo presente, hodiernamente, em nossa sociedade. Sendo assim, faz-se mister compreender que a possibilidade de execução do abortamento encontra-se escorado em um suporte muito mais sólido e abrangente do que o simples confronto entre o direito à vida intra-uterina e a liberdade individual reprodutiva da mulher que foi estuprada: é uma questão de interesse de todo o corpo social. Ao partir de tal posicionamento, a tese da desjurisdicionalização e descriminalização do tipo penal de aborto resta imunizado de algumas de suas críticas, sendo ressaltados valores sociais maiores e mais importantes[17] para que tal conduta possa ser examinada fora da esfera criminal. 4. Aborto Anencefálico[18] Pensando a questão do aborto por um viés distinto, mas, não menos polêmico: qual a justificativa para a obrigação imposta à mulher de continuar uma gestação que se tem total consciência de que o fruto da concepção não irá resistir por um período maior do que alguns minutos, horas ou, no máximo, dias? Este é caso dos fetos anencefálicos (ou anencéfalos), aqueles que não dispõem nem de parca formação encefálica que o possibilite viver além do tempo mencionado. Esta circunstância é muito distinta das hipóteses de má formação cerebral do concepto, as quais possibilitam a sobrevivência, apesar de tal defeito acarretar péssimo desenvolvimento e qualidade de vida para a futura vida humana. Assim, poder-se-ia dizer que é senso comum, ou mesmo fato notório, os encargos econômicos e os efeitos hormonais e comportamentais que abalam o estado psíquico-fisiológico da mulher durante a gravidez. Desta forma, será que é coerente esperar que ela comporte todo esse ônus em prol de uma “pseudo-vida” que, científica e empiricamente, encontra-se comprovado que não terá capacidade de viver superior a algumas poucas horas ou dias? Além disso, o critério utilizado por nosso ordenamento é o da morte encefálica, segundo o art. 3º, da Lei 9.434/97[19]; assim, não há como discordar do entendimento proferido pelo Prof. José Henrique Pierangeli[20]: “Realmente, com a falta de cérebro, o feto não pode nascer com vida e, se isso vier a ocorrer, a vida será apenas efêmera, pelo que seria desumano obrigar uma mulher a arrastar por nove meses uma gestação da qual não poderá resultar uma vida. A nosso ver, pelo menos num primeiro momento, parece-nos inexistir em tal situação um bem jurídico a proteger, o que torna a conduta atípica […]”. Desta forma, como não considerar um feto anencefálico como um mero apêndice ocasional[21] que acarreta enormes encargos à mulher? Assim, não se mostra plausível o impedimento à mulher de promover o abortamento em hipóteses de anencefalia fetal. Ao sair do âmbito de abordagem de uma esfera infraconstitucional e passando a analisar a questão sob o prisma dos direitos fundamentais, não há como identificar um direito “de peso” contraposto ao da mulher para que possa ser utilizado para impedir, impossibilitar a realização do abortamento. Como considerar como vida àquele apêndice, ligado momentaneamente ao organismo materno, que não detém nenhuma capacidade de sobrevida e viabilidade superior a meros dias, mesmo com todo auxílio material e pessoal de hospitais bem aparelhados? O que é que poderia ser argumentado em sentido contrário, para impedir que o direito à integridade física e a incolumidade psíquica da gestante seja executado de forma plena, ao invés de se encontrar debilitada por conta de uma gravidez que não tem chance alguma de produzir um ser humano com um mínimo de viabilidade, que justifique tal sacrifício? A abertura da possibilidade de abortamento em casos de anencefalia não deveria nem entrar em pautas de deliberação e discussão. Este é um tema que teria entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico, caso fosse devidamente analisado, sem se evidenciar juízos muito mais vinculados ao campo emocional ou religioso[22] do que propriamente técnico, científico e devidamente racional. 5. Métodos Contraceptivos? Ultrapassadas algumas questões polêmicas, faz-se mister discorrer acerca de métodos ditos e considerados como contraceptivos, confrontando-os com alguns entendimentos técnicos da seara da embriologia. Outra flagrante contradição facilmente identificável, mas amplamente negligenciada, é relacionada ao dispositivo intra-uterino (DIU), sendo que grande parte da literatura técnica especializada e a Organização Mundial de Saúde o considera como meio abortivo. Nos EUA, por exemplo, enquanto perdurou a proibição legal do aborto, era proibida tanto a comercialização quanto a implantação do dispositivo[23]. Trata-se de um método dito contraceptivo, atuante como agente exógeno, que, de fato, não impede a concepção, e sim a nidação – a implantação superficial do blastocisto no endométrio, que ocorre após a primeira semana de fecundação – por meio da irritação do endométrio[24]. Além do DIU, há certa polêmica em torno da pílula do dia seguinte (denominado tecnicamente de Método de Yuzpe: consiste na injeção de altas doses de uma associação de hormônios[25]), a qual deve vir a ser tomada, para impedir a gravidez, de modo eficaz, nas primeiras 72 horas após o relacionamento sexual[26]. Tais lapsos temporais, tanto do DIU quanto da pílula do dia seguinte, abrem possibilidades suficientes para que ocorra não somente a fecundação, mas a ocorrência de clivagens[27] do zigoto, com a formação de blastômeros, podendo até mesmo alcançar o estágio de mórula[28]. É possível, portanto, inferir que tais métodos atuam como meios abortivos, os quais não se encontram permitidos por nossa codificação penal e que, por motivos diversos, passam “despercebidos”. Sendo assim, fica circunstanciado que, em nosso país, a morte dada ao nascituro não se encontra tão rigorosamente restrita às circunstâncias elencadas no Código Penal. Desta forma, falta somente uma maior elasticidade para que seja permitida a prática do aborto, não somente nos dias iniciais da fecundação, mas também em períodos posteriores. 6. Projetos de Lei O debate é acirrado em sede legislativa, podendo-se constatar a pressão exercida por bancadas parlamentares amplamente influenciadas por entendimentos religiosos, o que finda por desviar o foco da discussão do devido âmbito técnico e jurídico. Na linha de pensamento legalizador[29], e não apenas descriminalizante, pode-se apresentar o posicionamento de algumas feministas, as quais propõem que seja legalizado o aborto, sempre por livre decisão da mulher, até as doze primeiras semanas de gravidez. No âmbito jurídico-legislativo, o Projeto de Lei n. 176, de 1995[30], proposto pelo deputado José Genoíno (PT), permite o abortamento por livre opção da gestante até o nonagésimo dia de gravidez e obriga a rede hospitalar pública a realizar o procedimento.  Seguindo uma linha mais ortodoxa e radical, o Projeto de Lei n. 1.135/91[31], dos ex-deputados petistas Eduardo Jorge e Sandra Starling, propõe a descriminalização[32] do aborto por meio da revogação do art. 124 do CP. 7. Prisma Sociológico Por uma ótica diversa, ao levar em consideração o viés sociológico e deslocar o foco do artigo de uma abordagem meramente jurídica, após sucinto período de pesquisa, foi possível alcançar a seguinte ilação: o aborto é amplamente praticado por pessoas provenientes de classes sociais mais abastadas[33]! Assim, as consequências gravosas da realização de abortamentos inseguros são mais sentidas pela camada populacional de baixa renda. Não pode ser negligenciado que os custos de saúde pública por tais atos terminam, também, por onerar toda a sociedade. Além disso, deve-se evidenciar que mulheres oriundas de famílias que podem arcar com os custos de uma viagem ao exterior, para locais em que o aborto não é proibido, o fazem. Por meio de tal conduta, encontram-se agasalhadas pelo princípio da territorialidade, já que “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado” (artigos 5º e 6º do Código Penal). Além disso, não são atingidas pelo princípio da extraterritorialidade, pois para ser aplicada, ao brasileiro, a lei penal pátria, deve “ser o fato punível também no país em que foi praticado” (artigo 7º, II, par. 2º, b do Código Penal). Assim, mulheres oriundas de famílias em que a questão financeira não configure um obstáculo, e que possuam uma orientação jurídica mínima acerca de tempo e lugar do crime, territorialidade e extraterritorialidade, ficam possibilitadas de praticar o abortamento sem que venha a ser incriminadas por conta de sua conduta. Desta forma, somente aquelas mulheres sem proeminente situação aquisitiva ficariam impossibilitadas de abortar, o que termina por demonstrar que está sendo ferido um dos Princípios Fundamentais, ou melhor, um dos Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil constante no art. 3º, da CF/88, o qual assevera que deve “promover o bem de todos sem preconceitos […] e quaisquer outras formas de discriminação”. Não estaria, com isso, sendo possibilitada uma forma de discriminação econômica e desrespeito ao princípio da isonomia material entre as mulheres[34] deste país? 8. Dados Estatísticos[35] Ao promover análise do ponto de vista sócio-econômico e tomando como referência a consulta ao DataSus (Departamento de informática do Sistema Único de Saúde) é evidente também o número de mulheres provenientes de classes de baixa renda que praticam o aborto em clínicas clandestinas e mal equipadas, as quais são depois atendidas em hospitais públicos, gerando encargos e onerando um sistema que já se encontra debilitado. Segundo dossiê da Rede Feminista de Saúde, “o Brasil gasta por ano cerca de US$ 10 milhões no atendimento das complicações do aborto inseguro” [36]. Serve de parâmetro que, somente no ano de 2004, aproximadamente 240 mil mulheres (a um custo médio unitário de R$ 125,00) foram atendidas na rede pública, provenientes de complicações oriundas da prática abortiva, e, em 2006, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 2.200 abortamentos e cerca de 220 mil curetagens – raspagem uterina promovida após os abortos – sendo que as maiores taxas de curetagens foram originárias da região Nordeste. Além disso, é consenso entre os especialistas que, no caso do abortamento, é extremamente comum a ocorrência da sub-notificação, havendo um número muito maior de lesões e mortes, as quais terminam como cifras ocultas. É o que fora constatado no seguinte excerto da estimativa feita pela Organização Mundial de Saúde[37]: “Where induced abortion is restricted and largely inaccessible, or legal but difficult to obtain, little information is available on abortion practice. In such circumstances, it is difficult to quantify and classify abortion. What information is available is inevitably not completely reliable, because of legal, ethical and moral considerations that hinder reporting. Occurrence tends to be under-reported in surveys, and unreported or under-reported in hospital records. Of course, there are no records on women who do not seek post-abortion care in hospitals. Only the “tip of the iceberg” is, therefore, visible in the number of deaths and the number of women who suffer severe trauma, or who have an infection or severe blood loss and seek medical care”. (Grifou-se) Após ter contato com tais dados informativos, torna-se explícito que a realização do abortamento é um fato recorrente em nossa sociedade. Ignorar essa realidade é somente aumentar as possibilidades de uma prática mal feita e sem sucesso, significando uma maior oneração do erário, com maior dispêndio desnecessário para a rede pública de saúde, é o que se comprova com a seguinte afirmativa: “Pesquisa realizada em Uganda, na África, demonstrou que tratar das complicações de aborto inseguro em hospitais pode custar 10 vezes mais do que oferecer procedimentos de interrupção voluntária da gravidez em unidades de atenção primária.”[38] Tais gastos poderiam ser evitados e minorados frente à possibilidade de ser feito o aborto de forma legal, assistida por médicos e enfermeiros, em locais adequados e não insalubres. Esta não é uma questão que perpassa somente na ideia de proteção à vida e à saúde dessas mulheres, as quais recorrem ao abortamento inseguro, mas na possibilidade de reduzir gastos públicos, minorando impactos sociais. Não obstante, segundo informações do Painel de Descriminalização do Aborto[39], realizado em Brasília, “Em algumas cidades, o aborto inseguro está entre as cinco primeiras causas de mortes maternas, sendo que em Salvador [no Estado da Bahia], desde o início da década de 90, é a primeira causa de mortalidade materna anualmente”. Desta forma, olvidar as nefastas conseqüências da atual postura negligente que se está a evidenciar é somente possibilitar que a cada ano mais e mais mulheres possam vir a ser vítima de uma prática tão comum e corriqueira, mas que acarreta odiosos dispêndios e efeitos na vida social brasileira hodierna. Além disso, permite o consumo desnecessário de verbas estatais que poderiam estar sendo muito melhor aplicadas em outras áreas, ou mesmo no próprio campo da saúde, em vez de tentar minorar as consequências da mantença da proibição criminal com a tipificação da conduta de abortar. 9. Legalizar? Faz-se mister salientar que esta não é só uma questão envolvendo a ponderação de interesses entre o direito à vida do feto e o direito à autonomia reprodutiva da mulher. É um quesito muito mais amplo e que merece ter reconhecido o interesse público e social. Segundo o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, este é um tema que enseja a realização de plebiscito para resolver acerca da legalização, ou não, das práticas abortivas.[40] Um estudo[41] realizado pelo Grupo Curumim e o Ipas Brasil, organizações não governamentais, chega à conclusão que a existência de uma tipificação penal da prática abortiva não constitui impedimento à realização do aborto. Além disso, tem-se, hodiernamente, consciência de que países com legislações mais rigorosas, tais como Brasil, México e Peru têm maiores taxas de abortamento que Holanda, Canadá e Inglaterra, os quais contam com legislações mais brandas. Por configurar ainda como uma prática delituosa, pode terminar provocando um efeito contrário: fazer com que a mulher busque uma solução alternativa para o estado gravídico indesejado em locais inadequados, sendo maiores as chances de realização de um abortamento inseguro. Além disso, o abortamento inseguro é reconhecido pela comunidade internacional como um problema de saúde pública grave, desde a década de 1990. Segundo a Organização Mundial de Saúde[42] (OMS), inseguro é o “procedimento para interromper a gestação não desejada realizado por pessoas sem as habilidades necessárias ou em um ambiente que não cumpra os mínimos requisitos médicos, ou ambas as condições”. Com isso, pretende-se demonstrar que a manutenção de uma tipificação penal da conduta de abortar, hoje, gera efeitos negativos que não podem ser relegados, necessitando-se, urgentemente, de uma reforma legislativa para que tal prática, ao menos, deixe de ser considerada criminosa. Não há como negar que o ideal seria a legalização da conduta abortiva, o que geraria a responsabilização estatal na área da saúde às mulheres que optassem por interromper a gravidez. Todavia, este é o passo seguinte a ser alcançado, sendo prioritário que haja, inicialmente e ao menos, a desjurisdicionalização e descriminalização de tal comportamento. 10. Conclusão Diante de tudo quanto fora exposto, pode-se chegar às seguintes ilações: a) A questão do abortamento envolve direitos muito mais abrangentes que a mera disputa entre o direito à vida do feto e a liberdade reprodutiva da mulher, alcançado alargado espectro social com a afetação na vida de toda sociedade brasileira hodierna. Com isso, continuar a criminalizar a conduta de abortar, não é apenas uma restrição frontal e direta ao direito feminino, individualmente considerado, mas sim a todo o corpo da sociedade que sofre com os efeitos funestos do aborto inseguro. Os gastos de saúde pública que se tem não devem continuar a existir. Tudo isso é efeito da proibição da interrupção voluntária da gravidez, levando numerosa parcela da população de baixa renda a se submeter a procedimentos “cirúrgicos” inadequados que resultam não só na morte de muitas mulheres, mas também em desnecessários gastos com hospitalização e tratamento dessas pessoas que praticaram o abortamento. b) Escorar a possibilidade de ser promovido o abortamento unicamente na liberdade individual é um erro, aspecto simplista de encarar uma questão complexa, pelo menos uma forma de pensar que põe em relevo o alto grau de individualismo e egocentrismo que vem sido vivenciado nas sociedades capitalistas modernas. c) A ideia inicial é que seja promovida, pois, a desjurisdicionalização do tratamento dispensado aos casos que envolvem a interrupção prematura do estado gravídico. O foro adequado para tratar de tais questões não é na justiça criminal e perante um juiz regularmente investido, mas sim, através do debate político e implementação de medidas de saúde para que a mulher que já se encontra em fragilizado estado físico, psicológico e emocional possa receber o devido tratamento por parte das autoridades do Estado, para que se evite a sua submissão ao mais gravoso aparato punitivo estatal, que é o Direito Penal. d) Ultrapassado o estágio da desjurisdicionalização, consequentemente, deixará de ser a conduta de abortar criminosa, sendo imperiosa a revogação do tipo penal atualmente existente, para que este comportamento deixe de ser enquadrado em um ilícito para se tornar uma situação de cuidado e amparo pelas autoridades públicas, devendo existir programas de governo voltados para este gravíssimo problema que é a morte de inúmeras jovens por conta da prática abortamentos inseguros. Local de debate acerca do tema não deve ser restringido às faculdades de direito aos juízos criminais, mas sim no âmbito do Poder Executivo e por representantes do Poder Legislativo, para que seja possibilitada a conscientização e promovida a proteção e defesa de uma parcela social que já está sendo submetida a um enorme dilema, que é a interrupção da gravidez com a conseqüente finalização da vida intrauterina que a mulher carrega em seu ventre. e) Devem ser esquecidos os preconceitos, sentimentalismos e ideais religiosos apriorísticos que impedem a devida discussão derredor de um tema de fulgente importância. Com isso, poderá ser feito um programa de conscientização sexual e reprodutivo, que irá melhorar a condição de vida de mulheres que estejam passando por uma gravidez indesejada, além de evitar mortes e gastos hospitalares com abortamentos inseguros, os quais são hoje amplamente realizados, conforme anteriormente demonstrado.  Uma alternativa plausível, coerente seria a substituição dos tribunais por instâncias de natureza não-penal, no âmbito administrativo, por exemplo, intentando alcançar uma conjuntura de menor exclusão social e, ao mesmo tempo, protetivo da vida e dignidade das inúmeras mulheres que se encontram em estado gravídico indesejado. f) A dogmática penal deve evitar a introspecção, não se devendo restringi-la à preparação de teorias abstratas, que se descolam do meio social na qual estão insertas. Deve, pois, evitar o efeito bolha ou redoma de cristal, no qual o teórico do direito se aparta, por completo, da conjuntura em que está inserido. Desta forma, é mais do que necessária uma discussão teórica de nível, mas esta deve existir concomitantemente com a maior conexão possível com a realidade social. Sem isso, torna-se a discussão vazia de significação, objetivo e conteúdo. Portanto, retirar o tema do abortamento da esfera criminal não é só um argumento de retórica, mas sim uma necessidade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/em-defesa-da-desjurisdicionalizacao-e-descaracterizacao-do-aborto-como-pratica-delitiva/
A questão da vulnerabilidade no caso de pesquisas em seres humanos: algumas reflexões sociais e jurídicas a partir do quadro normativo
O presente artigo é resultado parcial de pesquisa bibliográfica, realizada pela equipe de pesquisadores, no curso de especialização em Direito Ambiental da Universidade Federal de Pelotas. Versa sobre a questão da pesquisa com seres humanos em situação de vulnerabilidade social. Como conclusão, tem-se um quadro em que se constatam deficiências quanto ao quadro normativo geral, quanto ao emprego do TCLE, em  países subdesenvolvidos, e ainda, apontam-se deficiências quanto ao papel do Ministério Público neste processo.
Biodireito
Introdução As pesquisas realizadas com seres humanos, sobretudo, grupos vulneráveis necessitam de cuidados e atenção de forma que seja proporcionada a proteção requerida nesses casos. Crianças, prisioneiros e doentes mentais são exemplos de grupos vulneráveis, pessoas com baixa escolaridade, pobres ou que têm acesso limitado a serviços de saúde são outros exemplos. Em muitas situações, as mulheres também podem ser consideradas como grupo vulnerável. Em algumas culturas, as mulheres estão submetidas aos homens no que se refere ao processo de tomada de decisão e a obtenção do consentimento informado voluntário torna-se extremamente difícil. Essas condições podem comprometer a capacidade de uma pessoa de recusar-se a participar em um estudo. Neste trabalho buscamos abordar o tema de modo sucinto focando, sobretudo, na fundamentação legal no tratamento desses grupos. 1 Definição de pesquisa A atividade de pesquisa como atividade humana, pode ser definida como todo trabalho metódico e sistemático de produção de conhecimento, o que caracteriza a produção científica. A resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde em seu capítulo II.1, define como sendo: “classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, relações ou princípios ou no acúmulo de informações sobre as quais estão baseados, que possam ser corroborados por métodos científicos aceitos de observação e inferência (resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, capítulo II.1).” Essa definição adotada pela referida resolução é bastante genérica, caracterizando a atividade de pesquisa de forma muito clara e concisa, mas, não abarcando os aspectos relativos às particularidades quando do envolvimento de seres humanos na produção da pesquisa. Sendo assim, já em definição seguinte (II.2), traz o que seria uma pesquisa envolvendo seres humanos, sendo: a “pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais”. Novamente, a definição é dotada de um generalismo, uma vez que não faz referência a campos de pesquisa. Essa diferenciação é bastante significativa para pensarmos em termos de padrões éticos, uma vez que existem enfoques metodológicos diferenciados de uma área em relação à outra. Podendo-se cometer equívocos ou o que é pior impedir o avanço da efetividade de direitos já consolidados normativamente. 1.1 Diferença entre Pesquisa com seres humanos e pesquisa em seres humanos Essa diferenciação é bastante relevante para pensarmos a efetividade da resolução quando se trata dos aspectos éticos envolvidos em pesquisas que utilizam seres humanos. Essa diferenciação relaciona-se a distinção metodológica existente entre a pesquisa envolvendo seres humanos numa perspectiva Biomédica e das Ciências Sociais. O Antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira situa bem esta distinção a partir da diferenciação entre “pesquisa em seres humanos” e “com seres humanos”, afirmando o autor que há: “uma distinção central na relação com os sujeitos da pesquisa, invisibilizada pelo que estou chamando de areacentrismo, seria a diferença entre pesquisas em seres humanos, como no caso da área biomédica, e pesquisas com seres humanos, que caracterizaria a situação da antropologia” (OLIVEIRA, 1996, p.01). Essa linha de raciocínio trata a questão em sua essência, uma vez que não se trata de uma distinção meramente terminológica, mas, trata-se do fato de considerar de forma geral, o que em sua gênese é dotado de especificidade, que é o caso das áreas científicas. Em relação a esta generalidade, o Professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira, ressalta que: “que a resolução 196, que foi instituída pela Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde para regular a ética em pesquisa com seres humanos em geral, comete alguns equívocos graves. Ao regular toda e qualquer pesquisa com seres humanos a resolução sugere certo exagero ou certa extrapolação de domínios” (OLIVEIRA, 1996, p.01). Esse enfoque generalista pode levar a uma instrumentalização jurídica que pode incorrer em equívocos do ponto de vista ético, principalmente numa sociedade como a brasileira, uma vez que, do ponto de vista da pesquisa com seres humanos, estes são sujeitos do processo de pesquisa, sendo toda pesquisa estruturada num processo relacional entre pesquisador e sujeito pesquisado, já sob a ótica da pesquisa em seres humanos, a pessoa torna-se um elemento central na experimentação. Em síntese, a natureza metodológica dos campos é distinta, o que implica a adoção de perspectivas, posturas e procedimentos na relação de pesquisa que não podem ser considerados no mesmo arcabouço ético. 1.2 Princípios de Pesquisa As questões éticas relacionadas às pesquisas que envolvem seres humanos apoiam-se em três princípios básicos que são considerados o fundamento de todas as regulamentações e diretrizes que norteiam a condução ética de pesquisas, quais sejam: o respeito pelas pessoas, à beneficência e a Justiça. Estes princípios são considerados universais, transcendendo barreiras geográficas, culturais, econômicas, legais e políticas. Pesquisadores, instituições e sociedade estão de certa forma, obrigados a assegurar-se de que estes princípios estarão sendo seguidos durante todo o processo de realização das pesquisas que envolvem seres humanos. Embora estes princípios possam ser considerados universais, a disponibilidade de recursos necessários para a sua manutenção não é, de forma alguma, universal. Nesse sentido, os procedimentos utilizados para a vigilância ética dos estudos pode não alcançar um nível considerado ótimo ou aceitável. Um exemplo dessa situação é o fato de que não existem princípios universais que delimitem como um estudo clínico deveria ser supervisionado e acompanhado. Apesar dessas limitações, estes princípios devem direcionar o comportamento de todas as pessoas envolvidas no planejamento, implementação e financiamento de pesquisas que envolvem seres humanos. 1.2.1 Respeito pelas pessoas Respeito pelas Pessoas significa reconhecer a capacidade e os direitos de todos os indivíduos de fazerem suas próprias escolhas e tomarem suas próprias decisões. Este princípio está relacionado ao respeito pela autonomia individual e à autodeterminação que todo ser humano possui, reconhecendo sua dignidade e liberdade. Um componente importante deste princípio é a necessidade de proporcionar proteção especial às pessoas vulneráveis dos grupos que serão citados nos próximos capítulos. O princípio do Respeito pelas Pessoas está contido no processo de obtenção do consentimento informado, devendo promover a capacitação necessária ao indivíduo para que ele possa tomar uma decisão voluntária, baseada em informações e esclarecimentos pertinentes no que diz respeito à sua participação na pesquisa. Potenciais participantes da pesquisa devem ser capazes de compreender completamente todos os elementos do processo de consentimento informado. 1.2.2 Beneficência O Princípio da Beneficência torna o pesquisador responsável pelo bem estar físico, mental e social do participante, no que está relacionado ao estudo, sendo também vinculado ao princípio da não maleficência. Os riscos para uma pessoa que participa de uma pesquisa específica devem ser avaliados em contraposição aos potenciais benefícios para a mesma. Outro aspecto diz respeito à importância do conhecimento que poderá ser gerado pela realização da pesquisa. A proteção do bem-estar do participante deve ser considerada como responsabilidade primordial do pesquisador. Proteger o participante é mais importante do que a busca de novos conhecimentos, o benefício para a ciência, que será resultante da pesquisa ou o interesse pessoal ou profissional. 1.2.3 Justiça O pesquisador tem por obrigação distribuir igualmente riscos e benefícios no que diz respeito à participação na pesquisa. O recrutamento e seleção dos participantes da pesquisa devem ser feitos de maneira eqüitativa. O princípio de justiça proíbe que determinado grupo de pessoas seja colocado em risco para que outras pessoas possam se beneficiar. Por exemplo, o princípio da justiça não permite a utilização de grupos vulneráveis – entre eles crianças, pobres ou prisioneiros – como participantes de pesquisas com o objetivo de beneficiar grupos mais privilegiados. Assim como o princípio de respeito pelas pessoas, existe a necessidade de proteger grupos vulneráveis, incluindo-se os pobres e aqueles com acesso limitado à serviços de saúde. 1.2.4 Duplo padrão O duplo padrão consiste em uma distorção da máxima jurídica de tratar os desiguais de forma desigual. Em síntese, é uma tentativa dos países desenvolvidos de subverter as regras limitadoras das pesquisas com os seres humanos nos países em desenvolvimento. Com um rol de regras mais flexíveis, em comparação às existentes em seus países, seria mais vantajoso investir em pesquisa utilizando voluntários de outros países, cujo sistema legal não fosse tão rigoroso. Protagonizado pelos Estados Unidos, o movimento dos defensores da instituição do duplo padrão teve seu ápice recentemente, quando algumas tentativas de alterações na Declaração de Helsinque restaram frustradas, como veremos posteriormente em tópico específico. A essência da argumentação está posta no fato de que os tratamentos oferecidos com os testes seriam mais vantajosos e benéficos para os indivíduos do que os obtidos junto aos sistemas de saúde de seus países. Apesar da argumentação supra, não há como defender o duplo padrão. A simples proposta de éticas diferenciadas por conta de fatores econômicos já soa atentatória contra a moral. E, sendo tal ética pretexto para a defesa da instrumentalização do ser humano torna inaceitável a própria discussão suscitada. O duplo padrão não trata de tratamentos diferenciados para populações que se encontram em situações diversas. Mas sim, de graduações diferenciadas para seres humanos fundamentalmente iguais. E, esse entendimento não apenas não se coaduna com nenhum dos princípios da bioética, como se opõe frontalmente a eles. Em verdade, se opõe frontalmente ao princípio maior da proteção à dignidade da pessoa humana. Se, as desigualdades submetem uma vasta parcela a condições indignas, a atitude mais adequada seria aproveitar-se da condição em que vivem os indivíduos para explora-los, supostamente fazendo-lhes um favor? Longe disso, o mais adequado é trata-los da melhor forma possível, oferecendo-lhes, quando possível, o que há de melhor. Se as condições em que se encontram destoam dos países industrializados, então tais diferenças devem ser atacadas, e o tratamento dispensado deve ser no sentido de suprir o que lhes falta e assim garantir os mesmos direitos. É isso que afirmam os princípios da bioética e os próprios direitos humanos. Admitir éticas diferentes seria desconstruir a essência do que se entende por ética e moral. O duplo padrão, no âmbito da bioética, simboliza justamente isso: a desconstrução de tudo o que foi feito e conquistado até o momento atual, não apenas pela subversão dos valores éticos pelos econômicos. Mas porque exprime algo maior, que é a tangível presença no mundo de um sentimento de superioridade e de ausência de solidariedade. 2 Vulnerabilidade A pesquisa com seres humanos, como já visto, deve ser norteada por preceitos e princípios éticos que evidenciem o respeito à dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais e humanos. Para tanto, é preciso à observância de cada caso concreto, levando-se em consideração as peculiaridades da pesquisa a ser desenvolvida e dos atores que serão envolvidos no processo. É sabido que o sistema capitalista é oriundo da desigualdade e que o modo de vida humano, logicamente, se opera em diferentes padrões. É de amplo conhecimento também, que diversas circunstâncias culturais variam amplamente entre diferentes povos e nações, gerando uma diversidade cultural, e de modo de vida, intensa. Somado a esse cenário diversificado pela desigualdade social e pelas diferenças culturais, se colocam questões de ordem biológica e questões de papel social, contribuindo para atestar inúmeras situações diversificadas nas quais um indivíduo pode estar inserido. Esse contexto, reflete claramente que, para que se efetivem a proteção à dignidade da pessoa humana, todos os fatores diferenciadores devem ser levados em consideração para que os limites éticos das pesquisas com seres humanos não sejam ultrapassados. Para garantir o respeito a tais limites, criou-se o conceito de vulnerabilidade. A vulnerabilidade está intimamente conectada ao princípio da autodeterminação, embora não seja dele indissociável. Nos termos da Resolução 196/96 do CSN, a vulnerabilidade “refere-se a estado de pessoas ou grupos, que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido”. O texto da referida resolução trata vulnerabilidade como sinônimo de capacidade de autodeterminação reduzida, mas, em verdade, embora a redução da autodeterminação seja um caso de vulnerabilidade, a vulnerabilidade em si não pode ser assim conceituada. A redução da autonomia pode ser temporária ou definitiva, gerando, consequentemente, redução na capacidade civil ou até mesmo a incapacidade. Já a vulnerabilidade não se limita ao preenchimento de vícios comportamentais ou limitações como prescritas em lei; vai mais longe, e pode se justificar meramente pelo contexto social. A capacidade civil é atributo inerente da personalidade, a qual decorre do nascimento com vida. Contudo, a capacidade, só é plenamente exercida após o indivíduo atingir a maioridade, desde que livre de quaisquer condições que limitem sua capacidade de entendimento. Assim, nos termos do art. 3º do Código Civil, são absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos, os que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o discernimento mental necessário para a prática dos atos da vida civil, e aqueles que não puderem exprimir sua vontade. Aqui se encontram os doentes em estado comatoso, os surdos-mudos que não possuírem a educação adequada para se comunicar, entre outros. Aos incapazes é absolutamente vedada a prática de qualquer ato negocial ou que consista em consentimento de uso de seus bens ou até mesmo corpo. Qualquer ato praticado por eles será nulo desde a sua origem. Prevê ainda o referido diploma legal uma situação intermediária, chamada incapacidade relativa, onde se encontram os jovens maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, os excepcionais com desenvolvimento mental incompleto, os pródigos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e aqueles que possuem desenvolvimento mental incompleto. A esses indivíduos é possibilitada a prática dos atos da vida civil, desde que devidamente assistidos. A redução da autonomia, portanto, pode ser tida como sinônimo de incapacidade relativa ou até mesmo de incapacidade civil, mas nunca de vulnerabilidade. A vulnerabilidade é bem mais ampla, e abrange situações concernentes a indivíduos que, apesar de preencherem os requisitos legais para pleno gozo da capacidade civil, são absolutamente alienados do mundo por questões sociais, sem possuir o mínimo de instrução e educação para poderem entender a complexidade de uma pesquisa científica. A esses indivíduos, de nada adianta se utilizar dos métodos tradicionais para proporcionar o consentimento informado, pois seu grau de desconhecimento é tamanho que os deixa à margem. São indivíduos que, quer por fatores econômicos, quer por fatores culturais, são vítimas da desigualdade em sua manifestação mais feroz, e não possuem o entendimento suficiente da sociedade na qual estão inseridos para manifestarem validamente suas vontades. Validamente no sentido de livre de vícios e fundadas na total compreensão do que lhes é questionado. Em suma, a vulnerabilidade abrange não apenas os incapazes e os relativamente incapazes – ou indivíduos de autodeterminação reduzida – mas também os marginalizados, embora civilmente capazes. E, a grande ironia, ou talvez a grande perversão do sistema, é que são os vulneráveis justamente os alvos da maioria das pesquisas. 3 Grupos Vulneráveis O conceito de vulnerabilidade, já trabalhado no presente, evidencia a existência de dois tipos de vulnerabilidade: a decorrente de redução de autonomia ou incapacidade civil e a decorrente de uma condição sociocultural e econômica. Logo, os vulneráveis se dividem em grupos, dentre os principais, podemos destacar os incapazes, crianças, doentes mentais e comportamentais, mulheres grávidas, populações de países subdesenvolvidos e povos indígenas.  Nestes casos, deverá haver uma justificação clara dos motivos pelos quais foram escolhidos para participarem da pesquisa, todos especificados no protocolo, para que sejam avaliados pelo Comitê de Ética. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá ser garantido através de representantes legais dos referidos sujeitos da pesquisa. Outros grupos como aqueles preenchidos por indivíduos expostos a certos condicionamentos ou sujeitos à influência de autoridade, como por exemplo, estudantes, militares, empregados, presidiários, etc., serão igualmente protegidos, sendo-lhes garantido pleno direito de escolha na participação nas pesquisas sem sofrer represálias ou constrangimentos. 3.1 Incapazes São aqueles indivíduos reconhecidos pela lei civil como incapazes de manifestar validamente sua vontade. Como exemplos têm-se: crianças, adolescentes, portadores de perturbação ou doença mental, doentes em estado de coma, interditados, etc. A Resolução 196/96 do CNS, determina que, nestes casos, há necessidade de expresso consentimento do responsável, pais no caso de crianças e curador no caso de doentes mentais e interditados. A Declaração de Helsinque coloca ainda a possibilidade de o consentimento do vulnerável acrescer a do responsável, como forma de deixá-lo participar ativamente do processo. As diretrizes da CIOMS possuem diversos princípios concernentes ao tema, os quais se encontram tácita e expressamente constantes nos textos legais nacionais. 3.2 Crianças Antes de iniciar a pesquisa envolvendo crianças, o pesquisador deve estar seguro que crianças não devem ser envolvidas em pesquisas que possam ser desenvolvidas igualmente em adultos, de maneira que o objetivo da pesquisa deve ser o de gerar conhecimentos relevantes para a saúde das crianças. Os pais ou representantes legais devem dar um consentimento por procuração, sendo o consentimento de cada criança deve ser obtido na medida da sua capacidade. A recusa da criança em participar na pesquisa deve sempre ser respeitada, a menos que, de acordo com o protocolo de pesquisa, a terapia que a criança receberá não tenha qualquer alternativa medicamente aceitável e o risco apresentado pelas intervenções que não beneficiem individualmente a criança sujeito da pesquisa seja baixo e proporcional com a importância do conhecimento a ser obtido e as intervenções que propiciarão benefícios terapêuticos devem ser, pelo menos tão vantajosas para a criança sujeito da pesquisa, quanto qualquer alternativa disponível. 3.3 Doentes mentais e comportamentais Antes de iniciar uma pesquisa envolvendo pessoas, que por motivo de distúrbios mentais ou comportamentais, não são capazes de dar consentimento informado adequadamente, o pesquisador deve estar seguro que estas pessoas não serão sujeitos de pesquisas que poderiam ser realizadas em pessoas com plena capacidade mental, devendo ser o objetivo da pesquisa, gerar conhecimentos relevantes para as necessidades de saúde peculiares a pessoas com distúrbios mentais ou comportamentais. O consentimento de cada indivíduo deverá ser obtido na medida de sua capacidade e a recusa de participação de um indivíduo em pesquisa não clínica será sempre respeitada. No caso de indivíduos incompetentes, o consentimento informado será obtido com o responsável legal ou outra pessoa devidamente autorizada, de maneira que, o grau de risco associado às intervenções que não beneficiem o indivíduo pesquisado deve ser baixo e proporcional à importância do conhecimento a ser gerado e as intervenções que possivelmente propiciem benefícios terapêuticos devem ser, no mínimo, tão vantajosas ao indivíduo pesquisado, quanto qualquer alternativa. Não apenas a referida resolução do CNS aborda a pesquisa com os incapazes, a Resolução 41/95, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, vinculado ao Ministério da Justiça, estabelece que, além do consentimento por procuração dos pais ou responsáveis, também a criança ou adolescente devem participar ativamente do processo, quando tiverem capacidade moral adequada. A Resolução 251/97 para projetos em área de farmacologia e novas substâncias, estabelece que a criança e o adolescente podem participar ativamente do processo, na medida de sua capacidade. 3.4 Mulheres grávidas Gestantes não devem ser sob quaisquer circunstâncias, sujeitos de pesquisa não clínica, a menos que a pesquisa não acarrete risco maior que o mínimo para o feto ou bebê em aleitamento e o objetivo da pesquisa deverá ser sempre, gerar novos conhecimentos sobre a gestação ou lactação. Como regra geral, gestantes e não devem ser sujeitos de quaisquer pesquisas clínicas exceto aquelas planejadas para proteger ou melhorar a saúde da gestante, nutriz, feto ou bebe em aleitamento, e que outras mulheres não grávidas não possam ser sujeitos adequados a este propósito. 3.5 Países subdesenvolvidos Sabemos que a definição adotada pela Resolução 196/96 (II.15) trata a vulnerabilidade como sendo “o estado de pessoas ou grupos , que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida”, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido, levando-nos ao um entendimento mais alargado da questão da vulnerabilidade, que passa pela ideia de pensarmos esta não somente a partir dos grupos ou setores exóticos (comunidades tradicionais) ou isolados socialmente (doentes, prisioneiros, abrigados, etc.), possibilitando a consideração da potencialidade da vulnerabilidade naqueles indivíduos próximos de nós, social, culturalmente ou economicamente. Num país como o nosso, de dimensões territoriais continentais, com um processo de exclusão social estrutural e com níveis gerais de escolarização muito baixa, pensar a vulnerabilidade sob a ótica do exotismo, pode levar ao mascaramento daquilo que está no âmago da questão ética, quando na pesquisa envolvendo seres humanos, qual seja, a questão da autonomia, tanto do pesquisador como do pesquisado, ou seja, o investimento científico não é algo espontâneo, existe com uma intenção, todo processo de pesquisa contém por trás a pergunta para que e para quem esse conhecimento vá servir? O que implica por outro lado pensarmos que a participação do ser humano também é condicionada por uma intencionalidade. Em decorrência disso, devido as nossas condições materiais, onde vivemos numa sociedade marcada pela desigualdade e ignorância, falarmos em liberdade e esclarecimento é algo distante da realidade, o que faz com que o instrumento do consentimento livre e esclarecido, se constitua, muito mais, enquanto um procedimento formal, ineficaz, do ponto de vista do estabelecimento de uma relação positiva dentro do processo de produção de conhecimento.  Seria idealismo ou má fé, considerarmos que um sujeito em situação de extrema pobreza e ignorância é incapaz de consentir sobre algo tão complexo quanto uma pesquisa. Conforme traz-nos a resolução 196/96, II.16, incapacidade “refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido”, o que num país onde milhares de pessoas não tem existência civil, leva-nos a pensar com mais cuidado sobre a ideia de incapacidade, como pressuposto para o consentimento. Num país como o nosso deve ser observado estas condições de ordem material para pensarmos o agir ético em pesquisa que envolva seres humanos, pois o vulnerável está bem perto de nossos olhos, compartilhando conosco, mesmo que numa condição desigual, a condição efêmera da existência humana. Esse exercício de pensar o vulnerável de forma mais alargada e não somente pelo exotismo, pode prevenir nossa sociedade de não repetir barbaridades experimentadas ao longo da história da humanidade, como o uso de prisioneiros de guerra e doentes, como foi o caso do uso de judeus pelos cientistas nazistas ou algo que ronda nossos dias, como é o caso da proposta norte americana do duplo padrão para ética em pesquisa, um para os países desenvolvidos e outro para os países pobres. 3.6 Índios As pesquisas envolvendo povos indígenas devem obedecer também aos referenciais da bioética, considerando-se as peculiaridades de cada povo e/ou comunidade. Os benefícios e vantagens resultantes do desenvolvimento de pesquisa, devem atender às necessidades de indivíduos ou grupos alvo do estudo, ou das sociedades afins e/ou da sociedade nacional, levando-se em consideração a promoção e manutenção do bem estar, a conservação e proteção da diversidade biológica, cultural, a saúde individual e coletiva e a contribuição ao desenvolvimento do conhecimento e tecnologia próprias. Qualquer pesquisa envolvendo a pessoa do índio ou a sua comunidade, deve respeitar a visão de mundo destes povos, ou seja, os costumes, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social, filosofias peculiares, diferenças linguísticas e estrutura política, não admitindo exploração física, mental, psicológica ou intelectual e social dos indígenas. Ter a concordância da comunidade alvo da pesquisa que pode ser obtida por intermédio das respectivas organizações indígenas ou conselhos locais, sem prejuízo do consentimento individual, que em comum acordo com as referidas comunidades designarão o intermediário para o contato entre pesquisador e a comunidade. Em pesquisas na área de saúde deverá ser comunicado o Conselho Distrital, garantindo a igualdade de consideração dos interesses envolvidos, levando em conta a vulnerabilidade do grupo em questão. Recomenda-se, preferencialmente, a não realização de pesquisas em comunidades de índios isolados. Em casos especiais devem ser apresentadas justificativas detalhadas. Será considerado eticamente inaceitável o patenteamento por outrem de produtos químicos e material biológico de qualquer natureza obtidos a partir de pesquisas com povos indígenas. A formação de bancos de DNA, de linhagens de células ou de quaisquer outros materiais biológicos relacionados aos povos indígenas, não é admitida sem a expressa concordância da comunidade envolvida, sem a apresentação detalhada da proposta no protocolo de pesquisa a ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), para que se obtenha a formal aprovação dos referidos comitê e comissão. A não observância a qualquer um dos itens acima deverá ser comunicada ao CEP institucional e à CONEP do Conselho Nacional de Saúde, para as providências cabíveis. 4 O protocolo da pesquisa O protocolo a ser submetido à avaliação ética deverá atender ao item VI da Resolução 196/96, acrescentando-se o compromisso de obtenção da anuência das comunidades envolvidas tal como previsto no item III § 2 desta norma, descrevendo-se o processo de obtenção da anuência. É exigido também, a descrição do processo de obtenção e de registro do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assegurada a adequação às peculiaridades culturais e linguísticas dos envolvidos. 4.1 Proteção A realização da pesquisa poderá a qualquer tempo ser suspensa, obedecido ao disposto no item III.3.z da Resolução 196/96, desde que seja solicitada a sua interrupção pela comunidade indígena em estudo, caso a pesquisa em desenvolvimento venha a gerar conflitos e/ou qualquer tipo de mal estar dentro da comunidade ou haja violação nas formas de organização e sobrevivência da comunidade indígena, relacionadas principalmente à vida dos sujeitos, aos recursos humanos, aos recursos fitogenéticos, ao conhecimento das propriedades do solo, do subsolo, da fauna e flora, às tradições orais e a todas as expressões artísticas daquela comunidade. 4.2 Atribuições da CONEP Dentro das atribuições previstas no item VIII.4.c.6 da Resolução CNS 196/96 cabe à CONEP, após a aprovação do CEP institucional, apreciar as pesquisas enquadradas nessa área temática, ainda que simultaneamente enquadradas em outra. Ainda, prevê o parecer da Comissão Intersetorial de Saúde do Índio (CISI), quando necessária consultoria, poderá ser solicitado pela CONEP. Os casos omissos referentes aos aspectos éticos da pesquisa, serão resolvidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Temos ainda em proteção ao povo indígena o presidente da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), que no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo Estatuto aprovado pelo Decreto nº564, de 08 de julho de 1992, tendo em vista o que consta do Processo FUNAI/BsB/2105/92, resolve: “Art. 1º Aprovar as normas que disciplinam o ingresso em Terras Indígenas com finalidade de desenvolver Pesquisa Científica, conforme documento em anexo. Art. 2º Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação. Art. 3º Revoga-se a Instrução Normativa Nº 001/PRESI/94 de 08 de abril de 1994, como qualquer outro dispositivo em contrário. Art. 4º Todo e qualquer pesquisador nacional ou estrangeiro que pretenda ingressar em terras indígenas, para desenvolver projeto de pesquisa científica, deverá encaminhar sua solicitação à Presidência da FUNAI, e no caso de requerimento coletivo, deverá ser subscrito por um dos membros do grupo, como seu responsável. Art. 5º O pesquisador ou pesquisadores deverão anexar ao pedido do que trata o Art. 1º a seguinte documentação: I. Carta de apresentação da Instituição a que o pesquisador está vinculado e no caso de estudantes de graduação e pós-graduação, carta de apresentação do orientador responsável; II. Projeto de pesquisa, em português, detalhando a(s) terra(s) indígena(s) na(s) qual(is) pretende ingressar e cronograma; III. curriculum vitae do(s) pesquisador(es) redigido em português; IV. cópia autenticada da Carteira de Identidade ou Passaporte, quando se tratar de nacionalidade estrangeira; V. atestado individual de vacina contra moléstia endêmica na área; VI. atestado  médico de não portador de moléstia contagiosa; VII. quando se tratar de pesquisador(es) de nacionalidade estrangeira, exigir-se-á para a efetivação de seu ingresso na terra indígena a obtenção de seu respectivo visto temporário, como prevê o artigo 22, do decreto nº 86.715 de 10 de dezembro de 1981, além do cumprimento do disposto no decreto nº 98.830, de 15 de janeiro de 1990. Art. 6º O Pesquisador deverá encaminhar diretamente ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, o Projeto de Pesquisa e curriculum vitae. Art. 7º A solicitação do ingresso em terra indígena por parte de pesquisadores nacionais ou estrangeiros será objeto de análise pela Coordenadoria Geral de Estudos e Pesquisas – CGEP, uma vez instruído o processo com o parecer favorável do CNPq quanto ao mérito da pesquisa proposta e após ouvidas as lideranças indígenas. Parágrafo Único – A consulta às lideranças indígenas será realizada pela FUNAI, com a presença e participação do pesquisador, podendo este em caso de resposta positiva permanecer na terra indígena com autorização provisória até a emissão de uma definitiva. Art. 8º No caso de negativa das lideranças indígenas quanto ao pleito do ingresso ou quaisquer outros entraves levantados no decorrer da análise do processo ou em qualquer outra etapa de desenvolvimento da pesquisa, a CGEP encaminhará a questão ao Conselho Indigenista através da Presidência do Órgão. Art. 9º Quando se tratar de pesquisa em espaço territorial de ocupação tradicional de índios isolados, o pedido será ainda, objeto de exame e parecer prévio específico por parte do departamento de Índios Isolados – DII/FUNAI. Art. 10º A presidência da FUNAI poderá suspender a qualquer tempo, as autorizações concedidas de acordo com as presentes normas desde que:  I.  seja solicitada a sua interrupção por parte da comunidade indígena em questão; II. a pesquisa em desenvolvimento venha a gerar conflitos dentro da terra indígena; III. a ocorrência de situações epidêmicas agudas ou conflitos graves envolvendo índios e não índios. Parágrafo Único – Fica automaticamente prorrogada a autorização pelo prazo que a terra indígena objeto do Projeto estiver interditada, pelos motivos apontados no Art. 10, inciso III. Art. 11º Todos os pesquisadores estrangeiros ou nacionais que tiverem autorizações concedidas para ingresso em terras indígenas, obrigar-se-ão: I. cumprir todos os preceitos legais vigentes, notadamente os previstos na Lei nº 6.001 de 19.12.73; II. remeter à FUNAI, relatório dos Trabalhos de campo, em português, até 6 (seis) meses após o término da pesquisa, onde poderão constar sugestões práticas que possam trazer benefícios para as comunidades indígenas que poderão ser consideradas pela FUNAI nas definições de sua política; III. remeter à FUNAI, 2 (dois) exemplares de publicações, artigos, teses e outras produções intelectuais oriundas das referidas pesquisas. Art. 12º Nos casos de solicitação de prorrogação do prazo para continuidade do projeto de pesquisa científica na mesma terra indígena, caberá a Coordenação Geral de Estudos e Pesquisas – CGEP, os seguintes procedimentos: I. notificar junto ao setor competente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq, a solicitação: II. consultar as lideranças quanto ao retorno do pesquisador na terra indígena; III. observar cumprimento do Art. 8º por parte do pesquisador interessado.” 5. O atual quadro acerca da fundamentação legal O ordenamento jurídico nacional não possui um diploma legal emanado do Poder Legislativo que regule as pesquisas com os seres humanos, tampouco com os grupos vulneráveis, contudo há uma série de regulamentações de origem internacional e nacional, bem como disposições esparsas em textos legais diferentes. O presente tem por objetivo enumerar e destacar as mais importantes e relevantes segundo nossa perspectiva. 5.1. Código de Nuremberg O Código de Nuremberg pode ser descrito como o ponto primordial para a implementação dos preceitos da bioética no concernente à pesquisa com seres humanos. O Código data de 1947, quando, após a queda do regime nazista diversos cientistas foram processados pelo Tribunal Militar Internacional por terem realizados experimentos em prisioneiros nos campos de concentração. A decisão do tribunal incluiu o que se convencionou denominar de Código de Nuremberg, um ato declaratório que serviria de cerne ético para todo e qualquer experimento médico com participantes humanos. A declaração não abordou explicitamente os grupos vulneráveis, mas tratou de dispor sobre a inafastabilidade do consentimento informado e, de forma reflexa, ao preceituar sobre a necessidade de qualidade e efetividade do consentimento, ressaltou a importância de se valer de indivíduos capazes de expressar suas vontades. 5.2 A Declaração de Helsinque Datada de 1964, e revista diversas vezes, a Declaração de Helsinque é considerada a primeira medida internacional efetiva realizada com vistas à padronização da pesquisa no campo da biomedicina em nível mundial. É o marco inicial para o reconhecimento da vulnerabilidade e da necessidade de proteção diferenciada para os indivíduos assim considerados. As alterações no texto da Declaração de Helsinque, no que tange aos grupos vulneráveis, alternaram o nível de proteção a esses indivíduos, para em 1989 retomarem o caráter mais protetivo. Na obtenção de consentimento informado para projeto de pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial. No caso de incapacidade legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país. Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal. Em 1975, os incisos supra foram modificados e passaram a ter a seguinte redação: “10. Ao receber o consentimento para o projeto de pesquisa, o médico deve tomar cuidado especial, caso o indivíduo esteja em relação de dependência para com ele, ou que o mesmo dê seu consentimento sob coação. Neste caso, o consentimento formal deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na investigação e que seja completamente independente deste relacionamento oficial. (Grifo nosso) 11. No caso de incapacidade jurídica, o consentimento formal deve ser obtido do tutor legal, segundo a legislação nacional. Nos casos em que incapacidade física ou mental torne impossível a obtenção do consentimento formal, ou quando o indivíduo for menor, a permissão de um parente substitui a do próprio indivíduo, de conformidade com a legislação nacional.” As alterações se seguem e, em 1983, os incisos passaram a dispor que (grifo nosso): “10. Na obtenção de consentimento informado para projeto de pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial. 11. No caso de incompetência legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país. Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal.” Por fim, em 1989, as alterações nos incisos em tela lhes atribuiu o seguinte conteúdo (grifos nossos): “10. Na obtenção de consentimento informado para projeto  pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial. 11. No caso de incompetência legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país. Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal.” O que se pode extrair das transcrições acima, é que a reunião de 1975 foi excessivamente transformadora, e suavizou demais os limites éticos descaracterizando relativamente o caráter protetivo da Declaração no concernente aos vulneráveis. É nítida, no texto de 1975, a ideia de que um parente sem ser realmente o responsável poderia consentir pelo incapaz, se a legislação nacional assim dispusesse. E pior, foi extraída do inciso 11 a possibilidade de se acrescer ao consentimento do representante o consentimento do paciente. A boa técnica induz ao raciocínio de que as declarações internacionais não podem partir do predicado de que as legislações nacionais serão suficientemente protetivas e garantidoras da dignidade da pessoa humana, por isso as redações posteriores se mostram mais adequadas. Já no que tange ao inciso 10, a questão cerne das controvérsias foi admitir que o paciente em relação de dependência do médico poderia ser coagido a participar das pesquisas. Ora, há grande diferenciação entre pressão e coação, sendo a primeira qualquer tipo de situação que invocasse um dever de participar ou um sentimento de obrigatoriedade. Já por coação, entende-se a efetiva ação de obrigar o indivíduo a se submeter à pesquisa. Portanto, a utilização do termo pressão abrange uma gama maior de possíveis ações e se mostra mais adequada à finalidade protetiva da Declaração de Helsinque. A redação atual da declaração em estudo, desloca para o inciso 9 as disposições referentes à vulnerabilidade, e mantém de forma sintética o disposto anteriormente nos incisos 10 e 11, hoje com redações totalmente diferentes.  A investigação médica está sujeita à normas éticas que promovam o respeito a todos os seres humanos e protejam a sua saúde e seus direitos. Algumas populações alvos de pesquisas são particularmente vulneráveis e necessitam de uma proteção especial. Estes incluem aqueles que não podem dar ou recusar o seu consentimento por si e aqueles que podem ser vulneráveis à coação ou a influência indevida. As alterações supra se mostraram as mais relevantes ao longo dos anos sob a ótica dos grupos vulneráveis, mas não foram as únicas. Anualmente, a Associação Médica Mundial (WMA no original, ou AMM em português) realiza reuniões que discutem o cenário médico mundial, desde novos tratamentos e pesquisas até mesmo questões éticas. Na reunião de 1997, a delegação dos Estados Unidos iniciou um movimento com a pretensão de alterar alguns preceitos da Declaração de Helsinque, cuja decisão a respeito foi postergada para a reunião de 2000. Dentre as várias propostas de alteração uma delas refletia diretamente sobre os grupos vulneráveis; a instituição do duplo padrão. Os Estados Unidos pretendiam alterar o disposto no item 2, do II inciso da Declaração o qual estabelece que, mesmo diante da falta de métodos diagnósticos ou terapêuticos no local onde os participantes da pesquisa residem, esses têm direito que lhes sejam fornecidos os melhores métodos referidos comprovados. Sutilmente, pretendiam os norte-americanos, membros da Associação Médica, alterar a redação do citado dispositivo. Sua intenção era que os participantes da pesquisa tivessem garantido apenas os métodos diagnósticos ou terapêuticos que lhes sejam acessíveis, ou seja, disponíveis no país em que residem. Embora tênue, a diferença entre ‘melhores métodos diagnósticos ou terapêuticos comprovados e melhor método diagnóstico, profilático, ou terapêutico que em qualquer outra situação estaria disponível’, o que se propõe é a estipulação de duplo padrão de pesquisa: um para ser aplicado em países periféricos e outros em países centrais, na medida em que nos primeiros, em grande parte, não há qualquer tratamento disponível. As pretensões dos EUA foram definitivamente sepultadas em 2004, quando a AMM declarou não ser condizente com a essência da Declaração de Helsinque a instituição do duplo padrão. Como resultado, os EUA abandonaram a referida declaração como seu norte ético. As reuniões de 2002 e 2004 da AMM não resultaram em alterações, mas sim em notas esclarecedoras aos incisos 29 e 30, ambos concernentes às questões metodológicas dos estudos, como o uso do placebo e das melhores técnicas existentes. Recentemente, em outubro do corrente ano, em Seul, foi realizada uma nova reunião da AMM, a qual resultou em alterações substanciais, as quais refletem diretamente na essência da Declaração, pois passou a permitir a utilização de placebo mesmo havendo tratamento adequado para a condição. Vários países, como o Brasil, foram contra tal alteração e passaram a não aplicar internamente o entendimento esboçado pela nova redação da declaração. 5.3 Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos O Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) é uma organização voltada para a implementação dos princípios constantes da Declaração de Helsinque, especialmente nos países em desenvolvimento. Em 1993, baseadas nos três princípios éticos fundamentais para a realização de pesquisas com seres humanos, OLIVEIRA, Aline Albuquerque S. em Perspectivas epistemológicas da bioética brasileira a partir da teoria de Thomas Kuhn, elaborou e divulgou as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisa Biomédica envolvendo Sujeitos Humanos. O documento consiste em tópicos comentados de extrema importância para os grupos vulneráveis, os principais pontos serão tratados a seguir quando do estudo dos grupos propriamente ditos. 5.4 Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Principal instrumento regulamentador da atividade científica de pesquisa com seres humanos no âmbito nacional, a Resolução 196/96 do CNS trás em seu corpo a definição de vulnerabilidade, bem como diversos tópicos e considerações acerca dos grupos vulneráveis, bem como todas as etapas procedimentais para a efetivação de pesquisa com quaisquer indivíduos que necessitem de cuidados e atenção especiais. São exemplos de medidas protetivas constantes na resolução em tela: “II.15 – Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos , que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido. II.16 – Incapacidade – Refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado, de acordo com a legislação brasileira vigente. III.1 – A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes. Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-lo em sua dignidade, respeitá-lo em sua autonomia e defendê-lo em sua vulnerabilidade; j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis.” Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida; 5.5 Uso do placebo: polêmica oriunda da nova redação da Declaração de Helsinque. Placebo é conceituado como uma substância inerte ou inativa, a que se atribuem certas propriedades, normalmente de cura de determinada doença, e que, ingerida, pode produzir um efeito que suas propriedades não possuem. Muitas pessoas que ingerem, por exemplo, uma pílula contendo nada mais do que amido com açúcar, ou um dos dois componentes, revelam melhoras de uma doença, imaginando ter tomado o remédio feito especialmente para essa doença. É uma medida utilizada principalmente em pesquisas, a fim de se verificar o verdadeiro efeito de determinada droga sobre alguma doença. A Resolução 196/96 do CNS dispõe, acerca do placebo, que sua utilização apenas será admitida quando for o caso, em termos de não maleficência e de necessidade metodológica. Essa era a orientação preponderante, fundada nas primeiras redações da Declaração de Helsinque, as quais dispunham que o placebo não seria utilizado quando houvesse tratamento existente e eficaz. Contudo, em outubro de 2008, a Declaração de Helsinque teve sua redação sobre o tema alterada, dispondo ser possível a utilização do placebo mesmo quando existirem tratamentos para as doenças que forem objeto de estudo. O novo texto desta ressalta que, isso só poderá ocorrer se a pesquisa feita com placebos não causar sérios problemas à saúde dos participantes do estudo. O Brasil, assim como Portugal, Espanha, e diversos países africanos e da América Latina foram contrários à mudança. O resultado foi a edição da Resolução 1885/2008 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe: “Art. 1º É vedado ao médico vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas envolvendo seres humanos, que utilizem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada. Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.” De maneira que no concernente às pesquisas em território brasileiro, o entendimento dominante continua sendo de que o placebo só é aceitável quando não existir tratamento para a doença em estudo. Um dos principais fundamentos para tal postura, é o temor da utilização do placebo pois eventualmente ele opera melhora dos sintomas, mas na realidade a doença continua avançando e pode ser fatal. Episódio recente envolveu a farmacêutica Merck a qual desenvolvia um estudo de larga escala com uma vacina experimental contra o HIV, e foi interrompido em setembro de 2007. Os voluntários participantes foram divididos em dois grupos: num deles, só era administrado um placebo. No outro, a vacina de verdade, baseada num adenovírus que transportava apenas pequenos pedaços do HIV para dentro do corpo, na esperança de conferir imunidade prévia ao indivíduo. O que se observou durante os testes, é que mais pessoas acabaram contaminadas com o HIV no grupo da vacina do que no grupo-controle. Os resultados mostraram 24 casos de infecção pelo HIV entre 741 voluntários que foram vacinados, contra apenas 21 entre os 762 que receberam placebo. 6. Acesso ao tratamento pós-investigação O Brasil mantém, a exemplo do ocorrido com o placebo, o entendimento que já possuía acerca do acesso ao tratamento após a conclusão da pesquisa, apesar de toda a discussão suscitada recentemente na reunião da AMM. A Resolução 196/96 do CNS, sobre o assunto, dispõe: “III.3 – A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá observar as seguintes exigências: m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenças presentes entre eles, explicitando como será assegurado o respeito às mesmas; n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades; p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa;” Portanto, fundando-se no princípio da dignidade da pessoa humana, e nos demais princípios éticos informadores da atividade de pesquisa, é garantido aos pacientes, continuar a receber o medicamento, no caso de comprovada melhora. Contudo, existem entendimentos diferenciados sobre quais drogas e tratamentos devem continuar a serem fornecidos; não haveria uma posição única para todos os estudos. Esse entendimento está consubstanciado na diferenciação entre uma patologia que comporta risco de vida e outra que não possui tal risco. No primeiro caso, se o paciente apresenta uma resposta positiva, o pesquisador não poderia retirar esse benefício do paciente. Já no segundo, havendo com tratamentos alternativos de eficácia já comprovada, é indicado que após a triagem o paciente seja encaminhado para um tratamento já existente no mercado, ao invés de mantê-lo em tratamento com uma droga experimental. Segundo esse entendimento, a ética médica determina a garantia à continuidade do tratamento, o que não significa dar continuidade ao uso da droga experimental. O entendimento supra não parece exprimir o sentido expresso na Resolução 196/96, cujo dispositivo supramencionado, alínea “p”, é claríssimo ao dispor que o que deve ser assegurado são os benefícios resultantes do projeto realizado, e não tratamentos já existentes. Nesse sentido, há jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MENOR SUBMETIDO A TRATAMENTO COM MEDICAÇÃO EXPERIMENTAL, EM ESTUDO PROPOSTO POR LABORATÓRIO. APROVAÇÃO DA MEDICAÇÃO PELA ANVISA E ESTUDO ENCERRADO. PROTOCOLO CLÍNICO QUE INDICA A RESPONSABILIDADE DO LABORATÓRIO PELA MANUTENÇÃO DO FORNECIMENTO DA MEDICAÇÃO AO MENOR. RESPONSABILIDADE INSERIDA, TAMBÉM, EM RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, A PROPÓSITO DOS ASPECTOS ÉTICOS DA PESQUISA.  “[…] Segundo se verifica da análise dos autos, o menor Kauã, atualmente prestes a completar 4 anos de idade, é portador de ‘Mucopolissacaridose Tipo 1’, enfermidade genética rara e progressiva, resultante da carência da enzima ‘alfa-Liduronidase’. A medicação postulada por Kauã, ‘Aldurazyme’ (nome comercial do laboratório ora agravante), segundo noticiam uma série de documentos acostados aos autos, é indicada como terapia de reposição enzimática, atuando de maneira aparentemente eficaz no tratamento e controle da doença. Ainda de acordo com os documentos existentes nos autos, o laboratório agravante promoveu, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, estudo com pessoas portadoras da supramencionada enfermidade, as quais aderiram de maneira voluntária ao programa proposto, cujo objetivo era determinar a segurança e eficácia do tratamento com ‘Aldurazyme’, com doses diversas daquelas aprovadas pela internacionalmente famosa ‘Food and Drug Administration’ (FDA). Como resultado do estudo, conseguiu o laboratório ora agravante o registro do seu medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo o estudo posteriormente encerrado. O menor Kauã, autor da ação, aderiu ao supramencionado estudo, tendo iniciado o seu tratamento, consistente em 26 infusões semanais, em 01 de fevereiro de 2005. Ao término do estudo, Kauã foi inscrito no Programa Caritativo de Tratamento – ICAP (“Internationat Charithable Access Programme), o qual também restou extinto. Desamparado, ajuizou Kauã ação em desfavor do Estado do Rio Grande do Sul, objetivando continuar a receber a medicação antes fornecida pelo laboratório ora agravante, uma vez que não pode adquiri-la, em face do elevadíssimo custo. O Estado do Rio Grande do Sul, citado, requereu o chamamento ao processo do laboratório Genzyme do Brasil Ltda. que, como destacado, restou acolhido. Em face disso, busca o ora agravante ver reconhecida a impropriedade do chamamento ao processo, com o que não se pode assentir. De acordo com a declaração prestada pelo Chefe do Serviço de Genética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Dr. Roberto Giugliani, segundo o protocolo clínico aprovado pelo Comitê de Ética do HCPA, o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. comprometeu-se a continuar fornecendo o medicamento aos participantes do estudo após o seu término (fls. 120 e 121, grifei), o que de resto ocorreu, com sua inclusão no programa caritativo de tratamento, por que sem condições ao pagamento da medicação, por mais 14 infusões. É essa a prova mais contundente existente nos autos até o presente momento, e que não conseguiu ser derrocada pela parte agravante. Não se pode pretender, entretanto, que o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. utilize seres humanos como “cobaias” em seus estudos (ainda que voluntária a participação no estudo) e, posteriormente, deixe aquelas pessoas que outrora foram de vital importância, ao efeito de obter um produto economicamente extraordinário, completamente desamparadas, em especial quando comprovou-se melhoras com o uso da medicação, situação que gerou expectativa nos voluntários. De se ver que a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde (“Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos”), no item III, dos “Aspectos Éticos da Pesquisa envolvendo seres humanos”, alíneas “m”, “n” e “p” escancara a finalidade de garantir aos pacientes participantes de pesquisa o posterior acompanhamento pelo pesquisador e pelo patrocinador, com ênfase para a manutenção dos benefícios recebidos durante o estudo e garantia de acesso ao produto resultante da pesquisa, independentemente da subscrição de qualquer protocolo.” (Agravo de Instrumento nº 70018752733, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 25.04.2007) (Grifos nossos.) Postura, aliás, inserida nos “valores” preconizados pela empresa embargante em seu “site”: “Ética, Excelência, Inovação, Responsabilidade social e ambiental, Competência e Compromisso” (fl. 113). Ao pretender a empresa agravante a realização do projeto em território nacional, deve submeter-se às regras administrativas específicas, sujeitando-se à observação e fiscalização do Estado. Assim, querendo ou não a empresa agravante, o projeto, ao efeito de propiciar o futuro registro na ANVISA, na espécie, a fixação de dosagem diferenciada, autoriza reconhecer o vínculo com o Estado, a quem compete a obrigação constitucional de fornecer o medicamento, o qual deve ser mantido, em face da responsabilidade ética da empresa, o que autoriza a manutenção do chamamento ao processo. Assim, na espécie, tendo em vista a excepcionalidade da situação dos autos, o menor Kauã é quem deve, primeiramente, ser protegido, não havendo argumentos que justifiquem, por ora, a exclusão do ora agravante do polo passivo da demanda. Pelo exposto, pois, nego provimento ao recurso.” (Grifos nossos). Não há dúvidas, portanto, que em território nacional, o acesso ao tratamento pós-investigação é não apenas necessário, mas obrigatório nos moldes do determinado pela Resolução 196/96. 7 Considerações finais Fundamentalmente, em relação à concepção e procedimentos éticos no que se refere à pesquisa que envolva seres humanos, independentemente de termos uma normatização bem arquitetada ou não, o que deve nortear o fazer científico é o pressuposto do respeito ao direito a vida e a dignidade humana, algo indisponível, fundando a produção científica em formas razoáveis, que levem em conta os direitos a personalidade em detrimento de outros interesses. Em termos da normatização existente, o que se observa na resolução 196/96, é que primeiramente está estruturada sob uma ótica que generaliza o fazer científico (enunciado no capítulo III.2), se tratando dos campos científicos, tratando como igual, aquilo que é diferente em sua gênese teórico-metodológica, criando uma situação não dialógica entre o enfoque biocêntrico e antropocêntrico, e o que é pior, bem como observou o professor Cardoso de Oliveira, fundada numa ênfase biocêntrica. Em segundo lugar, há uma ineficiência quanto ao procedimento fundamental do uso do consentimento livre e esclarecido no caso situacional de uma sociedade marcada pela exclusão social, visto que, há um enraizamento social da ignorância e da pobreza em nossa sociedade. Ainda, existe uma ambiguidade em relação à questão ao desenvolvimento das pesquisas com indivíduos ou grupos vulneráveis, onde se por um lado, permite desde que se utilize o procedimento do uso do consentimento livre e esclarecido, já no capítulo III.3, alínea j, faz-se a referência de que a pesquisa deva “ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena”, o que, como já vimos anteriormente, no caso dos países pobres torna-se algo complicado de se efetivar. Finalmente, frente ao quadro social e técnico-jurídico que nos encontramos no nosso entendimento três movimentos se fazem necessários na construção das bases sociais e legais que fossem capazes de desencadear uma evolução da pesquisa no sentido da regulação e do controle social da prática e uso das pesquisas. Sendo estes movimentos de três naturezas sócio educacional, técnico científico e técnico-jurídicos. Nesse sentido, o atual momento, requer um movimento das instituições e da sociedade fundado na postura de busca da superação dos problemas estruturais da sociedade, a superação dos entraves do campo científico e do estabelecimento de mecanismos jurídicos mais eficazes no controle por parte do Estado nesta matéria. Isso demanda, por um lado, o investimento do estado e da sociedade civil no desenvolvimento de uma educação universalista, formal e informal, baseada pedagogicamente num enfoque crítico-social dos conteúdos. Tendo-se uma totalidade de indivíduos com acesso ao acúmulo intelectual que a humanidade produziu ao longo de sua história, tendo-se com isso, sujeitos capazes de tomar uma decisão livre e esclarecida. Por outro, requer do campo científico a adoção de uma postura dialógica entre as áreas do conhecimento, no sentido de através da transdisciplinariedade, romper com a dicotomia biocentrismo/antropocentrismo, pois, uma vez que houvesse no estabelecimento a elucidação da pesquisa como um todo se estabelecendo um real diálogo com o indivíduo, convertendo este da condição de objeto/cobaia para de sujeito/construtor do conhecimento, situando no seio da sociedade, concretamente o que se define como controle social. Outra questão, diz respeito à esfera jurídica, onde a figura do MP na atual conjuntura é elementar. Neste sentido, a resolução 196/96 não traz a obrigatoriedade da convocação do Ministério Público para opinar em casos envolvendo os incapazes. Isso novamente recai sobre a questão do trato em relação à vulnerabilidade e ao controle social, o que passa pela garantia de direitos fundamentais e que no atual momento suscita discussão e amadurecimento de posturas e procedimentos, para que se pratique a ciência tão necessária ao desenvolvimento da humanidade, fundada em princípios que respeitem a vida e a dignidade humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/a-questao-da-vulnerabilidade-no-caso-de-pesquisas-em-seres-humanos-algumas-reflexoes-sociais-e-juridicas-a-partir-do-quadro-normativo/
Como as pesquisas com células-tronco embrionárias influenciam no direito à vida e a dignidade da pessoa humana
A vida é um bem inerente a todos os seres humanos e preservá-la constitui não só um direito de todos, mas um dever do Estado. O artigo visa demonstrar que as pesquisas com células-tronco embrionárias estão atreladas ao sentimento do indivíduo de viver com dignidade, devendo o Estado incentivar o avanço científico, por ter como fundamento a Dignidade da Pessoa Humana.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO O tema a ser desenvolvido neste artigo consiste em demonstrar a importância das pesquisas com células-tronco embrionárias e os benefícios jurídicos e sociais que tal prática trará a sociedade brasileira. Avaliará ainda, como este avanço científico promoverá um decréscimo nos custos que o Estado tem com a saúde, além de propiciar um cumprimento eficaz dos princípios sensíveis­ constitucionais do Direito à Vida e da Dignidade da Pessoa Humana. Registre-se que, por ser um tema de profundas reflexões e dicotomias, serão analisados os aspectos mais relevantes para a sociedade e para o ser humano, através de uma revisão bibliográfica de livros, artigos e pesquisas relacionados sobre o assunto, em que serão discutidas frente às mudanças sociais ocorridas. As grandes transformações sociais tornaram-se um grande desafio para as ciências jurídicas. Sendo o Direito uma ciência que regula as relações de uma sociedade, não caberia ficar alheia as mudanças que estão ocorrendo no campo da ética,e principalmente, da vida. Neste momento, o Poder Judiciário vê-se obrigado a se manifestar a respeito das mudanças tecnológicas oriundas da ciência, no tocante aos direitos individuais e indisponíveis da sociedade. Diante desse cenário, os direitos fundamentais do ser humano são os mais afetados e mobilizam a opinião pública, que se divide em questões éticas, jurídicas, religiosas e filosóficas. Em conseqüência, alguns pontos da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), principalmente no que dispõe o art.5º da citada lei, foram questionados na Suprema Corte em relação aos direitos constitucionais do direito a vida e da dignidade da pessoa humana. 1. DIREITO A VIDA O direito à vida é considerado um princípio constitucional sensível disposto na Constituição Federal de 1988. Apesar de não ser uma garantia absoluta, ela faz parte dos alicerces de um Estado Democrático de Direito em que o poder emana do povo. A Carta Magna de 1988,em seu art. 5º, caput, estabelece que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade privada.” Segundo GONET (2009), a vida humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos dispostos na Carta Magna de 1988 e esse direito é o limite máximo, não sendo necessário a declaração de outros direitos se o direito à vida não estiver assegurado. Ainda de acordo com o autor supra-citado, “incumbe ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. O preceito enfatiza a importância do direito à vida e o dever do Estado de agir para preservá-la em si mesma e com determinado grau de qualidade.” Por estar protegido constitucionalmente, este direito individual deve ser compreendido sob o seguinte aspecto: o de que o ser humano tem o direito de permanecer vivo e ter uma existência digna. Esta dignidade relaciona-se aos valores e necessidades que cada ser humano tem. O conceito de vida não deve ser visto apenas sob o prisma biológico. É preciso que seja entendido como um processo de troca que o ser humano faz com o meio em que vive. Esta relação de troca é sempre mutável e dinâmica, mas mantidas as individualidades características que cada indivíduo possui. Considerado como pré-requisito para a aquisição dos demais direitos, o direito a vida está não só sob a égide do direito constitucional brasileiro, mas também de tratados internacionais, que no Brasil tem força de norma constitucional após passar por um processo legislativo específico. Com isso tem-se que o direito à vida é um direito prévio  e muito anterior à qualquer ordenamento jurídico, sendo proveniente do direito natural para sua autopreservação. Portanto, não há que se condicionar o esse direito a qualquer outro que esteja sob a égide natural, mas é preciso que esta vida esteja vinculada aos direitos da integridade e da dignidade da pessoa humana. 2. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é descrito na Constiuição da República Federativa do Brasil de 1988 como um fundamento e está disposto neste diploma jurídico, em seu  em seu artigo 1º, III, que descreve: “A República Federativa do Brasil formada pela União indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I. a soberania II. a cidadania III. a dignidade da pessoa humana IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa V. o pluralismo político” O entendimento sobre o que é dignidade humana é bastante amplo, mas na maioria entende-se que a vida é condição de existência que cada ser-humano precisa e a dignidade é intangível a vida. Ou seja, há que se viver com respeito a integridade física e psicológica da pessoa humana. Por isso, faz-se mister discutir que o direito à vida não abrange toda e qualquer tipo e/ou forma de existência, mas sim, o da existência de forma digna, com o propósito de não reduzí-la a mero objeto. Assim, o princípio da dignidade humana pode ser entendido como um princípio que fundamenta o direito, pois o direito regula a vida em sociedade que é formada por pessoas que, em um Estado Democrático de Direito, devem viver com dignidade. Mas por vezes, este mesmo Estado que se fundamenta no direito das pessoas terem uma vida digna, viola o seu princípio basilar quando ignora a condição física e psicológica de uma parte da população. De acordo com NOVELINO(2009), “a dignidade em si não é um direito, mas um atributo inerente a todo ser humano, independente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de proteger e promover este valor. O reconhecimento da dignidade como fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e promoção dos meios necessários a uma vida digna.” Portanto, cabe ao Estado propiciar à sua população uma condição de vida digna, compatível com as necessidades mínimas que cada ser humano precisa para viver. O fato do Estado não prover meios para que o cidadão possa viver com dignidade torna-se uma violação a este princípio universalmente declarado no âmbito jurídico como sendo um valor que não precisa ser revestido de normatividade ou ser positivado para ser cumprido. Ele é um atributo do ser humano. E a permissão para as pesquisas com células-tronco embrionárias tornaram-se uma dessas ações estatais, que permitem ao indivíduo a possibilidade de viver com dignidade, sem que ele se sinta diminuído ou humilhado por sua condição física e/ou psicológica. Assim, percebe-se que “a consagração da dignidade como fundamento exige não apenas uma abstenção, mas também uma atuação por parte do Estado no sentido de fornecer os meios indispensáveis para que os indivíduos (…) possam viver dignamente” (NOVELINO, 2009, p. 349). 3. CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS: QUESTÕES JURÍDICAS As células tronco embrionárias, segundo o Wikipédia, são definidas como sendo células capazes de “se transformar, num processo conhecido por diferenciação celular, em outros tecidos do corpo, como ossos, sangue, nervos e músculos. Devido a essa característica, as células-tronco são importantes, principalmente na aplicação terapêutica, sendo potencialmente úteis em terapias de combate a doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, diabetes tipo-1, acidentes vasculares cerebrais, doenças hematológicas, traumas na medula espinhal e nefropatias.” O diploma constitucional, em seu art. 225, §1º, II, estabelece que “incumbe ao Poder Público preservar a diversidade genética e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.” Devido a grande repercussão acerca das questões que envolviam temas como as células-tronco embrionárias fez-se necessário que o Poder Legislativo normatizasse o assunto. Em 2005 veio a ser promulgada a Lei 11.105, denominada a Lei de Biossegurança, que trata em seu art. 5º sobre a permissão em utilizar-se as células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, mediante a imposição de algumas exigências estipuladas pela citada lei: que os embriões a serem utilizados sejam provenientes de tratamento de fertilização in vitro; que tais embriões sejam declarados inviáveis ou não tenham sido implantados no procedimento de fertilização in vitro, estando congelados há mais de três anos; que os genitores precisam dar o consentimento, respeitando o planejamento familiar e os princípios da dignidade humana e da paternidade responsável. Ainda, proibiu a comercialização de embriões, células ou tecidos; a clonagem humana e a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano. Em oposição a tal ordenamento jurídico, o Procurador-Geral da República (PGR) impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, apoiado no argumento de que já haveria vida no embrião e que este embrião é um ser humano em fase inicial. Argumentou, ainda, que por isso, as pesquisas com esse tipo de material ferem o direito à vida disposto na Constituição da República (CR). ­­­Em virtude da relevância do assunto, a Suprema Corte promoveu uma audiência pública em que vários aspectos, sob diferentes ópticas puderam ser discutidas. Compareceram pesquisadores respeitados sobre o assunto, o amicus curiae – MOVITAE, além de Organizações Não-Governamentais (ONG’s), profissionais e instituições que defendiam ou não a aprovação da lei. Segundo Barroso[2], o advogado que fez a sustentação oral em defesa da aprovação da lei, o tema pode ser visto sobre alguns aspectos a seguir: “I. O pluralismo e a diversidade ao passo que somos uma sociedade democrática, formada por pessoas que possuem visões diferentes de mundo, mas que precisam viver com harmonia e respeito mútuo às diferentes opiniões; II. A questão ética e filosófica do início da vida, envolve a em que é preciso analisar o que fazer com os embriões que já existem, que estão congelados há mais de 3 anos e não serão implantados no útero materno: será que devem ser descartados como algo que não tem mais serventia ou devem ser destinados a pesquisas científicas baseados em critérios definidos por lei com a perspectiva de salvar vidas e/ou melhorar a condição humana? Assim, a reflexão ética envolve a troca de chance de cura para muitos ou destruir a possibilidade de pesquisas se fosse declarada inconstitucional a lei; III. A questão jurídica discute se o embrião ainda não implantado no ventre materno é ou não um possível sujeito de direitos e obrigações. Cabe lembrar que o Código Civil de 2002 não faz qualquer menção a embrião, mas apenas àquele que nasce com vida é que possui personalidade e é capaz de titularizar direitos e obrigações na vida civil. O nascituro tem os seus direitos protegidos por ser considerado como fato certo o seu nascimento, ou seja, até que uma expectativa se torne realidade; IV. Na questão de interesse nacional discute-se o crescimento do país frente os avanços na produção e pesquisa de novas terapias de cura. Caso não houvesse este avanço o Brasil teria que importar técnicas capazes de suprir as necessidades de seus cidadãos, além de ser considerado um país atrasado em termos científicos perante o resto da comunidade científica mundial; V. E por fim, a questão humana, que é o alvo, o cerne da discussão, pois são estas pessoas que tem ânsia de viver uma vida plena e que dependem e precisam dos avanços da ciência para que o seu direito à vida se concretize através de uma vida saudável, presente e digna. Portanto, como país democrático de direito não é compreensível deixá-los alijados de novas esperanças de cura e de tratamento para males que os afligem psicológica e fisicamente.” Como também é papel do Estado, constitucionalmente previsto, o Poder Público deve promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica. Após o julgamento da ADI pelo STF, a geneticista brasileira e diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, Mayana Zatz[3] fez a seguinte análise: “O reconhecimento da constitucionalidade da lei teve ampla repercussão dentro e fora do Brasil e nos colocou em um patamar de respeitabilidade internacional no mundo científico. O benefício imediato foi a liberação de novos recursos para a realização das pesquisas com células-tronco pelos órgãos de fomento e o estabelecimento de parcerias e colaborações com laboratórios internacionais de excelência. Um ano após a aprovação definitiva das pesquisas com células-tronco embrionárias podemos afirmar que estamos caminhando junto com o primeiro mundo e podemos tranqüilizar a nossa população de que ela não necessita ir ao exterior buscar tratamentos que poderiam não ter sido permitidos no Brasil. Mas os resultados das pesquisas acontecem na mesma velocidade que se almeja. Às vezes são necessários anos de investimento para poder obter resultados. O que podemos afirmar é que foi plantada uma semente que poderá dar belos frutos. Mas há aqueles que são contra as pesquisas com células-tronco embrionárias motivados pela fé religiosa; outros são contra o estudo por desconhecimento da matéria e com isso alegam que poderá haver clonagem humana. Ao examinar a Lei 11.105 de 2005, percebe-se que a questão da utilização das células-tronco para pesquisa está bem delineada, quando o próprio ordenamento jurídico impõe limites para sua utilização e proíbe a comercialização do material. A preocupação social dos processos de desenvolvimento com matéria humana é relevante, mas faz-se necessário examinar a situação e o sentimento presente em várias pessoas portadoras de doenças incuráveis, que podem ser amenizadas, ou quem sabe, até eliminadas com as futuras descobertas provenientes de pesquisas dessa natureza. Os próprios legisladores, ao delinearem a matéria no ordenamento, tiveram essa preocupação. Mas não se pode impedir que um país progrida cientificamente e prive as pessoas de usufruírem melhor da sua vida, que é um direito de todos, por não se ter o conhecimento adequado das condições que permeiam a lei ou por total desconhecimento desta. Fazer pré-julgamentos sem um estudo aprofundado da norma impede um progresso social do qual toda a sociedade é beneficiária. Inclusive, ao examinar a Declaração Universal sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos, vê-se em seu capítulo sobre o genoma humano, mais especificamente, mas também em todo o documento, o cuidado tido na normatização internacional referente as pesquisas com material genético e a manipulação com o genoma humano. Em conseqüência, percebe-se uma preocupação de toda a categoria de pesquisadores, nacionais e internacionais, em ter diretrizes para que a pesquisa seja balizada por elementos norteadores jurídicos e éticos reconhecidos mundialmente. Ainda, de acordo, com o instrumento acima citado, é reconhecido o valor da pesquisa com genoma humano e suas aplicações no que tange ao avanço científico para o progresso da saúde do indivíduo e da sociedade em geral, através de melhorias decorrentes das descobertas, sem, contudo, desrespeitar os princípios da dignidade e os direitos humanos. 4. CUSTO DA SAÚDE PARA O ESTADO Outra vertente a ser examinada é o custo que o Estado atualmente tem com a saúde. O Estado deve prover aos seus nacionais um sistema de saúde que supra as necessidades de todos. Esta garantia fundamental prevista na Constituição da República é extremamente dispendiosa ao Estado, o que o tem tornado ineficiente na prestação desse serviço. Com a aprovação de pesquisas com células-tronco embrionárias, e a conseqüente descoberta de curas de algumas doenças, provenientes de estudos científicos, devidamente comprovados e provenientes de tal material genético, o custo do Estado com a saúde seria reduzido de forma notável. Como a Constituição da República determina que é dever do Estado prover uma saúde de qualidade aos seus nacionais, o Brasil necessita de investimentos vultosos para fornecer uma saúde de qualidade aos seus cidadãos. Mas percebe-se que o fornecimento desses serviços está longe do ideal. Além da falta de medicamentos, não há profissionais ou instituições qualificadas para o tratamento dos doentes. E mais, os portadores de doenças raras ou incuráveis ficam, ainda, mais órfãos de seus tratamentos por falta de recursos devido ao elevadíssimo custo. A burocracia estatal envolvida nas compras de medicamentos e no fornecimento de mão-de-obra médica muitas vezes deixa essas pessoas necessitadas desses serviços e produtos órfãs de cuidados. Com isso, a saúde de muitas delas fica precariamente debilitada, o que demonstra mais uma vez a ineficiência estatal no cuidado da saúde de seus cidadãos, além do lamentável descumprimento do ordenamento jurídico. CONCLUSÕES Por fim, pode-se concluir que o Estado é o principal responsável em prover uma saúde efetiva e eficaz aos seus cidadãos. E uma das formas plausíveis de concretizar tal responsabilidade, vislumbra-se nas pesquisas com células-tronco embrionárias. As pesquisas com este material genético não só trazem ao país um avanço científico-tecnológico, em que serão diminuídos gastos com a importação de medicamentos e tecnologias desenvolvidas por outros países, como demonstram a preocupação estatal no avanço de possíveis curas de doenças que tornam as pessoas dependentes de uma vida não compatível com a dignidade humana. A humanidade tem demonstrado uma grande inquietação quando se trata de saúde humana, pois ao longo dos anos são descobertas cada vez mais doenças, que tornam a saúde das pessoas mais vulneráveis. Em decorrência, há um grande avanço nas pesquisas no campo da medicina e da engenharia genética com o objetivo de descobrir a cura de doenças hoje consideradas incuráveis e, consequentemente, promover um maior bem estar e uma vida digna a todos àqueles que sofrem de algum tipo de restrições. Não se pode ignorar o avanço médico-científico e nem as suas descobertas em favor daqueles que tanto necessitam e anseiam por uma vida melhor e  por ver o seu direito a vida prestado de forma eficaz e de se sentir digno de uma vida, sem se sentir humilhado ou diminuído por sua condição física, e vendo os seus direitos mínimos essenciais sendo respeitados. Mesmo não sendo a vida um valor absoluto é importante repensá-la no tocante a qualidade de vida de cada ser humano. Os tratamentos e as pesquisas voltados às pessoas portadoras de doenças incuráveis trazem benefícios que ultrapassam as questões culturais e religiosas de uma sociedade, beirando o jusnaturalimo, em que é indiscutível o respeito à vida humana digna como valor básico de um Estado Democrático de Direito. As pesquisas com células-tronco embrionárias criaram uma expectativa promissora de que cada pessoa poderá ter uma vida digna, com seus direitos fundamentais respeitados. Faz-se necessário destacar que não há hierarquia entre os princípios acima discorridos, e portanto, nenhum deles deve ser mitigado para que o outro seja cumprido. Ambos são princípios constitucionais, em que um é atrelado ao outro e sem um o outro não existe, e os dois juntos dão ao ser humano o direito de ter uma vida que a própria Constituição Federal de 1988 estabelece: uma vida com dignidade. Em nenhum momento foi esquecida a questão ética. Esta deve estar impressa a cada linha aqui descrita. A ética é o primado de qualquer pesquisa científica, principalmente nas relacionadas à vida e ao seu elemento essencial que é o material genético que a compõe. Mas a própria lei infraconstitucional já estabelece parâmetros e limitações para que as pesquisas com células-tronco embrionárias utilizem àquele material que não mais terá serventia a sua função originária. E por fim, não se pode deixar de mais uma vez fazer referência ao grande avanço que os cidadãos brasileiros tiveram ao ver não ser revogado o art. 5º da Lei de Biossegurança pela Suprema Corte. Isso traz mais segurança e mostra aos cidadãos que o Poder Público está preocupado em lhes proporcionar uma melhoria na qualidade de vida das pessoas, que depositam suas expectativas nas pesquisas com células-tronco embrionárias, ficando demonstrado mais uma vez o respeito à dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-93/como-as-pesquisas-com-celulas-tronco-embrionarias-influenciam-no-direito-a-vida-e-a-dignidade-da-pessoa-humana/
Dignidade da Pessoa Humana e Eutanásia: Breves Considerações
Tema que há tempos vem sendo conteúdo para debates, o princípio da dignidade humana possibilita que questões polêmicas sejam discutidas e esclarecidas, como, o direito a uma morte digna e sem sofrimento, o direito a vida, e o direito de se ter autonomia sobre determinadas escolhas em sua própria vida. O tema aqui estudado abre espaço para que seja esclarecido e exposto alguns desses temas, incluindo definições de alguns conceitos como eutanásia, distanásia, ortotanásia e a diferença entre deixar morrer e colaborar em suicídio.
Biodireito
1. Introdução Este artigo apresenta as definições de eutanásia, distanásia e ortotonásia, além de estudos sobre a bioética o biodireito. Expõe a relação entre o princípio da dignidade humana, direito à vida, o direito de morrer, o direito a uma morte digna e sem sofrimento e suas diferenças. Contudo, também traça uma ponte entre o que vem a ser o direito a vida e o dever de viver onde algumas pessoas são levadas a manterem uma vida vegetativa, com a intenção de ser encontrada a cura para tal enfermidade, ou não. Tem como objetivo esclarecer assuntos que para muitos que confundem quanto ao significado verdadeiro da eutanásia. Quanto à metodologia aqui utilizada apresenta-se de forma bibliográfica de analise. 2. Definições e diferenças entre eutanásia, distanásia e ortotanásia A definição e alguns conceitos relacionados a vida ainda se fazem muito necessário, pois há uma recorrente confusão em termos que se referem a abreviação da vida , a suspensão de alguns tratamentos médicos e o direito a vida, por isso, faz-se necessário o seu esclarecimento. Temos ai a definição de eutanásia, distanásia e ortotonásia. 3. Eutanásia A palavra eutanásia deriva da expressão grega euthanatos, onde eu significa bom e thanatos, morte, significando etimologicamente morte boa, sem sofrimento ou dor. Contudo, algumas definições diferentes são dadas a eutanásia como, por exemplo, a definição dada por Frank Bacon no século XVII- Bacon foi o primeiro a utilizar o conceito eutanásia ao se referir a atitudes médicas quando não havia mais possibilidade de tratamentos para enfermos – ele era a favor da prática da eutanásia quando o paciente não tinha mais cura e se encontrava em estado de sofrimento contínuo, ele argumentava que os médicos deveriam ter aptidão suficiente para amenizar o sofrimento e a agonia da morte. (Sonia Maria Teixeira da Silva, Novembro de 2000). Já para Morselli, define eutanásia como “a morte que alguém dá a uma pessoa que sofre de uma enfermidade incurável, para abreviar a agonia longa ou dolorosa.” (Sonia Maria Teixeira da Silva, Novembro de 2000). Observa-se com isso que embora sejam diversos os conceitos de eutanásia, no desenrolar da questão, o significado acaba sendo, conceder ao indivíduo que sofre por alguma enfermidade incurável e ou dolorosa a morte, abreviando-a ou permitindo que ela aconteça. Apresenta-se como situação típica à aplicação da eutanásia o caso da professora Francesa Chantal Sebire de 52 anos, que em decorrência de uma síndrome grave e incurável que lhe causava forte dor e incomodo, se submete ao poder do Estado pedindo que lhe fosse concedido o direito a “Boa Morte”. (AFP, 2008) Reforça-se a necessidade da eutanásia neste caso por se tratar do pedido de uma pessoa em sã consciência submetida não só ao incomodo físico, mas também, ao incomodo moral. 4. Distanásia A distanásia é o procedimento pelo qual mantém-se a vida do paciente por meios artificiais mesmo que o individuo não apresente nenhuma possibilidade de cura. Este tema vem sendo muito discutido no campo da bioética e do biodireito já que algumas pessoas consideram errado prolongar a vida de uma pessoa que já esta biologicamente morta, enquanto que outras argumentam que a distanásia é a possibilidade de manter a pessoa com vida ate que seja encontrada a cura para a sua enfermidade. O conceito de distanásia ocupa um vasto campo de discussões, pois conflita com a idéia de direito que o cidadão tem de ter uma vida digna e sem sofrimento. 5. Ortotanásia A ortotanásia trata da interrupção do tratamento na qual o convalescente esta sendo submetido. Possibilita assim uma morte natural, rápida e sem desconforto, é encarado como um processo biologicamente natural. O conceito de ortotonasia pode ser confundido muitas vezes com eutanásia, mas de nada tem haver, pois a ortotonasia ocorre quando o processo de morte já se iniciou e o paciente já não tem mais chance de sobreviver sem a ajuda de aparelhos. 6. Bioética (ética médica) e biodireito 6.1. Bioética A bioética é o estudo relacionado a biologia, medicina e ética, ao qual busca investigar todas as condições necessárias para uma administração responsável do profissional de saúde em relação à vida humana em geral e da dignidade humana em particular. Essa ciência está estritamente ligada ao biodireito. 6.2. Autonomia De acordo com o princípio da autonomia o paciente tem o direito de escolher se quer ou não utilizar o tratamento, exceto em alguns casos em que o paciente não tenha condições mentais de decidir o que melhor lhe convém. Mister citar o caso do Jovem Francês que após sofrer um grave acidente automobilístico fica tetraplégico, cego e surdo, dispondo apenas do movimento de um dos seus polegares, usando este para se comunicar, exprime através de sua limitada condição física o desejo de se submeter à eutanásia. (Débora Berlinck, 2003) O poder de autonomia vai de encontro aos conceitos de eutanásia e distanásia, pois cabe algumas vezes a decisão de escolha pelo mantimento ou não dos aparelhos que prolonguem a vida do enfermo, aos familiares do paciente. 6.3. Beneficência Esse princípio é o de escolha por terceiros a tratamento que melhor beneficie o paciente, quando esse não está em condições de realizar essa escolha. Estaria esse, ligado à eutanásia e a distanásia. Esse dois conceitos são defendidos claramente no capítulo V, art. 56, do código de ética médica que contém a seguinte redação “Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”. 6.4. Biodireito O biodireito é o ramo direito público que corresponde à bioética, estudando as relações jurídicas entre os avanços tecnológicos ligados a medicina e à biotecnologia e o direito, priorizando assuntos relacionados ao corpo e a dignidade da pessoa humana. Os princípios da autonomia e da beneficência pouco se diferem das definições dadas pela bioética por isso priorizaremos outros assuntos. 7. Introdução principiológica e  normativa Foi visto anteriormente conceito, aplicação e alguns exemplos que envolvem a eutanásia, distanásia e a ortotanásia. Ficam também esclarecidas algumas questões atinentes a dúvidas que envolvam os casos de aplicações dos métodos supracitados. Agora, evocamos então, o entendimento doutrinário e a letra da lei para exaurir as possíveis lacunas restantes acerca do que tange a legislação sobre este assunto na busca de esclarecer as dúvidas e erigir novas discussões sobre o tema. A Magna Carta brasileira regula e protege através dos princípios e direitos os interesses de cada individuo presente na nossa sociedade. Quando tangenciamos o tema eutanásia dois instrumentos normativos tomam posição de destaque, o primeiro erigi o principio da Dignidade Humana o outro regula o Direito à Vida, este por sua vez será explanado de forma mais aguçada nas linhas que se seguem. 7.1. Direito à vida Nossa Constituição Federal é taxativa quando prevê em seu art. 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida. Mister citar os dizeres de Tavares (2008, pág. 527) que diz que “o Direito à vida é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente”. Seguindo a mesma linha de pensamento o grande jurista constitucional José Afonso da Silva (2009, p. 198) tece que “de nada adiantaria a constituição assegurar outros direitos fundamentais, como igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos”. Desta forma, segundo nossa lei fundamental, a Constituição Federal de 1988, norma suprema que rege a relação Estado/Individuo, fica expressamente vetado violar o Direito à vida, sob o argumento de que este é de primordial importância para a existência e manutenção dos demais Direitos e Princípios. 7.2 Dignidade Humana Principio de relevante importância, apresenta assunto pertinente e se encaixa com total perfeição a discussão aqui proposta, pois, tange as normas concernentes à autonomia e dignidade do individuo. A Dignidade Humana não constitui tão somente um Direito atribuído a todos os cidadãos sem nenhum sentido especifico. Antes de apresentar-se como Direito, mostra-se como fundamento do Estado Federativo Brasileiro, com texto previsto em nossa Norma Primeira. Dessa forma, não obstante pôr a Dignidade Humana como “valor supremo que atrai o conteúdo de todos os Direitos Fundamentais do Homem desde o Direito à Vida”. (José Afonso da Silva, 2008, pág. 105) Nos dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira: “O conceito de Dignidade da Pessoa Humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do Homem (…), ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência Humana.” (Gomes Canotilho. Vital Moreira apud José Afonso da Silva, 2008, pág. 105) Entretanto verifica-se no conceito de Dignidade Humana vertida por Kant e recepcionada pelo ilustre jurisconsulto Tavares que o homem, de uma maneira geral, todo o ser racional, existe como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. (Kant apud Tavares, 2008, pág. 538, 539) Imperiosas palavras de Sarlet que expõe o Homem como sendo ser livre e responsável por seus atos e seu destino. (Sarlet apud Tavares, 2008, pág. 539). Assim sendo, com fulcro doutrinário, Dignidade Humana não só é Principio Fundamental garantido e previsto por nossa Magna Carta, é também, valor intrínseco ao homem, não podendo constituir objeto para a realização pessoal de outrem. 7.2. Direito à vida, dignidade humana e eutanásia Alvo de diversas outras explanações a eutanásia encontra sua proibição legal quando se depara com o Direito à Vida que é relevante, indisponível, inalienável e antes de tudo irrenunciável. Apresentamos também o Princípio da Dignidade Humana que, antes de compor a Constituição Federal de 1988 como um dos Fundamentos Básicos da República Federativa do Brasil, apresenta-se como valor intrínseco ao Homem, este valor por sua vez assegura a autonomia daquele como ser que encontra sentido em si mesmo. Observem agora que nesta Dicotomia encontramos o Direito à Vida de um lado, como Direito Fundamental e indispensável à manutenção e existência de outros Direitos; A Dignidade Humana como Fundamento Básico da República e Valor intrínseco aos Seres Racionais e completando esta Tríade a Eutanásia representando prática expressamente inconstitucional, no entanto, aclamada por muitos moribundos que encontram-se nos leitos da humilhação, implorando pela possibilidade de dispor de um Direito que se depara com o veto na primeira vértice desta bifurcação e amparo na tangente da Dignidade Humana. Destarte, se pratico a Eutanásia, agrido significativamente o Direito à Vida. Entretanto, se aquele método não pode ser aplicado, proibimos alguém de dispor de sua autonomia, de exercer sua Dignidade Humana. Acerca da Eutanásia e do Direito à Vida, explana o insigne jurista José Afonso da Silva que: “(…) é, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo Direito à Vida consagrado na constituição, que não significa que o individuo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito.” (2008, p. 202) Contudo, a Eutanásia encontraria apoio baseando-se no Princípio da Dignidade Humana e nos dizeres do egrégio doutrinador André Ramos Tavares que disserta. “(..) dessa forma, a Dignidade do Homem não abarcaria tão-somente  a questão de o Homem não poder ser um instrumento, mas também, em decorrência desse fato, de o Homem ser capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas própria decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu pensar e decidir”. (2008, p. 541) Porém, mesmo aparentando um conflito, o ordenamento jurídico pátrio já se posicionou acerca desta lide e expressou que é inaceitável a prática da Eutanásia, fazendo com que, dessa forma, haja uma sobreposição do Direito à Vida sobre a Dignidade Humana, pelo menos nesse aspecto. 8. Considerações finais Na certeza de que este assunto não irá se exaurir com esta singela dissertação, ficam tema e debate abertos a mais explanações, discussões, e também pareceres pessoais. O Direito é objeto social, predisposto a adaptações, nessa assertiva fica o intento de ver o ordenamento jurídico absorvendo mais um direito, o Direito a Boa morte. Este tema apresenta relevância extrema, expõe a situação de diversas famílias e enfermos presos a formalidades do nosso ordenamento jurídico. Uma avaliação da situação destes infelizes enclausurados em seus corpos inertes muitas vezes exprimindo um único desejo, o de se libertarem desta situação deplorável e indigna é de certa forma a medida mais coerente. Reprimir o exercício da autonomia daqueles, macula a imagem do princípio da Dignidade Humana. É inconcebível cotejar a situação de pessoas acometidas por síndromes irreversíveis, doenças incuráveis, estados vegetativos (situação esta que causa dependência total), a pessoas sãs que gozam de extrema saúde. O fito principal deste artigo é o de reconhecer a existência de mais um Direito, o Direito a Boa Morte, ou como melhor desejarem, o Direito a Morte sem interferência de terceiros e com auxílio do Estado quando assim for necessário. Não obstante mencionar o Anteprojeto da comissão provisória de estudos constitucionais que dispôs no seu art. 6º, todos têm Direito à existência Digna. Conexo com o tema, expomos além da eutanásia a ortotanásia, procedimento este que poderia ser utilizado como medida alternativa mais ética e coesa com a situação do enfermo, tendo em vista que, o escopo principal é amenizar o sofrimento do doente, e, como também, dos seus familiares, que, em muitos casos, são seus curadores legalmente investidos. Se o ordenamento jurídico pátrio vislumbra na atitude de subtrair a vida de outrem um ato ilícito por se tratar de interrupção ao ciclo vital normal e uma agressão a um bem jurídico constitucionalmente tutelado, coerente seria configurar ilícito o escopo de manter vivo um corpo inerte. Visto que neste ato observa-se uma interferência ao curso normal da vida, observando que o doente já estaria morto se não fossem os mecanismos médicos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-91/dignidade-da-pessoa-humana-e-eutanasia-breves-consideracoes/
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento jurídico para Bioética
O presente texto, em que pese de forma breve, objetiva-se a tratar do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento jurídico da bioética.
Biodireito
Resumo: O presente texto, em que pese de forma breve, objetiva-se a tratar do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento jurídico da bioética. O princípio da dignidade da pessoa humana[1], fundamento do Estado Democrático de Direito, esculpido na Carta Constitucional de 1988 em seu Art. 1, inciso III, é norma constitucional[2] central de todo o ordenamento jurídico. Neste cenário, importante referir que tal princípio há de ser visto sob a dimensão da plenitude ou amplitude. Plenitude, esta, que significa dizer que o ser humano merece reconhecimento na sua parte mais íntima e no seu todo mais amplo. Neste sentido, posiciona-se Maria Cristina Cereser Pezzella, “Compreender a dignidade da pessoa humana abarca uma séria discussão no campo das idéias na esfera jurídica constitucional e no campo de todas as relações na esfera do direito infraconstitucional inclusive, além de outras repercussões do pleno desenvolvimento da pessoa na perspectiva física, emocional, intelectual e psíquica”.[3] Com a idéia de dignidade, originando uma nova perspectiva capaz de garantir a felicidade e a busca da plenitude torna-se indispensável que seja observado o princípio da dignidade da pessoa humana sob a ótica da perspectiva dos direitos da personalidade. Neste sentido, esclarece Ingo Sarlet que a dignidade da pessoa apenas estará assegurada “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”.[4] A vida digna é então aquela onde estão presentes os valores essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa, próprios para as suas necessidades, aptos para as suas características, identificados e individualizados de forma a satisfazer o seu titular. Para isto, se faz necessário entender e compreender o que é a pessoa humana, não devendo esta ser tratada apenas como sujeito de direito, mas sim como um ser humano, pessoa concreta, com suas possibilidades, aptidões, necessidades e singularidades. Judith Martins-Costa, quanto a este tema, se posiciona no sentido de considerar “as pessoas concretas, os seres humanos de carne e osso, tão fundamentalmente desiguais em suas possibilidades, aptidões e necessidades quanto são singulares em sua personalidade, em seu ‘modo de ser’ peculiar”.[5] Para compreensão, ainda que breve, vislumbra-se a personalidade humana como constituição de um todo, um complexo multifacetado, singular e unitário (e não a mera soma das partes), merecedora de garantia e tutela no seu particular modo de ser e em todos os variados aspectos que a singularizam. Isto significa dizer, nos termos de Paulo Mota Pinto, que as situações jurídicas existenciais respeitantes à própria pessoa ou “sobre alguns fundamentais modos de ser, físicos ou morais, da personalidade” não constituem “uma pluralidade taxativa de direitos, incidindo cada um sobre um particular aspecto da personalidade”. Antes de tudo, merece uma perspectiva unitária para se poder admitir um “complexo de direitos de personalidade referido à personalidade no seu todo”.[6] Nas mãos de Gustavo Tepedino, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha contornos de ‘cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana’, ou dito de outra forma, é o ‘valor máximo’ de nosso ordenamento jurídico.[7] Maria Cecília Bodin de Moraes, neste sentido, ancorou a essência material da dignidade da pessoa humana em quatro desdobramentos: “(i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; (ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica que é titular; (iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; (iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado”.[8] Assim a dignidade da pessoa humana sustenta, agrega e encentra o sistema constitucional ao redor de seu conteúdo fundamental: direito à igualdade material, à integridade psicofísica, à liberdade e à solidariedade. Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana liga-se a esfera da bioética, na medida em que a preocupação da vida humana deixa de estar centrada na mera subsistência biológica e passa a estar reconhecida em toda a sua dignidade. Os princípios de respeito, conservação e inviolabilidade da vida devem se adequar à luz dos princípios bioéticos, que clamam pela integridade da pessoa, identidade e liberdade. A Bioética[9], cujo objeto é a vida e a ética, passando por reflexões como a qualidade de “ser pessoa”[10], de sua autonomia e de sua existência, caracteriza-se como sendo uma ciência que busca, em suas origens, aspetos fundamentais referentes à existência do ser humano, inclusive à validade da utilização de novas técnicas e de inovadoras posturas a serem tomadas em relação à vida e à morte, em atendimento ao dinamismo da sociedade, ao direito globalizado, sem perder de vista o cumprimento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Em razão da dignidade, o ser humano deve ser respeitado em sua identidade psíquica e genética, em sua integridade somática e em sua autonomia pessoal[11]. E, justamente, é a Bioética que estuda e preocupa-se com tais dimensões frente às questões do avanço das ciências tecnológicas, manipulação genética, pesquisas com seres humanos, etc. Segundo Andorno, apud Eduardo Luis Tinat[12], a UNESCO recomenda em suas declarações internacionais, proteger o ser humano “em sua humanidade”, e essa idéia de dignidade é um valor inerente a cada um, de todo indivíduo, mas também da humanidade em conjunto. Ele evidencia que na Bioética reside claramente o marco dos direitos humanos, idéia de que todo ser humano possui direitos inalienáveis e imprescritíveis, que independem de suas características físicas, idade, sexo, raça, condição social ou religiosa. Em razão dos argumentos acima expostos, pode-se construir e demonstrar que o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, evidenciado na sua forma mais ampla e completa, serve como substrato para as discussões bioéticas. Bem como, há de se relatar, que a dignidade humana vista como princípio ético-jurídico tem contribuído sobremaneira para o tratamento jurídico dos problemas bioéticos.[13]   Referências bibliográficas: CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. MARTINS-COSTA, Judith. Os Direitos Fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, 3 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. MORAES, Maria Cecília Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Constituição… op cit. MOTA PINTO, Paulo. Notas sobre o direito do livre desenvolvimento da personalidade e os direitos da personalidade no direito portugês. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada – construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. Pezzella, Maria Cristina Cereser. O Código Civil em Perspectiva Histórica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O Novo Código Civil e a Constituição. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídico das “ordens de não-ressuscitação”, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10 ed. rev. atual. ampl.; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: Temas de Direito Civil, p. 48. TINANT, Eduardo Luis. Bioética jurídica, dignidad de la persona y derechos humanos. Editorial Dunken. Buenos Aires, 2007.   Notas: [1] Um conceito analítico de dignidade da pessoa humana foi fomulado pelo Professor Ingo Wolfgang Sarlet, para quem a dignidade humana é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. Cf. SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.60. [2] Cabe referirmos, sucintamente, a idéia de constitucionalismo contemporâneo, quando os princípios jurídicos são encarados como normas. Neste sentido, entendimentos de Robert Alexy e Paulo Bonavides, entre outros não menos importantes. Todavia, em razão da brevidade do presente texto, não adentraremos na análise da reflexão, interpretação e aplicação dos princípios jurídicos a serviço, ainda, da idéia moderna de ciência. [3] Pezzella, Maria Cristina Cereser. O Código Civil em Perspectiva Histórica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O Novo Código Civil e a Constituição. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 [4] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10 ed. rev. atual. ampl.; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 311. [5] MARTINS-COSTA, Judith. Os Direitos Fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, 3 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 83. [6] MOTA PINTO, Paulo. Notas sobre o direito do livre desenvolvimento da personalidade e os direitos da personalidade no direito portugês. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada – construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 62. [7] TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: Temas de Direito Civil, p. 48. [8] MORAES, Maria Cecília Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 120. [9] Talvez uma boa definição do termo bioética seja: “Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética). Pode-se, defini-la como o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar”. Encyclopedia of biorethics, 2 ed. vol. I, introdução, p. XXI, W. T. Reich, editor responsável, 1995, In: PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Chritian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 32. Outro posicionamento relevante e que muito se aproxima do já referido, é do Prof. Clotet, o qual considera “A Bioética é o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e do cuidado da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais” (CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 15). [10] Em que pese se ter ciência da bioética ambiental e do próprio conceito amplo de bioética, que abrange a proteção e estudo sobre todos os seres vivos, o presente texto utilizará o conceito de bioética voltado ao ser humano, vez que estamos trabalhando com a fundamentação jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana. Todavia, necessário se refererir que o neologismo Bioética divulgado por Van Rensselaer Potter, no seu livro Bioethics: bridge to the future, em 1971, já cunhava à importância das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida; quer dizer, a Bioética seria, para ele, a ciência que garantiria a sobrevivência no planeta. (POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971. In: CLOTET, Joaquim. Bioética … op. cit., p. 21) [11] CLOTET, Joaquim. Bioética … op. cit., p. 129-30. [12] TINANT, Eduardo Luis. Bioética jurídica, dignidad de la persona y derechos humanos. Editorial Dunken. Buenos Aires, 2007, p. 160. [13] PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídico das “ordens de não-ressuscitação”, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 57. Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade IDC; Pós-Graduanda em Bioética pela PUC/RS; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS; Diretora Estadual (RS) da ABRAFAM, Associação Brasileira dos Advogados de Família; Palestrante; Parecerista e Consultora Jurídica.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-91/o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-como-fundamento-juridico-para-bioetica/
O conceito de homem, pessoa e ser humano sob as perspectivas da Antropologia Filosófica e do Direito
Cuida-se de trabalho em que se pretende investigar os conceitos de homem, pessoa e ser humano, essencialmente sob os enfoques antropológico-filosófico e jurídico, cuja compreensão é indispensável tanto para resoluções dos dilemas no campo da Bioética, quanto para a disciplina referente à proteção jurídica ao indivíduo.
Biodireito
1. Introdução Cuida-se de trabalho em que se pretende investigar as teses controvertidas sobre os conceitos de homem, pessoa e ser humano, essencialmente sob os enfoques antropológico-filosófico e jurídico, cuja compreensão é indispensável tanto para resoluções dos dilemas no campo da Bioética, quanto para a disciplina referente à proteção jurídica ao indivíduo. O termo homem recebeu ao longo da história diversos e controversos conceitos. A tarefa de responder a pergunta o que é o homem geralmente é destinada à antropologia filosófica[1]. O que temos claro, todavia, é que nem sempre as concepções de ordem antropológico filosóficas estão em consonância os próprios princípios bioéticos, bem como com as normas vigentes na ordem jurídica. O avanço tecnológico que promoveu nas últimas décadas uma revolução nas técnicas de manipulação de material biológico humano tem levado a questionamentos fundamentais de ordem ética. Tanto é assim, que documentos como Relatório Belmont[2], que disciplina os princípios éticos e diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos, foi um marco na discussão quanto aos limites e os objetivos que devem nortear a prática e a pesquisa, fornecendo elementos para resolução de conflitos no campo das investigações envolvendo seres humanos. Estes princípios – respeito pelas pessoas, beneficência e justiça – têm sido aceitos desde então como os três princípios fundamentais para nortear o desenvolvimento de pesquisas éticas envolvendo participantes humanos. De outra sorte, o conceito de pessoa, sobretudo no que diz respeito ao início e ao fim da vida, sempre teve importantes conseqüências no campo do direito. Se é verdade que o direito é feito por pessoas para pessoas, saber quando começa a vida e quando ela termina pode implicar numa série de direitos de natureza civil (direitos de personalidade) e conseqüências de ordem penal. Sendo assim, propomos a discussão do tema a partir da diversidade de conceitos de pessoa ou do homem. Sem embargo da multiplicidade de concepções, Abbagnano (2003) propõe três como sendo fundamentais para reunir as várias definições de homem: a) o homem em relação a Deus; b) o homem segundo uma característica ou capacidade que lhe é própria; c) o homem segundo a capacidade de autoprojetar-se. A relação de identidade do homem para com Deus extraída do contexto bíblico pode ser vista, por exemplo, no livro de Genesis segundo o qual diz o Criador: “façamos o Homem à nossa imagem e semelhança” (Gen. I, 26). Nesse sentido, Xavier (2009, p. 220) ressalta que “A noção de pessoa, no contexto religioso, liga-se ao conceito de pessoa divina pois, segundo a revelação bíblica, ‘Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.’ Portanto, do ponto de vista religioso, a definição de pessoa depende de sabermos o que é essa pessoa divina, o que é uma noção de difícil aplicação prática nos contexto das ciências.” Esta concepção da pessoa não será aqui abordada por se afastar do interesse do presente estudo. A segunda categoria, que veremos com mais detalhe em seguida (item 2), trata das definições baseadas em alguma característica ou capacidade inerente ao homem, em oposição aos demais seres vivos. A terceira categoria, que consiste na compreensão do homem com capacidade de autoprojeção, deve ser compreendida a partir da concepção do homo juridicus, o qual trataremos no item 3 deste trabalho. 2. O conceito de pessoa e ser humano sob a ótica da antropologia filosófica A primeira pergunta que deve ser feita é: O que é a pessoa[3]? Um dos problemas fundamentais da metafísica consiste em saber o que é ser uma pessoa. A resposta a esta pergunta geralmente está associada à identificação de certas características ou propriedades atribuídas tipicamente à pessoa, em contraste com outras formas de vida: racionalidade, domínio de linguagem, consciência de si, controle e capacidade para agir, e valor moral ou direito a ser respeitado (BLACKBURN, 1997)[4]. Embora essas características não sejam adotadas por todos, podemos dizer que os aspectos essências que dão singularidade à pessoa[5], é a de um ser autônomo, logo, racional, livre, responsável, que se constrói ao longo da vida, singular, único, irrepetível, relacional e comunicativo.[6] Consoante aduz Rachels (2006, p. 132), Kant acreditava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Para ele, os seres humanos possuem um valor intrínseco, isto é, dignidade, o que os torna valiosos acima de tudo. Outros animais, por outro lado, possuem valor apenas enquanto servem os propósitos humanos. Os humanos, todavia, nunca podem ser usados como meio para se alcançar um fim, ainda que vise o bem-estar da maioria. Trata-se, portanto, de formulação importante do imperativo categórico kantiano, princípio moral fundamental do qual todas as nossas obrigações e responsabilidades devem derivar. Kant destaca o caráter racional do ser humano que o diferencia de todas as outras coisas (incluindo os animais não-humanos), por disporem de desejos e objetivos autoconscientes. Em outras palavras, os seres humanos são agentes racionais, ou seja, agentes livres capazes de tomar suas próprias decisões, estabelecer seus próprios objetivos e guiar suas condutas por meio da razão (RACHELS, 2006). Assevera Xavier (2009) que o filósofo cristão Santo Tomás de Aquino (1225-1274), ressaltou, sobretudo, a singularidade da pessoa humana, distinguindo-a de todos os demais seres pela sua completude, incomunicabilidade, especialidade e racionalidade. Noutra linha, a definição de pessoa proposta por John Locke que, até hoje, permeia as discussões no campo da filosofia: “um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um eu, ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares”, põe em destaque as características da autoconsciência e da capacidade de “reconhecer-se a si mesmo, agora, como o mesmo eu que era antes; e que essa ação passada foi executada pelo mesmo eu que reflete, agora, sobre ela, no presente” (Locke, 1986, p. 318 apud Ferreira, 2005). Locke distingue os conceitos de homem e de pessoa. Para ele, o homem é um organismo biológico; é um corpo. Então, para ele, nascemos homens e podemos nos tornar pessoas. Da bem sucedida combinação entre o homem e a pessoa, surge o homem moral, o homem que reflete sobre si, que se reconhece como um eu no tempo e no espaço, que é capaz de perceber-se como responsável por suas ações passadas e de refletir sobre suas ações futuras (FERREIRA, 2005). Como destaca Ferreira (2005), Locke expressa que o “homem nasce com direito à liberdade de sua pessoa”. A pessoa, porém, não nasce com o homem. A qualidade de pessoa deve ser adquirida; é um status a ser alcançado. O homem desenvolve-se para pessoa; do ser humano passa ao ser inteligente, racional e responsável, que se reconhece como um si mesmo em diferentes tempos e lugares. Do homem chega-se à pessoa responsável por seus atos e que, como tal, se reconhece no presente e no passado e da mesma forma é reconhecida por outras pessoas (FERREIRA, 2005). Cassirer por sua vez, fala de um homem como animal simbólico (symbolicum) e não um como um animal racional (rationale). Ressalta ele que “as coisas físicas podem ser descritas nos termos de suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito e definido nos termos de sua consciência”. E arremata dizendo que “só por meio do pensamento dialógico ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana” (2001, p. 16). Já Peter Singer, de forma singular, pretende dar à expressão ser humano um significado preciso, designando-o como equivalente a membro da espécie Homo sapiens.  Consoante escreve o autor: “A questão de saber se um ser pertence a determinada espécie pode ser cientificamente determinada por meio de um estudo da natureza dos cromossomas das células dos organismos vivos. Neste sentido, não há dúvida que, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião concebido a partir de esperma e óvulo humanos é um ser humano; e o mesmo é verdade do ser humano com a mais profunda e irreparável deficiência mental — até mesmo de um bebé anencefálico (literalmente sem cérebro)” (SINGER, 2000). Singer prossegue sua justificação propondo outra definição do termo humano, atribuída a Joseph Fletcher. Conforme Singer (2000), Fletcher compilou uma lista daquilo a que chamou indicadores de humanidade, em que incluiu o seguinte: a)Autoconsciência b)Autodomínio c)Sentido do futuro d)Sentido do passado e)Capacidade de se relacionar com outros f)Preocupação pelos outros g)Comunicação h)Curiosidade Dos indicadores apontados, destaca Singer que os elementos mais importantes seriam a racionalidade e a autoconsciência, conforme se extrai do conceito de Locke (Singer, 2000). E é nesta acepção que afirma deva ser compreendido o conceito de pessoa. Ainda de acordo com Singer (2000):                   “É este o sentido do termo que temos em mente quando elogiamos alguém dizendo que ‘é muito humano’ ou que tem ‘qualidades verdadeiramente humanas’. Quando dizemos tal coisa não estamos, é claro, a referir-nos ao facto de a pessoa pertencer à espécie Homo sapiens que, como facto biológico, raramente é posto em dúvida; estamos a querer dizer que os seres humanos possuem tipicamente certas qualidades e que a pessoa em causa as possui em elevado grau. Estes dois sentidos de ‘ser humano’ sobrepõem-se mas não coincidem. O embrião, o feto subsequente, a criança gravemente deficiente mental e até mesmo o recém-nascido, todos são indiscutivelmente membros da espécie Homo sapiens, mas nenhum deles é autoconsciente nem tem um sentido do futuro ou a capacidade de se relacionar com os outros. Logo, a escolha entre os dois sentidos pode ter implicações importantes para a forma como respondemos a perguntas como ‘Será que o feto é um ser humano?’” Diante da possível confusão terminológica, Singer entende que o melhor é abandonar o termo ambíguo ser humano e substituí-lo por dois termos diferentes, correspondentes aos sentidos diferentes da palavra. O primeiro sentido, já ressaltado acima, enquadra o ser humano a uma expressão, a seu juízo, mais precisa, como membro da espécie Homo sapiens, enquanto para o segundo sentido usa o termo pessoa, embora reconheça ele que o termo é muitas vezes usado como sinônimo de ser humano e, portanto, provocam equívocos interpretativos. No entanto, assevera Singer que “os termos não são equivalentes; poderia haver uma pessoa que não fosse membro da nossa espécie. Também poderia haver membros da nossa espécie que não fossem pessoas (…)” (SINGER, 2000). A maior dificuldade de admitir o argumento de Singer de que alguns animais não-humanos como chimpanzés, golfinhos e, quem sabe, até porcos, são pessoas, está compreensão de dignidade e respeito que permeia o conceito de humano.  Por esta razão, muitos filósofos criticaram o conceito proposto por Singer, conforme veremos adiante. Dworkin (2003, p. 30 apud Ferreira 2005), embora sem expressa referência a Singer, admite a possibilidade de que, em sentido filosófico, alguns animais não-humanos, como, por exemplo, os porcos, sejam considerados pessoas. Todavia, ressalta que a exemplo das discussões sobre o feto ser ou não pessoa, “seria inteligente deixar de lado a questão, não por se tratar de uma questão irrespondível, mas por ser demasiado ambígua para ser útil”. Desse modo, embora se possa filosoficamente acreditar que os porcos são pessoas, o fato é que os seres humanos não têm nenhuma razão para tratá-los do mesmo modo como tratam uns aos outros. No domínio da antropologia filosófica, a categoria de pessoa não pode ser pensada para além do humano e de que a própria compreensão de pessoa (DWORKIN, 2003 apud FERREIRA, 2005) Na mesma direção é crítica de Nedel (2004, p. 237-240 apud Ferreira, 2005) à posição de Singer: “(…) a concepção de pessoa adotada por Singer é ‘empírico-psicológica’, deduzindo a definição a partir de atributos pelos quais se expressa a personalidade, tais como a racionalidade, a consciência e a capacidade de sentir dor ou prazer, em oposição à concepção ontológica, que reconhece o status de pessoa a partir da própria estrutura ontológica do homem. Dentre os seres naturais somente o ser humano tem merecido a qualificação de pessoa; os outros animais, mesmo os superiores entre eles, como os grandes macacos, não têm sido considerados pessoas, por falta de consciência reflexa perfeita.  A proposta de Singer, deste modo, constituiria um ‘nivelamento por baixo’ que ‘retira do ser humano o privilégio de sua singularidade absoluta entre todos os viventes naturais, na contramão da grande tradição ocidental’. Destaca Nedel que ‘a intenção de Singer é boa: visa a promover a defesa dos animais’, salientando que, ‘para isso, entretanto, não é mister atribuir-lhes a condição de pessoas nem direitos. Animal racional não é sujeito de direitos, segundo a velha e boa tradição filosófica e jurídica’. Complementando o que disseram Dworkin e Nedel, Junges argumenta que “Se a biologia define que alguém pertence como indivíduo à espécie humana, merece respeito devido à pessoa”. Sendo assim, a categoria de pessoa é reservada ao ser humano, ao indivíduo pertencente à espécie humana, dotado de dignidade e merecedor de respeito. O humano e o não-humano são “duas realidades diferentes”, porque o “ser humano é um ser cultural e, portanto, moral. Por isso, a abrangência e o critério ético para respeitar um e outro é diferente“ (2002, p. 08 apud Ferreira, 2005). A posição de Singer, que tem como preocupação central o respeito aos animais, equipara moralmente de forma indevida estes com os seres humanos, pois considera que os indivíduos que apenas possuem mera vida biológica humana não têm valor intrínseco, na medida em que a vida sem autoconsciência é desprovida de valor. Assim, defende ele que não haveria problema em relação ao aborto ou ao descarte de embriões, ou à sua manipulação, seja em que nível for (Xavier, 2009). A visão reducionista de Singer atribui como característica formadora do ser apenas uma de suas manifestações, a autoconsciência, isto é, centra-se na dimensão pensante do ser e esquece-se de sua dimensão física do corpo como também constitutiva ser. Desse modo, para ele muitas das modernas práticas biomédicas – no campo dos transplantes, inseminação artificial, cuidados ao recém-nascido e aos doentes terminais – tornaram-se incompatíveis com a crença do igual valor da vida humana, porque, entre outras coisas, esse valor é variável, visto que “a vida sem autoconsciência não tem valor algum” (Xavier, 2009). A ambiguidade em torno da valoração do humano no campo da filosofia e da bioética tem levado biólogos, médicos, pesquisadores, políticos entre outros, todo dia a enfrentarem dilemas sobre como lidar com a vida (humana), as implicações de uma ou outra posição. No campo jurídico, a questão não é diferente, como veremos. 3. A importância do conceito de pessoa para o direito As teorias do direito se assentam em teorias filosóficas, inclusive sobre a natureza humana e, por isso, devem adotar uma ou outra posição em disputa sobre problemas da filosofia que não são especificamente problemas jurídicos (DWORKIN, 2002). O conceito atual de homem para direito está ligada a concepção filosófica de valorização da humanidade enquanto capacidade de autonomia, ambas constitutivas do humanismo moderno. De acordo com Renaut (2004, p. 10): “(…) o que define intrinsecamente a modernidade é, sem dúvida, a maneira como o ser humano nela é concebido e afirmado como fonte de suas representações e de seus atos, seu fundamento (subjectum, sujeito) ou, ainda, seu autor: o homem do humanismo é aquele que não concebe mais receber normas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, mas que pretende fundá-las, ele próprio, a partir de sua razão e de sua vontade. Assim, o direito natural moderno será um direito ‘subjetivo’, criado e definido pela razão humana (voluntarismo jurídico), e não mais um direito ‘objetivo’, inscrito em qualquer ordem imanente ou transcendente do mundo.” O direito deve ser enxergado, portanto, como instrumento feito pelo homem para o homem. E, como tal, deve assegurar a este o status jurídico compatível a sua existência humana. Tal estatuto advém de sua consideração como pessoa: ser digno de proteção e respeito. Depreende-se da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu Artigo VI, que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.” O homem da Declaração dos direitos humanos é uma pessoa e, como tal deve ser tratamento pela lei. Consoante adverte Tasca (2009), a princípio pode parecer estranho o teor desse artigo sexto da DUDH, pois no presente a idéia de ser humano está indissociavelmente ligada à idéia de pessoa. Todavia, a história do homem comprova que nem sempre foi assim. A escravidão é um exemplo claro de que o ser humano nem sempre foi pessoa. Referido instituto legitimou durante séculos a coisificação do homem enquanto ser passível ser comercializado, explorado e destruído por outros homens. Daí a necessidade de afirmação permanente dos direitos do homem, além de sua efetiva proteção ou efetivação. De acordo com Supiot (2007, p. 236), “os direitos do Homem são os herdeiros dessa concepção, que vê em cada pessoa um espírito único, o qual vai desenvolver-se ao longo de toda a sua vida e lhe sobreviverá através de suas obras”. E, ao tratar sobre os fundamentos jurídicos da pessoa, ele chama a atenção o fato de que em toda sociedade adota certa concepção do homem que dá sentido à vida humana, bem como que, “sob o ponto de vista jurídico, nós o consideramos como sujeito, dotado de razão e titular de direitos inalienáveis e sagrados”. (idem, 2007, p. 12) A idéia de que o homem é um sujeito dotado de razão não passa por uma demonstração científica, mas é fruto de uma afirmação dogmática, própria da história do Direito e não da história das ciências (SUPIOT, 2007). Os três atributos da humanidade que são: a individualidade, a subjetividade e a personalidade são ambivalentes. É que o homem, enquanto indivíduo, é um ser único, indivisível, mas também semelhante a todos. Quando tido como sujeito, ele é soberano, mas também se sujeita à lei comum. Já como pessoa, o homem é espírito e também é matéria (SUPIOT, 2007)[7]. Por esta razão, o direito deve buscar conciliar toda a ambivalência do homem e todas as suas dimensões, uma vez que é sua função antropológica instituir o ser humano, o que significa. Nesse sentido, Xavier (2009) ressalta, em termos jurídicos, como sinônimas as palavras pessoa e sujeito de direito: “Na concepção jurídica, pessoa é um ente físico ou coletivo susceptível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de direito é aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, é o indivíduo que pode exercer as prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe atribui, que tem o poder de fazer valer, através dos meios legais disponíveis, o não-cumprimento do dever jurídico.” Se formos buscar no direito positivo brasileiro, veremos que a lei associou a pessoa à subjetividade jurídica. O Código Civil Brasileiro — Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 —, por exemplo, dispõe que, em seu art. 2o que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” [8] Desse modo, no sentido jurídico moderno, todo ser humano é pessoa, dotado, pois, de uma personalidade jurídica, considerada a aptidão genérica para adquirir direitos e deveres[9].       A atribuição de uma personalidade jurídica a todo ser humano resultada em duas conseqüências elementares. A primeira é a de que todas as pessoas tem direitos inerentes à sua condição humana, os chamados direitos de personalidade, classificados em três grandes categorias: a) direito à integridade física; b) direito à integridade moral; c) direito à integridade intelectual. A segunda conseqüência está na discussão temporal sobre quando se inicia ou termina a existência da vida humana, com sérias implicações de ordem patrimonial, sobretudo no que diz respeito aos direitos hereditários e às obrigações civis[10]. Uma leitura da lei civil indica que a personalidade civil só existe a partir do nascimento do ser humano (perspectiva natalista). Contudo, o reconhecimento jurídico da necessidade de proteção da vida humana intrauterina, como defendem os adeptos de uma posição conceptivista, resulta no asseguramento dos direitos ou interesses do nascituro que o caracterizam já como pessoa, ainda que uma pessoa virtual, potencial. Sob esse prisma, o Direito acaba por se conformar à realidade da natureza humana e não o contrário[11]. No campo penal também suscitam dilemas a disponibilidade da vida humana. Temas como o aborto, a lesão fatal ou não em legítima defesa (homicídio, tortura, lesão corporal etc.), a autolesão, a prisão, a pena de morte sempre foram motivos de intensos e intermináveis debates na história da humanidade. Ainda cabe ressaltar que a dignidade da pessoa (humana) como valor, seja como realidade pré-jurídica ou positiva, subsidia, na atualidade, propostas político criminais em diferentes sentidos. Tanto na proteção — minimização da violência — do homem contra o próprio homem ou deste para com o Estado (garantismo), como na exclusão/destruição do homem quando este se torna inimigo da sociedade (direito penal do inimigo). 4. Considerações finais Concordamos com a visão kantiana de que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação, bem como que estes possuem “um valor intrínseco”, isto é, “dignidade”, o que os torna valiosos “acima de tudo”. E que tratar o ser humano não dotado de autoconsciência como um animal, subtrai-lhe seu valor, bem como promove um nivelamento por baixo em relação às outras espécies vivas, na medida em que lhe retira sua singularidade e importância. Nada justifica tratar os seres humanos como aos animais, mesmo que se tenha a boa intenção de valorizar estes últimos.  Assim, somos contrários, portanto, às posições que distingue as dimensões do ser humano, como faz Peter Singer, entre vida biológica e ser pensante, dotado de autoconsciência, conferindo-lhes tratamento diferente. O ser humano, a pessoa, é algo integral, composto de corpo e alma e assim deve ser visto, independentemente de suas qualidades, seu estado físico ou psíquico. Embora o conceito filosófico de pessoa seja sempre mais amplo que o do Direito, este não pode perder vista o valor do homem enquanto distinto e superior a qualquer outra espécie animal. E que, por isso, deve ampliar cada vez mais seu espectro de proteção sobre os direitos da pessoa, salvaguardando não só ser biológico dotado de autoconsciência, mas também a pessoa em potencial (nascituro, embriões); a pessoa em sua integridade física e psíquica; e a pessoa enquanto corpo humano indisponível. É esse o tratamento adequado que o direito deve dar a ser humano. Tratá-lo o mais breve e integralmente como pessoa, conferindo-lhe a proteção necessária que a dignidade decorrente de sua condição com ser único, irrepetível exige. Em síntese, o homem deve ser tributário de dignidade jurídica em toda sua ambivalência.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/o-conceito-de-homem-pessoa-e-ser-humano-sob-as-perspectivas-da-antropologia-filosofica-e-do-direito/
O biodireito de mudar: transexualismo e o direito ao verdadeiro eu
Este ensaio promove uma reflexão, não exaustiva, sobre o transexualismo, em seus aspectos sociais, médico-legais e bioéticos. Tal debate se revela urgente e necessário, na medida em que o avanço e complexização das relações sociais colocam na ordem do dia temas multidisciplinares que antes eram tidos como verdadeiros tabus ou considerados secundários para o Direito. O transexualismo é um destes temas. O estudo traz à tona discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo moderno. Evidencia o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é preciso ir-se além da própria idéia de diferença, observando a multiplicidade de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito. O percurso dos interessados na mudança de sexo é difícil, repleto dos mais variados óbices, sendo certo que, muitas vezes, o Poder Judiciário se revela como consolidação do sofrimento e legitimação da exclusão social.
Biodireito
INTRODUÇÃO A evolução e a complexização das relações sociais faz necessária a discussão de temas que antes eram considerados secundários para o Direito. O transexualismo é um tema que envolve inúmeras áreas de conhecimento, sendo imperioso a analise jurídica aliada a outros ramos da ciência para a efetivação dos direitos fundamentais destas pessoas que, na maioria das vezes, são taxadas de ‘anormais’, vivendo à margem da sociedade. Importante apontar que transexuais são indivíduos que possuem uma inadequação entre o sexo físico e o psíquico, não tendo perfeita correspondência entre a genitália interna e externa de um único sexo, isto é, não se sente como seu sexo físico, respondendo psicologicamente aos estímulos do sexo oposto. Entretanto, justo esclarecer que isso não pode ser considerado com uma anomalia, apenas não corresponde aos padrões aos padrões de normalidade previamente estabelecidos pela sociedade. Com ela, surge a idéia de diferença e o direito à diferença. Contudo, a diferença pressupõe uma relação, ou a existência de um parâmetro hegemônico ou mais forte. O tema escolhido como objeto para o presente ensaio cuida da transexualidade e traz à tona uma discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo moderno. Evidencia o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é preciso ir-se além da própria idéia de diferença, observando a multiplicidade de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito. Ao longo do texto, as autoras fazem reflexões acerca da  identidade do transexual  e apresentam a distinção relativa ao conceito de  identidade de gênero, bem como apontam os  paradigmas sexuais sociais estabelecidos, qual seja,  as espécies de diferenciações sexuais, para em seguida, abordar a questão do processo de redesignação psicossocial, bem como as diversas posições relativas à integridade física e a operação de mudança de sexo. Num segundo momento, o estudo aborda o fenômeno transexual num viés próprio ao Biodireito, introduzindo noções sobre o campo que implicam numa necessária apresentação da polêmica jurídica em torno a alteração do nome civil e da identidade de gênero. No entanto, na medida em que se trata de tema multidisciplinar, necessário se fez adentrar aos reflexos da alteração da identidade sexual no direito social, pó se tratar de uma questão de Ética e Justiça. Por fim, o ensaio promove um olhar a respeito do acesso á terapia para “mudança de sexo” no Sistema Único de Saúde (SUS), concluindo pela importância do respeito à condição singular do transexual enquanto ser dotado de dignidade a ser respeitada em todo seu espectro. Usar o termo singularidade é, propositadamente, um esforço em romper com a existência de parâmetros; Afinal, quando se é diferente, se é diferente em relação a alguma coisa ou alguém; já uma proposta a partir da idéia de singularidade permite uma maior autodeterminação dos sujeitos porque não os vinculam a modelos previamente estabelecidos ou ideais. O uso de biotecnologia na prática médica promove novas questões para debates tradicionais, modificando perspectivas morais. Igualmente, as conquistas de direitos civis, a solidificação de movimentos sociais, entre outras situações de ordem social, acabam por promover novos olhares sobre a ciência, novas moralidades. O transexualismo é um exemplo disso – resgata ou promove tanto os questionamentos sobre o direito à diferença e o limite da liberdade quanto os sentidos da saúde e doença. A questão que se mantém é sobre a possibilidade de o sujeito alterar o seu corpo com o propósito de alterar sua identidade sexual, e quais os limites e possibilidades éticos e jurídicos para tanto. 1. A IDENTIDADE DO TRANSEXUAL  – IDENTIDADE DE GÊNERO A demanda das pessoas transexuais por acesso às transformações corporais e à alteração da sua situação legal, capaz de estabelecer a coerência entre o sexo anatômico e o gênero vivenciado, vem, ao longo de poucas décadas, conseguindo se legitimar a partir: a) dos avanços biotecnocientíficos e da oferta destes recursos  na prática médica; b) da inserção do fenômeno da transexualidade como doença – transexualismo; c) do estabelecimento de critérios para o diagnóstico; d) da validação de uma terapia considerada capaz de promover o bem-estar do doente afetado; e, e) finalmente, do reconhecimento jurídico do direito da pessoa transexual ao acesso à terapia, fundamentado no direito à saúde, e do direito à alteração de prenome e do sexo na identidade civil, fundamentado no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à privacidade, à intimidade, e de não ser discriminado em razão de sua especial condição. Esta inserção pode ser compreendida tanto como discriminação quanto como estratégia para viabilizar o acesso à técnica. De qualquer forma, é o discurso da saúde e da doença que serve como fundamento para justificar as intervenções necessárias em razão da finalidade terapêutica. Assim, os médicos e juristas validaram a demanda dos transexuais como digna do interesse da medicina e do direito (CASTEL, 2001:34). Assim, o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única (FACHIN, 1996:96). Contudo, o reconhecimento da sexualidade não decorre exclusivamente de características físicas exteriores. A problemática da identidade sexual é muito mais ampla do que o sexo morfológico (SZANIAWSKI, 1999 :35).  A aparência externa não é a única circunstância para a atribuição do gênero, pois, com o lado externo concorre o elemento psicológico (CHAVES, 1980:16) A mera utilização desse critério de verificação fisiológica despreza as características secundarias e eventuais ambigüidades sexuais. O sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela pessoa e, por isso não admite ambigüidades (SZANIAWSKI, 1999 :264). Na medida em que o presente ensaio tem por objeto o estudo do transexualismo, em seus aspectos médico-legais, imprescindível se faz abordar a questão relativa à identidade de gênero, já que a problemática do transexual perpassa, necessariamente, por esse ponto, tendo em vista a incompatibilidade do sexo biológico com a identificação psicológica no transexual. Cumpre, preliminarmente, definir o que é identidade de gênero ou identidade sexual. Entretanto, urge esclarecer que, não obstante serem os termos sinônimos prefere os autores referir-se à identidade de gênero, pois, além da palavra “sexo” apresentar múltiplos significados, como veremos no decorrer do presente trabalho, e estar freqüentemente associada à genitalização, (CHAVES,1980 :33) a palavra gênero é mais abrangente. Segundo SILVA (1997:82), a palavra gênero “(…) inclui componentes genitais, eróticos, sociais e psicológicos associados ao sexo de cada um”. Dentre uma variada gama de definições, utiliza-se a elaborada pela própria autora retro referida porque enfoca a forma pela qual essa identidade se constitui. Assim, na conceituação da autora: “A identidade de gênero, é um constructo constituído por vários componentes estruturados em diferentes épocas e por várias influências. Perpassa pelo sexo genético, gonádico, hormonal, legal de nascimento e da criação. Não é exclusivamente biológico, mas sim o produto de suas interações”(SILVA, 1997:80). E mais: “A identidade sexual ou de gênero, é um conceito extremamente complexo, composto por componentes conscientes e inconscientes. Possuindo elementos altamente associados ao sexo a que se pertence e às características estabelecidas pela estrutura social a cada gênero. Assim a idéia de gênero, não é um constructo mental unitário, pois grande número de diferentes componentes estruturados em diversas épocas do desenvolvimento e advindos de várias influências, formarão a composição final do que se convencionou chamar de identidade de gênero”. Da análise desses conceitos resultam duas grandes constatações. A primeira é que a identidade de gênero se traduz num sentimento do indivíduo quanto a sua identificação como homem ou mulher. Isso porque a nossa estrutura social consegue conceber o sexo de forma apenas dicotômica, na sua versão masculina ou feminina. Há uma tendência de se classificar tudo e todos como sendo masculino ou feminino, não havendo espaço para o que não se adapta a uma dessas categorias. Seguindo essa orientação, MONEY e TUCKER (1983:40) sustentam que o ser humano, ao desenvolver sua identidade, terá necessariamente que se identificar como homem ou mulher, não sendo possível a formação dessa identidade sem que se recaia num desses dois modelos (masculino ou feminino). Money14 inclui a orientação sexoerótica no conjunto gênero identidade/papel. De acordo com esse critério, o individuo poderá ser monosexual ou bissexual, sendo que o primeiro caso compreende tanto o homossexual como o heterossexual. Diz que um ato homossexual pode ser praticado por quem não seja homossexual, desde que a pessoa seja forçada a cometê-lo (MONEY, 1990:3) Nem por isso, após a realização do ato, terá a sua identidade de gênero transformada. Apresenta o apaixonamento como critério último e delimitador da identidade de gênero. Habitualmente, a identificação sexual resulta do simples exame da genitália externa do recém-nascido. De acordo com o tipo genital revelado aos olhos, será a criança identificada como menino ou menina e assim será designada, no momento de ser efetuado seu registro de nascimento perante o ofício competente. A problemática da identidade sexual de alguém é, porém, muito mais ampla do que seu simples sexo morfológico[1]. Deve-se, pois, considerar o comportamento psíquico que o indivíduo tem diante de seu próprio sexo. Daí resulta que o sexo compõe-se da conjunção dos aspectos físicos, psíquico e comportamental da pessoa, caracterizando-se, conseqüentemente, seu estado sexual. A diferenciação sexual é formada por sete variáveis, sendo que cinco constituem-se em variáveis físicas, a saber: a cromossômica, a gonodal, a hormonal, a morfológica interna e a morfológica externa. Qualquer alteração que venha a ocorrer, em qualquer destas fases, poderá determinar um desenvolvimento sexual anômalo do indivíduo. As outras duas, denominadas de variáveis psicossociais, constituem-se da declaração do sexo, no momento do registro do indivíduo, e da diferenciação de uma identidade psicossexual, como ser masculino ou feminino, a partir do seu nascimento. Não há que se confundir identidade de gênero com papel sócio-sexual ou papel de gênero[2], pois o papel sócio-sexual é algo externo à pessoa, no sentido de que se liga à formação do comportamento masculino ou feminino em decorrência do ambiente sociocultural, no qual o indivíduo está inserido. Ele refere-se à atuação comportamental da pessoa no papel de homem ou mulher, segundo os moldes preestabelecidos pela família e sociedade. O papel de gênero, desempenhado pelo indivíduo, está intimamente ligado aos ensinamentos que lhe foram transmitidos pelo corpo social. Daí a expectativa do grupo de que a representação do papel sexual por seus membros se faça em conformidade com as linhas traçadas, para que não haja qualquer tipo de afronta ou desrespeito aos padrões morais prescritos. Dessa forma, enquanto a identidade de gênero está relacionada com uma questão sentimental, como o indivíduo se sente em relação a sua identidade sexual, o papel de gênero diz respeito à colocação em prática da aprendizagem recebida e tem por objetivo não apenas encenar o papel sócio-sexual como também exteriorizar e retratar a identidade sexual do indivíduo. Estando a identidade sexual intimamente ligada ao papel de gênero, pelo fato de que o sexo da criação é um dos responsáveis pela sua constituição, as mudanças sociais ocorridas no papel de gênero repercutirão na formação de futuras identidades sexuais. Igualmente, não há que se confundir identidade sexual com a atividade sexual, uma vez que esta ultima exprime a prática sexual desenvolvida por uma pessoa, ou seja, o ato sexual propriamente dito, o ato físico ou a sua orientação sexual. 1.1 Paradigmas sexuais: as espécies de diferenciações sexuais A sexualidade das pessoas é matéria complexa e controvertida, não podendo ser tratada de maneira tão singela. Embora, às vezes, sua forma anatômica de relacionamento sexual seja a mesma, a transexualidade difere da homossexualidade, bissexualidade, travestismo, fetichismo e hermafroditismo. A curiosidade científica nos impele a prosseguir e melhor explicitar cada um destes termos. Homossexualidade – Uma das principais diferenças entre o transexual e o homossexual é que este está satisfeito com o seu sexo, do qual se orgulha. Ambos os vocábulos são utilizados para o gênero masculino e o feminino. Homossexualidade é a relação amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo. Aplica-se tal terminologia tanto as relações marcadas por contatos físicos e toda forma de coito extragenital quanto às apenas marcadas por sentimentos apaixonados ou termos (DORON  e PAROT, :398). SILVA (1980:91) conclui em estudo psicanalítico acerca do tema que “todo ser humano possuiria certo grau de comprometimento homossexual da personalidade, suscetível ou não, conforme uma série de circunstâncias, de passar da latência para a atividade, na escolha da solução homossexual”. O homossexual masculino tem no homem o seu objeto de desejo, ou seja, sente-se homem e pratica a relação com outro homem. Com a mulher homossexual ocorre o inverso. O transexual masculino, por sua vez, considera-se mulher e tem como parceiro um homem, vendo, portanto essa relação no plano heterossexual. Enfim, o homossexual não deseja adequar seu sexo, pois se sente feliz com ele, ao contrário do transexual, que possui esta aspiração fundamental. Pondera PERES (2001:47-50) que a origem da homossexualidade ainda não está esclarecida. As principais correntes indicam que: se inicia no ambiente uterino; se inicia no ambiente extra-uterino; existem influências hormonais importantes; existe algum gene específico responsável pela determinação da orientação sexual; e, para outros, ela ocorre na formação do repertório comportamental da criança através das contingências de reforço (relação existente entre o ambiente de criação e a criança). Assevera ainda o autor que, “enquanto a ciência não resolve o mistério de qual é a origem da homossexualidade, de algumas questões já temos certeza: ninguém escolhe sua orientação sexual; ser homossexual ou bissexual não é anormalidade nem doença; o que difere um homossexual do heterossexual é, simplesmente, a orientação sexual e nada mais”(PERES,2001:56). Os transexuais masculinos não são efeminados e sim femininos, enquanto alguns homossexuais são efeminados e não femininos. Os transexuais femininos não são masculinizados, são masculinos. Hermafroditismo – Hermafrodita é a pessoa que possui órgãos sexuais dos dois sexos. Trata-se de um fenômeno muito raro na natureza. Há quem afirme que o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico, uma vez que nasce com o sexo biológico masculino e com o sexo psicológico feminino (male to female). Bissexualidade – MIELNIK(19871987:31) observa que, na realidade, a sexualidade humana não parece depender apenas da presença dos órgãos genitais e estímulos hormonais. É a quantidade específica humana do psiquismo que determina a imensa variedade dos padrões comportamentais em resposta à estimulação hormonal. Na criatura humana, a sexualidade é produto da reação do sistema nervoso aos estímulos externos e internos, tornados ainda mais complexos pela interferência de fatores ambientais. Travestismo –  O transexual na maioria das vezes é erroneamente confundido com o travesti. Mas existem diversidades, pois este indivíduo tanto pode ter comportamento homossexual quanto heterossexual, embora faça uso de roupagem tipicamente conhecida pela sociedade como pertencente ao sexo oposto. Seu comportamento pode se alterar entre o masculino e o feminino. Trata-se, portanto, de alguém de um sexo com fortes impulsos eróticos para utilizar roupas do outro sexo, co as quais se veste para obter satisfação sexual. Não é o caso do transexual, pois se vestir com roupas que a sociedade atribui ao sexo oposto, ao seu sexo genético lhe é natural. Fetichismo – No fetichismo os indivíduos manifestam desejos sexuais que se relacionam, sobretudo, à vista ou toque de certos objetos ou de determinadas partes do corpo que não as sexuais, constituindo os objetos, comumente, símbolos da pessoa amada. Portanto, é fetichismo uma espécie de culto a objetos materiais, consistindo em amar não a pessoa, mas uma parte dela ou um objeto de seu uso. Não é o caso do transexual. Transexualismo – O termo transexualismo foi ouvido pela primeira vez em 1953, quando o médico norte-americano Henry Benjamin (endocrinologista) referiu-se ao caso da divergência psico-mental do transexual (MIELNIK,1987:32). O sufixo ismo é aplicado na Medicina geralmente para designar uma doença, sendo ainda empregado, no caso em tela, por constar do CID 10 – Classificação Internacional de Doenças como uma anomalia (F 64.0), um transtorno de identidade de gênero. O transtorno de identidade de gênero é um transtorno de ordem psicológica e médica, segundo a maioria dos autores, sendo uma condição em que a pessoa nasce com o sexo biológico de um sexo, mas se identifica com os indivíduos pertencentes ao gênero oposto, e considera isso como desarmônico e profundamente desconfortante. É um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Geralmente, é acompanhado de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação ao seu sexo anatômico, manifestando desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica e a tratamento hormonal, com o intuito de adequar seu corpo ao sexo almejado. Dizer que todos são iguais perante a lei não é suficiente. É preciso fazer valer o ideal de justiça, com a satisfação dos anseios e interesses individuais e sociais. O juiz e o promotor são considerados pessoas observadoras das necessidades sociais, emitindo pareceres e julgando como pessoas atualizadas e informadas, não se prendendo a preceitos do passado, já superados pelas novas descobertas. O reconhecimento desse direito está em conformidade com as tendências do direito civil atual, mais preocupado com as aspirações individuais que com a manutenção de constrangimentos sociais, os quais não servem a ninguém, muito menos à sociedade. 1.2 Processo de redesignação psicossocial Toda a probelmática psico-social  da  transexualidade  coloca o Direito diante de um dos mais instigantes temas jurídicos a reclamar regulamentação, pois diz com a identidade do individuo e se reflete em sua inserção no contexto social. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente do transexual, que se sente como tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita. Assim as tentativas de psicoterapia aplicadas em transexuais são ineficazes, uma vez que ele não deseja adaptar seu sexo psíquico ao seu sexo biológico, mas ao contrario. Também não darão certas as terapias que objetivarem trazer equilíbrio emocional pela aceitação de sua condição pessoal (MENIN,2005:21). O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar. O transexual masculino tem ego corporal e psíquico femininos. O transexual feminino é, evidentemente, o contrário (VIREIRA, 2008:221). O que define e caracteriza a transexualidade é a rejeição do sexo original e o conseqüente estado de insatisfação. A cirurgia apenas corrige esse defeito de alguém ter nascido homem num corpo de mulher ou ter nascido mulher num corpo de homem (COUTO, 1999:28). Não a pessoa transexual ficar totalmente desprotegida, ridicularizada em seu sofrimento e à margem da sociedade, sem possibilitar-lhe  a alteração de seu nome e de seu sexo em virtude de um preconceito e de uma fobia social que, ao negar proteção aos seus direitos fundamentais, visam a punir a pessoa transexual por algo que ela não tem culpa, por algo que não é mera opção, mas necessidade psicológica imutável (VASSILIEFF, 2005:9). Psicanalistas norte-americanos consideram a cirurgia corretiva do sexo como a forma de buscar a felicidade ao que denominam um invertido condenado pela própria anatomia (GRAÑA, 1996:11). Eventual  não coincidência entre o sexo anatômico e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de profundo conflito Individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com relação a ele (OLAZÁBAL, 2001:169) Ainda que reúna em seu corpo todos os caracteres orgânicos de um dos sexos, seu psíquico se prende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo aparentemente normal, nutre profundo inconformismo com o seu sexo biológico. O intenso desejo de modificá-lo leva à busca de adequar a externalidade à sua alma. O processo de redesignação começa com o vestir-se como o outro sexo, passa por tratamento hormonal e terapêutico e impõe a realização de inúmeras cirurgias. Não é um processo passageiro. È a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo (COUTO,1999:20). A posição jurídica da pessoa no seio da coletividade constitui um dos mais importantes atributos da personalidade (LUCARELLI, 1991:220). A proteção do transexual precisa resguardar o direito à intimidade, quando constatada sua situação e a dificuldade de vivenciá-la ou não. 1.3 Integridade física e a operação de mudança de sexo Tratar da possibilidade da operação para a alteração do sexo físico de um indivíduo é adentrar e um terreno muito árido. Esta cirurgia implica na discussão de vários princípios de viés jurídico-constitucional que podem via a entrar em conflito. Inicialmente, a cirurgia era chamada de mutiladora, não sendo permitida no ordenamento jurídico brasileiro. Discutia-se sobre o direito à vida, ao corpo e à integridade, se estes eram bens disponíveis ou não. Questionava-se sobre a possibilidade de dispor do próprio corpo, o que para uma corrente doutrinária, não era permitido. A esse respeito, BUENO (1987:69) reportando-se ao posicionamento de GEDIEL sustenta que o homem não tem o domínio do próprio corpo por existir uma indissocialidade corporal, o que, por conseguinte, cria uma impossibilidade de existir relações jurídicas que tenham como objeto o corpo humano. Com a evolução das técnicas cirúrgicas, tornou-se possível mudar a morfologia sexual externa para encontrar a identificação da aparência com o gênero desejado. Esse avanço no campo médico não foi acompanhado pela legislação, inexistindo qualquer previsão legal a esse respeito. A omissão regulamentadora acabou levando a classe médica a uma problemática ético-jurídica sobre a natureza das intervenções cirúrgicas e a possibilidade de sua realização[3]. As cirurgias para mudanças de sexo sempre foram mais comuns na América do norte e na Europa. No Brasil, havia impedimento formal, não apenas pela lesão corporal que representava a retirada de estruturas essenciais à função reprodutora, mas porque o Código de Ética Médica em vigor (arts. 12 e 13) incluía tais procedimentos entre as práticas que ensejavam processos ético-disciplinares contra os médicos. Em face desta restrição, os interessados em se submeter à cirurgia passaram a se socorrer da via judicial. O pedido de autorização era formulado por meio de ação de jurisdição voluntária. Como o Ministério Público não atuava nessas demandas, a matéria só chegava aos tribunais quando eventualmente o pedido era rejeitado.  Tal circunstância, somada a falta de publicidade das sentenças dos juízes de primeiro grau, rotina difícil aferir como a questão vinha sendo decidida e escassa é a jurisprudência disponível sobre o tema. Recurso datado de 1980, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, deferiu o pedido de alvará para a realização de cirurgia, sob o funcionamento de que os órgãos jurisdicionais não podem se eximir de dar solução controvérsia sob o fundamento de que apenas ética médica competiria resolver a questão[4]. Felizmente, em 1997, Resolução do Conselho Federal de Medicina regulamentou a realização da cirurgia que restabelece o equilíbrio psicofísico dos transexuais. A atual normatização, que substituiu a resolução anterior, autoriza, a título experimental, a realização de cirurgia de redesignação sexual[5]. Considerando ser o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo, reconhece que a transformação é terapêutica in anima nobili São fixados critérios estritos para a intervenção. O paciente deve, pelo período de dois anos, submeter-se a acompanhamento de equipe interdisciplinar formada por médico psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social. Somente após o diagnóstico médico é que a cirurgia pode ser realizada, mas somente em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa. O surgimento de transexuais femininos tem aumentado tanto na prática médica como psiquiátrica. A paciente exige mastectomia, histerectomia, oforectomia e também hormônios androgênios para alterar sua voz e obter uma aparência mais masculina. Ela pode querer um pênis artificial, feito pela cirurgia plástica. Tais pacientes devem ser selecionadas cuidadosamente, porque os resultados anatômicos da cirurgia são freqüentemente menos satisfatórios do que no procedimento masculino para o feminino (CHOERI, 2004:30) É estabelecida a idade de 21 anos para a cirurgia transgenital. Porém, como houve a redução da maioridade para os 18 anos, nada justifica manter o limite etário fixado em momento anterior à vigência do Código Civil, que alterou o marco da plena capacidade civil. 2 O FENÔMENO TRANSEXUAL E O BIODIREITO: noções sobre o campo Os trabalhos de  MONEY e STOLLER[6] sobre transexualismo introduziram na psicanálise e na medicina o conceito de gênero, possibilitando que fossem separados os conceitos de sexo e gênero, em uma perspectiva biomédica e psicológica e, conseqüentemente, separar também identidade sexual, identidade de gênero, orientação e práticas sexuais. A elaboração destes conceitos tornou mais claras as diferenças entre homossexuais, travestis e transexuais: os homossexuais teriam uma orientação sexual dirigida para o mesmo sexo; os travestis desejariam ser do sexo oposto, vestindo-se e comportando-se como tal; e os transexuais afirmariam ser do sexo oposto. Os conflitos teóricos e ideológicos sobre transexualismo ainda não estão solucionados dentro da área médica. Um exemplo é o que ocorre com a compreensão sobre a própria cirurgia: para alguns, ela teria um caráter mutilador de um genital normal em favor de uma instância psíquica patológica; para outros, tem um caráter morfológico em favor de uma realidade psicossocial que se impõe. Conforme aduz. ZAMBRANO(2003:57): “o discurso médico, com todas as suas dúvidas, se reproduz no discurso jurídico, oferecendo-lhe a base biológica sobre a qual se dão as definições atuais na nossa cultura do que significa ser um homem e uma mulher e, do mesmo modo, oferecendo-lhe a definição de transexualismo” . Porém a relação entre estes dois discursos também se dá com conflitos, ocorrendo, às vezes, de a medicina realizar a troca de sexo cirúrgica e o Judiciário negar a troca do estado civil, deixando o sujeito transexual em uma situação mais grave do que a anterior. Conflito este que é fruto de uma valorização do biológico para a classificação das pessoas, como homens ou mulheres, e da sobreposição do gênero e do sexo biológico – masculino/homem/macho, feminino/mulher/fêmea – feita pelos sistemas legais. A partir das pesquisas, o que se observa é que, se os transexuais, em geral, partem da idéia que possuem uma corporeidade equivocada em relação a sua identidade de gênero, assim a terapia, por meio de transformações corporais, permite harmonizar este equívoco entre sexo e gênero. Mas esta terapia só terá efeito se a ordem jurídica a recebê-la; caso contrário, as experiências discriminatórias e estigmatizantes que vivenciam não serão alteradas. Ou seja, se cabe à medicina intervir por meio de um processo terapêutico para “mudar os documentos”, este só se completa com a decisão judicial que o reconhece. A nova tensão trazida por esta questão repousa no abalo que causa no modelo normativo dos dois sexos ou de dois gêneros que devem se corresponder – mulher/feminino homem/masculino – e na necessidade de se considerar possibilidades como a não adoção do critério biológico para a identificação civil e para o acesso a uma série de outros direitos. As situações de ambigüidades sexuais (hermafroditismo, intersexualidade) não são novas para o direito, igualmente as injustiças decorrentes das classificações relacionadas ao gênero e à sexualidade, já que, ao classificar, a lei passou também a discriminar, como discutem e demonstram as pesquisadoras feministas acerca das causas e dos efeitos dessas discriminações. O que é interessante de se observar é que, apesar de todas as transformações estabelecidas moderadamente nos ordenamentos jurídicos e da intensa ação jurídica e política das feministas, homossexuais, transexuais, travestis e bissexuais, permanecem relativamente intocados os fundamentos do “natural” modelo dos dois sexos e a classificação sexual construída sobre a diferença anatômica entre os sexos e sua configuração biológica. Na questão específica dos transexuais, a ação jurídica e política desses grupos vem consolidando o entendimento jurisprudencial de que o estado civil das pessoas não é um elemento indisponível, permitindo desde a mudança de nome, a troca de estado civil e, passando pela intervenção cirúrgica, o direito assume a identidade sexual como elemento preeminente do livre desenvolvimento da personalidade, e de alguma forma reconhece a autonomia sexual, permitindo pensar a adoção de novos paradigmas. O ponto central do tema do transexualismo é a existência de uma possibilidade técnica de alteração do corpo, e a compreensão, a valoração ou o julgamento, em relação ao desejo e a demanda da pessoa para tanto. Para alguns, é o terceiro sexo; para outros, a denúncia de que as identidades rígidas não servem para a garantia da dignidade, ou seja, são desnecessárias. E há os que consideram ser um desvio, doença genética, problema psíquico; ou, para os mais simplistas. “pouca vergonha”. Neste artigo, não se vai responder questões, mas formulá-las como estratégia para compreender a complexidade do tema. 3   Alteração do nome civil e da identidade de gênero O registro civil serve para fixar os principais fatos da vida humana, por meio de um conjunto de atos autênticos, tendentes a fazer prova segura e inconteste do estado da pessoa, status que consiste no seu modo particular de existir (LUCARELLI, 1991:220). O nome é identificador essencial da pessoa. O art. 16 do Código Civil,  dispõe que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.  A sociedade tem interesse em não confundir seus membros entre si, e a esse interesse público se soma o interesse privado do indivíduo em se identificar e não ser confundido com outrem[7]. Assim, o nome deve refletir o âmago da personalidade individual, condizer com seu estado pessoal e social, bem como deve estar consorte com o seu psiquismo, sua honra, imagem pessoal e social, não podendo ser ridículo ou vexatório (VIEIRA, 2008:48). Após o processo de transformação a que se submetem os transexuais, por meio de hormônios e intervenções cirúrgicas, para adaptar o sexo anatômico à identidade psicossocial, questão de outra ordem se apresenta. Inquestionavelmente aflitiva a situação de quem, com características de um gênero, tem documentação que o declara como pertencente ao sexo corporal em que foi registrado. O nome deve existir para identificar a pessoa e não para expô-la ao burlesco. Aliás, se há estranhamento nos casos de transexualidade este muito se relaciona à patente  desconformidade da aparência física e psíquica do indivíduo com o exarado em sua documentação legal. No entanto, muitas são as objeções para negar a mudança da identidade. Um dos fundamentos é de natureza registral. É que o Código Civil proíbe vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.[8] Como o registro foi levado a efeito consignado corretamente  o sexo aparente, a alegação é de que não teria havido qualquer erro, o que serve de justificativa ao indeferimento do pedido de retificação. Olvida-se quem assim pensa que o direito à identidade tem assento constitucional. Está inserido na sua norma de maior relevância, que proclama o princípio de respeito à dignidade humana.[9] Trata-se de uma espécie do direito de personalidade inalienável, irrenunciável, imprescritível e impenhorável. Na busca da alteração, merece ser invocado o art. 6. da Constituição Federal de 1988 que, entre os direitos sociais, assegura o direito à saúde, encargo que é imposto ao próprio Estado, a saber: CF/88, art 6: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta”. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS): Saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social. A falta de identidade do transexual provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, psíquico ou social. Assim, o direito à adequação do registro é uma garantia à saúde, e a negativa de modificação afronta imperativo constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos. Nenhuma justificativa serve para negar a mudança, não se fazendo necessária sequer alteração de dispositivos legais para chancelar a pretensão. Os direitos de personalidade, segundo FERNANDES (2004:131), são direitos subjetivos num duplo sentido. Além de pertencerem a cada pessoa, também são direitos cujo conteúdo e respeito, dependem de maneira importante, da vontade de cada um. E conclui o autor que cabe a cada um definir sua personalidade. Imposta do exterior, a noção de personalidade perde seu sentido[10]. 3.1  Os reflexos da alteração da identidade sexual no direito social: uma questão de Ética e Justiça No Brasil, a alteração do nome e do sexo no documento de identidade só é possível por meio de uma decisão judicial. Não há uma lei específica que regule a questão e permita que a pessoa faça essa alteração sem a intervenção do Poder Judiciário. Em geral, as demandas judiciais são de dois tipos: 1. A de pessoas que já se submeteram ao tratamento hormonal e cirúrgico para a “mudança de sexo” (os transexuais operados); 2. Pessoas que realizaram transformações parciais, mas não desejam realizar ou ainda não tiveram a oportunidade de fazer a cirurgia de genitália (transgenitalização). Independentemente de ter ou não realizado a cirurgia de transgenitalização, os requerentes vivem uma identidade de gênero diversa da identidade legal admitida para seu sexo biológico. Nesse sentido, pleiteiam a alteração do nome e do sexo nos documentos de identificação para evitar constrangimentos sociais e pessoais resultantes da divergência entre os documentos de identificação e sua aparência e comportamento (VENTURA, 2007:87). As decisões judiciais favoráveis ou não à alteração do sexo legal apresentam um ponto em comum: o desejo de viver uma identidade de gênero diversa da admitida socialmente para o seu sexo biológico é considerado como um transtorno psíquico, ou seja, um tipo de doença. Os julgados divergem, basicamente, sobre duas questões: a) se o tratamento hormonal e cirúrgico é capaz de restabelecer a saúde psíquica da pessoa transexual e, portanto, legalmente admissível a terapia para “mudança de sexo”, em razão de sua natureza terapêutica – razões médicas ou de saúde; e b) se é possível reconhecer juridicamente um “sexo”, ou uma identidade de gênero (feminina ou masculina), que não seja determinada exclusivamente por fatores biológicos (ou “naturais”) – razões morais e jurídicas. Atualmente, a maioria das decisões judiciais considera que a terapia disponível (hormonal e cirúrgica) é necessária e eficaz para o restabelecimento da saúde psíquica da pessoa transexual. Sendo assim, admitem, em caráter excepcional, a alteração da identidade civil fundamentada, principalmente, no direito á saúde, como um aspecto do direito da pessoa à vida digna. Apesar de a mudança do nome e do sexo nos documentos ser considerada uma etapa indispensável para o êxito do tratamento da pessoa transexual, as decisões favoráveis só vêm admitindo esta alteração após a realização da cirurgia de transgenitalização, ou seja, após a adequação anatômica da genitália do requerente à nova identidade requerida. A única decisão judicial identificada na pesquisa promovida ao longo da feitura do presente ensaio, que admitiu, em caráter excepcional, a alteração de identidade civil sem que a genitália estive adequada ao “novo sexo” requerido foi exarada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O caso envolvia um pedido de pessoa nascida no sexo feminino e que vivenciava a identidade de gênero masculino. O argumento central do julgado é que se pode admitir a alteração do sexo legal antes da cirurgia de transgenitalização quando esta implicar risco para a integridade física do requerente (risco de agravamento do estado de saúde física). A decisão levou em conta, ainda, as dificuldades que envolvem as técnicas atualmente utilizadas para a construção de um pênis e a natureza irreversível das transformações já ocorridas na aparência geral e no comportamento sexual do requerente.  Foram também identificadas decisões judiciais que não admitem a alteração civil do sexo e do nome, mesmo após todas as transformações corporais. O argumento principal é de que o versíveis e que a terapia disponível para os transexuais apenas altera sua aparência física, mas não seu sexo biológico ou sua saúde mental. Sendo assim, mesmo que realizadas todas as adequações corporais para outro sexo, esses julgados não admitem a possibilidade de alterar a identidade civil, quer seja para prevenir discriminações e outras violações de direitos, quer como medida terapêutica. Interessante é que recomendam nas decisões que o requerente utilize outros recursos jurídicos disponíveis para que não seja discriminado, como leis que proíbem qualquer tipo de discriminação contra pessoas. Observa-se que os argumentos dessas decisões desfavoráveis são fortemente motivados por convicções pessoais e de ordem moral-religiosa. Uma das decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais é exemplar desse tipo de motivação não jurídica quando afirma que: “harmonia social depende da maneira como os sexos convivem a complementação, a necessidade e o apoio mútuos. O direito é a organização da família e da sociedade. Não pode fazê-lo para contrariar a natureza. Ainda que a aparência plástica ou estética seja mudada, pela mão e pela vontade humana, não é possível mudar a natureza dos seres. Pode-se-ia admitir um conceito analógico, como o da personalidade moral em relação à personalidade natural. Mas neste caso, a lei haveria de defini-lo” (Apelação Cível n. 1.0672.04.150614-4/001) Assim, é possível concluir que, o Judiciário brasileiro só admite excepcionalmente a identidade de gênero diversa do sexo biológico de nascimento para fins de identificação civil: a) as decisões judiciais não admitem pura e simplesmente o direito á identidade de gênero como construção social ou da subjetividade pessoal, ou, ainda, como um direito de escolha da pessoa; b) adotam como principal critério para definir a identidade civil – feminina e masculina – o dimorfismo sexual (diferença anatômica entre os sexos), com especial destaque para a genitália. Isso significa que não se admite a possibilidade jurídica de a pessoa alterar, exclusivamente por decisão pessoal, seu nome e sexo legal. Os julgados exigem como condição necessária para esta alteração o diagnóstico psiquiátrico, a indicação médica para o tratamento médico preconizado para o caso e que a genitália do requerente já tenha sido adequada ao sexo requerido. A vantagem desta interpretação judicial é que ela admite a possibilidade de se reconhecer juridicamente, mesmo que de forma restrita, uma possibilidade de que a identidade sexual civil não seja determinada biologicamente. A desvantagem é que obriga a pessoa que vive identidade de gênero diversa a do seu sexo biológico a realizar transformações corporais nem sempre desejadas ou necessárias para viver sua sexualidade apenas para alterar seus documentos civis. Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI n. 4275)[11] para que seja reconhecido o direito de transexuais alterarem seu nome e sexo no registro civil mesmo para os que não fizeram a cirurgia para mudança nas características da genitália (transgenitalização). A ação tem como argumento principal o fato de que o não reconhecimento do direito de transexuais à troca do prenome e da definição de sexo (masculino ou feminino) no registro civil leciona preceitos fundamentais da Constituição, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação à discriminação odiosa, da igualdade, da liberdade e da privacidade. 3.2   O acesso á terapia para “mudança de sexo” no Sistema Único de Saúde (SUS) No ano de 2001, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul interpôs uma ação civil pública requerendo a inclusão, no SUS, dos procedimentos necessários para a “mudança de sexo”. O direito da pessoa transexual ao tratamento no SUS foi inicialmente negado pelo juiz, mas reconhecido posteriormente pelo Tribunal Regional Federal daquele estado[12]. A União Federal recorreu da decisão favorável para o Superior Tribunal Federal (STF), e a ministra Ellen Gracie, do STF entendeu que o Judiciário não pode determinar a inclusão de procedimentos médicos no SUS, de forma genérica, pois isso implicaria aumento de despesas e alteração do orçamento federal do setor, com possíveis prejuízos para outras ações e programas de saúde. Mesmo reconhecendo como legítima a demanda das pessoas transexuais em ter acesso á terapia hormonal e cirúrgica na rede pública de saúde, a decisão do STF entendeu que o Judiciário deve apreciar caso a caso a necessidade do requerente de ter acesso ao tratamento no SUS. As decisões apresentadas apontam para um dos principais desafios para o reconhecimento do direito da pessoa transexual adotar legalmente sua identidade de gênero, qual seja, a construção de novos argumentos jurídicos não baseados no determinismo biológico ou anatômico, ou em uma condição patológica, ou mesmo em uma moralidade sexual dominante. Em geral, as fundamentações que vêm sendo utilizadas  são motivadas por convicções pessoais, ou de natureza moral-religiosa, ou médicas, mas ambas impedem que se considerem igualmente as diversas escolhas e condições sexuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que a tendência da jurisprudência seja assegurar o direito á alteração do nome e da identidade de gênero, há decisões que insistem em rejeitá-lo. É alegado que o princípio da imutabilidade relativa do nome não chancela qualquer pretensão do transgênero à mudança. Mas o tradicional princípio da indisponibilidade do estado das pessoas não pode ser um obstáculo à mudança de sexo no registro civil. Não se trata de desestruturar o sistema, mas de adequar a complexidade da ordem jurídica à complexidade da ordem natural. Assim, indispensável atenuar certas exigências legais. A própria Lei dos Registros Públicos diz que o prenome é definitivo, mas pode ser substituído. Igualmente é admitida sua alteração, a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome da família. Um Estado democrático deve ter como princípio básico a tolerância, atentar para a multiplicidade de vontades e respeitar as diferenças. O transexual diferencia-se dos padrões da dita normalidade que a sociedade elegeu, mas nem por isso  permite-se que seja considerado um anormal. Ao contrário, trata-se de um sujeito de direito e obrigações como outra pessoa qualquer, tentando adaptar-se, de modo a poder desenvolver ser óbices suas reais potencialidades, vez que apresenta um sexo psicológico diferente do sexo biológico. Sente-se como seu sexo psicológico, ojeriza sua genitália e a vontade de mudar seu sexo físico é inerente à sua pessoa. Na cirurgia redesignadora tem-se a única solução para minorar o sofrimento em que vive um transexual. Este direito não pode ser negado. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade que englobam o direito à integridade física e moral, á intimidade, á privacidade e ao próprio corpo, incluindo o direito a orientação sexual, são consagrados pela Constituição Federal, atribuindo ao transexual o direito de viver como quer ser. O Estado deve assegurar o respeito aos seus direitos, bem como promover a felicidade de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação. É com base nessas garantias constitucionais que o transexual tem o direito de fazer a operação de mudança de sexo, bem como, após, deve ter seu registro alterado, para que possa viver de forma integrada e feliz. O transexual que se submeteu á cirurgia tem o direito ao esquecimento de seu estado anterior, precisa poder assumir sua nova vida sem ser rotulado, discriminado. Eventual prejuízo a terceiro, deve ser alegado em processo próprio , sem que o transexual tenha que levar para o resto da vida a marca de seu passado que tanto o fez sofrer. Todos os direitos inerentes ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como o de ter uma vida normal, integrada á sociedade, como direito a se casar, direitos relativos à filiação, precisam e devem ser garantidos. Todo ser humano tem de ter garantida sua liberdade de buscar a própria felicidade, sendo da forma como escolheu, exatamente como todos aqueles considerados normais querem e merecem ser felizes.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-89/o-biodireito-de-mudar-transexualismo-e-o-direito-ao-verdadeiro-eu/
Intervenções em áreas de proteção permanente anteriores à edição da Resolução CONAMA n° 303/2002 – estudo do caso da orla de Porto Seguro – BA
O presente artigo analisa o caso das barracas de praia construídas na orla de Porto Seguro –BA previamente à edição da Resolução CONAMA n° 303/2002. Entendo que, no caso, a área é considerada como de preservação permanente foi força da legislação estadual, que atraiu para a região todas as limitações administrativas impostas às APPs. Não obstante a construção anterior à edição da Resolução do CONAMA, o ordenamento jurídico pátrio não abriga o direito adquirido à degradação ambiental
Biodireito
I. Introdução O presente estudo se propõe a analisar a regularidade dos empreendimentos (barracas de praia) instalados na orla de Porto Seguro antes da edição da Resolução CONAMA n° 303/2002. II. Restinga como área de preservação permanente Para responder ao primeiro questionamento — sobre a aplicação da Resolução CONAMA n° 303/2002 aos empreendimentos instalados antes da sua vigência —, faz-se necessário, preliminarmente, verificar se a Resolução CONAMA n° 303/2002 se aplica ao caso concreto. O art. 2° da Lei 4.771/65 define as áreas que são consideradas como de preservação permanente simplesmente por apresentarem as características previstas em lei — são as áreas de preservação permanente legais. Nesse rol, desde a redação original do Código Florestal, estão incluídas as áreas de restinga, desde que desempenhem a sua vegetação exerça a função de fixar dunas ou estabilizar mangues. Já o art. 3° da Lei 4.771/65 elenca determinadas funções exercidas por florestas e outras formas de vegetação naturais que podem levar determinadas áreas a serem declaradas como de preservação permanente por ato do Poder Público. São as áreas de preservação permanente administrativas. Em ambos os casos, a dimensão da APP e as limitações ao seu uso aplicam-se também a suas ocorrências nas áreas urbanas, conforme entendimento majoritário da doutrina, consolidado na Orientação Jurídica Normativa n° 22/2010/PFE/IBAMA (anexa). A Medida Provisória n° 2.166-67 promoveu várias alterações no corpo da Lei n° 4.771/65, dentre as quais a do art. 4°, que passou a regulamentar a supressão de vegetação e a intervenção em áreas de preservação permanente da seguinte forma: “Art. 4o  A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto. § 1o  A supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2o deste artigo. § 2o  A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana, dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico. § 3o  O órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente. § 4o  O órgão ambiental competente indicará, previamente à emissão da autorização para a supressão de vegetação em área de preservação permanente, as medidas mitigadoras e compensatórias que deverão ser adotadas pelo empreendedor. § 5o  A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, de que tratam, respectivamente, as alíneas “c” e “f” do art. 2o deste Código, somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública. § 6o  Na implantação de reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das áreas de preservação permanente criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do CONAMA. § 7o  É permitido o acesso de pessoas e animais às áreas de preservação permanente, para obtenção de água, desde que não exija a supressão e não comprometa a regeneração e a manutenção a longo prazo da vegetação nativa.” Em suma, a supressão e a intervenção nas áreas de preservação permanente podem ser autorizadas, via de regra, em três hipóteses: utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental. Nos casos de nascentes e restingas, desde que fixadoras de dunas e estabilizadoras de mangues, só poderá ser autorizada a supressão nos casos de utilidade pública. A MP 2.166-67 promoveu outra alteração substancial no sistema de proteção das áreas de preservação permanente ao incluir a possibilidade de o CONAMA, por meio de Resolução, possa definir outras obras, planos, atividades ou projetos como de utilidade pública ou de interesse social. Com a nova redação dos incisos IV e V do art. 1° do Código Florestal, operou-se delegação legislativa para que o CONAMA possa identificar outras hipóteses de supressão ou intervenção em área de preservação permanente, exercendo seu poder regulamentar[1]. Assim, em março de 2002, foi editada a Resolução CONAMA n° 303, com o objetivo de regulamentar o art. 2° da Lei 4.771/65 (APP legais) e estabelecer parâmetros, definições e limites referentes às Áreas de Preservação Permanente. Especificamente no que tange à Restinga, a Resolução assim dispôs: “Art. 2º Para os efeitos desta Resolução, são adotadas as seguintes definições: (…) VIII – restinga: depósito arenoso paralelo a linha da costa, de forma geralmente alongada, produzido por processos de sedimentação, onde se encontram diferentes comunidades que recebem influência marinha, também consideradas comunidades edáficas por dependerem mais da natureza do substrato do que do clima. A cobertura vegetal nas restingas ocorrem mosaico, e encontra-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões, apresentando, de acordo com o estágio sucessional, estrato herbáceo, arbustivos e abóreo, este último mais interiorizado; Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área situada: (…) IX – nas restingas: a) em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima; b) em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues;” Da leitura do texto da Resolução, poder-se-ia chegar à conclusão de que, por força da Resolução CONAMA n° 303/2002, toda a faixa de 300 m (trezentos metros) contados a partir da linha da preamar máxima (atual), situada em áreas de restinga, é considerada como área de preservação permanente. Esse entendimento, porém, extrapola os critérios definidos na Lei 4.771/65, que servem de baliza para o exercício do poder regulamentar do CONAMA. Para o Código Florestal, a vegetação localizada em área de restinga é considerada área de preservação permanente pelo só efeito da lei quando exerce a função de fixar dunas ou estabilizar mangues. A lei vincula a função exercida pela vegetação para determinar a incidência da norma insculpida no art. 2° e as decorrentes limitações. Se a vegetação em área de restinga não exerce, não exerceu e não poderá exercer essa função, em razão da ausência de dunas ou mangues em sua proximidade, a sua área de ocorrência não pode ser considerada como de preservação permanente legal. Por certo, a área pode vir a ser reconhecida como de preservação permanente por ato do Poder Público, nos moldes no art. 3° da Lei 4.771/65. Se não foi editado o ato formal de reconhecimento da área de ocorrência da vegetação da restinga como APP, sobre ela não incidem as competentes limitações administrativas. Por conseguinte, só é considerada como área de preservação permanente a faixa de 300 m (trezentos metros) da linha da preamar máxima em área de restinga cuja vegetação exerça, tenha exercido ou possa exercer a função de fixadora de duna ou estabilizadora de mangues. Se, para exercer essas funções, for necessário preservar uma faixa superior a 300 m (trezentos metros), deverá ser observada a alínea b) do inciso IX do art. 3°. Em diversos julgados, o Supremo Tribunal Federal reconhece a legalidade do exercício do poder regulamentar por órgãos do Poder Executivo, que, por meio dos regulamentos, viabilizam a execução das leis e fornecem os critérios de natureza eminentemente técnica e que sofrem freqüentes alterações para alcançar os efeitos desejados pelo legislador. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.540-1, o STF reconheceu expressamente a legalidade da delegação legislativa operada pela MP 2.166-67, que conferiu ao CONAMA o poder-dever de definir critérios para o reconhecimento, por todos os entes da federação, da utilidade pública ou do interesse social para a intervenção em APP[2]. A definição desses critérios precisa, entretanto, respeitar os parâmetros fixados no Código Florestal. A Lei n° 4.771/65 definiu, em seu art. 1°, §2°, II, como de preservação permanente “área protegida nos termos dos arts. 2o e 3o desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Especificamente no caso das áreas de preservação permanente legais, previstas no art. 2°, a Lei não delegou competência ao CONAMA para ampliar as hipóteses de incidência da norma. Se o CONAMA não tem competência para inovar no ordenamento jurídico por meio da criação de nova hipótese de APP legal, a única interpretação viável do art. 3°, IX da Resolução n° 303/2002 é no sentido de que a faixa de 300 m (trezentos metros), em área de restinga, só é APP se exercer a função de fixar dunas ou estabilizar manguezais. Nessa toada, se a área técnica afastou a caracterização da área nos termos do art. 2°, alínea “f”, da Lei 4.771/65, em tese, não poderá enquadrá-la no art. 3°, IX, da Resolução n° 303/2002, pois esta norma deve ser interpretada em harmonia com a lei federal que deu origem ao regulamento. Nesse contexto, é importante destacar alguns princípios estruturantes que regem as relações entre leis e regulamentos no ordenamento jurídico brasileiro[3]:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-89/intervencoes-em-areas-de-protecao-permanente-anteriores-a-edicao-da-resolucao-conama-n-303-2002-estudo-do-caso-da-orla-de-porto-seguro-ba/
Da responsabilidade civil subjetiva na cirurgia estética
O desenvolvimento científico e o aumento do acesso aos procedimentos estéticos propiciaram um aumento considerável das demandas judiciais em que pacientes insatisfeitos com os resultados alcançados em seus tratamentos buscam responsabiliza os profissionais. O posicionamento dos Tribunais sempre foi severo, atribuindo um caráter objetivo à responsabilidade decorrente das relações existentes entre os pacientes e os cirurgiões estéticos. Contudo, essa ideia parece ultrapassada. A moderna doutrina e alguns magistrados tendem a compreender a relação estabelecida sobre outra perspectiva considerando a presença de valores diversos do Direito, como a biologia e psicologia, mas sem fechar os olhos aos modernos princípios de direito constitucional, por exemplo. Essa nova visão afasta a responsabilidade objetiva e coloca a relação médico paciente em seu verdadeiro caminho, fixando-a como subjetiva.
Biodireito
1- DA RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA NA CIRURGIA ESTÉTICA O desenvolvimento das cirurgias estéticas trouxe às barras dos tribunais questões que envolvem a existência de danos aos pacientes. Contudo, as especificidades de tais tratamentos levaram a uma amplificação dos conceitos de responsabilidade aplicados corriqueiramente aos profissionais liberais. Dessa maneira, convencionou-se em dividir a atividade realizada pelos médicos, e por que não dizer profissionais de saúde em geral, em dois grandes grupos que merecem tratamentos diferençados pela jurisprudência. De um lado estariam os procedimentos normalmente nomeados como “de meio”, em que se busca a mantença da saúde física ou mental do paciente. Em outra extremidade encontrar-se-iam os procedimentos “de resultado” que envolveriam a satisfação puramente estética. Essa categorização dos procedimentos estéticos sob uma única perspectiva é, em grande parte, dissociada da realidade e acaba invertendo as regras de direito transformando o paciente em parte hipersuficiente e o profissional em parte “microssuficiente”. A questão não pode ser encarada de modo simplista, ao inverso, merece uma análise acurada e sob o prisma dos diferentes ramos do Direito diretamente envolvidos, para que se possa fixar um parâmetro holístico para a resolução de casos concretos futuros. 1.1- perspectiva do direito civil Regra geral, a jurisprudência brasileira tem se inclinado em fixar como objetiva a responsabilidade dos profissionais de saúde responsáveis por tratamentos estéticos, mormente os médicos. É dizer: quando o profissional é contratado para realizar uma intervenção cirúrgica ou outros tratamentos estéticos, implicitamente, compromete-se a obter um resultado previamente avençado. Essa ideia esteve muito sólida na doutrina e, principalmente, na jurisprudência[1] durante muitos anos, mas começa a ruir diante do surgimento de novos olhares acerca da relação entre as ciências jurídicas e médicas. Posiciona-se Ruy Rosado de Aguiar (2000, p. 151): “A orientação hoje vigente na França, na doutrina e na jurisprudência, inclina-se por admitir que a obrigação a que está submetido o cirurgião plástico não é diferente daquela dos demais cirurgiões, pois corre os mesmos riscos e depende da mesma álea. Seria, portanto, como a dos médicos em geral, uma obrigação de meios. A particularidade residiria no recrudescimento dos deveres de informação, a qual deve ser exaustiva, e de consentimento, claramente manifestado, esclarecido, determinado”. Assim, a obrigação de resultado possui como pedra de toque a assunção da responsabilidade de realizar uma ação ou prestação que depende unicamente de suas forças e habilidades, independentemente de fatores exógenos. Tanto que, se a prestação tornar-se impossível em decorrência de caso fortuito ou força maior, como os fatos da natureza, estará desfeita a obrigação. Dessa maneira, as obrigações de resultado impingidas ao médico estariam muito reduzidas e possuiriam muito mais um cunho prestacional afastando-se das intempéries da biologia e aproximando-se da objetividade da informação. Seriam os casos de comprometer-se a fazer uma visita, promover uma consulta pós-operatória ou realizar uma transfusão de sangue. Esse é, também, o entendimento de Luis Adorno (p. 224): “Se bem tenhamos participado durante algum tempo deste critério de situar a cirurgia plástica no campo das obrigações de resultado, um exame meditado e profundo da questão nos levou à conclusão de que resulta mais adequado não fazer distinções a respeito, colocando também o campo da cirurgia estética no âmbito das obrigações de meios, isto é, no campo das obrigações gerais de prudência e diligência”. Finaliza Ruy Rosado Aguiar (2000, p. 152): “Pode acontecer que algum cirurgião plástico ou muitos deles assegurem a obtenção de um certo resultado, mas isso não define a natureza da obrigação, não altera a sua categoria jurídica, que continua sendo sempre a obrigação de prestar um serviço que traz consigo o risco. É bem verdade que se pode examinar com maior rigor o elemento culpa, pois mais facilmente se constata a imprudência na conduta do cirurgião que se aventura à prática da cirurgia estética que tinha chances reais, tanto que ocorrente, de fracasso. A falta de uma informação precisa sobre o risco e a não-obtenção de consentimento plenamente esclarecido conduzirão eventualmente à responsabilidade do cirurgião, mas por descumprimento culposo da obrigação de meios”. 1.2- perspectiva do direito do consumidor O diploma consumerista é explícito ao tipificar a responsabilidade civil dos profissionais liberais. “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (…) § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” A inteligência do artigo não permite maiores delongas, o legislador foi límpido ao albergar em um único grupamento todos os profissionais liberais, não admitindo quaisquer exceções. A fixação de interpretações divergentes pela jurisprudência aponta para a atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, o que, regra geral, é inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro. O debate acerca da responsabilidade dos profissionais liberais teve seu ápice com o Recurso Especial nº 364168, oriundo de Sergipe. Na oportunidade, um advogado questionava se o labor advocatício era regrado pelo Código de Defesa do Consumidor. Na ocasião o relator, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, afirmou (BRASIL, 2004): “Os serviços prestados pelos profissionais liberais são regulados pelas disposições do Código de Defesa do Consumidor. A única ressalva que o Código fez em relação aos serviços desta natureza encontra-se no § 4º do artigo 14. Como se pode verificar no dispositivo, a legislação de consumo abrangeu os serviços prestados pelos profissionais liberais, apenas excluindo-os da responsabilidade objetiva. O tratamento diferenciado é explicado pela natureza intuitu personae dos serviços prestados”. Desse modo, a jurisprudência pacificou, acertada e inovadoramente, que as únicas possibilidades de se excepcionar a responsabilidade civil dos profissionais liberais são aquelas já fixadas pelo códice consumerista. Não é aceitável que o Judiciário fale onde o Legislador absteve-se de legislar, tal conduta não representaria o preenchimento de lacuna, vez que inexistente, mas criação de novo texto normativo. 1.3- perspectiva do direito constitucional Hodiernamente, o constitucionalismo tem procurado distanciar-se, progressivamente, da prisão ao texto escrito fechado e se aproximado, paulatinamente, dos princípios. Essa realidade, é imposta pelo pós-positivismo, faze atual do Direito, que substituiu os decantados hábitos estritamente positivistas, fazendo concessões a certas características do direito natural. Dessa maneira, a análise da responsabilidade civil dos profissionais de saúde não pode se subsumir-se apenas aos ditames do direito privado, é essencial que se proceda uma interpretação universalizadora. Eis, pois que o direito constitucional tem muito a acrescer ao debate. Primeiramente, é cediço que o estabelecimento de diferenciações desarrazoadas entre pessoas que se encontram em condições semelhantes, configura límpida afronta ao princípio da igualdade, plenamente insculpido na Constituição federal. Ora, não restam dúvidas de que o princípio da igualdade só pode ser relativizado para afastar situações desiguais fazendo valer os princípios aristotélicos de igualdade. Não é o que ocorre no caso, na verdade, os profissionais de saúde, qualquer que seja a atividade que desempenham, em última instancia têm o sucesso de suas ações submetido a uma mesma condição, quais seja a álea corpórea, ou, a resposta dada pelo organismo aos procedimentos realizados. Inexiste sentido, portanto, em dizer que a atividade do cirurgião plástico é mais objetiva e pressupões a apresentação de um resultado claro e previamente acertado. Mesmo o mais hábil dos profissionais jamais poderia afirmar peremptoriamente que após o tratamento o paciente apresentar-se-á deste ou daquele modo. A certeza de um resultado estético só pode ser exigida de um escultor que molda matéria inanimada, jamais pode ser cobrada de quem modifica corpos vivos e em constante modificação. A atribuição de responsabilidade subjetiva aos profissionais de saúde estética seria o equivalente a compará-los com o grego Pigmaleão que moldou em mármore, para depois dar a vida a mais bela das mulheres. Dessa maneira, em respeito à isonomia é impossível afirmar jurisprudencialmente que os profissionais de saúde envoltos em cirurgias estéticas estão obrigando-se a prestar um contrato de resultado. Essa percepção implicaria, até mesmo, em uma ‘coisificação’ da pessoa humana, outra conduta veementemente rechaçada pelo Constituinte brasileiro. 1.4- perspectiva do biodireito O Biodireito surgiu nos últimos anos com a proposta de unir a um só tempo o Direito e as Ciências Biológicas com escopo precípuo de estabelecer regramentos céleres que possam acompanhar o desenvolvimento científico experimentado nas últimas décadas. É de se observar que o novo ramo jurídico está atento às céleres modificações globais e seguindo a tendência do pós-positivismo centra-se, especialmente, na defesa de princípios básicos, que são consideravelmente mais abrangentes e eficientes que certas normas jurídicas. Nessa esteira, interessante aproveitar certas ideias do ramo novel para a resolução das dúvidas que surgem acerca da responsabilização dos profissionais de saúde, mormente, no que tange aos procedimentos estéticos. O que tem ocorrido diuturnamente é a categorização dos serviços prestados em atividades estéticas como obrigações de resultado. Dessa feita, o profissional de saúde no momento de sua contratação comprometer-se-ia a realização de um procedimento e à produção de um resultado específico e previamente definido. Essa percepção concentra inúmeros equívocos, especialmente, quando se analisa a atuação do profissional sob a ótica das ciências biológicas. Na verdade, iniciou-se na França um expressivo movimento doutrinário no sentido da defesa de que, regra geral, não é possível estabelecer distinção entre os diferentes procedimentos médicos adotados por conta da presença de fatores insondáveis e incontroláveis relacionados à biologia. Inicialmente, é importante perceber que a cirurgia estética não pode ser generalizada como mecanismo de satisfação de vaidade intrínseca ou hedonismo. Essa imagem é preconceituosa e tem sido destruída progressivamente. Inicialmente, em decorrência do fato de que é comum o manejo de procedimentos estéticos emergenciais para minorar os danos oriundos de acidentes ou outros sinistros. Além disso, lembra o ministro Carlos Alberto Meneses Direito (BRASIL, 1999): “(…) mesmo a cirurgia meramente estética não significa, necessariamente, a ausência de uma patologia. Pode ocorrer, por exemplo, que uma paciente procure o cirurgião plástico para corrigir uma deformidade no apêndice nasal que, enfeiando-lhe o rosto, cause-lhe um transtorno da personalidade, assim uma depressão; ou um outro que apresente uma ginecomastia acentuada a causar-lhe comportamento neurótico; ou ainda outra que busca uma correção de mama diante de sobrecarga postural que lhe impeça o exercício de certa atividade profissional”. Roberto Godoy corrobora esse entendimento (2000, p. 98): “(…) é preciso ter em mente que o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que saúde é o bem-estar biológico, psíquico e social do indivíduo. Fica evidente, portanto, que se alguém, por razões somente a si pertinentes, desgostar de alguma particularidade de seu corpo e pretender modificá-la, mediante reparação cirúrgica, tratar-se-á, de fato, de um doente a merecer atenção, sob a óptica abrangente da OMS. Poderá estar bem do ponto de vista biológico, mas certamente não o estará dos pontos de vista psíquico e social”.  Essas observações por si só são capazes de afastar a ideia de que é firmada uma obrigação de resultado em muitos procedimentos reparadores. Contudo, a atividade que objetiva a realização de desejo puramente estético ainda estaria albergada sobre o regime da responsabilidade subjetiva. Contudo, é essencial observar as especificidades corpóreas e psíquicas humanas para liquidar a questão. Inicialmente é interessante fixar que a medicina não é uma ciência exata como a matemática ou física. Dessa maneira, mesmo que o médico valha-se dos mais acurados meios profissionais, ainda assim estaria submetido às intempéries do destino e a reação orgânica. É inimaginável que qualquer pessoa normal possa afirmar com completa exatidão como um determinado organismo vai comportar-se frente a certos procedimentos invasivos. Eis, pois, a impossibilidade de ser prometido, de um modo ou de outro, um resultado exato pelo profissional de saúde. Aliás, ainda que o resultado fosse similar ao pretendido é quase impossível obter a satisfação plena do paciente que configura em sua mente resultado diversos daqueles almejados pelo médico. Lembra o Ministro Meneses Direito (BRASIL, 1999): “Anote-se, nesse passo, que a literatura médica, no âmbito da cirurgia plástica, indica, com claridade, que não é possível alcançar 100% de êxito”. Em voto proferido em sede de Recurso Especial o Ministro lembra que inúmeras pesquisas científicas realizadas entre pessoas submetidas a cirurgias plásticas apontam, invariavelmente, para um número de satisfação plena em torno de apenas 95% (noventa e cinco por cento) dos pacientes. É dizer claramente que é a unanimidade é impossível seja por fatores exógenos, seja por endógenos. Nesse caso, não faz sentido que o profissional de saúde seja penalizado e obrigado a ressarcir pecuniariamente paciente insatisfeito, sem que tenha corroborado efetivamente para as suas auguras. Entrementes, não se deseja afastar completamente a responsabilidade dos médicos envoltos em procedimentos estéticos, na verdade, pretende-se fixar parâmetros objetivos para essa responsabilização. Inicialmente, é claríssima a necessidade de que haja no mínimo culpa a justificar a punição civil do profissional. Frise-se que a culpa deve ser compreendida em seu sentido lato, ou seja, englobando imprudência, imperícia e negligência. Essa configuração aponta, portanto, regra geral, para a cominação de responsabilidade objetiva. Por outro lado, o profissional assume uma única obrigação de resultado, qual seja: manter o paciente plenamente informado. Eis que o profissional envolto no ramo estético potencializa sua responsabilidade de manter o paciente fiel e plenamente informado de todos os procedimentos que serão realizados, de seus resultados e possíveis insucessos. Sobre o tema comenta Ruy Rosado Aguiar (2000, p. 141): “Na cirurgia, porém, muito especialmente na estética, a informação deve ser exaustiva, bem assim quanto ao uso de novos medicamentos. Tais esclarecimentos devem ser feitos em termos compreensíveis ao leigo, mas suficientemente esclarecedores para atingir seu fim, pois se destinam a deixar o paciente em condições de se conduzir diante da doença e de decidir sobre o tratamento recomendado ou sobre a cirurgia proposta”. Dessa maneira, se o médico explicitou todas as filigranas do procedimento e o paciente compreendeu todas as consequências do ato cirúrgico, não há que se falar em responsabilização se o resultado não ficar dentro da expectativa gerada. Assevera Fátima Nancy Andrighi (2006): “Uma vez que o cirurgião esclarece, de maneira exaustiva, o paciente a respeito de todos os riscos inerentes ao procedimento cirúrgico a que ele se submeterá, e uma vez que aceitos pelo paciente tais riscos, o médico empenhe no procedimento a melhor técnica exigível na época em que a cirurgia é promovida, não deve ser possível responsabilizá-lo por intercorrências alheias à sua vontade que comprometam o resultado almejado para a cirurgia”. Não parece razoável exigir do médico que empreende complexo procedimento cirúrgico que lute contra a álea do corpo humano e garanta, integralmente, um resultado perfeito e que satisfaça as necessidades dos pacientes.  Exigir esse nível de perfeição de um ser humano é praticamente impossível. A percepção dessa disparidade entre o ideal e o real tem levado a uma modificação gradual do posicionamento dos tribunais acerca dos casos, e começam a emergir decisões que deixam de explicitar o caráter finalístico do contrato firmado entre pacientes e cirurgiões estéticos[2]. EPÍLOGO A responsabilidade civil dos profissionais de saúde é um tema árido, não por carecer de normatização ou por sofrer com a existência de lacunas. Na verdade, todas as questões que envolvem, de um ou outro modo, a vida humana, a saúde e a integridade física trazem em seu bojo incomensuráveis e insondáveis preocupações. Contudo, esse cuidado não pode ser utilizado como argumento para que o Direito seja manipulado em prejuízo de alguém. Desse modo, não resistem por muito tempo os argumentos daqueles que pretendem apontar aos profissionais de saúde envoltos em procedimentos estéticos uma responsabilidade objetiva por suas ações. É certo que uma visão jurídica interdisciplinar apresenta como melhor solução para o caso o respeito ao direito posto e a atribuição da responsabilidade subjetiva como deve acontecer com todos os profissionais liberais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-89/da-responsabilidade-civil-subjetiva-na-cirurgia-estetica/
A proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados no ordenamento brasileiro
A proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados levou muito tempo ao longo da história para ser levada a efeito. Foram muitos séculos de escravidão da mão-de-obra, de exploração econômica e, sobretudo, cultural dos povos tradicionais. A temática atualmente ganha enfoque mundial em face da caminhada das organizações não-governamentais que buscam o reconhecimento dos direitos protecionistas destas comunidades, para o efeito de evitarem que haja uma expropriação ainda maior do que até então experimentada. Assim desencadeia-se a relevância da proteção dos conhecimentos tradicionais com relação à proteção sobre a biopirataria que hoje vem ceifando a cultura de muitos povos e enriquecendo as grandes corporações, ocasionando o total desrespeito aos direitos de propriedade intelectual. No Brasil, essa proteção começa a ser efetivamente moldada, quer no campo constitucional, quanto infraconstitucional. O presente artigo visa demonstrar o nível da proteção jurídica desses conhecimentos tradicionais associados, sobretudo, o dos povos indígenas.Palavras-chave: conhecimentos tradicionais associados – povos indígenas – proteção constitucional e infraconstitucional – biopirataria – direitos de propriedade intelectualSumário: 1 – Introdução; 2 O Texto Constitucional e a proteção aos conhecimentos tradicionais; 3 – A Medida Provisória n. 2.186-16 e a proteção contra a biopirataria; 4 – Conclusões.1 INTRODUÇÃO
Biodireito
Resumo: A proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados levou muito tempo ao longo da história para ser levada a efeito. Foram muitos séculos de escravidão da mão-de-obra, de exploração econômica e, sobretudo, cultural dos povos tradicionais. A temática atualmente ganha enfoque mundial em face da caminhada das organizações não-governamentais que buscam o reconhecimento dos direitos protecionistas destas comunidades, para o efeito de evitarem que haja uma expropriação ainda maior do que até então experimentada. Assim desencadeia-se a relevância da proteção dos conhecimentos tradicionais com relação à proteção sobre a biopirataria que hoje vem ceifando a cultura de muitos povos e enriquecendo as grandes corporações, ocasionando o total desrespeito aos direitos de propriedade intelectual. No Brasil, essa proteção começa a ser efetivamente moldada, quer no campo constitucional, quanto infraconstitucional. O presente artigo visa demonstrar o nível da proteção jurídica desses conhecimentos tradicionais associados, sobretudo, o dos povos indígenas.Palavras-chave: conhecimentos tradicionais associados – povos indígenas – proteção constitucional e infraconstitucional – biopirataria – direitos de propriedade intelectualSumário: 1 – Introdução; 2 O Texto Constitucional e a proteção aos conhecimentos tradicionais; 3 – A Medida Provisória n. 2.186-16 e a proteção contra a biopirataria; 4 – Conclusões.1 INTRODUÇÃO
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/a-protecao-juridica-dos-conhecimentos-tradicionais-associados-no-ordenamento-brasileiro/
A formulação do conceito de pessoa no IV e V século e sua atual aplicação na Bioética e no Biodireito
Este trabalho tem por objetivo mostrar as circunstâncias histórico-filosóficas em que nasceu o conceito de pessoa humana, cuja dignidade é considerada, na Constituição de 1988, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Por isso, analisa-se o significado do termo “pessoa” na Antiguidade e no cristianismo primitivo, seja na língua grega, como na  latina; e sua sucessiva reformulação na época da Patrística, quando o termo foi utilizado para resolver as questões teológicas relativas à Trindade e à Cristologia. A partir de Agostinho, o termo “pessoa” começa a ser aplicado ao homem e indica, assim, até de maneira quase exclusiva, o ser humano e sua incomparável dignidade. Esta vai ser a base para a sucessiva valorização do ser humano, particularmente na atual época de desenvolvimento tecnológico que ameaça a existência não só da espécie humana, como do mesmo planeta e, por isso, estimula a reflexão da Bioética e do Biodireito.
Biodireito
Introdução Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a “dignidade da pessoa humana”, como lemos no Art. 1º da Constituição de 1988. Esta fundamentação foi juridicamente possível diante do fato que a dignidade da pessoa humana encontra uma tranquila receptividade na nossa cultura. Porém o valor que nós hoje damos à pessoa humana precisou de séculos para ser reconhecido. Pode-se, pois, perguntar: Quando e como foi formulado o conceito de “pessoa”? Quando e como este conceito foi aplicado ao ser humano? Neste trabalho, pretende-se analisar a primeira etapa da longa história do conceito de pessoa: a correspondente ao período patrístico, que vai desde o início do cristianismo até a definição clássica de Severino Boécio (470-524). Objetiva-se, pois, dar um fundamento ao sucessivo desenvolvimento do termo, que tem suas aplicações também no campo jurídico e, hoje, particularmente, na problemática da Bioética e do Biodireito. 1. O horizonte histórico em que  surgiu a questão do homem como pessoa Os estudiosos concordam em reconhecer que o conceito de pessoa é estranho à filosofia grega. A razão mais profunda deste fato reside no sistema próprio de cooordenadas, a partir do qual a filosofia grega tentou determinar a essência e a posição do homem. Um dos eixos deste sistema é formado pelo espírito, considerado algo absoluto e divino, que transcende e ultrapassa o que é do mundo e que é particular. O outro eixo é representado pelo ser material e corpóreo, cuja finalidade seria individualizar, no caso do homem, as características universais do espírito e enquadrá-las numa determinada parcela da realidade material, da qual o espírito se separa pela morte, a fim de mergulhar novamente no seu anonimato primitivo e universal. Conseqüentemente, o homem aparece como indivíduo representante de uma espécie; e a vida terrestre é considerada como uma decadência ou a passagem para a existência pura do espírito. Acrescente-se a isso a convicção grega da importância absoluta insuperável da ordem política e da cidade, em que o indivíduo era “situado” e visto em sua relação com o Estado, com o coletivo (MARITAIN, 1973). Neste pano de fundo não podia nascer uma problemática que se interessasse no ser humano como pessoa. De fato, este conceito acentua o singular, o indivíduo, enquanto a filosofia grega dá importância só ao universal, ao ideal, ao abstrato. O valor absoluto do indivíduo é um dado da revelação judaico-cristã, onde aparece a parceria divino-humana, na qual Deus chama livremente o homem a participar da sua vida. E esta parceria tem como traço característico a ação divina que se destina primeiramente ao homem como pessoa e só mediante certas pessoas (profetas, Jesus Cristo, apóstolos) atinge o homem como tal, universalmente. Na ordem da criação o homem é elevado acima de todas as coisas criadas do mundo e, ao mesmo tempo, é solidário com toda a criação restante. Esta ordem da criação contém também o perigo inerente à finitude da liberdade humana. Devido à liberdade, cada homem pode aceitar ou recusar a parceria que Deus lhe oferece; e a morte vai fixar definitivamente a opção da pessoa numa situação de comunhão com Deus ou de recusa. O ponto mais alto da parceria divino-humana se encontra em Jesus de Nazaré Deus-homem, homem-Deus. Nele o próprio Deus estende a mão para a parceria e, ao mesmo tempo, proclama a infinita nobreza e a imensa dignidade de cada homem finito e particular. A revelação cristã, pois, não está voltada ao gênero humano de modo abstrato, não diz respeito ao universal, mas é dirigida a todos os homens tomados individualmente, enquanto cada um deles é filho de Deus, chamado à plena comunhão com Ele (SCHÜTZ; SARACH, 1980). Com este horizonte, diferente daquele do mundo grego, estava colocada a premissa, a possibilidade e a necessidade da origem e do desenvolvimento do conceito de pessoa. O impulso imediato para esse processo, porém, exigiu tempo.  A ocasião de tal reflexão ocorreu principalmente a partir das disputas teológicas acerca dos grandes mistérios da Trindade e da Encarnação, a cuja solução contribuiu, de forma decisiva, a formulação exata do conceito de pessoa (MONDIN, 2003a). O termo “pessoa” tornou-se, aos poucos uma palavra-chave da antropologia ao ponto de ofuscar o sentido recebido nos Concílios de Nicéia (325) e Calcedônia (451). Nestes, o termo “pessoa” foi utilizado para falar de Deus e de Cristo; e, na época moderna, este termo parece ser utilizado apenas para falar do homem. Mas, se é verdade que nenhum termo pode ser utilizado para falar de Deus e do homem de maneira unívoca, isso é possível utilizando uma linguagem analógica. Além disso, o princípio pelo qual o homem é considerado “imagem de Deus” leva sempre a teologia a unir o que se fala sobre Deus com o que se fala sobre o homem, sem esquecer com isso, a dessemelhança, maior do que qualquer semelhança, que preserva a transcendência divina dentro da relação da analogia. Para entender, pois, como apareceu o conceito de pessoa é preciso estudar o período da Patrística, em que nasceram as disputas teológicas acima citadas. 2. A Patrística Nos primeiros séculos da sua história, a mensagem cristã espalhou-se por todo o território do Império de Roma. O Evangelho entrou, assim, em contato com novos povos e com novas culturas. Por isso, tornou-se necessária uma obra de mediação para apresentar o Evangelho a culturas diferentes da cultura dos apóstolos, a judaica. Esta obra de apresentação do Evangelho às novas culturas foi realizada pelos “Padres da Igreja”, quer dizer, por aqueles que, ao mesmo tempo, puseram as bases da dogmática cristã e do edifício organizacional da Igreja. A sua obra chegou até nós por meio dos escritos que eles nos deixaram, nas línguas grega, latina, siríaca, copta e armênia (RAMPAZZO, 2004). O grego e o latim foram as línguas mais utilizadas: e as obras escritas nestas línguas estão catalogadas, pois, com as siglas  PG (Patrologia Grega) e PL (Patrologia Latina), que servirão também para algumas citações deste trabalho. Do ponto de vista terminológico, o termo “patrologia” indica o estudo dos padres; e “patrística” é adjetivo e se refere à teologia, ou doutrina dos Padres. Do ponto de vista histórico, consideram-se três fases: a) Das origens até o Concílio de Nicéia de 325: é o período dos Padres Apostólicos (século I-II), dos Apologistas e dos primeiros sistematizadores da doutrina cristã. Os Padres Apostólicos recebem esta denominação por terem tido relações mais ou menos relações diretas com os Apóstolos (por exemplo, S. Clemente de Roma, S. Inácio de Antioquia, S. Policarpo de Esmirna). Os Apologistas (século II), por sua vez, refletem o encontro conflituoso do cristianismo com o mundo judeu, pagão e com a gnose; eles rebatem as acusações e defendem a doutrina cristã, particularmente no que se refere à unidade de Deus e à imortalidade da alma. Destacam-se, entre eles, Justino, Atenágoras e Irineu. Quanto aos primeiros ensaios de sistematização doutrinária (século III), temos os exemplos de Orígenes, Tertuliano e  Hipólito. b) A “idade áurea”: do Concílio de Nicéia (325) até o Concílio de Calcedônia (451). De fato, neste período são formuladas as principais definições dogmáticas do primeiro milênio do Cristianismo, particularmente graças às obras dos padres gregos (Atanásio, Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo) e latinos (Hilário, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Leão Magno). Veremos que neste período se formula, pela primeira vez, o conceito de “pessoa”. c) O declínio: do Concílio de Calecedônia até o século VIII. O termo declínio se refere mais ao fato que os padres deste período são menos numerosos que os anteriores. Eles estabelecem um traço de união entre o mundo antigo greco-romano e a cristandade derivada dos povos bárbaros, os quais começam a ser educados por obra de grandes missionários e sob o impulso principal de S. Gregório Magno (540-604) (BOSIO, 1963). 3. Significados do termo “pessoa” 3.1 Na Antigüidade Na antiga Roma o culto etrusco da deusa Perséfone comportava uns rituais em que se carregava uma máscara (phersu). Os romanos, mais tarde, vão adotar o termo, usando a palavra persona (de per-sonare, quer dizer, “falar através”) para indicar a máscara utilizada habitualmente pelos atores; e, por extensão, designava o papel que eles interpretavam. No século III a. C. o termo foi utilizado para indicar as pessoas gramaticais. Mais tarde apareceu no sentido de “pessoa jurídica”, enquanto fonte de direito. No século I antes da nossa era, o mesmo homem podia ter diferentes personae, quer dizer, diferentes papéis sociais ou “jurídicos”. A personalidade era algo mutável e não algo essencial. Na Grécia o termo prosopon significa “rosto”; e também este termo foi utilizado para indicar a máscara de teatro, mas num contexto onde o alcance filosófico do uso aparecia com maior clareza. Para o pensamento grego, o homem não possui nada de único e duradouro: no momento da morte, a alma ou se une a um outro corpo (Platão), ou desaparece (Aristóteles). Dessa maneira, a liberdade não possui um espaço; e, se o teatro manda sonhar a liberdade pondo em cena uma revolta do homem contra a necessidade, esta revolta sempre termina tragicamente. E a ordem do cosmo se impõe novamente (PARTLAN, 2005). 3.2 No cristianismo primitivo Na Antigüidade clássica um dos procedimentos habituais de narrar consistia em atribuir funções a personagens importantes e mandá-los dialogar; para interpretar esta técnica, utilizava-se uma exegese chamada de “prosopográfica”. Os primeiros teólogos cristãos, por exemplo Justino (II século), individuaram, assim,  na Escritura muitas passagens onde Deus dialoga consigo mesmo (por exemplo, Gn 1,26; 3,22); mas, no lugar de interpretá-las como ficções literárias, eles viram nisso uma maneira para indicar verdadeiras distinções (PARTLAN, 2005). Por exemplo, na primeira destas citações, nós lemos: Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves dos céus,  os animais domésticos, todas as feras e  todos os répteis que rastejam pela terra.” (grifo nosso). O comentário da “Bíblia de Jerusalém” (1985), relativo a esse texto, afirma que o plural “Façamos” pode indicar uma deliberação de Deus com sua corte celeste; ou, então, exprime a majestade e a riqueza interior de Deus, cujo nome comum em hebraico é de forma plural, Elohim. Nesta linha se inclina a interpretação dos Padres que aqui viram insinuada a Trindade. Prova disso é um interessante texto de Tertuliano (Adv. Prax. 12), que podemos ler, a seguir: “Interrogo-te como é possível que um só fale no plural: “Façamos o homem…” (Gen 2,26)…Se falou no plural  é porque já tinha junto a si o Filho, uma Segunda pessoa, seu Verbo, e uma terceira pessoa, o Espírito no Verbo (grifo nosso).” (Apud GOMES, 1979a, p. 249-250). Assim, para dar um nome a estas distinções dentro do mesmo Deus uno, Tertuliano (início do III século) falou de “uma substância” e de “três pessoas” (PL 2, 167-168); e, para unir em Cristo o divino e o humano, falou de uma só pessoa, ao mesmo tempo homem e Deus (PL 2,191): dessa maneira, pela primeira vez, o termo latino persona recebia todo o seu peso. Hipólito (início do III século), por sua vez, foi o primeiro a utilizar o termo prosopon para falar da Trindade (PG 10,821). (PARTLAN, 2005). 3.3 “Prosopon”,  “Persona” e “Hypóstasis” Desde o início do século III as palavras prósopon e persona tentam designar aquilo que distingue os Três (Pai, Filho e Espírito Santo). Pouco depois começa o uso de hypóstasis, no Oriente. Em Hipólito e Tertuliano encontramos os primeiros “tratadistas” da doutrina trinitária. Para entender melhor a reflexão sobre o pensamento dos Padres, precisamos distinguir entre “Trindade Imanente” e “Trindade Econômica”. Aquela diz respeito às relações entre as pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito Santo) antes da criação do mundo e da redenção operada por Cristo e pelo seu Espírito. E, a partir disso, fala-se de “trindade econômica”: adjetivo que aponta para a “economia”, etimologicamente o “plano” de salvação da humanidade. Os Padres, no começo, estão preocupados em definir a ação de Deus rumo à salvação do homem: falam, pois, mais da “trindade econômica” do que da “trindade imanente”. Temos um exemplo disso em Hipólito, que escreve em grego. Vejamos dois textos dele, a respeito, na sua “Refutação a Noeto” (n. 7), em resposta à alegação de Jo 10,30 (“eu e o Pai somos um”): “Cristo não disse: “eu e o Pai sou um só”, mas “somos um”. Com efeito “somos” não se diz de um, mas de dois: ele indicou dois prósopa (pessoas) e uma só dynamis (força). (Grifo nosso). (Apud GOMES, 1979a, p.  240). Mais adiante, na segunda parte (n. 14), Hipólito formula a si próprio a seguinte objeção, a partir de Jo 1,1-2 (“No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio ele estava com Deus”). “Se o Verbo estava com Deus sendo Deus, então há de se falar de dois Deuses? Não falarei por certo de dois Deuses, mas de um só e de duas Pessoas pela economia (prósopa  de dyo oikonomia) e em terceiro lugar da graça do Espírito Santo. Pois o Pai é um, mas as Pessoas são duas (prósopa dyo) havendo também o Filho e em terceiro lugar o Espírito Santo” (Apud GOMES, 1979a, p. 240-241). Por estes textos vemos que Hipólito se situa na perspectiva da Economia ao falar das “pessoas” divinas que ele quer afirmar realmente e não só operacionalmente distintas. Ele não explicita ser a Economia um reflexo da organização íntima (“trindade imanente”) de Deus. Quanto a Tertuliano, nós encontramos uma teologia mais rica e mais desenvolvida do que a de Hipólito. A Tertuliano deve-se a elaboração de uma linguagem básica, que se consagrou mais tarde. Entre outras coisas são suas as expressões trinitas (trindade), una substantia, tres personae (uma única substância, três pessoas); e, sobretudo, a contribuição de projetar o mistério trinitário no primeiro plano da reflexão teológica. Tertuliano quer expor a doutrina de uma Trindade imanente, isto é cujas Pessoas se distingam não só no plano da manifestação econômica ou das missões, a saber: a “missão”, ou “envio” do Filho, por parte do Pai; e o “envio do Espírito” por parte do Pai e do Filho. Mas Tertuliano não chega a dizer que essa distinção seja “desde a eternidade”, pois seu olhar contempla esse Mistério desde que se relaciona com a Criação e com a História da salvação. Mas Praxéias, contra quem Tertuliano escreve sua obra, não se preocupava com a realidade de Deus antes do começo do mundo: motivo pelo qual a polêmica de Tertuliano não trata desse assunto específico. Diante de Praxéias que denunciava, em Deus, uma divisão da substância no fato do Filho “sair” de Deus no princípio, Tertuliano acentua a distinção dos Três sem a separação. No Adversus Praxeam (2), assim ele escreve: “Três não pela qualidade, mas pela seqüência, não na substância, mas no aspecto, não no poder, mas na manifestação (Apud GOMES, 1979a, p. 244). Quanto ao termo persona, Tertuliano usa esta palavra, no contexto trinitário umas trinta vezes, em vários sentidos: no sentido gramatical, no sentido literário de personagem do discurso; e também para caracterizar aquilo que empiricamente é o indivíduo humano e que, por analogia, vem atribuído ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Vamos considerar dois textos do Adversus Praxean, a respeito, sublinhando o uso do termo pessoa. O primeiro destes se refere a Salmos 2,7: Vou proclamar o decreto de Iahweh: Ele me disse: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei…” Sobre isso, Tertuliano faz o seguinte comentário (n. 11): “Far-se-ia Deus ser mentiroso se, sendo ele próprio o Filho atribuísse (em Salmos 2,7) a outro a pessoa do Filho. Na verdade todas as Escrituras atestam a distinção trinitária, e delas deriva nossa prescrição: a de que não pode ser um e o mesmo o que fala, aquele de quem se fala e aquele a quem fala.” O segundo texto apresentado se refere a João 10,30: “Eu e o Pai somos um”. Tertuliano comenta (n. 22): “A expressão “Eu e o Pai” significa dois sujeitos; e, depois, que “somos” indica um plural, não uma só pessoa; e enfim que “somos um” não indica o mesmo que “somos uma pessoa só”…Quando diz que dois, do gênero masculino, são uma só coisa, no neutro – e isto diz respeito não à singularidade mas à unidade, à semelhança, à união, à dileção pela qual o Pai ama o Filho, à obediência do Filho para com a vontade do Pai…mostra que os que são igualados e unidos são dois” (Apud GOMES, 1979a, p. 249-250). Neste texto, é interessante como Tertuliano utiliza o termo pessoa em sentido, ao mesmo tempo, gramatical e de “indivíduo”. Seja a língua grega, na qual está escrito o texto comentado de João 10,30, como a língua latina usada por Tertuliano, possuem os gêneros masculino, feminino e neutro. Além disso, ele fala de “sujeitos” e de “plural”. A partir destas bases gramaticais, aparecem as considerações de caráter teológico expressas pelo termo pessoa. Vamos, agora, considerar o uso e o significado do termo grego hypóstasis. Do ponto de vista etimológico, o termo deriva do verbo hyphístamai (GOMES, 1979a, p. 251), que significa sub-jazer. Significa, pois, o que está debaixo: apoio, sedimento, fundamento etc.: um significado que adquire determinações ulteriores segundo o contexto. No uso pré-filosófico e bíblico (per exemplo Heb 1,3; 3,14; 11,1) o sentido, em geral, é o mesmo, o da realidade que jaz sob as manifestações (a coragem, que se exterioriza no vigor; o plano, que resulta na construção etc.), ou também o da realidade em oposição à sombra e à imagem. Assim aparece também em vários escritos patrísticos, nos séculos II-III. Por exemplo, em Hebreus 1,3, nós lemos; “Ele (o Filho) é o resplendor de sua glória e a expressão do seu ser (hypostáseos)”. Neste caso, hypostáseos (genitivo de hypóstasis) indica a “realidade” divina expressa no Filho. E em Hebreus 11,1, lemos: “A fé é uma posse antecipada do que (hypóstasis) se espera”. Aqui também hypóstasis indica a “realidade”, “aquilo que é”. Como termo filosófico, a palavra entra na filosofia por meio dos estóicos, que a empregavam como sinônimo de ousia: o ser primitivo, a essência enquanto emerge e se manifesta nas coisas. No plotinismo o termo indicava as verdadeiras e perfeitas realidades (o espírito, a alma, o Um); e era traduzido com o termo latino substantia. O primeiro ensaio de diferenciação entre ousia e hypóstasis se deve, na área da teologia, a Orígenes (metade do III século). Na sua obra Contra Celso (8,12), as Pessoas da Trindade foram chamadas pela primeira vez de hypostáseis. Após afirmar a unidade de Deus, diz que não se exclui que “o Pai e o Filho sejam duas hypostáseis”. Em outro contexto, no Comentário sobre João (2, 10, 75) fala de “três hypostáseis”, referindo-se, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. No mesmo Comentário, Orígenes afirma que as hypostáseis constituem uma “adorável, eterna Tríade” (166). Não são três seres separados como três Princípios, pois o Princípio é o Pai, a “fonte da divindade”, o “próprio Deus” (2, 3, 20). (Apud GOMES, 1979a, p. 252-253). Evita-se, assim, o triteísmo, mas não um certo subordinacianismo. Este último termo define aquela concepção da Trindade em que o Filho é considerado inferior ao Pai; e o Espírito inferior ao Pai e ao Filho. O subordinacianismo será superado com as declarações dos Concílios: o que será analisado mais adiante. Devido a uma certa equivocidade na linguagem de Orígenes quanto à transcendência da Tríade, entre seus seguidores encontram-se duas correntes: a que acentua a comunhão das  hypóstáseis, que irá desembocar na afirmação da homoousia do Concílio de Nicéia; e a que se radicaliza no subordinacianismo de Ario, que recusa a coeternidade das hypostáseis do Verbo e do Espírito. 4. O Concílio de Nicéia (325) A doutrina de Ario foi condenada, pela primeira vez, no ano de 320, durante um Sínodo convocado por Alexandre, bispo de Alexandria. Mas a decisão não foi pacífica: e os dois partidos, arianos e antiarianos, acabaram se chocando de maneira até violenta. A questão teológica tinha-se tornado um problema de paz social ao ponto que o Imperador Constantino interveio e tentou pôr fim à questão convocando, no ano de 325, um Concílio em Nicéia, ao qual participaram acerca de 300 bispos, a maioria deles orientais (FRANGIOTTI, 1995). O Concílio de Nicéia condenou o arianismo no seu ponto central: a negação da plena divindade de Jesus Cristo. Por esta razão não explicitou a doutrina trinitária em toda a plenitude em que ela já emergia na consciência cristã. O Credo de Nicéia fala de Deus Pai todo-poderoso, do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo, propondo a Trindade a partir dos nomes e da perspectiva de sua manifestação na “Economia” da salvação da humanidade. Desenvolve, assim, o tema da homoousia (= da mesma substância) somente do Filho de Deus: “gerado”, “não criado”, “da mesma substância” do Pai, mas acrescentando no fim o anatematismo, quer dizer, a excomunhão, a quem, dissesse não ser ele eterno, ou ser proveniente de outra hypóstasis ou ousia (SCHMAUS, 1977, p. 112-113). Vê-se, então, que a palavra hypóstasis vem tomada como sinônimo de ousia. Com efeito, até essa época, o termo não tinha adquirido o significado técnico da teologia e doutrina posteriores. 5. A contribuição dos Capadócios Do ponto de vista teológico, o período entre o Concílio de Niceia (325)  e o de Constantinopla (381) foi caracterizado pelos debates em torno das palavras homoúsios e hypóstasis, e em torno da equivalência entre hypóstasis e prósopon, ou persona. Assim, em 382, no Sínodo de Alexandria, sob a direção de Atanásio, foi considerada legítima a fórmula “três hypostáseis”, desde que não significasse “três princípios, ou três deuses”, isto é três ousiai. Mas, ao mesmo tempo, era aprovada a fórmula “uma hypóstasis”, se entendida como equivalente a “uma ousia” (GOMES,  1979a, p. 260). Além desta questão terminológica, desenvolve-se no mesmo período, a doutrina sobre o Espírito Santo. Havia obscuridade a respeito. O termo “Espírito Santo” designava, não raramente, a natureza divina, ou o dom da graça. Nem nos autores ocidentais (Novaciano), nem nos orientais (Orígenes) havia noções bastante claras quanto à personalidade divina do Espírito Santo e sua consubstancialidade com o Pai e o Filho. O citado Orígenes, por exemplo, atribuía ao Espírito uma atuação menos vasta que a do Pai e do Filho na economia da salvação: para ele a ação do Pai se estende a toda a realidade, a do Filho se limita aos seres racionais e a do Espírito Santo se limita à ordem da santificação (GOMES, 1979a, p. 261). Não podemos esquecer, além disso, que o arianismo, depois de declarar o Filho “criatura” do Pai, declarava o Espírito “criatura” do Filho. Aos Padres Capadócios coube realizar a elaboração filosófica e doutrinária desses conceitos. Chamam-se “Capadócios” pela região onde eles nasceram (a “Capadócia”, situada na atual Turquia) e atuaram, no século IV: e correspondem aos nomes de S. Basílio, S. Gregório de Nissa e S. Gregório Nazianzeno. O Padres do Concílio de Nicéia, como vimos, tinham usado como sinônimos ousia e hypóstasis, no sentido de “substância”. Os arianos, seguindo Orígenes, atribuíam a hypóstasis o sentido de “pessoa”: por isso a expressão mya hypóstasis indicava para eles “uma só pessoa”. Basílio, porém, define ousia como “o que é comum a todos os indivíduos da mesma espécie”. Mas esta ousia, para existir realmente, precisa possuir os caracteres individuantes (idiotetes) que a determinam. Acrescentando à ousia estes caracteres, tem-se a hypóstasis, a saber, o indivíduo determinado existente a parte (to kath’exaston). “Devemos, pois, ao que é comum, acrescentar o que é próprio e professar assim a fé: comum é a divindade, própria é a paternidade. Unindo estas duas coisas, devemos dizer; Creio em Deus Pai. O mesmo se deve fazer confessando o Filho: é preciso acrescentar o que é comum ao que é próprio e dizer: Creio em Deus Filho. E assim também o Espírito Santo…(Ep. 236,6)”. (Apud BOSIO, 1964, p. 73). Em Deus há uma única substância (ousia) em três hypostáseis (pessoas), que possuem em comum a substância, mas se distinguem pelos caracteres individuantes: mya ousia, tréis hypostáseis é a expressão característica de São Basílio. Causa e ocasião de tal definição foi o cisma meleciano, em que Paulino, como velho niceno, falava de uma só hypóstasis divina (= ousia), enquanto Melécio professava tréis hypostáseis (não ousia). Como propriedades pessoais em Deus, Basílio enumera a paternidade, a filiação e a santificação (ALTANER, 1972, p. 299). Além disso, Basílio ensinou resolutamente em seus escritos a divindade e consubstancialidade do Espírito Santo. Gregório Nazianzeno, por sua vez, usa esta outra expressão: Mya fysis en trisin idiótesin (uma natureza em três individualidades” (Orat. XXXIII, 16). Esta terminologia se torna comum na Ásia Menor na metade do século IV. Basílio e Gregório Nazianzeno preferem evitar o termo prosopon pelo seu significado habitual de “máscara”, “aspecto externo”. Caráter próprio do Pai é a agennesia (não geração); do Filho a gennesia (a geração) e do Espírito Santo a expouresis (procissão) ou expempsis (envio, emissão). Gregório Nazianzeno é o primeiro a designar as diferenças entre as três Pessoas Divinas com esta terminologia (Orat. 25.16). Além disso, professa clara e formalmente a divindade do Espírito Santo: dele é, pois a expressão “Espírito Santo e Deus” (apud BOSIO, 1964, p. 73. 149). Quanto a Gregório Nisseno  (335-394), na mesma linha de interpretação, podemos ler o seguinte texto: “O Pai é a substância (ousia), o Filho é substância, o Espírito Santo è substância, mas não há três substâncias. O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus, mas não há três deuses. Deus é um só e o mesmo porque a substância é única e mesma, apesar de que cada uma das Pessoas se chame subsistente e Deus.”  (Apud BOSIO, 1964, p. 73). Os Capadócios admitem, pois, um só Deus, em três pessoas distintas, consubstanciais entre elas. Elas possuem unidade de substância, de operações, de vontade e de ação. Para distinguir as “três” (Pai, Filho e Espírito Santo), eles utilizam o termo hypóstasis; e, para afirmar sua unidade, servem-se do termo ousia.  Eles, pois, definem ousia como natureza, ou substância comum; e hypóstasis como o aspecto individual de determinação e de distinção. Dessa maneira, o Pai é afirmado na sua característica de princípio, não gerado; o Filho como o gerado e o Espírito Santo como aquele que procede do Pai através do Filho. Daí nasce a fórmula mya ousia, tréis hypostáseis (uma substancia, três hipóstases (MILANO, 1985). Aplicada ao homem, a distinção entre natureza e pessoa permite indicar um limite: no homem a natureza precede a pessoa de tal maneira que nada pode concentrar em si a totalidade da natureza humana; e, por isso, a morte de um não comporta a morte de todos. Em Deus, ao invés, nenhuma limitação da pessoa por parte da natureza é concebível. Nele natureza e pessoa, unidade e multiplicidade coincidem e nenhuma das pessoas é concebível sem as outras. As três pessoas definem a natureza e suas relações pertencem à essência da divindade, ao ponto que Basílio coloca no mesmo plano a natureza divina e a comunhão das pessoas divinas: “Na natureza divina e incomposta, na comunhão da deidade, há a união” (PG 32, 149 C). A comunhão das pessoas divinas possui uma ordem intrínseca. Deus não tem origem (arquê), mas a pessoa do Pai é, em Deus, origem e causa (aition) (Gregório de Nissa, PG 45, 133 B e 180 C). Há, pois, uma pessoa na origem do ser, a pessoa do Pai, liberdade absoluta, em comunhão com o Filho e o Espírito. Obtém-se, assim, um esquema da verdadeira existência pessoal; e, como o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, este esquema deverá encontrar uma valência também antropológica (PG 45,24 C-D). (Apud PARTLAN, 2005). As intenções do Concílio de Nicéia foram, assim, expressas de forma melhor, chegando a aplicar a noção de “consubstancialidade” à terceira hypóstasis divina (o Espírito Santo) contra os assim-chamados “pneumatômacos” (etimologicamente “inimigos do espírito”), os arianos que negavam a divindade do Espírito Santo. O Concílio de Constantinopla de 381, com a definição da divindade do Espírito Santo, podia, assim, retomar e aperfeiçoar o símbolo de Nicéia, fixando as estruturas fundamentais do dogma trinitário de maneira substancialmente definitiva (MILANO, 1985). 6.  A questão cristológica Resolvida, em Constantinopla (381), a questão “trinitária”, aparecia, agora, a questão cristológica. Em outros termos, era necessário responder como se associavam em Cristo a humanidade e a divindade.  A esse respeito, encontram-se várias respostas: o “nestorianismo” vai separar o Filho de Deus (Verbo) do filho de Davi (homem); e o “monofisismo” irá professar uma única natureza (physis), aquela do Verbo, revestida de carne. Árbitras entre as duas respostas serão as definições cristológicas dos Concílios de Éfeso (431) de Calcedônia (451). A problemática, que pode parecer apenas teológica, tem seus reflexos antropológicos, como veremos: aqui também o uso do termo “pessoa” (hypóstasis) será fundamental. Os outros termos acima indicados vão ser explicados, a seguir. Na base das controvérsias cristológicas, encontram-se duas escolas de tendências opostas: aquela de Alexandria ressalta a divindade e a unidade da pessoa de Cristo. A preocupação pela unidade, nas suas afirmações mais ousadas, irá desembocar no monofisismo (etimologicamente “uma só natureza” physis), para o qual a humanidade de Cristo é “absorvida” na divindade. Representante desta corrente é Êutiques, de Constantinopla. A escola de Antioquia, por sua vez, ressalta a distinção das duas naturezas até considerar o Verbo (Filho de Deus), por um lado, e o homem Jesus, por outro, como duas pessoas distintas. Representante desta outra tendência será Nestório, patriarca de Constantinopla, que tinha sido, antes, monge em Antioquia. A doutrina por ele professada recebe, pois, o nome de “nestorianismo”.  Nestório afirmava que, na união entre o Verbo e Jesus, cada natureza (ousia, ou hypóstasis) possui a própria pessoa (prosopon): e, dessa união, nasceu uma terceira “pessoa” (prosopon), que é a pessoa de Jesus. Conseqüentemente, há apenas uma união “moral” entre o Verbo e Jesus; não morreu o Deus encarnado, mas apenas o homem Jesus. O prosopon da união não é o mesmo prosopon do Verbo antes da Encarnação. As ações da pessoa de Cristo não podem ser atribuídas ao Verbo. Maria não pode ser chamada de “mãe de Deus” (theotókos), mas apenas “mãe de Cristo” (Xristotókos) (BOSIO, 1964, p. 369-372). Como se vê, Nestório usava o termo prosopon  para falar da “pessoa”; e hypóstasis era, para ele, sinônimo de ousia (natureza).  Nestório ressaltava a humanidade plena de Jesus em face de todas as mutilações e reduções: ele via na cristologia alexandrina um perigo desse tipo. E seu adversário foi exatamente o patriarca de Alexandria, Cirilo. O interesse histórico-salvífico devia levar a uma formulação da doutrina em que ficasse clara a união entre Deus e o homem, realizada em Cristo. De fato, se Cristo não fosse homem, não representaria a humanidade; e, se não fosse Deus, a salvação divina não aconteceria. Nesta formulação, se, por um lado, Nestório ressaltava a distinção entre o humano e o divino em Cristo, Cirilo, por outro lado, ressaltava a unidade que ele descreve mediante as expressões “uma única natureza (physis, ou hypóstasis) do Verbo feita carne” (SCHMAUS, 1977, p. 170). Diante da rivalidade entre as duas escolas e os dois patriarcas, o Papa Celestino encarregou Cirilo de aplicar as decisões de um Sínodo de Bispos realizado em Roma  em 430, em que foi declarada heterodoxa a doutrina de Nestório e legítimo o título de “mãe de Deus” (theotókos), aplicado a Maria (BOSIO, 1964, p. 422). No ano seguinte, o nestorianismo foi novamente condenado no Concílio de Éfeso (431), que confirmou o título de theotókos, aplicado a Maria, em conformidade com uma carta (a segunda) de Cirilo a Nestório. Só no ano de 433, porém, chegou-se a uma união real entre os teólogos antioquenos e alexandrinos, graças aos esforços de João de Antioquia para restabelecer a paz (SCHMAUS, 1977, p. 171). De fato, os termos usados por Cirilo que falavam de “uma única natureza” em Cristo, podiam ser interpretados como monofisismo, no sentido acima indicado. Além disso, ele usava os termos physis e hypóstasis indiscriminadamente, tanto para designar a natureza, quanto a pessoa. É verdade que Basílio havia forjado para a Trindade a fórmula tréis hypostáseis, mya physis; e, no início, Cirilo também dizia tria prosopa em Deus; quanto a Cristo, porém, não se ousava dizer mya hypóstasis: isso vai acontecer só como Concílio de Calcedônia, em 451 (ALTANER, 1972,  p. 291). De qualquer forma, o símbolo da união entre as escolas antioquena e alexandrina, formulado sob orientação de João de Antioquia e aceito por Cirilo, proclama: “Aconteceu uma união de duas naturezas, e por isso confessamos um só Cristo, um só Filho, um só Senhor. Considerando esta união sem mistura, confessamos a santa virgem Maria como Mãe de Deus” (ALFARO, 1973, p. 65). Este texto, na realidade, constituía um compromisso. Apresentava, por certo, a doutrina ortodoxa, porém cada uma das partes podia interpretá-la em sentido contrário. No curso da crescente discussão (SCHMAUS, 1977, p. 171), Dióscoro, sucessor de Cirilo, não só concebeu a unidade entre o divino e o humano como união na Pessoa de Cristo, mas ainda dele predicou uma única natureza humano-divina. Em Constantinopla, o arquimandrita Êutiques uniu-se a Dióscoro. Ambos conseguiram a autorização do imperador Teodósio II para convocar um sínodo (449), de cuja participação excluíram os bispos contrários a Êutiques. Na ocasião, foi confirmada a doutrina deste. O Papa Leão Magno interveio na disputa com uma famosa “Epístola dogmática”, dirigida ao patriarca Flaviano de Constantinopla, que em 448 tinha condenado Êutiques em um sínodo realizado nesta mesma cidade. Nesta “Epístola”, Leão tomou posição contra a tese monofisita. As disputas conduziram ao Concílio de Calcedônia (451), convocado pelo imperador Marciano (BOSIO, 1964). Como tinha acontecido em Nicéia com relação ao dogma da Trindade, no Concílio de Calcedônia foi proclamado o dogma cristológico. O texto do Concílio assim se expressa: “…é preciso confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo; perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; de alma e de corpo racional; consubstancial ao Pai, quanto à divindade, e consubstancial conosco quanto à humanidade;…reconhecemos um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito em duas naturezas, inconfundível, imutável, indivisível, inseparável; sem se suprimir jamais a diferença das naturezas por causa da união, antes conservando cada natureza sua propriedade e concorrendo numa só pessoa (prosopon) e numa só hypóstasis, não partida ou dividida em suas pessoas, mas um só e o mesmo Filho unigênito, Deus Verbo, Senhor Jesus Cristo…” (Apud SCHMAUS, 1977, p. 171; DENZINGER, 1973, p. 108). O Concílio de Calcedônia quis formular sua definição, confirmando os posicionamentos anteriores: dos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381) e do símbolo antioqueno (433). O Símbolo de Calcedônia acolheu, do mesmo modo, o interesse de Cirilo Alexandrino e das declarações de fé do Papa Leão Magno em seu escrito a Flaviano. A acentuada insistência em que um mesmo é o que sob um aspecto vive desde a eternidade, e sob outro aspecto nasceu no tempo, mostra como se levou em conta o móvel defendido pelos teólogos alexandrinos, a unidade em Jesus Cristo. Esse móvel, porém, já não é expresso como em Cirilo de Alexandria, com a fórmula da natureza uma. Antes, de acordo com a grande preocupação da teologia antioquena, fala-se com igual insistência da verdadeira e íntegra humanidade de Jesus Cristo (SCHMAUS, 1977, p. 172). Quanto à técnica conceitual, o Concílio renunciou ao termo physis para designar a união, como acontecia na teologia alexandrina. Viu-se obrigado a isso pelo simples fato de que os monofisitas abusavam do termo para defender suas teses. Com a palavra physis, o Concílio designa a dualidade e não a unidade. Isto supôs uma mudança de significado do termo. Enquanto Cirilo usava o termo para significar a natureza concreta, subsistente por si mesma como indivíduo, na acepção conciliar a palavra recebeu o significado de essência abstrata no sentido aristotélico. Ao invés, os termos prosopon e hypóstasis foram usados para designar o princípio pelo qual as duas naturezas existem na pessoa do Logos divino (SCHMAUS, 1977, p. 173). De qualquer forma, mais que num sentido realmente filosófico-cientifico, o Concílio empregou tais conceitos em sentido filosófico-popular. Deixou, porém, de esclarecer a relação do conceito de hypóstasis ou prosopon, com o de physis. Não se refletiu, pois, sobre a questão de como subsiste a natureza humana de Jesus na pessoa do Logos divino; ou, em outros termos, como a natureza humana pode conservar sua realidade carecendo da personalidade que lhe corresponde. No entanto, constitui um progresso decisivo com relação às discussões anteriores, o fato do Concílio ter definitivamente aplicado as expressões physis e hypóstasis ao âmbito da natureza e da pessoa, respectivamente, criando um modo de falar válido para todo o futuro, segundo o qual se afirma em  Cristo há duas naturezas (physeis) e uma pessoa (prosopon ou hypóstasis). Com isso, a terminologia já usada no campo trinitário foi transplantada definitivamente para a cristologia. 7. Agostinho: o homem é pessoa Na teologia latina, Agostinho assumiu a terminologia que já tinha sido adotada anteriormente por Tertuliano, ao falar de “uma só essência e três pessoas” (una essentia – tres personae), com referência à Trindade (SCHMAUS, 1977, p. 114; GOMES, 1979a, p. 283-286). Além disso, ele enriqueceu para sempre a doutrina sobre a Trindade na base de seus esclarecimentos psicológicos. Ele via, na vida do espírito humano, diversas analogias da existência trinitária de Deus: por exemplo, a tríade “memória, inteligencia e amor” (memória, intelligentia et amor” (De Trin.  15, 22.42; apud GOMES, 1979a, p. 293).  Segundo Agostinho, os atos intradivinos da geração (o Pai gera o Filho) e da espiração (o Pai e o Filho estão na origem do Espírito) devem ser entendidos como ações espirituais de entender e de amar. Esta comparação entre o divino e o humano se reflete, o que nos interessa particularmente, na aplicação da palavra “pessoa” também ao homem. Com a intenção de encontrar um termo que se possa aplicar distintamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo sem correr, de uma parte, o risco de fazer deles três deuses e, de outra parte, sem dissolver a sua individualidade, ele mostra que os termos “essência” e “substancia” não têm essa dupla virtude. Ela, pelo contrário, pertence ao termo grego hypóstasis e ao seu correlativo latino persona (pessoa), o qual “não significa uma espécie, mas algo de singular e de individual (De Trinitate VII, 6. 11). Analogamente este termo aplica-se também ao homem: “Cada homem individualmente é uma pessoa” (singulus quisque homo una persona est) (De Trinitate, XV, 7.11). Vamos ver diretamente os textos de Agostinho, a respeito: Na analogia de “memoria, entendimemto e amor”, aplicadas ao homem e a Deus, ele afirma: “Estas três coisas, memória, entendimento e amor, são minhas, não se pertencem a si; e o que fazem não fazem para si, mas para mim, ou melhor sou eu que atuo por meio delas…Eu recordo, compreendo e amo servindo-me dessas realidades, embora não seja eu a minha memória nem meu entendimento nem meu amor, e sim as possua em mim…Mas na suprema simplicidade que é Deus, sendo ele embora um só Deus, são três as pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (De Trinitate 15,22.42). Vamos ver, agora, como Agostinho aplica a Deus os termos “pessoas”, “natureza” e “essência”; e também como aplica ao homem o termo “pessoa”: “Estas três realidades (memória, entendimento e amor) estão no homem, não são o homem…Uma pessoa, quer dizer cada homem singular tem em sua alma estas três coisas…Porém podemos acaso dizer que a Trindade está em Deus, como uma coisa de Deus, sem ser Deus?….Nada pertence à natureza de Deus que não pertença à Trindade; e as Três Pessoas são uma essência, mas não à maneira como o homem individual é uma pessoa” (De Trinitate 15,7.12; grifo nosso). Voltando à analogia de “memória, entendimento e amor”, podemos perguntar qual é o lugar do homem onde se encontra essa imagem de Deus, para S. Agostinho. Essa imagem não está nem no “homem exterior”, nem na comunidade familiar, mas na natureza espiritual (secundum rationalem mentem). Ali se acha a verdadeira, ainda que imperfeita, imagem, na medida em que o espírito humano, necessariamente consciente de si, apresenta uma estrutura trinitária essencial (apud GOMES, 1979a, p. 189-190). De fato, o que dá originalidade ao pensamento de Agostinho é a perspectiva essencialmente interior. Seu princípio inspirador é, pois, o seguinte: “Não saias de ti, volta-se para ti mesmo, a verdade habita no homem interior” (Noli foras ire, inteipsum redi: in interiore homine habitat veritas) (De Vera religione, 39, 72; apud MONDIN, 2003b, p. 140). Em outros termos, Agostinho reflete sobre a verdade não fora, como se se tratasse de coisa estranha, mas dentro, examinando a própria alma. (MONDIN, 2003b). Em suma, a contribuição de Agostinho é decisiva em dois pontos de vista: a descoberta da interioridade e a  passagem analógica do conceito de pessoa em Deus à idéia de pessoa aplicada ao homem. A descoberta da interioridade leva o pensamento cristão à certeza de que o eu-pessoa é o centro de decisões livres. Se compararmos a evolução do significado do termo “pessoa”, seja na língua grega, como na latina, podemos concluir que se encontra um conteúdo exatamente oposto. Antes “pessoa’ indicava as várias identidades que podiam ser aplicadas a um ser humano, em diferentes situações, conforme o papel que precisa desenvolver nestas situações. Mas, no vocabulário cristão, o termo pessoa passa a indicar a irredutível identidade e unicidade de um indivíduo. “Pessoa”, indica, pois aquele centro único de atribuição ao qual fazem referência todas as ações do indivíduo que as unifica em sentido sincrônico, permanecendo diacronicamente “na base”, no “substrato” delas. È interessante,  a esse respeito, considerar o sinônimo de pessoa: “subsistência”, que, ao pé da letra, significa, pois “o que está debaixo” (CAFFARRA, 2009). Isso aparece, de maneira mais clara, com a clássica definição que Boécio fornecerá, nos termos de “substância individual de natureza racional” (naturae rationalis individua substantia, PL 64, 1343). A existência humana é, pois, uma existência substancial, que existe em si e para si; e é ainda mais verdade que a racionalidade é essencial ao homem. Mas esta definição não pode ser aplicada na teologia trinitária porque ela coloca em primeiro plano o ser em si (aseidade) e não a interrelação (o ser para, esse ad); nem pode ser utilizada na cristologia, pois não permite pensar o ser-em-outro que é próprio da natureza humana de Cristo. No fundo a definição de Boécio acaba levando o termo “pessoa” a ser aplicado nos séculos sucessivos quase que exclusivamente ao homem. Por outro lado, a matriz “teológica” do uso do termo levava a aplicar ao homem, “imagem e semelhança” de Deus, algumas propriedades divinas: a inteligência, o amor, a liberdade, a espiritualidade; e, particularmente, o reconhecimento de uma sacralidade que é fundamental para reconhecer a dignidade da pessoa humana: esta sacralidade é a base essencial para o desenvolvimento do discurso ético. 8. A dignidade da pessoa humana expressa na Bioética e no Biodireito Estamos vivendo numa época de extraordinário desenvolvimento tecnológico. As novas descobertas mudaram profundamente a “face da terra” e a “face do homem” que vive na terra. Mudou a maneira de viver e de relacionar-se das pessoas; e mudou a vida mesma das pessoas. As novas tecnologias mexeram também com a vida humana, possibilitando, por exemplo, a cura de muitas doenças, a forte redução da mortalidade infantil, o aumento da expectativa da vida. Algumas técnicas nem se sonhavam poucas décadas atrás, como a inseminação artificial, o “bebê de proveta” etc. Mas todo o desenvolvimento tecnológico levantou sérias questões éticas. A ética se baseia, essencialmente, no respeito da pessoa humana. Será que essas tecnologias respeitam sempre a pessoa humana?  Não existe, por acaso, o risco de reduzir a pessoa a um objeto de manipulação?São perguntas que interessam a todas as pessoas,  mas particularmente aos biólogos, médicos, sociólogos, psicólogos, jornalistas, filósofos, teólogos e também aos juristas, que hoje precisam dialogar, numa atitude interdisciplinar, com o seguinte objetivo: colocar o progresso biomédico e tecnológico a serviço da vida humana e de toda a convivência social, e não contra. É dentro deste contexto que nasceram a Bioética e  o Biodireito. O oncólogo Van Rensselaer Potter, que em 1971 criou o termo “bioética”, diagnosticou com seus escritos o perigo que representa para a sobrevivência de todo o ecossistema a separação entre duas áreas do saber, o saber científico e o saber humanista. A clara distinção entre os valores éticos (ethical values), que fazem parte da cultura humanista em sentido lato, e os fatos biológicos (biological facts) está na raiz daquele processo científico-tecnológico indiscriminado que, segundo Potter, põe em perigo a própria humanidade e a própria sobrevivência sobre a terra. O único caminho possível de solução para essa iminente catástrofe é a constituição de uma “ponte” entre as duas culturas: a científica e a humanístico-moral. Em outros termos, a ética não deve se referir somente ao homem, mas deve estender o olhar para a biosféra em seu conjunto, ou melhor, para cada intervenção científica do homem sobre a vida em geral. A bioética, portanto, deve se ocupar de unir a “ética” e a “biologia”, os valores éticos e os fatos biológicos para a sobrevivência do ecossistema como um todo. O “instinto” de sobrevivência não basta: é preciso elaborar uma “ciência” da sobrevivência que Potter identifica com a bioética. É interessante sublinhar o núcleo conceitual que Potter situa na raiz do nascimento da bioética: a necessidade de que a ciência biológica se faça perguntas éticas, de que o homem se interrogue a respeito da relevância moral de sua intervenção na vida. Trata-se de superar a tendência pragmática do mundo moderno, que aplica imediatamente o saber sem uma mediação racional e, muito menos, moral: a aplicação de todo conhecimento científico pode ter, de fato, conseqüências imprevisíveis sobre a humanidade, até por efeito da concentração do poder biotecnológico nas mãos de poucos. Na concepção de Potter, portanto, a bioética se movimenta a partir de uma situação de alarme e de uma preocupação crítica a respeito do progresso da ciência e da sociedade (SGRECCIA, 1996). Em 1978,  a Encyclopedia of Bioethic fala sobre a “bioética” nos seguintes termos: “Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética). Pode-se defini-la como sendo o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.” (Apud PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996, p. 31). Enquanto ética aplicada ao ‘reino biológico’, que designa um universo muito mais amplo do que o da medicina, a bioética abraça a ética médica tradicional e se amplia incluindo: a) os problemas éticos de todas as profissões sanitárias; b) as pesquisas comportamentais, independentemente de suas aplicações terapêuticas; c) os problemas sociais unidos às políticas sanitárias, à medicina do trabalho, à saúde internacional e às políticas de controle demográfico; d) os problemas da vida animal e vegetal em relação à vida do homem. As finalidades da bioética consistem na análise racional dos problemas morais ligados à biomédicina e de sua conexão com as áreas do direito e das ciências humanas. Implicam elas a elaboração de linhas éticas fundamentais sobre os valores da pessoa e sobre os direitos do homem, respeitadoras de todas as confissões religiosas, com fundação racional e metodológica cientificamente adequada. Essas linhas éticas têm também finalidade aplicativa, pela orientação que poderá ser dada, mais que à conduta pessoal, também ao direito condendo e aos códigos deontológicos profissionais atuais e futuros. Os instrumentos de estudo da bioética resultam da metodologia interdisciplinar específica que se propõe examinar de modo aprofundado e atualizado a natureza do fato biomédico (momento epistemológico), ressaltar suas implicações num plano antropológico (momento antropológico) e identificar as ‘soluções’ éticas e as justificativas de ordem racional que sustentam essas soluções (momento aplicativo). A interdisciplinaridade, que é uma das características da Bioética, chega também no campo do direito. A Bioética se articula com o Direito na medida em que esse trata de disciplinar na vida social os procedimentos biomédicos. Do ponto de vista conceitual, o Biodireito desponta como um novo direito de formação muito recente no âmbito da ciência jurídica cujo objeto de análise são princípios e normas jurídicas que tenham por fim imediato criar, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos decorrentes de relações entre indivíduos, entre indivíduos e grupos, e entre esses com o Estado, quando essas relações estiverem vinculadas ao início da vida, ao seu transcurso ou ao seu término. Poder-se-ia, então, dizer que o Biodireito, enquanto campo fronteiriço de análise de normas e princípios específicos vinculados ao controle de ação do campo biomédico, gravita em torno de valores amplamente reconhecidos que impõem como respeito primário o valor da vida, da saúde e da morte. Em regra, esses princípios se apoiam basicamente sobre os mesmos valores definidos pela Boética: o respeito à vida, à dignidade humana, à liberdade individual, à segurança, à proteção da saúde etc. Mas,  dada a impossibilidade de identificar um código de valores éticos de unânime aceitação, o biodireito adquire a legitimidade de opinar e instruir a regulamentação das relações supramencionadas no seio de uma atividade legiferante do Estado. Essa questão, porém, tem suscitado acirrada controvérsia no seio da comunidade científica internacional e críticas por parte de cientistas e organismos vinculados a pesquisas em biotecnologias avançadas, reacendendo a discussão sobre a legitimidade do Estado em intervir de forma unilateral sobre um campo de atuação – no caso a biomedicina – que foge ao alcance do conhecimento do legislador e do próprio aplicador da lei. Diante dessa eventualidade, duas alternativas são evocadas: por um lado, a exigência de que o estado deve assumir por inteiro a responsabilidade de impor e vigiar o acatamento a determinadas normas gerais ou, por outro, conceder aos indivíduos a permissão de aplicar livremente, em cada caso, os princípios éticos que considerem mais apropriados no uso e aplicação manipulativa das tecnologias biomédicas. É evidente que nenhuma dessas alternativas é aceitável. A complexidade do objeto exige a adoção de um conhecimento necessariamente interdisciplinar que deve ser precisado através de um processo de tomada de decisões por especialistas em ciências da vida,  no campo da Bioética e do Direito e por observadores sociais em geral, a fim de que se possa traçar uma regulamentação apropriada e que seja suscetível à ingerência de uma racionalidade ético-jurídica. Dentro do campo do Direito Internacional, por exemplo, a normativa que afeta diretamente o Biodireito é a que se refere aos direitos humanos e mais concretamente ao direito à vida. Nesse sentido convém lembrar que a Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, adotou a Declaração dos Direitos Humanos. Entre outros documentos, de alcance mais limitado, podemos lembrar: a Convenção Européia de Direitos Humanos  e a Convenção Americana, dentro das quais  se destaca o direito à proteção da vida humana, com a  afirmação do que diz o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “ todo indivíduo tem direito à vida” ; e do que diz o art. 6.1. do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos: o “direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito estará protegido por lei”. Outros organismos internacionais foram criados ao longo dos últimos anos, tais como: o Comitê Internacional de Bioética da Unesco, criado em 1991, e que preparou o texto da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos do Homem, publicada em 25 de julho de 1997. No Brasil, as situações que envolverem a manipulação do patrimônio genético humano serão tratadas à luz de normas e princípios do Direito Constitucional, do Direito Civil e do Direito Penal e de algumas normas que tratam disciplinar eventuais conflitos legais relativos à defesa do consumidor (Lei 8.078/90); a Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção e recuperação da saúde, bem como a organização e funcionamento dos serviços correspondentes; a Lei nº 8.501/92, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudos ou pesquisas científicas; a Lei n° 8.974/95, que regulamenta os incisos II e V do § 1° do art. 225 da Constituição Federal e estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados; a Lei n° 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, além de Resoluções do Ministério da Saúde, que tratam de matéria congênere; a Lei de Biossegurança, n. 11.105/05, que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados. Contudo, o Direito Internacional não dispõe de uma eficácia plena no âmbito dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros, no que diz respeito ao cumprimento de tais obrigações, restando ao legislador nacional tanto para as legislações constitucionais quanto para as infraconstitucionais o papel de criar normas e sistemas efetivos que disciplinem e projetem direitos individuais e grupais derivados do progresso e da aplicação do conhecimento tecnológico e científico à vida humana. Nesses termos, o Biodireito exerce um papel fundamental no debate acerca dos princípios que devem servir de parâmetros referenciais à regulamentação legal específica que se vincula às demandas e apreciação científica e ética nas seguintes áreas de intervenção biomédica: manipulação genética em sentido amplo, transplante de órgãos entre seres vivos e post mortem, natureza jurídica do embrião, genoma humano, procriação assistida, recombinação de genes, aborto, eutanásia, propriedade do corpo vivo e morto, direito à saúde, criação e patenteamento de seres vivos e eugenia. O entendimento mais apropriado, que está na base desses princípios jurídicos, reside no comando constitucional que impõe a todos os indivíduos, grupos hegemônicos e ao Estado a obrigação de reconhecer e respeitar a dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 1°, inciso III, da Carta Constitucional, fundamento basilar da República do Brasil e do Estado democrático de Direito. É a partir desse princípio fundamental que devem orientar-se todas as demais normas e princípios da legislação infraconstitucional. Há que se observar o sentido e a significação que adquire a reflexão sobre a melhoria e a realização da espécie humana. A finalidade da ciência é, sem dúvida, contribuir para a melhoria das condições de existência do homem. Mas, as intervenções tecnológicas e científicas não podem ocorrer de acordo com os interesses fixados por uma categoria profissional que controla este ou aquele tipo de conhecimento especializado. Por isso, o estudo e a aplicação de tais conhecimentos vão mais além da área médica ou tecnológica, abarcando outros conhecimentos de áreas como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia, o Direito, a Biologia, a Antropologia, a Ecologia, a Teologia, etc., com observância das diversas culturas e valores. Significativa, a esse respeito, foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador Geral da República a respeito do art. 5 da citada Lei de Biossegurança. Antes da decisão do STF, ocorrida em 30 de maio de 2008, foram realizadas duas audiências públicas de modo a ouvir vinte e dois especialistas no assunto. Estas audiências, a apertada maioria que caracterizou a decisão e as sucessivas polêmicas manifestam, mais uma vez, a dificuldade de conciliar o desenvolvimento tecnológico com as exigências éticas (SILVEIRA, 2009). A Bioética, que nasce desta preocupação, instaura a conjugação de uma exigência e de uma tentativa no sentido de compor fatos e práticas que por sua natureza transcendem os limites da certeza, da garantia e do controle mecanicista sobre os efeitos do uso e da aplicação das tecnociências biomédicas, tornando-se, talvez, o campo mais dinâmico e sugestivo da reflexão filosófica. O Biodireito, por sua vez, surge na encruzilhada dessa reflexão como um mentor equânime encarregado de examinar as diversas questões e agir com conhecimento de causa na elaboração de uma normativa geral que, por um lado, possibilite o progresso e a prática das pesquisas biológicas e biomédicas e, por outro, coíba as experiências julgadas abusivas ou que se revelem como práticas antiéticas (DELLA CUNHA, 2001). Conclusão Cada ciência humana, inclusive o direito, procura responder a perguntas sobre aspectos parciais do ser humano. Mas a questão sobre o homem-pessoa é básica: diz respeito a “quem é o homem”. A partir disso, recebem sentido todos os aspectos parciais que revelam e esclarecem “o que” é o homem. Eis porque este trabalho procurou analisar as condições histórico-intelectuais do período da teologia patrística que possibilitaram o acesso propriamente dito ao conceito de pessoa. Este era fechado ao pensamento grego, que considerava o homem mais de modo abstrato, universal, como espécie, sem valorizar todos os homens tomados individualmente. Nesta visão, o homem não possuía nada de único e duradouro.  Estas condições se encontram só no cristianismo. Percorrendo a história do termo, viu-se que na antigüidade, seja grega, como romana, o termo “pessoa” indicava algo de mutável e não essencial do ser humano: podia ser a mascara de teatro, ou a pessoa gramatical, ou um determinado papel social. No cristianismo primitivo, particularmente com Tertuliano e Hipólito, o termo é utilizado para falar da Trindade. A elaboração do conceito de pessoa se impôs diante da necessidade de “entender” o mistério da Encarnação do Verbo e do mistério da Trindade. Quando ao primeiro, o cristão estava diante de afirmações que, por um lado, apontavam para uma realidade divina e, por outro, para uma realidade humana do mesmo Jesus de Nazaré. E, quanto à Trindade, a dificuldade era ainda  maior, pois era necessário garantir a absoluta individualidade das três pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito Santo), como também a posse da mesma e idêntica natureza divina, evitando, ao mesmo tempo, a interpretação “modalista” (três “modos” de revelação da uma única pessoa divina) e a recusa do monoteísmo. Para isso, aos poucos, chegou-se, com os Padres Capadócios, à distinção entre “essência”, ou natureza (ousia), e pessoa, hypóstasis: ao pé da letra “substrato”, o que está debaixo. Com o primeiro termo indicou-se tudo aquilo que pode ser possuído, ou melhor, participado por parte de vários indivíduos; e, com o segundo, indicou-se a realização única desta posse, a participação do que é comum. Para medir o desenvolvimento que a inteligência fez nesta distinção, é preciso verificar que o termo persona, em latim, e prosopon em grego, indicava exatamente o contrário, a saber, as diferentes identidades que podiam ser atribuídas a um ser humano, nas diferentes situações. Mas, no uso cristão, a partir dos Capadócios, o termo passou a indicar a irredutível identidade e unicidade  de um indivíduo. Depois disso, temos a reflexão de S. Agostinho, cuja contribuição é decisiva seja diante da descoberta da interioridade, como da passagem analógica da concepção de pessoa em Deus à idéia de pessoa aplicada ao homem. No primeiro caso estamos diante da certeza da pessoa como “eu”, centro de decisões livres. Quanto ao segundo, abre-se toda uma sucessiva reflexão, que continua em nossos dias, sobre o homem como pessoa, particularmente fortalecida pela sucessiva definição de Boécio: “Substância individual de natureza racional” (naturae rationalis individua substantia). As conseqüências destas afirmações atingem outras áreas, particularmente a ética e o direito, e encontram contínuas, novas e inesperadas aplicações. Uma significativa aplicação, neste sentido, é aquela que se encontra no âmbito de duas áreas do saber bem atuais: a bioética e o biodireito. “Bioética” é aquele neologismo que diz respeito ao estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar. As ciências da vida e da saúde enfrentam hoje estes grandes problemas: saúde pública, fertilidade, engenharia genética, aborto, doação e  transplante de órgãos, eutanásia, experimentação clínica, meio ambiente etc. Por fim, a Bioética, na sua interdisciplinaridade, chega a articular-se com o Direito na medida em que esse trata de disciplinar na vida social os procedimentos biomédicos. O Biodireito desponta como um novo direito de formação muito recente no âmbito da ciência jurídica cujo objeto de análise são princípios e normas jurídicas que tem por fim imediato criar, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos decorrentes de relações entre indivíduos, entre indivíduos e grupos, e entre esses com o Estado, quando essas relações estiverem vinculadas ao início da vida, ao seu transcurso ou ao seu término. A Legislação Internacional e Nacional já começaram a lembrar princípios e estabelecer normas de comportamento, a respeito. Os problemas emergentes neste início de século e de milênio exigem, também por parte dos cultores da ciência jurídica, uma atenção especial diante do desenvolvimento da tecnologia, com seus questionamentos no campo da Ética, da Bioética e do Biodireito.  Para a solução destes problemas, porém, não se pode esquecer a descoberta do valor da pessoa humana em nossa cultura: o que foi objetivo deste trabalho. O esquecimento deste valor, com suas implicações também jurídicas, seria uma volta ao passado, onde o homem era reconhecido apenas como espécie e não como indivíduo: ou pior, considerando as atuais possibilidades tecnológicas, colocaria em risco a mesma existência da espécie humana e até do planeta Terra.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/a-formulacao-do-conceito-de-pessoa-no-iv-e-v-seculo-e-sua-atual-aplicacao-na-bioetica-e-no-biodireito/
Crédito de carbono
A preocupação com o meio ambiente tem sido cada vez maior, principalmente após as modificações ocasionadas pela revolução industrial, em que se verifica que o maior prejudicado foi justamente o meio ambiente, pois a produção em larga escala aliada a criação de novas tecnologias valem-se da utilização de combustíveis fósseis, carvão petróleo e gás natural, cuja a queima acarreta a emissão de alguns gases prejudiciais ao meio ambiente, como o dióxido de carbono, metano e o óxido nitroso. A grande preocupação está em ter um meio ambiente sustentável onde se atenda as necessidades do presente sem comprometer a subsistência das gerações futuras. E para alcançar um meio ambiente sustentável é necessário a união de todas as Nações em torno desse objetivo, defender e preservar o meio ambiente. O presente trabalho tem por objetivo demonstrar as políticas mundiais adotadas, até o presente momento, para restringir a emissão de gases de efeito estufa, aliado à finalidade de desenvolver medidas a possibilitar a sustentabilidade do planeta, de tal forma a preservar o crescimento econômico e assegurar que os recursos naturais sejam preservados para as gerações futuras. Com maior ênfase ao comércio do crédito de carbono.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO Com a finalidade de reduzir custos, aumentar lucros, no decorrer do século XIX e XX houve uma “revolução” industrial, onde ocorreu a mecanização dos sistemas com a produção em larga escala. Com o surgimento das fábricas, nasceu uma nova realidade para o homem, com modificações tanto no âmbito econômico, político, social, como no setor trabalhista e ambiental. Dentre as modificações ocasionadas pela revolução industrial, destaca-se que o meio ambiente foi o mais prejudicado, pois a produção em larga escala aliada a criação de novas tecnologias valem-se da utilização de combustíveis fósseis, carvão petróleo e gás natural, cuja a queima acarreta a emissão de alguns gases prejudiciais ao meio ambiente, como o dióxido de carbono, metano e o óxido nitroso. A concentração dos gases supracitados na atmosfera intensifica o chamado efeito estufa, que funciona como uma capa protetora que retem o calor solar, de tal forma a manter constante a temperatura terrestre. O efeito estufa é de suma importância para a vida na terra, pois caso contrário não haveria possibilidade de conviver com a baixa temperatura. Contudo, o excessivo aumento da concentração dos gases, como o dióxido de carbono, na atmosfera, ocasiona um super aquecimento e não apenas a manutenção da temperatura, o que pode acarretar o degelo das calotas polares, bem como alterações topográficas e ecológicas do planeta, como poluição e escassez da água, aumento do nível do mar, tempestades e furacões mais frequentes. A preocupação com a modificação do meio ambiente tem-se manifestado desde o inicio das atividades industriais, todavia, somente em 1972 ocorreu a primeira reunião mundial, em Estocolmo, com o escopo de debater o tema. A Declaração de Estocolmo (Declaração das Nações Unidas sobre o meio Ambiente Humano), resultou em um documento com Prembulo de 7 pontos e 26 princípios e em um conjunto de 109 recomendações centradas em três políticas: as relativas à avaliação do meio ambiente mundial, o denominado Plano Vigia, as direcionadas à gestão do meio ambiente e as relacionadas às medidas de apoio (como a informação, educação e formação de especialistas). Desde então, as nações mundiais tem-se mostrado cada vez mais interessada em encontrar uma solução para tal problema, pois a proteção ao meio ambiente é condição necessária e indispensável à manutenção da vida na terra, e os recursos ambientais não são infinitos e nem sempre renováveis, como acreditam alguns. A grande preocupação está em ter um meio ambiente sustentável onde se atenda as necessidades do presente sem comprometer a subsistência das gerações futuras. Passados vinte anos da Conferência de Estocolmo, devido a ocorrência de grandes catástrofes ambientais, realizou-se outra Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a RIO 92. Desta conferência resultou a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança de Clima, que estabeleceu regime jurídico internacional para alcançar a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, em níveis que impeçam a inerferência antrópica perigosa no sistema climático e a Convenção sobre a diversidade biológica. Outro resultado da Conferência RIO 92 foi a subscrição de três documentos em que se fixaram princípios normativos do direito internacional do meio ambiente para o futuro: a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Declaração de Princípio sobre as Florestas e a Agenda 21 que significa um conjunto de realizações que devem, obrigatoriamente ser empreendidas pelos Estados, tendo em vista o século XXI. Na Declaração do Rio de Janeiro foram estabelecidas regas como: o princípio do poluidor-pgador, o da prevenção, a integração da proteção do meio ambiente em todas as esferas da política e das atividades normativas dos Estados, a aplicação dos estudos de impacto ambiental, bem como a consagração da “internalização de custo exterior”. O texto da convenção, em seus preâmbulo, busca “internalizar” os custos sociais e ambientais das emissões de gases, reconhecendo quem são os principais poluidores e atribuindo-lhes maiores responsabilidades no combate ao efeito estufa e sua responsabilidade sobre as consequências desta mudança em outros países: “Observando que a maior parcela das emissões globais, históricas e atuais, de gases de efeito estufa é originária dos países desenvolvidos, que as emissões per capita dos países em desenvolvimento ainda são relativamente baixas e que a parcela de emissões globais originárias dos países em desenvolvimento crescerá para que eles possam satisfazer suas necessidades sociais e de desenvolvimento,… Reconhecendo também a necessidade de os países desenvolvidos adotarem medidas imediatas, de maneira flexível, com base em prioridades bem definidas, como primeiro passo visando a estratégias de resposta abrangentes em níveis global, nacional e, caso assim concordado, regional que levem em conta todos os gases de efeito estufa, com devida consideração a suas contribuições relativas para o aumento do efeito estufa, (…) Afirmando que as medidas para enfrentar a mudança do clima devem ser coordenadas, de forma integrada, com o desenvolvimento social e econômico, de maneira a evitar efeitos negativos neste último, levando plenamente em conta as legítimas necessidades prioritárias dos países em desenvolvimento para alcançar um crescimento econômico sustentável e erradicar a pobreza…” Por essa Convenção, procurou responsabilizar cada país por sua ação danosa ao meio ambiente, criando mecanismos de prevenção da degradação do meio ambiente e de recuperação dos danos causados. A idéia é evitar as “externalidades negativas”, ou seja, que a ação danosa de um agente acabe por gerar conseqüências para toda a sociedade. O Princípio 16 da Declaração do Rio determinava que os Estados estariam obrigados a adotar medidas legais tendentes a fazer com que os custos acrescidos e derivados da proteção ambiental,que se encontram embutidos na produção de bens e serviços e tendem onerar a sociedade, deveriam deixar de serem tidos como custos externos, suscetíveis de serem tolerados e pagos por toda sociedade, para serem ressarcidos diretamente pela fonte poluidora, que, assim, internalizaria esses custos. Os países industrializados comprometeram-se a liderar a tomada de atitudes para modificar a tendência de alteração do clima do planeta. Ainda, assumiram o compromisso de, até 2000, reduzir as emissões de gases de efeito estufa aos níveis da década de 1990. A Convenção Quadro de 1992, todavia, não estabeleceu obrigações e índices de redução de emissões dos gases de efeito estufa, e por isso, muitos países passaram a adotar suas próprias medidas para redução. Verificou-se, então, que a adoção de medidas isoladas não seria suficiente para alcançar o objetivo pleiteado. Nesse sentido, a fim de alcançar os objetivos firmados na Convenção de 1992, foi adotado o protocolo de Quioto em 1997. Neste documento, novamente, se busca a não produção de “externalidades negativas ambientais”, mantendo-se a responsabilização dos agentes poluidores e acirrando-se os compromissos com a preservação do meio ambiente. O presente trabalho tem por objetivo demonstrar as políticas mundiais adotadas, até o presente momento, para restringir a emissão de gases de efeito estufa, aliado à finalidade de desenvolver medidas a possibilitar a sustentabilidade do planeta, de tal forma a preservar o crescimento econômico e assegurar que os recursos naturais sejam preservados para as gerações futuras. Com maior ênfase ao comércio do crédito de carbono. 2 PROTOCOLO DE QUIOTO O protocolo de Quioto, que determinou metas para a redução das emissões de gases que agravam o efeito estufa, foi aberto para assinatura em março de 1998 e entrou em vigor apenas no dia 16 de fevereiro de 2005, pois havia a necessidade do acordo ser ratificado por pelo menos 55 partes da Convenção-Quadro, sendo que os países assinantes deveriam representar no mínimo 55% das emissões totais do dióxido de carbono. A demora para entrar em vigor do referido protocolo ocorreu pelo fato dos Estados Unidos, responsável pela emissão de 36% das emissões totais, embora signatário da Convenção, ter recusado a ratificação da Convenção. Apenas com a ratificação da Russia, em 2004, responsável por emitir 17,4% é que foi possível a entrada em vigor do protocolo, pois assim atingiu-se o percentual de 60% das emissões totais de dióxido de carbono dos países industrializados, contabilizados na década de 90. O protocolo de Quioto é divido em duas partes, as Partes ANEXO I e Partes Não Anexo I. No Anexo I encontram-se os países altamente desenvolvidos e historicamente poluentes, enquanto na Parte Não Anexo I são os países que ainda estão em fase de desenvolvimento de seu parque industrial. Inicialmente, estabeleceu-se que apenas os países desenvolvidos é que se comprometeriam em reduzir suas emissões, enquanto os países em desenvolvimento não estariam sujeitos a atingirem metas de redução dos gases de efeito estufa. Art. 3.1 do Protocolo de Quioto: “As Partes incluídas no Anexo I devem, individual ou conjuntamente, assegurar que as emissões antrópicas agregadas, expressas em dióxido de carbono equivalente, dos gases de efeito estufa listados no Anexo A não excedam suas quantidades atribuídas , calculadas em conformidade com seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões descritos no Anexo B e de acordo com as disposições deste Artigo, com vistas a reduzir suas emissões  totais desses gases em pelo menos 5 por cento abaixo dos níveis de 1990 no período de compromisso de 2008 a 2012.” Idealizou-se, primeiramente, que os países industrializados ficariam sujeitos ao pagamento de uma exação sobre o montante “não reduzido” dos gases de efeito estufa. Notou-se, contudo, que tal efeito afetaria a relação custo/benefício no setor produtivo e que, poderia ser transferido ao consumidor final.[1] Verificou-se, ainda, que aos países que não alcançassem a sua meta de redução, poderia lhe ser aplicado tal exação e com isso o simples pagamento das aludidas taxas não resultaria na efetiva redução dos gases de efeito estufa.[2] Devido as dificuldades encontradas para o cumprimento da Convenção por parte dos países industrializados o próprio Protocolo criou mecanismos de flexibilização para o seu fiel cumprimento. 2.1 Mecanismos de Flexibilização O protocolo de quioto estabeleceu que o país que não conseguir obter internamente os índices necessários de redução de emissões pode compensar com reduções identificadas em outros países, da seguinte forma: pelo Comércio de Emissões; pela Implementação conjunta e ainda pelos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo. O comércio de Emissões está previsto no artigo 17 do Protocolo de Quioto e consiste no fato de que os países desenvolvidos que emitirem gases de efeito estufa em quantidade inferior a máxima prevista no protocolo têm a faculdade de vender o excesso de redução à outro país desenvolvido. O comércio de emissões é celebrado apenas entre os países do Anexo I. “ARTIGO 17 A Conferência das Partes deve definir os princípios, as modalidades, regras e diretrizes apropriados, em particular para verificação, elaboração de relatórios e prestação de contas do comércio de emissões. As Partes incluídas no Anexo B podem participar do comércio de emissões com o objetivo de cumprir os compromissos assumidos sob o Artigo 3. Tal comércio deve ser suplementar às ações domésticas com vistas a atender os compromissos quantificados de limitação e redução de emissões, assumidos sob esse Artigo.” A Implementação Conjunta, mecanismo disposto no artigo 6 do Protocolo, possibilita um país do Anexo I financiar projetos de redução de gases em outro país desenvolvido, também do Anexo I. “1. A fim de cumprir os compromissos assumidos sob o Artigo 3, qualquer Parte incluída no Anexo I pode transferir para ou adquirir de qualquer outra dessas Partes unidades de redução de emissões resultantes de projetos visando a redução das emissões antrópicas por fontes ou o aumento das remoções antrópicas por sumidouros de gases de efeito estufa em qualquer setor da economia, desde que: (a) O projeto tenha a aprovação das Partes envolvidas; (b) O projeto promova uma redução das emissões por fontes ou um aumento das remoções por sumidouros que sejam adicionais aos que ocorreriam na sua ausência; (c) A Parte não adquira nenhuma unidade de redução de emissões se não estiver em conformidade com suas obrigações assumidas sob os Artigos 5 e 7; e (d) A aquisição de unidades de redução de emissões seja suplementar às ações domésticas realizadas com o fim de cumprir os compromissos previstos no Artigo 3.” O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, originário de proposta brasileira, está previsto no artigo 12 do protocolo e permite que um país do Anexo I financie projetos de redução em países em desenvolvimento (não Anexos I) como forma de cumprir parte de seus compromissos. “ARTIGO 12 1. Fica definido um mecanismo de desenvolvimento limpo. 2. O objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir às Partes não incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para o objetivo final da Convenção, e assistir às Partes incluídas no Anexo I para que cumpram seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões, assumidos no Artigo 3”. Para Marli Teresinha Deon Sette e Jorge Madeira Nogueira[3] os mecanismos de flexibilização acarretam um menor custo/benefício por empresa/país e menor interferência do poder geral, além de representarem uma forma de dupla cooperação, na medida em que eles permitem negociação em que as partes envolvidas obtém o que lhes interessa, que varia de acordo com o instrumento utilizado. Para o Brasil, o mecanismo de flexibilização mais interessante é o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), o qual possibilita que países desenvolvidos invistam em tecnologia menos danosa ao meio ambiente, em eficiência energética, em fontes alternativas de energia, possibilitando, dessa forma que o Brasil alcance um desenvolvimento sustentável. Por ser o MDL o único mecanismo de flexibilização no Brasil, esse será o objeto do presente estudo. 3 MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO (MDL) O mecanismo de Desenvolvimento Limpo, que possibilita aos países em desenvolvimento negociarem com os países desenvolvidos, cada tonelada de CO2 retirada ou não emitida na atmosfera, pode envolver entidades privadas ou particulares. A finalidade do MDL é alcançada quando os países em desenvolvimento reduzem a emissão de gases de efeito estufa ou aumentam a remoção de CO2 da atmosfera, mediante o investimento de países industrializados naqueles, de tecnologias mais eficientes, substituição de fontes de energia fósseis por renováveis, florestamento e reflorestamento, entre outras atividades. A cada atividade de projeto de MDL serão atribuídas quantidades de redução de emissão de gases de efeito estufa (GEE) e ou remoção de CO2, que constituem as chamadas Reduções Certificadas de Emissões. As Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) correspondem a créditos que podem ser utilizados pelos países do Anexo I (desde que tenham ratificado o Protocolo de Quioto) como forma de cumprimento parcial de suas metas de redução de emissão de gases de efeito estufa. Os países participantes do MDL podem valer-se das Reduções Certificadas de Emissões para comercializarem com a expectativa valorização futura e realização de lucros. Já os países desenvolvidos podem utilizar as RCEs para cumprir suas metas de redução de emissões e as ONGS pode ter como objetivo adquirir tais reduções apenas como forma de retirá-las do mercado, com fins estritamente ambientais. A idéia do MDL, originariamente proposta pelo Brasil, trouxe outra abordagem para a definição das metas de mitigação e um caráter punitivo para os contribuintes do fundo. Ademais, segundo a proposta, deve-se considerar não apenas as emissões de GEE realizadas no presente, mas também sua efetiva contribuição para o aumento da concentração atmosférica desses gases, contendo a preocupação com a responsabilidade histórica pela emissão de cada país.[4] O caráter punitivo do MDL representa segundo o princípio do poluidor-pagador, o fato de que os agentes geradores de poluição devem arcar com o custo externo associado ao dano ambiental causado. De modo que as partes que não cumprissem suas metas de mitigação deveriam contribuir para o fundo com um valor monetário por tonelada de carbono emitido atém dos limites extabelecidos.[5] Os MDLs devem cumprir três requisitos: a) participação voluntária aprovada por cada parte envolvida; b) benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo relacionados com a mitigação da mudança do clima, e c) reduções de emissões que sejam adicionais às que ocorreriam na ausência da atividade certificada do projeto. Não pode haver qualquer tipo de coação entre as partes para participarem do mecanismo de desenvolvimento limpo, a participação deve ser voluntária, a qual caberá a cada parte dizer se as atividades desenvolvidas são ou não de livre-arbítrio. Quando o artigo 12 do Protocolo dispõe que os benefícios das atividades de projeto de MDL devem ser reais, mensuráveis e de longo prazo significa que as partes deverão comprovar os resultados esperados pelo projeto. E quanto à adicionalidade, o projeto de MDL deve demonstrar que tais benefícios buscados só ocorreram ou irão ocorrer por consequência da implantação do MDL e não teriam como acontecer naturalmente. O maior problema enfrentado atualmente com o mecanismo de desenvolvimento limpo é justamente com a fase de comercialização das reduções certificadas de emissão. 4 CRÉDITOS DE CARBONO As reduções de emissão ou a remoção do dióxido de carbono da atmosfera advindas da utilização ou financiamento dos mecanismos de flexibilização resultam em créditos de carbono, tecnicamente denominados de Reduções de Certificados de Emissão,(RCE) em que uma unidade de RCE equivale a uma tonelada métrica de dióxido de carbono a menos na atmosfera. Para atestar a efetividade da redução das emissões decorrentes do mecanismo de desenvolvimento limpo, bem como acompanhar todo o projeto é necessário a apreciação de um Conselho Executivo. No Brasil, foi criada pelo Decreto de 07/07/1999, alterado pelo Decreto de 10/01/2006, a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, com o objetivo de articular as ações do governo decorrentes da Convenção-quadro das Nações Unidas sobre a mudança do clima e dos instrumentos subsidiários de que o país seja parte. O Conselho Executivo emite as Reduções Certificadas de Emissões, créditos de carbono, sempre que ocorre a redução ou remoção de gases de efeito estufa. Com as RCEs os países partes do Anexo I, países industrializados conseguem cumprir as suas metas de redução de emissão antrópicas e assim encontram-se de acordo com o Protocolo de Quioto. Os projetos de MDL devem obedecer três fases: a) configuração; b) registro; c) monitoramento. Na primeira etapa, de configuração, será estabelecida a adicionalidade, a linha base e a metodologia de monitoramento[6]. Na linha base apresenta-se o cenário de emissões na ausência de projeto. O registro constitui fase posterior à aceitação da linha base, pelo Conselho Executivo, onde será considerado como condição necessária para verificação, certificação e emissão. Após o registro, tem-se o monitoramento que ocorrerá conforme as especificações determinadas na fase de configuração e irá medir se os resultados previstos estão sendo alcançados. Cumpridas as fases supracitadas e verificada a redução dos gases de efeito estufa ou o sequestro de carbono conforme o previsão do projeto, ocorrerá a certificação, que possibilitará aos países do Anexo I o cumprimento de suas metas. Muitos indagam sobre a real efetividade do mecanismo de desenvolvimento limpo, pois a idéia central do protocolo é a cooperação de todos os países na redução de emissão de gases causadores do efeito estufa. Ocorre que os países industrializados, ao invés de buscarem formas para tentar reduzir as emissões desses gases emitidas por eles, os maiores responsáveis, optam por uma solução mais simples que consiste na compra, já que o dinheiro não é problema, de certificados onde outros países buscaram a solução para a redução e não propriamente os maiores causadores do problema. Para Walter Porto-Gonçalves o protocolo de quioto ofereceu, na verdade, um salvo conduto aos países do Norte, ao possibilitar a comercialização de direitos de emissão, em vez de buscarem a redução de emissão de CO2 e de gases de efeito estufa[7]. Rangel Barbosa e Patrícia Oliveira[8] também lançam crítica ao MDL: “Infelizmente, o MDL é um mecanismo de mercado que se rege pela lógica do mesmo. Não se preocupa com a preservação ou proteção ambiental. Trata-se apenas da venda de um direito de poluir, colocado no mercado, pelos países em desenvolvimento, com vistas a conferir aos países industrializados uma redução nos custos de suas poluições.” As críticas supracitadas apresentam sem dúvidas, grande fundamentação, conquanto importante ressaltar que o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo contribui sim, ainda que não da melhor forma, na redução de emissão de gases de efeito estufa, ao possibilitar o investimento de países industrializados em países sem capital para tanto para obtenção da sustentabilidade. Assim, tem-se que o MDL não exonera os países do Anexo I do compromisso de reduzirem suas emissões mediante a compra de créditos de carbono. A definição jurídica de “bem ambiental”está adstrita não só a tutela da vida da pessoa humana, mas principalmente à tutela da vida da pessoa humana com dignidade. O mercado de carbono enfrenta muitos riscos, como a falta de regulamentação pelo Brasil, ausência de normas de tributação, oscilação no preço das RCEs, aumento de custos previstos para a implementação do projeto. Outra questão divergente referente aos créditos de carbono refere-se a sua natureza jurídica. 5 DA NATUREZA JURÍDICA DAS REDUÇÕES CERTIFICADAS DE EMISSÕES Há doutrinadores que consideram as Reduções Certificadas de Emissões como bens incorpóreos, em que pese não existirem materialmente, apresentam valor econômico, e por isso, a sua negociação seria consubstanciada através da cessão de direitos. Outros tratam as RCEs como derivativos (ativo financeiro), cuja transação ocorreria mediante contrato de hedge regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários.[9] A corrente que entende que as RCEs são derivativos considera que a transação seria de um contrato de hedge, dado ao fato que o contrato tem por objetivo principal reduzir o risco inerente à exposição às variações no valor de mercado ou no fluxo de caixa de qualquer ativo, passivo ou transação futura, já que as empresas do Anexo I sujeitas à redução de emissões de dióxido de carbono, ao adquirirem RCEs, esteriam protegidas de um custo exorbitante para a implementação de uma atividade de projeto elegível para MDL em seu território.[10] Há projeto de lei no. 3552/04 no Brasil, que atribui às Reduções Certificadas de Emissões a natureza de valor mobiliário, sendo posteriormente alterada para ativo financeiro. A atribuição da natureza de ativo financeiro, dada pelo projeto de lei supracitado, justifica-se dado ao fato de ser atribuído à Comissão de Valores Mobiliários – CVM a competência de regulamentar o mercado de RCEs, de modo a trazer segurança para os investidores e assim atrais mais compradores. 6. CONCLUSÃO A proteção ao meio ambiente é uma questão preocupante e de interesse geral, bem como de responsabilidade de todos, vez que várias atividades econômicas geram impactos sobre o meio ambiente. O uso desenfreado de recursos naturais tem ocasionado danos em dimensões alarmantes ao meio ambiente, a consciência de que esses recursos não são infinitos despertou a tempo no cenário internacional a necessidade urgente da criação e implantação de medidas, que assegurem às gerações futuras a possibilidade de desfrutarem dos recursos naturais disponíveis à sociedade no presente. A preocupação constante sobre as modificações no meio ambiente ocasionou uma mobilização mundial, na busca de soluções para os problemas ambientais. O Protocolo de Quioto, na tentativa de concretizar as discussões dos países sobre as possibilidades de redução de gases de efeito estufa, sugeriu mecanismos de flexibilização a fim de serem atingidos a redução e sequestro de carbono da atmosfera, no   nível buscado. Dentre os mecanismos de flexibilização, o de maior enfase para o Brasil é o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), por ser o único aplicável às Partes Não-Anexo I, para os países em desenvolvimento que tenham ratificado o Protocolo de Quioto. A finalidade do MDL é alcançada quando os países em desenvolvimento reduzem a emissão de gases de efeito estufa ou aumentam a remoção de CO2 da atmosfera, mediante o investimento de países industrializados naqueles, de tecnologias mais eficientes, substituição de fontes de energia fósseis por renováveis, florestamento e reflorestamento, entre outras atividades. Com isso, são emitidas as Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) que são adquiridas pelos países desenvolvidos para cumprirem suas metas de redução frente o protocolo de quioto. Em que pese as severas criticas a respeito do MDL, dado o fato do meio ambiente não poder ser visto como matéria de barganha a negociações de cunho econômico, esse tipo de mecanismo de flexibilização tem gerado ainda efeitos positivos, pois as metas de redução e sequestro de CO2 da atmosfera tem alcançado as metas impostas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/credito-de-carbono/
A função da bioética na sociedade de risco
Com os avanços da biotecnologia, a bioética assume papel essencial na sociedade contemporânea. A presença e a transmissão de conhecimento na sociedade moderna tornam o conhecimento um bem facilmente acessível, bem como as tecnologias que exercem papel sob o meio ambiente e o ser humano. As conseqüências disso para a sociedade são o aumento dos riscos dada a complexidade e amplitude de atuação da biotecnologia. É importante frisar conceitos claros da bioética e contribuir com o desenvolvimento de legislações e pesquisas na área das tecnologias da vida.
Biodireito
Introdução Objetivando-se verificar, nos últimos tempos, um crescente despertar de consciência ética em relação a diversos tipos de desafios levantados pelos avanços científicos e pelo progresso econômico, a humanidade começa a perceber que nem todas as descobertas científicas e nem todas as vantagens tecnológicas trazem somente benefícios para a sociedade. O desenvolvimento tecnológico e o progresso na seara biomédica fazem com que surjam novos desafios que a tradicional ética médica não consegue responder. Faz-se necessário, um saber mais interdisciplinar e global, onde haja a junção de todas as ciências do saber de forma sistêmica. A diversidade existente na ciência é intrínseca, complexa, sociológica e ética, a mesma tem a necessidade de um pensamento apto a considerar uma complexidade, questões essas que movem a humanidade.  Indo além, tem-se que possuir o cuidado, pois o crescimento científico e tecnológico, se funda numa relação antropocósmica, o que não significa a equalização de todos os seres, nem o respeito da natureza. Dessa maneira, a ciência existe para descobrir a natureza e promover a vida, além de benefícios, cuidados e a saúde da humanidade, em síntese, a mesma deve beneficiar a vida se enquadrando nos critérios da justiça e respeitando a cidadania dos povos. Portanto, em torno da justiça deve gravitar diversos saberes em mútua colaboração e sem conflitos, gerando uma forma sistêmica, ordenada e circular. Por fim, percebe-se que a bioética vem crescendo e começa ser estudada e debatida, não somente no meio acadêmico, mas também pela sociedade em geral, sob o influxo dos meios de comunicação social. Assim, esta-se frente a uma realidade complexa a qual interfere em valores e fatos nas diversas searas do conhecimento, a qual dificilmente poderá ser enfrentada com respostas superficiais. Nesse artigo, pretende-se enfrentar a idéia examinar as interfaces conceituais e históricas no campo da Bioética, além de verificar as formas e inter-relações entre a biotecnologia e os avanços tecnológicos trazidos pela mesma. E, por fim, importante se faz a análise da sociedade de risco dentro dessas evoluções sociais emergentes na sociedade contemporânea. 1. Conceito e Evolução Histórica da Bioética O surgimento do termo “Bioética ocorreu em 1972, utilizado pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter com a publicação da obra Bioethics – a bridge to the future”[1], e ganha atualmente grande importância na área do Biodireito e sua normatização referente a vida humana.   Atualmente, a bioética ganha proporções tamanhas em diversas áreas do conhecimento humano, tornando, assim, difícil a sua conceituação. Porém, Léo Pessini e Christian P. Barchifontaine[2] trazem em seu livro a explicação da terminologia encontrada na Enciclopédia: “Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios [vida] e ethike [ética]. Pode-se defini-la como sendo o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.” (Encyclopedia of bioethics. 2. ed., v. 1, p. XXI, 1995). Mostra-se pertinente, também, a visão histórica da bioética realizada por André Soares e Walter Piñeiro[3]: “Podemos dividir a história da bioética em três fases. A primeira fase vai de 1960 a 1977, período em que surgem os primeiros grupos de médicos e cientistas preocupados com os novos avanços científicos e tecnológicos. Nesse mesmo período formam-se os principais centros de estudos de bioética: o Kennedy Institute e o Hastings Center, nos Estados Unidos, e o Institut Borja de Bioética, na Europa. A segunda fase vai de 1978 a 1997, período em que se publica o Relatório Belmont, que provoca um grande impacto da bioética clínica; a primeira fecundação in vitro é bem-sucedida; importantes progressos são realizados pela engenharia genética e são criados o Grupo Internacional de Estudo em Bioética [GIEB], a Associação Européia de Centros de Ética Médica, a Associação Interdisciplinar José Acosta, o Comitê Consultivo Nacional de ética da França e o Convênio Europeu de Biomedicina e Direitos Humanos. A terceira fase, que ainda não está terminada, teve seu início em 1998. Neste período, a clonagem de animais, a descoberta quase total do genoma humano e a crescente falência dos sistemas de saúde pública dos países pobres vêm se apresentando como alguns dos temas de destaque nos debates acerca dos conflitos de valores.” Um marco na história da bioética ocorreu nos Estados Unidos, na década de 70, com a criação do Belmont Report (Relatório Belmont), sendo sendo que este trouxe inserido em seu texto três princípios fundamentais da bioética, como bem explica Joaquim Clolet e Anamaria Feijó[4]: “O Relatório de Belmont, elaborado por uma Comissão oficial constituída pelo Congresso Americano e divulgado em 1978, identificava três princípios ligados à pesquisa com os seres humanos: (a) o respeito pelas pessoas, que englobava o respeito à autonomia da pessoa e o cuidado com aqueles que tinham sua autonomia diminuída; (b) o princípio da beneficência, que englobava não causar danos e minimizar os riscos maximizando os benefícios; (c) o princípio da justiça, que buscava igual tratamento para todos os iguais. Esse documento propunha uma nova linha metodológica de reflexão e ação a partir de princípios.” A comunidade científica deve sempre lembrar que a vida humana não pode ser desrespeitada, mesmo quando o objetivo é o de melhorar sua qualidade de vida. Por isso, foram criados princípios para que sejam tomados como guia no caminho do tratamento mais ético quando diz respeito a vida. O princípio da autonomia é o que se refere ao conhecimento adquirido pelo ser humano e sua condição de avaliar qual a melhor ação a ser tomada sobre si e sua saúde, nesse sentido Francesco Bellino[5] leciona que o princípio da autonomia “estabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do paciente e legitima a obrigatoriedade do consentimento livre e informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto.” Quanto ao princípio da beneficência é o relativo aos resultados obtidos para com a saúde, onde deverá buscar não causar danos e aumentar os benefícios diminuindo os possíveis riscos. Esse é um dos pontos mais importantes no estudo da bioética, pois a vida humana não pode ficar submetida a experimentos que não apresentem um índice de certeza elevado, caso contrário estará desrespeitando e ferindo a dignidade humana. Por fim, o princípio da justiça, que garante que todo e qualquer ato realizado sob a vida humana deve oferecer igualdade a possibilidade de tratamento, como orienta o autor[6]: “O princípio da Justiça está associado à equidade da distribuição dos bens e benefícios em relação ao exercício da medicina ou área da saúde. É um princípio de caráter social […].” O respeito ético para com a vida humana não diz respeito apenas a um indivíduo ou a um grupo, mas sim a toda espécie humana, incondicionalmente. Patrícia B. Silva destaca que[7]: “O caráter ético da essência humana se formata segundo os valores que são sintetizados no cotidiano prático da vida activa. Por caráter ético deve se compreender o pensamento e ação do sujeito em busca de uma razão de existência que seu tempo e espaço significam como moralmente ideais.” Com o desenvolvimento da tecnologia, que sofre grande ascendência na sociedade moderna, faz-se necessária a constante presença de estudos éticos para que a sociedade contemporânea possa apresentar respostas aos diversos tipos de questionamentos e possibilidades trazidas pelo conhecimento tecnocientífico. 2. Evolução Biotecnológica frente a Bioética A humanidade sempre buscou aperfeiçoar seus instrumentos e ferramentas e talvez seja esse o grande motivo de sua dominância no Meio Ambiente. Atualmente vive-se um momento histórico de grandes avanços tecnológicos, principalmente na área da vida, voltada ao corpo humano. Não é raro se ouvir falar de novos equipamentos e tratamentos para as mais variáveis doenças, que até então causavam temor nas sociedades. A ideia de evolução deve estar ligada a normas e princípios garantidos à vida humana, e que jamais deverão ser desrespeitados. Como bem destaca Fermin R. Schramm[8]: “Historicamente, a bioética nasce como resposta da cultura contemporânea às implicações morais das tecnociências biomédicas. Ela pode, portanto, ser considerada sob o aspecto dos movimentos culturais e sociais, surgidos nas sociedades democráticas e pluralistas do Ocidente, tendo-se espalhado, desde então, aos quatro cantos do planeta. Além de movimento cultural, ela faz parte do campo das Éticas aplicadas, sendo talvez a mais importante dentre elas, visto que se aplica aos dilemas morais que surgem no exercício das profissões biomédicas e sanitárias. Exemplificando para o campo da Medicina, atualmente, neste campo, atuam dois elementos principais: a) a evolução do conhecimento biomédico e a importância crescente das tecnologias que dele surgem, por um lado; b) o incremento quantitativo e qualitativo das necessidades e dos desejos dos cidadãos em termos de saúde. A combinação desses elementos tem transformado profundamente tanto a relação médico-paciente quanto a relação saber-fazer biomédico e sociedade durante as três últimas décadas, sendo que o futuro dessas relações é dificilmente previsível.” Com a evolução tecnológica advinda da ciência que se acentuou no último século, é imprescindível que elas estejam sendo orientadas pela ética, para que a vida humana seja sempre respeitada. Sabe-se que, com os avanços da ciência, novos problemas éticos aparecerão e necessitarão de compreensão e desenvolvimento conceitual e principalmente jurídico (Biodireito), como por exemplo a eutanásia[9]. Vale a ressalva feita por Marco Segre e Fermin Roland Schramm[10]: “Os avanços no campo das biotecnologias, mormente no que se refere ao aperfeiçoamento das técnicas tradicionais da reprodução humana e, sobretudo, no âmbito das mais recentes biotécnicas de manipulação genética, geram profundas polêmicas, inclusive de tipo moral e ético. Em nosso entender, por serem essencialmente de tipo negativo, tais polêmicas são de tipo moral e muito mais reflexo de temores quanto às possibilidades de alteração do status quo na condição humana – que o exercício da liberdade responsável abre – do que decorrência de ponderações éticas sobre vantagens e riscos de sua utilização.” Observa-se a importância social dos avanços tecnológicos advindos da ciência, principalmente os relativos a vida humana, porém toda e qualquer evolução deverá primar pela melhora na qualidade de vida, caso contrário acabará por perder sua função, nesse sentido Simone B. de Oliveira[11] esclarece que a bioética é, pois, a ética aplicada a novos problemas surgidos no bio-reino, sem esquecer que a função primordial da ética é a de evitar o mal e preveni-lo, antes mesmo de promover o bem. Deve-se ter em vista que em uma sociedade, todos os indivíduos estão interagindo entre si e, com isso, afetando o modo de viver um do outro, sendo assim, devem esses ter responsabilidade pela vida alheia, numa espécie de dever ético mútuo. Os avanços tecnológicos que propiciam a biotecnologia a constante evolução devem ocorrer na tentativa de combater um mal pré-existente, antes mesmo de qualquer ação em pró da promoção do bem. Para isso, é necessário que ao serem desenvolvidas novas tecnologias se façam estudos aprofundados para que possam apresentar certezas de que seus resultados combaterão um mal propiciando, assim,  melhoras na condição humana. Os princípios da bioética, também conhecidos como “trindade bioética”[12],  devem ser sempre obedecidos, mas, principalmente, serem tomados como orientadores de toda a comunidade científica, é o que também afirma Simone B. de Oliveira[13]: “Autonomia, beneficência e justiça devem ser guias inseparáveis, do início ao fim do desenvolvimento dos trabalhos, e em havendo possibilidade de ofensa a uma delas no decurso do desenvolvimento, faz-se necessário parar e ponderar a respeito, sob pena de infringir-se o valor maior e fundamental: a dignidade do ser humano.” Por isso, faz-se necessário o desenvolvimento do biodireito, que deverá seguir os princípios da bioética para que possa sempre assegurar o sadio desenvolvimento biotecnológico respeitando assim a vida humana. A evolução do biodireito deve contribuir para que o ordenamento jurídico esteja voltado com mais ênfase na relação ciência e pessoa humana. Neste mesmo entender, Maria C. Brauner e Serli G. Bölter[14] alertam sobre a necessidade do desenvolvimento jurídico nesse novo ramo da tecnologia, que pode afetar diretamente a integridade física e psíquica do indivíduo: “A construção de uma legislação coerente e aplicável poderá evitar abusos e desvios na seara biotecnológica, em face da necessidade de controle social da biotecnologia e de distribuição eqüitativa de seus benefícios. Encontrar a maneira de assegurar que o corpo humano seja respeitado e protegido e que não se transforme em mercadoria constitui o desafio que requer o envolvimento da área do Direito, no intuito de se construir um sistema jurídico direcionado a responder aos novos e polêmicos dilemas da modernidade.” Vale ainda ressaltar os ensinamentos de Maria H. Diniz[15] que afirma que o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um biodireito que corrijam os exageros provocados pelas pesquisas científicas e pelo desequilíbrio do meio ambiente, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, ao considerá-la como o novo paradigma biomédico humanista, dando-lhe uma visão verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo multicultural entre os povos, encorajando-os a unirem-se na empreitada de garantir uma vida digna para todos, tendo em vista o equilíbrio e o bem-estar futuro da espécie humana e da própria vida no planeta. 3.A SOCIEDADE DE RISCO E AS NOVAS TECNOLOGIAS O tema da sociedade do risco, abordado por Beck[16], tem dois sentidos radicalmente diferentes. Aplica-se, em primeiro lugar, a um mundo governado inteiramente pelas leis da probabilidade, onde tudo é mensurável e calculável.” Também pode ser utilizado para “para referir-se a incertezas não quantificáveis, a ‘riscos que não podem ser mensurados’. Esse último sentido expressa as ‘incertezas fabricadas’.” Os riscos gerados na sociedade moderna, segundo o autor, não são comparados aos de épocas passadas na questão quantitativa, mas sim qualitativa. Ou seja, os riscos assumidos atualmente, são potencialmente superiores. Isso se dá a partir do século passado, e acaba por ter uma incidência negativa no século presente. Tais riscos, que foram agravados no século XXI, são influenciados pela interconectividade das nações. Para fins exemplificativos, pode-se fazer um apanhado sobre as matérias atualmente preocupantes na sociedade, potencializadas pela mídia, como sendo as que abrangem ‘perigos globais’, como a questão ambiental. Ou seja, na sociedade moderna os riscos ocorrem numa esfera amplificada, global. Os riscos que perturbam a sociedade são de larga escala, tornando dificultosa a solução dos mesmos e, consequentemente, resultando riscos qualitativamente elevados. Percebe-se, com a biotecnologia, que a partir do momento em que uma tecnologia é implementada no meio ambiente, com o objetivo de modificá-lo o risco é considerado qualitativamente elevado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vislumbrar-se que a bioética representa a face mais dinâmica da ética, sendo um saber que está se aprimorando frente a sociedade. Os desafios da bioética precisam ser remetidos á uma mentalidade do risco que remete a uma sociedade baseada em evoluções tecnológicas muito rápidas. Importante se faz lembrar que a vida não é um fato isolado, mas inter-dependente de uma trama de relações, ou seja, de um sistema relações fazendo conexões com o entorno, caso essas conexões sejam rompidas, ocorrerá um certo grau de irritabilidade. Perfaz-se, analisar como elaborar uma bioética nos países em desenvolvimento, no qual se torna um desafio, pois será necessários a junção e o equilíbrio entre as interfaces da ciência, do direito e da ética, abarcando a multidisciplinariedade de todas as searas do conhecimento além da análise dos riscos frente a sociedade moderna. Nesse interím se faz importantene que existam evoluções tecnológicas para o benefício da humanidade, mas isso deve-se pautar em fatores de ética e respeito frente a sociedade e seus cidadãos, ou seja, a evolução deve buscar o benefício as pessoas e não somente a busca de poder enconômico. Também, faz-se necessário à quebra de paradigmas, como o do progresso-lucro-crescimento desordenado e da concepção cartesiana do homem, para que exista a busca de mudanças estruturais que irão gerar novos comportamentos humanos. Assim, a modernidade, paradoxalmente, traz benefícios e malefícios dentro da sociedade contemporânea e, os atores sociais estão sujeitos aos riscos que ela produz. Percebe-se que todos os procedimentos evolutivos vem a trazer riscos a sociedade, mas são riscos necessários pois devem ser pautados no crescimento e benefecíos dos povos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-80/a-funcao-da-bioetica-na-sociedade-de-risco/
Ética ambiental: A problemática concepção do homem em relação à natureza
O progresso da técnica na modernidade baseou-se numa lógica de exploração utilitária da natureza, conduzindo o homem a entender-se não mais como parte da natureza, mas sim como dominador desta. A natureza foi, então, reduzida a dimensões cartesianas, sob a crença de uma suposta infinita capacidade de regeneração. A partir dessa concepção e com o incentivo do avanço das ciências de forma geral – matemáticas, biológicas, etc. -, a produção de tecnologia inaugura um processo de desenvolvimento que o conduziria a tempos de superprodução e superconsumismo. Essa lógica apenas passou a ser questionada quando, no que se chama de crise ecológica, a natureza começa a demonstrar ser limitada. Nesse sentido, a ética ambiental propõe-se a uma análise crítica da lógica com a qual o homem se percebe perante a natureza, assim como das próprias formas de produção tecnológica no que diz respeito ao seu impacto no meio ambiente.
Biodireito
Introdução Conceitos como progresso, civilização, bem estar, prosperidade, trazem idéias positivas a respeito da trajetória humana e, carregadas de otimismo, trazem também uma noção de caminho a ser seguido, rota inevitável. Contudo, basta apenas um exame mais atento destes conceitos, partindo-se de outra perspectiva – como, por exemplo, a da exploração utilitária da natureza – para que se compreenda o quanto a certeza da evolução positiva pode ser relativizada. A ética ambiental proporciona uma análise crítica das condutas e concepções humanas sobre a natureza; ela questiona a aventura do progresso moderno sustentado sobre uma noção de recursos naturais ilimitados, na qual se encontra uma natureza carente de direitos e sem força para gerar deveres. Nesse sentido, este artigo apresenta a ética ambiental como forma de análise crítica do contexto contemporâneo no que diz respeito à interação entre o ser humano e a natureza. Analisa-se o sentido de progresso como produção de conforto, em contraste com as necessidades efetivas do homem. Apresenta-se a visão predominante na modernidade na qual o homem se encontrava a parte da natureza, ou seja, como um mero utilizador ou explorador daquela. A partir disso, demonstra-se a noção pós-moderna e menos antropocêntrica da forma de perceber a natureza, na qual o ser humano passa a ser compreendido como parte integrante do meio ambiente, numa relação de dependência.  A análise, portanto, da ética contemporânea se distancia do antropocentrismo, inovando em duas novas concepções, ecologia profunda e biocentrismo; noções que, embora também radicais, apresentam uma nova noção de ética preservacionista. Tais mudanças de racionalidade ética condizem coerentemente com os movimentos ambientais que passaram a condenar formas desordenadas de exploração. Parte disso refere-se à constatação de que há limites à renovação da natureza. Daí por diante, a denuncia das atrocidades ambientais passaram a vincular-se a própria sobrevivência humana. Por fim, propõe-se a ética ambiental como forma de promover uma visão crítica das decisões tomadas pelo homem em relação à preservação ambiental e ao desenvolvimento tecnológico. 1. O progresso da técnica O desenvolvimento do homem na história da humanidade está baseado principalmente na capacidade de produzir facilidades e incrementar seu domínio sobre a natureza. O incremento dessa produção é o que se considera o progresso da técnica, considerado como salvação e libertação do homem em relação aos limites naturais. Essas novas técnicas permitiram a criação de novos espaços, bens de consumo, e uma generalidade de bens que acabaram por permitir uma melhora das condições de vida do homem moderno. A esse respeito, Gomez-Heras dividi a civilização contemporânea em três elementos básicos: a ciência, a técnica e a economia industrial (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). Isso por que, segundo ele, a sociedade de consumo de hoje não teria sido capaz de alcançar os atuais níveis de produtividade e eficácia, sem que a ciência e a técnica tivessem possibilitado. Da mesma forma que, o desenvolvimento da ciência e da técnica não teriam sido possíveis sem o apoio e o fomento da economia. A articulação entre tais elementos, portanto, teria possibilitado uma circunstância histórica adequada para o progresso ter ocorrido da forma com que se apresenta hoje – e inclusive para que o progresso seja reconhecido da forma como o é e não de outra. Nesse contexto, a interação entre o homem e a natureza, ao longo do período moderno de desenvolvimento, seria capaz de explicar a forma com que se efetivou a modernização da técnica e a exploração da natureza. Em outras palavras, a forma com que o ser humano entende sua posição em relação ao meio ambiente natural, compõe o quadro no qual se justificam as práticas em relação aos recursos naturais. Na idade média clássica, por exemplo, o homem entendia-se como parte do bem natural, nem superior e nem inferior à natureza, de forma que, inclusive estava sujeito às intempéries naturais, as quais relacionava estritamente com a punição divina. A partir das idéias renascentistas, devido a descobertas de ciências como a física, química e biologia, percebe-se a emergência da convicção de que a natureza pode ser dominada. Propõe-se, então, a natureza como produto a ser utilizado e transformado de acordo com interesse humano. Emerge a possibilidade de não mais submeter-se aos efeitos ambientais. O homem, portanto, percebe-se contraposto à natureza, entendendo-se como dominador daquela. Tal lógica pode ser extraída das lições de Descartes, por exemplo, nas quais questiona e critica o senso comum – enquanto ciência predominante na época medieval – como forma de ciência, colocando ênfase à razão. A natureza é reduzida a uma significação matemática e, nada restando nela de divino, passa a representar um objeto de exploração. É considerada como recursos disponibilizados por Deus e à disposição do homem. Descartes afirma ainda, numa sentença que resume boa parte da concepção da época na qual o conhecimento produzido pela matemática era libertador e capaz de desvincular o homem da dependência das vicissitudes do meio; segundo Descartes, os homens, a partir do desenvolvimento da técnica, passam a ser “mestres e possuidores da natureza” (Descartes, 1973). A afirmação dessas idéias somada ao desenvolvimento de formas de produção mais sofisticadas resultou na exploração cada vez mais intensa dos recursos naturais. Para Gomez-Heras, esse seria o início da civilização do homo technicus, vez que pode-se considerar como ponto inicial da crise ambiental (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). A evolução da técnica, que gera a possibilidade de produção intensa, explora de forma cada vez mais veloz os recursos naturais. Nessa progressão desenvolvimentista, iniciada na modernidade e seguida até hoje, os efeitos ao meio ambiente geraram danos incalculáveis. As conseqüências, portanto, do progresso tecnológico para a natureza, convertem-na em um problema em si mesma, justamente por constituir-se na proporcionadora desse progresso. 2. Os limites do crescimento Por volta da década de 70, alertas divulgados pela ciência e por obras como a de Meadows[1], denunciaram a limitação dos recursos naturais e da capacidade de auto-renovação da natureza (D. L Meadows, 1972). Desastres e catástrofes ambientais foram relacionados estritamente ao aumento vertiginoso da população, da produção de bens de consumo, do consumo em si e, conseqüentemente, da poluição e degradação ambiental. A interrelação homem-natureza, assim como das concepções como consumismo e progresso, começa a ser questionada e criticada até um momento em que enfim adquirirem relevância ética. A relação de superposição na qual o homem se entendia em ralação ao meio ambiente, passa a incluir a noção de limitação dos bens naturais. Trata-se de um contexto em que os alertas ambientais promovem o início do que após veio a ser chamado de consciência ambiental. Foi momento em que movimentos sociais e contra-culturais – mais especificamente nos anos 70 e nas sociedades de desenvolvimentos tecnológico mais avançado – propiciam e incentivam o questionamento em relação à lógica de exploração e do consumismo. Nas discussões que se apontaram nesse contexto, a ética clássica em relação ao meio ambiente – a qual supõe a natureza como majestosa, invulnerável, capaz de neutralizar os efeitos das atividades humanas – embora predominante na lógica da produção e consumo não se mostra mais apta para abordar os complexos problemas ambientais contemporâneos.   Nesse sentido, diversas linhas de pensamento dedicaram atenção para a questão de uma ética ambiental[2]. Concentram-se em analisar a problemática da ética do meio ambiente como forma de encontrar um discurso sobre a natureza, que analisasse criticamente a interação entre ela e o ser humano. A tentativa se refere a buscar uma forma de compatibilizar o desenvolvimento da técnica e a manutenção da natureza de forma que continue a produzir os recursos necessários à própria tecnologia. A ética ambiental, portanto, assume a tarefa de fundamentar normas reguladoras de condutas, que tenham em sua essência valores imperativos da moral, ou seja, a conduta do homem em relação com a natureza (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). Ao longo do desenvolvimento tecnológico, se colocado em uma balança de um lado o desenvolvimento – denominado de progresso – e de outro a natureza como habitat e meio de vida, claramente é possível se constatar a distorção progressiva da harmonia entre fatos e valores. O desequilíbrio entre diferentes formas de racionalidades demonstra que, ao prevalecer uma delas – como no caso da modernidade a técnico-científica – as conseqüências geralmente se refletem numa atrofia, ou até mesmo retrocesso, de valores morais referentes ao que foi considerado de menor relevância. Ou seja, a ética em relação ao meio ambiente e sua interação saudável (pra não dizer exploração racional) com o desenvolvimento do homem e de suas necessidades restou abstraída em nome de outros interesses. O que não se supunha, contudo, é que tais valores desenvolvimentistas resultariam em um incremento tão forte e acelerado nas técnicas de exploração. A erupção da ciência técnica como forma de produção da tecnologia, pode ser considerada como fator predominante – mas não o único – a provocar o deslocamento da racionalidade axiológica (baseada em valores morais) para uma racionalidade de resultados (baseada em valores produtivos). O valor do desenvolvimento afasta o valor antes dedicado a natureza, induzindo, portanto, outra forma de pensar a interação entre o homem e o meio natural. A lógica do progresso moderno apresenta-se dentro de uma ética da soberania humana, estruturada sobre tecnologias que representam o domínio sobre a natureza. Surpreendente, contudo, foram as conseqüências imprevisíveis dessa lógica pelas outras diversas necessidades que ela acaba por gerar. A complexidade da questão perpassa um desequilíbrio profundo entre valores e fatos. Uma dissociação crescente entre o sistema natural da vida humana e a estrutura artificial-formal produzida pela técnica no seu afã de racionalizar o mundo. Segundo Gomez, as dimensões da vida cotidiana, tal como o manejo do tempo, as relações de convivência, a comunicação social, a produção de alimentos, assim como fenômenos mais alarmantes como as mudanças climáticas, são dependentes da harmonia entre valores e fatos (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). A natureza, portanto, de fato, passou a sofrer uma destruição de seu equilíbrio, uma ruptura que em sua essência traz o balanço entre a ciência empírico-pragmática e a ética. Segundo Duplá, o que deve ser ressaltado é que a submissão da natureza à técnica, eliminou os fundamentos metafísicos da ética, assim como a possibilidade de contra-arrestar os efeitos negativos daquela apenas com critérios morais (Duplá, 2001,  p.128-144). Nesse contexto, os abusos da produção em larga escala e da exploração intensiva para satisfazer às necessidades tecnológicas geram principalmente problemas na vida social dos homens e nas relações destes com a natureza. Admite-se, contudo, que há benefícios também gerados por esses processos, os quais, contudo, são mostrados como necessários e inevitáveis ao progresso tecnológico. Trata-se da concepção de que o desenvolvimento da maneira como se apresenta hoje seria a única forma a ser seguida. Qualquer alternativa que fuja dessa lógica de produção em massa, consumo em massa, é muitas vezes considerada um retrocesso à humanidade, uma contra-ciência. Na verdade, pensar numa lógica de retrocesso faz parte de uma racionalidade baseada no desenvolvimentismo da tecnologia. Não se trata de caminho inevitável à humanidade, trata-se da única forma de desenvolvimento considerada dentre de uma compreensão de mundo específica. Existe a opção por viver sem certas comodidades que causam danos ambientais, contudo, está inserida em uma lógica não predominante na sociedade de consumo. Segundo Habermas, é inquestionável que o progresso tenha possibilitado uma expansão da liberdade, mas isso não esconde que a mesma técnica se sustenta em estratégias de aniquilamento da autonomia do sujeito em uma sociedade e em uma natureza restrita a estruturas formais manipuláveis (Gabás, 1980). Não se trata de condenar a tecnologia e o progresso, mas sim de percebê-lo criticamente, de analisar sob que tipo de racionalidade os conceitos de desenvolvimento de hoje estão sendo produzidos. A natureza não é matemática, não é ciência absoluta, se é que alguma ciência pode ser assim considerada. A dissociação entre o homem e a natureza, a fez ser reduzia a um objeto, num processo de despotencialização de seu significado e de seus fenômenos na vida cotidiana. Isso a faz perder a força para ser um sujeito de direitos e um suporte de valores (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). 3. A ética e a moral   Fundamentar as normas que regulem, a partir de valores imperativos morais, a conduta do homem com a natureza é tarefa a ser assumida pela ética ambiental. A reflexão moral representa uma forma de promover a sensibilidade ecológica, expandida em uma ética filosófica da natureza, mediante fundamentação racional de normas de conduta (Regan, 1981,  p.19-34). A racionalidade dos resultados, conforme denominou Weber, constitui-se como uma das origens do problema ecológico. Isso por que, nessa lógica, a razão humana se desvincula de toda uma racionalidade de valores. Em outras palavras, a natureza passa a ser considerada pelo valor de mercado e não mais por qualquer valor moral (Hösle, 1998). Segundo Kant, as condutas do homem para com a natureza têm sua essência na moral, vez que a escolha entre o que se pode fazer (que é técnica) e o que se deve fazer é uma questão de ética (Kant, 2001). A racionalidade baseada na produção de riqueza apenas condiciona a uma perda do referencial de valor moral que vê a natureza não como fonte de produção. Nesse sentido, percebe-se a total conexão entre a racionalidade científica e a destruição de certos valores morais. É como se a objetivação da vida proporcionada pelos avanços da ciência, ocasionassem um processo de substituição do mundo natural por uma estrutura artificial de conhecimentos formais (Husserl, 2002). A tendência seria, portanto, uma arbitrariedade de condutas nas quais a exploração da natureza mostra a perversa racionalidade que respeita apenas os valores econômicos e tecnológicos. Esta situação foi anunciada por Habermas como um momento em que a técnica e a economia, elevadas a ideologias, não apenas teriam se diferenciado da razão moral, mas também ignorado esta como princípio legitimador de condutas (Habermas, 1994). O valor moral, que conduz à ética, refere-se a decisões racionais que em outros tempos, como na idade média, por exemplo, vinculavam-se a instâncias metafísicas, religiosas e que, na modernidade se basearam em categorias científicas. Atualmente, as novas formas dessa razão, como a ecologia, ainda estão à espera de uma revalidação – somente atribuível pelo homem – que promova a ponderação das possibilidades e limites da sua razão sobre o uso e manejo da natureza. Isso por que é o homem quem revalida, ou não, as razões ecológicas e científicas (Gomez-Heras, 1997,  p.17-90). O problema, portanto, ainda recai sobre a questão da ética; sobre o que é o ético. A ética ambiental seria um novo paradigma construído sob suporte das ciências naturais, biologia, ecologia, geologia, etc. Contudo, consagrar essa ética propõe a identificação da relação de dependência entre homem e natureza, deslocando-se aquele da função de explorador. Uma ética ambiental pressupõe rechaçar a noção da ética antropocentrista, conduzindo à assunção de que além de agente criador, o homem é também paciente e que há instancias que transcendem seu poder e controle. A ética ambiental, portanto, admite a relação de dependência para com a natureza, relação que até pouco tempo atrás se baseava no paradigma da dominação. Essa mudança de paradigma requer do ser humano uma reconsideração quanto ao seu posto em relação à natureza. É essa a exigência que a ética ambiental requer. Essa pergunta pode (e deve) ser feita à miscelânea de novas práticas que estão sendo realizadas em prol da proteção do meio ambiente, como por exemplo, compra e venda de créditos de carbono. Em que posição estaria o homem em relação à natureza nesse caso? Há interesses além dos comerciais especulativos? A partir de respostas a questões como estas, seria possível concluir sobre que tipo de ética ambiental está sendo aplicada ao caso (se é que há um tipo de ética aplicada). A ética ambiental, portanto, se fundamenta na existência de valores ecológicos, sem os quais dificilmente poderia ser legitimada como conduta racional. Refere-se à natureza como um todo, englobando toda a comunidade biótica, em cujo equilíbrio se fundamenta o fundamento da ética. A ética do meio ambiente reconhece nos seres vivos um valor de dignidade, de respeito aos valores da natureza enquanto bens em si mesmos. Esses valores existiriam independentemente da necessidade e do interesse da espécie humana (Callicott, 1979,  p.71-81; , 1984,  p.299-309). Contudo, os valores que os bens naturais possuem – ou seja, seus valores intrínsecos -, são valores independentes da qualificação feita por algum ser humano? Seriam independentes do uso da razão, da liberdade, da responsabilidade daquele que os qualifica? Onde se situa o fundamento dessa validade moral? Têm algum valor moral os não humanos? Colocando de outra forma, seria correto falar de interesses e até mesmo de deveres em relação aos não humanos? A ética ambiental surge de questões como estas, provenientes de casos de resolução complexa, nos quais o marco teórico antropocêntrico – o qual havia sido definido desde a época moderna – não mais é capaz de proporcionar respostas satisfatórias (Vieja, 1997,  p.188-127). O que pretende a moral do meio ambiente é formar uma nova consciência ambiental que limite a conduta humana em situações de risco para qualquer espécie. É a partir dessa perspectiva que se pode afirmar que a tradicional ética não é mais eficaz, tendo em vista os novos e mais complexos problemas ambientais. Nesse contexto, a ânsia de proteção da natureza fez surgir pretensões fortes de ação, como a ecologia profunda (deep ecology), baseada em um sistema de princípios no qual as obrigações para com vidas não humanas derivam de uma mudança radical de perspectiva (em relação à antropocêntrica), reconhecendo necessidades, desejos, propósitos e interesses nos seres humanos. A humanidade se sente responsável pelos seres ao seu redor, estendendo os princípios, as obrigações e os valores mais além do homocentrismo (Vieja, 1997,  p.188-127). Assim, outra forma de ética proposta é a biocêntrica. Essa noção considera que a vida é valor maior e deve ser sempre priorizada em quaisquer situações. Tudo que é vida na natureza, portanto deve ser priorizado. Contudo, deve haver uma hierarquia de valoração para casos complexos que apresentem conflitos de valores. Nesse sentido, entende-se que a capacidade de dar valor as coisas é exclusiva do ser humano, ou seja, está nas decisões humanas a valoração intrínseca do que será priorizado. Há, sem dúvida, nessa perspectiva, um elemento antropocêntrico inevitável, que é parte substantiva da ética. Em realidade, as críticas à ética antropocentrista prevalecente na modernidade, se empenham em enfatizar que o reducionismo da natureza à mera provedora de recursos ignorou qualquer noção protecionista do meio ambiente. A crise ambiental, portanto, introduziu uma nova responsabilidade ao ser humano, induzindo-o a repensar a ética. O princípio da preservação, portanto, constitui-se substancialmente na ética ambiental. Trata-se de um instrumento que torna possível optar eticamente pela conduta correta dentre um rol de opções fornecidas pela ciência (Rolston.III, 1988). Ao considerar que os valores da natureza se distribuem homogeneamente no ecossistema, o princípio da preservação fornece uma lógica de preservação (Callicott, 1979,  p.71-81). A tese básica consiste em admitir que a conduta humana afeta de fato o meio ambiente em que atua. A ética ambiental, portanto, se concentra na atenção a tais relações de interação entre homem e meio ambiente, avaliando-as como boas ou más. O princípio da preservação, nesse contexto, é o referencial básico da avaliação ética, fundamentando, tanto o biocentrismo quanto a ecologia profunda. 4. Considerações finais Atualmente, o crescente interesse por energias renováveis, reciclagem, reelaboração da biomassa, indicam que há uma preocupação clara em relação ao problema ecológico. A discussão, contudo, se centra hoje em saber se realmente essas novas tendências denotam uma nova fase da sociedade ou não. Seria essa mais uma etapa do “inevitável” progresso, no qual a racionalidade moderna estaria ainda preso? Ou se tratade fase de inovação, de nova racionalidade que pretende vincular o desenvolvimento à natureza pela simples constatação de que o homem está dependente dela? A crise ambiental, portanto, gera críticas ao desenvolvimentismo e seus limites. Fato é que o sistema vigente de produção de bens de consumo necessita ser analisado de forma crítica, a partir de valores superiores ao mero consumismo. Espera-se a superação da noção de que o ser humano deve produzir eficientemente e consumir vorazmente, vez que nesse binômio, segundo Kant, a dignidade pessoal e autônoma de ser humano é perdida (Kant, 2001). Percebe-se uma urgência em se vincular a racionalidade técnico-científica a uma racionalidade ética, não apenas por ser uma dimensão essencial da ação humana, mas também por ser a natureza em si um valor e um sujeito de valores. Não se trata de retrocesso, e sim de progresso necessário na racionalização da sociedade. As práticas cientificam não podem ser constituídas sem que estejam incluídas numa lógica ética. Por fim, tanto na ecologia profunda, quanto no biocentrismo e no antropocentrismo, ética ambiental se propõe a formar uma consciência ambiental mais atenta às formas de ação humana em relação à natureza e, possibilitar com que essa conscientização seja capaz de limitar condutas agressoras. Ainda mais além, se propõe a libertar o ser humano de regras de condutas estabelecidas por concepções que o prendem a uma lógica de produção e consumo. Pretende, dessa forma, uma liberdade de escolha ética, que baseada numa consciência preservacionista, permita avaliar condutas a partir das informações fornecidas pela ciência. Essa lógica vale para cada indivíduo, em qualquer parte, assim como para as grandes corporações, produtores de tecnologia e impactos ambientais. Portanto, não se trata de cessar o progresso ou de estacar os avanços tecnológicos. O que a ética ambiental se propõe é alertar que uma visão acrítica desses fenômenos pode ser fatal ao futuro da humanidade. Não existe, portanto, no caminho para o progresso, condutas ou decisões inevitáveis. A ética permite que se avalie criticamente o meio em que se vive e a forma como as decisões são tomadas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/etica-ambiental-a-problematica-concepcao-do-homem-em-relacao-a-natureza/
Responsabilidade médica derivada do estudante de medicina doutorando sob a óptica do Biodireito
O presente artigo discute a responsabilidade médica derivada do estudante de Medicina na fase do internato, sob o ponto de vista do Biodireito, tendo como desígnio incitar a discussão do Direito médico.
Biodireito
Resumo: O presente artigo discute a responsabilidade médica derivada do estudante de Medicina na fase do internato, sob o ponto de vista do Biodireito, tendo como desígnio incitar a discussão do Direito médico. Palavras-chave: Responsabilidade médica. Estudantes de medicina. Direito médico. Abstract: This article discusses the medical liability derived from the medical student during the internship, under the terms of Biolaw, with the intention to encourage the discussion of medical law. Sumário: I. Considerações Inicias. II. O estudante ‘doutorando’ de Medicina. III. A relação médico-doutorando-paciente. IV. O Novo Código de Ética Médica (CEM) e aspectos do Biodireito. V.Considerações Finais. Referências. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O curso de Medicina, cujo qual possui a maior carga horária dentre todos os cursos superiores, apresenta como período mínimo de integralização seis anos; sendo sua matriz curricular dividida em três fases de igual período, inicialmente o acadêmico entra em contato por dois anos com matérias básicas da área de saúde; após passa por uma fase teórica-prática, e por fim vivencia a fase do internato médico, sendo nessa última etapa chamando de doutorando e possuindo um regime de horário especial. Teoricamente, o internato médico é um período diametralmente prático, em que o acadêmico prestes a sair da faculdade e tornar-se médico vivencia a prática clínica nas áreas básicas da Medicina; em que é totalmente amparado por um renomado professor médico, ao qual por estar no magistério acompanha todos os passos e corrige possíveis erros do doutorando, e por também ser médico, atua na beneficência da saúde do paciente para não ser prejudicado por possíveis falhas cometidas por um aprendiz na Medicina. E, mesmo nessa fase de doutorando recai sob si a responsabilidade sob os atos que comete, como uma responsabilidade médica derivada. O ESTUDANTE ‘DOUTORANDO’ DE MEDICINA Quem vivencia o meio médico frequentemente vai se deparar com um estudante doutorando, os professores assim o qualificam, e seu carimbo assim o define. Historicamente pelo fato de se chamar médicos de doutores, o estudante prestes a ser médico é chamado de doutorando, por estar na última etapa acadêmica para se tornar médico, adentrando agora no universo prático da Medicina, prioritariamente em contato direto com o doente e sua família; adquirindo novas responsabilidades e necessitando de novas orientações. Nessa fase do internato médico mantém-se o doutorando durante os dois anos dentro de hospitais, com um regime de férias de somente 30 dias durante o citado período; necessitando permanecer nos hospitais ao qual pratica o internato inclusive durante feriados e fins de semana, em tempo integral e com dedicação exclusiva; período bastante desgastante e necessário no processo de formação individual. Observa-se que por participar na proteção do doente, assumindo, sob a dependência do médico, serviços especializados, apresenta responsabilidade médica derivada sob seus atos; ao qual porventura delegados por o médico responsável, não foram realizados da maneira moralmente aceitável. É falta do doutorando em Medicina, se orientado pelo médico a realizar algum procedimento, como solicitado a realizar exame físico especializado de determinado sistema do corpo, por exemplo, o sistema neurológico, e furtar-se a realizar, e decorrente dessa negligência deixar de ser percebidas deficiências ou insuficiências que possa no transcorrer do tempo causar algum dano ao paciente por não ter se orientado a terapêutica com todos os sinais presentes no paciente.  Assim, é essencial a informação que o doutorando necessita manter-se atento à suas responsabilidades inerentes a sua atividade de acadêmico. A RELAÇÃO MÉDICO-DOUTORANDO-PACIENTE Como na relação médico-doutorando quem possui diplomação médica e inscrição no Conselho Regional de Medicina é o médico, cabe a ele manter uma conduta médica ajustada às normas éticas e jurídicas e aos princípios das relações sociais, respeitando a beneficência e não-maleficência do paciente; de tal maneira orientando o doutorando a seguir tal procedimento. É profícuo e virtuoso que o doutorando para ir ganhando traquejo prático acompanhe pacientes em nível ambulatorial e de enfermaria, com o assessoramento médico integral. Na realidade, o que ocorre é que o doutorando se vê no papel de médico a ser o responsável por uma consulta das mais diversas especialidades médicas e de evoluir o quadro do paciente e prescrever, sob a supervisão médica, diariamente, pacientes em enfermarias; e acostuma-se com a prática virtuosa de guardar segredo sobre tudo que vier a reparar em razão de sua função privilegiada.  A prática diária, praticamente ininterrupta durante dois anos, leva ao doutorando afinar a relação com o paciente e seus familiares; adquirindo grande experiência nessa etapa. Chama-se atenção que o único meio de aprendizado do estudante Medicina doutorando é o serviço público de saúde, ou seja, são os doentes provenientes que necessitam do Estado para lhes dar a saúde. Pacientes que possuem convênios de planos de saúde ou que são particulares, ou seja, pagam diretamente ao prestador de serviço em sua ampla maioria não se deixam ser avaliados por estudantes de Medicina, somente por médicos diplomados. Observa-se então que o doutorando familiariza-se com um ambiente de trabalho, em muitas ocasiões, não ideal para se realizar a Medicina; pela falta de recursos físicos e humanos peculiar dos serviços públicos de saúde no Brasil, esse fato é importante, pois o futuro médico depara-se constantemente com impedimentos para praticar a Medicina de mais alta qualidade, comum em hospitais privados de referência. O NOVO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM) E ASPECTOS DO BIODIREITO Recentemente, O CEM foi revisto, atualizado e ampliado, resultado de mais de dois anos de trabalho, reunindo sugestões de médicos, especialistas e instituições da área médica; a fim de garantir segurança para o médico e confiança para o paciente. O Novo CEM, ao qual foi aprovado pela Resolução 1.931 do CFM e que entrou em vigor desde 13 de abril de 2010, é composto de 25 princípios fundamentais do exercício da Medicina, 10 normas diceológicas, 118 normas deontológicas e cinco disposições gerais. O conhecimento do CEM pelo doutorando vem acontecendo de maneira paulatina durante a fase de todo curso médico, devendo ele inteirar-se de todos seus artigos, para dessa maneira adequar seus atos aos mais respeitos possíveis diante de uma infinidade de situações em que o doente está envolvido. Lidar com a vida humana em sua fase mais crítica, a qual não está com sua saúde perfeita, é um dos momentos mais delicados do relacionamento humano, ao qual os critérios passionais, por parte dos familiares do paciente; e os critérios racionais, por parte do médico, devem interagir de uma maneira a qual decidam pela melhor opção que leve ao restabelecimento da saúde do enfermo. A responsabilidade civil dos médicos somente decorre de culpa provada, não podendo ser presumida, tendo em vista ter sido adotado o sistema de responsabilidade subjetiva pelo Código Civil, de forma que, não resultando provadas a imprudência, imperícia ou negligência, nem o erro grosseiro, fica afastada a obrigação de indenizar. A prestação de serviços médicos, via de regra, afigura-se como obrigação de meio e não de resultado, haja vista que o profissional não pode assegurar, salvo raras exceções, o sucesso do tratamento a que se submete o paciente, não se eximindo, todavia, do dever de vigilância aos cuidados mínimos de sua atividade técnica. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto no artigo, fica claro que um clarão se abre nesse debate, pois na formação do estudante de Medicina como doutorando ele observa diversas situações e cabe a cada um, analisando questões morais, éticas e religiosas analisar o que de cada profissional ele vai tomar como correto, e a partir daí, abrir seu próprio caminho dentro da Medicina, seguindo não cegamente os preceitos morais aceitos no tempo e espaço ao qual está presente, mas analisando eticamente suas atitudes em que possui responsabilidade médica derivada sobre seus atos; sobre a óptica do Biodireito, tendo como principal objetivo garantir a proteção da dignidade do ser humano.   Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p. BRASIL. Conselho Federal de Medicina.  Resolução 1.931, de 17 de setembro de 2009. Código de Ética Médica. CONTI, Matilde Carone Slaibi. Biodireito: A Norma da Vida. Rio de Janeiro: Forense, 2004. DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva 2006. LAMPERT, J. B. Currículo de graduação e o contexto da formação do médico. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 25, no 1, set./dez. 2001. MACHADO, M. H. (Coord.) Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997. 244p ROSEMBERG, D. S. O processo de formação continuada de professores universitários: do instituído ao instituinte. Rio de Janeiro: Wak, 2002. SÁ, Maria de Fátima Freire de & NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. (coord). Bioética, Biodireito e Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Médico do Trabalho Advogado e Professor. Doutor em Direito com distinção Magna cum Laude pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Mestre em Direito com distinção acadêmica Magna cum Laude pela PUC Minas. Detentor do Título de Especialista em Medicina do Trabalho da Associação Médica Brasileira – AMB. Especialista em Medicina do Trabalho pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário – PUC Minas. Especialista em Direito Civil – PUC Minas. Especialista em Direito Médico – Universidade de Araraquara. Coordenador dos livros “Temas Contemporneos de Direito Público e Privado” Editora DPlácido; “Fluxo de Direito e Processo do Trabalho” Editora CRV; “Ciência Trabalhista em Transformação” Editora CRV; e “Direitos das Pessoas com Deficiência e Afirmação Jurídica” Editora CRV. É autor do livro “Direitos Fundamentais do Trabalho” Editora LTr
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/responsabilidade-medica-derivada-do-estudante-de-medicina-doutorando-sob-a-optica-do-biodireito/
Há um direito de morrer? Impacto da biotecnologia no direito de família
Vida e morte são duas dimensões de um mesmo processo.  A morte faz parte complementar da vida, do viver, da condição humana. Discorrer sobre o morrer implica afrontar uma questão de vida, mesmo se for para definir o modo pelo qual ela irá, poderá ou deverá realizar-se. Assim sendo, é razoável supor que a morte deve ter uma proteção, prevista no ordenamento jurídico.
Biodireito
1.INTRODUÇÃO O termo “eutanásia” é composto de duas palavras gregas “eu” e “thanatos” e significa, literalmente, “uma boa morte[1]“. Na contemporaneidade, entende-se geralmente que “eutanásia” significa provocar uma boa morte, “morte misericordiosa”, em que uma pessoa acaba com a vida de outra pessoa para benefício desta. Este ajuste das palavras realça duas importantes características dos atos de eutanásia. Primeiro, que a eutanásia alude extrair deliberadamente a vida a uma pessoa; e, em segundo lugar, que a vida é tirada para benefício da pessoa a quem essa vida pertence, normalmente porque ela ou ele sofre de uma doença terminal ou incurável. Isto diferencia a eutanásia da maior parte das outros feitios de extrair a vida. A morte, assim como a doença e o sofrimento são integrantes da condição humana. Vida e morte são duas dimensões de um mesmo processo.  A morte faz parte complementar da vida, do viver, da condição humana. “Você não morre por estar doente, mas você morre porque está vivo” (Montaigne). Dessa maneira, averiguar sobre o sentido da morte envolve a busca do sentido da vida. 2. DIREITO DE MORRER Discorrer sobre o morrer implica afrontar uma questão de vida, mesmo se for para definir o modo pelo qual ela irá, poderá ou deverá realizar-se. Assim sendo, acredito ser razoável supor que a morte deve ter uma proteção, prevista no ordenamento jurídico. É consensual a anuência, aliás, já inscrita na “Declaração dos Direitos Humanos”, de que todo ser humano deve ser tratado humanamente. Isso da a entender que cada ser humano, sem distinção de sexo, idade, cor, língua, religião, origem étnica ou social, possui uma dignidade inalienável e intocável. E como resultado, espera-se que cada um, indivíduo ou o Estado, se veja obrigado a honrar essa dignidade e garantir sua real proteção. Pode-se, continuando na argüição, almejar que o direito de morrer com dignidade deva também ser tão bem protegido como outro direito vinculado ao viver. Deste modo, interdições ditas pelo Estado, que abrolhassem uma morte dolorosa e mesmo cruel a um doente terminal, necessitariam ser meditadas como uma afronta contra a dignidade humana. Se a morte faz parte da vida, o direito de morrer significa o direito de viver os instantes finais com dignidade[2]. As questões relacionadas ao tratamento de pacientes terminais têm sido tratadas de acordo com a tradição pela medicina e quanto à dimensão ética dessas questões tem-se procurado um fundamento e argumentos, de modo protuberante, em correntes doutrinárias religiosas. Falar em eutanásia sempre foi motivo para que uma explosiva polêmica se instale. Segundo Luiz Flávio Borges D’Urso, crítico fervoroso contra a pratica da eutanásia, considera que a medicina ainda não tem a palavra final e que a indução à morte poderia se transformar em um perigoso instrumento. “Haveria sempre um manto de desconfiança em casos em que um cônjuge deseja se livrar do outro para ficar com um amante”, afirma[3]. O advogado não está sozinho na sua posição. Na Austrália, a eutanásia, que havia sido regulamentada, acabou sendo revogada. No Brasil, além de ser considerada homicídio, também não é vista com bons olhos pela maioria dos médicos. CONCLUSÕES No que diz respeito ao denominado “direito de morrer”, há uma concordância, hoje em muitas sociedades, sobre a questão da denominada “eutanásia passiva” baseada no princípio da “morte com dignidade[4]”. Algumas questões deveriam ser respondidas: quem poderá dizer o quanto de sofrimento deve suportar uma pessoa até que sua morte, antecipada, possa ser julgada aceitável? Seria, por acaso, um ato heróico e admirável morrer de “modo natural” ao término de um longo combate travado pela medicina de ponta com tecnologia complexa e invasiva? Acolhemos a idéia de que o ser humano tem o direito de viver em dignidade. Porque negar-lhe, o poder de decidir sobre sua morte com dignidade e que seja auxiliado nessa escolha? Porque o Direito impede o exercício de um direito? Em inúmeros países já está receptivo na jurisprudência o princípio denominado de “diretrizes antecipadas”, segundo o qual se adota uma pessoa o direito de expressar antecipadamente a própria vontade a respeito da suspensão de terapias de suporte vital quando se encontra em situações médicas particularmente graves e bem definidas como, por exemplo, o estado vegetativo permanente. Uma renomada advogada, Hans Küng[5], argumenta sobre este tema: “Sustenta dois tipos de considerações: A primeira de ordem ética. Considera-se que há consenso entre médicos, juristas e bioeticistas sobre a legitimidade moral da eutanásia passiva, vale dizer, “deixar o doente morrer de morte natural”; percebe-se, por outro lado, que o limite entre omissão e ação (eutanásia passiva e eutanásia ativa) torna-se cada vez mais fluido e tênue, justamente por causa dos avanços consideráveis na tecnociência biomédica. Por exemplo, interromper a ventilação artificial de um paciente incapaz de respiração autônoma é omissão ou ação? Se se admite isso, pode-se aceitar a possibilidade de se considerar justificável a eutanásia ativa. Küng, desenvolve outro argumento, de ordem ético –teológica. Retoma a “Declaração das religiões para uma Ética Global” aprovada no Parlamento das Religiões mundiais, realizada em Chicago de 1993. Nesse documento, confronta a norma “não matarás”, comum a todas as religiões, contrapondo seu lado positivo: “respeita todas as vidas”. Embora o princípio conserve um valor incondicionado, Küng observa que “estamos em um tempo de mutações velozes de valores e normas”, fato admitido até por teólogos e moralistas conservadores, devido às conquistas inauditas e formidáveis da tecnologia avançada na biologia e na medicina. Esses mesmos teólogos conservadores, segundo Küng, após terem combatido por longo tempo a idéia e o projeto de planejamento de nascimentos, acabaram por aceitá-la. Deus atribuiu o início da vida humana à responsabilidade do homem. Do mesmo modo, afirma Küng, é oportuno admitir-se que, também o fim da vida humana, em vista dos novos contextos da medicina contemporânea, possa ser posto por Deus sob a responsabilidade do homem. Assim este, responsável de seu agir e de sua vida, assume igualmente a responsabilidade pela sua morte”. Deste modo, acredito que cabe a cada homem a tomar a si a responsabilidade de viver e de morrer. A morte tem sim uma repercussão de ordem social, cabendo ao Direito resguardar a dignidade e a integridade da pessoa humana, sujeito de direitos e deveres.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/ha-um-direito-de-morrer-impacto-da-biotecnologia-no-direito-de-familia/
Ecologia, ética e direito
Esta pesquisa aborda a questão da ética e a ecologia fazendo uma reflexão da relação entre a Ecologia, o Direito e a Ética. Assim objetivamos investigar como a ética pode auxiliar a ecologia na preservação do Planeta, despertando no homem uma “exploração” responsável, consciente e sustentável do Meio Ambiente Natural. Para coleta de dados, utilizamos a pesquisa bibliográfica. Percebemos, portanto, que a ética pode auxiliar a ecologia na preservação do Planeta, por meio de um processo de conscientização. Alertamos para o senso crítico de certas práticas nocivas, despertando a sociedade para a procura de soluções responsáveis e sustentáveis.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A escolha do tema nasceu da preocupação com o meio ambiente, que sofre os ataques do homem sem muito se preocupar com os resultados nem com o futuro do Planeta. Nosso objetivo geral é investigar como a ética pode auxiliar a ecologia na preservação do planeta, despertando no homem uma “exploração” responsável, consciente e sustentável do Meio Ambiente Natural. Foram trabalhados nessa pesquisa conceitos cuja finalidade foi estabelecer a relação entre Ética, Ecologia e Direito, a exemplo, do conceito de Meio Ambiente Jurídico e suas ramificações, entre outros, como ecologia, ecossistema e meio ambiente para o cidadão comum. No tocante a metodologia, utilizamos a Pesquisa Bibliográfica como principal fonte de coleta de dados. Assim, através de um levantamento bibliográfico sobre o assunto em questão discutimos o que é Ecologia, a relação da ética com a Ecologia e o Direito e o Meio Ambiente. Utilizamos as discussões de Nalini (2004), Guimarães e Farias (2007). Este trabalho dividiu-se, além da presente Introdução, em duas partes. Na primeira, buscamos expor os conceitos de Ecologia e de Meio Ambiente, e relacioná-los com o Direito. Na segunda, refletimos a respeito da ética e a ecologia. E por fim, apresentamos nossas considerações finais com relação à ética e o meio ambiente temas discutidos nesse trabalho.    2 Ecologia, Ética e Direito A abordagem feita nesse trabalho sintetiza o conceito de ecologia e o de meio ambiente, fazendo uma ponte com o Direito e com a Ética. Primeiramente, procuraremos deixar claro alguns conceitos que consideramos importante para a compreensão do nosso tema. Em seguida, faremos uma análise sobre a Ética e o Meio Ambiente, refletindo sobre questões de cidadania e de preservação do meio ambiente, incluindo o uso sustentável dos recursos naturais.    2.1 A Ecologia e o meio ambiente para o Direito Uma questão muito discutida atualmente é a relação consciente do homem com o meio ambiente, ou seja, uma relação ética entre o homem e a natureza. Mas antes de discutirmos essa relação é importante apresentarmos o conceito e o entendimento de meio ambiente, numa perspectiva do Direito. Primeiramente, estudaremos o conceito de ecologia. Segundo Nalini “ecologia é a ciência das relações dos organismos vivos e seu ambiente”. (NALINI, 2004, p. 174). Incluindo o homem que tem maior responsabilidade neste meio, pois é o único que o transforma. Enquanto os outros seres buscam adaptar-se ao meio em que vivem, o homem transforma a natureza e na maioria das vezes, agredindo o meio ambiente de maneira irreparável. E pensando nessa relação do homem com a natureza, ou seja, “se os ataques a natureza procedem do homem a ecologia é tema eminentemente ético” (NALINI, 2004, p. 175).  Quanto ao meio ambiente, segundo Farias (2007, p. 27) este é um “conjunto de condições e influências externas que cercam a vida e o desenvolvimento de um organismo ou de uma comunidade de organismos, interagindo com os mesmos”. O referido autor diz ainda que “para o cidadão comum o meio ambiente se confunde com a fauna e a flora apenas, o que passa a idéia errada de que os seres humanos e suas manifestações culturais não fazem parte desse conceito” (FARIAS, 2007, p. 26). Essa definição é bem interessante, porque coloca o homem como parte desse meio ambiente que ele mesmo destrói, sem ter a consciência em alguns momentos talvez, de que está se auto destruindo. Para o Direito o meio ambiente está assim posto no: “Art. 3°. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.” (FARIAS, 2007, p. 25) Tal definição deixa claro que meio ambiente não está de forma alguma restrito a fauna e flora, mas a todas as formas de vida. O que evidentemente não exime o homem de qualquer participação ou inclusão. Outra discussão que Talden Farias (2007, p. 27) nos chama a atenção é a redundância do termo meio ambiente, usado na língua portuguesa, uma vez que, o meio é o lugar onde se vive, com suas características e condicionamento geofísicos; e ambiente é aquilo que cerca ou envolve os seres vivos ou as coisas. Tais significados nos levam a mesma definição para as palavras, concluindo dessa forma que meio e ambiente tem o mesmo significado. Voltando a questão do conceito de meio ambiente, segundo Farias, a Lei ampliou o conceito jurídico de meio ambiente levando a definição de que toda a natureza, de forma integrativa e interativa, fosse denominada de meio ambiente. Isso nos remonta a idéia de ecossistema mais um conceito a ser estudado. Portanto, ecossistema “é a unidade fundamental do meio físico e biótico, em que coexistem de forma integrada e sistêmica uma base orgânica gerando produtos específicos” (FARIAS, 2007, p. 29). O autor conclui ainda que um desrespeito ao planeta é desrespeito também ao homem, o que nos leva a idéia de que se o homem está agredindo a natureza está também desrespeitando o seu próximo, e portanto, está agindo de forma antiética. Para melhor estudo jurídico dessas questões sobre meio ambiente houve um desdobramento nesse conceito, ou seja, dividiu-se em: Meio Ambiente Natural, Meio Ambiente Artificial, Meio Ambiente Cultural e Meio Ambiente do Trabalho, que de acordo com Farias têm as seguintes definições: “O meio ambiente natural é constituído pelos recursos naturais…; o artificial é constituído ou alterado pelo ser humano, sendo constituído pelos edifícios urbanos, que são os espaços públicos fechados, e pelos equipamentos comunitários, que são os espaços públicos abertos, como as ruas, as praças e as áreas verdes; o cultural é o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, ecológico, científico e turístico e constituem-se tanto de bens de natureza material, a exemplo de construções, lugares, obras de arte, objetos e documentos de importância para a cultura, quanto imaterial, a exemplo de idiomas, danças, mitos, cultos religiosos e costumes de uma maneira geral; do trabalho, também considerado uma extensão do conceito de meio ambiente artificial, é o conjunto de fatores que se relacionam às condições do ambiente laboral, como o local de trabalho, as ferramentas, as máquinas, os agentes químicos, biológicos e físicos, as operações, os processos e a relação entre trabalhador e o meio físico e psicológico.” (FARIAS, 2007, p. 30-35). 2.2. Reflexão ética sobre o Meio  Ambiente A partir das agressões que o ser humano causa a natureza nasce também o pensar numa ética ecológica. Esta ética ecológica visa uma “postura mais consciente das criaturas em relação ao mundo físico” (NALINI, 2004, p. 175). Não basta só preservar o natural, nem idolatrar a natureza tornando-a intocável, é preciso ser responsável sim, e fazer uso saudável desses recursos, caso contrário, poderemos não deixar esse legado para nossos descendentes. Em seu artigo “Ecologia Profunda, Ecologia Social e Ecologia ética” Guimarães, lembra que a agressividade ao meio ambiente vem da forma materialista e pretensamente racional de ver o mundo, incluindo o crescimento desordenado da população mundial, principalmente nos países pobres; a escassez de recursos, a injusta distribuição de renda, a degradação ao meio ambiente. Enfim, ele sugere ainda que o egoísmo da humanidade seja substituído por um desenvolvimento sustentável. Dessa forma, vemos que a ética ecológica engloba muito mais do que apenas a relação do homem com a natureza, mas do homem com o homem também. Parafraseando Leonardo Boff “a ética nasce da razão, de algo mais profundo, que é a inteligência emocional”, ou seja, nasce do agir de forma realmente racional. O homem já percebeu que continuar dessa forma vai trazer o fim da humanidade, infelizmente ainda não é a maioria que tomou essa consciência. E que só há uma forma de nos mantermos unidos, com o mesmo objetivo que é a solidariedade. Aliás, para Boff, “nós nascemos da solidariedade. Nossos ancestrais se diferenciavam dos outros animais pela capacidade de dividir a caça”. Enquanto hoje a humanidade está mais egoísta, mais pretensiosa e são poucos que pensam na ecologia de forma séria e comprometida. Exigi-se do homem mais prudência na hora de agir diante da natureza. Segundo Nalini, “prudência que leva em consideração o futuro, pois seria perigoso e imoral esquecê-lo” (NALINI, 2004, p. 176). Além disso, não se está levantando uma bandeira contra o avanço tecnológico, nem contra o progresso, mas como diz: “Reclama-se de uma racionalização do progresso. A devastação do mundo físico, a poluição da terra e do mar, a destruição das florestas e da fauna, a deterioração das paisagens e dos vestígios históricos, não pode ser o projeto humano para o planeta.” (NALINI, 2004, p. 176). O agir de forma ecológica e a ética estão intrinsecamente ligados. Para a ciência esta é uma questão um tanto bizarra porque muitos cientistas, como diz Guimarães em seu artigo: “Cientistas mecanicistas, que crêem num universo máquina, projetam sistemas de armamentos com a capacidade de destruir inúmeras vezes toda a vida do planeta, desenvolvem novos produtos químicos que contaminam o meio ambiente global sem nenhum respeito ético pela vida, ou desenvolvem mutações em microorganismos vivos que podem ser soltos por ai sem muito pensarem nas conseqüências de seu mister, isso sem falar de psicólogos que torturam animais e acabam por acreditar que o homem pode ser manipulado da mesma forma, além do mecanicismo econômico, que descarta qualquer possibilidade de se incluir valores e/ou qualidade de vida em seus gráficos de oferta e procura.” Dessa forma, o agir ético/ecológico deve ser responsabilidade de todos indistintamente e não só do cientista, dos governantes, dos donos de fábricas de alto nível de poluição, do trabalhador rural que corta a madeira sem se preocupar em plantar outras em seu lugar, enfim, a responsabilidade é de todo e qualquer ser humano que quer continuar a vida no planeta. Por isso deve-se pensar numa exploração dos recursos de forma auto-sustentável. Muitos são os debates a respeito desse tema, mas não basta apenas discutir temos que criar políticas publicas de desenvolvimento da extração dos recursos de forma sustentável, pois “o mundo não é supermercado barato, de onde se extrai o que se quer, debitando-se à providencia o encargo de reposição”. (NALINI, 2004, p. 176). Os países ricos também precisam mudar sua política. Haja vista que por já terem esgotado os seus recursos naturais, em alguns casos, deslocam seus eixos de exploração para países pobres, com o discurso que estes para atingir um estágio de desenvolvimento precisam seguir o mesmo caminho de outros países, ou seja, explorar seus recursos naturais de maneira irresponsável. Para Nalini “a falta de consciência dos países que alcançaram seu desenvolvimento mediante sacrifício da natureza não legitima postura idêntica dos situados em etapas anteriores”. (2007, p. 177). Algumas atitudes diante do mundo são imprescindíveis para a preservação do meio e para recompô-lo, ou seja, “respeitar a natureza, respeitar a vida, empenhar-se na reposição das espécies, plantar uma árvore, cuidar de um jardim, não poluir, alimentar os pássaros, libertar-se do consumismo”. (NALINI, 2004, p. 178). E quanto a questão do consumismo abrimos um espaço importante para tal discussão. “Esse o grande pecado ético desta era: acumular bens, substituí-los sem necessidade, navegar na ilusão de que a multiplicação da posse e propriedade de objetos desnecessários constitui remédio para o vazio existencial e para a angustia da morte” (NALINI, 2004, p. 178). Portanto, só contribuem para a degradação do meio ambiente. Porque quanto mais se busca consumir mais os fabricantes irão produzir, extrair os recursos naturais, e mais irão poluir com os “lixos tecnológicos”, enfim é um círculo de degradação do meio. Em suma, vê-se que a poluição ou as agressões não são somente ao meio ambiente físico como também são ao ambiente cultural e moral que de acordo com Nalini “são mais graves do que a poluição da atmosfera ou das águas” (2004, p. 1800. Isso porque a população vive um vazio existencial profundo, a educação do ter, do consumir, do ser o melhor impera nas relações fazendo com que os indivíduos se autodestruam nas drogas, na delinqüência, enfim há uma falta de perspectiva geral o que nos leva a questionar onde estão os valores morais, os princípios. E por isso Nalini afirma que a lucidez existente deve se preocupar com a transmissão de valores éticos que inclui um bom comportamento diante do meio ambiente. Para tanto a ética pode auxiliar muito bem nesta questão, fazendo refletir sobre sua relação saudável com o meio ambiente, sua responsabilidade diante da natureza, seu repensar diante do consumismo exacerbado, sua missão em preservar a vida.               3 Considerações finais Concluímos desse, trabalho que a ética e a ecologia estão intrinsecamente ligadas na preservação do meio ambiente, seja ele natural, cultural, do trabalho etc. A ética vai ter o papel de despertar no homem as responsabilidades que este deve ter diante do meio que pode ir de um simples ato de não jogar um papel na rua a “exploração” sustentável dos recursos naturais. E para que atitudes éticas sejam despertadas nos indivíduos se faz necessário que todos se engajem numa espécie de projeto da conscientização ambiental. É importante que as instituições responsáveis pela educação, seja sistemática ou assistemática, façam um pacto de responsabilidade com o meio, ou seja, é preciso que as escolas, as igrejas, todas as instituições educacionais tomem consciência da importância desse tema e busquem uma estratégia para conscientizar as pessoas da importância do meio ambiente. É preciso também que os órgãos responsáveis por tanta degradação da natureza sejam penalizados, ou seja, é preciso que se faça valer o Direito Ambiental. É importante também que toda a população desperte e perceba os males que estão causando ao meio ambiente e a partir daí passem a ter atitudes éticas, que passem a ter responsabilidades e passem a tratar o Planeta como a sua casa. As questões ecológicas são também questões de educação. Sendo assim, quando alguém joga lixo nas ruas, nos rios, no mar está além de poluindo o rio ou o mar, sendo anti-higiênico e mal educado. Talvez para os brasileiros isso seja uma questão já cultural, mas não podemos nos acostumar com isso. A nossa intenção nessa pesquisa foi provocar uma discussão sobre atitudes éticas diante do meio ambiente para que assim preservemos o nosso habitat e o dos outros seres também. E principalmente, que através da ética seja possível atitudes de preservação do meio.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-76/ecologia-etica-e-direito/
O princípio da liberdade e a bioética
Pretende este trabalho demonstrar, por meio de revisão bibliográfica, numa perspectiva civil-constitucional, que o princípio bioético da autonomia, passou a produzir relevantes conseqüências no mundo jurídico, especialmente na relação médico/paciente como instrumento de concretização do Direito à Liberdade, assim entendimento como um dos postulados materiais da Dignidade da Pessoa Humana.
Biodireito
1) INTRODUÇÃO O termo liberdade segundo o Dicionário da Língua Portuguesa (NASCENTE, 1988) significa a “faculdade de fazer ou deixar de fazer uma coisa por vontade própria sem se submeter a imposições alheias; condição de homem livre, não pertencente a nenhum senhor; gozo dos direitos de homem livre”. Partindo deste conceito percebe-se sem grande esforço intelectual que a dignidade humana somente pode existir se o homem for livre, capaz de ter e exercer direitos, pessoas com aptidões e possibilidade de escolha. Na relação médico/cliente há uma relação entre particulares onde a relação de poder, estabelecida pela disparidade na relação de conhecimento, necessita de condições especificas para que possa ocorrer. 2) PRINCÍPIO DA LIBERDADE E SEU ESCOPO RELACIONADO A BIOÉTICA E AO DIREITO. Como já afirmou Daniel Sarmento (2006, p. 221) “os particulares são titulares de uma esfera de liberdade juridicamente protegida, que deriva do reconhecimento de sua dignidade”. A liberdade ainda segundo o referido autor (SARMENTO, 2006) encontra uma concepção dualista na liberdade como autonomia privada/liberdade como soberania popular, significando a primeira na chamada liberdade dos modernos, com inspiração no modelo liberal, e a última na chamada liberdade dos antigos, formulada na acepção da polis grega. Concepção que encontra seus paradigmas nas liberdades individuais e na soberania popular. As liberdades individuais e soberania popular, seguindo o pensamento de Jürgen Habermas (1997), seriam, diferentes da concepção clássica, vez que estas seriam concebidas como direitos naturais, e aquelas como uma criação da coletividade (CANOTILHO, 2008) que as reconhece e as protege. Sarmento (2006) ainda faz referência as chamadas liberdade positiva e a liberdade negativa, sendo esta última relacionada a possibilidade do individuo de agir ou não agir de acordo com a sua subjetividade e sem elementos coativos externos. É a liberdade com ausência de constrangimento, conclui (SARMENTO, 2006). Já a liberdade positiva seria aquela onde a pessoa tem o direito de se orientar segundo a sua vontade, esta relacionada a autodeterminação (FREIRE DE SÁ, 2003). É a liberdade onde a pessoa reúne as condições para agir sem depender de fatores externos. Esta distinção hoje em dia, perdeu de certa forma sua relevância, pois para o exercício de qualquer tipo de liberdade é necessário que a pessoa tenha um mínimo de compreensão do que esta liberdade representa. O que é muito difícil em um país cuja desigualdade é enorme. Para além disso, como é sabido a opressão não vem apenas do Estado, pois o Poder esta espalhado por toda a sociedade (SARLET, 2000), de forma que também as relações sociais (entre particulares, especialmente na relação médico/cliente) podem oprimir e cercear a liberdade da pessoa. Razão para que a liberdade seja vista sob o ponto de vista da pessoa humana e não do Estado. Sob este percebe-se que a pessoa para se desenvolver e ser concebida como sujeito de direito precisa ter liberdade tanto em suas relações com o estado (autonomia pública do cidadão( SARMENTO, 2006)) como liberdade nas relações inter-privadas (autonomia privada). Para a presente análise é prevalente a questão da liberdade nas relações interprivadas, posto que o reconhecimento da relação médico/paciente ser a seara de sua atuação. Neste sentido Maria Celina Bodin de Moraes (2003) entende que o princípio da liberdade individual “significa, hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor lhe convier”. Este princípio da liberdade pode ser encontrado no inciso do II do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, onde é estabelecido que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Liberdade neste sentido tem como consectário lógico a autonomia privada (JUNGES, 2007) que busca significar na relação entre médico/cliente o poder deste último de se autodeterminar, de decidir segundo a sua própria vontade a submissão a este ou àquele tratamento (VIEIRA, 2001). Autonomia considerada como elemento essencial da dignidade da pessoa humana baseado na crença do “individuo conformador de si próprio e da sua vida”.(SARMENTO, 2006) A autonomia privada assim é considerada como instrumento de realização do princípio da liberdade (VIEIRA, 2001) e conseqüentemente da própria dignidade da pessoa humana, vez que “negar ao homem o poder de decidir de que modo vai conduzir a sua vida privada é frustrar sua possibilidade de realização existencial”. (SARMENTO, 2006) Entretanto, esta autonomia privada, na relação médico/cliente, necessita de um ambiente propício para que possa se concretizar (FABBRO, 2008). Posto que, como é sabido, na relação medico/cliente somente um lado é detentor do conhecimento técnico especializado (BERTONCINI, 2008), consubstanciando um distanciamento entre as partes que passam a compor lados opostos, inversamente proporcionais e dispares na relação de forças e conhecimentos (CARVALHO, 2005). Neste tipo de situação onde uma parte é privilegiada (médico) em referência outra que possui condições inferiores (BOLTANSKI, 1984) (cliente) é necessária a inserção de outro princípio, a igualdade – que será abordado em momento oportuno -, como elemento basilar das condições a fim de colocá-las em paridade. Sem esta ação equitativa, sem se colocar as partes em iguais condições, não há liberdade (SARMENTO, 2006), dada a superioridade de uma parte em relação a outra. Sem igualdade de condições, não há liberdade e muito menos respeito a dignidade da pessoa humana, pois como diz um conhecido ditado “entre o fraco e o forte, é a lei que liberta e a liberdade que escraviza”. A Constituição da Republica reconhece esta necessidade de igualar as condições tanto que reconhece a obrigação do Estado de agir com a finalidade de colocar as partes e igualdade de condições. E não é só isso a Constituição ao reconhecer à autonomia privada o fez em diferentes níveis, conferindo evidentemente mais força as questões da autonomia que dizem com relação a pessoa humana (fonte da dignidade da pessoa humana) e menos força nas questões relacionadas ao patrimônio (SARMENTO, 2006). Trata-se de uma questão de fundamento da autonomia, vez que não se pode conferir igual proteção a autonomia negocial (STEINMETZ, 2007) e a autonomia nas questões existenciais que dão direto na sua dignidade como pessoa humana. Existe uma hierarquia muito maior no fundamento da autonomia nas questões da pessoa em relação a autonomia negocial. 3) O TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO A efetiva concretização da liberdade, como expressão da autonomia da pessoa, no campo da relação médico/cliente se materializa no que se convencionou chamar de termo (RIBEIRO, 2006) de consentimento livre e esclarecido (BAÚ, 2000), cujas origens remontam ao Código de Nuremberg de 1947 (CASABONA, 2005). Este termo antes conhecido como consentimento informado, hoje, como consentimento livre e esclarecido (VAZ, 2007), pois a simples informação é insuficiente são necessários a liberdade e o entendimento para que possa decidir (VIEIRA, 2005). O termo de consentimento livre e esclarecido ganhou destaque após o Relatório Belmont (NEVES, 2009) de 1978 e do artigo de Tom Beauchamp e James Childress em “Principles of biomedical ethics”, de 1979, sendo bastante difundido nos Estados Unidos e na Europa principalmente pelos Filósofos Emmanuel Lévinas e Hans Jonas, se tornando um dos princípios instrumento do princípio bioético da autonomia. Para a formulação do termo de consentimento livre e esclarecido é necessário que o dever a existência de correto informação por parte do médico. Este dever de informação é principio e regra básica do direto consumidor (inciso IV do art. 4º e inciso III do art. 6º, ambos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) além de ser direito fundamental da pessoa conforme enunciado no inciso XIV do art. 5º da CRFB/88, conformando ainda outro princípio das relações contratuais que é a boa-fé objetiva (SOTTO, 2009). Estes preceitos e valores funcionam como base e suporte para o exercício do princípio constitucional da liberdade. Segundo Giostri (2009), termo de consentimento livre e esclarecido é: “O dialogo entre o paciente e o provedor de serviço, por intermédio do qual ambas as partes trocam perguntas e informações, culminando com o acordo expresso do paciente com a intervenção cirúrgica ou para um determinado tratamento especifico.” Mesmo entendimento apresentado por José Carlos Maldonado de Carvalho (2005), no sentido de que o consentimento é um processo. Este termo é a forma pela qual o médico informa ao cliente, ou ao seu representante, o seu estado de saúde, o diagnóstico, o prognostico e as possíveis formas de tratamento (SCHAEFER, 2006). Esta informação deve ser suficientemente clara, de forma que o cliente que tem formação leiga e às vezes poucas condições de entender o que o médico esta lhe explicando (BOLTANSKI, 1984), possa compreender perfeitamente o que lhe esta sendo informado. É preciso que o médico expressamente informe ao cliente em condições claras (SCHAEFER, 2006) e precisas é necessário mais, que o cliente consiga entender o que lhe esta sendo explicado (GIOSTRI, 2009). O que nem sempre acontece seja pela ausência de explicação de uma parte seja pela impossibilidade de compreensão da outra. Como ato capaz de produzir efeitos jurídicos é necessário que tal consentimento respeite os termos de existência, validade e eficácia (VIEIRA, 2005), posto que a ausência de condições ou de informações para a declaração de vontade e a forma pela qual a mesma foi obtida pode tornar o ato inexistente, nulo ou ineficaz. O cliente deve estar lúcido e ter discernimento para que possa compreender o que esta se passando, situações emergenciais pode retirar este discernimento do cliente dado o estado de perigo. Dado o desconhecimento do cliente das técnicas médicas, é necessário que haja estreita relação entre o que se esta consentindo com a necessidade de restabelecimento da saúde do cliente. Também é necessário que o consentimento seja dirigido a profissional médico com a habilitação necessária para a realização da técnica, o equivoco do cliente, passando consentimento a quem não esteja habilitado é causa de nulidade do mesmo. Ainda sobre o espectro da declaração de vontade, enquanto consentimento para a realização de determinado ato médico, esta deve ser prévia, não valendo a sua convalidação após o ato (GIOSTRI, 2009). Como é prévia, pode o cliente dela desistir a qualquer momento antes da realização do ato médico, dada a sua liberdade de conformar-se de acordo com a sua vontade. Se o cliente não tem o necessário discernimento, por ser menor ou por ter um reduzido discernimento, Genival França (1978), entende que ainda assim, por uma obrigação moral, além do consentimento do responsável legal, que é necessário o esclarecimento do ato ao cliente e que seja obtido seu consentimento moral. 4) O TESTAMENTO VITAL Após a obtenção do consentimento, com o início da realização do ato médico podem surgir questões relacionadas a necessidade de alteração do procedimento inicialmente previsto, ou mesmo a necessidade de novo ato médico não previsto. Nestes casos se o cliente esta lúcido bastará a obtenção de novo consentimento, entretanto, o mesmo não será possível se se encontrar impossibilitado de dizer sua vontade. Nesses casos de incapacidade é necessária a obtenção do consentimento de terceiros, assim considerado como responsáveis legais pelo cliente. Entretanto, como se torna obvio podem surgir várias questões que impedem a obtenção de tal consentimento de terceiros ou mesmo a divergência entre a vontade do cliente com a daquele terceiro. Nestas situações tem ganhado ênfase o chamado testamento vital (REQUERO IBANEZ, 2002). Termo muito criticado dada a impossibilidade de se falar de eficácia de um testamento durante a vida da pessoa (ASCENSÃO, 2008). Neste documento, que melhor se assemelha como uma extensão do consentimento livre e esclarecido, o cliente declararia previamente a sua vontade no caso de eventos adversos àqueles previstos na previsão médica inicial. Tem como extensão do consentimento livre e esclarecido, o mesmo fundamento na dignidade da pessoa humana. Entretanto, dada a impossibilidade de se dispor da própria vida, Ascensão (2008) entende que somente poderia ser respeitado tal documento se ali estivessem estabelecidos critérios de vontade na busca de preservação da vida, não se tornando validos preceitos que intuíssem com a sua terminalidade. No Brasil ainda não existe legislação que aborde o tema (CALVO, 2009), embora muitos outros países já  conhecem e legitimem o seu uso como os Estados Unidos e a Espanha (REQUERO IBANEZ, 2002). Inobstante, a sua previsão na legislação brasileira, de certo que a sua existência é perfeitamente possível como uma extensão que é do consentimento livre e esclarecido, conforme já abordado antes. 5) O TCLE E A JURISPRUDÊNCIA Como pudemos conferir pela analise até exposta o Direito Constitucional de Liberdade alcança e efetiva a dignidade da pessoa humana na relação médico/cliente. Neste passo, utilizaremos um acórdão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2002) que bem demonstra esta concretização. O acórdão em comento professa especial importância ao consentimento livre e esclarecido, demonstrando de forma cabal a concretização do Direito de liberdade do cliente em sua relação com o médico. O voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar deixa claro este ponto ao exarar o seguinte: “A despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento informado pode significar – nos casos mais graves – negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano. Recurso conhecido.” Fica evidente a necessidade do dever de informação e não deve ser qualquer informação esta informação deve deixar claro para o cliente os riscos e as possibilidades do ato médico. Existe a necessidade de não somente informar que existem riscos é necessário dizer e explicar quais os riscos, como o voto menciona. “Do ponto de vista doutrinário e legal, o r. acórdão apenas acentuou o dever ético do médico de informar o paciente sobre as conseqüências da cirurgia, o que não se confunde com a singela comunicação de que o ato operatório seria difícil e demorado, nada esclarecendo sobre a conveniência da intervenção cirúrgica, resultados, expectativas e possibilidades de êxito ou de agravamento do quadro.” Também fica evidente no voto a necessidade de condições próprias para se obter o consentimento livre e esclarecido, o que conforme relatado na ocorreu. “O Dr. Agenor não custodiou com seriedade a paciente que, submissa e dominada pelos pré-anestésicos, estava ali à sua mercê, na mesa de cirurgia. Saiu-se com evasivas no que tange à necessidade de dimensionar a pressão intra-ocular, diagnosticou hemorragia diabética sem fazer exame algum, limitou-se a conversar com a paciente poucos minutos antes da operação, presumiu que um desconhecido, sem a especialidade exigida para o caso, houvesse informado conveniente a autora sobre os riscos da cirurgia, deixou que a paciente mantivesse a esperança de que o médico em que confiava estava prestes a chegar; enfim, não a custodiou sob o compromisso de seu grau, sob o compromisso de sua vocação, sob o compromisso da medicina.” 6) CONSIDERAÇÕES FINAIS A Liberdade, portanto, para ser exercida necessidade de condições favoráveis para sua ocorrência e não relação médico/cliente estas passam por circunstancias que se traduzam na efetivação de uma maior igualdade na relação de poder entre as partes envolvidas. De certo que uma pessoa já desapossada de roupas, sob a mesa de cirurgia submissa e colocada sob a vontade e os olhares da equipe médica que aguarda pela cirurgia não tem condições, não tem liberdade de exercer com serenidade as suas escolhas, ainda mais quando não lhe é informado sobre os riscos do ato médico. De certo que para quem se vê no desespero qualquer esperança se torna um porto seguro e grande motivador. Como demonstrado o direito à liberdade, como substrato material da dignidade da pessoa humana, encontra boas condições de se efetivar por meio da do exercício da autonomia privada.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-76/o-principio-da-liberdade-e-a-bioetica/
Combate à biopirataria: Proteção aos direitos humanos dos povos tradicionais
Possui como finalidade o presente artigo abordar a questão dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais – conhecimentos tradicionais – violados através da prática da biopirataria por grandes empresas e nações de Primeiro Mundo no contexto econômico da biotecnologia e da propriedade intelectual, enumerando possíveis complexos normativos de combate a esta exploração inaceitável.
Biodireito
Introdução. O Brasil, considerado o país com a maior biodiversidade do planeta, possui um tesouro precioso e cobiçado por outras nações que precisa ser protegido: os conhecimentos associados dos povos e comunidades tradicionais. Os conhecimentos tradicionais dos povos e comunidades locais são perpetuados de geração para geração. Esses saberes associados sempre foram e continuam sendo objetos de exploração. Verifica-se que essas riquezas são tratadas como meras mercadorias, equiparando-as como um objeto comercializável sem qualquer proteção aos direitos humanos da propriedade intelectual destes povos tradicionais. Através da biopirataria, as empresas estrangeiras vêm se apropriando e monopolizando indevidamente dos conhecimentos das populações tradicionais, enriquecendo-se de forma unilateral, sem quaisquer repartições de benefícios a estas comunidades. Com o avanço da biotecnologia, o fácil acesso ao registro de marcas e patentes em nível internacional, bem como a existência de acordos internacionais sobre propriedade intelectual e a ausência de legislações eficazes, essa prática de exploração dos conhecimentos associados tem se intensificado a cada dia, sem sofrer qualquer tipo de coerção por parte do Poder Público. De acordo com o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida[1], estima-se que cerca de ¼ do Território Nacional Brasileiro é ocupado por povos e comunidades tradicionais, correspondendo quase 5 (cinco) milhões de pessoas, representados por diversos segmentos, tais como: povos indígenas, extrativistas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, andirobeiras, quebradeiras de coco-de-babaçu, seringueiros, castanheiros, dentre outros. .Diante de tal estatística, não se pode ignorar a importância destas comunidades locais para o planeta, não só pelos aspectos econômicos, culturais e sociais, como também, principalmente, pelo aspecto ambiental, considerando que o uso da natureza por estas comunidades ocorre de forma sustentável, uma vez que a sobrevivência destes povos depende de um meio ambiente devidamente preservado. Estas populações são consideradas guardiãs dos ecossistemas naturais. O presente trabalho tem como escopo abordar a questão dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais – conhecimentos tradicionais – violados através da prática da biopirataria por grandes empresas e nações de Primeiro Mundo no contexto econômico da biotecnologia e da propriedade intelectual, enumerando possíveis complexos normativos de combate a esta exploração inaceitável. Serão avaliados a eficácia dos instrumentos normativos de direito ambiental e de direitos humanos, inclusive do Protocolo de Cartagena, do Tratado de Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS e, especialmente, dos resultados obtidos pela Conferência das Partes – COP e pela Meeting of Parties – MOP, na Oitava Reunião da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica – COP 8 e Terceira Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança – MOP 3, realizada em 2006, na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná. Por fim, identificará os principais casos de biopirataria existentes no Brasil, inclusive no Estado do Pará, a fim de denunciar esta prática que vem sendo disseminada na região. 1.Povos Tradicionais. Muitos são os conceitos utilizados para definir os termos “povos tradicionais” ou “comunidades locais”. Em uma visão normativa, o Decreto n˚ 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, considera como povos e comunidades Tradicionais, os grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. O decreto apresenta como territórios tradicionais, os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações. Avalia, ainda, como desenvolvimento sustentável, o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras. Por outro lado, a Medida Provisória 2.186-16 de 23 de agosto de 2001, que institui um sistema nacional para regular o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados, bem como a repartição de benefícios derivados do seu uso, define comunidade local como sendo um grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas. A referida Medida Provisória esclarece que conhecimento tradicional associado é a informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético. Desta forma, estão inseridos neste grupo, além dos quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, caiçaras, seringueiros, etc., os povos indígenas, os quais representam a maior parte. Verifica-se que esses saberes associados estão sendo explorados de forma ilegal. A apropriação indébita de patrimônio genético da fauna e flora existente no país para patenteamento no exterior e a exploração comercial de derivados farmacêuticos, cosméticos e alimentares estão sendo cada dia mais freqüentes. Não é de hoje que essa prática ocorre, a mesma é presente ao longo de toda a história do Brasil. Corroborando esse fato, citam-se exemplos clássicos[2], da biopirataria: no século XVI, o uso das propriedades corantes do pau-brasil na Europa; no século XIX, o envio de mudas de seringueira para a Ásia, causando a ruína econômica desta cultura no norte do país; e, recentemente, o uso do veneno da jararaca como base para um dos fármacos anti-hipertensivos mais comercializados no mundo, com faturamento anual de milhões de dólares. Embora a biopirataria ainda não esteja definida juridicamente, considera-se a “atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a ambos) em desacordo com os princípios estabelecidos na Convenção sobre Diversidade Biológica” (SANTILLI, 2005). A Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB é um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD -, realizada no Rio de janeiro em junho de 1992. É considerada umas das mais importantes convenções ambientais e representa um compromisso legal, sendo o primeiro acordo mundial sobre a conservação e uso sustentável de todos os componentes da biodiversidade, incluindo recursos genéticos, espécies e ecossistemas a fim de coibir a prática da biopirataria. A convenção entrou em vigor em 1993 e já foi ratificada por 188 países, representando uma participação universal. Apesar de ser considerado o principal fórum mundial de debate sobre temas e questões relacionados à conservação da diversidade biológica, ao uso sustentável e à repartição equitativa dos benefícios resultantes do uso de recursos genéticos[3] e já tendo passado mais de uma década desde a entrada em vigor da referida convenção, a questão da exploração dos saberes associados dos povos tradicionais não se alterou. Verifica-se que inúmeros países estão se apropriando indevidamente através de concessão de patentes de produtos ou processos elaborados a partir de espécies de plantas existentes no Brasil. Identifica-se a existência de inúmeras patentes[4], já concedidas a países como os Estados Unidos, o Japão, a França, a Alemanha, a Suíça, a Polônia, os Países Baixos e a Áustria, das seguintes espécies: 26 patentes da unha-de-gato, 09 patentes da copaíba, 22 patentes do jaborandi e 06 patentes da andiroba. A constatação dessas concessões ilegais, sem qualquer solicitação de acesso às comunidades locais para o uso destes recursos genético, gera um enriquecimento estratosférico apenas aos laboratórios fármacos, corroborando a delicada problemática acerca do assunto e que demonstra a necessidade de criar mecanismos legais a fim de proteger os direitos humanos destes povos, e, conseqüentemente, do mundo como um todo. De acordo com o autor Alexandre de Moraes[5], direitos humanos fundamentais “colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana”. Desta forma, não se pode compactuar com a constante depreciação e usurpação ilegal por parte de nações, empresas estrangeiras, e inclusive, de empresas nacionais dos saberes associados. É inaceitável a inércia diante da evidente violação aos direitos humanos, a dignidade humana de cada um desses povos ao permitir, ao longo dos anos, que a biopirataria ainda continue se proliferando. O descaso à proteção aos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais diante da biopirataria é intolerável. O Brasil, sendo um país megadiverso e sociodiverso, com cerca de 200 mil espécies identificadas, não pode aceitar que essa riqueza seja contrabandeada. Estima-se[6], que em todos os seus seis biomas (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal) e na Zona Costeira e Marinha, o Brasil possa alcançar a cifra de 2 milhões de espécies nativas. Diante de tanta riqueza, necessário se faz criar mecanismos legais eficazes de proteção aos direitos do uso da natureza e saberes associados. A inexistência de uma legislação rígida somado ao desrespeito de tratados como a Convenção sobre Diversidade Biológica, que reconhecem o direito dos países à repartição de benefícios, preocupa o futuro dos povos tradicionais, pois, sem uma proteção legítima esses saberes continuarão sendo utilizados, sem qualquer repartição de benefícios e sem nenhuma proteção juridicamente relevante. Destaca-se que a biopirataria proporciona aos contrabandistas um enorme lucro, acrescido a uma gigantesca economia nos custos de fármacos, cosméticos e alimentos. Verifica-se que a descoberta de novos produtos comerciais torna-se mais acessiva e econômica, para estes piratas ambientais, por meio dos conhecimentos associados à biodiversidade dos povos tradicionais. Assim, eles lucram e economizam ao mesmo tempo sem repartir os benefícios. É diante dessa lacuna que o presente trabalho tem o intuito de analisar o binômio: direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais e biopirataria, tratando o assunto em um contexto econômico da biotecnologia e da propriedade intelectual, alertando para o fato de que é necessária a construção de um ordenamento jurídico com o fim de combater a biopirataria. Desta forma, estimulando o debate acerca do tema para que tais povos se tornem visíveis aos olhos da legislação e não, apenas, visíveis aos olhos dos contrabandistas. 2. Direitos Humanos e suas gerações A fim de compreender melhor o tema em questão, necessário se faz, inicialmente, apresentar a definição de direitos humanos e sua evolução. Explica o autor Alexandre de Moraes[7] que “o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais”. Nesse sentido a Constituição Federal de 1988, estabelece logo em seu primeiro artigo, como um dos seus Princípios Fundamentais, a dignidade da pessoa humana. Acrescenta, o autor que a “Unesco, também definindo genericamente os direitos humanos fundamentais, considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro, regras para se estabelecerem condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”. A doutrina divide os direitos fundamentais em gerações, cada uma com suas características próprias, que variam e refletem os acontecimentos históricos da época. O autor Pedro Lenza[8] destaca que a “doutrina, dentre vários critérios, costuma classificar os direitos fundamentais em gerações de direitos (lembrando a preferência da doutrina mais atual sobre a expressão “dimensões” dos direitos fundamentais). O doutrinador divide os direitos em quatro gerações, da seguinte forma: Direitos Humanos de primeira geração, segunda geração, terceira geração e quarta geração. Em relação aos Direitos Humanos de primeira geração, o autor esclarece que “alguns documentos históricos são marcantes para a configuração e emergência do que os autores chamam de direitos humanos de primeira geração (séculos XVII, XVIII e XIX): (1) Magna Carta de 1215, assinada pelo rei “João Sem Terra”; (2) Paz de Westfália (1648); (3) Habeas Corpus Act (1679); (4) Bill of Rights (1688); (5) Declarações, seja a americana (1776), seja a francesa (1789). Mencionados direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civil e políticos a traduzirem o valor de liberdade”. No que diz respeito aos Direitos Humanos de segunda geração, o autor menciona que “os direitos humanos ditos de segunda geração privilegiam os direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo aos direitos de igualdade”. Por outro lado, ao discorrer sobre os Direitos Humanos de terceira geração o autor enfatiza que “o ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade”. E, por fim, ao explicitar sobre os Direitos Humanos de quarta geração, o autor supramencionado avalia que “segundo orientações de Norberto Bobbio, referida geração de direitos decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, ao colocarem em risco a própria existência humana, através de manipulação do patrimônio genético. Segundo o mestre italiano: “… já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada individuo”. A questão da quantidade de gerações dos direitos humanos é controvertida tendo em vista que há doutrinadores que apresentam apenas três gerações, como o autor Alexandre de Moraes[9], o qual afirma que “modernamente, a doutrina apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos”. Assim, o autor indica que, “os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas), surgidos institucionalmente a partir da Carta Charta”. Outrossim, considera como direitos fundamentais de segunda geração “os direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século”. E, por fim, enfatiza o autor que “modernamente, protege-se, constitucionalmente, como direitos de terceira geração os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado[10], uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos.    Mesmo não apontado uma quarta geração, o autor admite que existem outros doutrinadores que apresentam quatro gerações ao afirma que “note-se que Celso Lafer classifica esses mesmos direitos em quatro gerações, dizendo que os direitos de terceira e quarta gerações transcendem a esfera dos indivíduos considerados em sua expressão singular e recaindo, exclusivamente, nos grupos primários e nas formações sociais”.   Diante da importância verificada dos direitos humanos, pretende-se, no presente trabalho, enfocar os direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais no que diz respeito à proteção dos saberes associados quando violados através da prática da biopirataria. 3. Combate à biopirataria A autora Juliana Santilli[11], em seu artigo intitulado “A proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade”, afirma que “nos últimos anos, os recursos da biodiversidade e os conhecimentos tradicionais a eles associados tornaram-se alvo de intensos debates e das mais diversas denúncias de biopirataria. Não há uma definição propriamente jurídica de biopirataria”. Entretanto, afirma a autora que “é relativamente bem aceito o conceito de que a biopirataria é a atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos ou aos conhecimentos tradicionais a eles associados (ou a ambos) em desacordo com os princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB”. A autora acrescenta, ainda, que “quando a atividade envolve conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas e populações tradicionais, a CDB estabelece a necessidade de que a sua aplicação se dê mediante aprovação e a participação de seus detentores e a repartição, com estes, dos benefícios. Assim, a fiel observância aos princípios da CDB implica tanto a consulta aos países de origem dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados como expressão de sua soberania em face de outros países – quanto a consulta aos povos e populações tradicionais detentores dos recursos genéticos situados em seus territórios e dos conhecimentos tradicionais a eles associados”. Mesmo sem uma definição jurídica, verifica-se que a biodiversidade permite, por exemplo, a criação de medicamentos capazes de curar inúmeras doenças. O Brasil é considerado possuidor de uma “Farmácia Viva” por ter, em sua flora e fauna, a maior biodiversidade do planeta. Por outro lado, a utilização de maneira adequada se dá pelos conhecimentos tradicionais dos povos e comunidades locais, pois os mesmos utilizam essa riqueza de maneira sustentável sem agredir o meio ambiente. Agora, o que se pretende é proteger os direitos destes povos, ou seja, os direitos ao uso da natureza e aos saberes associados, acrescido de uma repartição de benefícios justa e equitativa. Na reportagem “Ibama combate biopirataria”[12], enfatiza-se que “a fiscalização contra a biopirataria baseia-se hoje, na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), no Decreto n. 3179/1999, na Medida Provisória n. 2.186-16/2001 e no Decreto n. 5.459/2005. Juntas, essas normas prevêem multa de até R$ 100 mil para pessoa física, R$ 50 milhões para pessoa jurídica e prisão de seis a doze meses. São punições brandas diante dos danos ambientais e dos lucros estratosféricos dos infratores. Com prazos de detenção curtos, os infratores ainda podem, sob fiança, deixar o país”. Acrescenta-se, ainda, que “mesmo que o caso chegue à Justiça, a punição é frágil, pois os juízes consideram crime ambiental como de “baixo poder ofensivo”, o que acaba incentivando o contrabando”. Ao explanar sobre a Medida Provisória n. 2.186 no artigo “A biopirataria no Brasil”, o autor David Hathaway[13], considera que a referida medida “assegura formalmente o direito das comunidades de decidir sobre o uso por cientistas ou empresas de seu conhecimento tradicional, de maneira que o interessado no acesso precisa conseguir antes a “anuência” das comunidades. Entretanto, esse termo “anuência” é vago e substitui o reconhecido conceito “consentimento prévio informado (ou fundamentado)””. Destaca o autor que “por outro lado, os direitos de comunidades tradicionais e locais não indígenas (agrícolas, quilombolas, de pescadores, etc.) ficam subordinados à possibilidade de o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético invocar o subjetivo critério de “relevante interesse público” para autorizar o acesso a seus conhecimentos sem consentimento, anuência ou nem sequer uma consulta”. Ademais, enfatiza que “acrescente-se a isso a provisoriedade desse instrumento legal o fato de ainda não estar totalmente regulamentado, a falta nele de sanções penais contra o crime de biopirataria, entre outras limitações. Portanto, com essas lacunas e a falta de uma legislação que regulamente os artigos 231 e 225 (meio ambiente) da Constituição – este último em relação à biodiversidade e o acesso aos recursos genéticos -, pode-se dizer que comunidades indígenas e outras, hoje, ainda permanecem sujeitas à biopirataria”. Desta forma, verifica-se que o grande desafio é manter a biodiversidade frente ao crescente impacto humano, proteger os conhecimentos dos povos tradicionais e implantar uma repartição de benefícios justa e igualitária. Diante dessas e outras problemáticas, tem-se em âmbito internacional, a Convenção sobre Diversidade Biológica. A Convenção sobre Diversidade Biológica ou Convenção da Biodiversidade[14], ou ainda CDB, foi aberta para assinatura na Rio 92, junto com outros instrumentos importantes como a Convenção de Clima e a agenda 21. Desde então, conseguiu adesão de 187 países e um bloco regional, a União Européia. Ou seja, poucos países não ratificaram a CDB, entre eles os Estados Unidos, que assinou, mas nunca chegou a ratificar a Convenção. A Convenção possui três grandes objetivos: a conservação da biodiversidade; seu uso sustentável; e a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos da utilização de recursos genéticos. Verifica-se, porém, uma desarmonia entre esses objetivos. Enquanto, constata-se que a conservação da biodiversidade tem, dentro da CDB vários dispositivos de implementação, os outros dois objetivos ainda precisam receber maiores incentivos. A CDB é considerada o principal fórum mundial de definição dos marcos legal e político para termas e questões relacionadas à biodiversidade e tem definido importantes orientações para a gestão da biodiversidade em todo o mundo. Destacam-se entre eles: O Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para a Agricultura e a alimentação, que objetiva, no âmbito da FAO, a conservação e o uso sustentável dos recursos fitogenéticos para alimentação e agricultura e a repartição de benefícios derivados do seu uso; o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; as Diretrizes de Bonn, para orientar o estabelecimento das legislações nacionais de regulação do acesso aos recursos genéticos e à repartição dos benefícios resultantes (combate à biopirataria); entre outras. A fim de entender os procedimentos realizados pela CDB, necessário se faz apresentar uma breve exposição dos principais órgãos e acordos. Desta forma, o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança é o primeiro acordo firmado no âmbito da CDB. Visa assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados (OVMs) resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em consideração os riscos para a saúde humana decorrentes do movimento transfronteiriço. Trata-se, portanto, de um instrumento de direito internacional que tem por objetivo proteger os direitos humanos fundamentais, tais como a saúde humana, a biodiversidade e o equilíbrio ecológico do meio ambiente, sem os quais ficam prejudicados os direitos à dignidade, à qualidade de vida e à própria vida, direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e consagrados pela Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações unidas, de 1948. Nesse sentido, a Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo decisório no âmbito da CDB, com reuniões realizadas a cada dois anos em sistemas de rodízios entre os continentes. Trata-se de reunião de grande porte que conta com a participação de delegações oficiais de 188 membros da Convenção sobre Diversidade Biológica (187 países e um bloco regional), observadores de países não membros, representantes dos principais organismos internacionais (incluindo Órgão das Nações Unidas), organizações acadêmicas, não-governamentais, empresariais, lideranças indígenas, imprensa e demais observadores. As reuniões da COP têm duração de duas semanas, com duas sessões de trabalho paralelas e tradução simultânea para as seis línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (inglês, Frances, espanhol, árabe, russo e chinês).  Por outro lado, a MOP (Meeting of Parties) é a sigla utilizada, no âmbito da CDB, para designar a reunião das Partes, ou seja, Reunião dos Países Membros do protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Nessas reuniões, os representantes dos Países Membros analisam documentos e tomam decisões sobre medidas necessárias à implementação e ao cumprimento do Protocolo. Em 2006 foram realizadas, no Brasil, a Oitava Reunião da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica – COP 8 e Terceira Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança – MOP 3. Nos referidos eventos, em solicitação feita pela presidente da Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do Marajó, Edna Marajoara, criou-se o Fórum Internacional de Povos e Comunidades Locais. Tal pedido foi devidamente aceito pela presidente da COP, que à época era a Ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Desta forma, tornou-se possível a participação de voz aos povos e comunidades locais. Fato este considerado, portanto, o maior avanço em termos de discussão sobre conhecimentos tradicionais, pois a intenção do Fórum é lutar pelos direitos destes povos e comunidades locais e representá-los em âmbito internacional nas Assembléias da COP e MOP. Os acordos internacionais acima mencionados possuem iniciativas relevantes, pois os mesmos, em geral, têm como maior objetivo: a proteção do uso sustentável de toda esta biodiversidade, e conseqüentemente, a devida proteção dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais que são o sustentáculo de toda esta riqueza. O propósito desses acordos é interessante. Mas, os mecanismos legais para se chegar até ele é que não se mostram eficazes. Adicionado a isso, o extenso território dificulta uma fiscalização efetiva, é o que ocorre no Brasil. Corroborando o entendimento acima, cita-se a grande polêmica em torno da utilização da Priprioca por parte da empresa Natura[15]. Em 2004, a empresa de cosméticos Natura realizou uma filmagem com diversas vendedoras de ervas e raízes do mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará. Tal filmagem desencadeou a acusação por parte das feirantes, que foi levada inicialmente o caso à Comissão de Propriedade Imaterial da Ordem dos Advogados – OAB do Pará. De acordo com as feirantes, a empresa teria gravado depoimentos de várias vendedoras do Ver-o-Peso acerca do processamento rudimentar da priprioca, uma raiz com essência de odor muito apreciado usada pelas erveiras para preparar perfumes e banho-de-cheiro. Conforme as feirantes, apenas seis delas teriam assinado um termo de cessão de imagens com a empresa e a Natura teria utilizado seus conhecimentos para elaborar produtos a base da raiz, principalmente o perfume de Priprioca. O caso tornou-se notório, apenas, em 2006 quando o Jornal “O Liberal” divulgou uma reportagem sobre as filmagens e entrevistou uma das erveiras, conhecida como Beth Cheirosinha. A grande repercussão do caso gerou investigações por parte dos Ministérios Públicos Estadual e Federal sobre um possível crime de apropriação indevida de conhecimentos tradicionais, sem anuência prévia, nem repartição de benefícios. Apesar da gravidade do assunto, o procurador do Ministério Público Federal, Alexandre Soares explicou que “estamos em fase de levantamento de informações e coleta de depoimentos. Em todo caso, existe um procedimento [para acesso a recursos e conhecimentos tradicionais], que é a anuência prévia, registrada junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), e a repartição dos benefícios ou lucros com a comunidade”. Nesse sentido, o Promotor do Ministério Público, Nilton Chagas, afirmou que é “prematuro falar em biopirataria, mesmo que haja indícios de procedimentos irregulares”. A Natura, através de seus diretores de Sustentabilidade, Marcos Egydio, e de Assuntos Corporativos, Rodolfo Guttilla, defende-se alegando que “as gravações com as seis erveiras do Ver-o-Peso foram realizadas com o objetivo de enaltecer as mulheres e seu conhecimento em uma homenagem à cultura popular e à riqueza do mercado e da população paraense, para material de lançamento do perfume”. Por outro lado, Eliane Moreira, presidente da Comissão de Biodireito da OAB, destaca que existem relatos de pesquisas e filmagens da Natura desde 2001, e o próprio site da empresa afirma que “a equipe de Natura Ekos conheceu a priprioca no Mercado Ver-o-Peso, em Belém”. Essa afirmação indicaria o acesso aos conhecimentos tradicionais em algum momento, mesmo que o vídeo produzido com as erveiras tenha mesmo cumprido um papel promocional do produto, como alegou a Natura. O que se percebe é que a fragilidade nas legislações atuais, a morosidade nos trâmites processuais e até mesmo o respeito ao Princípio da Precaução no Processo Investigatório gera certa impunidade diante dessas situações, tendo em vista que em muitos casos, as grandes empresas lucram com a produção de seus produtos e os direitos dos povos tradicionais continuam sendo ceifados, não recebendo qualquer proteção. Os conhecimentos destas comunidades e povos são transportados, roubados em questão de minutos, sem qualquer fiscalização efetiva. Ao ser entrevistada, a erveira Deusarina da Silva Correia, ou simplesmente Deusa, desabafa “eles (a Natura) vieram aqui fazer umas filmagens, explicamos tudo, levamos eles pras comunidades, e agora estamos com dificuldades de encontrar a priprioca. Não é assim, chega uma empresa, pega o nosso produto… queremos a preservação da nossa tradição, é daqui que tiramos o nosso sustento e o dos nossos filhos. É a nossa cultura!” Outra questão relevante sobre biopirataria e também polêmica é sobre o registro de marcas concedidas a empresas internacionais de produtos do Brasil. No mercado do Ver-o-Peso, em Belém do Pará, na barraca de Maria Isabel, existem mais de cem tipos de frutas, entre elas: açaí, bacuri, cupuaçu, cajá, mari mari, etc. Ainda há guaraná, castanha-do-pará e maracujá. Todos fazem parte de uma lista de nomes bem brasileiros que podem virar propriedade de empresas de países ricos. De acordo com a reportagem “Já tem dono”[16], os exportadores brasileiros enfrentaram uma batalha judicial a fim de recuperar o direito de vender livremente produtos à base de cupuaçu, pois uma empresa japonesa registrou o nome cupuaçu como uma marca para uso exclusivo. A reportagem destaca que um estudo da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual mostra que em treze países há 83 pedidos de registro de marcas que são nomes de espécimes da flora brasileira. Na Alemanha, há quinze pedidos para registro da acerola, do maracujá e do guaraná. No Reino Unido, são treze pedidos. Todos querem se apropriar indevidamente de nomes como açaí, cupuaçu, entre outros. Verifica-se que nos Estados Unidos, os sete pedidos se concentram no açaí e no guaraná, como indica o presidente da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, Gustavo Leonardos e afirma que “imagina se você estivesse exclusividade para usar guaraná para energéticos. Seria uma mina de ouro. Mas, impediria as exportações brasileiras de guaraná para aquele país”. Outrossim, a advogada Juliana Viegas enfatiza que o problema para o exportador brasileiro vai além do risco de ver seu produto barrado já na alfândega, pois “ele pode vir a ter que pagar royalties para o titular dessa marca no exterior. Aí ele sai perdendo financeiramente. Quer dizer, o fato de ele ter que pagar royalties no exterior pode até inviabilizar a comercialização do seu produto no exterior, porque acaba saindo muito mais caro”. Nestes casos, o Brasil precisa contratar advogados para cancelar um a um, os pedidos de registro a fim de reverter essa situação. . Mais uma vez corrobora-se a situação de que se deve, urgentemente, buscar mecanismos legais de proteção aos conhecimentos tradicionais. Segundo a reportagem “Mais um flagrante de biopirataria na Amazônia”[17], o país perde US$ 20 bi com biopirataria. Tais dados não são confiáveis. Entretanto, os cálculos feitos por organismos oficiais e organizações não-governamentais (ONGs) representam que o País perde, em média, mais de R$ 20 bilhões só com o roubo de plantas, solos, microorganismos e a apropriação indevida dos conhecimentos das populações tradicionais. Atualmente, segundo a referida matéria, a biopirataria é a terceira atividade ilícita mais rentável do planeta: fica atrás apenas do tráfico de drogas ilícitas e de armas. No site do Ministério Público Federal[18] há mais uma notícia de apropriação ilegal. O próprio Ministério Público Federal no Acre expediu recomendação ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) solicitando a suspensão do pedido de patente relativo a formula do sabonete de murmuru, obtido a partir do conhecimento tradicional da comunidade indígena ashaninka, do Rio Amônia, no Acre. A patente de nº PI0301420-7 foi homologada pelo proprietário da empresa Tawaya, Fábio Fernandes Dias, localizada na cidade de Cruzeiro do Sul. Segundo os ashaninka, a elaboração da manteiga de murmuru ocorreu através do acesso a conhecimentos tradicionais da comunidade por Fábio Dias ao realizar projeto de pesquisa e levantamento de produtos florestais em parceria com a organização não-governamental Núcleo Cultura Indígena, sediada em São Paulo. Ao concluir a referida pesquisa, decidiu implantar uma empresa de beneficiamento para produzir a manteiga de murmuru em escala industrial. Neste caso, os índios forneceriam as sementes, tendo participação de 25% dos rendimentos auferidos pela empresa. Desta forma, os ashaninka preocuparam-se em formar e capacitar a comunidade para exploração da castanha de murmuru de forma sustentável, sem que o conhecimento da fabricação do produto fosse externalizado. A empresa Tawaya funcionava, inicialmente, no Vale do Juruá, mas logo foi transferida para Cruzeiro do Sul, distante da área, impedindo a comunidade de participar da fabricação. De acordo com a reportagem, os ashaninka sustentam que Fabio Dias não tinha a necessária autorização para patentear o produto. A Medida Provisória nº 2.186/2001, que diz respeito à proteção ao conhecimento tradicional das comunidades indígenas e locais, associado ao patrimônio genético, anota o reconhecimento pelo estado do direito dessas comunidades para decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais, reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro. Segundo o procurador Fredi Everton Wagner, ao analisar a questão, esclarece que “essa recomendação objetiva resguardar os direitos e interesses dos ashaninka para fins de repartição de eventuais benefícios oriundos de produtos elaborados a partir de informações obtidas de seus conhecimentos tradicionais”. Diante de toda essa problemática apontada, constata-se a emergência em criar um ordenamento jurídico único que proteja os direitos sobre o uso da natureza e saberes associados. Conforme a autora JulianaSantilli,[19] “os bens imateriais abrangem as mais diferentes formas de saber, fazer e criar, como músicas, contos, lendas, danças, receitas culinárias, técnicas artesanais e de manejo ambiental. Incluem ainda os conhecimentos inovações e práticas culturais de povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais, que vão desde formas e técnicas de manejo de recursos naturais até métodos de caça e pesca e conhecimentos sobre sistemas ecológicos e espécies com propriedades farmacêuticas, alimentares e agrícolas. Tal concepção abrange ainda as formas culturais diferenciadas de apropriação do meio ambiente, em seus aspectos materiais e imateriais”. Portanto, verifica-se que o Brasil sendo um país megadiverso e sociodiverso não pode aceitar que esses conhecimentos tradicionais sejam apropriados indevidamente, ou seja, sem qualquer tipo de repartição de benefícios, como também não pode tolerar que a exploração seja feita de forma a desequilibrar o meio ambiente ao ponto de se chegar à extinção de alguma espécie vegetal e animal, de algum povo e até mesmo de conhecimentos tradicionais pautados no uso sustentável da natureza
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-75/combate-a-biopirataria-protecao-aos-direitos-humanos-dos-povos-tradicionais/
A importancia da bioética e do biodireito na sociedade atual
Considerando a dinâmica observada na conceituação da bioética e sua proeminência na sociedade atual, o presente trabalho, inicialmente, realiza uma breve retrospectiva sobre a transformação da sociedade ao longo dos séculos, e, conseqüentemente, sobre o surgimento de novos ramos do conhecimento científico. Diante disso, oferece uma distinção entre direito, moral e ética, como forma de viabilizar a aproximação de uma definição de biodireito e bioética, tema central do presente estudo. Por último, ressalta a importância da utilização da bioética e do biodireito na solução de conflitos de interesses que envolvem os chamados “direitos da atualidade”, tudo isso visando oferecer uma melhor guarida à sociedade atual, e, sobretudo, a garantia de proteção dos direitos fundamentais do cidadão.
Biodireito
INTRODUÇÃO Vivemos hoje em um contexto marcado ao extremo por relações de consumo. Os elevados índices de violência e o absoluto descrédito à espécie humana nos faz crer que enfrentamos, já há algum tempo, uma verdadeira crise de valores. Infelizmente, é justamente neste contexto atual de crise e contradições, que a sociedade contemporânea vem, cada vez mais, gerando novos avanços científicos e tecnológicos, inclusive inaugurando novas áreas de conhecimento, produção e consumo, como por exemplo, o das Biociências e suas aplicações, as denominadas Biotecnologias. No seio destas indagações preocupações e discussões que a ética vem à tona, representando o elemento necessário a tomada de posição do homem diante de si mesmo, e, sobretudo, diante da natureza que o cerca. Se fizermos uma retrospectiva, poderemos atribuir, dentre outros fatores, a Revolução Industrial, fenômeno social ocorrido no continente Europeu, iniciado na Inglaterra, durante o século XVIII, a ocorrência de toda a transformação social que o mundo presenciou e que perdura até os dias atuais. Desde então, os homens passaram a utilizar os recursos naturais, em larga escala, como matéria prima de suas atividades transformadoras. A sociedade, que anteriormente se caracterizava por ser quase que integralmente sustentada pela economia agrícola e manufatura artesanal, evoluiu a uma sociedade erigida sobre a produção industrial.   A ORIGEM DAS PREOCUPAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS BIOÉTICOS Durante o processo evolutivo, o homem, elemento de toda transformação, não demonstrou grandes preocupações com a preservação da natureza, usurpando-a de todas as formas. Sua única intenção era alcançar o máximo lucro em suas atividades industriais. Passado algum tempo, especificamente em finais da década de 60, atrelado ao intenso desenvolvimento das ciências biológicas e humanas daquela época, começou a surgir uma enorme preocupação global com a possibilidade de esgotamento dos bens naturais, acompanhado de uma admirável inquietação com as questões morais. A propósito, pode-se relacionar a conscientização com a possibilidade de esgotamento dos bens naturais ao desenvolvimento das ciências biológicas, porque essa foi, exatamente, a época em que o homem deslumbrado com o desenvolvimento das práticas biológicas e tecnológicas intensificou suas pesquisas, motivado pela possibilidade do mapeamento genético e, posteriormente, encantado com a probabilidade de desvendar os mistérios da vida e da ciência, com o surgimento do Projeto Genoma Humano[1]. Todo esse desenvolvimento gerou uma imensa preocupação mundial com o esgotamento dos recursos naturais e se manifestou em todos os segmentos do pensamento humano, sejam eles: cientistas, antropólogos, sociólogos, psicólogos, religiosos, juristas, entre outros segmentos. Mobilizados, em busca de mecanismos para frear a constante degradação da qualidade ambiental, causada pela grande quantidade de resíduo vertido no ambiente natural, gerado pelos processos químico-biológicos de produção nas atividades industriais. No mundo globalizado em que vivemos atualmente, toda essa transformação representou uma fase importantíssima, momento de transição para um período interdisciplinar para as ciências do conhecimento, sobretudo as jurídicas, onde passou a imperar uma reforma das estruturas do pensamento, buscando a reconstruir uma sociedade com uma completa cognição social, para que o homem possa ser considerado, simultaneamente, um ser biológico, cultural, psicológico e principalmente, social. A REGULAÇÃO DA DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS A consciência ecológica nacional foi coroada com a promulgação da Constituição Federal de 1.988, que reservou seu Capítulo VI, especificamente, ao Meio Ambiente, fato inédito na história jurídica brasileira. Assim, pela primeira vez em todo o ordenamento jurídico pátrio, o meio ambiente recebeu a atenção do legislador originário, que, no artigo 225 da Carta Magna de 1.988, impôs não apenas aos entes de Direito Público, como também às pessoas físicas e às pessoas jurídicas de Direito Privado, a obrigação de defender e preservar o patrimônio natural de nosso país[2]. A disciplina em nossa Carta Magna de um capítulo especial dedicado à preocupação com o meio ambiente demonstrou uma notável atenção ao Direito Ambiental brasileiro e um enorme progresso, conforme se denota da admissão do parágrafo 3º do citado artigo que regula, inclusive, a obrigação do agente de recompor o do meio ambiente quando condutas e atividades a este lesivas alterarem suas características originais que resulte em degradação da qualidade ambiental, além das demais sanções administrativas e criminais cabíveis[3]. Além da inovação constitucional, o legislador ordinário igualmente se incomodou com a degradação do meio ambiente, fazendo com que normas infraconstitucionais surgissem visando sua proteção e recuperação dos danos ambientais[4]. A conseqüência dessa evolução do pensamento jurídico foi um afastamento das concepções individualistas (privativas) arraigadas nas constituições anteriores, oferecendo um lugar de destaque às relações coletivas, as quais contribuíram para o aumento da preocupação com o meio ambiente, dando origem aos chamados interesses difusos, principalmente com o surgimento dos direitos de terceira geração[5], além de ter sido o espaço fecundo para o surgimento da bioética, disciplina que tem como tema central a ética aplicada à vida. TUDO O QUE É TECNOLOGICAMENTE POSSÍVEL É, TAMBÉM, ÉTICA E JURIDICAMENTE ACEITO? Que a resposta para essa indagação é um categórico não, isso não há dúvidas, mas para justificarmos essa negativa resulta necessário aprofundarmos nossos estudos em três termos que se correlacionam. São eles: Biotecnologia, Biodireito e Bioética. A ciência e a tecnologia são duas atividades que se inter relacionam com nosso cotidiano e se encontram em constante evolução. A ciência está associada à ânsia do saber humano, ou seja, ao desejo de compreender, explicar ou prever fenômenos naturais. A tecnologia, por sua vez, decorre de outro anseio: o de encontrar novas e melhores maneiras de satisfazer as necessidades humanas, usando para isso conhecimentos, ferramentas, recursos naturais e energia. Diante disso, podemos dizer que a Biotecnologia representa o conjunto de métodos aplicáveis às atividades que associam a complexidade dos organismos e seus derivados, conciliadas às constantes inovações tecnológicas, visando prover bens e assegurar serviços. Por outro lado, não há condições de nos aproximarmos de uma possível definição de Biodireito, sem antes abordarmos, ainda que de forma breve, o Direito como ciência. “O homem não pode viver sem regras, pois o vazio jurídico torna tudo possível”[6].  Precisamos lembrar que compete ao Estado (Poder Legislativo) regular, legislar, criar as normas encontradas na sociedade para que se atinja um equilíbrio, uma paz social, tudo isso pautado em um princípio elementar e constitucionalmente defendido que o da dignidade humana, onde todos conseguem ter uma convivência harmônica na sociedade. Assim, Biodireito pode ser definido como o ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativa às normas reguladoras da conduta humana, principalmente dos avanços da biologia, da biotecnologia e da medicina, pois as intervenções científicas sobre a pessoa que possam atingir sua vida e integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos[7].          Nas palavras da nobre professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003), resulta importante frisar que o papel do Biodireito não é o “de cercear o desenvolvimento científico, mas, justamente, o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e, como tal, portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados”. A palavra Bioética foi utilizada pela primeira vez pelo Prof. Van Rensselaer Potter, doutor em bioquímica e pesquisador na área de oncologia da Universidade de Wisconsin/EEUU, em 1970[8], porém, para conseguirmos o exato alcance do termo, resulta indispensável distinguirmos, previamente, moral, direito e ética. Digo previamente, pois a intenção do presente não é tratar desta questão do ponto de vista teórico, se assim fosse, teríamos que travar estudos filosóficos intermináveis. Nossa intenção se concentra na análise dos términos na perspectiva concreta. Portanto, a primeira noção elementar é entendermos que não estamos tratando de sinônimos, todos os três termos possuem conceitos distintos, ainda que alguns autores não pensem assim.[9] Tanto o direito como a moral estabelecem regras para uma ação. Porém, as regras estabelecidas pelo direito são regras coercitivas, impostas pela lei e capazes de gerarem uma sanção em função da sua inobservância, já as morais são aquelas que o indivíduo as assume de forma voluntária, sem que haja nenhuma punição legal caso venha a descumpri-las, representadas pelo conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. Por sua vez, embora a ética também traga referência com a ação, se dá de um modo distinto. Neste caso, a regra para conduzir determinadas ações, cede lugar às justificativas, as razões, aos motivos para a prática das mesmas, as quais podem ser consideradas boas ou más, aceitas ou reprovadas para a sociedade. A ética busca justificativas, enquanto a moral e o direito mostram regras. Se pudéssemos resumir a definição dos três termos, utilizaríamos a resposta das seguintes interrogações: O direito: O que eu devo fazer? A moral: Como devo fazer?  E a ética: Porquê eu devo fazer?  Portanto, quando o indivíduo associa uma reflexão aos seus atos e encontra uma justificativa aceitável para as suas ações ele está exercitando a ética. Da mesma forma, quando um cientista/pesquisador busca uma justificativa admissível para o desenvolvimento de sua pesquisa biotecnológica ou biomédica, está exercitando a bioética. A bioética representa uma grande área interdisciplinar que busca auxiliar na reflexão dos novos problemas que estão, constantemente, sendo apresentados a todos nós, individual e coletivamente. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE BIOÉTICA Uma reflexão bioética, porém, não é algo que ocorre de maneira individual, pelo contrário, ela não tem limites. Atualmente vivemos situações inéditas de conflitos, vivenciamos problemas que nossos antepassados, por mais instruídos que fossem jamais precisaram se preocupar. A bioética acontece quando as pessoas expandem suas mentes em suas reflexões, de forma compartilhada, pois ninguém realiza uma reflexão isoladamente, é necessária a participação de outros seguimentos. Daí decorre sua característica interdisciplinar, onde cada indivíduo, fazendo uso de suas experiências pessoais e profissionais, enfoque a bioética e aprofunde a discussão, sobre prismas diferentes. Resulta de suma importância a identificação do objeto das reflexões bioéticas. Em realidade essas reflexões de desenvolvem em torno da vida e do viver. Aliás, para a bioética, a importância do viver se sobrepõe ao da vida. Isso se dá em virtude de se zelar por uma boa qualidade de vida, o que vem constitucionalmente protegido pelo princípio da dignidade humana, além de confirmar que em razão do progresso alcançado pelas ciências biológicas, hoje temos uma melhora considerável no modo de viver e de morrer da sociedade. APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE BIOÉTICA A Bioética tem uma abordagem secular e global, pois dela participam as diferentes visões de profissionais de saúde, filósofos, advogados, sociólogos, administradores, economistas, teólogos e leigos. A perspectiva religiosa, muito associada às questões morais, é apenas uma das visões possíveis, mas não a única. Da mesma forma, é uma abordagem global, pois não considera apenas a relação médico-paciente. A Bioética inclui os processos de tomada de decisão, as relações interpessoais de todos os segmentos e pessoas envolvidas: o paciente, o seu médico, os demais profissionais, a sua família, a comunidade e as demais estruturas sociais e legais[10]. “Bioética é uma ética aplicada que se ocupa do uso correto das novas tecnologias na área das ciências médicas e da solução adequada dos dilemas morais por elas apresentados” (Clotet J., 1995) “Bioética é uma nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural e que potencializa o senso de humanidade” (Potter V.R., 1998) Com grande maestria Volnei Garrafa[11] afirma que a conceituação da jovem bioética está em constante evolução, mas podemos balizar uma grande classificação que situa os diversos temas dos quais ela trata: a bioética das situações persistentes, que analisa aqueles temas cotidianos que se referem à vida das pessoas e que persistem teimosamente desde o Velho Testamento: a exclusão social, o racismo, a discriminação da mulher no mercado de trabalho, a eutanásia, o aborto. A bioética das situações emergentes, que se ocupa dos conflitos originados pela contradição verificada entre o progresso biomédico desenfreado dos últimos anos e os limites ou fronteiras da cidadania e dos direitos humanos, como as fecundações assistidas, as doações e transplantes de órgãos e tecidos, o engenheiramento genético de animais e da própria espécie humana e inúmeras outras situações. Nesse sentido, está claro que a bioética não significa apenas uma moral do bem ou do mal, ou um saber acadêmico a ser transmitido e aplicado na realidade concreta, como a medicina ou a biologia: Pela amplitude do objeto com o qual se ocupa, seus verdadeiros fundamentos somente podem ser alcançados através de uma ação multidisciplinar que inclua, além das ciências médicas e biológicas, também a filosofia, o direito, a antropologia, a ciência política, a teologia, a economia[12]. OBJETIVOS DA BIOÉTICA O RESPEITO E A CONSERVAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA representam os principais objetivos da bioética, motivo pelo qual se multiplicam a cada dia o número de comitês de ética em pesquisa por todo mundo. Aliás, é de suma importância a aprovação de um projeto de pesquisa pelos comitês de bioética, pois comprova a credibilidade da investigação, além de confirmar que vem coordenada por profissionais gabaritados para sua condução. O comitê de ética em pesquisa é o órgão institucional que tem por objetivo proteger o bem-estar dos indivíduos pesquisados, tratando-os como sujeitos de pesquisa e não como objetos. São constituídos por representantes de diversos seguimentos da sociedade científica, de ambos os sexos, além de pelo menos um representante da comunidade. Dentre outras, tem a função de avaliar os projetos de pesquisas que envolvam a participação de seres humanos e possuem como lema maior a busca pela vida e o melhoramento do viver. [13] CONCLUSÃO É inegável que o progresso intelectual (científico e tecnológico) avança mais rapidamente que o progresso moral (ético) e legal. E desse progresso que surge uma grande inquietação e desassossego social em razão, quiçá, do desconhecimento e do desamparo. No entanto, hoje em dia, a bioética ampliou muito seu espectro de abrangência, refletindo em um grande interesse repentino dos governantes e das mais variadas instituições públicas e privadas, religiosas ou laicas, com relação ao tema. O assunto é polêmico e está constantemente em pauta, majorado, logicamente nos últimos dias, sobretudo em virtude da recente e muito festejada definição pela constitucionalidade da lei que autoriza o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas no país.[14] Mas a importância do tema não se dá de forma casual, mas sim devido aos impressionantes resultados obtidos no campo das pesquisas biomédicas e biotecnológicas. A presteza das conquistas científicas e tecnológicas resultou em enormes controvérsias e discussões morais, exigindo das ciências sociais e filosóficas uma racionalidade repentina para poder suportar as profundas transformações experimentadas pela atual sociedade. A bioética é, sem sobra de dúvidas, uma ciência que está voltada para o futuro, porém, já alcançando glórias no presente. Por esse motivo, estará em constante transformação, conduzida pelo desenvolvimento da ciência, da tecnologia e, principalmente, pela evolução da sociedade, visando sempre à proteção da dignidade humana. Por último, é indispensável que as novas leis que venha dispor sobre o desenvolvimento científico e tecnológico sejam cuidadosamente elaboradas, seguindo ditames de caráter moral, sem estagnar as pesquisas científicas, mas, ao mesmo tempo, proporcionando à sociedade uma evolução com responsabilidade, prudência, tolerância e solidariedade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-importancia-da-bioetica-e-do-biodireito-na-sociedade-atual/
Maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro e no direito comparado
O presente trabalho tem por fim mediato apresentar o resultado parcial obtido com atividades de pesquisa desenvolvidas em projeto de iniciação científica, cujo objeto principal é o estudo dos avanços biotecnológicos e seus impactos nas relações jurídicas. O tema abordado é a Maternidade de Substituição; essa prática, que envolve essencialmente técnicas de reprodução humana assistida, consiste, basicamente, na doação temporária do útero de uma mulher em favor da concretização do projeto parental idealizado por outra. No Brasil, é regulamentada tão somente pela Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, que não tem força de lei, não implica sanções, mas promove sua regulamentação estabelecendo parâmetros para que ocorra regularmente, sem que haja intuito mercantil. Diante desse contexto, e da constatação de que sua realização é mais freqüente do que se imaginaria, revela-se adequado e pertinente um estudo mais profundo acerca de seu tratamento no ordenamento jurídico pátrio, das propostas trazidas pelo Direito comparado, bem como das tendências legislativas demonstradas nos Projetos de Lei quem tramitam no Congresso Nacional.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO A possibilidade científica de uma mulher conceber filho biológico fora de seu útero, aliada à idéia de que poderão coexistir até três maternidades’[1], gera discussões na sociedade tanto de cunho ético como também jurídico, uma vez que desafia questões ligadas a institutos basilares do direito de família, tais como maternidade, paternidade, filiação e responsabilidade parental. Sabemos que o Direito, para ser eficaz, deve amparar as transformações sociais trazidas pelo desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, mostra-se necessário analisar como o nosso sistema jurídico trata (ou não) a questão. Nesse contexto, o Direito Comparado, por se apresentar em estágio legislativo bem mais avançado e, por conta disso, oferecer maior número de casos submetidos à tutela judicial, poderá ser utilizado como um importante instrumento de auxílio na elaboração de leis que dêem tratamento adequado e efetivo à maternidade de substituição no Brasil. E isso se dará, principalmente, por meio da adaptação das soluções estrangeiras à nossa realidade jurídico-social. A metodologia de pesquisa utilizada foi basicamente doutrinária, nacional e estrangeira, jurisprudência pátria em relação ao tema (acerca da qual conclui-se ser escassa), e também entrevistas com médicos especializados em genética e reprodução assistida. Os principais objetivos foram: debater sua repercussão para o direito de família, apurar a freqüência com a qual a prática ocorre; verificar, ainda, se existe a celebração de alguma espécie de contrato entre os envolvidos; apurar a concessão de autorizações especiais pelo conselho regional de medicina; adaptar as soluções estrangeiras para o Brasil, e talvez, propor diretrizes legislativas. 2. ASPECTOS MÉDICOS DA PRÁTICA A doação temporária de útero é realizada por médicos especializados em reprodução humana. A exemplo, desde 1991, Dr. Magarinos realiza, sem a intervenção de outros médicos, todas as etapas das técnicas de reprodução assistida em seus pacientes. Para compreensão dos aspectos médicos da doação de útero, recorreu-se a uma entrevista com o médico e às informações disponibilizadas em seu sítio na Internet.[2] A técnica da doação temporária de útero é indicada para mulheres com algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação, tal como perda de útero, miomas grandes, malformações, sinéquias inoperáveis, endométrio que não se desenvolve, útero infantil, Rh negativo com sensibilização ao fator Rh, doenças transmissíveis ao bebê durante a gravidez (AIDS, Hepatite C, HTLV I e II) e etc. Com essa técnica, a mulher pode ter um filho formado a partir de seu óvulo e do espermatozóide do marido, ou seja, pode ser a mãe genética de seu filho, ocorrendo a gestação no útero de uma mulher doadora. Se a mulher não for capaz de produzir óvulos férteis, ou o marido ou companheiro não for fértil, o casal pode recorrer a uma doadora de óvulos ou doador de sêmen (fecundação artificial heteróloga). Para obter os óvulos, o médico recorre à estimulação ovariana por meio de hormônios e, com isso, muitos óvulos são produzidos ao mesmo tempo. A estimulação ovariana, se por um lado aumenta muito as chances de êxito, também representa o principal risco nos tratamentos. A dose e o tipo de hormônio a ser utilizado em cada paciente devem ser cuidadosamente estudados. Dentre os riscos da estimulação ovariana, o mais temido é a Síndrome de Hiperestimulação Ovariana (OHSS ou SHO), que nos casos mais severos pode levar ao óbito, o que ocorre em 0,5% das mulheres que desenvolvem a OHSS[3]. Uma vez obtidos os gametas (óvulo e espermatozóide), o médico aplica a fertilização em laboratório para unir as duas células e formar o zigoto (primeira célula do corpo humano, com o material genético completo para o desenvolvimento e nascimento de um indivíduo). O zigoto, na etapa seguinte, é transferido para a doadora de útero onde se desenvolverá até o nascimento. Na transferência de embriões para o útero, são observados alguns critérios bastante delicados. A transferência de um embrião não garante uma gravidez, sendo menor a possibilidade de sucesso quanto maior for a idade da mulher. Por isso são transferidos mais de um embrião para o útero, mas não muitos. É preciso calcular o número adequado a uma razoável probabilidade de êxito. Quanto maior o número de embriões transferidos, maior a possibilidade de uma gravidez múltipla (gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos…).  Por isso as clínicas investem em novas técnicas para seleção dos melhores embriões, o que permite a redução do número de implantados e aumento da taxa de sucesso. A seleção dos embriões pode ser feita também por diagnóstico genético pré-implantacional (PGD). O PGD consiste em remover 1 ou 2 células de cada embrião (geralmente 3 dias após a coleta dos óvulos), com o auxílio de um microscópio de micromanipulação, para estudos genéticos, antes de serem transferidos para o útero. O objetivo é selecionar embriões com menor risco de gerar crianças deficientes, bem como diminuir a taxa de abortos de causa genética. Alguns casais, no entanto, procuram a técnica para selecionar o sexo do seu futuro bebê. O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.358 de 1992, que estabelece Normas Éticas, a serem seguidas por profissionais médicos, que atuam em reprodução assistida, considera a técnica antiética, pois acarreta o descarte de embriões do sexo indesejado. O Dr Magarinos sugere nesse caso que se doem os embriões do sexo indesejado para outros casais inférteis, ou mesmo para pesquisas após terem permanecido congelados por pelo menos 3 anos. Portanto, além dos riscos corridos pela doadora de óvulos na estimulação ovariana por hormônios, há a questão ética do descarte de embriões. O desenvolvimento das técnicas de fertilização reduz cada vez mais o número de embriões necessários para uma gravidez bem sucedida, reduzindo consequentemente o descarte. No entanto, mesmo com a ICSI, alguns embriões não chegam a ser transferidos. Quanto ao embrião in vitro, não implantado no útero, pequena tem sido sua valoração como vida humana pelo direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, em 29 de maio de 2008, em julgamento da ADI 3510 que trata da constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança sobre pesquisas científicas com células-tronco, decidiu que o referido artigo, que permite a pesquisa científica com embriões humanos, não merece reparos. O relator Carlos Ayres Britto afirmou que a vida humana só começa com a nidação, ou seja, com o implante do embrião no útero da mãe. Só aquele implantado no útero materno pode vir a nascer e somente neste caso pode ser chamado de nascituro. Além disso, enquanto não tem cérebro formado, o embrião representa uma realidade distinta da pessoa natural, diz o relator. Percebe-se a discussão de três teorias na ADI 3510: uma que afirma que a vida humana começa na concepção (leia-se fecundação), outra que elege o momento da nidação (sexto ou sétimo dia após a fecundação) e uma terceira que reconhece a vida humana somente quando se inicia a atividade cerebral (décimo quarto dia de gestação). Ayres Britto simplesmente descarta a primeira acolhendo as outras duas teorias como igualmente aceitáveis para a tarefa de liberar as pesquisas com células-tronco. A doação de útero não estava diretamente em questão no julgamento do STF sobre a lei de biossegurança. No entanto, o excedente de embriões produzidos na fertilização in vitro deixou de ser um problema depois do julgamento da ADI 3510. Resta-nos, agora, a análise das outras questões éticas e jurídicas levantadas pela técnica da doação de útero. 3. ADMISSIBILIDADE DA GESTAÇÃO POR 3º 3.1 – Possibilidade Científica e Admissibilidade Jurídica O Brasil, assim como muitos países que possuem meios técnicos e qualificação específica, incorporou-se à tecnologia da chamada reprodução artificial assistida. Apesar do seu uso cada vez mais recorrente, principalmente a partir do nascimento do primeiro bebê de proveta em 1978, e do domínio dos meios técnicos e científicos necessários para a efetivação da maternidade de substituição, essa prática encontra verdadeiros óbices para sua realização nas lacunas do ordenamento jurídico. Na realidade brasileira, constata-se que, atualmente, a grande dificuldade para se recorrer a avanços biotecnológicos como este reside muito mais em questões de ordem jurídica que no domínio da técnica necessária para o procedimento pelos profissionais. Entretanto, tendo em vista que a maternidade de substituição gera conseqüências fáticas – o nascimento de uma nova criança, mister se faz que o Direito cumpra seu papel e regule essa nova realidade social. No Brasil, a escassa regulamentação do assunto se limita à Resolução n.º 1.358/92, Seção VII do Conselho Federal de Medicina, na qual se determinada que sua utilização deve ser condicionada à existência de um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética, devendo ser a doadora temporária do útero parente até segundo grau da doadora genética. Além disso, impõe-se ainda que tal prática não tenha caráter lucrativo ou comercial. Como resolver, então, questões de cunho ético, moral e social que se descortinam diante desse novo panorama? Como garantir à criança o direito de conhecer seu patrimônio genético? Pode a mãe receptora requerer alimentos? E se vier a sofrer algum dano, ou mesmo falecer, em decorrência da gestação, poder-se-ia responsabilizar o “locatário”? Como evitar que isso resulte em uma exploração das mulheres mais pobres? Enfim, há indagações ainda não abarcadas pelo Direito e que merecem uma atenção especial do legislador pátrio, posto que as consequências desse procedimento tornaram-se uma realidade. Aspecto bastante polêmico com relação a este assunto é o que diz respeito à chamada procriação artificial post mortem. Neste debate acirrado, muitos se posicionam contrários a tal prática sob a alegação de que a criança nascida careceria de um pai, já que o mesmo já estaria falecido; não poderia desfrutar do convívio com o mesmo; e, principalmente, não poderia ser registrado como tal. Do outro lado, no entanto, os defensores argumentam que a questão da filiação seria facilmente resolvida pelo simples consentimento deixado pelo de cujus, ainda em vida, demonstrando o seu intuito de reprodução quando do armazenamento de seu sêmen. Na ausência de qualquer declaração neste sentido pelo doador do sêmen o médico deverá ser responsabilizado, inexistindo, nesse caso, a filiação. Surgem então problemas relativos aos direitos sucessórios.  Essa criança nascida de uma reprodução assistida post mortem possui direito à herança? E como proceder se a mesma foi partilhada entre os herdeiros? Costuma-se afirmar que apenas a criança gerada com o consentimento do de cujus possuiria direito à herança. E, sendo assim, ainda que finda a partilha, o Direito pátrio apresenta solução para o caso: aplicar-se as mesmas regras utilizadas nos casos de reconhecimento de filiação por investigação de paternidade post mortem. Dessa maneira, não apenas é possível garantir à criança o vínculo de paternidade, como também lhe é assegurado o direito à herança deixada pelo seu progenitor por meio de uma petição de herança com nulidade de partilha, observada a prescrição quanto a direitos patrimoniais. Cumpre tratar, ainda que brevemente, da utilização do procedimento por casais homossexuais. Impossibilitados de gerar sua própria prole, recorrem de maneira cada vez mais frequente a este método e, amparados pelo anonimato – muitas vezes solicitados pelo casal que tem o projeto parental, outras até mesmo imposto pela própria clínica que realizada a reprodução assistida – logram êxito sem precisar, para tanto, vencer barreiras do preconceito. Assim, é possível que casais homossexuais valham-se da técnica até mesmo em países como a Índia, onde a homossexualidade ainda é ilegal. Destarte, posiciona-se favoravelmente ao uso da “maternidade de substituição” também por casais homossexuais que, em razão de sua opção sexual, não podem gerar filhos de maneira natural. Por fim, não se pode olvidar de tratar da problemática relacionada à família monoparental. Muito comum nos dias de hoje, a chamada “produção independente” nada mais é do que uma pessoa solteira que decide ter um filho para criá-lo sozinha, sem o auxílio de um parceiro. Parece plausível que indivíduos solteiros possam valer-se  desse método. O que se costuma questionar neste caso é a questão do melhor interesse para a criança, entendendo muitos que o desenvolvimento psíquico daquela depende da estrutura familiar, a qual deveria ser formada pela figura de um pai e uma mãe. Todavia, tal entendimento encontra-se ultrapassado, sendo impossível negar o status de família também a diversos núcleos de convívio social, tais como a união estável, sobrinhos que moram com tios, irmãos que vivem juntos e, logicamente, as famílias monoparentais. Não há fundamentos que afirmem que a família monoparental possa ser  prejudicial ao desenvolvimento da criança. O único cuidado que se deve ter é para que isso não represente uma conquista pessoal, devendo-se sempre primar pelo bem-estar da criança, garantido constitucionalmente (Artigos 227, 229, CRFB). Diante do exposto, urge que o Direito regule todas essas novas situações, estabelecendo limites para a utilização das técnicas de reprodução assistida, levando-se sempre em consideração valores éticos, morais e sociais. 3.2  Natureza jurídica da maternidade substituta. Há muita polêmica a respeito da natureza jurídica da Maternidade de Substituição. Atualmente, nos EUA e na Índia a técnica é aceita[4] e realizada por meio de Contrato de Gestação, no qual a mãe substituta obriga-se a entregar o bebê aos pais que idealizaram o projeto parental, logo após o parto. Este acordo é criticado, uma vez que constitui uma ameaça à dignidade da criança, pois se mesmo antes do parto ela já é considerada uma pessoa em desenvolvimento, não pode, portanto, ser objeto de um contrato, pois tem direitos que devem ser respeitados[5]. É prejudicial também à mãe substituta, pois, mesmo se esta não doou o material biológico (óvulo), nos ordenamentos jurídicos pesquisados, mãe é aquela que gera a criança e, portanto, ela não poderia renunciar ao seu estatuto jurídico de mãe, pois representa um direito familiar, de relevância pública, sendo assim, indisponível. Caso a mãe substituta seja casada, seu marido também renunciaria ao estatuto jurídico de pai, já que presume-se dele[6] a paternidade da criança nascida de sua esposa. Vale ressaltar ainda uma hipótese não definida no contrato: se a criança nascer com alguma doença ou deficiência, poderia ser repudiada pelos pais que a idealizaram, uma vez que desejaram uma criança perfeita; e a mãe substituta também poderia não aceitá-la. Logo, no caso de um conflito negativo, expõe-se a perigo o melhor interesse da criança fruto deste ajuste. Há outra corrente de estudiosos[7] que consideram a Maternidade de Substituição um Instituto, comparado à Adoção. Contudo, diferente desta, em que privilegia-se o interesse da criança, de cujo poder familiar os pais foram privados; na maternidade de substituição busca-se satisfazer o interesse do casal infértil ou futuros pais. Portanto, não há como defender o interesse de uma criança que não foi sequer gerada. 4. Conflito e atribuição de maternidade. Superadas as questões preliminares sobre a possibilidade científica e jurídica da maternidade de substituição, assim como os seus modos de execução e sua natureza jurídica, cumpre enfrentar o tema do conflito de maternidade. A doutrina traz possibilidades distintas de ocorrência do dissenso: o conflito positivo e o negativo.[8] A primeira ocorre quando tanto a idealizadora da maternidade por substituição, que pode ser também a cedente do óvulo ou não, quanto a cedente do útero, também chamada parturiente, manifestam o desejo de assumir a maternidade da criança e criá-la como se filho fosse. Outra se verifica quando os mesmos sujeitos supracitados optam, simultaneamente, por negar a maternidade a uma criança vindoura, idealizada por uma pessoa, e gestada por outra. Historicamente, a doutrina e a jurisprudência pautavam-se na presunção explicitada pelo brocardo latino mater semper certa est (a mãe é sempre certa), pois sua determinação se dava pela gravidez e parto. Contudo, ante a possibilidade da gravidez por substituição, essa presunção deixa de prosperar totalmente, impondo-se novos critérios de aferição da maternidade[9]. O primeiro critério é a atribuição da maternidade à gestante e parturiente, ou seja, a quem dá à luz uma criança. Decorre de longo entendimento jurídico, cuja influência pode até mesmo ser depreendida da leitura dos artigos 52, parágrafo1º e 54, parágrafo 7º, da Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos)[10]. De fato, ainda hoje essa atribuição é a adotada, inclusive tendo em vista que a maternidade de substituição ainda é exceção. Contudo, em que pese ser notório que o ordenamento pátrio tenha adotado esse posicionamento, no próprio Código Civil se encontra abertura para ressalvas, a exemplo do artigo 1.615. O segundo critério é o biológico, mais precisamente o genético, que atribui a maternidade à doadora do óvulo, aquela cujo material genético será herdado pelo infante. Essa hipótese é a utilizada comumente na justiça para se aferir a paternidade. São os casos dos famosos “testes de DNA”, que hoje podem também ser úteis na determinação da maternidade. A jurisprudência optou por esse parâmetro em algumas oportunidades, como no julgado abaixo, proveniente de Minas Gerais: “Indenização – Danos morais – Pedido sucessivo – Investigação de troca de bebês – Hospital – Exame de DNA – Pagamento de despesas – Cumulação de pedidos – Erro essencial de fato – Teoria da actio nata – Prescrição – Não-ocorrência – A ação que busca investigar filiação, maternidade e paternidade é imprescritível. É possível a cumulação de pedido sucessivo cominatório com pedido indenizatório. Havendo erro essencial quanto a fato que a parte ignorava, referido erro impede o curso do prazo de prescrição da ação. Segundo a teoria da actio nata, somente após revelado o fato desconhecido que mantinha a parte em erro substancial é que tem início a contagem do prazo de prescrição da ação[11].” A crítica à utilização desse critério está no reflexo do próprio método de fertilização adotado, homólogo ou heterólogo, ou seja, de acordo da técnica aplicada, estaremos de antemão atribuindo a maternidade a provedora do óvulo, independentemente de ser a idealizadora do projeto familiar ou a cedente do útero. Contudo, ante a análise do direito comparado entende que na hipótese de fertilização heteróloga conjugada à maternidade de substituição, ou seja, além de ceder o útero a gestante cede também o óvulo, a ela é atribuída a maternidade independemente do projeto parental de outra. Há que se ressalvar que não se tem notícia também, de hipótese em que uma mulher cede um óvulo e outra o útero, para que uma terceira assuma o papel materno após o parto. O terceiro critério é o da afetividade. Por esse critério, atribui-se a filiação à relação sócio-afetiva estabelecida entre duas pessoas, sendo uma delas a dotada de animus maternal. Esse critério, embora a primeira vista mais apropriado, tem apuração prática mais difícil na ocorrência de um conflito. Pois, havendo disputa entre duas supostas mães, que pode ocorrer tanto no período gestacional quanto logo após o parto, como estabelecer quem possui o vínculo sócio-afetivo com o bebê? Nesse caso, permanece a dúvida se devemos atribuir essa afetividade aquela que planejou o bebê, e depositou confiança na gestação por uma terceira, ou se devemos reconhecer o apego daquela que acompanhou o desenvolvimento de uma vida em seu útero. Situação que causa igual perplexidade seria o conflito negativo, pois como avaliar afetividade se ambas as mães em potencial rejeitam a vida em formação ou o bebê recém-nascido em questão? No Direito comparado observa-se que a maioria dos países atribui a maternidade à gestora. Porém, a justificativa não tem fundamento, em última análise, no critério de escolha legal da parturiente, mas sim na nulidade de um eventual contrato em que a gestante tenha se comprometido, onerosamente ou não, a ceder seu útero para gerar uma criança. É o que se verifica, a título exemplificativo, na Nova Zelândia, Bulgária, Inglaterra, França, Espanha e Argentina, além de Portugal, este último com algumas ressalvas às hipóteses em que não há onerosidade na cessão do ventre. Por fim, podemos concluir que todos os critérios até o momento não se demonstraram satisfatórios a atribuir a maternidade a uma das mulheres envolvidas no conflito, seja ele positivo ou negativo.[12] Nesse caso, nos parece mais arrazoado que seja feito um juízo que conjugue os critérios acima, a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, nesse caso explicitado pelo atendimento ao melhor interesse da criança. A aferição do melhor interesse, objeto de fundamentações judiciais em outras esferas, e positivada no artigo 43, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)[13], e artigo 1.625 do Código Civil, deve levar em conta o importante fator de que, via de regra, a cedente do ventre, gestante, não possuía, até a concepção, o menor ideal de mãe. Muitas das vezes, pelo contrário, tinha convicção que não desejava a maternidade e por isso ofertou seu útero à terceiros, no gesto altruísta de possibilitar àqueles concluir o sonho parental. Obviamente, essa ausência de animus inicial deve ser sopesada com o maior benefício à integridade psicofísica da criança, enquanto pilar de sua dignidade. A ponderação supramencionada não se distancia da adotada pela Corte Suprema de Nova Jersey no caso concreto denominado Baby M.[14], no qual o valor preponderante para determinar a que família seria entregue o bebê foi aquela que tivesse melhores condições, não apenas econômicas, mas também sociais, de educá-lo[15]. 4.1 Experiências do direito comparado Em que pese a maternidade de substituição não ser prevista pela legislação pátria, vários outros países dispõem de dispositivos legais coercitivos acerca do tema, relacionando-o, inclusive não só com o ramo cível o Direito, mas também com  as esferas administrativa e, até mesmo, criminal. Exemplo mais patente é o tratamento dado à tal prática pela legislação alemã. Nesse país, a gestação por outrem é vedada pela Lei de Proteção aos Embriões, que, em seu art. 1º, tipifica como crime a conduta daquele que proceder à fecundação artificial em mulher que esteja disposta a ceder definitivamente o seu filho a terceiros após o nascimento, podendo a pena ser desde multa até prisão por três anos. Na Espanha, quanto à maternidad subrogada, o direito espanhol considera ilícito todo contrato de gestação no qual uma mulher renuncie à maternidade em favor de outrem, levando em conta que o corpo humano está fora do comércio jurídico e não pode ser objeto de contrato. Assim, tal contrato é cominado de nulidade com base nos artigos 1305 e 1306, c.c. artigos 1271 e 1275, todos do Código Civil espanhol[16]. Desse modo, tal contrato não poderá ser executado diante da nulidade da qual é portador, com expressa previsão no artigo 10-1 da Lei nº 35/1988, sendo a solução para resolver a questão da maternidade dada pelo artigo 10-2, da mesma lei, ou seja, o parto. Em relação à paternidade, o artigo 10-3 da mesma lei ressalva que ela poderá ser reclamada de acordo com as linhas gerais de reconhecimento ou estabelecimento. Sendo a mulher gestante casada, o parto também influenciará a paternidade para o fim de estabelecer que seu marido será o pai jurídico da criança, ainda que o sêmen utilizado tenha sido do ‘pai intencional”.[17] Na França[18] e em Portugal[19] também existe vedação expressa em leis específicas sobre reprodução humana assistida, e também nos seus respectivos Códigos Civis. Entretanto, outra posição é adotada pelos Direitos inglês e norte-americano. Nos EUA, a partir da década de 80, alguns Estados constituíram comissão para estudar e apresentar sugestões sobre a técnica da maternidade-de-substituição, sendo que no ano de 1987 houve julgamento reconhecendo a constitucionalidade de tal prática – o mencionado caso do Baby M. Todavia, entidades médicas norte-americanas recomendam que as práticas de reprodução assistida somente sejam realizadas em favor de casais estéreis, o que representa a não-aceitação da técnica por mera conveniência. Acerca da maternidade-de-substituição, o Direito Inglês, com o Surrogacy Arrangements Act, de 1995, proibiu peremptoriamente tal prática de forma remunerada, prevendo sanções para aqueles que descumpram a norma. Por outro lado, admitiu implicitamente sua utilização quando realizada sem qualquer remuneração. No que se refere à filiação, a sub-rogada é a mãe legal. Dessa forma, o modo pelo qual os pais intencionais obtêm judicialmente o direito a registrar a criança é o chamado Parental Order – um instrumento jurídico semelhante à adoção, sendo caracterizado por ser uma versão mais simples e rápida.[20] No entanto, a questão não é tão simples. A Lei de 1990 instituiu mecanismo de controle realizado pelo Human Fertilization and Embriology Authority, que necessariamente verifica e fiscaliza tais práticas, determinando quais são os ‘pais jurídicos’ da criança por meio da ordem parental (parental order), ou seja, o casal que manifestou consentimento em procriar através de tal técnica.[21] Pode-se concluir que tal restrição foi instituída de modo a proibir qualquer criação de embriões fora do corpo humano, bem como a guarda de material fecundante sem a licença concedida pela autoridade instituída em 1990. Daí decorre que, pelo direito inglês, toda a prática relacionada à maternidade-de-substituição, e também fertilização in vitro de material de terceiro doador, somente possa ser realizada em clínicas licenciadas, sob pena de ser considerado o pai jurídico da criança aquele que doou o material fecundante [22] – o que se mostra em total discordância com proteção à intimidade do doador, vigente no direito brasileiro. 5. Vazio normativo e o papel do CRM Nos últimos anos o desenvolvimento tecnológico e das Ciências biomédicas vem aumentando consideravelmente. Todo esse desenvolvimento traz implicações para o indivíduo e para a sociedade de um modo geral. As mudanças são notadas e influenciam não somente as relações privadas, mas trazem consequências sociais onde é necessário ter como base paradigmas de dignidade humana, moral social e ética a fim de que se possa lidar de uma maneira adequada com o desenvolvimento para que ele não traga conseqüências prejudiciais para a sociedade atual e vindoura. O desenvolvimento tecnológico e biomédico demonstra que o direito não é capaz de dar sempre respostas satisfatórias para todas as novas questões que emergem de tantos fenômenos que modificam a sociedade. Pois há, na verdade, uma ambivalência trazida com as experiências e avanços tecnológicos, pois da mesma forma que trazem benefícios para o ser humano podem por outro atacar diretamente o direito a vida e a procriação. A maternidade de substituição não está devidamente regulamentada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Há um verdadeiro vazio normativo que gera uma insegurança e acaba por tornar mais escasso o número de pessoas que se utilizam desta técnica a fim de terem satisfeito o seu projeto parental. A única regulamentação existente a respeito da maternidade de substituição vem do Conselho Regional de Medicina[23]. Há projetos de lei que pretendem a regulamentação da prática, mas até a presente data nada foi devidamente regulamentado para acabar com a insegurança da ausência normativa. A Resolução 1358/92 do CFM autoriza o médico a praticar a gestação por substituição nos casos em que um problema de saúde impeça ou contra-indique a gestação da mãe que tem o projeto parental. Além disso, a doação de útero deve ser não lucrativa ou não comercial e a doadora deve ser parente de até 2º grau com aquela que pretende ser mãe, sendo os demais casos sujeitos a aprovação do CRM. O Conselho Regional de medicina pretende com isso evitar a prática indiscriminada dessa espécie de reprodução assistida e a comercialização da gravidez. Ao impedir que a maternidade de substituição se realize entre mulheres que não sejam parentes, pretende-se que não haja a colocação de um preço em uma gestação que deve ser de afeto. Porém, essa restrição do parentesco até o segundo grau acaba também, em muitos casos, por impedir a pratica em determinadas situações. Diz a resolução do CRM que em casos excepcionais poderá haver a autorização do órgão para casos em que a mãe substituta não seja parente dos pais que pretendem a realização do projeto parental. Entrevista realizada com o Dr. Antônio Eugenio Magarinos Torres do Centro Médico Richet, Barra, RJ, restou comprovado que há uma excessiva burocratização que acaba impedindo a realização do procedimento. O médico chegou a tentar submeter casos ao Conselho quando não havia o parentesco necessário entre a doadora do útero e a mãe que possui o projeto parental, mas a burocracia não possibilitou o procedimento da maternidade substituta. A ausência normativa e as dificuldades impostas pelo Conselho Regional de Medicina acabam impedindo a prática da maternidade de substituição e de certa forma incentivando a clandestinidade, pois na verdade a maternidade de substituição acaba ocorrendo à margem da existência de regulamentação específica. Diante dos fatos, é forçoso reconhecer a necessidade de regulamentação da maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro a fim de que a prática possa ser realizada de acordo com parâmetros estabelecidos evitando-se assim a clandestinidade e dando segurança jurídica às gestantes e às pessoas que pretendem a realização do projeto parental. As técnicas de reprodução humana assistida são um grande marco da evolução do biodireito. Cada vez mais as sociedades de diversos países do mundo vêm se utilizando de tais técnicas para verem satisfeitos seus desejos de procriação e realização familiar. Na maternidade de substituição terceiras pessoas se encontram envolvidas no ato de geração de um novo ser. Portanto, novos paradigmas precisam ser analisados e confrontados sem nunca se perder de vista a dignidade da pessoa e a afetividade como base de qualquer relação familiar e humana. Desta forma, não há ainda definição a respeito da natureza jurídica desta técnica, constituindo-se de elementos diversos, sendo assim um fato híbrido e inédito no mundo jurídico. CONCLUSÃO A procriação sempre foi fenômeno de grande relevância, tanto para a vida do ser humano, individualmente considerado, por ser forma de sua realização pessoal, como para a própria existência da sociedade, por ser forma de garantir a sua perpetuação.  Tal é sua importância, que qualquer obstáculo para a sua concretização é configurada como um mal capaz de gerar graves problemas psicológicos ao casal, assim como se dá com a infertilidade e esterilidade. Na busca constante do homem para superar tais problemas, surgem às técnicas de reprodução medicamente assistidas como forma alternativa de substituir a reprodução natural, possibilitando às pessoas gerar filhos quando não podem naturalmente os conceber. Resultado de avanços no campo da biotecnologia, a Reprodução Humana Assistida (RHA) possibilita que casais inférteis tenham condições de ter um filho, quando submetido a uma de suas técnicas. Apesar de parecer um procedimento simples, a RHA gera inúmeras discussões ético-jurídicas que ainda não possuem respostas concretas. No Brasil, a medicina reprodutiva já se encontra bastante desenvolvida, mas é regulamentada apenas pela Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, a qual apresenta normas éticas para o uso das técnicas de reprodução artificial, sendo apenas um documento de caráter normativo profissional, que não tem força impeditiva. No entanto, vários Projetos de Lei se encontram em trâmite na Câmara ou no Senado e visam regulamentar a utilização das técnicas de RHA É certo que existem inúmeros dilemas envolvendo os avanços científicos e as questões morais, notadamente nos campos relacionados à vida e à morte. Todavia, é perfeitamente possível a compatibilização e a harmonização entre tais campos do conhecimento humano com base nos valores eleitos pela comunidade para servir de referencial nos intricados casos que se apresentarem. Assim, o ritmo veloz das descobertas no campo da biotecnologia produz imediatas repercussões sociais que, de todo modo, também recepciona os valores culturais e morais insculpidos no curso da evolução histórica. A atividade científica, como espécie de atividade humana, não pode ser exercida sem o referencial maior em nível teleológico: a pessoa humana. De tal sorte, ao fim da elaboração do presente trabalho, revelou-se a atualidade e relevância do tema em comento, mostrando-se necessária uma readaptação do direito à nova realidade das técnicas de reprodução artificial, a fim de evitar, ou pelo menos, diminuir ao máximo, os efeitos danosos do progresso científico e os conseqüentes ataques à dignidade da pessoa humana, determinando-lhe um rumo, sem impedir seu desenvolvimento. Nesse contexto, observa-se a reiteração de uma prática contemporânea à descoberta das possibilidades científicas advindas das TRHA, regulada de forma escassa pela Resolução 1358/92 do CRM, a saber, a maternidade de substituição, por meio da qual uma mulher é inseminada com material genético diverso do seu – tem-se, pois, a possibilidade de coexistirem até três espécies de maternidade: aquela que ‘doa’ o útero; aquela que doa o material genética e aquela que participa tão somente do projeto parental, sendo, assim, a mãe de intenção. No que se refere à admissibilidade de tal prática pelo ordenamento jurídico pátrio, pode-se constatar que ainda existe enorme dissenso, sendo certo que a realidade brasileira destoa daqueles países nos quais existe maior preocupação com os rumos a serem tomado pelo biodireito. Como exemplos , temos os sistemas normativos de países da comunidade européia – extremamente conservadores, cujas regras chegam até mesmo a tipificar a ‘gestação por outrem’ como crime, punindo-o com pena privativa de liberdade, e os sistemas como os dos Estados Unidos e Inglaterra que, a seu turno, chancelam e até mesmo fomentam a prática da maternidade de substituição em seus países. Conclui-se, pois, ser necessária a construção de um sistema normativo efetivo e, sobretudo, eficaz acerca da maternidade substituta no Brasil, uma vez que a insegurança jurídica gerada pela ausência de critérios e diretrizes exatas é capaz de transformar a realização de um projeto parental em conflitos judiciais intermináveis. Entretanto, somente após a realização de debates e discussões envolvendo todas as entidades e as pessoas interessadas nos temas, é que se alcançará uma normatização transparente, clara e consensual – sempre obediente, repise-se, aos valores e princípios que fundamentam a ordem jurídica brasileira, entre elas a dignidade da pessoa humana, o solidarismo, o personalismo, o pluralismo, a justiça social, e a especial proteção estatal às entidades familiares.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/maternidade-de-substituicao-no-ordenamento-juridico-brasileiro-e-no-direito-comparado/
Apontamentos para a aplicação do princípio da precaução diante dos organismos geneticamente modificados e do Direito do Consumidor no Brasil
O presente artigo busca desenvolver uma análise crítica do princípio da precaução, teórica e jurisprudencialmente. Objetiva-se trabalhar também a questão inseparável entre Direito a Informação, Precaução e a identificação dos Organismos Geneticamente Modificados frente ao consumidor. [1]
Biodireito
1. Introdução O princípio da precaução, desde sua tardia introdução no ordenamento jurídico brasileiro (por meio do princípio 15 da Declaração Rio de Janeiro/92, redigida durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do mesmo ano – ECO/92)[2], vem sendo associado ao Direito Ambiental. O próprio Ordenamento assim o faz expressamente, ao enumerá-lo dentre os princípios gerais do Direito Ambiental Brasileiro, no art. 2º, inc. IV do Decreto 5.098/2004[3].    Parece, no entanto, ser o momento de expandir a aplicação deste princípio para outros ramos do Direito Civil, principalmente, quando considerada sua articulação com o princípio da Informação. Neste artigo, tentar-se-á demonstrar a aplicação do princípio, a partir de suas diretrizes gerais (doutrinariamente construídas), ao Direito do Consumidor e à espinhosa questão referente aos Organismos geneticamente modificados (OGM) e sua regulação no Brasil, passando, inclusive, pela questão da rotulagem, ponto obrigatório ligado ao tema. Duas vertentes podem servir como base para este aumento de importância da idéia de precaução: Em um primeiro momento, deve-se levar em conta a idéia de vulnerabilidade do consumidor, segundo a qual, este é, na maioria das vezes, a relação mais fraca no contrato de consumo[4]. Assim, para que haja igualdade, é necessário que o Estado aja no interesse da Justiça e, antes de tudo, da própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXXII, propiciando uma intervenção nesta relação contratual, fornecendo à parte mais fraca, elementos dos quais possa se utilizar para que faça um consumo esclarecido. Isto é, busca-se colocar em patamares iguais situações diferentes. Um segundo momento a ser lembrado é a crescente massificação por que passa a sociedade atualmente[5]. Com o surgimento e desenvolvimento cada vez mais veloz da tecnologia, as relações entre pessoas passam a ser mais fugazes e superficiais, além de se realizarem em números crescentes; o tempo antes utilizado para uma negociação, hoje em dia, vem sendo progressivamente reduzido. O contrato de adesão (ou de massa) aparece aqui como o principal instrumento da relação de consumo, em que a única opção que resta a ser feita pela parte é a de concordar ou não com as cláusulas do negócio jurídico. Assim, evitam-se atrasos desnecessários, mas também criam-se diversos empecilhos, sendo um deles o aumento do alcance dos danos derivados da relação consumerista. O mesmo bem, decorrente de uma produção em massa, causará a um amplo espectro de pessoas um mesmo efeito que poderá ser apenas econômico (como é o caso do vício do produto) ou físico (como é o caso do fato do produto). Neste caso, é atacado o Direito à Saúde (art. 196 da Constituição Federal), merecendo, portanto, uma proteção integral do Ordenamento Jurídico, à qual tem como aliados o Direito à Informação e o Princípio da Precaução.   Buscar-se-á também uma análise crítica sobre o próprio modo como vem sendo implementado aquele princípio no Ordenamento Nacional e alguns pontos que merecem reflexão em sua elaboração teórica, sempre trazendo à colação a pesquisa jurisprudencial, como meio de auxílio. Este artigo terá por base a experiência doutrinária e jurisprudencial internacional, com especial atenção para a legislação européia, e a  sua (ainda) pequena utilização no Brasil. 2. Breve noção sobre organismos geneticamente modificados e a questão de sua rotulagem[6] Os organismos geneticamente modificados (OGM) são aqueles obtidos a partir da transferência de genes de um ser vivo para outro, geralmente de espécies diferentes, por meio da transgenia.[7] São, portanto, variedades que tiveram seu genoma alterado a partir da introdução de DNA proveniente de outro ser vivo, contendo uma sequência promotora, um gene estrutural e terminal. A seqüência estrutural permitirá que o organismo transgênico expresse a característica relevante desejada, uma vez que determinará a produção de uma proteína nova[8], que pode, por exemplo, tornar uma variedade vegetal resistente a certo tipo de herbicida, como é o caso da soja Roundup Ready, um tipo de semente de soja que foi desenvolvida pela Monsanto na década de 80, resistente a herbicidas à base de glifosato. Técnica da Transgenia:   É importante estabelecer as principais distinções entre o melhoramento tradicional e a transgenia (técnica do DNA recombinante). As técnicas tradicionais estão restritas ao cruzamento sexual, entre seres da mesma espécie, apresentando, o organismo obtido, invariavelmente, metade do código genético das variedades parentais que o originaram.[9] A transgenia, por sua vez, é uma técnica aprimorada e economicamente relevante, uma vez que possibilita o controle específico dos genes que serão transferidos (melhoramento pontual), além de permitir a expressão de genes cujas características são conhecidas com antecedência sem que ocorra a mistura entre os códigos genéticos das variedades parentais.[10] Cabe destacar que os OGM sofrem uma alteração em sua estrutura físico-química, passando a constituir uma nova espécie, denominada cultivar.[11] Em que pese permitir a transgenia a alteração genética de qualquer espécie, o presente artigo científico cingir-se-á tão-somente às variedades vegetais no que concerne à questão da rotulagem obrigatória dos OGM como mecanismo de garantir ao consumidor uma escolha baseada num juízo esclarecido. Imperioso, nessa linha, o questionamento largamente suscitado acerca da necessidade do estabelecimento de limites, tendo em vista o desconhecimento das conseqüências que podem advir de um avanço descontrolado, de modo a proceder a avaliação ética de tais intervenções a fim de que o homem seja sempre respeitado em sua dignidade, em seu valor de fim e não de meio. Isso significa zelar pelo primado do princípio da dignidade da pessoa humana, concebido a partir do imperativo categórico de Kant, como algo inerente a qualquer ser humano[12], sob o pálio da Bioética. Ainda que inexistam estudos conclusivos acerca da beneficência dos organismos geneticamente modificados não só para o meio ambiente, mas para a saúde do ser humano, já existem evidências concretas dos riscos do consumo desse tipo de alimento. Como exemplo, pode ser citado o caso emblemático do milho transgênico Starlink, produzido pela Aventis CropScience USA Holding, Inc., geneticamente modificado para produzir a proteína Cry9C, com características pesticidas que fazem com que este milho seja mais resistente a certos tipos de insetos, de acordo com o guia produzido nos Estados Unidos pela Food and Drug Administration (FDA), divulgado no site do milho Starlink, descontinuado desde 06 de junho de 2008.[13] De acordo com o guia, a Agência Norte-Americana de Proteção Ambiental, Environmental Protection Agency (EPA), autorizou o milho Starlink para ser utilizado apenas como ração animal. O uso na alimentação humana não foi permitido por questões não-resolvidas acerca do potencial alergênico da proteína Cry9C. Ocorreu que, mesmo com a restrição, houve combinação do milho Starlink com o milho amarelo usado na alimentação humana. Em alguns casos, adiciona o guia, a proteína Cry9C foi detectada em sementes de milho de outras variedades e até mesmo nos milhos provenientes dessas sementes. Tal exemplo demonstra a importância da rotulagem obrigatória dos OGM. No entanto, a rotulagem dos produtos que contenham organismos geneticamente modificados em sua composição, como forma de assegurar ao consumidor o direito de escolha com base em um juízo esclarecido encontra empecilhos que incluem a questão da multiplicidade dos agentes reguladores e fiscalizadores da matéria, aparentes conflitos de competência, divergências interpretativas, destacando o papel do Poder Judiciário no sentido de zelar pela aplicação dos dispositivos legais que impõem a rotulagem. 3. O Princípio da Precaução 3.1 Histórico O Princípio da Precaução, que formalmente surge para o direito na década de 1970, principalmente na Alemanha sob o nome de Vorsorgeprinzip, é, para alguns doutrinadores, o desenvolvimento de uma linha filosófica e política iniciada por Aristóteles, na Grécia Antiga, que une noções éticas e políticas na busca por superar a deficiência do saber. Sua denominação derivaria do verbo latino praecavere, designando uma atitude diante de um risco configurando um ato de efetiva prudência[14]. Para Pierre Bechmann e Véronique Mansuy, a forma moderna do princípio da precaução pode ser atribuída ao pensador alemão Hans Jonas, que propunha, em seu livro Le Príncipe Responsabilité: Une éthique pour la civilisation technologique. Pour une éthique du futur, o resgate da ética da responsabilidade de Max Weber, isto é, expunha a necessidade de uma ética de antecipação e a introdução de dever perante as gerações futuras, o que configuraria um dever moral[15]. O Vorsorgeprinzip, como enunciado da política de meio ambiente alemã da década de 1970, segundo Paulo Affonso Leme Machado, buscava concretizar a idéia de que se poderia evitar danos ambientais através do um planejamento mais cuidadoso na instalação e na difusão de atividades potencialmente capazes de degradar o meio ambiente.[16]  A sua primeira grande aparição ocorreu no Ato de Poluição do Ar de 1974, que determina a responsabilização do possuidor de planta industrial que não evitar o dano ambiental ao não se utilizar de todas as técnicas mais avançadas disponíveis capazes de diminuir a emissão de gases poluentes. A partir de então, o princípio da precaução se difundiu rapidamente, tanto no direito interno de diversos países quanto no âmbito internacional. Em 1987, o princípio da precaução se mostra presente na Declaração de Conferência Internacional do Mar Norte. Em 1992, é consagrado definitivamente com o seu aparecimento em diversos tratados e convenções, tais como o Tratado de Maastricht sobre a União Européia, marco crucial no processo de unificação econômica e política européia, e a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que se realizou no Rio de Janeiro e consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável.[17] 3.2 Conceito O princípio da precaução pode ser definido, de acordo com Paulo Affonso Leme Machado, citando o Comunicado da Comissão relativa ao princípio da precaução, como sendo: “A invocação do princípio da precaução é uma decisão exercida quando a informação científica é insuficiente, não conclusiva ou incerta e haja indicações de que os possíveis efeitos sobre o ambiente, a saúde das pessoas ou dos animais ou a proteção vegetal possam ser potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido.”[18] A Declaração da Conferência das Nações unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, em seu capítulo 35, parágrafo 3 da Agenda 21, refere-se a sua aplicação através das idéias de risco irreversível: “Ante a ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, a falta de completo conhecimento científico não deve ser usada como justificativa para postergar a adoção de medidas que se justificam por si mesmas. O enfoque baseado no princípio da precaução pode servir como base para políticas relativas a sistemas complexos que ainda não são completamente compreendidos e cujas conseqüências não podem ainda ser previstas.[19]” (tradução do autor) Poder-se-ía dizer que o princípio da precaução foi incorporado no ordenamento jurídico pátrio no art. 225, parágrafo primeiro em seus incisos IV e V, da Constituição Federal, e na Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938 de agosto de 1981. Esta última introduziu como meta da administração pública nacional a busca por compatibilizar o desenvolvimento econômico e social com a conservação da qualidade do meio ambiente, assim como a preservação dos recursos naturais, com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida (art. 4º, incisos I e VI). Ademais, introduziu como instrumento preventivo a avaliação dos impactos ambientais de acordo com o artigo 9º, inciso III. Destarte, a prevenção passa a ter fundamento no direito positivo nessa lei pioneira na América Latina. Incontestável passou a ser a obrigação de prevenir ou evitar o dano ambiental, quando o mesmo pudesse ser detectado antecipadamente. Contudo, o Brasil, em 1981, ainda não atingira claramente o direito da precaução. 3.3 Avaliação de risco Pode-se afirmar, todavia, que não é viável a aplicação do princípio da precaução sem necessariamente haver a realização de um procedimento científico prévio de identificação e avaliação dos riscos. É nessa etapa que “o risco deve ser definido, avaliado e graduado. Essa afirmação é menos elementar do que aparenta. Ela é uma etapa essencial para a racionalização dos riscos, devendo conduzir a separar o risco potencial do fantasma e da simples apreensão. Ela impõe que não haja satisfação com pressuposições vagas, com as quais se acomoda geralmente a atitude de abstenção. Requer a realização de perícias freqüentemente longas e custosas”[20]. Segundo o Department of Health and Human Services, a análise de risco é um processo subjetivo e envolve condições físicas, biológicas e boas práticas laboratoriais. O pesquisador deve realizar uma avaliação inicial do risco de acordo com o grupo a que o risco se insere. Para tal, considerar-se-á diversos fatores como nível de virulência, patogenidade, estabilidade ambiental, toxidade, atividade fisiológica e alergenicidade[21]. A avaliação de riscos, de acordo com o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias, em sua decisão de 11 de setembro de 2002, pode ser definida como um processo científico que consiste em identificar e caracterizar um perigo, a avaliar a exposição e a caracterizar o risco, ou seja, analisar o grau de probabilidade dos efeitos adversos de um certo produto ou método para a saúde humana e da gravidade destes efeitos potenciais. Nestes termos, a avaliação científica dos riscos deve fornecer à autoridade pública, através de pareceres elaborados por peritos, informações fiáveis e sólidas que lhe permitam desenvolver sua política econômica, social e ambiental, do contrário, estar-se-ia adotando medidas arbitrárias.  Assim, “a autoridade pública competente deve velar por que as medidas que toma, mesmo que se tratem de medidas preventivas, sejam baseadas numa avaliação científica dos riscos tão exaustiva quanto possível tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto”[22]. Portanto, Pierre Bechmann e Véronique Mansuy ao interpretar a Comunicação da Comissão Européia afirmam que a avaliação dos riscos, como recurso científico, constitui, um dever, uma obrigação das autoridades públicas de que suas decisões atinjam o mais alto nível de proteção da saúde pública e do meio ambiente ao se fundamentarem nos melhores e mais recentes dados científicos disponíveis no âmbito nacional e internacional[23]. A avaliação pode, de acordo com os autores franceses, ser dividida em quatro etapas sucessivas, podendo todas serem diretamente afetadas pela evolução do conhecimento. Segundo a União Européia, o primeiro passo para uma avaliação consistente dos prováveis males que se suspeita derivem de certo produto é a “identificação do risco”, ou seja, pesquisadores renomados devem buscar revelar se há presença ou existência de agentes capazes de gerar efeitos desfavoráveis à saúde dos consumidores. Posteriormente, faz-se necessária a “caracterização do perigo” através da qual se procura determinar em termos quantitativos e /ou qualitativos a natureza e a gravidade dos efeitos prejudiciais. Segue-se o estudo com a “avaliação da exposição ao risco”, em outras palavras, devem os cientistas buscar avaliar quantitativa e/ ou qualitativamente a probabilidade de exposição do ser humano ao agente em estudo. Por fim, chega-se à etapa da “caracterização do risco”, isto é, elabora-se uma estimativa quantitativa e/ ou qualitativa, levando-se em consideração as incertezas inerentes ao exercício, à probabilidade, à freqüência e à gravidade dos efeitos desfavoráveis, potenciais ou conhecidos suscetíveis de se produzir para meio ambiente e a saúde humana. Em nível nacional, Sônia Barroso Brandão Soares explicita a necessidade de realização de avaliação de risco de qualidade a fim de evitar danos potencialmente irreparáveis à saúde humana decorrentes direta ou indiretamente do consumo de alimentos transgênicos. “Fazer uma avaliação dos riscos significa utilizar-se de procedimento para sintetizar o conjunto de informações disponíveis e os julgamentos científicos sobre as novas tecnologias, como, por exemplo, a das sementes transgênicas, com o objetivo de determinar a possibilidade de efeitos adversos em humanos, outras espécies e ecossistemas a partir da exposição a um determinado produto específico. A avaliação de riscos deve proporcionar a mais completa informação possível aos responsáveis por controlar e prevenir os riscos, especificamente àqueles que estabelecem políticas e normas”[24]. A Resolução CONAMA nº 1/1986 estabelece que o estudo de impacto ambiental desenvolverá: “a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo; temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benéficos sociais’ (art. 6º, II)”[25]. Os pesquisadores da EMBRAPA e da Universidade Federal Fluminense consideram ainda essencial valer-se do princípio da equivalência substancial, isto é, ao elaborar-se o relatório com os resultados das pesquisas realizadas acerca dos riscos, deve-se estimar o risco à saúde pública do produto, estabelecendo uma comparação do seu similar não transgênico a fim de verificar o real impacto da sua introdução na dieta humana. “A avaliação de segurança de determinado alimento geneticamente modificado (AGM) é estabelecida a partir de sua equivalência substancial. Tal abordagem não se destina à caracterização da segurança absoluta, meta praticamente inatingível para qualquer alimento. O objetivo é garantir que o AGM seja tão seguro quanto seus análogos convencionais”[26]. A avaliação de segurança, portanto, busca responder questões estruturais, que incluem uma multiplicidade de fatores, a título de exemplo, poder-se-ia citar: identidade, fonte e composição do organismo geneticamente modificado, efeitos do seu processamento ou coção, possíveis efeitos secundários do gene, o impacto da sua introdução na dieta[27]. Para Paulo Affonso Leme Machado, não se pode falar em princípio da precaução sem que haja um procedimento prévio de identificação e avaliação do risco, afirmando se tratar de uma etapa indispensável para a racionalização dos riscos, afastando as simples apreensões. “Na avaliação de riscos, são analisados os riscos e os danos certos e incertos, previstos e não previstos no projeto. Essas análises hão de levar em conta os valores constitucionais de cada país, onde, na maioria das vezes, já está inserido o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e um direito ao meio ambiente sadio, daí decorrendo a aceitação ou não aceitação dos riscos e dos danos”[28]. Contudo, esclarece o ilustre ambientalista que os pareceres devem se pautar nos princípios da excelência, da independência e da transparência. Nesse mesmo sentido, o Rapport de la Commission Coppens insiste que “os interesses dos experts cientistas que participem na decisão sejam conhecidos de modo transparente, especialmente suas ligações com os empreendedores da tecnologia avaliada”[29]. 3.4 Gestão de Risco Enquanto o domínio da avaliação de riscos é a ciência, a gestão de risco incorpora elementos não-científicos às considerações, podendo ser vista como um processo político. Sempre que a análise de risco se insurge contra incertezas científicas, o princípio da precaução pode ser adotado de modo a possibilitar a adoção de medidas apropriadas a fim de se alcançar níveis aceitáveis de proteção. Em outras palavras, o princípio da precaução é um instrumento de gestão de risco baseado nos dados obtidos através da avaliação de risco. Apesar de ser conveniente haver uma comunicação entre ambas as fases, elas são essencialmente autônomas. A Comissão Européia, em 1º de fevereiro de 2000, através de uma comunicação afirmou que “a escolha da resposta a dar perante uma determinada situação resulta imediatamente de uma decisão eminentemente política, que depende do nível de risco ‘aceitável’ pela sociedade que se deve sujeitar ao risco”[30]. Desta forma, a aceitabilidade de determinado risco está condicionada não apenas aos resultados derivados de estudos avaliativos, mas também por fatores sócio-econômicos[31]. O Tribunal de Primeira Instância da União Européia definiu nível aceitável de risco como sendo “o limiar crítico de probabilidade dos efeitos adversos para a saúde humana e da gravidade desses efeitos potenciais – que não são mais considerados aceitáveis por determinada sociedade”[32]. É de vital importância, na visão do Tribunal europeu, para a aplicação do princípio da precaução, que haja clara definição dos objetivos políticos que devem ser perseguidos por todas as instituições estatais dentro de suas competências, impondo-se, portanto, a fixação do nível de risco aceitável. Pierre Bechmann e Véronique Mansuy esclarecem que caberá à autoridade pública, confrontada com uma avaliação de risco fundada sobre domínios insuficientes, inexistentes ou controversos, decidir se permanece inerte ou se adota comportamento pró-ativo, significa dizer, será de sua competência decidir se corre ou não o risco potencial[33]. Os autores franceses ressaltam que no caso de julgar-se necessário atuar, imprescindível é que se adotem medidas efetivas, proporcionais e não discriminatórias, visando prevenir o risco a um custo economicamente aceitável. A OMC entende serem proporcionais as intervenções que, mediante raciocínio lógico, aparentem ser suficientes diante dos resultados obtidos pela avaliação. 4. O Direito à informação Enquanto há menos de um século levava-se meses para que uma informação cruzasse o Oceano Atlântico, com o desenvolvimento dos meios de telecomunicação hoje as trocas são instantâneas, tornando o direito à informação de vital importância, principalmente no que diz respeito às novas tecnologias e suas conseqüências. Sendo este, portanto, na atualidade, considerado como um dos principais direitos dos cidadãos. O ilustre doutrinador José Afonso da Silva, citando Freitas Nobre, assevera com probidade: “a relatividade de conceitos sobre o direito à informação exige uma referência aos regimes políticos, mas, sempre, com a convicção de que este direito não é um direito pessoal, nem simplesmente um direito profissional, mas um direito coletivo”. Isso porque se trata de um direito coletivo da informação ou direito da coletividade à informação. O direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação de pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva”[34]. A Constituição Federal de 1988, elevando-o à categoria de direito e garantia fundamental, em seu artigo 5º incisos XIV e XXXIII, adotou essa distinção ao dispor que, sendo todos iguais perante a lei, independentemente de qualquer distinção, “XIV – têm assegurado a todos o acesso à informação; XXXIII – têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.” A vulnerabilidade do consumidor é, na atualidade, universalmente aceita. A Organização das Nações Unidas (ONU) pronunciou-se nesse sentido na Resolução nº 39/248, de 10 de abril de 1985, reconhecendo que os consumidores se encontram em posição de desequilíbrio em termos econômicos, nível educacional e poder aquisitivo, o que se contrapõe ao seu direito de acesso a produtos seguros e inofensivos[35]. No Brasil, essa tomada de consciência teve início com a Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso XXXII que assegura que o Estado promoverá a defesa do consumidor. Desta forma, cabe ao Poder Público, por meio da União, Estados ou Municípios proporcionar instrumentos protetivos visando garantir a efetivação do direito do cidadão, assumindo uma postura mais dirigista. Assinala Ada Grinover: “o Estado, que não é mais visto como garantidor externo da sociedade, como regulador da disciplina das relações interindividuais, torna-se parte ativa no processo econômico e social, cabendo-lhe a tarefa de organizar e recompor diretamente a sociedade civil, mediante a redistribuição da plus valia a camadas cada vez mais amplas da população. O neoliberalismo se propõe, assim, à tutela de valores sociais, e não mais os do indivíduo abstratamente considerado. Na medida em que o fenômeno econômico perde suas leis naturais e reclama a ação dirigista do homem, a economia torna-se resultante de intervenções manifestamente políticas. De outro lado, solicitações institucionais e sociais provocam tendências antagônicas com relação às classes dominantes, num panorama de conscientização das classes emergentes”[36]. É nesse contexto que surge, em âmbito infraconstitucional, o Código de Defesa do Consumidor com o objetivo de reequilibrar as relações de consumo, impondo o respeito à dignidade, à saúde e segurança do consumidor, pela da proteção de seus interesses econômicos e a observância do princípio da transparência. Poder-se-ia dizer que as técnicas legislativas de proteção do consumidor almejam garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco[37], de modo a concretizar a função social dos contratos dentro dos parâmetros de transparência e boa-fé. O Parlamento Europeu, em dezembro de 2000, por meio de Fichas Técnicas, apresentou sua política relativa aos consumidores, estabelecendo que a capacidade de auto-proteção do consumidor está diretamente relacionada com os conhecimentos de que é detentor. Para tanto, acredita ser imperioso aprimorar as normas de informação sobre os produtos, estabelecendo orientações gerais que incluam a transparência da informação sobre os produtos, o desenvolvimento dos serviços de informação do consumidor e testes comparativos mais freqüentes dos produtos[38]. Nesse mesmo sentido, como reflexo do novo princípio básico norteador das relações consumeiristas, instituído pelo art. 4º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, o da transparência, tem-se o desenvolvimento de um novo dever, o de informar. O dever de informar, antes considerado apenas um dever acessório ou anexo, transforma-se, com o advento da Lei 8.078 de 1990, em seu art. 6º, inciso III, em um dever essencial, em um ônus atribuído aos fornecedores. Cláudia Lima Marques, ao tratar do tema, assevera com cristalina clareza: “A ratio legis do Código de Defesa do Consumidor é justamente valorizar este momento de formação do contrato de consumo, que passamos a analisar. A tendência atual é de examinar a “qualidade” da vontade manifestada pelo contratante mais fraco, mais do que a sua simples manifestação: somente a vontade racional, a vontade realmente livre (autônoma) e informada, legitima, isto é, tem o poder de ditar a formação e, por conseqüência, os efeitos dos contratos entre consumidor e fornecedor”[39]. José Carlos Maldonado de Carvalho, citando Roberto Senise Lisboa, esclarece que a transparência “é a clareza qualitativa e quantitativa da informação que incumbe às partes conceder, reciprocamente, na relação jurídica, o que somente pode ser alcançado pela adoção de medidas que importem no fornecimento de informações verdadeiras, objetivas e precisas ao consumidor”[40]. O ideal da transparência, portanto, termina por inverter as posições tradicionais de sujeito ativo e passivo nas relações de consumo. O consumidor, que anteriormente devia atuar de forma ativa a fim de conseguir informações necessárias e suficientemente confiáveis acerca de conhecimentos técnicos e das qualidades do produto ou serviço para realizar um bom negócio, passou, após a publicação do Código de Defesa do Consumidor, a uma posição notadamente mais confortável, a de detentor de um direito subjetivo de informação (art. 6º, inciso III). Por outro lado, o fornecedor se viu obrigado a abandonar sua atitude passiva, informando não apenas sobre as características do produto ou serviço como sobre o conteúdo do contrato. Jorge de Miranda Magalhães expõe com probidade que a transparência significa “a correção e clareza da informação quanto ao produto ou serviço a ser vendido ou prestado, como também sobre o contrato a ser firmado, sobre tudo na fase pré-contratual, ou fase negocial, dos contratos de consumo, onde deve aparecer a lealdade, a boa-fé, o não engodo ao consumidor”[41]. Tal mudança de papeis busca possibilitar ao consumidor informações claras e precisas sobre as características principais do produto, tais como qualidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, ressaltando o art. 31 do Código de Defesa do Consumidor, tratar-se apenas de um rol exemplificativo, posto que deve ser devidamente informado qualquer possibilidade de risco à saúde e segurança do consumidor. Ademais, no caso de risco à saúde ou à segurança, o dever de informar, pela sua nocividade e periculosidade, é reforçado pelo pela disposição do art. 9º do mesmo código. A fim de tornar efetivo o direito à informação, o Código de Defesa do Consumidor inclui a falha ou falta na informação como vício do produto ou serviço: “art. 18 – Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de (…), assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes no recipiente, da embalagem, da rotulagem ou mensagem publicitária” O artigo acima transcrito, de acordo com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques, tem sua aplicação limitada apenas àquelas situações em que exista um vínculo contratual original entre o consumidor e o fornecedor direito. Contudo, os danos decorrentes de relações extracontratuais ou à saúde, sofridos pelos consumidores, denominados vícios de insegurança, também são sancionados com fundamento na responsabilidade objetiva: “Quanto à falha na informação sobre produtos perigosos ou nocivos, pode ela ensejar a combinação dos dois regimes de responsabilidade. O consumidor pode exigir qualquer das hipóteses do art. 18, em relação ao produto adquirido, e, caso tenha sofrido alguma espécie de dano (mesmo moral) em virtude do defeito de informação, poderá pedir o ressarcimento com base no regime extracontratual do art. 12 ss do CDC”[42]. Conclui-se, portanto, ser essencial a realização de uma análise de risco confiável e abrangente de modo a fornecer, seja ao Poder Público, seja ao consumidor, informações idôneas e consistentes acerca dos possíveis danos que possam decorrer da utilização de certo produto ou atividade. 5. Críticas ao princípio da precaução (tal como assumido pelo Ordenamento Brasileiro)[43] Na visão aqui apresentada não pode passar despercebido o fato de que o princípio da precaução ainda não parece estar completamente incorporado pela realidade jurídica brasileira, ainda apresentando contornos bastante fluidos. Neste ponto, pode-se apresentar três críticas ao modo como foi assumido pela legislação nacional (todas interrelacionadas): Uma primeira crítica a ser apresentada se mostra em relação à própria positivação do princípio na legislação. Até hoje, este princípio parece ser regido por três textos principais, quais sejam, a Constituição Federal (art. 225, parágrafo1º, incs. IV), Declaração da ECO/92 (princípio 15) e Dec. 5.098/04 (art. 2º, inc. IV). Dentre eles, o que mais se pronuncia sobre o tema é o segundo, pois os outros dois apenas enunciam, respectivamente, um instrumento para se fazer cumprir o princípio e o coloca como princípio geral do Direito Ambiental. Pouco se tem prestado atenção para a idéia de precaução no âmbito legislativo. Sua construção tem sido decorrência da obra doutrinária, o que acaba por levar a um grande incômodo, pois a própria doutrina vem reconhecendo que ainda não se chegou a um consenso preciso quanto à existência de um padrão concreto de aplicação do princípio. Ora, não se trata de criar um conceito legal e imutável, como já foi feito inúmeras vezes em relação a outras matérias, pois isso só levaria à impossibilidade de desenvolvimento futuro. Todavia, não se pode deixar ao arbítrio a aplicação do princípio da precaução, sob pena de se perverter seu sentido, como é o que vem acontecendo com o Princípio da Diginidade da Pessoa Humana (art. 1º, inc. III da Constituição Federal), invocado em todas situações, por mais distantes que sejam de seu sentido real. Outro argumento a ser ressaltado, é o de que o princípio 15 da ECO/92 trabalha com fórmulas demasiadamente amplas para que se tenha uma concretização precisa ao caso concreto. No seu texto original: “Para que o ambiente seja protegido, será aplicada pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes em termos de custo para evitar a degradação ambiental.” Dentro desta redação, o que seriam “ameaças de riscos sérios ou irreversíveis”? o que se pode denominar de certeza “científica total”? Novamente, não se trata aqui de tolher completamente o alcance do princípio, mas de alertar para o fato de que o Ordenamento trabalha com cláusulas abertas, que, para que sejam concretizadas, merecem um trabalho sistemático. Talvez, a aplicação da noção de “diálogo das fontes”, conforme determinada pela ilustre professora Cláudia Lima Marques tenha aqui uma aplicação essencial. Nos dizeres da autora: “‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, “diálogo” porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das lei em conflito abstrato – uma solução flexível e aberta de interpenetração” (…)[44]  Assim, uma aplicação muito ampla do princípio da precaução poderia inviabilizar o desenvolvimento científico, pois abarcaria qualquer forma de risco científico (é inerente à atividade científica esta noção). E uma aplicação muito restrita poderia inviabilizar, ao contrário, a própria existência do princípio, pois qualquer risco poderia ser tolerado para o “bem” da ciência. No dizer de Elcio Patti Junior: “O Princípio da Precaução está baseado no provérbio popular “de que é melhor prevenir do que remediar”. Não existe, no entanto, um texto padrão para este princípio. As diferentes formulações do Princípio da Precaução prescrevem apenas que se devem tomar medidas preventivas antes de uma completa certeza científica. (…) As diferentes versões do Princípio da Precaução apresentam uma lacuna, pois elas deixam de responder às críticas e as questões de quanto e como a precaução deve ser aplicada em um dada circuntância”[45]. O princípio da precaução carrega (ou deve carregar) consigo, antes de tudo, uma atitude prática e não meramente retórica. Por fim, uma crítica a ser levantada é o fato do princípio, do modo como vem sendo ventilado, deixar margem ao arbítrio judicial, pois, como foi a experiência do Código Civil de 2002, a utilização da técnica das cláusulas abertas deixa uma grande margem de discricionariedade para aplicação da lei ao caso concreto, o que pode, inclusive, levar a excessos por parte do julgador. Ao que parece, esta é uma situação que não é albergada por um Estado de Direito.    6. Rotulagem obrigatória dos OGMs: Legislação brasileira Em seguida, serão apresentados os dispositivos legais que tratam especificamente da obrigatoriedade da rotulagem dos produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, que demonstra ser “uma importante ferramenta de proteção ao consumidor, principalmente por oferecer condições de rastreabilidade ao produto final”.[46]   A Resolução RDC Nº 259-ANVISA/MS/2002 constitui regulamento técnico a ser aplicado à rotulagem de todo alimento que seja comercializado, qualquer que seja sua origem, embalado na ausência do cliente, e pronto para oferta ao consumidor[47], levando em consideração a necessidade de aprimoramento do controle sanitário dos alimentos, com o objetivo de proteger a saúde da população.[48] No Brasil, a exemplo do que ocorre na União Européia, existe uma legislação específica tendente a regulamentar a rotulagem específica dos alimentos transgênicos. O artigo 40, da Lei Federal 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), prevê que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento. O Decreto 5.591, de 22 de novembro de 2005, que regulamenta a Lei Federal 11.105/05, trouxe a previsão da rotulagem obrigatória dos alimentos transgênicos ou derivados, na forma de decreto específico. O Decreto Federal 4.680/03, de relevância inquestionável à análise que se pretende proceder neste artigo, regulamenta o direito à informação contido no Código de Defesa do Consumidor, dispondo no caput do seu artigo 2º que na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto. Lembra Sônia Barroso Brandão Soares que o Decreto Federal referido revogou disposição anterior (Decreto 3.871 de 18 de julho de 2001), que estabelecia o limite percentual de 4% para que fosse efetuada a rotulagem de produtos embalados. O Decreto Federal 4.680/03 não especifica dessa forma, referindo-se o artigo 2º, portanto, tanto aos produtos embalados, como para produtos a granel ou in natura que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs, consoante seu parágrafo1º.[49] Além disso, lembram Lavínia Pessanha e John Wilkinson que ficam isentos de rotulagem todos os produtos derivados de animais que foram alimentados com rações transgênicas, uma vez que somente estas últimas deverão ser rotuladas, não tendo definido a norma procedimentos de rastreabilidade, impedindo que o consumidor saiba que está consumindo produto in natura ou processado a partir de animais que consumiram ração transgênica.[50] A Medida Provisória 113, de 26 de março de 2003, estabelece no artigo 2º que  na comercialização da soja de que trata o art. 1º (safra de soja 2003), bem como dos produtos ou ingredientes dela derivados, deverá constar, em rótulo adequado, informação aos consumidores a respeito de sua origem e da possibilidade da presença de organismo geneticamente modificado, excetuando-se as hipóteses previstas nos parágrafos 4º e 5º, do art. 1º (soja cujos produtores ou fornecedores tenham obtido a certificação de que se trata de produto sem a presença de organismo geneticamente modificado, expedido por entidade credenciada ou que vier a ser credenciada, em caráter provisório e por prazo certo, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, devendo esta certificação constar da rotulagem correspondente, e a hipótese da safra de soja do ano de 2003 produzida em regiões nas quais comprovadamente não se verificou a presença de organismo geneticamente modificado, mediante portaria do Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Ressalte-se que o parágrafo1º, do artigo 2º, da Medida Provisória 113 de 2003 não condicionou a rotulagem da soja da safra 2003 ao limite de 1% previsto pelo Decreto 4.680/03, exigindo a presença em rótulo das informações sobre a possibilidade da presença de OGM. O parágrafo1º, do artigo 2º, do Decreto Federal 4.680/03 determina, ainda, que tanto nos produtos embalados como nos vendidos a granel ou in natura, o rótulo da embalagem ou do recipiente em que estão contidos deverá constar, em destaque, no painel principal e em conjunto com o símbolo a ser definido mediante ato do Ministério da Justiça. Sobre o símbolo em questão trata a Portaria Nº 2.658, de 22 de dezembro de 2003, do Ministério da Justiça. O regulamento para seu emprego, aplicado de maneira complementar ao disposto no regulamento Técnico para Rotulagem de Alimentos Embalados, aprovado pela resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de Nº 259, de 20 de setembro de 2002, já mencionada, foi estabelecido com vistas a definir a sua forma e dimensões mínimas, para compor a rotulagem tanto dos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal embalados como nos vendidos a granel ou in natura, que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, na forma do Decreto n.º 4.680, de 24 de abril de 2003. Isso significa que a Portaria, basicamente, define o layout do “T” indicativo da presença de OGM. Os símbolos deverão ser apresentados da seguinte maneira, de acordo com o anexo da Portaria Nº 2.658/03: “3.1 – O símbolo terá a seguinte apresentação gráfica, nos rótulos a serem impressos em policromia:   3.2 – O símbolo terá a seguinte apresentação gráfica, nos rótulos a serem impressos em preto e branco:   3.3 – O símbolo deverá constar no painel principal, em destaque e em contraste de cores que assegure a correta visibilidade. 3.4 – O triângulo será eqüilátero. 3.5 – O padrão cromático do símbolo transgênico, na impressão em policromia, conforme apresentado no item 3.1, deve obedecer às seguintes proporções: 3.5.1 – Bordas do triângulo e letra T: 100% Preto. 3.5.2 – Fundo interno do triângulo: 100% Amarelo. 3.6 – A tipologia utilizada para grafia da letra T deverá ser baseada na família de tipos “Frutiger”, bold, em caixa alta, conforme apresentada no item 3.1.” Ressalte-se, ainda, que, no âmbito internacional, o Brasil faz parte da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, assinada pelo governo brasileiro no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CNUMAD (Rio 92). De acordo com informações obtidas no site da COP 8/MOP3, a Convenção é o principal fórum mundial na definição do marco legal e político para temas e questões relacionados à biodiversidade, tendo sido assinada por 168 países e ratificada por 188 países, tendo estes últimos se tornado Parte da Convenção.[51] O site mencionado se refere ao Protocolo de Cartagena como um dos mais importantes marcos legais e políticos mundiais que orientam a gestão da biodiversidade em todo o mundo, estabelecendo as regras para a movimentação transfronteiriça de organismos geneticamente modificados (OGMs) vivos.[52] O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, primeiro acordo firmado no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica, considera o conteúdo do princípio da precaução inserido no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e tem por objetivo, nos termos do seu artigo 1º, contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana, e enfocando especificamente os movimentos transfronteiriços. É importante mencionar a discussão travada durante a 3ª Reunião das Partes do referido Protocolo (MOP-3) marcada pela oposição entre a cúpula do governo que defendia uma identificação específica dos carregamentos trasfronteiriços de OGMs, a partir da expressão “contém transgênicos” e o Ministério da Agricultura (MAPA) e representantes do agronegócio que propugnavam por uma rotulagem difusa, resumida na expressão “pode conter transgênicos”. A proposta final apresentada pelo governo brasileiro foi aquela favorável a uma rotulagem clara, porém, com a fixação de um prazo de 4 (quatro) anos para que a identificação fosse efetuada.[53]   7. Breve entendimento jurisprudencial Em seguida, serão mencionadas algumas decisões que determinaram a rotulagem dos produtos transgênicos. 3.2.1 Agravo de Instrumento nº 2003.029271-3. Terceira Câmara de Direito Público. Relator: Desembargador Rui Francisco Barreiros Fortes. Data: 13/04/2004. Tribunal de Justiça de Santa Catarina.[54] Neste caso, a Unilever Bestfoods Brasil Ltda. interpôs Agravo de Instrumento contra a decisão do Juiz de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital, que deferiu liminar nos Autos da Ação Civil Pública n. 023.03.367971-4, determinando o recolhimento do produto “Sopa de Carne com Macarrão Conchinha Knorr”, ao argumento da ausência de aviso de que continha OGMs em sua fórmula, proibindo sua comercialização no Estado de Santa Catarina até que o produto fosse rotulado, indicando não só a existência de organismos geneticamente modificados em sua composição, como também sua porcentagem. De acordo com a Unilever Bestfoods Brasil Ltda. a decisão monocrática negou vigência ao Decreto Federal nº 4.680/03, que estabelece a rotulagem somente dos produtos cuja composição transgênica ultrapasse o limite de 1%. Foi também sustentada pela empresa, no recurso ora analisado, a suspensão da eficácia da Lei Estadual nº 12.128/02 pelo Decreto Federal nº 4.680/03 porque, ao disporem sobre o mesmo assunto, o Decreto Federal teria revogado a Lei Estadual anterior. Outrossim, foi questionada a constitucionalidade da mesma Lei do Estado de Santa Catarina, ao argumento de que esta trataria de matéria de competência exclusiva de lei federal. O Desembargador Rui Francisco Barreiros Fortes não só negou provimento ao recurso como deferiu o pedido de liminar na Ação Civil Pública. Segundo o Magistrado, o fundamento do fumus boni juris está consubstanciado no disposto nos artigo 5º, XIV e XXXII, que eleva o direito de informação e a proteção do consumidor à categoria de direitos fundamentais, e no disposto no artigo 170, V, da Constituição Federal, bem assim nos artigos  6º e 31, do Código de Defesa do Consumidor que prevêem, de modo geral, respectivamente, a proteção à saúde do consumidor contra os riscos advindos de produtos nocivos e a necessidade de serem apresentadas informações claras, corretas e ostensivas sobre as características dos produtos e serviços. Continuando seu voto, o eminente Desembargador revela a insignificância do argumento de que o Decreto Federal nº 4.680/03 revogou a Lei do Estado de Santa Catarina nº 12.128/02 ao afirmar que mesmo que tenha ocorrido tal revogação, o Decreto Federal não é idôneo para revogar o Código de Defesa do Consumidor, muito menos a nossa Lei Maior, que elenca a proteção do consumidor no rol dos direitos fundamentais, elevando a discussão, portanto, ao patamar constitucional. Frisa, ainda, que acima de qualquer discussão acerca da legislação que trate da rotulagem de produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados devem sempre estar os princípios e direitos elencados na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor, até porque, a legislação federal ou estadual que trate do tema deve ser proveniente desses preceitos. Adentrando a possibilidade jurídica da coexistência dos dois dispositivos (Decreto Federal nº 4.680/03 e Lei do Estado de Santa Catarina nº 12.128/02), o Desembargador Rui Fortes opina favoravelmente, pois ambas tratam do mesmo assunto, qual seja, o direito à informação, distinguindo-se apenas no que concerne ao percentual de OGM necessário para a rotulagem. O Decreto Federal nº 4.680/03 prevê o limite de 1% e a Lei Estadual é silente, o que, para o eminente Relator não constitui hipótese de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 12.128/02, pontuando que faz parte do âmbito de competência concorrente dos Estados-membros a reprodução, na essência, dos ditames da norma geral (determinar a rotulagem dos produtos que contenham OGMs), adequando, porém, os preceitos gerais às peculiaridades estaduais. Nesse sentido, na opinião do Magistrado, é permitido à lei estadual não determinar o percentual de OGM para que seja procedida a rotulagem. O Relator questiona a forma específica de que trata do assunto o Decreto Federal nº 4.680/03, que deveria, em verdade, ter se limitado a dispor acerca da matéria de maneira geral, sem a imposição de limites, pondo em cheque a real motivação do legislador federal; “se a defesa dos interesses das grandes multinacionais implantadas em nosso País, ou a defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros”. De fato, procedente a preocupação do Magistrado, uma vez que o principal argumento dos representantes das multinacionais, inclusive da Unilever Bestfoods Brasil Ltda. para justificar a ausência da rotulagem é o de que seus produtos não superam o limite de 1% de OGM estabelecido pelo Decreto Federal nº 4.680/03.   O Voto prossegue, fazendo menção à ausência de pesquisas científicas conclusivas que possibilitem afirmar serem os OGM totalmente inofensivos à saúde do consumidor, ainda que em índices mínimos nos alimentos, adicionando que o direito de o consumidor saber pelo que exatamente está optando não pode ser condicionado a índices ou outros óbices, não podendo este, portanto, ser induzido em erro pela ausência de menção da composição transgênica do produto na embalagem. Importante mencionar a vedação do artigo 37, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor à publicidade enganosa, mesmo que por omissão, capaz de induzir o consumidor a erro. O Desembargador afirma, nessa linha, que, apesar de a perícia técnica feita no produto “Sopa de Carne com Macarrão Conchinha Knorr” pela Fundação Oswaldo Cruz não ter detectado a quantidade de substância transgênica presente, o produto deve ser rotulado com o objetivo de indicar a presença de substância transgênica, ressaltando que não foi proibida a venda do produto, mas tão-somente determinada sua rotulagem. O periculum in mora foi identificado pelo Magistrado em função do risco do consumo indiscriminado dos produtos que possuem OGMs, destacando as restrições a esse tipo de produto efetuadas por países da União Européia como Inglaterra, França e Alemanha. Nos termos do voto do relator, decidiu a Terceira Câmara de Direito Público, por votação unânime, negar provimento ao recurso. 3.2.2 Processo nº 583.00.2007.218243-0. 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo. Distribuído em 29/08/2007.[55] Trata-se de liminar concedida pelo Juiz da 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo para determinar a rotulagem dos óleos de soja produzidos e comercializados pela Bunge Alimentos S.A. e pela Cargill Agrícola S.A.. Em sua decisão, o Juiz Antônio Manssur Filho faz alusão ao conteúdo dos artigos 6º, III e 31, do Código de Defesa do Consumidor e 40 da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), bem assim à sua regulamentação contida no Decreto Federal 4.680/03 e na Portaria nº 2.658/03, do Ministério da Justiça. Pontua que a concessão da medida liminar justifica-se pela prova produzida nos autos de que as requeridas fazem uso de soja geneticamente modificada para a produção de óleos de soja, “pouco importando a quantidade de referido vetor na composição do produto. Se há utilização de produtos transgênicos na composição dos alimentos colocados no mercado, o consumidor deve ser devidamente informado a esse respeito. É o quanto basta”. Nesse sentido, foi concedida tutela específica, em sede antecipatória, para que as requeridas, no prazo de 30 dias, promovessem a adequação de suas respectivas linhas de produção de modo a inserir nos rótulos dos óleos produzidos a partir de então as expressões definidas pelo artigo 2º, parágrafo 1º, do Decreto Federal 4.680/03, acompanhadas do símbolo definido pela Portaria nº 2.658/03, do Ministério da Justiça.[56] 3.2.3 Processo nº 2007.36.02.000701-5. Vara Federal Única de Rondonópolis.[57] O Juiz Federal Francisco Alexandre Ribeiro concedeu medida liminar requerida pelo Ministério Público Federal para determinar à Bunge Alimentos S.A. a inclusão nos rótulos e documentos fiscais relativos aos alimentos/ingredientes produzidos a partir de soja transgênica, por intermédio de sua filial de Rondonópolis, da respectiva informação nesse sentido, nos termos do Decreto 4.680/03, no prazo de 30 dias. A Bunge Alimentos S.A., em sua defesa, alegou que seus produtos não contêm traços de soja transgênica, razão pela qual não estaria sujeita à obrigação de rotular seus produtos, de acordo com o Decreto Federal 4.680/03. Quanto à tese da ré Bunge Alimentos S.A., o Juiz Federal Francisco Ribeiro esclarece que esta se dá em razão da interpretação isolada do disposto no artigo 2º, caput, do Decreto Federal 4.680/03, em especial do trecho que dispõe acerca da necessidade de rotulagem apenas quando a composição transgênica do produto ultrapassar o limite de 1%. Ocorre que, para o Magistrado, a ré ignorou a superveniência de lei especial sobre o assunto, Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), cujo artigo 40 preceitua que “Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento”. Continua a tecer sua decisão, extraindo o fumus boni juris da seguinte explicação: “O Decreto 4.680/03 enquanto ato normativo, por força do princípio da legalidade, é absolutamente subordinado à lei em sua função de regulamentá-la, não podendo inovar na ordem jurídica, nem muito menos contrariá-la, razão por que, com a Edição da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), restou revogada qualquer disposição legal ou regulamentar com ela incompatível (…)” (Negrito nosso) O periculum in mora, para o Magistrado, não se refere ao direito objetivo de ser informado, mas a subjacente direito subjetivo coletivo dos consumidores em saber o que está comprando para exercer o seu juízo de valor acerca dos transgênicos. 8. Conclusão Expostos os tópicos acima, não resta mais a fazer, do que submeter ao julgamento da doutrina a importância da aplicação do princípio da precaução no Ordenamento Nacional. Tem-se como certo que este é um princípio que representa muito para o Direito nacional, pois traz em seu bojo diversas idéias novas que ainda podem ser melhor desenvolvidas, ajudando a alcançar-se um patamar de maior segurança nas relações jurídicas e, principalmente, na convivência em sociedade. Procurou-se aqui aliar uma análise teórica e prática acerca do princípio da precaução e da matéria relativa aos Organismos Geneticamente modificado, sempre tomando por base o fato de que é a experiência o campo de surgimento e aplicação do Direito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/apontamentos-para-a-aplicacao-do-principio-da-precaucao-diante-dos-organismos-geneticamente-modificados-e-do-direito-do-consumidor-no-brasil/
A ética e o Direito do consumidor frente aos alimentos geneticamente modificados
Em uma primeira angulação, será conceituado o que vem a ser alimentos geneticamente modificados, de acordo com a legislação nacional.. Em seguida, discutir-se-á questões relativas à saúde humana, focando-se sobremaneira na pedra de toque da nossa Carta Magna: a dignidade da pessoa humana e os deveres éticos da devida informação de quem manipula formulas ligados ao princípio da informação previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Hoje abre-se discussão acerca dos riscos do uso dos alimentos geneticamente modificados, mais conhecidos como OGMs (Organismos geneticamente modificados). É importante destacar que tal polêmica envolve não só as áreas da biologia, economia e sociologia, mas também questões jurídicas. O presente trabalho foca-se na questão da efetividade dos direitos fundamentais no estado democrático de direito, que tem como projeto estruturante a questão da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, enfocando a proteção, confiança e boa-fé no direito privado, tendo em vista a tutela do consumidor quanto aos riscos à saúde causados pelos alimentos geneticamente modificados. Visa ainda, a real importância da Constituição no estado democrático como bússola norteadora na proteção de direitos contidos em normas infraconstitucionais, tal como o Código de Defesa do Consumidor, objetivando garantir à sociedade brasileira uma justa e solidária proteção, buscando-se a promoção da dignidade da pessoa humana (pedra de toque da Constituição da República /88), a liberdade e a igualdade nas relações privadas. Abordará sob um prisma jurídico, principalmente as questões relacionadas à proteção do consumidor. Tanto o fornecedor como o quem manipula fórmulas deverá, dar todas as informações relevantes sobre o produto ou serviço colocados no mercado de consumo, para que o consumidor possa decidir e agir da forma que melhor lhe aprouver. Por ética profissional deve o farmacêutico instruir o consumidor se há ou não a presença de organismos geneticamente modificados. Tais informações compreendem tanto os aspectos positivos quanto os eventualmente negativos, não sendo lícito ao fornecedor e nem ao farmacêutico deixarem de prestá-las. 2 CONCEITOS DE ALIMENTOS GENETICAMENTE MODIFICADOS (OGMS) À LUZ DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR O diploma legal que conceitua os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) é a Lei nº 8974/95. Em seu art. 3º, incisos. IV e V, assim preceitua: “IV – organismo geneticamente modificado (OGM) – organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética; V – engenharia genética – atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante”[1]. Assim, na definição de Jorge Alberto Quadros Carvalho Silva (2001): “transgênicos são organismos que têm a estrutura genética alterada pela atividade da engenharia genética, que utiliza genes de outros organismos para dar àqueles novas características. Essa alteração pode tanto buscar a melhora nutricional de um alimento como tornar a planta mais resistente a um herbicida”[2]. Desta feita, o Dec. 4.680, de 24 de abril de 2003, que substituiu o Dec. 3.871/2001, regulamenta o direito à informação, – quanto aos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham organismos geneticamente modificados, ou sejam produzidos a partir deles, deverá ser observado, haja vista que o seu art. 2º impõe o dever de informar aos consumidores sobre a presença de transgênicos nos produtos que os contenham acima de 1%, bem como o previsto no §1º do art. 2º os vendidos a granel ou in natura. Segundo os §§ 1º e 3º desse mesmo artigo, deverá ser destacado o rótulo no painel principal e em conjunto com o símbolo a ser definido mediante o Ministério da Justiça, previstas na Portaria do MJ 2.658, de 22 de dezembro de 2003, e a Instrução Normativa Interministerial 1, de 1º de abril de 2004. Por fim, vê-se que o presente Decreto, no seu art. 3º, impõe inclusive a informação ao consumidor de animais, que tenham se alimentado com OGMs, ou que contribuam como A Lei nº 11.105/2005, em seu art. 40, pois impõe que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal, que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, tema regulamentado pela Instrução Normativa Interministerial 1, acima citada. Nessa esteira, efetivamente quer se preservar os valores constitucionais envolvidos, caso se insira no mercado de consumo, alimentos e ingredientes geneticamente modificados, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à vida (art. 5º, caput e XVI), à liberdade (que inclui a escolha quanto ao alimento) e à informação (art. 5º, caput e XIV) e à proteção do interesse do consumidor (art.5º XXXII). Fazendo-se uma análise acerca do Sistema Jurídico do Código de Defesa do Consumidor, em conformidade com a Resolução 39/248/85 da Assembléia Geral das Nações Unidas, e as inovações biotecnológicas, percebe-se que a República Federativa do Brasil terá que intervir nas relações de consumo mais eficazmente. A Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, representou uma inovação na proteção dos consumidores, garantindo em seu art. 6º, direito à proteção, à saúde e à segurança, o direito à proteção dos interesses econômicos, o direito à reparação dos prejuízos, o direito à informação e à educação e o direito à representação. Por conseguinte, o conceito e as normas regulamentadoras dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) extrai-se um direito fundamental à informação dos gêneros alimentícios e alimentos geneticamente modificados, direito este derivado do art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos. 3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E INTERNACIONAL REGULATÓRIA DOS ALIMENTOS GENETICAMENTE MODIFICADOS 3.1 A Lei de Biossegurança Nacional na dogmática do Código de Defesa do Consumidor É notória a implicação potencial dos processos de engenharia genética aplicados, pois, modificar a estrutura genética dos alimentos que comemos apresenta questões de extraordinária importância para o consumidor, envolvendo questões relativas a sua segurança; são destinatários e beneficiários das biotecnologias, objeto, pois, de proteção. Os organismos geneticamente modificados são submetidos a uma série de avaliações antes de obter-se permissão para comercializá-los. Nos Estados Unidos, onde há maior quantidade de OGMs comercializados, as avaliações são efetuadas pela Food and Drug Administration (FDA), a Environmental  Protection Agency (EPA) e o United  Stated Department of Agriculture(Usda)[3]. Na União Européia, o responsável para realizar as avaliações é a European Food Safety Agency (EFSA), desde que ouvidos os comitês de biosseguridade e/ou agências de segurança alimentar dos Estados – membros. No Brasil, a responsabilidade é do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), criado pela Lei nº 11.105 de 24.03.2005, vinculado à Presidência da República. É órgão de assessoramento superior do Presidente da República para a formulação e implementação de Políticas Nacionais de Biossegurança – PNB. De igual modo, temos a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), criada pela Lei nº 8974, de 05.01.1995 , reestruturada pela Lei nº 11.105/05 e regulamentada pelo Dec. nº 5591/05. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança é uma instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, que presta apoio técnico e assessoramento ao governo federal na formulação, atualização e implementação das Políticas Nacionais de Biossegurança de OGMs e seus derivados, bem como pareceres técnicos relativos aos riscos para a saúde humana do uso comercial, segundo dispõe o art. 10, da Lei de Biossegurança e o art.4º, do Dec. 5591/05. Nossa legislação com relação à Biossegurança, adota a alternativa de autorização seletiva e restritiva, bem como os princípios “caso a caso” e “passo a passo”,contidos nos art.14,III,IV e XII, da Lei de Biossegurança Nacional; e art. 5º, III, IV e XII, do Dec. 5.591/05. O princípio, caso a caso, significa que a avaliação dos riscos associados aos organismos geneticamente modificados deve ser realizada de forma individual e singularizada, para cada um deles (case by case); já o princípio passo a passo implica uma escala de progressividade em função do conhecimento prévio e da ausência de riscos em cada função dos conhecimentos prévios e da ausência de riscos em cada fase. É, portanto, um modo de assegurar o “processo de incerteza”, somente procedendo à liberação de OGMs quando a avaliação das etapas anteriores revelar que se pode passar à seguinte sem existência de riscos, ou com riscos mínimos ou controláveis e controle adequado[4]. 3.2 Legislações Internacionais sobre Biossegurança, “Na Argentina, existe o Guia de Boas Condutas, que seguem os padrões internacionais. Além deste, para testes em plantas geneticamente modificadas, há outros diplomas legislativos esparsos que direta ou indiretamente, tratam do tema, tais como a Lei de Sementes e Criações Fitogenéticas nº 20.247; o Decreto Regulamentário da Lei de Sementes e Criações Fitogenéticas nº 2.183/91; o Decreto de Criação do Instituto Nacional de Sementes nº2.817/91, sendo que os dois últimos cuidam de conceitos utilizados na legislação de biossegurança, usando para isso um glossário dos conceitos operacionais ao longo da lei e dos guias de boas condutas, evitando-se, assim, confusões entre os biotecnólogos e os consumidores que se interessam sobre o assunto. Tendo em vista o potencial de risco para a saúde humana, não se pode acusar o legislador argentino de excesso de cautela, porque está apenas garantindo a proteção da saúde pública e da própria vida humana”[5]. “Em relação ao Canadá, existem duas principais leis sobre alimentos: a Lei sobre Produtos Agrícolas e a Lei sobre a Inspeção de Carnes. Assim, os órgão de saúde pública verificam a segurança dos alimentos colocados à disposição do mercado consumidor, abrangendo inclusive os produtos engenheirados, avaliando características peculiares, como a inserção de seqüência de DNA de uma planta alérgica em outra de diferente espécie, capaz de provocar alergia no consumidor, devendo-se, assim, tal fato ser comunicado imediatamente ao consumidor canadense[6].” 3.3  Protocolo de Cartagena sobre Segurança da Biotecnologia O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança data de 29.01.2000, que entrou em vigor em 11.09.2003, constitui o primeiro instrumento jurídico de “apoio ou continuidade normativa” da Convenção sobre a Diversidade Biológica[7] Em linhas gerais, o “Protocolo de Biossegurança” tem como objetivo principal garantir que o movimento transfronteiriço dos Organismos Modificados Geneticamente (OVM) se realize em condições seguras para a conservação da saúde humana. Esta medida foi tomada, visando regular a transferência, utilização e manipulação e, por outro lado, os movimentos transfronteiriços, incluído-se o trânsito, por meio do território de um terceiro Estado, de que possam causar efeitos adversos à saúde humana. “Este Protocolo, em seu artigo 4º, delimita o âmbito de sua aplicação: ”movimento transfronteiriço”, o trânsito, a manipulação e a utilização de todos os organismos vivos modificados que podem ter efeitos adversos para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, tendo em vista os riscos para a saúde humana”. Em seu artigo 18, o Protocolo de Biossegurança contém as previsões relativas à manipulação, transporte, embalagem e identificação.Essa é uma das demandas mais importantes para os consumidores europeus e para os países em desenvolvimento, tais como o Brasil, pois, para poder aplicar um sistema de rastreamento de OVMs de maneira que a rotulagem chegue ao produto final.Desse modo, se prevê no Protocolo de Cartagena que, para os OVMs destinados ao uso do alimento humano ou animal, ou ao seu beneficiamento,deverá figurar claramente na rotulagem a menção “podem chegar a conter OVMs”,junto com a advertência de que não estão destinados à introdução intencional no meio ambiente.Deverá figurar, igualmente, a identificação de um ponto de contato para solicitar informação adicional: nome e endereço do indivíduo e da instituição em que os OVMs estão consignados(art.18.2,a).Na hipótese de OVMs destinados ao uso confinado,deve-se haver uma identificação clara na etiquetagem como OVMs, especificando os requisitos de manipulação e o ponto de contato para obter a informação adicional(art.18.2,b),já que, para os destinados à introdução intencional no meio ambiente da parte importadora, aqueles deverão ser identificados claramente como OVMs,com especificação das suas características : as condições de manipulação,armazenamento,transporte e uso seguro, bem como o ponto de contato para obter informações adicionais,assim como sinais indicativos tanto do importador,quanto do exportador(art.18 2,c)”[8]. Portanto, percebe-se que o Protocolo de Cartagena, mais especificamente em seu artigo 18, é bastante genérico e se limita regular a identificação de determinados aspetos simplesmente na documentação que acompanhará os OVMs; ao não estabelecer um autêntico sistema de etiquetagem, proporcionando somente conhecimento ao importador. 4. OGMS E EVENTUAIS RISCOS PARA A SAÚDE DOS CONSUMIDORES A palavra saúde, de acordo com a Enciclopédia Mirador Internacional (1975)[9], se origina do latim salute, que significa “a salvação, conservação da vida, cura, bem-estar” e, segundo a Organização Mundial de Saúde[10] , é um estado de completo conforto físico, mental e social e não apenas a ausência da doença ou enfermidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 10.12.1948, pela Organização das Nações Unidas resgatou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, tornando-se um marco de grande relevância, por promover o conhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, pois a Declaração nos traz tantos os direitos civis e políticos (art. 3º a 21º), como os direitos sociais, econômicos e culturais (art.22 a 28º). A Declaração inclui o direito à saúde ao preconizar que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar (art.25). A Constituição de 1988, seguindo os passos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, situa-se no marco jurídico da institucionalização da democracia e dos direitos humanos no Brasil, consagrando também, as garantias, os direitos fundamentais e a proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira, ao asseverar os valores da dignidade da pessoa humana como imperativo da justiça social[11]. Observa-se que, desde o preâmbulo, a Constituição projeta a instituição do estado democrático, destinado a assegurar o exercício do direito à liberdade, à segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. No campo da saúde, a Constituição mostra-se um documento bem moderno, arrojado e de largo alcance social, ampliando os horizontes de cobertura dos riscos sociais, como forma de conquista do bem-estar coletivo, conferindo nova dimensão aos sistemas públicos de proteção social ao inserir a definição de seguridade social, nos termos do art.194 Constituição da República/88, que vem a ser um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde. É, dessa forma, a temática da saúde bastante abrangente em diversos dispositivos constitucionais, pois é mencionada expressamente como um direito social (art. 6º caput da Constituição da República/88), direito esse fundado em princípios, tais como a universalidade, eqüidade e integralidade, amplamente protegido pela ordem constitucional em vigor. Nesses termos, deve-se, portanto, observar a questão dos transgênicos e o risco da saúde humana. O Código de Defesa do Consumidor, no art. 8º e seguintes, preconiza que: os produtos colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, exceto os considerados previsíveis em razão da sua natureza e fruição.Ademais, a legislação consumerista veda expressamente a colocação no mercado de produtos que apresentem alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança do consumidor. Assim, segundo Edgar Moreira (2001), “um dos graves perigos apontados dos organismos transgênicos refere-se à efetiva possibilidade de ocorrência de “cruzamento” de cultivos transgênicos com plantas da mesma espécie e com “parentes”da cultura”domesticada”,existentes na biodiversidade”[12]. Desse modo, faz-se, necessário, demonstrar os principais argumentos da liberação do uso dos transgênicos e também daqueles contrários, por entenderem ser altamente danosos para a saúde do homem. Aos que são favoráveis, argumentam que, “a introdução imediata, no mercado de consumo, dos organismos geneticamente modificados, farão com que o seu cultivo e a sua comercialização tragam uma maior produção das safras, menos fome, menos risco agrícola, menos uso de defensivos e controle maior da erosão.Segundo os defensores da utilização dos alimentos transgênicos, os riscos e danos para os consumidores não teriam acontecido depois de vários anos de uso.Vê-se que a insulina é transgênica.Sustentam que a avaliação da segurança alimentar dos produtos originários de plantas geneticamente modificadas é baseada no princípio da equivalência substancial, que emprega um conjunto dinâmico de análises para avaliar a segurança alimentar desses produtos em comparação com os alimentos originários dos métodos convencionais.Sistema, aliás, aceito pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”[13]. “Ocorre que, para tais argumentos dos defensores do uso de OGMs, algumas considerações merecem ser tecidas. A respeito do argumento da diminuição da fome mundial, vê-se que o real objetivo das empresas que produzem alimentos geneticamente modificados não é tão somente de criar vias para a solução desse impasse mundial, pois a falta de alimento, slogan das empresas produtoras de alimentos geneticamente modificados, não está relacionada à baixa produtividade, mas sim na obtenção de lucros às custas da pobreza mundial. Há um interesse apenas comercial, em vender a maior quantidade possível desses produtos.Assim, não é preciso cultivar plantas para suprir a demanda de alimentos no mundo, em solos improdutivos, mas, sim, deve haver politícas públicas mais eficientes, para que se reduza cada vez mais as desigualdades sociais existentes em nosso planeta”[14]. Ao argumento de que se terá menos risco agrícola, é importante frisar as conseqüências em relação ao meio ambiente, visto que esta não é sustentável, ou seja, não se tem uma proteção ambiental.Destarte, segundo Varella, 1996: “A preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrada é reconhecida como direito de todos (princípio determinado pela Constituição Federal), um bem de uso comum do povo, essencial á sadia qualidade de vida”. Importa notar que a legislação brasileira reconhece também o direito ao meio ambiente das futuras gerações, de pessoas que ainda não nasceram. Trata-se de direito transindividual, mas com caráter de novo, o de pessoas futuras. Destruir o meio ambiente não é ato de violação de direito não só das pessoas presentes, mas também das futuras, das próximas gerações”[15]. “Questões relativas ao uso de defensivos agrícolas que poderiam acarretar a transferência indesejada para outros organismos, gerando uma tolerância maior a certos herbicidas, passando as pragas a terem uma maior resistência a estes e, por conseqüência, levaria ao aparecimento de plantas indesejavéis e difíceis de serem destruídas”[16]. Esse posicionamento acima é o entendimento da pesquisadora Carmen Rachel S. M. Faria. Já David Laerte Vieira, falando sobre o princípio da equivalência substancial objetiva, “objetiva a avaliação comparativa, visando a concluir que um alimento geneticamente modificado, ou substância nele introduzida, é tão seguro quanto seu análogo convencional, com histórico de uso seguro, identificando-se,assim,similaridades e diferenças”[17]. “O resultado do estudo de equivalência substancial é suficiente para que o produtor do alimento receba o “benefício da dúvida”e desfrute de permissão do FDA(Food and Drugs Administration) de liberar o referido alimento para consumo nos Estados Unidos,dada a incapacidade de comprovar os efeitos negativos do seu consumo à saúde humana”[18] . Em contrapartida, a União Européia, no que tange à informação dos consumidores, adota posicionamento contrário aos EUA, pois esse país exige a rotulagem em alimentos com adição de conteúdo alergênico ou nutricional. O que vemos em países europeus é uma maior proteção aos consumidores, já que há determinação de que todos os alimentos alterados geneticamente sejam rotulados, independentemente de ser um equivalente substantivo, ou não.Portanto, no sistema europeu de rotulagem dos transgênicos aplica-se o princípio da precaução, exigindo-se prova científica da segurança do alimento transgênico para a sua introdução no meio ambiente. Dessa forma, há se concluir que nos países europeus tem-se um maior respeito à natureza, visto que ao se aplicar tal princípio, segundo Paulo Antunes Bessa[19], “não pode ser realizada de maneira simplista, porque existe uma complexa relação entre progresso científico, inovação tecnológica e risco”. Portanto, é de concluir nessa esteira, que a precaução tem que ser proporcional ao risco, devidamente avaliado cientificamente, nos dizeres de Jorge Alberto Quadros Carvalho, “de tal maneira que se o que está num dos pratos da balança for mais preconceito do que risco é socialmente injusto defender políticas públicas que apenas atendam de imediato a um desconforto elitista, travando em longo prazo o avanço de uma tecnologia”[20]. Então, conclui-se que para aqueles que são favoráveis à introdução imediata dos transgênicos, estes não acarretariam danos à saúde do consumidor, mas sem retirar,contudo, o dever de informar os consumidores sobre a quantidade de alimentos geneticamente modificados que irão consumir,caso comprem aquele produto. Todavia, existem argumentos contrários à introdução imediata dos OGMs no mercado de consumo, pois entendem que além de trazer riscos à saúde dos homens(consumidores),envolve outros interesses. Assim, é importante expor o que entendem especialistas da área, como José Maria da Silva, professor da Universidade Federal de Viçosa: “A grande indústria de capital estrangeiro, que lidera a produção de insumos para a agricultura, a grande empresa rural.Os pequenos produtores só teriam a perder, já que, normalmente, são excluídos das grandes vantagens proporcionadas pelas tecnologias de ponta.O efeito para os médios produtores seria incerto.Enfim, desperta a atenção para a questão do emprego, desde que as variedades transgênicas lançadas até agora seriam predominantemente do tipo que economizaria trabalho, a sua utilização também aumentaria o desemprego agrícola”[21]. Para o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor[22],os riscos à saúde dos consumidores são inúmeros, tais como: a) aumento de alergias; b) desenvolvimento de resistência bacteriana; c) potencializarão dos efeitos de substâncias tóxicas; d) aumento de resíduos de agrotóxicos; 5  DITAMES CONSTITUCIONAIS ACERCA DOS OGMS Não consta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a expressão Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, mas são três os artigos, de suma importância, relativos ao tema da defesa do consumidor. São os art.5º, caput, o inciso XXXII do art.5º, art.170, o inciso V do art 170, o art. 24, incisos V e VIII, bem como o art. 48 dos Atos e Disposições constitucionais transitórias, protegendo, assim, o consumidor brasileiro de forma indireta, de acordo com os ditames constitucionais É importante frisar que a Constituição de 1988 ficou conhecida como “Constituição Cidadã”, com estrutura e cúpula de um Estado Democrático de Direito Nos dizeres de José Joaquim Gomes Canotilho (2000),[23]”a articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos”. Assim, a dignidade da pessoa humana individual ou coletivamente, in casu:do consumidor,é o fundamento norteador de todo o sistema constitucional,para respeitá-la é preciso assegurar os direitos sociais. Existem vários artigos esparsos por toda a Constituição Brasileira em graus e estágios diferentes, relativos à defesa do consumidor, tais como o art.1º, III(dignidade da pessoa humana); art.3º, II e III(desenvolvimento nacional e da redução de desigualdades); art. 6º e ss. (direitos sociais).Todos esses aplicáveis em relação aos alimentos geneticamente modificados, pois está a dignidade da pessoa humana relacionada à vida das próprias pessoas e à redução das desigualdades tem íntima relação com os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor em relação à rotulagem dos OGMs,já que é notória a fraqueza do consumidor frente aos fornecedores e como direito social, direito esse transindividual que deve zelar pela proteção dos consumidores. 6. POSICIONAMENTO DOS CONSUMIDORES SOBRE OS ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS Nos Estados Unidos, 52,8% da população declararam uma expectativa otimista quanto à biotecnologia[24].Diante, de tais dados, o governo americano em março de 2 000 iniciou revisão das medidas adotadas em 1 986 pelo órgão FDA (Food and Drug Administration),pois, nos Estados Unidos, esses alimentos estão no mercado desde 1 994, é que os consumidores não sabem que vêm consumindo alimentos geneticamente modificados.Fato é que os Estados Unidos são hoje o principal mercado consumidor de transgênicos no planeta. 60% da comida encontrada nos supermercados norte-americanos são frutos da engenharia genética, apesar de dois terços da população não desconfiar disso. Nos países europeus os consumidores rejeitam os alimentos geneticamente modificados, o que levou os supermercados do Reino Unido a banir esses produtos de suas prateleiras. Nessa esteira, vê-se um real conflito existente entre os Estados Unidos e os países europeus, em suas relações comerciais, visto que aquele é totalmente favorável aos OGMs,mesmo que os consumidores não tenham conhecimento da quantidade de transgênicos que estão consumindo, o que é altamente lesivo para os consumidores daquele país, e o continente europeu é veementemente contrário ao consumo de alimentos geneticamente modificados. Diante de tal situação a OMC (Organização Mundial do Comércio), se manifestou em 10/02/2006[25] no sentido de que a UE rompeu as regras do comércio internacional ao restringir a importação de produtos geneticamente modificados e alimentos derivados deles, o que representou vitória para os Estados Unidos,reclamantes contra a União européia,naquela entidade. O relatório da OMC sobre o assunto declarou que os países europeus desrespeitaram regras comerciais quanto aos transgênicos, então rejeitados, e a acusou também de retardar deliberadamente a aprovação das importações, ocasionando verdadeira moratória de fato ao ingresso de produtos geneticamente modificados. As relações comerciais entre tais países não podem ser abaladas frontalmente, ocorrendo que a violação do dever de informação, transparência e lealdade também não podem ser violentados tanto para os consumidores de produtos nacionais, como de produtos importados. Portanto, deve haver uma real fiscalização: se há, ou não, violação destas garantias dos consumidores, principalmente, de produtos norte-americanos que não informam a presença de organismos geneticamente modificados na rotulagem de seus produtos. Não só os países europeus,mas também o Japão resguarda-se quanto aos produtos dos E.U.A.,visto que uma associação de consumidores se posicionou contrária, posto que descobriu milho BT em salgadinhos importados dos Estados Unidos, exigindo dessa,forma,que o Ministério da Saúde local não permitisse que os Estados Unidos exportassem transgênicos para o Japão [26] É necessário destacar que, apesar de a Justiça Federal de Brasília ter proibido a importação de produtos transgênicos, decisão,aliás, confirmada pelo Tribunal Regional Federal local, o Tribunal Regional de Pernambuco permitiu que 38 mil toneladas de milho geneticamente modificados, importados da Argentina, desembarcasse no porto de Recife.Esse acórdão veio a ser confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, entendendo que os Tribunais Regionais tinham a mesma hierarquia, sendo melhor que fosse julgado pelo poder local.Vejamos o texto do Tribunal Regional da 5ª Região, na íntegra[27]: “ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPORTAÇÃO DE PRODUTO GENETICAMENTE MODIFICADO. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. LEI Nº 8.974/95. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DA MEDIDA LIMINAR. I – A LEI Nº 8.974/95 ESTABELECE QUE A ENTRADA NO PAÍS DE PRODUTO GENETICAMENTE MODIFICADO DEPENDE DE PARECER PRÉVIO CONCLUSIVO DA CTNBIO E AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. II – NÃO PODE A EMPRESA IMPORTADORA SE RESPALDAR EM PARECER EMITIDO PELA CTNBIO EM CASO DISTINTO DE IMPORTAÇÃO DE PRODUTO TRANSGÊNICO, PARA PLEITEAR A LIBERAÇÃO DE MILHO GENETICAMENTE MODIFICADO, DESDE QUE EM CADA IMPORTAÇÃO DE PRODUTO DESSA NATUREZA DEVE SER REALIZADO O EXAME PERTINENTE A FIM DE QUE A AUTORIZAÇÃO SEJA DADA PELO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. III – A DISCUSSÃO TRAVADA A NÍVEL MUNDIAL ENTRE OS CIENTISTAS E AMBIENTALISTAS SOBRE OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS, DEMONSTRA QUE AINDA NÃO HÁ UMA CONCLUSÃO SOBRE OS EFEITOS DESSES PRODUTOS AO MEIO AMBIENTE E A VIDA HUMANA OU ANIMAL. IV – O FATO DA EMPRESA TER COMERCIALIZADO O PRODUTO TRANSGÊNICO, COM AMPARO NA LIMINAR CONCEDIDA NESTE TRIBUNAL, NÃO TORNA SEM OBJETO O AGRAVO DE INSTRUMENTO.V – AGRAVO IMPROVIDO.” 7.  O PRINCÍPIO DA DEVIDA INFORMAÇÃO,FOCADO NOS OGMs A questão relativa à violação do princípio da transparência pela falta de clareza nas embalagens dos produtos que contenham OGMs – Organismos Geneticamente Modificados, tem íntima relação com o princípio da informação. Preceitua Clovis Couto e Silva (1976) que, “a amplitude do dever de informar prevista no art. 31, enquanto tratado como simples  obrigação secundária pela doutrina contratual, a inevitável indicação e esclarecimento tinha como origem a jurisprudência e a boa-fé e só atingia determinadas circunstâncias consideradas pelo Judiciário como relevantes contratualmente. Era um dever de cooperação entre contratantes, portanto, restrito pelos interesses individuais (e comerciais) de cada um. No sistema do Código de Defesa do Consumidor, este dever assume proporções de dever básico, verdadeiro ônus imposto aos fornecedores, obrigação agora legal, cabendo ao artigo 31, do Código de Defesa do Consumidor, determinar quais os aspectos relevantes a serem obrigatoriamente informados”[28]. As informações contidas nas embalagens dos produtos terão que ser claras, obedecendo a normas já estabelecidas, para que o consumidor possa comparar os produtos com outros de outras marcas. Em relação aos produtos perigosos ou que possam trazer algum risco à saúde e à segurança do consumidor, estes podem ir muito além da simples ameaça à vida e à saúde humanas, podendo causar verdadeiro dano ao Homem. Assim, o transgênico passa de perigoso para nocivo, o que acarretará concretamente maiores conseqüências para a sua saúde. Sendo assim, é necessário que o fornecedor informe as características do produto, de forma ostensiva e adequada bem como a periculosidade e a nocividade, como dispõe o art. 9º do Código de Defesa do Consumidor. Assim, como o fornecedor, o bioquímico tem o mesmo dever, a ser aplicado de forma extensiva, calcado no ônus de lealdade para com o consumidor que adquire o produto por este fabricado. Dessa forma, percebe-se a importância de tal princípio, uma vez que tanto os opositores, como os defensores da liberação de produtos alimentícios geneticamente modificáveis, devem observar o disposto nos artigos 9º e 31 Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, os bioquímicos devem observar o disposto no art 11, inciso III, da Resolução nº 417 de 29 de setembro de 2004, obrigação essa oriunda do exercício da assistência farmacêutica em fornecer informações ao usuário de serviços, mesmo sendo em produtos com pequena quantidade de transformação genética, animal ou vegetal. Conclusão A proteção do consumidor é hoje vista como um desafio ao mundo do direito, pois vivemos hoje em uma sociedade do consumo (mass consumption society ou konsumgesellschaft). Portanto, deverá o Poder Executivo, nas esferas federal, estadual e municipal, fiscalizar de forma contundente questão relativa aos alimentos geneticamente modificados (OGMs),pois o Estado tem a função de proporcionar o bem-estar da população, visando proteger o consumidor de danos causados à sua saúde. A violação da espeficação da quantidade correta ou da omissão acerca dos OGMs fere não só os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor,tais como a da transparência, ,mas também a pedra de toque da nossa Constituição de 1988:a dignidade da pessoa humana,pois ao longo de todo o texto constitucional brasileiro buscou-se resguardar e tutelar,não só os consumidores,mas a sociedade de um modo geral. O enfoque deste trabalho não diz respeito à liberação, ou não, dos OGMs, pois tanto com a permissão do consumo, ou não, destes alimentos geneticamente modificados,a falta de espeficação correta da quantidade ou simplesmente a sua omissão levam à lesão do consumidor, com conseqüente aplicação de diversas sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor. Assim, a vulnerabilidade do consumidor é latente, principalmente em relação ao dever ético do bioquímico de informar sobre a real quantidade de alimento geneticamente modificado. A falta de espeficação correta da quantidade ou simplesmente a sua omissão levam à lesão do consumidor, com conseqüente aplicação de diversas sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor. Assim, a vulnerabilidade do consumidor é latente, justificando-se dessa forma a tutela do Estado. Percebe-se através desse trabalho, que o Código de Defesa do Consumidor e a Resolução Resolução nº 417 de 29 de setembro de 2004, obrigação essa oriunda do exercício da assistência farmacêutica estão em constante “diálogo” com outras normas jurídicas, em relação aos organismos geneticamente modificados, focados na Lei de Biossegurança Nacional, pois, esta define diversas normas concernentes ao uso, quantidade e implicações desses alimentos para o meio ambiente e para a segurança do consumidor. Nesse sentido, a proteção do consumidor em relação à rotulagem dos OGMs deverá advir de uma ação integrada entre a sociedade e as ações governamentais, de forma constante,pois a autonomia privada merece sofrer limitações em face do modelo intervencionista estatal,em face da questão da segurança,saúde e bem – estar contidas no art. art 11, inciso III, da para os bioquímicos que descumprirem as recomendações da CTNBio.           Advogada em Belo Horizonte/MG
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-etica-e-o-direito-do-consumidor-frente-aos-alimentos-geneticamente-modificados/
A síndrome de Nimby na gestão territorial de resíduos
O lixo é altamente impactante e sua eliminação é um problema que deve ser resolvido, mas tem alto custo, apresenta um gravimétrico que dificulta soluções padrões. Além disso enfrenta o desinteresse da população e do governo. Como componente da difícil gestão territorial do lixo, ocorre entre as populações afetadas a chamada síndrome de nimby, que são as diversas formas como a sociedade repulsa o recebimento de lixo de terceiros em seu território. Surge como solução, a aplicação do princípio da proximidade para os resíduos sólidos urbanos.
Biodireito
INTRODUÇÃO O Brasil, a despeito dos números que se projetam, em saneamento, ou mais precisamente quando se fala em lixo, ainda é um típico representante do subdesenvolvimento. Isto se deve pela já sabida tibieza governamental sobre a questão, aliado à deseducação e desinteresse da população. Os dados mais recentes apresentados sobre o assunto, foram postos pela ABRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), revelam que os Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil estão assim dispostos: 54,9% aterro sanitário, 19,6% aterro controlado e 25,5% em lixão.  O posto cabe apenas aos resíduos sólidos urbanos e muito pior ficam os dados e mais duvidosos, quando se tratam de outros resíduos, como os da saúde (RSS), os da construção e demolição (RCD), eletrônicos, radioativos, industriais, etc. Os RSU ou lixo doméstico, é de competência do poder público, em especial do governo municipal. É visualizando este tipo de resíduo que abordaremos a questão proposta. Apenas para esclarecimento e de forma rasa, o conceito de aterro não é conceito de tratamento de resíduos, mas de armazenamento de resíduos. Aterro é depósito, que pode ser com o devido envelopamento dos resíduos com ou sem aproveitamento de gases, com ou sem tratamento de lixiviados, etc. Se envelopado dá-se o nome de aterro sanitário. Este envelope é de geomembrama de PEAD ou não, com ou sem geogrelha e com ou sem bentonita, com ou sem geotêxteis, etc. Tudo depende do projeto, do solo, etc. Se ausente o envelopamento, chama-se aterro controlado, que nada mais é que um lixão devidamente taludado ou dotado de valas. O conceito de aterro controlado não deixa de ser uma maquiagem e eufemismo para lixão. Típico do poder público incapaz de solucionar o problema, utiliza-se de termos para minimizar a realidade. No aterro controlado e no lixão, os resíduos são postos diretamente em contato com o solo, o que significa que haverá necessariamente a contaminação dos mesmos com o lixiviado. Existe para aterros controlados a captação deste lixiviado em lagoas, mas isto não impede a contaminação do solo. Também pode haver em aterros controlados a queima de gases, infinitamente inferior ao aterro sanitário, já que a captação dos gases não tem a eficiência do aterro sanitário, porque os gases não estão hermeticamente confinados. No aterro controlado, o recobrimento dos resíduos é constante. Este recobrimento deve ser feito com terra. É muito comum o uso de RCD (resíduos da construção e demolição), o que revela uma ilegalidade, confrontando explicitamente a Resolução Conama 307/02. No lixão, o lixo é jogado em um lugar chamado vazadouro. Não há controle de pessoas e nem dos resíduos ali depositados. No lixão vai tudo e cabe tudo: RSS (resíduos da saúde), RCD (resíduos da construção e demolição), resíduos perigosos, como lama de postos de combustíveis, vão pilhas e baterias, resíduos eletrônicos, vão cadmio, chumbo, auto-fossas, enfim, tudo que se imaginar de lixo sem restrição… Como se sabe o que o município faz com seu lixo? O governo federal tem um sistema chamado SNIS (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento) e os dados são preenchidos pela própria municipalidade. Se o município entender que o que tem é aterro controlado e não lixão, é aterro controlado… Não seria novidade encontrar no poder público pessoas despreparadas ou mesmo com ânimo duvidoso preenchendo este cadastro. 1. OBSTÁCULOS À SOLUÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS (RSU) Feitas estas considerações preliminares, passemos ao problema dos resíduos sólidos urbanos (RSU), que tem para sua solução diversos obstáculos a serem transpostos. Dentre tantos, vamos abordar o desinteresse, os custos, a composição dos resíduos, os impactos ambientais e a gestão territorial. O lixo nada mais é do que o rejeito. É o que não serve mais. Na escala de valores, é o equivalente a nada, ou ao negativo. Assim, se o lixo, se o resíduo é o que não tem valor, também não há preocupação por sua destinação. É da valorização que vem o interesse pela coisa. Se não há valor, não há interesse. Muita atenção: se tem valor, não é lixo, é matéria prima para outros produtos como os recicláveis. Existe uma lenda de que se dermos todo o lixo para uma entidade ou pessoa jurídica, ela consegue a auto suficiência de modo que não precisaríamos pagar pelo lixo produzido. Isto seria objeto de outra discussão, mas apenas para deixar claro, é uma quimera, ao menos no atual estado tecnológico que nos encontramos. Como disse, se tudo for reaproveitável ou reciclável, deixa de ser lixo. Em especial quando falamos em resíduos sólidos urbanos produzidos pelo pequeno gerador doméstico, este tende a não se preocupar com a destinação do resíduo. Na verdade, a grande e única preocupação estaria literalmente na retirada deste resíduo de sua porta. Buscar solução para o resíduos passa pelo problema de desinteresse em solucionar a questão, visto em especial pelo pequeno gerador, que tende a não se preocupar com o assunto. Aliado ao desinteresse vem o custo elevado para solucionar a problema do lixo, dando-lhe destinação correta. A correta eliminação pode chegar a custos proibitivos para a realidade nacional, como é o caso do plasma. Mesmo a manutenção de um aterro sanitário não é coisa barata. Desta maneira, pende o gerador ou responsável, como o poder público municipal, a caminhar para a ilegalidade, buscando alternativas perniciosas à natureza, como o chamado lixão ou o aterro controlado. Embora no plano imediato estas alternativas possam parecer mais econômicas, num plano futuro significam um custo elevadíssimo de recuperação da natureza. Sem contar que haverão casos em que o estado anterior das coisas possa nunca mais ser reconstituído. O lixo é um elemento vivo que carrega o DNA de seu produtor. Pelo perfil gravimétrico do lixo pode-se identificar qual o estrato social predominante na comunidade. O estilo de vida, de alimentação, etc. Esta composição gravimétrica implica em dizer que as soluções para os resíduos são quase que individuais e localizadas. O quase porque gravimetrias próximas, tendem a soluções similares. Para se ter uma idéia da complicação do que pode ser o gravimétrico dos resíduos, imagine-se que um lixo rico em orgânico pode inviabilizar a sua queima para produção de energia. Queimar orgânico, de forma muito simples, podemos dizer que significa queimar água. Não podemos nos esquecer que o Brasil tem uma matriz energética considerada limpa. O nosso custo para energia elétrica é baixo. O custo da queima de resíduos para a produção de energia pode não justificar um investimento. Assim, no mesmo caso, teria que o tratamento do resíduo tender a transformação do orgânico em fertilizante e eventualmente seus rejeitos, se considerados CDR (combustível derivado de resíduos), para uma queima. A contrário sensu, um perfil gravimétrico com baixa quantidade de orgânico e grande quantidade de recicláveis, justifica a triagem dos resíduos e depois eventual queima. Após este pequeno exercício de elucubrações, esperamos demonstrar o quão complexo é achar uma solução para os resíduos, conforme seu perfil. Outro detalhe importante: o quantitativo justifica ou  desautoriza o uso de determinada tecnologia. Até mesmo o aterro sanitário para determinadas quantidades pode chegar a custos proibitivos em comunidade pobres. Lixo significa problema. Imaginem uma casa, onde a família tem um móvel, que usado por muitos anos, agora foi substituído por um moderno. O que fazer? Ele não cabe na casa. Tem um impacto estético negativo em qualquer cômodo. Usa um espaço que deve ser aproveitado por outro móvel. Não tem valor, ninguém compra e ninguém o quer nem doado. Assim é o lixo. Onde está, causa um impacto negativo. Causa poluição em suas diversas facies, já que in natura o lixo produz odores fétidos, produz lixiviado (o famigerado chorume), produz gases, dentre os quais se destaca o grande vilão da camada de ozônio, que é o metano e conhecido por causar explosões em aterros… O lixo atrai insetos, roedores, urubus, garças, etc… Ar, água, solo, absolutamente tudo recebe o impacto negativo do lixo. E quando se tem um lixão, com pessoas trabalhando, vivendo, comendo lixo? 2. GESTÃO TERRITORIAL DO LIXO: A SINDROME DE NIMBY E O PRINCÍPIO DA PROXIMIDADE. Após estas considerações chegamos ao difícil obstáculo chamado gestão territorial do lixo. Pior do que não saber como reduzir a produção de lixo é não saber o que fazer com ele e para onde levá-lo. Voltando a alegoria do móvel que não se quer mais em casa. Não cabe na casa, fica feio no quintal, o vizinho não o quer nem na frente de sua casa, quanto mais na dele. Imaginem quando falamos de muitas toneladas de lixo doméstico. Para se fazer uma imagem, o Instituto Ambiental do Paraná, IAP, trabalha com uma projeção de 600 grama/dia de resíduos por habitante. Uma comunidade com 100mil habitantes, significa 60mil quilos de lixo/dia. Aterro, central de tratamento, ou mero depósito de resíduos, qualquer coisa que mexa com lixo, ainda que uma central de reciclagem já serve para desvalorizar a região onde está. Já mexe com toda a vizinhança…  Não é só pelo lixo que ali está, mas o que se movimenta ao seu redor. Caminhões prensas (que eventualmente vazam chorume), carrinheiros ou catadores, caminhões com carga de recicláveis, etc. É neste cenário que se identifica a chamada síndrome de Nimby cujo termo é composto pelas iniciais da expressão “not in my back yard”, que numa tradução livre significa “não no meu quintal”. Síndrome porque são diversos os sintomas e reações pelos quais se revela. Ela pode se revelar numa audiência pública onde se discute o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental, quando a população repudia a implementação de uma aterro sanitário no território de seu município. Se exterioriza na ameaça e mesmo no ato de queimar caminhões de outro município que desejam descarregar resíduos em seu município. Na pressão social para criação de lei municipal impeditiva de recebimento de resíduos de outras localidades ou impeditiva de criação de aterros em seu território, ainda que para recebimento de seu próprio resíduo. Em todo espasmo social causado pelo recebimento do lixo. Pode a síndrome se identificar não apenas em relação às cidades, mas dentro da própria cidade, com objeção da população de bairros que serão impactados por empreendimentos que visem o lixo. Não raro, se vai ao judiciário buscar solução para este tipo de conflito decorrente  da síndrome. Mas a síndrome é um mal, é uma “enfermidade”? De modo algum. A síndrome de nimby também tem seu lado positivo. A reação negativa ao empreendimento exige como remédio um grande esclarecimento para a população. Faz com que se apresentem soluções admissíveis. A reação decorrente da síndrome força uma conduta mais leal com o meio ambiente. Ademais, quanto mais perto está o problema de quem o gera, mais o gerador busca solucioná-lo. É interessante que o problema não saia do alcance visual, para que não haja um esquecimento. É bom que o lixo exale seu odor próximo dos narizes daqueles que o produzem. Para solucionar o problema da síndrome de Nimby, o direito dos resíduos traz em seu bojo um princípio chamado princípio da proximidade, acolhido também pelo direito ambiental. Na verdade, este princípio traz o norte para solucionar e transpor todos os obstáculos dos quais falamos acima: desinteresse, custos, composição e impactos ambientais. O princípio da proximidade consiste em buscar uma solução próxima do local onde se gera o resíduo. Este princípio transpõe fronteiras para identificar proximidades físicas. Não se leva em conta divisões administrativas nacionais ou internacionais. Leva-se em conta a eliminação do conhecido turismo do lixo. Turismo que pode ser internacional, como recentemente nos demonstraram os ingleses, como pode ser intermunicipal. A razão do princípio está que o tratamento do resíduo deve estar o mais próximo possível da fonte geradora. A proximidade elimina o desinteresse, já que a comunidade não tem como se escusar de buscar uma solução para o problema, pois o mesmo não pode ser despachado para outros lugares.  O custo é sempre menor, em especial quando falamos de transporte, sem contar o risco menor de acidentes com o menor deslocamento dos resíduos. A composição é delimitada pela área, sem grandes riscos de misturas com outros perfis, como de cidades distintas. Os impactos ambientais próximos da localidade produtora tendem a minorar, visto que o produtor passa a sentir seu reflexo diretamente e tende a reduzir a produção dos resíduos. Por fim, se neutraliza a síndrome de nimby, já que ninguém pode alegar a desobrigação sobre o resíduo que produz. CONCLUSÃO A síndrome de nimby, embora inicialmente pareça algo ruim, pode ser usada em prol do meio ambiente, como forma de pressão para a solução mais adequada ao resíduo produzido. O princípio da proximidade serve como neutralizador ou minorador dos obstáculos apresentados do desinteresse, do custo, do impactos ambientais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-sindrome-de-nimby-na-gestao-territorial-de-residuos/
Princípios da Bioética e aspectos éticos frente a AIDS
Este artigo objetiva abordar os princípios da Bioética e relacioná-los aos aspectos éticos no cotidiano e/ou vivência dos portadores do vírus HIV bem como doentes com AIDS como parte integrante de ações em saúde. Aspira que os princípios da autonomia, beneficência, justiça e dignidade da pessoa humana sejam utilizados como recurso para análise e compreensão de situações de conflitos que se fazem cotidianamente presentes, defendendo, pois, uma visão mais ampla de valorização da vida.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO A preocupação com os aspectos éticos, notadamente no tocante aos portadores do vírus HIV como doentes com AIDS, não se restringe à simples normatização, mas estende-se ao respeito à pessoa como cidadã e como ser social, enfatizando que a “essência da bioética é a liberdade, porém com compromisso e responsabilidade”. 2. CONCEITO DE BIOÉTICA E A INSERÇÃO DA AIDS NESSE CONTEXTO Conceito simplificado de Bioética = Ciência da vida. Segundo Singer, trata-se de uma “ética aplicada” que se atém aos conflitos e controvérsias morais implicados pelas práticas no âmbito das ciências da vida e cuidados da saúde do ponto de vista de algum sistema de valores, chamado também de “ética”. Constitui ainda, um ramo da filosofia podendo se falar talvez em forma especial de ética, vez que pode ser definida de modos diversos, de acordo com as tradições, os autores, os contextos e os próprios objetos em exame, daí o termos “ética aplicada”. Necessário enfatizar dois componentes importantes: conhecimento biológico e valores humanos. É nesse contexto que, como observa Enéas Castilho “perante os avanços médico-científico-tecnológicos, tem-se utilizado os termos “Bioética” e “Biodireito”, no sentido de proteção da vida humana, principalmente, com o intuito de proteger todos os seres humanos que estejam direta, ou indiretamente, envolvidos em experimentos científicos”. A AIDS (sigla da denominação em inglês), SIDA (em português) – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida aparece como doença que ocasiona dilemas éticos, tendo em vista a abordagem de dimensões morais, políticas e sociais, envolvendo, consequentemente, princípios da bioética, sendo os principais: Princípio da Autonomia; Beneficência, Justiça e Dignidade da Pessoa Humana. Assim, a partir dos conceitos dos princípios, definição proposta, inicialmente, por Childress cumpre aplica-los na discussão e resolução de problemas cotidianos quanto aos portadores do vírus HIV como doentes com AIDS, ressaltando que não são absolutos no sentido de prevalecerem sobre os demais. 3. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA Em primeiro lugar, reportemo-nos ao Princípio da Autonomia enfatizando que o surgimento da AIDS rompeu o equilíbrio anteriormente vigente entre saúde pública e liberdades individuais, gerando, pois, problemas éticos, pondo, por assim dizer em xeque a crença exagerada na medicina e progresso biológico. Apesar da expectativa medicamentosa representada pelo coquetel, um longo tempo já se passou desde o desenvolvimento da doença, sem que haja uma vacina ou um tratamento curativo. Com a modernidade e a concepção mais abrangente dos Direitos Humanos, a autonomia e a liberdade das pessoas passaram a ser mais visíveis, sem detrimento aos imperativos sociais, nesse caso, pertinente a saúde pública. Assim, na avaliação de eventuais medidas tendentes a salvaguardar a saúde pública, deve-se ter em mente valores fundamentais como o respeito à liberdade, à privacidade e à confidencialidade das pessoas. Esclarece Aline Mignon de Almeida, “o princípio da autonomia está diretamente ligado ao livre consentimento do paciente na medida em que este deve ser sempre informado; em outras palavras, o indivíduo tem a liberdade de fazer o que quiser, mas, para que esta liberdade seja plena, é necessário oferecer a completa informação para que o consentimento seja realmente livre e consciente”. De modo simplificado, este princípio contempla a idéia que o indivíduo deve ter suas vontades respeitadas, decidindo, pois, sobre as atividades que impliquem alterações em sua condição de saúde física e/ou mental, desde que estejam em informados para a sua tomada de decisão e plenamente capazes do ponto de vista psicológico. Nesse sentido, Gislayne Fátima Diedrich, citada por Enéas Castilho, acrescenta a este princípio segundo o Relatório Belmont publicado em 1978, “(…) ao menos duas convicções éticas: os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e as pessoas com autonomia diminuída tem direito à proteção. Salientando que pessoa autônoma é aquela ‘capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação’, reconheceu a comissão que nem todo ser humano é capaz de se autodeterminar, necessitando de maior proteção. Foi  considerando que, na maioria das pesquisas envolvendo seres humanos, tal princípio determina que esses entrem na pesquisa ‘voluntariamente e com informação adequada’” (in Maria Celestre Cordeiro Leite Santos, Biodireito, pág. 219). 4. PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA Em segundo lugar, enfoquemos o Princípio da Beneficência. Este princípio se constitui na exigência ética de que o médico aja em favor do doente. Podemos afirmar que antes da AIDS e sua propagação existia um risco “razoável” dos profissionais de saúde, ou em outros termos, uma justa proporção entre os benefícios e as contra-indicações decorrentes da ação médica, pelo menos, essa seria uma primeira impressão. Na verdade é o princípio mais antigo da prática médica, estando ligado ao juramento de Hipócrates, qual seja: “aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razão, e nunca para prejudicar ou fazer mal a quem quer que seja”, o que se traduz nas palavras de Aline Mignon de Almeida, “a ponderação entre os riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais e coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos (…)” O princípio da beneficência pode ser conhecido também por não maleficência, vez que os médicos e cientistas estão moralmente proibidos de, intencionalmente, infligir o mal ao paciente. Trata-se, pois, de proibir condutas que, apesar de poderem gerar conhecimento novo, sejam igualmente capazes de gerar algum malefício ao paciente. Importante salientar que este princípio deve ser analisado juntamente com o princípio da autonomia vez que o paciente pode optar por fazer parte de um experimento médico-científico, como tratamento alternativo, desde que lhe sejam previamente esclarecidos todos os riscos potenciais da atividade que será realizada, e ainda, ao tempo que isto não implique em sacrificar-lhe a saúde, a integridade física e/ou psíquica ou até a própria vida. 5. PRINCÍPIO DA JUSTIÇA O Princípio da Justiça, na bioética atual é traçado segundo: “casos iguais exige tratamentos iguais”. Significando, pois, que ninguém pode ser discriminado em razão de sexo, religião, raça, idade, como também não são critérios válidos para a distribuição dos recursos sanitários o mérito ou a virtude das pessoas, a função social que desempenham ou seu nível econômico. Nesse contexto, o princípio da justiça diz respeito à coletividade, em contraste com princípios anteriores que se referem aos indivíduos. Originalmente, é um princípio ético de ordem social. Se ocupa da justiça denominada distributiva, que regula as relações do estado com os cidadãos. 6. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O Princípio da dignidade da pessoa humana, norteador da bioética, pelo qual, a vida humana deve ser sempre protegida contra agressões indevidas. Trata-se de um princípio constitucional. Como preconiza Kant, “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. Consequentemente, deve se respeitar a vida, decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual considera o ser humano como valor em si mesmo. Para Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha, “(…)não se justifica a causa do sofrimento e da dor desnecessária, a imputação de um ônus superior ao que a pessoa possa suportar, ainda que, por decisão sua, mesmo para a realização de pesquisas ou qualquer atividade científica. Combate-se assim, a consideração do homem como objeto, como uma ‘coisa’, a favor da compreensão da vida humana como algo sagrado, intangível. Ainda que fora dos aspectos teológicos que a questão envolve, a expressão ‘sagrado’ não necessariamente estará ligada a Deus, mas sim ao caráter inviolável de seu objeto… a vida humana não pode ser sacrificada em prol da ciência, e da experimentação (…)” Assim, qualquer conduta que termine por transformar ou equiparar o ser humano em um simples objeto é atentatória contra a dignidade intrínseca de todos os seres humanos e deve ser proibida, mesmo que conte com a concordância da vontade autônoma do indivíduo. 7. BREVE CONCLUSÃO Por fim, princípios outros existem, todos derivados do princípio da dignidade da pessoa humana, o desafio é a observância aos princípios em conjunto à aplicação de metodologias éticas em um ambiente pluridisciplinar, condizente com uma postura consciente, solidária e responsável de todos os seres humanos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/principios-da-bioetica-e-aspectos-eticos-frente-a-aids/
O direito fundamental à alimentação adequada: contexto histórico, definição e notas sobre a sua fundamentalidade
Este artigo apresenta o contexto histórico em que se desenvolveu o direito à alimentação adequada no mundo, destacando-se, em seus entremeios, documentos e eventos que, de algum modo, contribuíram para a sua concretização. Igualmente, explicita-se a definição da expressão alimentação adequada, a fim de tornar o seu uso inteligível no transcorrer deste estudo. Por derradeiro, elabora-se um breve arrazoado sobre a fundamentalidade do direito em apreço, ressaltando, para tanto, a sua inclusão no rol constitucional de direitos e garantias por meio da cláusula de abertura firmada no art. 5o § 2o, da Constituição Federal de 1988, bem como a sua identidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Biodireito
1. Contexto histórico Desde a Pré-História há relatos sobre os esforços empreendidos no mundo, por aldeias inteiras, para satisfazer a necessidade básica de acesso à alimentação[1], contudo, somente a partir do século XIV esta passou a ser reivindicada em face do Estado. Conforme Trindade[2], a primeira das insurreições com o fito de assegurar a subsistência humana data de julho de 1378, em Florença, na Itália, quando os ciompi, trabalhadores têxteis diaristas, e os pequenos proprietários burgueses, insatisfeitos com as condições de fome e miséria a que eram submetidos, tomaram o poder local e saquearam as casas dos mais abastados. O próximo registro deu-se em 1601, quando o governo da Inglaterra, para conter a massa de desempregados que lhe rodeava, criou “as famosas Leis dos Pobres, que tornavam as paróquias responsáveis pelo sustento de seus pobres, ou seja, dos residentes que perdiam seus meios de vida. A mesma lei também procurava dar trabalho aos destituídos, fornecendo-lhes um estoque de matérias-primas, como lã, que poderiam fiar e tecer e colocar à venda.” [3]  Na França, durante o século XVIII, os clamores foram encorpados aos escritos de Jean Jacques Rousseau por meio de sua análise sobre a constituição das diferentes classes sociais e dos privilégios dos mais abastados, tendo concluído que: “(…) a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis.” [4] Destarte, Rousseau trouxe novos elementos às discussões sobre a desigualdade, na medida em que afirmou que a pobreza não decorria da natureza humana ou do privilégio divino de uns poucos em face dos demais, mas dimanava da apropriação das terras, muitas vezes ilícita e injusta, e de todas as vantagens recolhidas sobre aquelas. Para o genebrino, portanto, eram os homens, e o seu anseio por poder, que instituíam as desigualdades sociais e, em casos extremos, impediam, inclusive, o exercício dos direitos mais essenciais pelos mais fracos. “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de um astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.”[5] Nesse sentido, discorre Coutinho ao comentar sobre as reflexões de Rousseau: “ele mostra como a raiz da desigualdade está na propriedade privada, na divisão do trabalho que a acompanha, nos conflitos de interesse e na desigualdade que emergem necessariamente da ação do mercado (…) para Rousseau, ao contrário, se há uma ‘mão invisível’ no mundo do mercado, ela conduz não ao bem-estar geral, mas à luta hobbesiana de todos contra todos, à alienação e à desigualdade”[6]. Rousseau foi também um dos responsáveis pela democratização de direitos e pela defesa da igualdade entre todos os cidadãos[7], sobretudo por meio de seu Contrato Social, de 1762, quando fomentou a união de todos em prol de uma vontade geral, considerando que: “Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia (…) Esses artigos quando bem entendidos se reduzem todos a um só: a alienação total de cada sócio, com todos os seus direitos, a toda a comunidade; pois, dando-se a cada um por inteiro, para todos é igual a condição, e, sendo ela para todos igual, ninguém se interessa em torná-la aos outros onerosa”.[8] Conforme observado por Bonavides [9], Rousseau defendia que a vontade geral, expressa sob a figura do contrato social, não poderia ser vista senão como uma declaração política de todos, o que impende o seu usufruto também por todos, justificando, para tanto, que: “(…) o corpo soberano que surge após o contrato é único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de poder determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação de cada parte contratante foi total e sem reservas. Desta vez, estariam dadas todas as condições para a realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo.”[10] Em 1789, a Revolução Francesa foi deflagrada, motivada por uma crise interna multifacetada. Primeiramente, esta crise caracterizou-se pela degeneração fiscal do Estado francês devido aos elevados gastos da Corte, que, cumulados ao longo do tempo, tornaram-se insustentáveis. Ela também decorreu de um descontentamento dos burgueses para com a condução política do Rei, sobretudo, pelo protecionismo em favor da aristocracia. Aliada aos dois aspectos citados, quais sejam, o fiscal e o político, a crise evidenciava-se, ainda, no âmbito social e econômico por meio da miséria disseminada entre os camponeses e o pequeno proletariado, especialmente pelas parcas safras entre 1788 e 1789. [11] A burguesia, conforme o apregoado por Sieyès[12], se autodenominava como uma das principais responsáveis pelo sustento do Reino, contudo, sentia-se excluída dos espaços de decisão e dos privilégios de que gozavam nobreza e clero[13]. Por isso, estava decidida a tomar o governo da nação através de uma revolução. Para tanto, a burguesia barganhava a adesão dos camponeses e dos demais trabalhadores à sua causa, entendendo esta como a única maneira de alcançar superioridade quantitativa em relação à nobreza e, assim, governar a França. Para os campesinos, a Revolução significava uma oportunidade ímpar de garantir alguns dos direitos mais básicos, dentre os quais a sua própria sobrevivência, haja vista que, naqueles tempos de crise agrícola e econômica, pouco lhes restava, além de “peregrinar pelas cidades e pela zona rural, buscando sobrevivência na mendicância ou extravasando seu ódio aos privilegiados mediante saques e atentados contra senhores rurais”. [14] Assim, os pleitos de ambos os grupos se conjugavam e consolidavam o escopo de tomada do poder. Os socialmente vulneráveis não mais suportavam a miséria, por isso, decidiram fortalecer a burguesia e, conseqüentemente, contribuir para a insurreição.[15] Os mais abastados, por seu turno, eram dotados de bens, todavia não lhes era concedido espaço no governo do Estado, nem possuíam condições de obtê-lo sozinhos, o que explicava a sua vinculação aos demais. Em 1789, a Revolução findou com a ascensão da burguesia ao poder. Este fato, entretanto, diferentemente do pactuado entre os grupos revolucionários, não se traduziu na concessão de direitos em favor dos camponeses e pequenos trabalhadores urbanos. Na realidade, os próprios fundamentos ideológicos da Revolução Francesa se encarregaram de apartar os responsáveis pela derrocada do Antigo Regime. Ao se estabelecer no governo, a burguesia cuidou de direcionar suas ações para o fortalecimento do seu poder, investindo na política liberal e no interesse privado[16]. Tais providências, por seu turno, em nada se comungavam com os anseios dos demais revolucionários, haja vista que não considerava a sua condição de vulnerabilidade social, tampouco a necessidade de intervenção do Estado em seu favor. Daí porque concluir que a gestão burguesa, ao invés de colaborar para a emancipação dos desprovidos, findou por lhes perpetuar o sofrimento, que, no mais das vezes, se arrematava pela extrema pobreza. A proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, somente veio a ratificar a matriz liberal e protecionista da Revolução, conforme demonstram os artigos 1o. e 17, referentes à igualdade e à propriedade, respectivamente. “Art. 1o. – Os homens nascem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. [..] Art. 17. – Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização.” É verdade que esta declaração trouxe alguns lampejos sobre a intervenção do Estado para a segurança de todos e a obrigação de zelo para com coisa pública pelos seus administradores. Todavia, nada lhes garantia exeqüibilidade, conforme o infra transcrito: “Art. 12. – A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem é confiada. [..] Art. 15. – A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.” A Constituição Francesa de 1791 foi mais adiante, determinando o socorro público, que deveria ser ofertado pelo Estado, por meio de abrigos assistenciais para desprovidos, nos termos seguintes: “Será criado e organizado um estabelecimento geral de socorros públicos para criar crianças expostas, aliviar os pobres e enfermos e prover trabalho aos pobres válidos que não o teriam achado”. Em 1795, na Inglaterra, grande nação fabril, repleta de trabalhadores sujeitos a condições insalubres, passou-se a implementar “‘o sistema de abonos’ ou de aditamento aos salários, acrescentando-lhes um valor que flutuava segundo o preço do pão, o que garantia aos pobres, independente de seus proventos, uma renda mínima”. [17] As preocupações com a realidade econômica evidenciaram-se mais claramente no ano de 1798, quando Thomas Malthus[18] publicou o livro Ensaio sobre a população, no qual defendeu que a produção agrícola em um curto período não mais seria suficiente para o contingente populacional no mundo, pois enquanto aquela crescia em progressão aritmética, este crescia em progressão geométrica, o que fatalmente incidiria em um colapso mundial. E, pior, asseverava que: “(…) todas as formas de assistência social seriam inúteis e até perniciosas, tanto porque estimulariam os miseráveis a se acomodarem e casarem sem condições de sustentar a prole, como porque, retendo os trabalhadores nas paróquias beneficentes, restringiriam a conveniente mobilidade da mão-de-obra.” [19] Posteriormente, em 1834, foi editada em solos ingleses a Poor Law Amendment Act, ou a New Poor Amendment, “um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro das novas workhouses (…) e retirou a garantia paroquial de uma manutenção mínima.” [20] Esta mesma lei estabelecia que em troca do auxílio, as famílias eram obrigadas a viver em abrigos diferenciados por gênero, perdendo, assim, parte significativa de sua autonomia.  A partir dos anos 40 do século XIX, o economista alemão Karl Marx contribuiu para novas discussões sobre direitos, agora, contudo, direcionadas aos direitos sociais, especialmente aqueles vinculados às lutas proletárias. Diferentemente de Malthus, Marx defendeu – e posteriormente demonstrou – que não havia uma lei natural de crescimento das populações, mas “apenas tendências ou ciclos demográficos históricos, que mudam de um período para outro de acordo com os tipos de organização social”.[21] Para o economista, o grande problema se consubstanciava no modo de organização e de produção em que estava pautada a sociedade, que, uma vez afeita ao capitalismo explorador e opressor, tenderia a instituir um “‘exército industrial de reserva’, condenado ao desemprego ou subemprego, a baixos salários, condições de vida miseráveis e fome persistente”. [22] No título A questão judaica, alertou para o debate sobre o Estado e as diferenças impingidas pelo exercício daquele entre os homens, conforme citado abaixo:  “Longe de eliminar de fato as diferenças provenientes de religião, nascimento, ocupação etc., o Estado só existe sobre essas premissas, ele só se sente como Estado político e só faz valer a sua genialidade em contraposição a esses seus elementos, sendo que o limite da emancipação política se manifesta imediatamente no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre.” (grifo nosso)[23] Ali, Marx se debruçou sobre o Estado e a maneira como fora constituído, notadamente como o mesmo servia para justificar e perpetuar o poder burguês. Afirmava, inclusive, que o fato das declarações e constituições determinarem diversamente, não alterava esta verdade, mas, em algumas circunstâncias, colaborava para o fosso existente entre as classes, na medida em sustentavam uma pseudoigualdade – de fato, inexistente. Em 1848, Marx publicou, juntamente com Friederich Engels, o Manifesto Comunista, obra significativa pela análise firmada sobre o capitalismo e a necessidade de uma revolução conduzida pelos proletários, demonstrando as injustiças provocadas pelo modo de aquisição burguês e sublinhando, como havia feito Rousseau séculos antes, os males vinculados à propriedade, conclamou: “Proletários  de todo o mundo, uni-vos”. Observa-se, então, o crescimento do movimento de operários, de livres pensadores e de profissionais liberais em prol dos direitos dos trabalhadores, principalmente os concernentes ao seu bem-estar e à sua condição enquanto cidadãos. Aqui, definitivamente, os direitos deixam de ser normas postas, para se tornarem objetos de lutas e perquirição entre classes.[24] Contudo, a questão permaneceu latente até o final do século XIX, quando a Inglaterra suportou uma crise de escassez de trigo, decorrente do aumento de sua demanda, embora sua oferta permanecesse quase estática. [25] Naquele período, o assunto tornou-se recorrente nas principais rodas inglesas, tanto pela publicização dos estudos de Cornelius Walford, em 1878, que “analisava as causas de mais de 350 surtos de fome que haviam flagelado os povos ao longo dos séculos” [26], como por meio de um discurso de Sir William Crookes na Associação Britânica para o Progresso da Ciência em 1898, quando a emergência da crise de alimentos alastrou-se juntamente com o anseio de se encontrar meios sustentáveis para a sua superação. Pela primeira vez, também, teve-se a compreensão de que o provimento aos alimentos deveria ser encarado como garantia, e não como caridade do governo em favor da população. [27] Em 1914, deflagrou-se a I Guerra Mundial, causando morte, fome e horror no mundo ocidental. Estima-se que em razão do conflito “Cerca de seis mil pessoas foram mortas todo dia durante quatro anos (totalizando 8,5 milhões). Tomaram parte na guerra 65 milhões de soldados, e desses cerca de 37 milhões foram feridos, dos quais aproximadamente sete milhões aleijados para sempre (…) Orçamentos nacionais eram exauridos no socorro aos sobreviventes. As taxas de natalidade caíram bruscamente, as economias nacionais operavam a uma pequena fração de sua capacidade, a agricultura estagnou, e a fome e a pobreza surgiam a cada inverno.” (grifo nosso) [28] Depois disso, o próximo enfrentamento institucionalizado ao pauperismo somente ocorreu “com a revolução que instaurou o socialismo na Rússia em 1917, e acelerou a implementação de medidas de proteção social”[29], inclusive, por meio de sua constituição escrita. Ressalta-se, contudo, que tais feitos do governo russo não foram fruto de sua benevolência, mas deveu-se, em grande medida, às reivindicações dos camponeses e operários por pão, paz e terra.[30] O conflito mundial, por sua vez, somente findou formalmente em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes, que estabelecia aos países vencidos, principalmente para a Alemanha, a responsabilidade de reconstruir os demais, além da obrigação de ceder parte de seu território para a composição da Tchecoslováquia, da Polônia e da Iugoslávia. Como sucedâneo da I Guerra Mundial, foi criado o Pacto da Liga das Nações (1919), “para melhorar a segurança, garantindo a paz, os direitos dos grupos e das pessoas e a cooperação entre os países” [31], juntamente com a  Organização Internacional do Trabalho, com a finalidade de promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar. [32] No mesmo ano, uma nova era foi formalizada por meio da Constituição de Weimar, da Alemanha. Esta, semelhantemente ao ocorrido na Rússia, resultava da demanda dos movimentos populares alemães, com destaque para o seu movimento operário, aliado ao seu contexto econômico caótico do pós-guerra.  [33] Por meio desta Constituição, os direitos sociais passaram a ser normatizados e, por isso, formalmente exigíveis. Suas inovações influenciaram toda uma geração de constituições que lhe seguiram, a exemplo da Constituição brasileira de 1934, demandando uma nova postura do Estado, agora efetivo provedor dos direitos individuais e coletivos. Um exemplo dos novos tempos pode ser sistematizado pelo exercício do direito de propriedade, previsto na Carta Constitucional Alemã como elemento vinculado à função social “(…) com a célebre fórmula: ‘ A propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve visar o interesse geral.’ (art. 153)-,a repartição das terras (reforma agrária) (art. 155), a possibilidade da ‘socialização’ de empresas (art. 156), a proteção ao trabalho (art. 157), o direito de sindicalização (art. 159), a previdência social (art. 161) (…)”[34] No continente americano, por sua vez, os primeiros escritos sobre alimentação e escassez ocorreram na década de 20, nos Estados Unidos, em razão de uma crise de produtividade, quando “(…) o Agricultural Yearbook, uma publicação do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, publicou um extenso artigo intitulado ‘O Uso de Nossas Terras para Plantações, Pastos e Florestas’. Embora as conclusões fossem expostas em termos cautelosos, os autores estavam visivelmente preocupados com a capacidade dos Estados Unidos de alimentarem uma população de 150 milhões de habitantes”[35]. (grifo nosso). A apreensão dos governantes e estudiosos diverge do anteriormente vigente, não mais se debruçando sobre os alimentos propriamente ditos, mas sobre as alternativas eficazes de promoção e acesso à alimentação adequada para o contingente populacional do mundo. A demanda por alimentos inaugurou uma nova fase quando passou a ser compreendida como direito dos cidadãos e dever do Estado, tal qual proclamava Goodfellow, “(…) o homem não precisa apenas de comida, mas de uma organização para obter comida”.[36] Em 1929 a bolsa de Nova Iorque foi à bancarrota, juntamente com o sistema financeiro americano. Milhares de trabalhadores se viram desempregados, tendo que clamar por auxílio governamental, que chegou somente em 1933 com o plano econômico intitulado New Deal, “baseado nas idéias do economista inglês John Maynard Keynes, que defendia um plano ativo do Estado no cenário econômico”. [37] Através da política do welfare state, instrumentalizada pelo supracitado plano, durante o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, frentes de trabalho foram abertas, incluindo desempregados e subempregados na modernização e na construção de infraestrutura básica no país; créditos rurais foram disponibilizados para pequenos agricultores; e a previdência social foi implementada. Significativa, ainda, para o estudo ora plasmado, foi a criação, pelo mesmo governo, do Food Stamp Program, “que concedia cupons de alimentação para famílias pobres comprar alimentos em estabelecimentos credenciados pelo governo.” [38] Em janeiro 1941, o presidente Roosevelt profere o famoso discurso Four freedoms, quando ressaltou a idéia de que “(…) true individual freedom cannot exist without economic security”. [39] No mesmo ano, os Estados Unidos e quase todos os demais países americanos foram conclamados a se imiscuir na II Guerra Mundial, já deflagrada há dois anos. A partir daí a história da I Guerra Mundial se repete, todavia, em proporções expressivamente maiores, haja vista que, nesta quadra, o mundo já era, quase que em sua totalidade, modernizado, gozava de um maior acesso às armas atômicas e bélicas, era composto por exércitos mais numerosos, formado por países mais poderosos e, principalmente, dispostos a vencer o conflito a qualquer custo. Não pode ser olvidado que os países periféricos, também, suportaram grandes prejuízos com a guerra, sobretudo pela limitação no acesso a capitais para investimento e pelo desabastecimento, no mercado mundial, de alguns gêneros alimentícios pelos países desenvolvidos produtores. Tal política não era infundada. Agindo assim, os países desenvolvidos pressionavam as nações mais pobres para o ingresso no conflito, através da cessão de seus militares e de seus espaços territoriais para treinamento bélico. Em contrapartida, as nações abastadas ofertavam-lhes segurança, capital e alimentos. Este amparo, embora revestido de caráter beneficente, era nitidamente devastador à medida que gerava um novo ciclo de dependência entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos e perpetuava o modelo de relações já cristalizadas desde o período colonial. Finda a guerra em 1945, tem-se um quadro caótico de miséria e destruição por todo o globo. Entre vencedores e vencidos, observa-se um movimento de franca estagnação na economia, de supressão dos direitos sociais e de reestruturação da política interna. No intuito de oportunizar a reconstrução dos países vencidos no conflito, foi, então, anunciado o Plano Marshall, o qual tinha por meta financiar e reestruturar as nações combalidas, o que, em alguns casos, custou-lhes a própria soberania, dada a ingerência dos vitoriosos em suas leis e sobre as políticas ali implementadas. [40] Ainda, para que fossem efetivadas ações internacionais de monitoramento, promoção e defesa do direito à alimentação adequada, inaugurou-se a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 1945, tendo como principal finalidade atuar em forma de fórum neutro para negociar acordos e debater políticas de combate e erradicação da fome. [41] Em 10 de dezembro de 1948, como marco emblemático contra os horrores perpetrados na II Guerra Mundial, foi promulgada, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dentre outros avanços, formalizou a exigibilidade do direito à alimentação, a saber: “Art. 25. Todo homem tem o direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”[42] (grifo nosso) Nos anos 60, por conta da má colheita de cereais nos grandes países produtores, especialmente União Soviética, Índia e Estados Unidos, uma nova crise de alimentos assolou o mundo. Em ordem de debelá-la, foram concedidos incentivos estatais para modernizar o setor agrícola[43], direcionados especialmente à Ásia. Naquele continente, deu-se o prelúdio da política que, posteriormente, restou conhecida como Revolução Verde[44], porque ensejadora de um aumento na produtividade das terras e na diminuição do preço dos alimentos em âmbito mundial, contrariando as pessimistas teses malthusianas. Em 1966, o direito à alimentação tornou-se pauta específica do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que determinou o seguinte: “Artigo 11[…] §1º – Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive, à alimentação, vestuário e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre convencimento. §2º – Os Estados-partes no presente pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios” (grifo nosso) [45] Desde então, os Estados foram instados a prover os meios necessários para a subsistência de seus cidadãos. Senão vejamos: “(…) todo Estado-Parte do Pacto é obrigado a assegurar que toda pessoa sob sua jurisdição tenha acesso ao mínimo essencial no tocante ao direito à alimentação, que deve ser suficiente, nutricionalmente adequada e segura, para assegurar a erradicação da fome”[46]. Alguns países, dentre os quais o Brasil, resistiram por longas décadas até subscreverem e implementarem o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tal desídia deve-se, em grande medida, às políticas neoliberais adotadas a partir dos choques petrolíferos[47], notadamente pelos governos Margaret Tatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, durante a década de 80. Estas políticas disseminaram a lógica de estado mínimo, que deveria realizar cortes drásticos nos programas de bem-estar para manter a dívida pública sanada, a inflação debelada e promover o crescimento econômico da nação. Reverenciadas por alguns, abominadas por outros, estas práticas findaram por colocar a ordem social em segundo plano, o que colaborou com o prejuízo à implementação do direito à alimentação adequada. [48] Entre 1987 e 1989, malgrado o neoliberalismo reinante, um estudo elaborado pela Subcomissão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o direito à alimentação adequada reafirmou a obrigação do Estado “(…) de respeitar, proteger e garantir (facilitar e prover) todos os direitos humanos, sejam políticos, civis, econômicos, sociais ou culturais. Respeitar inclui uma obrigação de não-interferência (…) A obrigação de proteger requer do Estado medidas para prevenir que terceiros como empresas ou indivíduos interfiram ou privem os indivíduos de seus direitos. Facilitar implica num dever de tomar medidas positivas para permitir que indivíduos e comunidades desfrutem dos seus direitos”[49].    A omissão estatal, entretanto, persistiu. Muito em razão da conjugação das políticas neoliberais com o processo de globalização econômica forjado pelas “medidas econômicas neoliberais voltadas para a reforma e estabilização de economias ‘emergentes’ – notadamente latino-americanas” [50] – ditadas pelo Consenso de Washington no início da década de 90, que viabilizou “a transnacionalização dos mercados e a privatização do Estado, condenando os tributos progressivos e os gastos sociais, em prol da austeridade monetária”. [51] O recrudescimento deste programa findou por prejudicar não apenas a condução das políticas públicas em termos globais, como também as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento[52], que se viram negadas aos incrementos e empréstimos, sujeitas a elevados índices de desemprego e à crescente desigualdade social[53], impedidas, portanto, do acesso aos direitos sociais mais básicos, dentre os quais, destaca-se a alimentação adequada. Destarte, se há algum crédito neste período pelo desenvolvimento e ulterior reconhecimento da alimentação adequada, este não se deve às políticas estatais, mas ao trabalho desempenhado pelas organizações não-governamentais, as quais firmaram posição sobre a relevância do tema e mobilizaram diversos países para a causa através do encontro conhecido como Cúpula Mundial da Alimentação, em 1996, ocasião em que: “Mais de 1.000 organizadores oriundos de mais de 80 países participaram do fórum paralelo de organizações não-governamentais durante a conferência. Vários governos foram também ativos em exigir que a Conferência reconhecesse e construísse o direito à alimentação. Eles obtiveram sucesso considerável: Na declaração da Cúpula Mundial da Alimentação, os líderes de Estado e Governo ali reunidos reafirmaram o direito de todos ao acesso seguro e a alimentação nutritiva, consistente no direito à alimentação adequada e no direito de todos serem livres da fome”[54]. Em seguida, foi adotado pela Organização das Nações Unidas o Comentário Geral nº. 12, que discorreu sobre a acessibilidade, a adequação e a freqüência à alimentação adequada[55], ratificando os três níveis de obrigação sobre a matéria, preceituados ainda em 1987, quais sejam: respeitar, proteger e garantir, conforme o disposto por Carlos Villán Durán: “La OG 12 ha colocado con firmeza el derecho a la alimentación en una perspectiva basada en el derecho, en la que los países asumen obligaciones positivas y negativas de respetar, proteger y realizar ese derecho en relación con todos los seres humanos. Además, la OG 12 describe minuciosamente de qué manera los Estados incurren en violación del derecho a la alimentación”[56]. Em 2002, a FAO decidiu por criar “um grupo de trabalho intergovernamental para elaborar um conjunto de diretrizes para apoiar os esforços das nações para a realização progressiva do direito humano à alimentação adequada” [57], findando na publicação das Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação Adequada em 2004. Tal instrumento foi emblemático tanto por democratizar, como por sistematizar os fundamentos e perspectivas do direito à alimentação adequada, sendo consagrado como “a primeira iniciativa de governos em interpretar um direito econômico, social e cultural”, além de “recomendar ações para apoiar a sua realização”, e tem norteado, desde então, todas as iniciativas implementadas na sua consecução. Nos anos mais recentes, notadamente, a partir de 2006, a FAO tem buscado fomentar ações de promoção e monitoramento com enfoques diferenciados por continente, no intuito de criar diretrizes e intervenções que se assemelhem com o demandado por cada um, de modo a tornar a realização da alimentação adequada mais eficaz. 2. Definição O direito à alimentação adequada é aqui entendido como o acesso de todos os seres humanos “(…) aos recursos e aos meios para produzir ou adquirir alimentos seguros e saudáveis que possibilitem uma alimentação de acordo com os hábitos e práticas alimentares de sua cultura, de sua região e de sua origem étnica”.  [58]  É, pois, premissa básica de sobrevivência de todos os seres humanos, mas que não se limita ao simples acesso à “ração básica nutricionalmente balanceada” [59], levando em consideração também os aspectos pertinentes aos hábitos e práticas, além da quantidade e qualidade adequadas da alimentação.  Ademais, o direito à alimentação adequada preceitua que sua satisfação plena somente se dará quando todos os membros da sociedade tiverem acesso aos nutrientes indispensáveis para uma vida saudável. Destarte, a realização do direito à alimentação jamais poderá ser confundida com a mera satisfação da fome[60], uma vez que o consumo de alimentos por si não propicia nutrição satisfatória se não for dotado das quantidades e qualidades necessárias para garantir equilíbrio físico e psicológico ao ser humano. Nesse esteira, a FAO tem entendido que para o atual contexto – físico e ambiental – da América Latina, um adulto deverá ingerir diariamente, no mínimo, 1900 kcal. [61] Mas, repisa-se, não basta ingerir a quantidade básica de calorias preceituada. Fundamental também é a mensuração da quantidade e da qualidade dos alimentos ingeridos, ou seja, se constantes de porções regulares de proteínas, vitaminas e minerais.[62] Deve-se fazer incluso, nesta discussão, o acesso à água potável, que se caracteriza por compor o núcleo essencial da alimentação adequada. Sem água não podem ser providenciados, elaborados e comercializados apropriadamente os gêneros alimentícios, tendo em vista ser aquela a substância mais simples e de custo mais diminuto para proceder tanto com a higienização como com a efetiva preparação destes. Ademais, sem a regular ingestão de água potável pelo organismo, a alimentação se torna prejudicada, o que pode incidir, inclusive, em óbito, haja vista que o ser humano, pela sua própria constituição fisiológica, demanda um acesso satisfatório à água limpa e tratada para fins de digestão, absorção e excreção.[63] Ainda, sobre a ingestão dos nutrientes adequados, convém pontuar que, desde os anos 40 do século XX, Josué de Castro já destacava que a ingestão da alimentação, para ser considerada saudável, deveria ser compatível com as necessidades de cada ser humano, por isso sublinhava a relevância do Estado cuidar não apenas dos acometidos pela fome crônica, que visivelmente flagela, mas também zelar em relação aos atingidos pela fome aguda, que silenciosa e paulatinamente fragiliza. Nas próprias palavras de Castro, elucida-se: “(…) É que existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiências específicas, capaz de provocar um estado que também pode conduzir à morte. Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo.”[64] (grifo nosso) Outro exemplo de ingestão inadequada de alimentos advém dos acometidos pelos “distúrbios nutricionais decorrentes da ingestão excessiva ou desequilibrada de energia e/ou nutrientes, em particular a obesidade, problema crescentemente importante no país” [65], que aparentam estar bem alimentados, contudo, a ingestão excessiva de alimentos nem sempre lhes garante o suprimento nutricional devido, ensejando doenças das mais diversas ordens. Dentre as mais comuns, citam-se a cardiopatia, a hipertensão e a diabetes. Nota-se, portanto, que o efetivo cumprimento do direito à alimentação adequada combina a adequação entre a quantidade de calorias e a qualidade dos nutrientes ingeridos, razão pela qual não podem ser destacados do objetivo maior, qual seja, a disponibilidade de alimentos para todos, indistintamente, respeitando-se os seus aspectos culturais, regionais e étnicos, conforme o estabelecido pela segurança alimentar e nutricional. Sob os auspícios da perspectiva de segurança alimentar e nutricional, a realização do direito à alimentação adequada tem adquirido novos contornos. Diz-se isto porque, até o início do século XX a discussão sobre alimentos tinha por propósito exclusivo combater a fome[66], portanto, o “estado crônico de carências nutricionais que podem levar à morte por inanição ou às doenças da desnutrição” [67], desconsiderando por completo os fundamentos e os elementos norteadores que lhe estavam adstritos. A partir de então a idéia de segurança alimentar tornou-se conjugada ao direito à alimentação adequada. Primeiramente, no contexto da segurança nacional, ao se identificar com a “capacidade de cada país de produzir sua própria alimentação de forma a não ficar vulnerável a possíveis cercos, embargos ou boicotes de motivação política ou militar”. [68] Em seguida, especialmente nos meados da década de 50, a segurança alimentar trouxe para o centro das discussões a assistência alimentar, que deveria ser implementada por meio dos excedentes agrícolas como solução para todos os males ocasionados pela falta de alimentação.  [69] Posteriormente, quando da década de 80, incluiu em seu rol de mecanismos para a obtenção do direito à alimentação adequada, a “oferta estável e adequada de alimentos e de garantia de acesso e de qualidade. Para tanto, reafirma-se a necessidade da redistribuição dos recursos materiais, da renda e de redução da pobreza (…)”. [70] Consoante Valente, entre o final da década de 80 e a década de 90, foi adicionada à expressão segurança alimentar o termo “nutricional”, de modo a abranger, também, “(…) questões relativas à qualidade sanitária, biológica, nutricional e cultural dos alimentos e das dietas. Ao mesmo tempo, entram em cena as questões de equidade, justiça e relações éticas entre a geração atual e as futuras, quanto ao uso adequado e sustentável dos recursos naturais, do meio ambiente e do tipo de desenvolvimento adotado, sob a égide da discussão de modos de vida sustentável.” [71] Assim, o conceito de segurança alimentar que inicialmente comportava os requisitos de food safety e food security [72] – sendo o primeiro decorrente das “condições de acesso físico e econômico de todos aos alimentos em quantidade e qualidade suficiente”[73], enquanto que o segundo refere-se à inocuidade dos alimentos – findou por alcançar aspectos mais complexos, como a equidade e a sustentabilidade. Este conceito trouxe consigo novas discussões, como a pertinente aos organismos geneticamente modificados[74], elementos de natureza ambígua que ao longo da sua história têm reiteradamente prejudicado a realização da alimentação adequada tanto para as gerações presentes como para aquelas do porvir. Ademais, malgrado os cientistas responsáveis pelas pesquisas com organismos geneticamente modificados tenham assegurado, dentre outras benesses, a erradicação da fome no mundo, passadas duas décadas, infelizmente, a realidade difere do declarado: inúmeros danos foram ocasionados por tais organismos em toda a cadeia que os cerca, desde quem trabalha no seu cultivo, passando pelo próprio meio ambiente, alcançando os que efetivamente fazem uso de seus elementos, assim como os pequenos trabalhadores rurais, que são freqüentemente massacrados pela oligopolização provocada no mercado; enquanto a fome, a mesma que os cientistas haviam prometido debelar, prossegue se alastrando no mundo. Não pode ser olvidado, ainda, o caráter emancipatório que a segurança alimentar e nutricional trouxe à realização do direito à alimentação adequada, uma vez que agregou ao debate conceitos diversos, tais como cultura, ambiente e sustentabilidade; além de ter exposto, como no caso dos organismos geneticamente modificados, a necessidade de uma fiscalização mais eficaz, em prol de uma oferta de alimentos de qualidade. Por tudo isso, entende-se que a segurança alimentar e nutricional tem garantido a progressividade do direito à alimentação adequada, na medida em que considera todo o seu ciclo de concreção: desde a disponibilidade do alimento – se por conta do próprio cidadão, através de terceiros ou do aparato estatal -; passando pela observância quanto à qualidade com o que o alimento se apresenta – se livre de modificações genéticas e apto a agregar os nutrientes necessários a uma vida saudável –; alcançando os cuidados com a sustentabilidade ambiental e com a diversidade cultural –; incluindo, assim, os que ora usufruem dos víveres, e as gerações vindouras, que haverão, também, de demandar uma alimentação apropriada . Finalmente, esclarece-se que o direito à alimentação adequada é entendido como dotado de fundamentalidade, ou seja, como direito que goza de tamanha relevância para o Estado Democrático de Direito[75], que a sua efetivação torna-se imprescindível para a proteção da dignidade da pessoa humana[76], argumento que será desenvolvido infra. 3. Da fundamentalidade do direito à alimentação adequada Direitos fundamentais, conforme Ana Maria D`Ávila Lopes, ”são princípios jurídica e positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a concepção de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurídico estatal”.  [77] O direito à alimentação adequada, por seu turno, esteia sua fundamentalidade, dentre outros dispositivos, na cláusula de abertura firmada no art. 5o, § 2o, da CF, que permite a inclusão, no rol constitucional, de direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados, a saber: “Art. 5° (…) § 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” A inclusão formal do direito à alimentação adequada no catálogo dos direitos fundamentais, graças à norma prevista no art. 5º §2°, não é o único, nem talvez o mais forte argumento para afirmar a sua natureza de direito fundamental. Pelo contrário, o mais sólido deles é sua correspondência substancial com a definição de direitos fundamentais, entendidos estes como princípios jurídicos positivos, de nível constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma sociedade, visando proteger diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação da atuação estatal e dos particulares. [78] Desta definição infere-se que os direitos fundamentais são normas positivas do mais alto nível hierárquico, visto sua função de preservar a dignidade de todo ser humano, tarefa que deve ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade humana é o elemento essencial para a caracterização de um direito como fundamental. É verdade que todo direito, toda norma jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar do ser humano – ou pelo menos assim deveria sê-lo – mas, no caso dos direitos fundamentais, essa proteção é direta e sem mediações normativas. [79] O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, por sua vez, da estrutura abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Robert Alexy[80]. Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais buscam legitimar o Estado à medida que o grau de proteção desses direitos permitirá definir o grau de democracia vigente. Contudo, não apenas o Estado está submetido aos limites impostos pelas normas dos direitos fundamentais: os particulares também devem obediência aos seus ditames. [81] Verifica-se, portanto, que o direito à alimentação adequada tanto se faz presente na Constituição, como é merecedor do caráter de fundamentalidade que ora se vergasta, na medida em que anuncia norma de importância suprema, que delineia direito indispensável à concretização da dignidade e da própria vida humana, sendo ratificado por diversas leis nacionais e documentos internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Inconteste é, também, a identidade do direito em apreço para com o princípio da dignidade da pessoa humana. Uma vez que a concretização deste princípio pressupõe a realização do direito à alimentação adequada, que, embora não expresso no seio constitucional, encontra guarida no próprio senso de efetivação dos direitos mais básicos em prol da vida. Do contrário, ou seja, sem uma alimentação adequada e razoável, não se pode sustentar o devido respeito à dignidade, o que, em casos extremos, poderá ensejar o fenecimento da própria vida humana. “O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.” (grifo nosso)[82] Nessas circunstâncias, aplicável é a idéia de mínimo existencial[83], entendida por Ana Paula de Barcellos como um “conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado(…)”, o que ratifica a tese da promoção e da defesa da alimentação adequada como pressuposto para a realização da dignidade da pessoa humana. A mesma autora, ao discorrer especificamente sobre a assistência aos desamparados, torna indubitável seu entendimento sobre a vinculação da dignidade da pessoa humana e da alimentação: “A assistência aos desamparados representa o último recurso na preservação da dignidade humana. Afora as formas já institucionalizadas pela Constituição Federal, (…) seu conteúdo é dado pelas condições mais elementares que se exige para a subsistência humana: alimentação, vestuário e abrigo (grifo nosso)”[84]. Corroborando com o dissertado, Jussara Maria Moreno Jacintho, afirmou: “(…) a dignidade humana como direito material apresenta um núcleo essencial cujos elementos integradores são – sem exclusão de outros que possam ser assim apresentados – a liberdade de crença, e os direitos à saúde, educação, moradia e alimentação. O primeiro vazado como princípio, o restante como regras” (grifo nosso)[85]. Merecem também ser compartilhados os ensinamentos de Sarlet, que sobre o tema assevera: “Uma outra dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo (…) em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à asseguração de uma existência com dignidade”[86](grifo nosso). De igual modo, a fundamentalidade decorre da consonância da alimentação adequada para com o regime democrático de direito aqui professado, que se ampara no seu preceito basilar, qual seja, “do povo, pelo povo, para o povo”. Sem este, ou melhor, sem a garantia de sua subsistência mínima através de uma alimentação adequada, não há que se falar em democracia genuína, pois que estaria corrompida em sua principal finalidade. Acerca do regime democrático, o contrário também é verdadeiro, ou seja, é por meio dele, segundo Amartya Sen, que se concebe a possibilidade de desenvolvimento e engajamento para as lutas políticas e sociais, inclusive, para o enfrentamento da insegurança alimentar. [87] Esse posicionamento é compartilhado por José Graziano da Silva, que alerta sobre os males provocados pelo modelo de desenvolvimento aplicado no Brasil, inclusive, incidente sobre a privação da cidadania: “A pobreza, portanto, não é apenas um fenômeno estatístico ou biológico. Mas também político. Não é só atraso no acesso aos bens de consumo, mas privação de cidadania. Vale dizer, é conseqüência estrutural de um modelo de desenvolvimento que gera privilégios e privações à medida que se expande, ou se retrai, sem regulação social. Por isso, em muitos lugares deste país, a luta contra a fome tem como requisito fundador, literalmente, dar a luz à sociedade civil organizada. Sem ela a desigualdade não será vencida – nem mesmo com a retomada do crescimento”[88]. Para fins exemplificativos do todo asseverado, expõem-se alguns dispositivos constitucionais que reiteram a plausibilidade do direito fundamental à alimentação adequada para o ordenamento jurídico vigente: “Art. 6o. – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)  Art. 7o – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV – Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação (…) (grifo nosso) Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. Art. 200 – Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano. Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação” (…) (grifo nosso) Em relação ao artigo 6o, especificamente sobre a saúde e a assistência aos desamparados, entende-se serem estes os cabedais para a alimentação adequada, na medida em que a promoção de ambos é imprescindível para a consecução desta. Sem alimentação adequada jamais se poderá afirmar a efetividade dos direitos sociais fundamentais da saúde e da assistência aos desamparados, em especial, deste último, haja vista seu objetivo de “garantir às pessoas, sem meios de sustento, condições básicas de vida digna e cidadania, cumprindo também o objetivo constitucional de erradicação da pobreza (…)”. [89] Ainda sobre o art. 6º da Constituição Federal, deve ser ressaltado que, atualmente, tramitam no Congresso Nacional duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC), sob os nºs. 47/2003 e 64/2007, de autoria, respectivamente, do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE) e do Deputado Federal Nazareno Fontenele (PT/PI), para fins de inclusão do direito à alimentação no rol os direitos sociais ali constantes.[90] No que tange ao art. 7o, inciso IV, merece ser dito que a idéia de salário mínimo capaz de atender as necessidades básicas, inclusive, as vinculadas à alimentação, advém das lutas de Josué de Castro nos idos anos 40, que, com seu primeiro projeto sobre a matéria, assim já pleiteava. Pertinente ao art. 23, inciso X, deve ser esclarecido que este, como poucos, demonstra o reconhecimento pelo Estado brasileiro da pobreza em seu território, bem como impõe a urgente formação de uma rede federativa para o seu enfrentamento, que deve ser propulsora de mudanças sociais, combatendo as causas da pobreza e promovendo a integração social, o que torna imprescindível o planejamento e a atenção básica à alimentação adequada. O estabelecido pelo art. 200, inciso VI, da Constituição Federal, deve ser analisado sob a perspectiva da responsabilidade do Estado em resguardar a qualidade da alimentação a ser adquirida ou a inocuidade dos alimentos (food safety), matéria também relacionada à segurança alimentar.[91] Em referência ao art. 227, nele tem-se a proteção prioritária dos direitos de crianças e adolescentes, forjada, dentre outros, pela alimentação adequada, que deve ser realizada pelo Estado, pela família e pela sociedade. O destaque para a responsabilidade compartilhada propicia o fortalecimento da exequibilidade do direito à alimentação adequada, na medida em que esclarece quem são os sujeitos passivos e os seus destinatários e, ao mesmo tempo, delineia a amplitude da obrigação constitucional.[92]  Com fundamento nos dispositivos supracitados e nos aspectos doutrinários cunhados sobre a matéria, Paulo Cogo Leivas bem conclui, ao dizer que: “Há, portanto, um direito fundamental à alimentação que deve ser realizado pelo Estado por meio de medidas adequadas e necessárias. Em caso de ausência ou ineficácia destas medidas, surgem direitos subjetivos públicos à alimentação a serem veiculados, preferencialmente, por meio de ações judiciais coletivas com vista a resguardar a universalidade e uma proteção igualitária a todas as pessoas” (…). [93]   Não pode ser olvidado que a fundamentalidade do direito à alimentação adequada pode ser justificada por dimanar de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, bastando, para tanto, que o Brasil seja signatário do documento e obedeça ao regramento do art. 5o, § 3, da Constituição Federal. Assim, no caso específico do direito à alimentação adequada, não restam dúvidas quanto à sua fundamentalidade, mesmo que esta dependa apenas dos pronunciamentos internacionais, haja vista que tanto o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, como, e principalmente, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que evidenciam o direito em apreço, foram recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro desde 1992, colaborando, inclusive, com a feitura de documentos nacionais sobre a matéria.[94] CONCLUSÃO O contexto histórico do qual emergiu o direito fundamental à alimentação adequada se caracteriza por dois fatos comuns: as lutas pela sobrevivência e pela hegemonia mundial e a propriedade como autora e propulsora das desigualdades. São esses fatores somados que propiciaram a tônica da discussão e, posteriormente, do acolhimento da alimentação adequada enquanto direito – e não como benesse do Estado – digno, pois, de respeito, promoção e exercício por todos e para todos. De especial relevo, também, foi compreender que a alimentação adequada não se traduz em mero quantitativo calórico, mas prescinde de qualidade efetiva para aqueles que dela se utilizarão. Ademais, observou-se a conjugação entre a alimentação adequada e segurança alimentar e nutricional, pautada em uma alimentação livre de modificações genéticas, fruto da soberania nacional e da progressiva emancipação e cidadania, inclusive dos historicamente excluídos, firmada, ainda, na sustentabilidade ambiental e cultural. Por fim, restou-se evidenciada a caracterização da alimentação adequada como efetivo direito fundamental, na medida em que, nos termos do art. 5º., §2º., da Constituição Federal, se coaduna com o ditames do regime democrático de direito e com o princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se presente, direta ou indiretamente, em diversos outros dispositivos constitucionais e em tratados atinentes à temáticas em que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento indispensável na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/o-direito-fundamental-a-alimentacao-adequada-contexto-historico-definicao-e-notas-sobre-a-sua-fundamentalidade/
A questão ética e jurídica das células tronco embrionárias
O presente trabalho de conclusão de semestre se destina a examinar a questão trazida pela ação direita de inconstitucionalidade n.º 3.510-0/D.F. de autoria do então Procurador Geral da República Dr. Cláudio Lemos Fonteles, em cuja qual se discute a constitucionalidade do artigo 5º previsto na Lei Federal n.º 11.105 de 24 de março de 2005 (Lei da Biossegurança). Objetivou-se explicitar a problemática ética geradas em razão das pesquisas com Células-Tronco Embrionárias, notadamente no que tange à proteção da vida humana, possibilitando assim, melhor elucubração acadêmica sobre este atualíssimo tema envolvendo as disciplinas da bioética e do biodireito.[1]
Biodireito
Introdução: Para a realização do presente trabalho será objeto de estudo o tema constante na ação direta de inconstitucionalidade n.º 3.510-0/D.F. da lavra do então Procurador Geral da República Dr. Cláudio Lemos Fonteles, em cuja qual se discute a constitucionalidade do artigo 5º previsto na Lei Federal n.º 11.105 de 24 de março de 2005 (Lei da Biossegurança). Não obstante a tamanha extensão do tema em si próprio e, levando-se em consideração o exíguo tempo em que o trabalho teve para ser realizado, nosso objetivo específico se delimitará a pesquisar sobre o tratamento ético dispensado nas pesquisas com as células tronco embrionárias, bem como a análise crítica jurídica aferida sobre as conseqüências e resultados práticos existentes da aludida atividade científica. Para tanto este trabalho foi dividido em quatro etapas. Houve-se por bem iniciar este trabalho com as definições jurídicas do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana bem como da aludida ação direta de inconstitucionalidade e, para isto, discutiremos acerca da peça vestibular da lavra do Dr. Cláudio Lemos Fonteles (EX-PROCURADOS-GERAL DA REPÚBLICA) responsável pela propositura da ADIN n.º 3510 perante o Supremo Tribunal Federal Após, entraremos mais especificamente, na invocada inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei Federal n.º 11.105 de 24 de março de 2005 (Lei da Biossegurança) e, para isto, trouxemos à colação a íntegra do voto proferido pela ministra Ellen Gracie atual presidente do Excelso Supremo Tribunal Federal. Na segunda etapa iniciaremos com a definição científica das células tronco embrionárias e, posteriormente, abordaremos a problemática envolvendo suas pesquisas e questionáveis conseqüências perante as disciplinas da Bioética e do Biodireito. O terceiro capítulo será destinado à análise das principais funções das novas disciplinas Bioética e Biodireito, sendo certo que o objetivo, invariavelmente, se delimitará aos aspectos de ordem jurídica. Por derradeiro, finalizo o presente trabalho, com minhas próprias conclusões sobre este tema polêmico, colocando com propriedade o meu entendimento a respeito da questão proposta. A área de concentração restringe-se à Bioética e o Biodireito. A linha de pesquisa é no âmbito das pesquisas científicas com células tronco embrionárias.Quanto à metodologia empregada, registra-se que na fase de Investigação foi utilizado o método indutivo, na fase de tratamento de dados e de conclusão o método cartesiano, sendo que nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas atinentes às pesquisas bibliográficas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-questao-etica-e-juridica-das-celulas-tronco-embrionarias/
Aspectos jurídicos da criopreservação extracorpórea de células embrionárias humanas
O presente artigo traz uma abordagem sobre os aspectos jurídicos constitucionais da criopreservação extracorpórea de células embrionárias humanas, buscando demonstrar os principais pontos controvertidos sobre a utilização das células embrionárias humanas nas pesquisas com células-tronco, contudo, faz-se necessário tecer sobre as principais correntes doutrinárias referentes ao inicio da vida humana, sobre conceito do que é pré-embrião e seus questionamentos, sobre o destino dos pré-embriões excedentes na reprodução humana assistida – in vitro e, por fim, sobre os aspectos constitucionais da Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/05), trabalhando com uma abordagem focada na justificativa da utilização da criopreservação como método essencial para a manutenção da vida humana, levando em consideração a dignidade da pessoal humana, o direito à vida e a teoria do direito de existir com dignidade e, por fim, uma abordagem volta aos pensamentos sobre o prisma da bioética.
Biodireito
1. Introdução         Com os recentes avanços da biotecnologia, observa-se uma real necessidade de um acompanhamento jurídico com a finalidade de legitimar ou limitar as suas atuações, pois, nem sempre a ciência consegue caminha em paralelo com a norma jurídica, surgindo daí vários pontos controvertidos em relação a sua atuação. A ciência aplica um princípio basilar do direito que diz que “tudo o que não é proibido, é permitido”, deixando apenas a ética como o principal elemento limitador de conduta humana. No contexto ético, como elemento limitador, surgiu a resolução de número 1.358/92 da CFM, Conselho Federal de Medicina, que no uso das suas atribuições legais dada pela Lei de nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto 44.045, de 19 de julho de 1958, buscou como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos, as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, que no presente artigo é de grande valia, pois na falta de uma legislação específica o conselho buscou disciplinar a matéria motivado pelas grandes polêmicas ocasionadas dos avanços tecnológico da ciência, e em específico, na área da reprodução assistida.   As polêmicas vêm das grandes discussões sobre a criopreservação de células embrionárias humanas, a utilização de células-tronco dos embriões criopreservados para pesquisas científicas e a destinação dos seus excedentes nos processos de fertilização in vitro, ou seja, técnica usada para auxiliar na concepção e geração de embriões viáveis fora do ambiente uterino com o intuito da fertilização da mulher. A Lei de Biossegurança (Lei º 11.105, de 24 de Março de 2005) surge no ordenamento jurídico influenciando diretamente as clínicas de fertilização in vitro, pois desta técnica é gerada uma grande quantidade de excedente embrionário que são obrigados a permanecerem congelados, por mais que os seus genitores não tenham mais interesse em mantê-los conservados. A lei dar uma destinação lógica ao excedente inviável ou conservado por mais de três anos, destinação essa voltada para a pesquisa com células-tronco com fins terapêuticos. A grande questão sobre usar ou não o embrião diz respeito ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana e é neste presente momento que se justifica o estudo dirigido deste artigo, pois os pontos polêmicos e fundamentais para a manutenção da vida necessitam de uma maior atenção da comunidade acadêmica. Entorno dessas considerações será necessário tecer sobre as teorias acerca da origem da vida humana, diferenciando vida humana em sentido estrito da palavra para vida em sentido lato, ressaltando o conceito do que é pré-embrião. Não menos importante é o entendimento do que é criopreservação e qual a sua motivação para existir, observando os aspectos que justificam a utilização de tal procedimento. 2. Conceito de Criopreservação Criopreservação, também chamado de crioconservação ou criobiologia, é uma técnica aplicada no congelamento de material orgânico, células, tecidos e, não muito distante, sistemas mais complexos como um órgão, em baixa temperatura, em média de cento e noventa e seis graus Celsius negativos (-196º), muito usado nas clínicas de reprodução humana, com a finalidade de preservar o material coletado viável para a utilização posterior, sem perder as propriedades biológicas, estrutura e funcionalidade, após o descongelamento. Essa técnica já é usada há quase cinqüenta anos pelas clínicas de reprodução humana assistida e na reprodução animal. Conforme o entendimento de Maria Helena Diniz[1], reprodução humana assistida, fertilização humana assistida ou até mesmo concepção assistida são procedimentos que tem por finalidade unir, artificialmente, o gameta feminino com o gameta masculino, que, por sua vez, acontece na maioria dos casos de forma extracorpórea dando origem a um novo ser humano dotado de personalidade, sendo essa técnica usada para auxiliar na resolução dos problemas da infertilidade humana ou para futuros tratamentos gênicos. O público deste procedimento é dos mais variados possíveis, tais como: pessoas que buscam apenas coletar material genético para uma possível necessidade de algum tratamento futuro, atualmente o material mais coletado é o cordão umbilical; pessoas que irão se submeter a tratamento de quimioterapia ou radioterapia devido à neoplasia maligna, tratamento esse que destrói os tecidos dos órgãos reprodutores comprometendo a fertilidade; pessoas que já apresentam problema de fertilidade e desejam através das técnicas de reprodução assistida a concepção de uma ser humano e também os doadores de banco de sêmen. Com o avanço da biotecnologia e a utilização da criopreservação surgiu um novo dilema a ser discutido, pois, no processo de reprodução humana assistida é dado origem a dezenas de células embrionárias, que por sua vez não irão ser usado em todo o tratamento. As células são geradas em maior quantidade, justamente para aumentar à probabilidade de se conseguir células embrionárias viáveis a concepção uterina, contudo, em média, apenas três a quatro embriões precoces ou pré-embrião serão implantados[2].   Sobre a criopreservação de células embrionárias temos o trecho da resolução de número 1.358/92, da CFM, que autoriza a criopreservação e proíbe o descarte ou a destruição das células. Vale lembrar que essa mesma resolução preocupada com alguma lide futura, solicita de forma expressa um posicionamento dos cônjuges ou companheiros sobre o destino em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los. “V – CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES 1 – As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões. 2 – O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído. 3 – No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los[3]”. Os pré-embriões excedentes ou excedentários gerado pela técnica de fertilização in vitro (FIV)[4], são em sua maioria, os grandes volumes de material orgânico destinado aos centros de criopreservação. Isso dado a resolução supracitado da CFM que em sua Sessão V – Criopreservação de Gametas ou Pré-Embriões – nº 2, determina que os excedentes devam ser criopreservado, não podendo ser descartados ou destruídos. Vale lembrar que a Lei de nº 11.105, de 24 de Março de 2005, Lei de Biossegurança, deu uma destinação científica para os pré-embriões, surgindo daí a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de nº 3510, impetrado pelo Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, contra o artigo 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança, com fundamentos no direito à vida e não sobre a vida. Em resumo, o processo de criopreservação de células embrionárias humana, levou ao surgimento de novos questionamentos sobre o seu uso e descarte, sobre o inicio efetivo da vida humana e em qual momento o novo ser humano adquire personalidade jurídica dotada de direitos e garantias, ou pelo menos, em qual momento a ciência jurídica pode tutelar as expectativas de direito, já que o cultivo do embrião de forma extracorpóreo abre espaço para a teoria do pré-embrião no qual relativiza o estatuto da vida. 3. Teoria do Pré-Embrião Essa teoria busca relativizar o estatuto da vida humana ao classificar que a união dos gametas sexuais ou qualquer outro método de clonagem, fora do ambiente corpóreo feminino, com o intuito de criar uma célula zigoto humano para a geração de uma nova espécie, não seria considerado um embrião na sua definição mais pura, e sim, um pré-embrião ou um embrião precoce, pois não seria considerando um individuo humano, mas apenas uma célula ou conjunto pequeno de células dotadas de características progenitoras humana, capazes de gerar um ou mais individuo da espécie humana, deste que colocada em ambiente propicio para o seu desenvolvimento[5]. Esse critério não está presente em nenhum tratado de biologia, e sim, em alguns documentos, tais como: Informe Warnock sobre Fertilização e Embriologia (Inquiry Warnock into Human Fertilisation and Bryology), publicado no Reino Unido em 1984; Relatório Walter, publicado do Estado de Vitória, na Austrália, também de 1984 e no Informe Palacios, publicado na Espanha em 1986[6]. Essa teoria, se adotada e reconhecida no âmbito jurídico, pode por fim a uma celeuma sobre a vida humana, pois a grande discussão a cerca das células-embrionárias, seria o seu uso nas pesquisas com células-tronco ou o seu descarte pelas clínicas de criopreservação. Será possível adotar que vida humana, dotada de expectativas de direitos e garantias, só irá surgir quando o embrião assim fosse possível a sua continuidade em meio corpóreo (útero) ou não, podendo transmutar do estado de embrião para feto e por fim no novo ser humano. Entende-se meio não corpóreo qualquer forma artificial que por ventura possa gerar um ser humano de forma artificial. Por fim, vida passa a ser qualquer manifestação biológica da natureza, como por exemplo, uma única célula de hemácia no sangue é vida, e vida humana passa a ser apenas a manifestação de um complexo biológico que uma vez iniciado dará origem a um novo ser humano dotado de personalidade. Neste caso, essa mesma teoria adota o critério do décimo quarto dia, para diferencia o sentido de vida em seu sentido lato e da vida humana em seu sentido estrito, pois é no décimo quarto dia do desenvolvimento do zigoto que não é possível mais a formação de gêmeos monozigotos, o concepto perde a qualidade de totipotência e aparece as primeiras linhas primitiva de um novo ser humano. Totipotente é o termo que define que uma célula não especializada tem grande capacidade de multiplicação e especialização, ou seja, uma capacidade funcional de gerar um indivíduo após o processo de desenvolvimento normal[7]. Essas células são capazes de se diferenciar em qualquer outra célula de um organismo mais complexo. As células-tronco podem ser encontradas em diversas fases do desenvolvimento humano, tais como: as células-tronco embrionárias, ditas como a principal célula de estudo para a compreensão e manipulação da diferenciação celular; as células-tronco umbilicais, retirada do feto; células-tronco adultas retiradas de diversos pontos do organismo adulto, como por exemplo, a medula óssea. E sobre essa capacidade funcional, totipotência, é que surgem novos questionamentos sobre a origem da vida. 4. Teorias Sobre a Origem da Vida Humana Atualmente são três as teorias a cerca da origem da vida humana, são elas: Teoria Concepcionista, na qual entende que a vida humana se dar no momento da concepção entre os gametas; Teoria Genético-Desenvolvimentista, que compreende uma análise diferenciada de proteção entre as etapas de desenvolvimento de um novo ser humano e, por fim, a Teoria da Potencialidade do Embrião, que declara que a vida humana só existe depois de uma clara caracterização de signos humanos[8]. Faz-se necessário detalhar algumas informações sobre as etapas do desenvolvimento embrionário humano, pois todas as teorias partem de um marco embrionário. “as etapas de desenvolvimento celular embrionário humano são: 1) fusão do ovócito com o espermatozóide, criando uma célula diplóide, dotada da capacidade de subdividi-se reiteradamente; 2) inicio da divisão célular (2-4 em 30 horas, 8 em 60 horas); 3) aparecimento da blástula e depois da mórula; 4) nidação ou fixação por meio de enzimas e diminutos prologamentos tentaculares no útero; 5) atividade contrátil (15 a 25 dias); 6) começo do sistema nervoso (30 dias); 7) córtex cerebral (aos três meses)[9]”. 4.1 Teoria Concepcionista Para alguns doutrinadores a palavra fertilização e concepção expressam o mesmo sentido, contudo, é importante salientar que elas possuem significados e momentos distintos no processo da reprodução humana. Fertilização é o momento exato em que o espermatozóide ultrapassa a barreira do óvulo, momento esse anterior a fusão nuclear, pois a concepção se dar exatamente após esta, sendo a concepção etapa posterior a fertilização. É na concepção em que a célula passa a possuir características genéticas distintas dos seus progenitores e é neste momento em que a célula passa a possuir um único núcleo diplóide. “Para otros autores, el embrión tiene la dignidad de cualquier ser humano completamente desarrollado. Defienden que la fecundación establece um nuevo individuo genético y un nuevo destino humano que a partir de ese momento comienza a expresarse a si mismo em sucesivas y graduales etapas de un proceso continuo[10].” Em decorrência do processo de fertilização surgiu a Teoria da Singamia, que defende que antes da concepção já existem inúmeras reações químicas e que nesse momento o processo de individualização é iniciado, logo, é necessário a tutela deste a fertilização. Já no processo da concepção surgiu a Teoria da Cariogamia, que, por sua vez, relaciona o inicio da vida ao momento exato da fusão do gameta masculino com o feminino, pois, nesse estágio, já é possível identificar características genéticas que o diferencia de qualquer um dos seus progenitores e de qualquer outro ser humano existente, com ressalva para gêmeos fraternos, que possuem a mesma carga genética. 4.2 Teoria Genético-Desenvolvimentista “[…]enquanto não for atingindo o estágio de desenvolvimento de oito células não é licito falar-se da existência de individualidade humana. Até que ocorra esse estágio, as divisões executadas nas células (clonagem) têm como resultado a geração de diversos indivíduos dotados de identificar características[11].” As teorias genético-desenvolvimentistas relacionam o inicio da vida às diferentes etapas do desenvolvimento embrionário, adquirindo status jurídico à medida que o seu desenvolvimento transcorre no tempo observando alguns fatores capazes de individualizar a existência humana. Essa teoria evoluiu e ramificou em diversas outras teorias, tais como: a Teoria da Nidação, a Teoria da Formação Rudimentar do Sistema Nervoso Central, Teoria do Pré-Embrião, a Teoria da Gastrulação, Teoria da Viabilidade[12] dentre outras, contudo com menos repercussão no mundo acadêmico. Importante adentrar sobre os aspectos mais relevantes a cerca das Teorias Genético-Desenvolvimentistas. Na Teoria da Nidação o marco para o inicio da vida humana é a fixação do embrião na parede uterina. Essa fixação se dar na fase do desenvolvimento do blastocisto, entre o quinto a sexto dia após a fecundação. Para essa teoria o embrião não teria condições de se desenvolver fora do útero materno, contudo é previsível que com o avanço da biotecnologia seja possível a continuidade da vida fora da cavidade uterina. Para a Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso, a vida humana se origina no primeiro sinais de formação do córtex central, o que ocorre entre o décimo quinto dia e o quadragésimo dia da evolução embrionária, ou no primeiro sinal de atividade elétrica no cérebro, o que só ocorre a partir da oitava semana. Neste sentido tanto a Medicina quanto o Direito reconhecem de forma pacifica o fim da vida com base no término das atividades neurais, então, de forma análoga, é possível conceber o inicio da vida com o surgimento das atividades neurais pondo um fim nas discussões jurídicas a cerca da vida. Na Teoria do Pré-Embrião não existe ser humano propriamente dito até o décimo quarto dia após a concepção, existindo apenas um conjunto de células com predisposição para gerar um ou mais indivíduos, não discutindo a origem da vida em sua essência, e logo após esse período surgem os primeiros traços primitivos de um novo ser humano. Não muito distante, existe a Teoria da Gastrulação, processo de desenvolvimento embrionário da gástrula até a néurula, na qual usa as características fisiológicas do embrião para designar um marco inicial da vida como um ser humano. Não menos importante a Teoria da Viabilidade tutela apenas os indivíduos que alcança uma maturidade para viver fora do útero materno. 4.3 Teoria da Pessoa Humana em Potencial “Sob a ótica da teoria da pessoa humana em potencial, não é possível identificar totalmente o embrião humano com a pessoa humana, uma vez que ainda não é dotado de personalidade e, para tanto, o embrião teria que ser capaz de exercer direito e de contrair obrigações. Por outro lado, também não admite reduzir seu status a um mero aglomerado de células, uma vez que seu desenvolvimento destina-se, inelutavelmente, à formação de um ente humano[13].” Essa teoria advoga que o embrião é uma pessoa em potencial, surgindo como alternativa para os dois grupos de teorias anteriormente citados, Teoria da Concepção e a Teoria Genético-Desenvolvimentista, mas é necessário criar um estatuto próprio e progressivo para tutelar as etapas do desenvolvimento embrionário concebendo direito e garantias proporcionais a etapa embrionária que o mesmo se encontra. Considerações são feitas aos adeptos da teoria da pessoa humana em potencial, pois não parece ser uma solução original, e sim, uma mescla das teorias já abordadas nos capítulos anteriores, e, além disso, de nada adianta pregar uma ideologia nova sem antes mesmo ser classificado as fases embrionária à sua correspondente garantia e direito no âmbito jurídico, tornando assim, ineficaz e ineficiente para a solução das controvérsias a cerca da origem da vida humana, salvo se o legislador resolver preencher a lacuna da lei abrindo nova discussão a cerca desta teoria. Transpassado os conceitos das teorias sobre a origem da vida humana, vale frisar que para o melhor entendimento dos aspectos jurídicos o termo pré-embrião (extracorpóreo) e embrião (corpóreo) terão igual valor, pois a diferenciação levaria a questionamento mais pormenorizado do tema, elevando o grau de artigo para um trabalho do escopo de monografia. 5. Aspectos Constitucionais da Criopreservação Para adentrar sobre os aspectos jurídicos constitucionais da criopreservação extracorpóreos de células embrionárias, faz-se necessário tecer sobre alguns aspectos dos direitos fundamentais, dentre eles o respeito ao direito à vida e o direito à dignidade da pessoa humana. Importante frisar que a Carta Magna impõe proteção ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana e não “sobre” a vida ou “sobre” a dignidade. Lembrando que direitos fundamentais são elementos indispensáveis à pessoa humana, necessário para assegurar o mínimo possível para a sua existência de forma digna e igual. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República do Brasil, de 1988, eu seu artigo 5º, protege o direito à vida sobre dois prismas importantes: uma corrente que defende a existência de uma posição jusnaturalista e outra que acredita apenas na evolução histórica da norma. Contudo, é importante ressaltar que a vida surge de uma ordem superior incontestável e inerente a vontade do ser humano, logo por mais que exista uma evolução histórica da norma, nada pode ser contra ao posicionamento da norma natural e superior, e com esse sentido o Poder Originário dotado de poder absoluto resolveu consagrá-la. O direito à vida está relacionado diretamente à dignidade da pessoa humana, como a própria dignidade da pessoa humana está relacionada à vida, pois, não raro são as discussões se é possível reconhecer ou não a existência da vida sem dignidade, sendo em sua essência uma forma de relativizar a vida humana em função dos aspectos inerente à personalidade humana. Alexandre de Moraes cita em seus ensinamentos que: “a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direito e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalista de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoal, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas constituindo-se no mínimo invulnerável que tudo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direito fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[14].” E ainda: “O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisitos à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-la em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de ser ter vida digna quando à subsistência[15]”. Já para José Afonso da Silva, o direito à vida coexiste com o direito à existência, contudo, tal direito não foi consagrado de forma expressa na Carta Maior. Direito à existência é: “Direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria[16].” Não foram poucas as tentativas de incluir na Constituição o direito a uma existência digna, devido aos aspectos generosos da natureza moral e material ao redor desse conceito. É compreensivo a tentativa, já que serviria de fundamento, por exemplo, para o desligamento de aparelhos médicos que prolongasse a vida indigna de uma pessoa humana, contudo, em paralelo ao novo direito surgiria um processo discriminatório a todo ser humano que por ventura fosse concebido com alguma deficiência, por mais simples que fosse. A grande questão em criopreservar o embrião é saber em qual momento será possível identificar a devida tutela à vida nas etapas do seu desenvolvimento como futura pessoa dotada de direito e deveres. A dignidade da pessoa humana como valor fundamental para o ordenamento jurídico faz com que todos os ramos do direito não apenas reconheça o direto à vida, mas necessariamente a reconheça com dignidade. Não ficando distante desse pensamento é que Cristiano Chaves frisa: “Nesta trilha de raciocínio, importa destacar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988, foi a dignidade da pessoa humana, que como consectário, impões a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentas que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade[17].”  Correlacionando os princípios constitucionais à técnica da criopreservação é que se pode notar a importância da definição do início da vida humana no âmbito jurídico, pois, no âmbito biológico, a vida em sua essência mais pura é de tamanha complexidade que torna inviável a aplicabilidade de normas sem o uso de algum tipo de ficção jurídica, pois, a técnica da criopreservação mantém um pré-embrião conservado por um lapso temporal indeterminado, fazendo necessário um suporte nas normas infraconstitucionais para consubstanciar e diluir as controvérsias do tema. 6. Lei de Biossegurança (Lei º 11.105, de 24 de Março de 2005) versus Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de nº 3510 No dia 16 de Maio de 2005, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, materialmente manifestou um pedido de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, entendendo que a Lei ia de encontro a normas prevista na Constituição Federal e a princípios fundamentais para o ordenamento jurídico, impugnando a materialidade da lei em questão. Do preceito normativo impugnado por Fonteles sobre a Lei de Biossegurança: “Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997[18].” De acordo com Fonteles, segue os textos constitucionais inobservados pelos preceitos retro transcritos: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:         III – a dignidade da pessoa humana; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” Fonteles defendeu em sua tese, para fundamentar a ADI, que a vida humana se dar na fertilização, teoria da fertilização, contudo, em um segundo momento das suas razões, ele faz menção a Teoria Concepcionista, demonstrando uma pequena confusão do momento exato da vida humana para a tutela no mundo jurídico brasileiro, exemplo disso temos em suas palavras: “que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação: o zigoto, gerado pelo encontro dos 23 cromossomos masculinos com os 23 cromossomos femininos; ”. Por sua vez, para minimizar interpretações errôneas sobre o seu ponto de vista, é que ele cita o Doutor Dalton Luiz de Paula Ramos[19] em sua fala:   “Os biólogos empregam diferentes termos – como por exemplo zigoto, embrião, feto, etc., para caracterizar diferentes etapas da evolução do óvulo fecundado. Todavia esses diferentes nomes não conferem diferentes dignidades a essas diversas etapas. Mesmo não sendo possível distinguir nas fases iniciais os formatos humanos, nessa nova vida se encontra todas as informações, que se chama “código genético”, suficiente para que o embrião saiba como fazer para se desenvolver. Ninguém mais, nem mesmo a mãe, vai interferir nesse processo de ampliação do novo ser. A mãe por meio do seu corpo, vai oferecer a essa nova vida o ambiente adequado (o útero) e os nutrientes necessário. Mas é o embrião que administra a construção e administra a obra. Logo o embrião não é “da mãe”; ele tem vida própria. O embrião “está na mãe”, que o acolhe pois o ama. Não se trata, então, de um simples amontoando de células, o embrião é vida humana. A partir do momento que, alcançado maior tamanho e desenvolvimento físico, passamos a reconhecer aqueles formatos humanos (cabeça, tronco, mãos e braços, pernas e pés, etc), podemos chamar essa nova vida de “feto”. [20].” Embora o Procurador-Geral da República tenha feito considerações sobre o inicio da vida humana e a importância de proteger um direito dito fundamental na ótica da Constituição da República, o mesmo abre espaço para reafirmar a importância do estudo de células embrionária humana gerada pelas técnicas de fertilização in vitro, pois de acordo com a citação do Doutor Herberte Praxedes as células embrionária mãe tem por natureza a capacidade de se diferenciar e especializar para qualquer outra célula do organismo humana, não acontecendo de forma natural com as células embrionárias adultas, conforme o texto abaixo: “As células de células de um embrião humano de poucos dias são todas células-tronco (CTE), são pluripotenciais, tendo a capacidade de se auto-renovarem e de se diferenciarem em qualquer dos tecidos do corpo. As células-tronco adultas (CTA) são multipotenciais e têm também capacidade de se auto-renovarem e de se diferenciarem em vários, mas aparente não em todos, os tecidos do organismo. As CTA existem no organismo adulto em vários tecidos como a medula óssea, pele, tecido nervoso, e outros, e também são encontrado em grande concentração no sangue e no cordão umbilical[21].” É notório que o material coletado, embriões excedentes ou excedentários, perderão em algum momento as suas características biológicas que lhe propiciam uma viabilidade para a procriação, logo, não existem justificativas plausíveis para manter o custo de um laboratório de fertilização obrigando a criopreservar o material que não terá mais nenhuma finalidade prática para a procriação, sendo que inúmeras vidas necessitam diretamente da evolução da ciência, em particular da biotecnologia, pois se essas células (células-tronco mãe) fossem doadas para pesquisa, é claro, de acordo com a Lei de Biossegurança, as chances de se obter um tratamento terapêutico é promissor. A lei, em uma interpretação positiva, busca de forma indireta garantir o direito à vida de forma digna como defende a nossa Carta Maior. A ADIN 3510 obrigou o Supremo Tribunal Federal (STF) a se manifestar contra ou a favor da procedência da ação impetrada pelo Procurador-Geral da Republica, e junto com o STF a Advocacia Geral da Unidão (AGU) também declarou o seu posicionamento. De acordo com o advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, as pesquisas com células-tronco embrionárias devem ser defendidas devido aos seus promissores benefícios e que o Estado deve sempre agir sob a ótica prática para melhor atender a sociedade brasileira. “Temos que julgar [essa ação] do ponto de vista jurídico, a partir de uma ética da responsabilidade, analisando as conseqüências da decisão para a sociedade brasileira”, ressaltou. Segundo Toffoli, nenhum direito é absoluto, muito menos os princípios constitucionais, em especifico o direito à vida. Toffoli questiona de forma inteligente que se embrião congelado tivesse direito à vida, o Estado teria que obrigar a mulher a conceber o embrião. Violando o direito ao planejamento familiar e, além disso, seria uma agressão a individualidade da mulher. Por fim, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou a ADI de nº 3510, no dia 29 de Maio de 2008, julgando constitucional o artigo 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) que permite a realização pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. Votaram pela improcedência da ação os ministros Carlos Ayres Britto (relator), Ellen Gracie, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello. Igualmente favoráveis às pesquisas, porém com restrições, em diferentes níveis, votaram os ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Gilmar Mendes[22]. 7. Conclusão Este trabalho teve a pretensão de demonstrar os aspectos polêmicos e jurídicos, em especifico, os aspectos constitucionais sobre a criopreservação de células embrionárias humana, e em que momento se dar a tutela da vida respeitando a dignidade da pessoa humana, de acordo com a observância dos textos normativos para se manterem protegidas. É de grande valia a autorização dada pelo Brasil para o uso de células embrionárias criopreservadas para serem usadas nas pesquisas e terapias com células-tronco. O Brasil passa a integrar o grupo seleto de países com capacidade de obter retorno cientifico e financeiro do advento dessas pesquisas. O sucesso da engenharia genética será a grande nova evolução da humanidade, pois dela será possível obter a cura de males que até então não são possíveis. O legislador ao autorizar que as clínicas de fertilização in vitro doem as células embrionárias criopreservadas para pesquisas científicas com células-tronco, deu-lhe uma destinação mais nobre, pois, poderia o legislador, autorizar o descarte ou a destruição deste material. Desta forma contribuindo com o avanço da biotecnologia na busca de curas ou terapias para males que afligem a humanidade. Todas as questões que envolvem embriões humanos são muito complexas e serão cada vez mais comuns as discussões sobre este, dado ao grande avanço da Medicina e da Biotecnologia, cabendo ao Direito limitar, reconhecer ou regular tais avanços. Tema esse que não será esgotado mesmo com a nova decisão da Suprema Corte sobre a improcedência da ADI de nº 3510. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisitos à existência, contudo, é de extrema valia que ele caminhe junto com a Dignidade da pessoal humana, princípios este de fundamental destaque em nossa Carta Maior, pois dele é possível garantir que o ser humano tenha o seu bem maior, a vida, com dignidade. De nada adianta ter vida sem o mínimo de dignidade, pois do contrário a vida não teria um mínimo de sentido.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/aspectos-juridicos-da-criopreservacao-extracorporea-de-celulas-embrionarias-humanas/
Biotecnologia na sociedade de risco: um estudo do caso da gripe suína
O artigo consiste em um estudo do histórico da “gripe suína” – novo subtipo de vírus da gripe “A/H1N1” – tendo como marco teórico a teoria da sociedade de risco, do sociólogo Ulrich Beck. Abordou-se o desenvolvimento da Biotecnologia aplicada ao agronegócio, enfatizando a questão das incertezas quanto aos riscos e ameaças dessa atividade. Demonstrou-se que a revolução na criação de animais transformou fundamentalmente a ecologia da gripe e acelerou a evolução de novos recombinantes interespécies, evidenciando o elo entre os novos riscos e as decisões humanas.
Biodireito
Introdução O presente artigo analisará os recentes incidentes da “gripe suína” – novo subtipo de vírus da gripe “A/H1N1” – tendo como marco teórico a teoria da sociedade de risco, do sociólogo Ulrich Beck.   O estudo se desenvolverá a partir de uma breve apresentação das mudanças sociais que se seguiram ao período da revolução industrial, com base na teoria da sociedade de risco de Beck. A seguir, será estudado o desenvolvimento da Biotecnologia aplicada ao agronegócio, enfatizando a questão das incertezas quanto aos riscos e ameaças dessa atividade. Por último, se descreverá o histórico da gripe A no mundo, até o surgimento do novo subtipo do vírus A/H1N1. Quanto à gripe suína, cujas futuras consequências ainda se desconhecem, há suspeitas de que manipulações genéticas estejam relacionadas ao surgimento do novo vírus, embora tais teorias ainda não tenham sido comprovadas ou divulgadas. Independentemente desse aspecto, se demonstrará que a revolução na criação de animais transformou fundamentalmente a ecologia da gripe e acelerou a evolução de novos recombinantes interespécies, evidenciando o elo entre os novos riscos e as decisões humanas. Diante da confirmação do modelo sociológico proposto por Beck, surgem novos desafio no cenário jurídico e político, especiamente no que toca à democratização e regulação dos processos de tomada de decisão envolvendo as novas tecnologias.      1. Vivendo em sociedade de risco. O homem sempre esteve exposto a perigos, isso não é novidade. Nos tempos pré-industriais, as ameaças – pragas, fome, desastres naturais – eram consideradas fatalidades, golpes do destino, vontades dos deuses e demônios (BECK, 1992, p. 97-98). A partir do século XVII, a Europa sofreu transformações impulsionadas pelo movimento do iluminismo, havendo a incorporação de novos valores pela sociedade, tais como a razão, a cientificidade e a liberdade, caracterizando o que se denominou de modernidade. Com o desenvolvimento da ciência, as ameaças naturais foram amenizadas, gerando benefícios como o aumento da estimativa de vida, a redução da mortalidade infantil e a possibilidade de prever alguns eventos naturais (BECK, 1992, p. 97-98). O que não pudesse ser controlado pela ciência, como os perigos dos mares nas navegações[1], passou a ser calculado de forma estatística, desenvolvendo-se o sistema de seguros, que se expandiu para os mais variados setores da vida humana, desde a saúde, até os riscos econômicos e de desemprego (BECK, 1992, p. 99). Nessa primeira fase do industrialismo, o consenso no progresso legitimou o desenvolvimento técnico-econômico (BECK, 1992, p. 100). A degradação da natureza foi considerada um mal necessário em face do novo modelo de consumo. Assim, além de outras transformações sociais que decorreram do modelo de produção industrialista, verificou-se uma apropriação descontrolada e ilimitada dos recursos naturais, legitimada pelo discurso desenvolvimentista e pela ideologia consumista. Como se percebe, o desenvolvimento foi e ainda é aceito como única alternativa para a promoção do bem-estar social. Ocorre que a sociedade ainda não conseguiu alcançá-lo plenamente e, paradoxalmente, se verifica que a cada passo em direção ao “desenvolvimento”, mais o homem se aproxima da eliminação das condições de continuidade da sua própria espécie. Como resultado do amadurecimento das instituições modernas, Giddens (1996, p. 12) aponta o surgimento de uma “incerteza artificial” (manufactured uncertainty), na qual as fontes do “risco artificial”[2] (manufactured risk) não mais coincidem com as incertezas que a sociedade estava acostumada a vivenciar no período pré-industrial e mesmo durante a primeira modernidade, ou seja, eventos naturais de origem independente da ação humana. O que mudou na segunda etapa da modernidade, período ao qual se referiá neste artigo como “sociedade de risco”, cujas características se intensificam a partir da segunda metade do século XX, é o fato de que as novas ameaças, ou “riscos”, têm sua origem no processo de tomada de decisões (BECK, 1992, p. 98). Daí porque Beck (2006, p. 01) afirma que a narrativa do risco é uma narrativa da ironia. A grande ironia é que as instituições modernas se ocupam cada vez mais em debater, prevenir e gerenciar os riscos que elas mesmas produzem. Elas se eforçam em prever o imprevisível, resultando em outra ironia: “nós não sabemos, o que é que não sabemos – mas disso surge o perigo, que ameaça a humanidade” (BECK, 2006, p. 01)[3].  Além de pressupor decisões humanas, o risco apresenta três novos aspectos: i) As suas causas e consequências não são limitadas no tempo (podem ocorrer no futuro e afetar até mesmo futuras gerações), no espaço (os novos riscos não respeitam fronteiras) e tampouco a uma classe social (“democratização” do risco); ii) as suas consequências são em princípio incalculáveis, podendo atingir proporções catastróficas; iii) as consequências podem ser irreversíveis e não compensáveis, como no exemplo de situações de alterações genéticas irreversíveis (BECK, 2006, p. 05-06). Estes riscos, imprevisíveis e incalculáveis, se acrescem às incertezas seguráveis da sociedade industrial. As ameaças produzidas na sociedade de risco são complexas e não-controláveis pela ciência, caracterizando a falência dos padrões de segurança idealizadas pelo projeto iluminista. Conforme análise de Morin (2008a, p. 20), a atividade científica passa a ser controlada pelos poderes econômico e estatal, que também controlam a técnica, não se podendo mais assegurar a neutralidade do desenvolvimento científico na sociedade de risco. Em face a essas transformações, Morin (2008b, p. 02) destaca a falta de regulação ética da tecno-ciência, o que a humanidade visualizou claramente no campo da física nuclear e, atualmente, se questiona principalmente no campo das manipulações genéticas, dentre elas as aplicadas na agroindústria, temática do presente artigo. Além das questões éticas, o desenvolvimento de setores do conhecimento como a nanotecnologia, a biotecnologia e a tecnologia da informação, vem acarretando problemas jurídicos e políticos. As principais decisões políticas concernentes a essas são tomadas pelos peritos (experts), ao definirem os padrões de “segurança” a serem adotados (BECK, 1992, p. 107). Os instrumentos políticos clássicos, portanto, foram entregues nas mãos dos peritos, restando abafada qualquer manifestação do público leigo quanto à sua compreensão dos limites toleráveis.  Nesse cenário, desenvolve-se o fenômeno da “irresponsabilidade organizada” (BECK, 1992, p. 105), que ocorre quando, para “maquiar” a inadequação das esferas política, científica e jurídica no enfrentamento e controle dos riscos atuais, estas instituições passam a atuar simbolicamente, deixando transparecer uma normalidade e segurança que não são efetivas. A intenção política da legislação simbólica encontra-se oculta e não corresponde à intenção jurídica prescrita na norma. Embora os instrumentos não apresentem efetividade, têm o efeito de acalmar a sociedade e transmitir uma falsa sensação de segurança (FERREIRA, 2008, p. 61-62).   No caso específico das novas tecnologias envolvendo a agroindústria e suas prováveis relações com o recente problema da “gripe aviária”, o presente artigo procederá a seguir a uma análise crítica dessas novas tecnologias, com base na teoria da sociedade de risco e da irresponsabilidade organizada.  2. BIOTECNOLOGIA E NOVOS MÉTODOS DE PRODUÇÃO DA INDÚSTRIA DE ANIMAIS PARA CONSUMO Por volta de oito mil anos antes de Cristo, na Síria e na Palestina, ocorreu a chamada primeira “revolução verde”, quando os seres humanos passaram a viver em pequenos vilarejos, onde dominaram o cultivo de cereais para sua alimentação (BLAINEY, 2007, p. 31).  Os habitantes destes vilarejos não possuíam animais domésticos e toda a carne que consumiam era proveniente de animais selvagens. Somente após cerca de 500 anos, essas civilizações passaram a criar cabras e ovelhas, em pequenos rebanhos, como forma de provisão de alimentos (BLAINEY, 2007, p. 32). Iniciava-se a domesticação e produção de animais para o consumo.  Lentamente, essa nova cultura foi disseminada ao longo do Mediterrâneo até espalhar-se por toda a Europa. Os vilarejos tornaram-se cidades, as quais teriam sido inviáveis sem a domesticação de animais e o desenvolvimento da lavoura. A população do mundo, até então reduzida, aumentou drasticamente (BLAINEY, p. 36), o que leva a concluir que a dominação do homem sobre o mundo natural, por meio do desenvolvimento tecnológico, remonta aos primórdios de sua existência e foi a grande responsável por sua sobrevivência e multiplicação na Terra. Na antiguidade, o desenvolvimento da técnica, como esforço humano, era um tributo criado pela necessidade de sobrevivência. Com o passar do tempo, aponta Jonas (2006, p. 43), “a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento mais significativo”, em outras palavras, a tecnologia passou a ser encarada como a vocação da humanidade, seu fim intrínseco, legitimando, cada vez mais, o domínio do Homem sobre a natureza. No que diz respeito às tecnologias desenvolvidas para a produção de animais para o consumo, foi com o advento da Revolução Industrial e os sistemas de produção em série, que se iniciou nova forma de produção (LEVAI, 2006, p. 173), processo este que mais tarde seria denominado de “Revolução da Criação de Animais”. A partir de então, ciência e tecnologia passaram a ser de tal forma interligadas que, na prática tornou-se impossível estabelecer uma distinção entre elas. Essa relação de interdependência entre o “saber” (ciência) desenvolvido para o “fazer” (técnica) fez surgir o neologismo tecno-ciência, representando uma idealização da sociedade moderna que se torna realidade quando a diretriz neoliberal para as pesquisas é levada a seu limite (FERREIRA, 2008, p. 47/48). Ferreira (2008, p. 85) explica que o termo “biotecnologia” foi utilizado pela primeira vez em 1919, para chamar atenção à relação entre biologia e tecnologia. À época, significou simplesmente a adoção de métodos de produção de bens de consumo que empregavam organismos vivos (FERREIRA, 2008, p. 85). Essa nova área do conhecimento,  cujo objetivo inicial era solucionar o problema da escassez de alimentos do pós-Primeira Guerra, modificou consideravelmente a lógica da criação de animais. Em meados do século XX, após algumas reformulações da biotecnologia e com a descoberta da estrutura química do DNA (ácido desoxirribonucléico), realizaram-se as primeiras manipulações genéticas (FERREIRA, 2008, p. 87).  Com esse importante passo, a biotecnologia passou a significar “uma complexa rede de saberes na qual a ciência e a tecnologia são aplicadas a agentes biológicos com a finalidade de produzir conhecimentos, bens e serviços” (FERREIRA, 2008, p. 92). Embora as diversas promessas da “nova biotecnologia”, muitos cientistas chamaram atenção para a questão da imprevisibilidade dos efeitos da manipulação genética. Krimsky (1982, p. 88) alertou sobre a possibilidade de “criação de novos tipos de elementos de DNA infeccioso cujas propriedades biológicas não podem ser completamente previstas à partida”. A este respeito, em 1973, um grupo de cientistas, após participar da Conferência de Gordon sobre ácidos nucléicos, escreveram uma carta direcionada ao Presidente da Academia Nacional de Ciências e ao Presidente do Instituto Nacional de Medicina, ambos dos EUA, alertando para os riscos da manipulação genética e propondo um embargo temporário nesse tipo de pesquisa. Foi a primeira vez na história da ciência que pesquisadores sugeriram que sua própria linha de investigação deveria ser suspensa (WADE, 1974). Nesta carta, posteriormente publicada nas revistas Science e Nature, os cientistas afirmaram que a manipulação genética poderia ser usada para combinar DNA de vírus animais com DNA de bactérias, por exemplo, e a partir disso, novos tipos de vírus, com atividade biológica imprevisível, poderiam eventualmente ser criados, o que representava um alto risco aos pesquisadores e à população em geral (SINGER, SOLL, 1973). Não obstante as incertezas científicas acerca destas inovações tecnológicas, as experimentações genéticas continuaram a acontecer indiscriminadamente em laboratórios financiados por grandes empreendedores (a ciência nas mãos do capital), o que levou à chamada “Revolução na Criação de Animais” que, segundo Davis (2006, p. 105), favoreceu apenas os produtores corporativos, em detrimento dos camponeses e pequenos criadores. A revolução na criação de animais implementou novos métodos pelos quais os animais criados para consumo passaram a ser confinados e manipulados especificamente para o aumento de produção e redução dos custos através de genética, medicamentos e técnicas de manejo. De maneira cruel, os animais foram “coisificados” para suprir unicamente interesses econômicos. A este respeito, tem-se o exemplo da indústria de frangos, cujo modelo moderno exige “‘densidade de produção’, a localização compacta de fazendas de criação em torno de uma fábrica de processamento” (DAVIS, 2006, p. 106), seguida também pela indústria de suínos. Em ambas, a supervalorização do lucro legou aos animais uma existência indigna e miserável e aos humanos, riscos imprevisíveis.  A criação de suínos segue cada vez mais este modelo cruel de produção. Os métodos de ordem são: concentração de animais em espaços cada vez menores, reprodução provocada por doses maciças de hormônios, manipulação genética para aumento da lucratividade e ausência de investimentos no bem-estar dos animais.   Os porcos são curiosos por natureza e normalmente passariam metade do tempo cavando a terra. A frustração do confinamento faz com que lutem e mordam suas caudas. A resposta da indústria é o corte das caudas e a castração dos porquinhos para torná-los menos agressivos, sem o uso de anestesia (ARCA BRASIL, 2009). Além disso, as patas desses animais, confinados sobre pisos de concreto, desenvolvem lesões dolorosas, ocasionando pressão sobre os músculos das pernas, joelhos e ombros, o que vem a causar artrite (ARCA BRASIL, 2009, p. 284). Esta é a cruel perspectiva da indústria de animais utilizados para consumo na sociedade de risco. Os riscos decorrentes destes modos de criação já podem ser constatados em determinados acontecimentos, conforme se demonstrará a seguir. Como referido anteriormente, a humanidade atingiu níveis de progresso social e, principalmente, avançou nos campos da ciência e da tecnologia. Entretanto, como adverte Jonas (2006, p. 269), “há um preço que se paga por esse progresso: com cada ganho também se perde algo valioso. Não é necessário lembrar que o custo humano e animal da civilização é alto e, com o progresso, tende a aumentar”. Trata-se da ironia do risco, demonstrada no início deste trabalho. Feitas tais considerações, seguir-se-á ao próximo tópico, onde se analisará a gripe suína e as relações com os avanços biotecnológicos da indústria de produção de animais e os riscos assumidos pela sociedade de risco. 3 DA EVOLUÇÃO DA GRIPE ‘A’ NO MUNDO AO SURGIMENTO DA GRIPE SUÍNA: IMPREVISIBILIDADES E INCERTEZAS DA SOCIEDADE DE RISCO Há basicamente três gêneros principais de gripes (influenza): A, B e C. As gripes B e C já foram domesticadas pela prolongada circulação em populações humanas, mas a gripe A é ainda selvagem e muito perigosa. (DAVIS, 2006, p. 19). Embora o reservatório principal da gripe A continue a ser de patos e aves aquáticas, ela está em seus primeiros estágios de cruzamento para outras aves e espécies mamíferas, inclusive seres humanos (DAVIS, 2006, p. 19). De acordo com a OMS (WHO, 2009a), dois substipos de Gripe A são atualmente associados ao contágio e maioria das mortes humanas: A(H3N2) e A(H1N1). Se demonstrará a seguir que, devido às interferências da ciência, a Gripe A vem se tornando uma grande ameaça à saúde humana, assumindo todas as características catastróficas dos novos riscos descritos por Beck (1992, p. 98). A essência dessa ameaça, reside no fato de que a gripe A é uma espécie mutante, evoluída e de virulência terrível, atualmente “entrincheirada em nichos ecológicos recentemente criados pelo agrocapitalismo global – que está em busca de um novo gene, ou dois, que permitirão que viaje a velocidade pandêmica por uma humanidade densamente urbanizada e majoritariamente pobre.” (DAVIS, 2006, p. 15). Nesse sentido, Davis (2006, p.15) acredita que a dominação do ambiente natural pelo homem, o turismo entre continentes, a poluição, a revolução na criação de animais e a urbanização dos países subdesenvolvidos, com o crescimento de megafavelas, são responsáveis pela extraordinária transformação da mutabilidade darwiniana da gripe em uma das forças biológicas mais perigosas de nosso planeta. A biotecnologia é a importante peça deste quebra-cabeça, o elemento possibilitador da evolução da Gripe A e da concretização do anunciado acontecimento catastrófico.   O primeiro registro oficial de uma pandemia[4] provocada pela gripe A remete ao ano de 1918, sendo considerada pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2009a) como o evento patológico mais mortal da história da humanidade. As estimativas de mortalidade global desta pandemia, que ficou conhecida como “gripe espanhola”, são de 100 ou mais milhões de pessoas (500 milhões de infectados), tendo atingido países de quase todos os continentes, como Índia, China, Estados Unidos da América (EUA), Alemanha e Irã (DAVIS, 2006, p. 35-42). Em 1957, surgiu no sudeste da China um novo foco pandêmico. O vírus se espalhou pelas rotas terrestres tradicionais, da Rússia para a Europa, e por mar para o Hemisfério Ocidental. Dois milhões de pessoas no mundo pereceram na pandemia (DAVIS, 2006, p. 47-49), que ficou conhecida como “gripe asiática”. Onze anos depois, em 1968, uma terceira cepa foi isolada em Hong Kong. Tal cepa de vírus foi incrivelmente contagiosa (500 mil casos em Hong Kong no período de algumas semanas), mas inesperadamente branda, provavelmente porque apesar das mutações sofridas, continha características do vírus de 1957 e, portanto, grande parte da população já possuía imunidade. (DAVIS, 2006, p. 49). Em 1976, logo após o alerta emitido por pesquisadores sobre uma possível pandemia, um soldado americano faleceu em decorrência de um misterioso vírus de gripe, com características do vírus de 1918, posteriormente identificado como “gripe suína”. A ameaça da gripe suína foi utilizada como ativo político, resultando em um programa imediato do Presidente Gerald Ford para vacinar mais de 100 milhões de americanos (DAVIS, 2006, p. 54). Como nenhum outro caso surgiu na época, o fato motivou a desconfiança do público a respeito da campanha de vacinação e a gripe suína tornou-se sinônimo de fiasco político, uma lenda que militou contra iniciativas proativas de saúde pública nas décadas subseqüentes (DAVIS, 2006, p. 56-59).   Em março de 1997, frangos começaram a morrer numa fazenda em Hong Kong, exibindo os sintomas violentos da “gripe aviária de alta patogenicidade” (GAAP). Em meados de maio, um menino de três anos de idade foi internado com os sintomas da gripe A. Realizados estudos da cepa encontrada no menino, confirmou-se que o vírus que o levou à morte era quase idêntico ao que tinha contagiado os frangos meses antes e que, conseqüentemente, tinha saltado a barreiras das espécies com a ajuda de uma variação genética (DAVIS, 2006, p. 62-66). Após o extermínio em massa de frangos e a ocorrência de algumas mortes humanas, nenhum novo caso foi registrado, evitando-se uma nova pandemia do vírus da gripe A (DAVIS, 2006, p. 72). No mesmo ano, porcos de uma mega-fazenda da Carolina do Norte (EUA), pegaram uma gripe humana, que logo se rearranjou com os vírus aviário e com o clássico suíno, criando um subtipo perigoso com potencial para se ligar a receptores celulares humanos. A nova ameaça pandêmica de gripe suína surgiu aparentemente da escala crescente da produção de porcos. Davis (2006, p. 113-114) menciona artigo da revista Science onde se afirma que “o surto repentino de energia mutacional da gripe suína pode ter sido estimulado por mudanças paralelas no tamanho dos rebanhos, no transporte interestadual de porcos e na prática de vacinação”. Davis (2006, p. 83) aponta para a intensificação da indústria do frango em operações comerciais de larga escala no leste da Ásia e em outros locais, como possível fator de aumento da área de superfície de contato entre gripes aviárias e não-aviárias, caracterizando a relação entre a tomada de deciões e os novos risco da sociedade de risco.   Em maio de 2001, frangos começaram a morrer novamente nos mercados da cidade, e mais uma vez o governo ordenou o abate das aves antes que as novas cepas infectassem seres humanos ou se rearranjassem. A desconfiança dos cientistas era de que a variação antigênica estivesse sendo acelerada pelo uso ilegal de vacinas não registradas para aves em Guangdong, China. (DAVIS, 2006, p. 86). Já no começo de fevereiro de 2003, uma menina de sete anos faleceu com doença respiratória aguda. Ela foi enterrada antes que a causa exata da morte pudesse ser determinada. Contudo, o sequenciamento genético extraído de pessoas contaminadas por meio da menina revelou que o vírus era um primo distante da cepa original de 1997, fato que levou a OMS a lançar o alerta de pandemia (DAVIS, 2006, p. 87). O maior e mais poderoso conglomerado de agricultura de exportação da Ásia, a Caroen Popphand (CP), tem como principal fonte de lucro a criação de frangos e é exatamente esta gigante da criação de animais que “figura no centro da história do retorno da gripe A no inverno de 2003/2004 e na inédita epidemia de GAAP que ameaça se tornar um cataclisma humano e ecológico global”. (DAVIS, 2006, p. 121). O fundador da CP implementou o processo industrial americano, de criação em massa de animais para consumo, na Tailândia e, em seguida, em toda Ásia, tornando-se um dos vinte executivos mais poderosos do continente, com fortes influências políticas. Na véspera do novo surto, a “Tailândia era governada por uma coalizão camarada dos setores de telecomunicações e criação de animais” (DAVIS, 2006, p. 122-126), coalizão que bem representa as novas relações entre política e ciência na sociedade de risco, descritas por Beck (1992, p. 105-107). Em 2004, na Tailândia, “mentiras estavam sendo fabricadas com a mesma rapidez com que os frangos doentes eram abatidos e embarcados para mercados estrangeiros”. O governo havia se unido à CP e outras gigantes do frango para esconder a epidemia: “a tapeação oficial deu aos grandes exportadores vários meses para processar e vender o estoque doente” (DAVIS, 2006, p. 130-131), confirmando a lógica da irresponsabilidade organizada. A revista New Scientist sugeriu que o surto foi resultado de uma campanha de vacinação clandestina e equivocada por parte de produtores de frangos do sul da China, depois da crise de 1997 em Hong Kong. Os criadores chineses teriam acelerado a evolução de uma supercepa da gripe A, que rapidamente se tornou endêmica e assintomática em patos domésticos. (DAVIS, 2006, p. 127). O muro de silêncio oficial em toda a Ásia foi rompido em dezembro, quando os frangos começaram a morrer maciçamente em uma fazenda perto de Seul. Os tailandeses reconheceram publicamente o surto, seguido pelos demais paises da Ásia, que justificaram a ausência de informações prévias para evitar perdas “desnecessárias” com decisões “precipitadas” (DAVIS, 2006, p. 128-135). Neste momento, a OMS e sua contraparte veterinária, a OIE, bem como a Organização para a Alimentação e a Agricultura da ONU (FAO), deparam-se com o fato de que os porta-vozes da burocracia e do agronegócio há meses vinham acobertando uma epidemia de abrangência continental (DAVIS, 2006, p. 129).   O mesmo ocorreu na Califórnia, onde dezenas de milhões de aves foram infectadas com um vírus da gripe A no período de março a junho 2002. A emergência deste surto foi mantida em silêncio por executivos corporativos que temiam que a demanda do consumidor caísse se o público soubesse que estava comprando carnes e ovos infectados (DAVIS, 2006, p. 116). Portanto, tanto na Ásia, como nos EUA, os governos acobertaram os surtos, inclusive perante organismos internacionais, ameaçando quem revelasse informações e possivelmente escondendo doenças e mortes. De acordo com a revista New Scientist, acobertamentos oficiais e práticas de criação questionáveis permitiram que a gripe se transformasse na epidemia que ora está em andamento (DAVIS, 2006, p. 127). Percebe-se que desde de 2001, vários subtipos do vírus da Gripe A vêm circulando, principalmente na China continental, mantendo padrão sazonal, com pico de outubro a março, quando a temperatura média fica abaixo de 20º C. Alguns especialistas em gripe, inclusive, acreditam que todas as pandemias originam-se na criação mista de suínos e frangos do sul da China, mas que as precondições ambientais para a rápida evolução da gripe entre espécies são encontradas agora em toda a parte, e apontam especificamente para os impactos ecológicos da industrialização para exportação da produção de aves e porcos desde a década de 1980. (DAVIS, 2006, p. 103-145). Em 26 de abril de 2009, o governo dos EUA reportou à OMS 20 casos de gripe suína (influenza A/H1N1) confirmados em laboriatório (WHO, 2009b). Nenhuma morte foi confirmada à época. Tratava-se de um novo subtipo de A/H1N1, jamais detectado anteriormente em suínos ou humanos, gerando suspeitas quanto à relação entre o vírus e recentes manipulações genéticas, teoria que não resta comprovada. Na mesma data, o governo do México informou 18 casos confirmados da mesma gripe, com suspeitas em 19 dos 32 dos estados do país (WHO, 2009b). A doença se expalhou rapidamente pelo globo, sendo que no início de maio (01/05), 13 países já haviam relatado oficialmente 367 casos de gripe suína (WHO, 2009c), confirmando que as mega-catástrofes da sociedade de risco não respeitam fronteiras ou classe econômica, como diagnosticado por Beck (2006, p. 06).   Até 29 de maio, já foram confirmados oficialmente 15.510 casos de gripe suína, sendo que os países que registraram maior número de casos são: EUA (7927), México (4910), Canadá (1118), Japão (364), Reino Unido  (203), Chile (165), Austrália (147), Espanha (143) e Panamá (107) , conforme dados da OMS (WHO, 2009c). O número de mortes relacionados à infecção está em 99[5] (WHO, 2009c), sendo que na maioria se trata de pessoas jovens e saudáveis, o que diferencia a doença das demais gripes sazonais, nas quais há predominância de morte em pessoas com 65 anos ou mais (WHO, 2009d). Um grande fator de preocupação é a possibilidade do vírus se espalhar nos países do Sul, onde poderá produzir efeitos diferenciados e muito mais severos, considerando-se que se trata de populações mais vulneráveis, com grupos mais jovens que normalmente vivem em zonas urbanas superpovoadas (WHO, 2009d). Diante das incertezas que surgiram com esse novo subtipo viral, a OMS (WHO, 2009d, p. 3) recentemente declarou que “a única certeza sobre o vírus da gripe é que nada é certo”[6]. A comunidade científica ainda não conseguiu definir dados sobre a nova gripe, tais como a velocidade com que o novo vírus se espalhará pelo planeta, se e quando se estabilizará a situação, ou se a virulência irá se modificar com o tempo (WHO, 2009d). Tal estado de incerteza e a incapacidade da ciência de controlar os novos riscos são características da segunda fase da modernidade, o que conduz à necessidade de se revisar os processos de regulação e tomada de decisões no campo das atividades tecno-científicas.    Davis (2006, p. 190) defende que a urbanização dos países subdesenvolvidos e a revolução na criação de animais transformaram fundamentalmente a ecologia da gripe e aceleraram a evolução de novos recombinantes interespécies, restando evidenciada uma das principais distinções entre as ameaças anteriores à industrialização e aquelas vividas pela sociedade de risco, que são diretamente relacionadas aos processos de intervenção humana. Pesquisadores vêm alertando para os riscos causados pela manipulação genética desenvolvida na biotecnologia da agroindústria, principalmente como vetor da mutação ou recombinação de vírus. Autoridades têm levantado considerações na avaliação da segurança alimentar de animais geneticamente modificados, particularmente no que concerne aos potenciais riscos emanados do uso da sequência de retrovirus, incluindo o risco de recombinação com virus selvagens (JONES, 1998). Os desenvolvimentos específicos na esteira global da revolução na criação de animais, principalmente no que concerne às práticas biotecnológicas, deixaram os cientistas especialmente tensos. Isso porque, até então, todos os parasitas, incluindo-se os vírus, estavam limitados pela barreira das espécies – até então os vírus suínos infectavam suínos, mas não humanos (WAN HO, 2000, p. 04).   Para superar a barreira natural entre as espécies e invadir genomas alheios, a engenharia genética desenvolveu uma enorme variedade de vetores artificiais, combinando partes de muitos vetores naturais, como o de vírus, de diferentes fontes. Estes vetores artificiais têm o poder de realizar recombinações genéticas com material genético de outros vírus para gerar novos vírus altamente contagiantes e que cruzam a barreira das espécies. Em muitos casos, o vírus originário desta recombinação possui uma virulência muito maior do que aqueles que lhe deram origem e não possui tratamento (WAN HO, 2000, p. 06 e 08), o que demonstra o grande risco assumido pela biotecnologia até então. Pesquisas realizadas principalmente nos países europeus, vêm apontando diversos pontos de discordância da população com os rumos da biotecnologia, especialmente no que toca à questão dos OGMs e atitudes relacionadas aos animais[7]. CONCLUSÕES ARTICULADAS A humanidade vive um momento de crise, em que as maiores ameaças à vida como hoje se apresenta estão diretamente relacionadas ao processo de tomada de decisões. Essas decisões não são feitas pela população, mas por um grupo de peritos e instituições ligadas à ciência, que atualmente definem os “padrões aceitáveis” de risco. Com a revolução na criação de animais e o surgimento da biotecnologia, desenvolveu-se uma indústria de animais para consumo, que aplica técnicas cruéis e que representam riscos à saúde humana. Os riscos decorrentes destes modos de criação já podem ser constatados em determinados acontecimentos, tais como as transformações e mutações do vírus da gripe e a evolução acelerada de novos recombinantes interespécies, como no caso da gripe suína. Os efeitos da gripe suína, por sua vez, não estão localizados no espaço (em menos de dois meses já atingiu 53 países), no tempo (imprevisões quanto ao controle/alastramento da doença ou a estabilizaçã/fim das contaminações), e tampouco restritos a determinada classe social (há previsão de que países do Sul e do Norte serão afetados). Ademais, as dimensões da doença são desconhecidas, inclusive quanto à possibilidade de mutação do vírus, sendo que já existem previsões catastróficas. Todas essas características confirmam a análise da sociedade de risco, formulada por Beck. A assertiva de Beck: “nós não sabemos, o que é que não sabemos” resta plenamente aplicável ao caso da gripe suína, havendo inclusive declarações da OMS nesse sentido. Diante dos erros e riscos provocados pela ciência, as populações dos diferentes Estados, com destaque para os países europeus, passam a questionar o processo de tomada de decisões, demandando mais informação e participação. Nesse contexto, o futuro da democraria dependerá de um repensar sobre a atuação das instituições na sociedade de risco e, principalmente, sobre qual o papel que a percepção cultural e o conhecimento leigo irão assumir nesse novo contexto social.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-67/biotecnologia-na-sociedade-de-risco-um-estudo-do-caso-da-gripe-suina/
Efeitos da reprodução assistida nos direitos da personalidade
Os avanços da biotecnologia têm elevado o conhecimento científico. As novas técnicas de reprodução assistida trouxeram esperança para casais que não poderiam ser pais pelos meios naturais. Entretanto, as conseqüências desta evolução não podem ficar desprotegidas pela ordem jurídica. As violações aos direitos fundamentais e aos diretos de personalidade devem ser impedidas.  Demonstrar-se-á a necessidade de identidade genética, os danos e as responsabilidades desses participantes.
Biodireito
Introdução A família brasileira tem especial proteção do Estado. O planejamento familiar, segundo nossa atual Carta Constitucional, deve ser fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável. O planejamento familiar é de livre decisão do casal, somente competindo ao Estado à obrigação de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou privadas (art. 226 §7º da CF/88).  Em função da sua importância para todo ser humano, por ser o primeiro grupo de relacionamento que o indivíduo participa e se desenvolve como pessoa, a família recebeu do texto constitucional um patamar de valor especialmente garantido pelo Estado e pela sociedade. A liberdade na família é garantida, mas encontra seu limite na responsabilidade. Ao Estado cabe a obrigação de propiciar os meios de assistência necessária a cada membro ou pessoa da família. A intervenção estatal poderá ocorrer quando houver desrespeito aos princípios da dignidade humana e paternidade responsável, além dos casos de falta do cumprimento de deveres familiares e violência em suas relações. Essa intervenção justifica-se na garantia dos direitos fundamentais. È o que se depreende por meio da análise sistemática do texto constitucional (arts. 226 a 230 da CF/88). O ordenamento jurídico brasileiro tutelou a família não somente pela união de laços genéticos e sua descendência, ou seja, relações de sangue entre seus membros, mas também e da mesma forma, assegura a proteção da família formada pelo afeto, traduzido pela comunhão espiritual e de vida de seus integrantes comprovadas pela colaboração, solidariedade e respeito recíproco. A pluralidade de modelos familiares e suas formas de organização não podem ser ignoradas pela ciência jurídica. A Constituição de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar, assim também como a entidade familiar formada por um dos pais e deus descendentes. As novas formas de reprodução humana, fruto de novas técnicas, permitem o acesso planejado de formação de uma entidade familiar merece especial exame de suas particularidades. Dessa autonomia decorre uma série de situações jurídicas que devem ser devidamente analisadas e esclarecidas a fim de não se atingir a dignidade da pessoa humana nem a liberdade de cada um dos integrantes do corpo familiar. O planejamento familiar deve orientar-se por ações preventivas e educativas onde se assegure a todo cidadão as instruções, informações e conseqüências jurídicas dessa decisão. Para o exercício desse direito devem ser oferecidos todos os métodos de concepção cientificamente aceitos, desde que não coloquem em risco à vida e à saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção. A promoção dessas ações preventivas inclui o aconselhamento genético, acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, a nutrição da mulher e da criança, a identificação da gestante e do feto de alto risco, dentre tantas outras (Lei 9.263/96). O aconselhamento genético, segundo a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos “é o procedimento que consiste em explicar as conseqüências possíveis dos resultados de um teste ou de um rastreio genético, suas vantagens e seus riscos e, se for caso disso, ajudar o indivíduo a assumir essas conseqüências a longo prazo. O aconselhamento genético tem lugar antes e depois do teste ou do rastreio genético”. Dessa decisão decorre uma série de implicações tanto para a vida pessoal do indivíduo como pra sua vida familiar. Segundo a Declaração Internacional Sobre Dados Genéticos Humanos (DISDGH) a identificação genética pode indicar predisposições genéticas dos indivíduos; podem trazer à família, compreendida a descendência, e todo o grupo social a que pertence à pessoa sérias conseqüências que se perpetuam durante gerações; podem conter informações cuja relevância não se conheça necessariamente no momento de extrair as mostras biológicas. A identidade pessoal possui dupla dimensão. A primeira é individual, expressão de caráter único, indivisível e irrepetível de cada ser humano; a segunda é relacional, definida em função de sua memória familiar. “Em seu art. 3º a DISDGH dispõe que: “cada indivíduo tem uma constituição genética característica. No entanto, não se pode reduzir a identidade de uma pessoa a características genéticas, uma vez que ela é constituída pela intervenção de complexos factores educativos, ambientais e pessoais, bem como de relações afectivas, sociais, espirituais e culturais com outros indivíduos, e implica um elemento de liberdade”. O objetivo do presente trabalho é, à luz da aprovação da lei que permite as pesquisas com células-tronco e a partir daí suas mais diversas manipulações genéticas, mostrar que os frutos destas manipulações que originarem seres humanos conferem a estes os mesmos direitos de personalidade comum a todos os outros seres gerados pelas vias naturais de reprodução humana. Para tanto, primeiramente se mostrará quais os direitos de personalidade conferidos aos homens em geral e o direito a sua identidade genética. Revelará as atuais técnicas de reprodução assistida. Analisará como fica a posição jurídica do doador de sêmen, para se examinar a dignidade humana e o princípio da autonomia. Verificará a questão da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada. Enfocará o possível dano moral e as responsabilidades civis dos participantes desta relação. Far-se-á posteriormente uma análise da jurisprudência brasileira no tocante ao direito do ser humano de conhecer suas origens e finalmente uma breve conclusão. 1. Direitos de personalidade e intimidade genética Segundo Daniel Sarmento (2008, p.97) os direitos da personalidade surgiram como categoria autônoma na dogmática civilista da segunda metade do século XIX, e encontraram forte resistência por parte da doutrina que negava a sua existência, afirmando que a personalidade não poderia ser objeto de direito, já que ela identificava-se com a titularidade de direitos. Entretanto, o autor sustenta não proceder tal argumento já que a personalidade possui dupla perspectiva: como centro de imputação e pressuposto para a aquisição de direitos e como objeto de direitos de personalidade e como tal merecedora de tutela jurídica. A partir de então esses direitos foram sendo incorporados nas diversas ordens jurídicas, sendo concebidos como projeções dos direitos humanos na esfera privada. A personalidade confere à pessoa um direito subjetivo de defender àquilo que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física como vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, partes separadas do corpo; sua integridade intelectual, como a liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária e sua integridade moral, como a honra, segredo pessoal, profissional, doméstico, imagem, identidade pessoal, social e familiar. Segundo nosso Código Civil de 2002, art. 2º: “A personalidade civil começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a sua concepção, os direitos do nascituro”. Na medida em que a personalidade é concebida com a vida, se esta se extinguir, aquela também se exaure. Os direitos da personalidade nascem com a pessoa e a acompanham durante toda sua existência. São inerentes à pessoa, intransmissíveis, inseparáveis do titular e por isso chama-se personalíssimos, também são indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis (DALVI, 2008, p. 56). Biologicamente, o início da vida marca sua individualidade. A biologia destaca o início da vida no momento da formação do zigoto ou célula-ovo. A partir desse momento o concebido adquire carga genética própria e individual, que não se confunde com a de seu pai ou de sua mãe, sendo o corpo da mãe apenas o meio hábil para se desenvolver normalmente até o nascimento. Nosso código civil adotou a teoria natalista pela qual a personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida. Seus defensores entendem que o nascituro não tem personalidade jurídica nem capacidade de direito, mas a lei protege seus possíveis direitos se ele vier a nascer com vida (DALVI, 2008, p. 68). Ao adquirir personalidade o ser humano adquire os direitos ao nome, a integridade física, a intimidade e vida privada, incluindo-se direitos a identidade genética (pessoal, social e familiar), a alimentos, de receber doações e os direitos sucessórios. Em que pese o entendimento de um direito geral de personalidade, que enseja uma ampla proteção à personalidade (teoria monista), ainda que, não expressamente indicados pelo legislador, a verdade é que ela está longe de dar conta das necessidades de tutela da dignidade da pessoa humana no direito privado. Com grande freqüência as situações concretas da vida ameaçam a dignidade humana e não cabem na moldura do direito subjetivo. Logo, concebido o direito à personalidade como direito subjetivo este será insuficiente para atender às possíveis situações em que a personalidade mereça tutela (SARMENTO, 2008, p. 100). Com o advento do Estado Social, os direitos fundamentais, dentre eles os direitos da personalidade, novos direitos foram positivados a partir de uma perspectiva objetiva e não mais somente subjetiva no sentido de identificar pretensões do indivíduo em face do estado. A dimensão objetiva liga-se ao reconhecimento de que esses direitos além de imporem obrigações estatais consagram também valores sociais e fins diretivos que a comunidade deseja alcançar. Esses valores não são perseguidos somente pelo Estado, mas por ele e pela sociedade como um todo. Esses valores penetram por todo ordenamento jurídico modelando suas normas e impondo ao Estado deveres de proteção, não bastando apenas sua abstenção de violar direitos fundamentais. Um dos primeiros diretos reconhecidos ao homem foi a sua liberdade. Essa liberdade deve ser entendida sob a dupla dimensão subjetiva e objetiva. Um dos contornos essenciais da liberdade é a autonomia privada ligada a escolhas existenciais que fazemos ao longo de nossas vidas. Essas escolhas refletem ao modo de ser da pessoa humana e, portanto diz respeito à sua personalidade. Para Selma Petterle (2008, p.237) dentre essas escolhas pode-se decidir por aquelas que irão desaguar na intimidade genética. Refere que os testes genéticos para análise do DNA constituem a mais importante aplicação prática do conhecimento sobre o genoma humano nos permitirão conhecer os detalhes da nossa constituição genética. Após conhecer o genoma humano por meio dos testes genéticos, há a necessidade da construção de uma proteção jurídico-constitucional do genoma humano individual como um direito a identidade genética da pessoa humana. A autora (2008, p.240) entende que tal problemática, advinda dessas novas técnicas de conhecimento e suas conseqüências sobre o individuo tem dividido a sociedade e a comunidade científica. A comunidade internacional compartilhando as preocupações com os avanços decorrentes da genética busca definir regras para proteção jurídica do genoma humano. Como referências internacionais pode-se citar a Declaração Universal sobre o Genoma Humano (UNESCO/97), a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (UNESCO/2003), a Declaração Universal da Bioética e Direitos Humanos (UNESCO/2005) a Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina (1997), a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia (2000). Exemplos isolados do direito constitucional comparado é a Constituição suíça, pioneira em estabelecer limites aos avanços da genética no ano de 1992 e a Constituição portuguesa após a revisão constitucional de 1997 que consagrou expressamente a garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano. A Constituição suíça em seu art. 119 admite a investigação genética de uma pessoa com o consentimento desta ou em virtude de lei, declarando que toda pessoa terá acesso aos dados genéticos relativos aos seus ascendentes. A constituição portuguesa no art. 26 estabelece que: “A todos são reconhecidos os direitos a identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, a capacidade civil, a cidadania, ao bom nome e reputação, a imagem, a palavra, a reserva da intimidade da vida privada e familiar e a proteção legal contra qualquer forma de discriminação.” Como lembra Selma Petterle (2008, p. 241) em que pese o direito fundamental a identidade genética não estar expressamente consagrado na CF/88 brasileira, seu reconhecimento e proteção podem ser deduzidos do sistema constitucional. A ordem constitucional brasileira a partir do §2º, art. 5º, inseriu uma autêntica norma geral inclusiva de direitos fundamentais. Com amparo na doutrina, é possível afirmar que para além dos já reconhecidos direitos fundamentais, há outros, quais sejam, aqueles não escritos, não positivados, que em virtude de seu conteúdo material significativo são também merecedores de proteção constitucional. Pode-se então afirmar que o sistema de direitos fundamentais está aberto e o papel do hermeneuta na identificação dos direitos fundamentais será de extrema importância, verificando os critérios identificadores da condição de fundamentais. É preciso desde logo identificar qual o elo existente entre, de um lado, a dignidade humana e o direito a vida, e de outro lado, o direito que se supõe, seja fundamental. Não há como negar que as possibilidades disponíveis hoje em matéria de manipulação genética podem configurar violação dos direitos fundamentais de primeira dimensão. Os novos problemas que daí se originam necessitam urgentemente de nova regulamentação que trace os contornos destas novas descobertas, sendo a identidade genética da pessoa humana, uma delas. A identidade genética da pessoa humana, base biológica da identidade pessoal é uma dessas manifestações essenciais da complexa personalidade humana (PETTERLE, 2008, p.246). Segundo José Afonso da Silva (2002, p.196) o sentido biológico da vida é de difícil aferição. Sua riqueza significativa é dinâmica e se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade, até que muda de qualidade. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida. O direito a identidade genética é um direito de personalidade que busca salvaguardar o bem jurídico-fundamental “identidade genética”, uma das manifestações essenciais da personalidade humana, ao lado do já consagrado viés do direito a privacidade e do direito a intimidade (PETTERLE, 2008, p. 259). Ocorre que os notáveis avanços da medicina e as novas técnicas de reprodução assistida que viabilizam o desejo de casais que não podem, por outro meio, realizarem seu desejo de se tornarem pais, trouxeram consigo uma série de conseqüências fático-jurídicas que não podem deixar de serem reguladas pelo direito pelo fato de atingirem uma série de direitos fundamentais consagrados em nosso texto constitucional. Os filhos nascidos da fertilização in vitro têm direito a sua identidade genética como qualquer outro ser humano ou a eles devem ser restringido esse direito? Deve-se nestes casos ser respeitado o direito de igualdade consagrado pelo art. 5º da CF/88? Tendo em vista o direito à privacidade do doador, direito fundamental a privacidade, qual deles deve prevalecer (o direito a identidade genética do seu sucessor ou o direito a privacidade de seu ascendente)? O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 26 admite o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, no próprio termo do nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação. O parágrafo único do mesmo artigo admite o reconhecimento do filho antes de seu nascimento ou depois de sua morte, se deixar descendentes. Às provas da paternidade ou maternidade serão feitas por todos os meios admitidos em direito, inclusive por exame de DNA, que em caso de nascituros será feita por coleta de material do feto em uma amostra da placenta a partir da 9ª semana de gestação. Segundo Luciano Dalvi (2008, p.248) sendo o caso de reconhecimento de paternidade, a sentença é declaratória, onde o juiz apenas declara uma relação jurídica que já existia. Mas em caso de reprodução assistida heteróloga como se solucionaria as questões de paternidade e filiação? Como se protegeria o direito a intimidade do pai? Como se respeitaria o direito de identidade genética do filho? Como o direito resolveria a questão do doador de sêmen? Qual desses direitos deve prevalecer em casos concretos? 2. Técnicas de reprodução assistida Segundo Luciano Dalvi (2008, p. 171-189) são técnicas de reprodução assistida: 1. Fertilização in vitro Este tipo de reprodução humana é uma biotecnologia onde os processos fisiológicos de maturação folicular, fertilização e desenvolvimento embrionário são obtidos em laboratório (in vitro), fora do útero materno, procurando obter embriões de qualidade a transferir posteriormente para a cavidade uterina. A técnica consiste numa inseminação artificial pela manipulação do óvulo da mulher com o esperma do homem em um tubo de ensaio a fim de dar início à fecundação do óvulo com a formação do embrião. A duração desta etapa é de aproximadamente 48 horas, segundo o instituto Mater dei Saúde. Após este período, o embrião formado deve ser transferido para a cavidade uterina através de um cateter especial durante um exame ginecológico normal. 2. Indução com Datação de Coito  Esta forma de reprodução assistida consiste em acompanhar o ciclo menstrual da mulher e verificar o ciclo da ovulação, para determinar o momento exato para ter relações sexuais. Esta técnica é também chamada de tabelinha. 3. A Técnica de Reprodução GIFT  É a técnica que transfere os gametas para dentro das trompas. Nesse procedimento, o óvulo e os espermatozóides selecionados após a coleta são reunidos em um mesmo cateter e imediatamente transferidos para a trompa. 4. A Técnica de Reprodução ZIFT A técnica tem como procedimento a divisão do zigoto, que dará origem ao embrião, já dentro da trompa, onde ocorrerá à multiplicação celular e o embrião irá para o útero. 5. A Técnica de Reprodução ICSI O método de injeção intracitoplasmática de espermatozóide ou micro-manipulação do óvulo é um processo que consiste na aplicação de um espermatozóide por agulha no óvulo. A agulha perfura o óvulo e injeta o espermatozóide. 6. A Inseminação Artificial È um método utilizado para tratamento de algumas alterações da fertilidade do casal, onde se coloca os espermatozóides o mais próximo do óvulo, no momento mais adequado, suplantando os obstáculos masculinos e femininos. Segundo L. Dalvi (2008, p.190-198) são formas de reprodução assistida: Homóloga – É a mais comum e se dá com a utilização de gametas do próprio casal. Na fertilização in vitro ocorrerá uma acepção genética. Esta técnica produz um grande número de embriões, mas somente uma parte deles será implantado no útero materno, os demais serão congelados para serem utilizados posteriormente ou não. Heteróloga – É aquela que utiliza gametas obtidos de terceiros. Pode ser parcial, quando um dos gametas é doado por terceiro e o outro por um dos cônjuges ou total, quando os dois gametas são obtidos de doação de terceiros. Nesse tipo de reprodução é que consiste a maior parte das polêmicas geradas na área jurídica e social. O filho gerado carregará o material genético e a aparência física de seu pai biológico, mas será criado por seu pai afetivo. A partir desta ótica nos perguntamos: quem é o pai desta criança? De qual deles terá direitos sucessórios? O doador de sêmen deve assisti-lo? Caso o filho necessite de algum tipo de transplante de órgãos para sobreviver de doença incurável, poderia recorrer ao pai biológico, tendo em vista que o direito à vida deve ser respeitado acima de qualquer outro direito e somente em ocasiões especialíssimas ele deve ser preterido, como o caso de guerra, conforme nossa constituição (art. 5º, inc. XLVI, a) consagra? Se o pai biológico necessitasse do transplante e soubesse que somente um filho poderia lhe salvar a vida, teria direito de saber se seu sêmen foi utilizado em alguma técnica de reprodução assistida bem sucedida? Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) dispõe em seu art. 4º: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária.” Como o legislador conferiu este dever não só a família, mas a toda sociedade; temos um caso de interesse coletivo de proteção à criança a ao adolescente. Porque então se deferir prioridade a intimidade genética do doador de sêmen (interesse individual) em detrimento da vida e do desenvolvimento da criança ou do adolescente nos casos de necessidade para salvar-lhe à vida? A doutrina mais moderna[1] tem entendido que somente na análise dos casos concretos é que se poderá estabelecer qual o interesse deve ser prevalente, mas nunca se poderá a priori estabelecer qual deles deve prevalecer. O pensamento de Ivan de Oliveira Silva (2008, p. 43) é no sentido de que a manipulação genética e sua alteração não dizem respeito somente aos interesses públicos e particulares, pois por meio de todo e qualquer material genético, sempre de possível alcance de um número indeterminado de pessoas, deverá seguir a orientação dos direitos difusos. Segue esclarecendo que sua repercussão estará na esfera de interesses de todos os seres vivos tanto desta geração quanto das futuras. 3. A figura do doador de sêmen Quando existe alguma falha relacionada com a infertilidade masculina, geralmente os médicos aconselham a utilização do sêmen de terceiros para que seja resolvido o problema. Segundo a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina – que não tem juridicidade reconhecida pela ordem jurídica nacional (grifo nosso) – as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida baseiam-se nos seguintes princípios dentre outros: 1 – As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade. 2 – As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente. Em relação aos doadores estabelece a resolução acima referida: 1 – A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial. 2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. 3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador. 4 – As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores. 5 – Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que 2(duas) gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes. 6 – A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora. 7 – Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participarem como doadores nos programas de RA. Luciano Dalvi (2008, p. 236) entende que a paternidade biológica é a relação paterno-filial derivado de um vínculo genético que insere as características do pai no respectivo filho.  A paternidade afetiva pode dar-se em face de adoção e dos processos de fertilização in vitro que descaracterizam a filiação originária. Este último tipo de paternidade pode levar a casos de mais de uma paternidade. Para explicitar o pensamento, imaginemos o caso de uma criança ser fruto de uma RA e no momento de seu nascimento tão desejado pelos pais afetivos (1) que decidiram pela reprodução, a criança seja seqüestrada por alguém (mãe afetiva nº2) que também tinha um enorme desejo de ser mãe e criou esta criança como sua filha, dando-lhe todo afeto e carinho. Muitos anos depois a polícia descobre o paradeiro da criança e a subtrai das mãos de sua mãe afetiva (2). Na família atual, o afeto é a razão de sua própria existência, o elemento responsável e indispensável para a sua formação, viabilidade e continuidade. A paternidade afetiva expressa um espaço em que cada membro busca a realização de si mesmo por meio do outro. Assim, temos aí um caso aonde há mais de uma paternidade afetiva, pois sem dúvida essa situação faria com que a criança sentisse afeto pela mãe que a criou, embora não tivesse nenhum direito legal pelo fato de ter cometido um crime, não podemos negar que a realidade revela uma situação de vínculo afetivo entre eles. No caso de adoção, a paternidade fica bem delineada no art. 41, onde o estatuto da criança e do adolescente estabelece que “a adoção atribui à condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. Entretanto, nestes casos, houve uma manifestação de vontade dos pais biológicos e afetivos; um, em transferir a filiação a outrem; e outro, em adotar o filho dos primeiros, conforme consagra regra do art. 45 do mesmo estatuto. Será dispensado o consentimento somente quando os pais biológicos do adotado sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do pátrio poder, leia-se poder familiar (§ 1º, art.45 do ECA e art. 1630 do CC). Este certamente não é o caso de RA onde já se demonstrou haver possibilidade de identificação da figura biológica por meio de registros de dados dos doadores de sêmen e a absoluta prioridade da criança na efetivação de seus direitos essenciais. A legislação brasileira não reconhece mais a distinção entre filhos legítimos, ilegítimos e adotivos. A investigação de paternidade pode ser solicitada pelo filho pedindo exame de DNA ou pelo Ministério Público em averiguação oficiosa nos casos previstos em lei. Havendo reconhecimento de paternidade, o juiz desde logo fixará os alimentos, conforme lei 8.560/92 que regula a investigação de paternidade de filhos havidos fora do casamento: “Art. 7° Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.”    A recusa ao teste é pressuposição de paternidade de acordo com a Súmula 301 do STJ[2]. O objetivo desta decisão é dar eficácia e efetividade aos interesses familiares que irão desaguar na dignidade da pessoa humana. A vida familiar tem diversas conseqüências internas e externas. A referência interna ocorre na vivência do ciclo familiar e a externa se dá pelas conseqüências relacionadas à inserção do individuo na sociedade após ser criado na família. Segundo a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos em seu artigo 9º “Com o objetivo de proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, as limitações aos princípios do consentimento e do sigilo só poderão ser prescritas por lei, por razões de força maior, dentro dos limites da legislação pública internacional e da lei internacional dos direitos humanos”. Em seu art. 10º prescreve “Nenhuma pesquisa ou aplicação de pesquisa relativa ao genoma humano, em especial nos campos da biologia, genética e medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos indivíduos ou, quando for o caso, de grupos de pessoas”. Nesta mesma Declaração se estabelece as condições para o exercício da atividade científica no art.14 “Os Estados devem tomar medidas apropriadas para fomentar as condições intelectuais e materiais favoráveis à liberdade na realização de pesquisas sobre o genoma humano e para levar em conta as implicações éticas, legais, sociais e econômicas de tais pesquisas, com base nos princípios expostos nesta Declaração”.  Segundo o Relatório de Belmont em 1978 existem três princípios identificados para casos de pesquisas biomédicas: 1. Respeito pelas pessoas: que incorpora duas convicções éticas: A – os indivíduos devem ser tratados como seres autônomos, dotados de autodeterminação; e B – as pessoas cuja autonomia esteja atenuada devem ser submetidas à proteção. Dentro deste contexto, pessoa autônoma é aquela capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir consoante tal deliberação. 2. Beneficência: é a qualidade de não causar dano e maximizar os benefícios possíveis e minimizar os prejuízos. 3. Justiça: que se traduz na imparcialidade de distribuição dos riscos e benefícios. Os iguais são tratados igualmente. Maria Celina considera (2007, p.124) o anonimato de doador de sêmen, na inseminação artificial heteróloga, um exemplo que não se compactua com a ordem constitucional da prevalência das situações existenciais. Argumenta-se que se a providência da proibição do anonimato for tomada, significará o fim da possibilidade de reprodução. A autora admite que possa ser verdade, mas a visão dos que sustentam o anonimato parece estar deformada pelo longo tempo em que o direito civil cuidava unicamente de direitos subjetivos de matriz patrimonial. A deturpação desta idéia deve-se ao fato de se entender que conceber um filho é um direito dos pais e para garantia deste direito, pode-se fazer o que seja necessário, inclusive conceber um filho que não poderá ter acesso a sua origem genética, aspecto que compõe a existência de sua identificação genética. No que tange ao anonimato do doador de sêmen, há interesses de terceiros, das gerações futuras, que devem ser resguardados; portanto, apesar da atual liberdade para tanto, se entende que não caiba proporcionar à sociedade esta alternativa. (Maria Celina, 2007, p. 125) Pietro Perlingieri (2007, p.176-177) entende que o menor tem direito de conhecer as próprias origens não somente genéticas, mas culturais e sociais. O patrimônio genético – de acordo com a concepção pela qual a estrutura se adapta a função – não é totalmente insensível no seu futuro às condições da vida nas quais a pessoa opera. Conhecê-lo significa não apenas evitar o incesto, possibilitar a aplicação da proibição de núpcias entre parentes, mas, responsavelmente, estabelecer uma relação entre titular do patrimônio genético e de quem nasce. Assim, este autor considera que nenhuma objeção que se queira dar a esta possibilidade de identificação genética se coaduna com os valores consagrados em nosso ordenamento jurídico que não mais admite diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos. As responsabilidades advindas pela inseminação artificial não devem ser ignoradas pelos juristas. As conseqüências devem ser previstas no ordenamento jurídico a fim de não prejudicar quem não pediu para nascer. 4. Dignidade humana e o princípio da autonomia O respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do imperativo categórico kantiano, de ordem moral, tornou-se um comando jurídico no Brasil com o advento da constituição de 1988 que em seu art. 1º, III, consagrou-a como um dos fundamentos da República. Este valor foi estabelecido na constituição como aquele valor supremo que toda a ordem jurídica deve observar. Torna-se desumano assim, toda conduta que possa reduzir a pessoa à condição de objeto. (MORAES, 2007, p.82) O substrato da dignidade pode ser desdobrado em quatro postulados: 1. O sujeito moral que reconhece a existência dos outros sujeitos iguais a ele; 2. Merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; 3. É dotado de vontade livre, de autodeterminação; 4. É parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários ou subprincípios da dignidade humana então, os princípios da igualdade, da integridade psicofísica, direito da liberdade, direito-dever de solidariedade social. (MORAES, 2007, p. 85) Na esfera civil, a integridade psicofísica serve para garantir os numerosos direitos da personalidade como a vida, o nome, imagem, honra, privacidade, corpo, identidade genética dentre outros, que se poderia denominar direito à saúde, compreendida esta, como completo bem-estar psicofísico e social. No princípio está contido ainda, e principalmente, o direito à existência digna. Atualmente, as maiores dificuldades dizem respeito ao desenvolvimento da biotecnologia e suas conseqüências sobre a esfera psicofísica do indivíduo. Maria Celina entende que na área da biomedicina o interesse do indivíduo deve prevalecer quando se tratar de sua saúde, física ou psíquica. (MORAES, 2007, p.95- 99) O projeto genoma humano está revolucionando o conhecimento do homem acerca de si mesmo. O mapeamento de nossos genes traz grandes problemáticas no tocante à dignidade humana. Daí surge à necessidade de que sejam estabelecidos determinados limites externos a biomedicina de natureza ética a fim de não transformar o ser humano em objeto.    No que tange a dignidade humana a Declaração consagra que “O genoma humano subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido simbólico, é a herança da humanidade, onde: a) todos têm o direito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas características genéticas; b) Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade.  Ingo Sarlet (2008, p.20) entende que a dignidade da pessoa humana não existe apenas onde é reconhecida pelo direito e na medida em que este a reconhece, já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa. Daniel Sarmento (2008, p.7) declara que já no paradigma liberal viu-se a necessidade de proteção do homem tornando-se inadmissível a continuidade da discriminação fundada no nascimento, o que exigia abolição de privilégios estamentais desfrutados pela nobreza e clero. Dotada de caráter universal e impregnada pela teoria jusnaturalista surgiu à declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, consagrando em seu 1 º artigo o princípio da isonomia. Com o passar do tempo foi se consolidando a idéia que para o efetivo desfrute dos direitos individuais, era necessário garantir condições mínimas de existência para cada ser humano. À luz da Declaração Universal da ONU e do entendimento kantiano o elemento nuclear da noção de dignidade humana parece continuar sendo reconduzido e a doutrina majoritária conforta esta conclusão, de centralização na autonomia e o direito de autodeterminação da pessoa. (SARLET, 2008, p. 23) Assim, a dignidade tem dupla dimensão, uma que se manifesta enquanto expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência e outra que se revela como a necessidade de sua proteção por parte da comunidade e do Estado. Nesta última perspectiva poderá prevalecer em face da dimensão autonômica. Gera para o individuo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana. (SARLET, 2008, p.30-33) Para Dworkin (2003, p. 335), a teoria segundo a qual a indignidade é condenável por ser demasiado contrária a nossos interesses experienciais, provoca em suas vítimas um sofrimento mental especialmente grave e característico, do qual as pessoas se ressentem e as levam, em conseqüência, a sofrer mais com a indignidade do que com qualquer outra forma de privação, fazendo com que as pessoas nesta situação percam seu amor-próprio, causando-lhe desprezo e aversão por si próprio. A autonomia confere ao homem sua capacidade de governar a si mesmo e pelo qual ele toma suas próprias decisões. Ronald Dworkin (2003, p. 315-318) revela “que há um consenso geral de que os cidadãos adultos dotados de competência normal têm direito à autonomia, isto é, direito de tomar, por si próprio, decisões importantes para a definição de suas vidas”… Quando, porém, se perde este direito? Entende o autor que em certas ocasiões podem ser extremamente favoráveis aos interesses de uma pessoa obrigá-la a agir de modo diferente do que ela quer, comprometendo até mesmo sua autonomia com uma decisão que vai contra seus interesses. Pode acontecer que, após um exame criterioso dos fatos, esteja entre seus interesses fundamentais, o impedirmos de tomar uma determinada decisão. A autonomia exige que permitamos que uma pessoa detenha o controle de sua própria vida, mesmo quando se comporta de um modo que, para ela própria, não estaria de modo algum de acordo com seus interesses (fraqueza da vontade). Se acreditarmos que respeitar sua autonomia significa permitir que ajam desse modo, não poderemos aceitar que o objetivo da autonomia consista em proteger o bem-estar de uma pessoa. O objetivo da autonomia deve ser até certo ponto, independente da alegação de que uma pessoa sabe quais são seus interesses fundamentais. O valor da autonomia deve pautar-se na integridade, na capacidade de alguém expressar seu caráter por meio de seus valores, compromissos, convicções e interesses. O reconhecimento de um direito individual de autonomia torna possível a autocriação. Permite que cada um de nós seja responsável pela configuração de nossas vidas de acordo com nossa personalidade. A concepção de autonomia centrada na integridade não pressupõe que as pessoas competentes tenham valores coerentes ou que sempre façam as melhores escolhas ou que sempre levem vidas estruturadas e reflexivas. Reconhece-se que as pessoas fazem escolhas que refletem fraquezas, indecisão, capricho ou simples irracionalidade. Qualquer teoria de autonomia centrada na integridade deve fazer distinção entre o valor da autonomia e suas conseqüências. A autonomia estimula e protege a capacidade geral das pessoas de conduzir suas vidas de acordo com sua percepção individual. Para Amartya Sen (2007, p. 33), ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o processo de desenvolvimento. A liberdade apresenta vínculo com a qualidade de vida que se concentra no modo como as pessoas vivem e suas escolhas. O autor acredita que a afirmação de responsabilidade social que substitua a responsabilidade individual só pode ser contraproducente O argumento do apoio social para expandir a liberdade das pessoas pode ser considerado um argumento em favor da responsabilidade individual e não contra ela. O caminho de liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade (SEN, 2007, p. 321-322). Para Dworkin, (2003, p.335) assim como a autonomia, o respeito por si mesmo, exige certo grau de competência geral e em especial, um senso de auto-identidade ao longo do tempo. O ódio e a aversão por si mesmo pressupõem um senso de identidade ainda mais agudo. Pietro Perlingieri (2007, p.17-19) define autonomia como o poder reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo de determinar vicissitudes jurídicas como conseqüência de comportamentos- em qualquer medida- livremente assumidos. As vicissitudes são os efeitos jurídicos constitutivos, modificativos ou extintivos da relação para individuar o mesmo conceito de outro ângulo visual. Ao lado destes efeitos devem ser analisados os possíveis efeitos relacionados à concreta fattispecie, ao seu particular regulamento de interesses, de maneira a valorar o ato em uma ótica finalística. Por vezes o ato se exaure na produção de um só efeito, já em outras produz uma multiplicidade de efeitos. Nesta hipótese, é preciso verificar se todos os efeitos contribuem do mesmo modo para a qualificação do fato ou se entre eles devem ser distinguidos aqueles que determinam a função prático-jurídica (efeitos essenciais) daquele fato dos outros que para isso não contribuem (efeitos não-essenciais). Entende o renomado autor que a autonomia é a atuação não somente de direitos subjetivos, mas também de deveres de solidariedade. Solidariedade não somente econômica, mas também social e familiar.  A dignidade na condição de valor intrínseco do ser humano gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e de felicidade e mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana. Assim, a dignidade é limite e tarefa dos poderes estatais, que aponta para a dupla dimensão defensiva e prestacional da dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também, o fato de que a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que violem ou a exponham às graves ameaças. Como tarefa, a previsão constitucional da dignidade da pessoa humana faz decorrer deveres concretos de tutela no sentido de proteger a dignidade de todos por meio de medidas positivas (prestações). (SARLET, 2008, p. 33) O princípio da dignidade humana mergulha suas raízes na doutrina cristã do Evangelho, no humanismo renascentista de Pico della Mirandola e acima de tudo, na filosofia iluminista que teve seu ápice em Kant. Para Kant, o homem como ser racional dotado de autonomia moral, constitui um fim em si mesmo e não pode servir simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, não tendo por isso preço, mas dignidade. Daniel Sarmento vê o princípio da dignidade humana o elemento que costura e unifica todo o sistema pátrio dos direitos fundamentais, representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas atos estatais, mas também toda a miríade de relações que se desenvolvem no seio da sociedade civil e no mercado.  O princípio em pauta desempenha papel essencial na revelação de novos direitos não escritos no catálogo constitucional e poderão ser exigidos quando se verificar que determinada prestação positiva ou negativa viola a vida humana e sua dignidade. Pela autonomia privada o homem determina os rumos de sua vida de acordo com suas preferências subjetivas desde que respeite o direito de seus pares. Os particulares são titulares de uma esfera de liberdade juridicamente protegida que deriva do reconhecimento de sua dignidade (SARMENTO, 2008, p. 87- 143). Afirma a doutrina que a autonomia significa o poder do sujeito de auto-regulamentar seus próprios interesses, de autogoverno de sua esfera jurídica, que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes da comunidade. Assim, a autonomia privada encontra seus limites no direito das outras pessoas a uma idêntica quota de liberdade e também com outros valores igualmente relevantes ao Estado Democrático, com a democracia, a igualdade, a solidariedade, a responsabilidade e a segurança. É inevitável que o estado intervenha em certos casos restringindo a autonomia individual, seja para proteger a liberdade dos outros, seja para favorecer o bem comum. Mesmo as liberdades fundamentais não são absolutas. No caso concreto a liberdade de um poderá causar lesão a outro direito fundamental ou princípio constitucional igualmente relevante. Nesta hipótese, poderá ser necessário, diante dos contornos do caso restringir a liberdade em questão visando à otimização dos bens jurídicos em confronto, através de uma ponderação de interesses (SARMENTO, 2008, p. 154-156). 5. A questão da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada Conforme Daniel Sarmento (2008, p.238-259) a questão da extensão dos direitos fundamentais nas relações privadas é indispensável no contexto adotado pela nossa Carta Constitucional como Estado Social. O debate sobre a questão da eficácia direta ou não, dos direitos fundamentais surgiu na Alemanha, onde se consagrou o entendimento que os direitos fundamentais não se dirigiam aos particulares, mas sim, ao Estado por serem considerados direitos de defesa. Argumenta-se que o texto constitucional alemão somente prevê a vinculação dos poderes públicos quanto à observância dos direitos fundamentais, além do entendimento de que a eficácia direta implicaria na eliminação da autonomia individual, destruindo a identidade do Direito Privado. Este é o entendimento adotado no direito norte-americano. A doutrina da eficácia horizontal mediata ou indireta foi formulada pelo alemão Günter Durig e hoje é adotada pela maioria dos juristas alemães. É uma construção intermediaria pela qual a proteção constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade dos indivíduos renunciarem a direitos fundamentais no âmbito de suas relações privadas em favor de outros valores constitucionais. Nestes casos, há a necessidade intervenção legislativa para regular as situações onde a autonomia privada deveria ceder, estabelecendo, desta forma, as condutas que seriam compatíveis com os valores constitucionais. A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada também foi defendida primeiramente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey. Segundo ele, os direitos previstos na constituição alemã não vinculam apenas o Estado, mas também todas as pessoas que fazem parte daquela sociedade. Não nega a necessidade de uma ponderação entre o direito fundamental e a autonomia privada. Não é uma doutrina radical, pois reconhece que a autonomia privada também é assegurada pela constituição alemã. Esta teoria é adotada por Portugal, Itália, Espanha e Argentina. No Brasil, esta teoria também foi acolhida. Resta claro que a Carta de 88 é intervencionista e social, consagra um modelo de Estado Social voltado pra a igualdade, não se baseando na rígida separação do Estado e da sociedade. A linguagem adotada pelo constituinte brasileiro na maioria dos direitos fundamentais do art. 5º transmite a idéia de uma vinculação passiva universal. São sendo apenas uma questão de direito, mas de ética e justiça. Daniel Sarmento entende que a tutela dos direitos individuais nas relações privadas não se esgota na garantia de uma obrigação geral de abstenção, nem de reparação dos danos pelas lesões perpetradas, através da responsabilidade civil. A proteção constitucional é mais ampla, e envolve tanto uma tutela preventiva como obrigações positivas e negativas do particular, dependendo da circunstância de cada caso e da concreta configuração dos interesses em jogo. A fixação de limites para a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares envolve um problema de ponderação com a autonomia privada. Daí a necessidade de fixar parâmetros para o caso de colisão entre direitos fundamentais de dois particulares, estreitando a discricionariedade judicial, ampliando a segurança jurídica. O primeiro critério que tem que se reconhecer é o de que quanto maior for à desigualdade fática entre os envolvidos maior deverá ser o a proteção ao direito fundamental e menor a tutela da autonomia privada. Se houver, no entanto, igualdade material das partes, a autonomia deve receber uma proteção mais intensa. Esse entendimento justifica-se pelo fato de que quando o ordenamento jurídico, deixa livres, o forte e o fraco, esta liberdade só se torna efetiva para o mais forte. O mais fraco acaba se curvando ao arbítrio do mais poderoso, ainda que do ponto de vista puramente formal seu comportamento esteja enquadrado na autônoma privada. Daniel Sarmento propõe a verificação da autonomia privada em cada caso, em real ou aparente e não apurar a assimetria entre as partes. Entretanto, esta verificação pode na prática não resolver a questão da proteção efetiva, pois muitas vezes, a autonomia da parte mais fraca é mera fachada para legitimação de imposições ditadas pelo mais forte. Além disso, este critério só seria adequado para situações onde o lesado tenha tido a oportunidade de manifestar sua concordância com o ato que importou na lesão de seu direito fundamental. Assim, há uma enorme variedade de situações heterogêneas que não devem e não podem ser equiparadas pelo intérprete. Relações entre pais e filhos é uma delas (SARMENTO, 2008, p. 263-264 apud SILVA). A tutela da autonomia privada no que se refere a situações existenciais é muito mais intensa do que a conferida a situações econômicas. Quanto mais o bem envolvido no conflito diga respeito a um bem essencial para a vida humana, maior deve ser a proteção do direito fundamental em jogo, e menor deverá ser a proteção da autonomia privada. A natureza da questão examinada também é outro critério aferidor de tutela. Assim quando a decisão envolver questões ligadas à dimensão afetiva da personalidade ou quando envolver a privacidade do agente, o peso da restrição a autonomia privada deve ser maior. Quando o atingido não participa do ato gerador da lesão ao seu direito fundamental, está em jogo apenas autonomia privada da outra parte, sendo atribuído à outra parte, uma autonomia privada menor. Ao contrário, quando a vítima empresta seu consentimento ao ato, tornam-se necessário considerar a autonomia de ambas as partes. Por mais livre que seja o agente a ordem jurídica não pode permitir lesões ao núcleo fundamental da pessoa humana, sendo sua renúncia inaceitável. Maria Celina (2007, p.106) acrescenta que toda situação subjetiva somente recebe tutela do ordenamento jurídico quando estiver em conformidade com o poder de vontade do titular, e em sintonia com o interesse social. Pietro Perlingieri (2007, p. 100) esclarece sobre os efeitos diretos e reflexos de um ato. Direto não é apenas aquele efeito essencial ou acessório produzido imediatamente, mas também aquele que se produz em forma diferida, desde que encontre sua causa produtiva diretamente no fato valorado. Existem ainda os efeitos relacionados ao acordo somente por via reflexa. O efeito jurídico é um dever-ser. Dado um fato relevante juridicamente nasce uma obrigação determinada pelo direito. 6. O dano moral e as responsabilidades civis Para Maria Celina com o advento da Constituição de 1988 fixou-se a prioridade da dignidade da pessoa humana e em matéria de responsabilidade civil, tornou-se plenamente justificada a mudança de foco que em lugar da conduta culposa ou dolosa do agente, passou a enfatizar a proteção da vítima de dano injusto (2007, p.28). Os critérios adotados para a avaliação do dano têm sido reiterados em acórdãos do STJ. O sentimento de dor, causado injustamente a alguém, o vexame, a humilhação que interfere intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflição, angústia e desequilíbrio emocional. As dificuldades essencialmente teóricas nesta matéria não são menos relevantes. Infelizmente por questões de espaço referente a um artigo não se poderá abordar a questão do dano e da responsabilidade advinda do dano neste trabalho, limitar-se-á a estabelecer noções gerais. As novas técnicas de manipulações genéticas pela reprodução assistida configuram uma situação cujos limites não poderão ser decididos internamente, estabelecidos pelos biólogos, físicos, médicos ou cientistas, mas deverão ser resultantes de escolhas ético-político-jurídicas da sociedade. Após os avanços científicos as técnicas de manipulação genética proporcionaram a garantia da sobrevivência do ser humano em níveis nunca antes alcançados, entretanto, abandonou-se a busca do conhecimento pelo prazer da produção benéfica para buscar o conhecimento para dominação dos outros seres humanos. Luciano Dalvi (2008, p. 31) declara que toda inovação na ciência deve guarnecer de uma preocupação e responsabilidade social da utilização de informações genéticas na sociedade, pois o direito à intimidade genética é uma das espécies consagradas no elenco dos direitos da personalidade. As situações existenciais a serem tuteladas se exprimem não somente em termos de direitos subjetivos, mas também em termos de deveres, responsabilidades. Como o dano moral tem como causa a injusta violação da situação jurídica subjetiva extrapatrimonial protegida pelo ordenamento jurídico, por meio da cláusula geral da personalidade, decorrente do princípio fundante da dignidade humana, não há porque se ter dúvidas sobre a responsabilidade dos envolvidos na reprodução assistida. A lesão a qualquer dos aspectos da personalidade gera dano moral, especialmente, em caso de violação dos direitos de acesso a sua identidade genética, deveres de assistência, alimentos, além de danos ao estado de bem-estar psicofísico e outros decorrentes deste tipo de relação. O exame do DNA revolucionou a ciência e fez repercussão no mundo jurídico. Ele confere 99,99% de certeza sobre a paternidade e isso se deve ao fato de que cada indivíduo possui única unidade biológica sendo metade dela oriunda do pai biológico e a outra metade da mãe biológica. Daí porque nos dias atuais se poder conferir a paternidade biológica a alguém com absoluta certeza de não está realizando nenhuma injustiça no tocante a responsabilidades que daí decorre (BAHENA, 2008, p.62). Segundo Pietro Perlingieri (2007, p. 177- 178) o menor tem direito de conhecer suas próprias origens não somente genéticas, mas também culturais e sociais. O patrimônio genético não pode ser totalmente insensível no seu futuro às condições de vida nas quais a pessoa opera. Conhecê-lo significa não apenas conhecer o incesto, possibilitar núpcias entre parentes, mas, responsavelmente, estabelecer uma relação entre o titular do patrimônio genético e quem nasce. O autor pensa na possibilidade de um especial tipo de filiação natural para aqueles sujeitos nascidos mediante o emprego da técnica de inseminação artificial. De forma que, as conseqüências deste fato, não podem ser ignoradas pelo jurista de modo a não prejudicar o nascido, principalmente quando houver uma necessidade terapêutica como a limitação física ou psíquica eliminável e que condicione o pleno desenvolvimento da pessoa. Nosso Código Civil em seu art. 12 assegura àquele que se sentir lesado ou ameaçado em seus direitos de personalidade exija que cesse a lesão ou a ameaça, assim como reclamar indenização pelos danos sofridos. Dentre as responsabilidades dos pais, segundo nossa ordem jurídica, estão à criação e educação dos filhos (art. 1.634 do CC/2002), o dever de sustento, guarda e educação (art. 22 do ECA) além do reconhecimento como filho, que poderá ser feita de qualquer forma admitida pelo direito, antes de seu nascimento ou depois de sua morte se deixar descendentes. Como a dignidade humana, a igualdade, identidade genética e a cláusula geral de personalidade são direitos reconhecidos a todos, sem nenhuma distinção relativa ao tipo de filiação, entendo que em caso de reprodução assistida poderá haver um dano moral que atinge a personalidade dos filhos nascidos nesta condição. É possível ao juiz, depois de identificado o pai biológico, responsabilizá-lo quando faltar com seus deveres paternos, causando algum tipo de dor ou sofrimento grave na personalidade de seu descendente, especialmente em situações aonde os materiais genéticos sejam imprescindíveis a sua integridade psicofísica e o desenvolvimento de sua personalidade. Segundo Capelo de Sousa (1995, p. 222) a tutela do bem jurídico da integridade corporal impõe não apenas a deveres negativos de abstenção, mas também, em certas hipóteses resultantes da lei ou de negócio jurídico, deveres positivos de praticar atos de auxilio, cuja omissão origina responsabilidade civil. O direito de autodeterminação, nestes casos, cede face aos interesses sociais preponderantes sujeitando-os a responsabilidade civil. O referido autor (SOUSA, 1995, p.444-446) ao discorrer sobre fatos com riscos esclarece que os fatos jurídicos extranegociais ofensivos da personalidade imputáveis a uma pessoa pelo fato dela ter posto em ação, para seu benefício, certas forças que são fontes de risco e de potenciais danos para a personalidade de outrem, impõe àquele que suporte os efeitos prejudiciais de seu emprego. Desta forma, baseados no risco, em virtude, simplesmente de danos resultantes de determinadas intervenções lícitas na esfera jurídica de outra pessoa, com sacrifício de um próprio direito de personalidade do sujeito causador do dano, por uma exigência de justiça, permitir-se-ia tal intervenção. Atendendo-se ao interesse predominante de um particular ou da coletividade, autoriza-se o lesado a receber indenização pelos prejuízos sofridos. 7. Análise da jurisprudência brasileira no tocante ao direito do ser humano de conhecer suas origens Segundo a jurisprudência dos nossos tribunais[3] especialmente o STF vem entendendo que a constituição assegura a criança o direito a dignidade, ao respeito e a convivência familiar o que pressupõe reconhecer seu legítimo direito de saber a verdade sobre sua paternidade, decorrência lógica do direito à filiação. O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria. O direito a intimidade não pode consagrar a irresponsabilidade paterna, de forma a inviabilizar a imposição ao pai biológico dos deveres resultantes de uma conduta volitiva e passível de gerar vínculos familiares. Essa garantia encontra limites no direito da criança e do Estado em ver reconhecida, se for o caso, a paternidade. Nossos tribunais[4] também têm entendido que não se deve impedir uma pessoa qualquer que seja sua história de vida, o direito de ser reconhecido seu estado de filiação, porque subjaz a necessidade psicológica do conhecimento de sua verdade biológica, que deve ser respeitada. Segundo o julgamento do Recurso especial 813604 do STJ O art. 41 do ECA ao estabelecer que a adoção desliga o adotado de qualquer vínculo com pais ou parentes, por certo que não tem a pretensão de extinguir os laços naturais, de sangue, que perduram por expressa previsão legal no que concerne aos impedimentos matrimoniais demonstrando assim, que algum interesse jurídico subjaz. O art. 27 do ECA não deve alcançar apenas aqueles que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos, de cunho marcadamente indisponível e de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o direito de reconhecimento do estado de filiação. No julgamento do recurso 833712 o STJ declarou: “Caracteriza violação ao princípio da dignidade humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica.” Mesmo que tenha sido adotado e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito de tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso a sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento, devendo prevalecer o direito ao reconhecimento do vínculo biológico.     Já no julgamento do recurso especial 878941 o STJ reconheceu que aquele tribunal vem dando prioridade ao critério biológico para reconhecimento da filiação nas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou aonde ela nunca existiu. CONCLUSÃO                                      O presente trabalho procurou ocupar-se da problemática que deverá surgir, daqui a alguns anos, sobre questões referentes à novas técnicas de reprodução assistida, principalmente utilização de inseminação artificial heteróloga, forma de RA em que os materiais genéticos são manipulados sem o conhecimento prévio de seus titulares, no que diz respeito à forma de como esses materiais serão empregados por terceiros que tenham interesse na reprodução humana. Tivemos a preocupação de imaginar situações de difícil solução envolvendo de um lado, a autonomia privada do cidadão que doa seu sêmen para os diversos fins admitidos pelo direito, especialmente por meio da biotecnologia e o direito de conhecer a paternidade biológica do outro, além de analisar as relações sócio-afetivas. A mais recente legislação que trata do assunto – Lei de Biossegurança (11.105/2005) – que permite a manipulação de materiais genéticos para pesquisa científica com células-tronco, é mais um meio de que dispõem os cientistas para praticar os mais diversos manuseios de ditos materiais genéticos. Entretanto, não podemos concordar com a utilização destas técnicas de forma indiscriminada, violando direitos do seres humanos resultantes de tantos anos de luta e sofrimento para serem, um dia reconhecidos, como direitos fundamentais, constitucionais, direitos humanos, internacionais, inerentes a todos os seres humanos, simplesmente pelo fato de pertencerem à raça humana, como são o direito a dignidade humana e o direito de igualdade. No que toca a filiação, estes axiomas constitucionais se coadunam perfeitamente com a sistemática da interpretação constitucional brasileira. Não se pode admitir que a liberdade humana e sua respectiva autonomia sejam utilizadas de forma irresponsável. Quando a liberdade humana viola um bem maior, como a vida humana, sua tutela deve ser atenuada. Em especial, quando viola um direito de uma pessoa que não teve a oportunidade de consentir com a realização de um ato que produziu efeitos jurídicos em sua vida, direitos esses reconhecidos aos seus semelhantes como o são o direito à vida, ao nome, a integridade psicofísica, identidade genética, o desenvolvimento da personalidade, dentre outros.                                          A análise dogmática do objeto e seu âmbito de proteção nos mostra claramente uma relação de poder versus sujeição, ou ainda de poder versus subordinação, entre os particulares detentores de direitos fundamentais. Nesses casos, há a necessidade de formar um juízo sobre a qualidade do consentimento do particular cujo direito fundamental foi afetado, demonstrando uma clara desigualdade fática dos envolvidos. Por todo o exposto, entendo que a melhor solução é aquela que considera a situação de desigualdade fática dos particulares detentores de direitos fundamentais ora conflitantes, no sentido de dar precedência ao direito fundamental individual de conteúdo pessoal em face da autonomia privada.                                               Esse direito deve ser tutelado como o mínimo que a pessoa possui em relação aos seus laços familiares. Considero que nossos tribunais têm decidido acertadamente quando dão prioridade ao critério biológico. Deve-se igualmente responsabilizar aqueles que se negam em reconhecer como seus, os filhos advindos destas técnicas, pois tais crianças não pediram para nascer, ao contrário, são frutos de decisões estranhas a sua própria vontade. Se não se pode fazer descriminações ao estado de filiação em outras circunstâncias, então não se deve permitir tal prática no que diz respeito à reprodução assistida, situação fática que de antemão traduz a desigualdade. O dever dos aplicadores e intérpretes constitucionais é o de, antes de mais nada, assegurar a dignidade humana e a igualdade entre os cidadãos brasileiros.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/efeitos-da-reproducao-assistida-nos-direitos-da-personalidade/
As pesquisas genéticas e suas implicações jurídicas
O Rápido desenvolvimento científico nos campos da manipulação celular e da engenharia genética, tem proporcionado à humanidade, um conjunto de possibilidades verdadeiramente surpreendentes. O tratamento de doenças degenerativas, a produção de alimentos mais nutritivos e de menor custo, o uso dos conhecimentos genéticos nas práticas forenses e o aprimoramento das técnicas de reprodução assistida, são apenas alguns dos muitos exemplos dos benefícios hoje proporcionados por este desenvolvimento. No entanto, paralelo a esta evolução, surgem novos dilemas que têm desafiado a ética, a moral e especialmente o Direito. O renascimento da eugenia, a possibilidade da clonagem de seres humanos e os limites que podem ou devem ser impostos às pesquisas biotecnológicas, são alguns dos dilemas que hoje são enfrentados pela justiça, que se depara com inúmeros casos concretos, sem precedência no passado, e tem como única “arma” uma legislação que tem dificuldades em acompanhar a já citada evolução. As ciências jurídicas também são desafiadas, primeiro pela necessidade de um maior aprimoramento de suas técnicas e métodos de estudo e pesquisa, depois pela sua busca de uma maior interligação com os demais ramos do conhecimento humano, especialmente os que lidam com as ciências biológicas. Pois inevitavelmente surgirão cada vez mais dilemas diários, envolvendo inúmeros institutos jurídicos, que deverão corretamente ser adequados às novas realidades vivenciadas pela Sociedade como um todo. Não obstante, como pode ser comprovado, a problemática da manipulação celular e os crioconservados, e sua vinculação ao Direito, tem situado os juristas num terreno delicado, uma vez que os parâmetros de atuação começam a ser definidos e respostas urgentes devem ser dadas às indagações que emergem com o passar do tempo. Conclui-se então que os temas relacionados ao Biodireito são prioritários entre os demais ramos das ciências jurídicas e certamente ocuparã o boa parte das reflexões e preocupações do mundo jurídico como um todo.
Biodireito
INTRODUÇÃO Diante de um tema tão dinâmico e atual como o que apresentado, é interesse deste trabalho, lançar em debate[1], de forma singela, porém responsável, alguns tópicos referentes às pesquisas genéticas e suas aplicações jurídicas. Certamente não é pretensão do mesmo esgotar todo o assunto, mas seu objetivo é contribuir como mais um agente esclarecedor e transformador da sociedade. Obviamente alguns termos exclusivos das ciências biológicas, por necessidade, serão apresentados e aparentemente de início as questões jurídicas fiquem apenas tacitamente enfocadas. Contudo no desenrolar do mesmo os enfoques jurídicos tornar-se-ão mais expressos, o que levará o leitor a entender o quão é necessário uma interação das ciências jurídicas com as demais ciências, principalmente hoje com os novos desafios que surgem devido ao constante progresso científico e suas implicações no cotidiano da sociedade. 1- Preliminares Sobre as Pesquisas Genéticas A partir de MENDEL[2], o mundo científico começou a desvendar os segredos da transmissão dos caracteres hereditários. No passado, idéias pré-concebidas e desvirtuadas de qualquer comprovação científica, levaram à sustentação de falsas ‘teorias’, que durante muito tempo, foram tidas como verdades absolutas. Hipóteses como a PROGÊNESE[3] ou pré-formação, que perdurou até o século XVIII, eram difundidas amplamente entre intelectuais e cientistas. Não obstante, novas técnicas laboratoriais e o aperfeiçoamento de instrumentos como o microscópio, proporcionaram o desvelamento de segredos intracelulares, e conseqüentemente, a queda de falsos ensinamentos.   Nos dias atuais, as técnicas de estudo e manipulação genética, tem alcançado uma sofisticação antes jamais imaginada[4]. Expressões como ‘alimentos transgênicos’, seres ‘crio conservados’, ‘clones’, entre outras tantas, têm se tornado rotineiras. E, dos simples trabalhos com ervilhas de Mendel, chega-se hoje à sofisticada manipulação cromossômica. Diante disto, um leque de grandes oportunidades se abre, principalmente nos campos da medicina e da produção agro-industrial. No primeiro pela possibilidade real de prevenção, tratamento e até mesmo cura para portadores de doenças congênitas, ou de vítimas de acidentes, e no segundo pelo alargamento da produtividade e da busca por produtos de melhor qualidade para o consumo. Contudo, quanto mais a ciência avança nos estudos da manipulação genética, mais conflitos éticos e jurídicos surgem. É bem verdade que o desenvolvimento científico é inevitável. Jamais se poderia imaginar a sociedade atual desprovida de muitos dos recursos tecnológicos que lhes são disponíveis atualmente. Também é verdade que muitos desses recursos causaram celeumas nos períodos de suas descobertas e implementações. A história é testemunha dos debates acalorados que surgem simultaneamente a cada nova descoberta científica que aflora. COPÉRNICO[5], por exemplo, chegou a ter seus trabalhos sobre os princípios da ordem dos planetas do sistema solar, condenados pelas autoridades eclesiásticas de sua época. GALILEU[6], para também não ser condenado, teve que nega-los diante dos tribunais da inquisição. E muitas teorias científicas do passado foram condenadas e associadas às práticas de bruxaria por parte de autoridades civis e eclesiásticas. Com o desenvolvimento do pensamento humano atual, é inadmissível que voltem a ser cometidos tais erros. Mas também não se pode deixar fora de discussão temas tão relevantes quanto este, principalmente pelas grandes implicações éticas, morais e principalmente jurídicas que tem surgido e inevitavelmente surgirão com o passar dos anos. A sociedade progride, evolui, isto é um fato. E, o Direito tem que se fazer presente diante das inovações que emergem, como bem observa VENOSA: “Novos temas estão hoje a desafiar o legislador, como as inseminações e fertilizações artificiais, os úteros de aluguel, as cirurgias de mudança de sexo, a clonagem de células e de pessoas etc. A ciência evolui com rapidez e por saltos e hoje se esperam respostas mais rápidas do Direito, o que não ocorria no passado, quando as alterações eram quase exclusivamente de ordem sociológica, e, portanto, gradativas.”[7] 2- O Domínio Atual dos Conhecimentos Genéticos. Em sua obra Os Fundamentos do Marxismo-Leninismo, G. Chakhnazárov faz uma interessante análise sobre as profundas mudanças proporcionadas na vida do gênero humano, no século XX, graças aos avanços científicos de então. Afirma ele que cada campo do conhecimento humano definiu de seu modo o século passado, embasado naquilo que foi mais importante com relação ao progresso da ciência em sua área. Afirma o referido autor que: “Os físicos chamaram-lhe o século da energia atômica; Os matemáticos século dos computadores; Os químicos século dos plásticos; Os astrônomos século dos vôos cósmicos. E todos estes têm a sua justificação(…).”[8] Talvez, diante do desenvolvimento atual dos conhecimentos que envolvem a Biologia Molecular e suas implicações sociais, fosse possível afirmar que o século XXI, pelo menos em seu princípio, pudesse ser denominado como o século dos desafios do Direito frente ao desenvolvimento biotecnológico. Pois a sociedade presencia um desenvolvimento científico tão grande nesta área ao ponto de hoje ter-se a possibilidade de se manipular as minúsculas estruturas que formam o cariótipo[9] das espécies vivas, e com isso fazer surgir inovações extraordinárias nos campos da agricultura e pecuária e da medicina. Na medicina, por exemplo, as possibilidades são incontáveis. É grandioso o número de famílias que sofrem por terem entre si um ente querido portador de alguma doença congênita grave, e o estudo e o domínio das técnicas de manipulação genética abre a possibilidade real de tratamento e cura para tais doenças. Além disso, os testes genéticos são hoje, uma grande arma no diagnóstico e prevenção de doenças que poderão ser desenvolvidas por um indivíduo no decorrer de sua vida. O Câncer, por exemplo, é uma delas, e, como é sabido, a melhor ‘arma’ que a Medicina dispõe para o combate desta patologia é a prevenção. O teste genético possibilita um ganho de tempo, e acredita-se, que com o aprimoramento de suas técnicas e procedimentos chegar-se-á à possibilidade de se prever, quem sabe, até mesmo a época em que determinado indivíduo começará a desenvolvê-lo. Certamente que este conjunto de inovações é de grande valia para o desenvolvimento da sociedade, e sem dúvida alguma, é fruto do trabalho contínuo de grandes mentes que deixaram e têm deixado suas contribuições ao longo de tantas gerações. Não há dúvida que muitas outras novidades surgirão ainda e o mundo testemunhará avanços e prodígios nunca imaginados. Mas embora haja concordância da necessidade de tais avanços, não se pode jamais se esquecer da necessidade maior que é o controle jurídico sobre os mesmos resguardando assim o bem estar da sociedade como um todo. 3- O Uso da Genética na Elucidação de Casos Complexos Benefício a ser destacado, proporcionado pelo desenvolvimento das técnicas de manipulação celular e genética, é o que se refere, à elucidação de dilemas relacionados à justiça. Com os avanços das pesquisas genéticas chega-se hoje à possibilidade de desvelamento de interessantes casos, que envolvem o Direito em grande parte de seus ramos. A partir de agora, serão apresentados alguns exemplos, de como a genética pode ser utilizada na elucidação de dilemas jurídicos, dos quais alguns de grande complexidade. 3.1 O caso Jane O intrigante[10] caso Jane aconteceu na cidade de Boston, Massachusetts nos Estados Unidos da América. Uma mulher casada, precisando de um transplante de rins, junto com sua família, se submeteu a alguns testes para descobrir qual de seus parentes seria o melhor doador. Ao receber os resultados dos exames, ela ficou surpresa quanto ao diagnóstico que afirmava que dois dos seus três filhos, apesar de serem de seu marido, não poderiam ser seus[11]. Após estudos mais profundos, foi descoberto algo surpreendente, até de certo ponto bizarro, outrora inimaginável: “Levou dois anos até que a Dra.Kruskall e sua equipe desvendassem o quebra cabeças. Eles descobriram que Jane era uma quimera, uma mistura de duas pessoas – duas gêmeas não idênticas – que se haviam fundido no útero de sua mãe, originando uma só pessoa”.[12] Neste caso se outra tivesse sido a forma causal[13] para o descobrimento de incompatibilidade genética entre a referida mulher e dois de seus filhos, poder-se-iam ter sido gerados inúmeros litígios entre ela e o hospital onde nasceram as crianças, que possivelmente seria acionado judicialmente, acusado, por exemplo, de troca de bebês na maternidade, ou quem sabe, dúvidas com relação à fidelidade de seu marido poderiam vir a tona, mas, graças aos atuais conhecimentos científicos este caso teve solução justa. 3.2 O Caso Chatman Outro caso[14] que comprova a atual importância dos conhecimentos genéticos para as práticas forenses, pode ser observado em outro episódio, ocorrido no Texas, Estados Unidos da América. Charles Chatman passou vinte e sete anos de sua vida preso, acusado de estuprar uma mulher de sua mesma idade e que morava próximo de sua residência. Chatman, além de ter o mesmo tipo de sangue do verdadeiro estuprador, foi reconhecido como tal pela própria vítima. Graças a intervenção da ONG INNOCENCE PROJECT, que já conseguiu libertar grande número de inocentes condenados desde o ano de dois mil e um, o caso foi reaberto e desta feita, testes de DNA foram realizados, comprovando assim que Chatman e o verdadeiro estuprador não poderiam ser a mesma pessoa. Infelizmente a justiça por diversas vezes é tardia. Um inocente, passou vinte e sete anos recluso, por algo que não cometeu. Certamente lhe sobrevieram muitas angústias, não apenas em decorrência do opressor tratamento dado pelo rigoroso sistema prisional norte-americano, mas muito mais por ter sido acusado, julgado e condenado por um crime que não cometeu. Os exames de DNA têm sido hoje os maiores responsáveis por provar a inocência de presos nos Estados Unidos da América. É importante salientar que estas são apenas algumas das muitas situações intrigantes que têm surgido diante dos olhares da justiça. Poder-se-iam aqui terem sido citados muitos outros casos que multiplicariam consideravelmente as linhas deste tópico. Certamente os meios de comunicação ainda noticiarão casos ainda mais intrigantes do que estes que aqui foram apresentados, os quais aguçarão as mentes de biólogos e de juristas, e exigirão ainda mais destes últimos o aprimoramento salutar de conhecimentos biotecnológicos para a aplicação da justiça em cada caso concreto. 3.3 O DNA Utilizado na Identificação de Cadáveres Assim como a existência legal de uma pessoa é definida pelo nascimento com vida e seu respectivo registro civil, a pessoa deixa de existir legalmente, com o devido assento de óbito em cartório. Por exigência legal, só será emitida a declaração de óbito [15]de um indivíduo se ele for perfeitamente identificado. Há casos em que esta identificação é extremamente dificultosa, acarretando com isso uma demora na emissão da certidão de óbito (muitas vezes fazendo-se necessário o assento de óbito por via judicial, devido à inviabilidade do mesmo administrativamente) causando aos familiares inúmeros transtornos de ordem legal, emocional, econômica e social, tais como a impossibilidade do ato inumatório, problemas com a sucessão, etc. Além disso, a própria “persecução penal requer a individualização da vítima de homicídio, sem a qual não prospera o inquérito ou o processo criminal, acarretando a sensação de morosidade nos processos de apuração e/ou julgamento[16]”.  Acidentes envolvendo aeronaves, por exemplo, são extremamente trágicos, pois além de serem letais para a quase totalidade de suas vítimas, deixam-nas disformes e na maioria das vezes irreconhecíveis. No passado, para este e para os demais tipos de acidentes, a observação de familiares, os processos de verificação de arcada dentária e as impressões digitais, eram os principais meios para a identificação dos cadáveres. Mas, por diversas vezes, tais procedimentos eram insuficientes[17]. Com o advento da identificação de pessoas pelo DNA alcança-se hoje um grau de segurança nunca antes galgado pelos antigos procedimentos. “A análise do padrão eletroforético de fragmentos de DNA, originados pelo corte com enzimas de restrição, é hoje o método mais seguro para identificar pessoas, sendo largamente utilizado em investigações policiais e em processos judiciais. A comprovação de que era possível caracterizar moléculas de DNA por meio do padrão de fragmentos gerados pela digestão com endonucleases de restrição levou a se pensar no emprego dessa metodologia para identificar pessoas. O raciocínio foi o seguinte: como as pessoas diferem entre si quanto ao material genético que possuem (com exceção dos gêmeos univitelinos), a digestão do DNA de uma pessoa com uma endonuclease de restrição produzirá um padrão de fragmentos típicos dela, comparável a um ‘código de barras’ ou uma ‘impressão digital’ molecular[18].” A importância do pleno reconhecimento de um falecido é incontestável, e muitas vezes imprescindível[19], pois como já aludido, envolve primeiramente questões humanitárias, no que tange em se dar o direito legítimo dos parentes do falecido de sepultarem o cadáver da pessoa certa, e depois por questões legais, pois com a comprovação da morte do de cujus , dá-se início a inúmeros ordenamentos jurídicos, principalmente no campo da Responsabilidade Civil e no Direito Sucessório. Com relação ao Direito sucessório, destaca Venosa: “Somente a morte pode dar margem à sucessão. A morte física, o desaparecimento da vida do titular. O direito moderno já não conhece a morte civil. Como as conseqüências da morte são inúmeras, a lei fixa preceitos para a determinação do momento da morte, bem como sua prova (grifo nosso)”.[20] Concluindo, mais uma vez se observa o valor dos testes de DNA na identificação dos falecidos como meio de se chegar a aplicação justa do ordenamento jurídico. 4- Os Testes de Investigação de Paternidade No sistema do Código Civil de 1916 a presunção de paternidade era bastante rigorosa, uma vez que se o casal convivesse debaixo do mesmo teto e o marido não estivesse impossibilitado de coabitar devido à impotência generandi ou esterilidade absoluta, não seria admitida a negação da mesma. Com o advento do Código Civil de 2002, várias limitações à contestação da paternidade foram sanadas, embora que a ação negatória tornou-se imprescindível, como bem expressa o artigo 1601[21] do referido diploma. Também conhecida como ação negatória de paternidade, ou ação de contestação de paternidade, é de absoluta titularidade do marido ou companheiro, embora, como alude o referido artigo em seu parágrafo único, caso o cônjuge masculino vier a falecer durante o período de tramitação da referida ação, tal legitimidade passará a seus herdeiros. Grande parte da Doutrina, incluindo Pontes de Miranda, [22] também admite a possibilidade de iniciativa da ação de contestação de paternidade por parte do curador, representando o pai interdito por incapacidade absoluta. Também o filho, não reconhecido voluntariamente, pode obter, por meio da ação de investigação de paternidade o reconhecimento forçado ou coativo de sua verdadeira filiação. No entanto, durante muito tempo, as provas apresentadas nos litígios envolvendo confirmação ou não da paternidade se resumiam a depoimentos testemunhais e quando muito aos exames de fatores sangüíneos. A simples possibilidade ou não de paternidade apresentada pelos antigos exames nunca trouxe a segurança tão almejada pelo judiciário, o que levantou inúmeras dúvidas e incertezas e por que não dizer, injustiças. Com o advento do exame de DNA, foram lançadas por terra todas as antigas presunções. A certeza adquirida pelos referidos exames é praticamente total. Hoje é possível afirmar-se a paternidade com um grau praticamente de absoluta certeza. É o que mais bem coloca Gonçalves: “Com o exame de DNA é possível afirmar-se a paternidade com um grau praticamente absoluto de certeza. A incerteza imposta aos autos pela exceção oposta pelo réu já não conduz, necessariamente à improcedência da ação, pois mesmo comprovada o plurium concubentium, tal exame demonstrará, com elevado grau de certeza, quem é o verdadeiro pai”.[23]  Logo, mesmo com algumas objeções por parte de alguns autores, não se pode negar que os exames de DNA, como são popularmente conhecidos, são extraordinários instrumentos na determinação de filiação por parte da justiça. 4.1 Intrigante Caso de Investigação de Paternidade Recentemente a imprensa noticiou um caso[24] envolvendo questões relativas à investigação de paternidade, que só puderam ser elucidadas graças aos já referidos testes genéticos de paternidade. Em Riacho de Santana, pequena cidade do sertão baiano, em decorrência de um triângulo amoroso, que ali foi vivido, uma mulher engravidou e deu à luz a um casal de gêmeos fraternos, mas de pais distintos. Embora se trate de um caso raro, dificilmente registrado pela literatura médica, teoricamente sua possibilidade é bastante real. Gêmeos fraternos, como se sabe, são resultantes de óvulos distintos, frutos de ovulações atípicas, quando em vez de um óvulo, dois ou mais são liberados pelos ovários durante o período de fertilidade feminina. E quando isto ocorre, tendo a mulher relações sexuais, o surgimento dos gêmeos bi vitelinos será uma possibilidade. No caso em questão, a mulher personagem desta narrativa, teve relações sexuais com dois parceiros, e devido a isto, cada um de seus óvulos foi fecundado por espermatozóides de cada um deles, dando origem, a gêmeos de pais diversos. Devido a este fato, diversos problemas jurídicos afloraram, e soluções injustas poderiam ter sido tomadas caso inexistissem os atuais testes de DNA com suas conclusões quase infalíveis. Talvez à apenas um dos genitores em questão fosse imposta a responsabilidade de provimento dos alimentos necessários às duas crianças. Ora pela antiga forma de presunção, ambas as crianças seriam tidas como filhas do marido da mulher em questão. Talvez no futuro parte de sua herança tivesse de ser dividida com alguém que não fosse fruto de suas entranhas, enquanto o verdadeiro genitor ficaria totalmente imune aos problemas e dilemas aqui relacionados. Felizmente neste caso, a justiça prevaleceu, e cada indivíduo ficou responsabilizado por seu filho. Com a popularização dos exames de DNA, e com o maior acesso das camadas mais humildes da sociedade aos mesmos, as dúvidas com relação à paternidade têm se tornado um problema do passado. No entanto, a aplicação dos mesmos, em alguns casos, tem sido questionada. É o que observa Amabis e Martho:[25] “O teste de paternidade foi um dos principais fatores de popularização da sigla DNA, mas hoje já se questiona se esse tipo de exame deve ser realizado livremente pelas pessoas. Em alguns países a realização de tais exames sem solicitação explícita da justiça está sendo proibida com a justificativa de que os danos psicológicos que os resultados de tais testes podem gerar aos envolvidos superam, em muitos casos, os benefícios que eles possam trazer.” Mas mesmo com importantes observações, como esta que acima foi feita, por estes respeitáveis autores, a de se concluir, que a aplicação dos testes de DNA trouxe para o instituto probatório jurídico, nas questões que envolvem reconhecimento de filiação e paternidade, um elevado grau de certeza que não pode ser descartado pelo poder judiciário. 5- Os Testes Genéticos: Problemas Legais e Éticos No estado atual do desenvolvimento das pesquisas genéticas, submeter-se a testes para averiguação de propensão a desenvolvimento de determinadas doenças passou a ser uma possibilidade real. Se de um lado os testes genéticos podem trazer benefícios àqueles que a eles se submetem (pois sabendo da pré-disposição à determinada doença o indivíduo tomaria, pelo menos em tese, os devidos cuidados para evitá-la), por outro lado diversos problemas podem surgir para àqueles que receberem diagnóstico positivo a alguma patologia. Ora nem todas as pessoas estão aptas a receber um resultado indicativo da presença de um gene em seu código genético, pré-determinante de uma doença grave futura. Muitas pessoas ao terem tal ciência adentram em estado de profunda depressão e ansiedade e, os efeitos pretendidos pelos referidos testes, que eram de levar o indivíduo a tomar atitudes positivas para busca da cura, dão lugar a uma aflição que pode levá-lo a buscar consolo até em meios ilícitos como uso de drogas e entorpecentes. Outra questão que deve ser aludida é com relação às questões jurídicas que podem vir aflorar com relação aos referidos exames. Há alguns anos, uma cidadã norte-americana, ao contratar um seguro de saúde, teve que se submeter a um teste genético. O exame diagnosticou que ela era portadora de um gene recessivo para fibrose cística, (uma doença que ataca os pulmões e que só se manifesta em indivíduos homozigóticos para esta determinação genotípica, uma vez que só se apresenta na presença de dois genes ligados à anormalidade. Pode ser letal.). Apesar de o teste mostrar que a mulher em questão não desenvolveria a doença, a companhia de seguros incluiu no contrato uma abusiva cláusula excluindo a cobertura de qualquer problema respiratório, mesmo um simples resfriado, sob a alegação de haver uma possível maior suscetibilidade congênita a essas doenças. [26]Ainda nos Estados Unidos da América, tais testes já têm sido realizados por inúmeras empresas, que têm relutado em admitir em seu quadro de funcionários pessoas pré-dispostas a desenvolverem futuras doenças funcionais. O livro Mapping and Sequencing the Human Genome: Science, Ethics and Public Policy (Mapeando e seqüenciando o genoma humano: Ciência, Ética e Política Pública), [27]apresenta uma situação hipotética de como os testes genéticos poderiam ser utilizados para discriminar pessoas, principalmente nas relações de trabalho e emprego. Um personagem ficto, por nome de Nathaniel Wu, candidatou-se e foi selecionado pela Intercontinental Pharmaceutical Corporation – IPC, para se submeter a uma entrevista de seleção para um cargo em sua equipe especial de pesquisa. A Dra. Peters, chefe do comitê de pesquisa realizou uma série de entrevistas com Nathaniel e com outros candidatos bem qualificados, mas ele demonstrou ser muito mais determinado e objetivo que os demais. Além disso, Nathaniel prometia ser “o tipo de candidato com perspectiva de ter uma longa e produtiva carreira na IPC e era o tipo de pessoa que a equipe estava procurando[28]”. A IPC propunha um mega investimento no campo de pesquisa com novos medicamentos que poderiam melhorar a vida de muitas pessoas, algo para longo prazo, para talvez mais de dez anos de duração. Além disso, tais planos exigiam grandiosos recursos humanos e monetários. Entretanto, antes de recomendar Nathaniel, a Dra. Peters necessitava de uma informação adicional e o fez se submeter a exames de sangue para determinar seu perfil genético. O exame revelou que Nathaniel era portador de alelo para doença de Huntington (Coréia de Huntington), doença genética que traz degeneração progressiva de células nervosas no sistema nervoso central, e faz desenvolver graves sintomas como movimentos involuntários, espasmos, alterações de personalidade, perda de memória, comportamento quase esquizofrênico e por fim vida vegetativa e morte. Deve-se lembrar que Nathaniel não estava doente, ele apenas possuía um alelo determinante para a doença. Contudo, a regra geral, é que portadores deste tipo de alelo, desenvolvam a doença com estes graves e sérios sintomas. A Dra. Peters então passou a enfrentar um dilema de consciência. Deveria ela recomendar a contratação de Nathaniel? E se ele viesse a desenvolver os sintomas da doença, não atrapalhariam os planos da IPC? Mas por outro lado, não seria injusto descartar o nome de Nathaniel? Não seria este um caso flagrante de discriminação? Estes são dois exemplos de situações totalmente conflitantes com inúmeros princípios legais e não poucos institutos jurídicos. É o que pode ser observado no artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal de 1988, que registra “in verbis”: “Art.3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV- Promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.” Também no caput do artigo 5° do referido diploma legal, o legislador determinou, de uma forma bastante feliz, que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”. E o inciso XLI do referido artigo reza que: “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Ainda a Constituição Federal, quando a mesma relaciona os direitos dos trabalhadores enumerados no artigo 7°, determina que: “Artigo 7°. São Direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXXI – Proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.” Comentando os incisos XXXI e XXXII do artigo 7° da Constituição Federal de 1988, Saraiva faz uma importante observação, quando o mesmo declara o objetivo principal do legislador ao inserir tais dispositivos no diploma constitucional. Ele afirma: “Todos esses dispositivos giram em torno do princípio da igualdade, da igualdade de oportunidades, de que todos são iguais perante a lei. Esses incisos objetivam claramente, evitar qualquer forma de discriminação”.[29]  Por outro lado, todas as vezes em que se trabalha com dilemas relacionados a investigação genética com seres humanos, surge o problema da determinação dos limites da liberdade investigativa, em detrimento, dos direitos individuais do investigando, uma vez que os demais direitos fundamentais como o da vida, da integridade, da dignidade, entre outros, podem ser objeto de graves ofensas, é o que finalmente conclui Alexandre de Moraes: “A defesa da privacidade deve proteger o homem contra: a interferência em sua vida privada, familiar e doméstica; (…) sua colocação em perspectiva falsa; (…) a comunicação de fatos relevantes e embaraçosos relativos à sua intimidade”.[30] Logo os testes genéticos são importantes como meios de diagnóstico preventivo a doenças futuras, propiciando tratamentos precoces com resultados mais eficazes. Jamais devem tornar-se contribuintes de repressão a direitos ou promotores de desigualdade entre os cidadãos. 6- O Dilema da Manipulação Genética de Células Reprodutoras Humanas Inúmeras são as possibilidades proporcionadas pela manipulação cromossômica celular. O Cariótipo humano tem sido cada vez mais desvendado e o seu total desvelamento é uma questão de tempo. Há quem diga que no futuro não muito distante, casais chegarão às clínicas especializadas e após a coleta de seus gametas (espermatozóides e óvulos), poderão escolher, por exemplo, a altura, o sexo, a cor, entre outras características fenotípicas, e/ou poderão modificar informações gênicas de doenças hereditárias (como a hemofilia, por exemplo) que possivelmente fossem desenvolvidas por seus filhos. Tais possibilidades podem, à primeira vista, trazer fascínio e deslumbre. Poder-se-ia imaginar um “mundo perfeito”, repleto de crianças imunes a diversas doenças congênitas, crescendo fortes e robustas. Mulheres e homens que jamais desenvolveriam os diversos tipos de câncer que hoje lhes são peculiares. E problemas como o diabetes e até mesmo a obesidade se tornarem fatos históricos do passado. Contudo, não se deve esquecer que tais pensamentos estiveram encravados nas mentes ardilosas e perversas dos defensores da eugenia[31] nazista. Em nome da formação de uma “raça humana pura”, formada por homens e mulheres de “corpos perfeitos”, “saber superior”, atrocidades das mais terríveis foram cometidas. Homens, mulheres, velhos, jovens e até mesmo crianças foram cruelmente trucidados nos tenebrosos campos de concentração. Milhares de portadores de necessidades especiais, indesejados por aquela macabra sociedade, foram eliminados. E infelizmente, sementes destas atrocidades, plantadas no passado, ainda hoje germinam, e em diversas partes do mundo brotam grupos de extrema direita, que por traz de um cego nacionalismo, escondem na verdade pensamentos altamente preconceituosos e de segregação racial. É o que bem observa Sporleder de Souza: “Os descobrimentos modernos sobre o genoma humano e a ampliação das técnicas de engenharia genética e reprodução assistida estão potencializando a volta do pensamento eugênico. É sabido que, além de contribuir para o futuro, erradicando defeitos genéticos, essas tecnologias podem trazer efeitos negativos ligados a vários motivos eugênicos (positivos ou negativos) que despertam receios, levando especialistas de diferentes países a refuta-las, pois estas podem interferir, sobretudo, no patrimônio genético da humanidade. Abrem-se as portas para a chamada eugenia. (…)pois as práticas desta ordem, além de trazer perigos gravíssimos, atentando contra novos bens jurídicos (…) podem trazer de volta os ideais que inspiraram o holocausto das experiências nazistas[32]”. Além disso, dois problemas devem ser destacados, o primeiro diz respeito a diversidade genética, pois ela é um fator preponderante para a sobrevivência de qualquer espécie e a invariabilidade genética traz a possibilidade de populações inteiras serem acometidas por epidemias, já que seriam todos imunes, mas também propensos, a desenvolverem os mesmos problemas de saúde e conseqüentemente os mesmos tipos de doenças. O segundo diz respeito à possibilidade de erros nos processos da própria manipulação, o que poderia levar-se à má formação de indivíduos com aspectos de monstros. Diante disso a Lei 11105[33] de 24 de Março de 2005 determina: “Art.6º Fica proibido: III – Engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;” E tipifica a referida ação quando culmina pena aquele que: “Art.25: Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: PENA: Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.” Contudo acredita-se que não faltarão pesquisadores que na busca de fama e prestígio, ou por motivos meramente econômicos, buscarão burlar esta norma proibitiva. Por isso a vigilância estatal sobre este tema deve ser uma constante, e se no futuro casos de manipulação genética em células reprodutoras ou embrionárias humanas tornarem-se algo rotineiro, o que talvez seja o que acontecerá, O Estado e a Sociedade deverão ficar atentos, para que a Legalidade não seja afligida. CONCLUSÃO O Rápido desenvolvimento científico nos campos da manipulação celular e da engenharia genética, tem proporcionado à humanidade, um conjunto de possibilidades verdadeiramente surpreendentes. O tratamento de doenças degenerativas, a produção de alimentos mais nutritivos e de menor custo, o uso dos conhecimentos genéticos nas práticas forenses e o aprimoramento das técnicas de reprodução assistida, são apenas alguns dos muitos exemplos dos benefícios hoje proporcionados por este desenvolvimento. No entanto, paralelo a esta evolução, surgem novos dilemas que têm desafiado a ética, a moral e especialmente o Direito. O renascimento da eugenia, a possibilidade da clonagem de seres humanos e os limites que podem ou devem ser impostos às pesquisas biotecnológicas, são alguns dos dilemas que hoje são enfrentados pela justiça, que se depara com inúmeros casos concretos, sem precedência no passado, e tem como única “arma” uma legislação que tem dificuldades em acompanhar a já citada evolução. As ciências jurídicas também são desafiadas, primeiro pela necessidade de um maior aprimoramento de suas técnicas e métodos de estudo e pesquisa, depois pela sua busca de uma maior interligação com os demais ramos do conhecimento humano, especialmente os que lidam com as ciências biológicas. Pois inevitavelmente surgirão cada vez mais dilemas diários, envolvendo inúmeros institutos jurídicos, que deverão corretamente ser adequados às novas realidades vivenciadas pela Sociedade como um todo. Não obstante, como pode ser comprovado, a problemática da manipulação celular e os crioconservados, e sua vinculação ao Direito, tem situado os juristas num terreno delicado, uma vez que os parâmetros de atuação começam a ser definidos e respostas urgentes devem ser dadas às indagações que emergem com o passar do tempo. Conclui-se então que os temas relacionados ao Biodireito são prioritários entre os demais ramos das ciências jurídicas e certamente ocuparão boa parte das reflexões e preocupações do mundo jurídico como um todo.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-65/as-pesquisas-geneticas-e-suas-implicacoes-juridicas/
Bioética, biodireito e o princípio da dignidade da pessoa humana
A aceleração do progresso científico e tecnológico nesses últimos anos tem direcionado as pessoas a se questionarem de maneira nova sobre antigas questões. Com objetivo de dirimir estes questionamentos nasceu a bioética e com ela uma disciplina nova se desenvolveu de maneira extremamente rápida. Apresenta-se como um campo norteador muito amplo, porém pouco sistematizado. Diante dessa realidade, o presente artigo inicia sua fundamentação com o tema bioética, tratando a parte conceitual, histórica, partindo à ética e moral. Em seguida, por estar diretamente interligado a bioética, parte-se para o biodireito, descrevendo conceito, histórico, importância, contextualização social e normatização jurídica. Por fim, finaliza-se o estudo tratando-se da significância do ser humano e de sua dignidade e a importância do Direito frente as inovações e pesquisas científicas.
Biodireito
INTRODUÇÃO: A bioética é uma disciplina nova, em contínuo crescimento e de grande discussão. Envolta de uma série de situações médicas, genéticas, sociais, culturais, éticas, epistemológicas, religiosas, metodológicas e científicas, apresenta-se como um campo norteador muito amplo, porém pouco sistematizado. Diante dessa realidade, o presente artigo inicia sua fundamentação com o tema bioética, tratando a parte conceitual, histórica, partindo à ética e moral. Em seguida, por estar diretamente interligado a bioética, parte-se para o biodireito, descrevendo conceito, histórico, importância, contextualização social e normatização jurídica. Por fim, finaliza-se o estudo tratando-se da significância do ser humano e de sua dignidade e a importância do Direito frente as inovações e pesquisas científicas. DESENVOLVIMENTO Bioética A aceleração do progresso científico e tecnológico nesses últimos anos tem direcionado as pessoas a se questionarem de maneira nova sobre antigas questões. Com objetivo de dirimir estes questionamentos nasceu a bioética e com ela uma disciplina nova se desenvolveu de maneira extremamente rápida.  Todavia, a “palavra” não é analisada como ciência específica, haja vista estar relacionada com diversas ciências e ser percebida de maneira diferente pelos estudiosos. [2]  A palavra bioética apareceu pela primeira vez em 1971 no título da obra de Van Rens Selaer Potter [3] (Bioetchics: bridge to the future, Prenctice Hall, Englewood Clifs, New York). Para o autor, sua finalidade era de auxiliar a humanidade no sentido de participação racional, porém, cautelosa no processo de evolução biológica e cultural. Seria, portanto, o compromisso com o equilíbrio e a preservação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta. [4] Acerca do entendimento deste autor, descreve Maria Helena Diniz que: “a bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humana, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado desconhecimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora”. [5] Com a decifração do código genético humano e os novos recursos de manipulação científica da natureza, o interesse pelo estudo deste tema acelerou bastante, isto porque o homem se viu diante de problemas imprevistos. [6] Para Pessini e Barchifontaine, a palavra “bio”, “exige que levemos seriamente em conta as disciplinas e as implicações do conhecimento científico, de modo que possamos entender as questões, perceber o que está em jogo e aprender a avaliar possíveis conseqüências das descobertas e suas aplicações”. [7] A palavra “ética”, por sua vez, “é uma tentativa para se determinar os valores fundamentais pelos quais vivemos. Quando vista num contexto social, é uma tentativa de avaliar as ações pessoais e as ações dos outros de acordo com uma determinada metodologia ou certos valores básicos”. [8] Em 1978, a mesma palavra foi definida pela Encyclopedia of Bioethics como sendo, “o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e princípios morais” [9] Na segunda edição, em 1995, passou a considerá-la não mais como valores e princípios morais, mas como:“(…) o estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado com a saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar”. [10] Segundo DIAFÉRIA, bioética é: “(…) um neologismo derivado das palavras gregas mos (vida) e ethike (ética). Pode-se defini-Ia como sendo o estudo sistematizado das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.” [11] Ou ainda, nos dizeres de Fabriz, a bioética representa um estudo acerca da conduta humana no campo da vida e da saúde humana e do perigo da interferência nesse campo pelo avanços das pesquisas biomédicas e tecnocientíficas. [12] No contexto contemporâneo, a bioética pode ser vista como uma possibilidade configuradora de um paradigma com finalidade de criar um novo discurso sobre a vida, estabelecendo uma nova ética, em resposta à dogmática do discurso científico moderno. [13] Essa nova perspectiva de ética não tem a pretensão de se colocar como detentora da verdade, mas, tem objetivo de levar em consideração os vários aspectos que se relacionam com essa complexidade gerada pela tecnologia e ciência no campo da biomedicina, entendendo-se que a variedade de idéias possa gerar saídas criativas e humanamente adequadas. [14] Biodireito Face às inovações científicas, o ser humano deixou de ser somente sujeito de direito e tornou-se objeto de manipulações. Restaram fragilizadas as antropologias que sempre serviram de parâmetro às preliminares da ética e do Direito. [15] Desta forma, “todos esses aspectos nos remetem para as relações que devem ser reavaliadas entre ciências, Estado e sociedade”,[16] pois as questões relativas à Bioética vêm eivadas de complexidade, haja vista tratarem-se de questões científicas, filosóficas, econômicas e jurídicas, da qual a interdisciplinaridade é notória.[17] Em decorrência desse desenvolvimento biotecnológico nasceu o Biodireito como o ramo do Direito que estuda, analisa e cria parâmetros legais, acerca dos assuntos relacionados a Bioética, caracterizando-se como sendo o elo de ligação entre esta e o Direito. [18] Partindo de uma conceituação didática, biodireito é: “O ramo do Direito que trata, especificamente, das relações jurídicas referentes à natureza jurídica do embrião, eutanásia, aborto, transplante de órgãos e tecidos entre seres vivos ou mortos, eugenia, genoma humano, manipulação e controle genético, com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1°, III, da Constituição Federal)”. [19] Utilizando-se dos ensinamentos de Fernandes, pode-se dizer: “Na verdade, o biodireito nada mais é do que a produção doutrinária, legislativa e judicial acerca das questões que envolvem a bioética. Vai desde o direito a um meio-ambiente sadio, passando pelas tecnologias reprodutivas, envolvendo a autorização ou negação de clonagens e transplantes, até questões mais corriqueiras e ainda mais inquietantes como a dicotomia entre a garantia constitucional do direito á saúde, a falta de leitos hospitalares e a equânime distribuição de saúde à população”.[20] Permanecendo num contexto jurídico, pode ser também que: “O Biodireito surge na esteira dos direitos fundamentais e, nesse sentido, inseparável deles. O Biodireito contém os direitos morais relacionados à vida, à dignidade e à privacidade dos indivíduos, representando a passagem do discurso ético para a ordem jurídica, não podendo, no entanto, representar “uma simples formalização jurídica de princípios estabelecidos por um grupo de sábios, ou mesmo proclamado por um legislador religioso ou moral. O Biodireito pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária, que se materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores”. [21] O Direito deve, intervir no campo das técnicas biomédicas, quer seja para legitimá-las, quer seja para regulamentar ou proibir outras. Por isso a lei é sempre invocada; “não só porque as leis servem como “meios” perante as finalidades que são os valores, mas e sobretudo porque sua ocorrência é expressão inquestionável de segurança, de limites, dos valores comuns da comunidade que sente necessidade de sua determinação via normativa, como parâmetro de conduta observável por todos. Porque o Direito procura organizar a conduta de cada um no respeito e promoção dos valores que servem de base à civilização”. [22] Convém ressaltar que o Direito, por si só, não desempenha um papel totalmente viável, é necessário a legitimidade jurídica mediatizada pelo debate com os cientistas. “O direito se constrói em relação as suas descobertas, mas também a partir dos riscos que as novas técnicas criam para a condição humana”. É da junção e cooperação destes dois mundos que se determina condutas, posturas e sanções a serem aplicadas por toda comunidade humana. [23] Bioética, Biodireito e a Dignidade da Pessoa Humana No contexto atual, a lei se revela um instrumento maleável para regular as questões relativas à Bioética. Anteriormente foi visto que ambas as disciplinas, Bioética e Biodireito, devem caminhar juntas, isto, é para que a lei possa  “interferir rapidamente, se ajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largo debate parlamentar (…), vem imantada da legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social concretizando o escopo úlitmo de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgate da dignidade humana”. [24] (grifo inexistente no original) A dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, na conformidade do art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Para Alexandre de Morais, a dignidade da pessoa humana é, “um valor espiritual  e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”. [25] Consoante salienta José Afonso da Silva, a dignidade da pessoa humana “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.[26] Com o reconhecimento da importância à dignidade humana, a bioética e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um liame com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa, dizem respeito à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade. [27] “A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnociência de manterem injustiças contra a pessoa humana sob a máscara modernizante de que buscam o progresso científico em prol a humanidade. Se em algum lugar houver qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos”. [28] Assim sendo, “intervenções científicas sobre a pessoa humana que possam atingir sua vida e a integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos”. [29] As práticas médicas e científicas, que prometem trazer grandes benefícios à humanidade, contêm riscos potenciais muito perigosos e imprevisíveis, e, por tal razão, estes profissionais devem estar atentos para que não ultrapassem os limites éticos impostos pelo respeito à pessoa humana e à sua vida, integridade e dignidade. Proteger a dignidade do homem é proteger a vida e o direito, porquanto, “o direito à vida é o fundamento de todos os direitos. A ética da vida se insere por essa via na universalidade dos valores. Quem diz dignidade humana diz justiça”.[30] CONCLUSÃO Diante das novas técnicas de engenharia genética, percebe-se que os paradigmas vigentes já não conseguem resolver os problemas sociais, sendo necessário repensar o próprio modo de entender a sociedade. Diante disto, surgiu o Biodireito, a fim de “estabelecer um liame entre Direito e Bioética na observação dos princípios orientadores para preservação da vida e o respeito do homem como pessoa”. Quando falamos ou pensamos em Ciência deve-se ter em mente que ela é como uma estrada, ou seja, temos três opções, voltar, ficar parado ou seguir em frente. Se voltarmos, significa que estamos abrindo mão de um mundo de descobertas, de desenvolvimento. Se ficarmos parados, simplesmente não corremos o “risco” de futuros danos, apenas observamos os outros países se desenvolverem, com os nomes expostos nas capas dos principais jornais, destaques nas redes mundiais de telecomunicações. Todavia, se optarmos em seguir em frente, dar um passo a favor das inovações científicas, devemos estar conscientes que nem sempre os resultados serão favoráveis ou lícitos. Por fim, independente da escolha que se faça, é um dever de todos mantermos uma luta constante em favor do respeito à dignidade humana, aos princípios e valores fundamentais previstos em nossa Carta Magna, sem acomodações e com coragem, para que haja efetividade dos direitos humanos, aproveitando-se da bioética e do biodireito, pois estes são instrumentos valiosos para a recuperação e garantia desses direitos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-64/bioetica-biodireito-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana/
Biodireito e isonomia jurídica para a natureza não humana
Este artigo tem por objetivo demonstrar que os direitos dos animais são o prolongamento lógico do reconhecimento dos direitos em geral. O reconhecimento crescente dos direitos depois dos anos 1948 lança o desafio de reverter á idéia da supremacia do homem na natureza. Neste sentido o animal não humano deve ser reconhecido em seu valor intrínseco. Apoiando-se no princípio da igualdade deve-se reconhecer aos animais não humanos a igualdade além da humanidade. A luta contra o especismo deve inaugurar uma nova era de moralidade e reflexão humana sobre a ética, a justiça e o direito. De outro lado o reconhecimento dos direitos fundamentais dos animais não humanos nos obriga a reconhecer que limites éticos devem ser levados em conta em nosso relacionamento com eles, da mesma forma que para os humanos. E que os animais tem igualmente o direito à liberdade.
Biodireito
Resumo: Este artigo tem por objetivo demonstrar que os direitos dos animais são o prolongamento lógico do reconhecimento dos direitos em geral. O reconhecimento crescente dos direitos depois dos anos 1948 lança o desafio de reverter á idéia da supremacia do homem na natureza. Neste sentido o animal não humano deve ser reconhecido em seu valor intrínseco. Apoiando-se no princípio da igualdade deve-se reconhecer aos animais não humanos a igualdade além da humanidade. A luta contra o especismo deve inaugurar uma nova era de moralidade e reflexão humana sobre a ética, a justiça e o direito. De outro lado o reconhecimento dos direitos fundamentais dos animais não humanos nos obriga a reconhecer que limites éticos devem ser levados em conta em nosso relacionamento com eles, da mesma forma que para os humanos. E que os animais tem igualmente o direito à liberdade. Palavras-chave: Direitos. Direitos dos animais. Ética e direitos dos animais. Biodireito. Princípio da igualdade. Direito à liberdade. Isonomia jurídica. Synopse: Cet article a pour but démontrer que les droits des animaux non humain sont le prolongement logique de la reconnaissance des droits en general. La reconnaissance de plus em plus des droits depuis les années 1948 lance un défi de renverser l´idée de la suprémacie d´être humain dans la nature. À ce titre l´animal non humain doit être reconnu dans sa valeur intrinsique et il faut fonder plus vite l´égalité envers tous les animaux. S´apuyant largement sur le principe d´igualité on doit reconnaître aux animaux non humain l´egalité au délà de l´humanité. La lutte contre spécisme doit inaugurer une ère nouvelle de moralité et rèfletion humaine sur la éthique, la justice et le droit. De l´autre côté la reconnaissance des droits fundamentales des animaux non humain nous oblige à reconnaître que des limites éthiques doivent être posées au même titre que pour les humains. Et que les animaux ont igualement le droit de liberté. Sumário: 1 – O que são direitos? 2 – Declaração de direitos. Bioética 3- Ética e bioética. 3.1. Ética, biodireito e direito dos animais. 4 – Isonomia jurídica. 5- Igualdade além da humanidade 7 – Liberdade além da humanidade. 8 – Conclusão. 1 – O que são direitos? Os direitos podem ser examinados sob o ponto de vista legal ou sob o ponto de vista ético. Nós podemos falar em direitos legais, direitos naturais e direitos morais. Sob o aspecto legal direito é um conjunto de normas sociais obrigatórias criadas para regular as relações sociais, estabelecendo uma ordem jurídica. Essas regras são criadas pelo Estado, portanto, por aqueles que estão no poder. No Brasil a Constituição adotou a democracia direta e indireta, conferindo ao povo a faculdade de opinar na elaboração das leis. Nesse sentido o direito é consuetudinário, legislativo e caracteriza a fonte das regras de uma sociedade. Aqui o direito de um corresponde à obrigação de outro. Tem como princípios a coercibilidade, a sociabilidade e a reciprocidade. Se existe um sujeito de direito existe um titular de uma obrigação. A expressão direito natural pode indicar a fonte ou o fundamento do direito. Nasceu com a doutrina jusnaturalista, e muitos a julgam ultrapassada. O direito moral é aquele que se preocupa com o que é justo ou injusto, certo ou errado. Podemos dizer que o direito é o ideal do justo, aqui entendido como justiça socioambiental e planetária. A obrigação de uma reta conduta foi herdada das tradições religiosas de Buda, Moisés e Jesus. Para outros a noção de direito já está em nós, e é deduzida pela razão. O conceito de direito ultrapassa o âmbito da ciência jurídica para ser discutido sob o ponto de vista filosófico. 2 – Declaração de direitos Em 1948 a Organização das Nações Unidas aprovou a “Declaração Universal dos Direitos dos Homens”, adotada por diversos países, que em seu artigo primeiro diz que “Todos homens nascem livres e iguais em dignidade e direito.” E em seu artigo terceiro reza que “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. A idéia de direitos se ampliou e a idéia de igualdade vem progredindo. Foram reconhecidos os direitos das mulheres à igualdade e desenvolvimento (1993); os direitos dos refugiados (1951); eliminação de discriminação racial (1965), discriminação contra a mulher (1970), e outros direitos para os vulneráveis. O reconhecimento pela ciência da inter-relação do homem com todo o universo e tudo que vive resultou na promulgação, na sede da UNESCO, da Declaração Universal dos Direitos do Animal, em 1978. Em seu artigo segundo ela reconhece que o direito à vida é extensivo aos animais, quando afirma: “Todos os animais nascem iguais diante da vida e tem o mesmo direito à existência”. E em seu artigo quarto ela reconhece que “cada animal pertencente à espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu meio natural terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de reproduzir-se”. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi redigida por personalidades do meio científico, jurídico e filosófico, além de representantes das sociedades protetoras dos animais. O documento constitui uma tomada de posição filosófica no sentido de estabelecer diretrizes para o relacionamento do homem com o animal. Esta nova filosofia se respalda nos conhecimentos científicos recentes que admitem a unidade de toda vida e dos movimentos abolicionistas que exigem uma postura igualitária diante da vida. Seus artigos propõem uma nova ética biológica, uma nova postura de vida e de respeito para com os animais. Como bem preconiza o documento, o reconhecimento por parte da espécie humana do direito à existência das outras espécies, constitui o fundamento das espécies no mundo. Com base neste e outros princípios são reconhecidos aos animais o direito ao respeito, ao não sofrimento ou submissão a maus tratos, à liberdade em seu habitat, à proteção humana e legal. No Direito Internacional o direito à vida e à liberdade são igualmente reconhecidos ao homem e aos outros animais. O direito à vida é hoje universalmente consagrado como um direito básico fundamental. O direito à vida é o mais essencial de todos os direitos, uma vez que constitui pré-requisito à existência dos demais direitos. O direito à liberdade, à não discriminação e respeito são corolários do direito à vida. Se considerarmos o homem não apenas como um ser moral, mas como um ser vivo temos que admitir que os direitos reconhecidos à humanidade enquanto espécie devem encontrar os seus limites nos direitos das outras espécies, que também são seres vivos. O direito à vida é, também, um corolário do direito de viver e implica no direito que tem todo ser de dispor dos meios e condições apropriados de subsistência e uma vida digna de acordo com sua espécie, sua natureza biológica e sua sensibilidade. O direito de viver é um direito à existência. Existir implica em viver com a dignidade inerente à própria espécie. No caso dos animais, que são tutelados pelo Estado, este é obrigado a prevenir a mortalidade das espécies e proteger os animais do sofrimento e de toda e qualquer agressão, dando-lhes a garantia de viver em segurança, livre da violência humana, e de acordo com seus instintos básicos e interesses de sua espécie. 3. Ética e bioética. A ética surgiu na Grécia antiga como o saber que nos ensina a forma de agir para obter felicidade em nossas vidas. Poderia ser considerada uma sabedoria prática que norteia nossos atos, para que sejam bons ou convenientes. A ética surgiu como uma ciência biocêntrica. E, hoje caminhou no sentido da bioética e do biodireito. O biodireito, a princípio discutido apenas no âmbito da saúde e medicina, hoje é discutido em novos ramos do direito, como o Direito Ambiental. A bioética tem uma dimensão ecológica, e não apenas biológica. A bioética fundamenta-se nos seguintes princípios: – Não maleficência: não fazer mal ou prejudicar a alguém. – Beneficência: agir em benefício de outrem. – Autonomia: refere-se ao livre arbítrio das pessoas. Cada pessoa possui soberania sobre seu corpo. Este princípio exige que a sociedade se esforce para reforçar o princípio da igualdade. – Justiça: segundo o filósofo grego Aristóteles a justiça é a maior das virtudes, pois se esforça para tratar a todos de forma equitativa, dando a cada um o que lhe corresponde. Este trabalho defende a idéia de que esses princípios não devem se restringir aos seres humanos, mas devem ser considerados no convívio com todos os seres vivos. 3.1. Ética, biodireito e direito dos animais Quando o teólogo inglês Humphy Primatt, em 1776, escreveu o livro “A dissertation on the duty of mercy and the sin of cruelty against animals,” falou no dever de compaixão dos homens. Não mencionou a expressão “direitos dos animais”, mas usou o parâmetro da capacidade de sofrer para falar de consideração moral. [1] O conhecido filósofo do direito Jeremy Bentham, em 1789, em seu livro “An introduction to the principles of morals and legislation” reflete que a posse da senciência e a racionalidade é que deve conferir consideração moral a um ser.[2] Bentham peca quando afirma que os animais, embora tenham o interesse em não sofrer, não teriam interesse em continuar a viver, porque não teriam consciência de si mesmo e nem uma continuidade mental. Nesta hipótese, poder-se-ia concluir que se não sofrem não se importam de serem comidos ou mortos. As novas teorias dos direitos dos animais recusam a idéia de que o animal só tem interesse em não sofrer, e reconhecem que tem o interesse em continuar vivendo. Tanto que os animais possuem várias faculdades que demonstram ser portadores de uma continuidade mental: memória, amor, atenção, curiosidade, imitação, ciúme, razão. Para o jurista Steven M. Wise, professor de “Animal Rights Law” na Universidade de Harvard, os direitos fundamentais que devem ser reconhecidos aos seres vivos devem estar ligados à sua capacidade de autonomia e autodeterminação. É a autonomia e não a capacidade de sofrer que assegura aos animais acesso aos direitos fundamentais. Os Juízes não levam em consideração a capacidade de sofrer dos animais ao proferir suas sentenças, e sim a autonomia. Para Wise um ser possui autonomia quando: – Possui interesses – Pode intencionalmente tentar satisfazê-los. – Possui um senso de autosuficiência que lhe permita entender, mesmo em nível mínimo, que é ele quem quer alguma coisa e que é ele que está tentando alcançar esta alguma coisa.[3] Se alguém possui essa autonomia, diz Wise, deve ter garantidos direitos fundamentais que ele chama de “direitos de dignidade.” A senciência e a consciência estão implícitas no conceito de “autonomia prática”. Assim como a lei não exige autonomia plena para reconhecer direitos aos humanos não pode fazê-lo para conceder direitos aos animais. Em nossa opinião a teoria de Wise tenta usar critérios humanos para o reconhecimento dos direitos dos animais e não podemos ignorar as teorias filosóficas para discutir o tema. O médico veterinário José Ricardo Figueiredo [4] entende que a bioética está ligada à noção de bem-estar animal. Para ele, o bem-estar animal estaria sendo considerado quando fossem garantidas ao mesmo as cinco liberdades (Mench, 1998), tais como: liberdade nutricional, liberdade sanitária, liberdade comportamental, liberdade psicológica, liberdade ambiental. Gary Francione, mestre em filosofia e professor de Direito da Universidade de Rutgers pondera que o atual sistema “legal welfarismo” sugere que se confrontem os interesses humanos com os dos animais para concluir se o sofrimento de um animal é justificável. Nesta perspectiva os interesses dos animais são sempre vistos de forma secundária. Sempre escolhemos os direitos humanos como mais relevantes. A legislação welfarista, apesar de propugnar por melhorias permite que o animal seja passível de direito de propriedade e que seja submetido à crueldade quando se trata de exploração econômica. Para ele deve ser revista a noção arcaica de que os animais são coisas, recursos ou objetos. Na posição welfarista podemos usar os animais não humanos se não lhes infligimos sofrimentos desnecessários. Assim os animais tem apenas os valores que lhes acordamos. A regulamentação do uso do animal não é capaz de protegê-lo quando esse pode ser considerado propriedade. Defende Francione, que por ser o animal senciente e ter uma consciência subjetiva, temos que concordar que tem o direito moral básico de não ser tratado como propriedade. Para levarmos os direitos dos animais a sério temos que conferir ao animal o direito de não ser propriedade. Se estendermos aos animais o direito que tem os humanos de não serem passíveis de propriedade, então os animais podem ser considerados como pessoas morais. Reconhecer um ser como pessoa significa que moralmente tem interesses significativos que precisam ser levados em conta. E se levamos os interesses dos animais a sério temos que aplicar o principio da igual consideração, quando elaboramos ou aplicamos uma lei. O filósofo Peter Singer, em seu livro “Ética Prática” [5], argumenta que os animais, por se tratarem de seres dotados de sensibilidade e consciência, devem ser tratados com o mesmo respeito que os seres humanos. O princípio da igual consideração de interesses deve ser aplicado sem distinção ao animal humano ou não humano. A capacidade de sofrer e de sentir dor deve ser levada em conta, para Singer. Tom Reagan, em “The Case for Animals Rights”, [6]preconiza a idéia de que os animais são sujeitos de uma vida, e por isto devem ser reconhecidos os seus direitos baseados em seus valores inerentes, que se diferem dos valores intrínsecos. Para ele todo sujeito moral tem que ser visto como igual em valores inerentes, e existem valores comuns a todas as espécies. Reagan defende a expansão da consideração moral e da justiça a todos os sujeitos de uma vida. Ser sujeito de uma vida é mais que estar vivo ou do que ter consciência. Todo sujeito de uma vida merece respeito. Estas correntes progressistas nos levam a reconhecer que limites éticos deverão ser colocados pelas leis no relacionamento dos homens com os animais. 4 – Isonomia jurídica A igualdade é um valor que só pode ser estabelecido mediante comparação entre outros valores, situações ou pessoas. E se pensarmos que igualdade implica na aplicação do princípio da equidade na gestão da diversidade temos que aceitar a idéia de que a individualidade de cada ser humano está ligada ao princípio da não discriminação e do reconhecimento do direito de ser diferente. Infelizmente são as leis impostas pela sociedade é que vão determinar, muitas vezes injustamente, quais as desigualdades serão aceitas. Um dos parâmetros da justiça é a relação de igualdade. A igualdade qualitativa atribui a cada um segundo suas características ou segundo as suas necessidades. Esta visão de igualdade se aplica tanto aos homens quanto aos outros animais. É a biologia que nos demonstra a unidade entre o homem e o animal. As mesmas necessidades fundamentais são encontradas no homem e no animal, principalmente a de se alimentar, a de se reproduzir, a de ter um habitat e de ser livre. A cada necessidade fundamental corresponde um direito fundamental ao conjunto de seres vivos. Hoje a discussão sobre o conceito de “direito dos animais” mudou seu enfoque, conectando os deveres dos homens para com os direitos dos animais. Neste enfoque mais uma vez afirmamos que os Estados têm a obrigação de proteger a vida de todos os seres. E que os direitos dos animais se tornam deveres de todos os homens. Para reconhecer os direitos dos animais, ao criarmos normas jurídicas a respeito dos animais, devemos levar em conta as características e necessidades que lhes são próprias, e a garantia de defesa de seus interesses. 5 – Igualdade além da humanidade Para os cientistas Jane Goodal, Francine Patterson, Richard Dawkins, Jared Diamond, Douglas Adams, Tom Regan, Peter Singer, Roger and Deborah Fouts, e demais cientistas que trabalharam no “Great Ape Project”, criado pela Universidade de Princeton em 1993, nós humanos somos grande macacos. Nós possuímos um status moral que nos coloca na esfera da igualdade sem maiores polêmicas sobre o conceito de igualdade. E isto vem dando aos seres humanos o direito a uma maior proteção legal. O ser humano goza de direitos que são negados às outras espécies. Para eles as qualidades que nos elevam a seres morais nós as partilhamos com os grandes macacos: gorilas, orangotangos e chimpanzés, como sensibilidade, inteligência e linguagem própria. Os cientistas integrantes do Projeto Grandes Macacos redigiram a “Declaração sobre os grandes macacos”, onde reivindicam para esses animais alguns direitos já codificados para os homens como o direito à vida, o direito à liberdade individual e direito de não ser torturado. Para eles a igualdade pertence à comunidade moral, e seus princípios devem se transformar em leis. 7- Liberdade além da humanidade. A Declaração Universal dos direitos dos animais reza em seu art. 4º:  “1- Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir. 2. Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito. “ Sob o ponto de vista filosófico liberdade é a ausência de submissão, de escravidão ou servidão. Para o ser humano o limite da liberdade é o interesse social, pois a ética da liberdade implica, para o ser racional, em uma ética da responsabilidade. Nesse sentido a liberdade do homem encontra seus limites no direito à liberdade dos animais. O aprisionamento de animais em zoológicos e circos é inaceitável. 8 – Conclusão: As novas teorias dos direitos dos animais nos levam a concluir que eles tem o direito a uma legislação protetiva. Eles possuem interesses que devem estar protegidos por leis levando em consideração as necessidades de sua espécie. Devem ter garantidos direitos fundamentais, que lhes assegurem ser tratados com o mesmo respeito com que se exige que sejam tratados os seres humanos. Os animais possuem seus próprios interesses que devem estar protegidos por leis. A proteção dos animais faz parte da ética humana. Os animais deveriam ser inseridos no mesmo sistema de proteção legal concedido ao ser humano. Por fazer parte da dignidade humana a proteção dos animais é um dos fundamentos do Estado democrático de direito. Os direitos dos animais são “direitos de dignidade”. As novas teorias aqui expostas tem contribuído para o reconhecimento dos direitos dos animais. Mas, temos que admitir que em uma sociedade civilizada pode ser considerado um absurdo a necessidade de tantas teorias para que os animais sejam respeitados como seres vivos habitantes deste Planeta. Se cotejarmos os direitos de uma pessoa humana com os direitos do animal como indivíduo ou espécie, constatamos que ambos tem direito à defesa de seus direitos essenciais, tais como o direito à vida, ao livre desenvolvimento de sua espécie, da integridade de seu corpo, bem como o direito ao não sofrimento, à liberdade e satisfação de seus interesses. Basta a compreensão da igualdade de interesses para se defender o princípio da igualdade de direitos entre homens e outros animais. Conforme reza a já citada “Declaração dos direitos dos animais”, o homem tem o dever de colocar sua consciência a serviço dos outros animais. Entretanto é preciso reconhecer que a luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais tem que ser gradativa, sob pena de não se conseguir atingir o objetivo. Temos que lutar por uma plataforma mínima realizável, mas sem esquecer que a meta final tem que ser o abolicionismo animal.   Referências BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: UnB: 1995. CAVALIERI Paola e SINGER Peter, The Great Apple project. St. Martin´s Press, New York, 1993. DIAS, Edna Cardozo, A defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no Brasil. Fórum de Direito Urbano e Ambiental. Editora Fórum. Belo Horizonte, n.º 17. setembro/outubro 2004, pgs. 1918 a 1926. DIAS, Edna Cardozo. Manual de Direito Ambiental. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. DIAS, Edna Cardozo. Tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte: Mandamentos: 2000. DOLAN, Edward F. Jr. Animals rights. Franklin Wars: New York, London, Toronto, Sydney, 1986. FELIPE, Sônia T. “Defesa ética dos animais. Humphry Primatt e seus herdeiros: Peter Singer, Tom Reagan e Richard D. Ryder”. Conferência de abertura do “I Seminário ÉoBicho! Florianópolis. SVB;OAB/SC, 4-5 nov, disponível HTTP:/WWW.eobicho.org., acessado em 15 de novembro de 2008; FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: Fundamentos Abolicionistas. Florianópolis: UFSC, 2007. FIGUEIREDO, José Ricardo. Bioética, medicina veterinária e zootecnia, in Bioética nas profissões , VIEWIRA, Tereza Rodrigues. /vozes, 2005- pg 150 – 171) FRANCIONE , Gary L. Animals as persons: essays on the abolition of animal exploitation. Columbia University Press. New York, 2008. FRANCIONE , Gary L. Animals, property and the law. Philadelphia: Temple University Press, 1995. FRANCIONE, Animal as person. Columbia University Press. New York,: 2008. GORDILHO, Heron José de Santana e SANTANA, Luciano Rocha. Revista Brasileira de Direito animal. Ano 2, número 2, jan/jun, 2007. LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004. LOURENÇO, DANIEL Braga. Direito dos animais, fundamentação e novas perspectivas. Sergio Antônio Fabris. Porto Alegre: 2008. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA – UNESCO. Declaração Universal dos direitos dos animais. 1978 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos direitos do homem, 1948. REAGAN, Tom. The case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 2004. SINGER, Peter.  Ética prática. Martins Fontes. São Paulo: 2002. SINGER, Peter. Liberation Animal. Editora Cuzamil S. México, 1985. VIEIRA, Teresa Rodrigues (org), Bioética nas profissões. Petrópolis: Vozes, 2005. WISE, Steven. Rattling the Cage. Cambridge: Perseus Books, 2000 WISE, Steven. Palestra proferida no I CONGRESSO MUNDIAL DE BIOÉTICA E DIREITO ANIMAL. Universidade federal da Bahia. UFBA, Salvador, dia 08 de outubro de 2008.   Notas: [1] FELIPE, Sônia T. “Defesa ética dos animais. Humphry Primatt e seus herdeiros: Peter Singer, Tom Reagan e Richard D. Ryder”. Conferência de abertura do “I Seminário ÉoBicho!. Florianópolis. SVB;OAB/SC, 4-5 nov, disponível HTTP:/WWW.eobicho.org., acessado em 15 de novembrode 2008; [2] Lourenço, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2008, pg. 354. [3] WISE, Steven. Palestra proferida no I CONGRESSO MUNDIAL DE BIOÉTI E DIREITO ANIMAL. Universidade federal da Bahia. UFBA, Salvador, dia 08 de outubro de 2008. [4] (FIGUEIREDO, José Ricardo. Bioética, medicina veterinária e zootecnia, in Bioética nas profissões , VIEWIRA, Tereza Rodrigues. /vozes, 2005- pg 150 – 171) [5] SINGER, Peter.  Ética Prática. Martins Fontes. São Paulo: 2002. [6] REAGAN, Tom. The case for Animal Rights. Berkeley:University of Califórnia Press, 2004. Doutora em direito pela UFMG, professora de Direito Ambiental na FUMEC, Presidente da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal, presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/MG.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-63/biodireito-e-isonomia-juridica-para-a-natureza-nao-humana/
Aborto e eutanásia: temas polêmicos no ordenamento jurídico brasileiro
Este trabalho discorre sobre assuntos controversos e atuais dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como eutanásia, distanásia, ortotanásia, aborto e questões correlatas. Trata também do conflito entre Soberania Popular e Soberania do Estado, discutindo a possibilidade da legalização destes institutos no Brasil.
Biodireito
1. Introdução Há diversos posicionamentos teóricos quanto ao início da vida humana e a aquisição da personalidade civil. Sendo a vida um direito fundamental protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, devidamente estabelecido na Constituição Federal e, por conseqüência, respeitada por todas as áreas do Direito, é preciso encontrar uma definição sobre o que é a vida e quando esta se inicia. Além disso, é preciso saber quando ocorre o início da personalidade civil, ou seja, a aptidão de adquirir direitos e deveres dentro da esfera jurídica. Seria aquele que ainda não nasceu, o nascituro, considerado pessoa civil? Da mesma forma, além do cunho extremamente polêmico, a eutanásia e expressões correlatas ocupam cada vez mais espaço nos debates jurídicos, nos quais se discute os limites do poder humano sobre o processo da própria morte. Assim, o conceito de dignidade da pessoa humana também diz respeito à liberdade que um indivíduo tem de conduzir sua vida conforme sua própria consciência, desde que isto não afete os direitos de terceiros. Porém, seria essa autonomia referente à possibilidade de encerrar a própria vida (ou ordenar que assim o façam) em razão de grave enfermidade ou sofrimento? E ainda, em se tratando do aborto, seria este um direito individual a ser resguardado pela lei? É diante de tais questões fundamentais ao estudo do Direito que este trabalho analisa os diferentes posicionamentos sobre os temas apresentados, visando esclarecê-los nos limites da ciência jurídica. Cabe ressaltar que este trabalho não tem intenção de defender um posicionamento favorável ou desfavorável a tais práticas, mas sim preencher o conhecimento que é exigido do jurista sobre as atuais problemáticas do Direito, em pormenores, para que este possa fundamentar seus posicionamentos pessoais. 2. Distinção entre início da vida e da personalidade civil O Direito é um fenômeno histórico-social, advindo de um extenso caminho que se formalizou com os romanos. Estes, com grande sabedoria, construíram os pilares da sociedade moderna, semeando os princípios basilares da ciência jurídica, cujas chamas permanecem intensamente acesas no Direito Civil. Este ramo do Direito disciplina as condutas daqueles que gozam de personalidade jurídica, fazem parte da sociedade ativamente, são detentores de direitos e deveres, impondo-se assim como o sustentáculo da vida em sociedade, pois onde há sociedade, há direito (ubi societas, ibi jus). Compete-lhe regular as relações dos indivíduos entre si, o estado das pessoas, suas relações familiares, patrimoniais, obrigacionais, sucessórias e assim por diante. O Direito Civil está deste modo situado no campo do Direito Privado, embora exista o fenômeno conhecido como “publicisação do Direito Civil”. Isto vem ocorrendo porque o Estado pode interferir diretamente nas relações privadas como na família e nos contratos. Além disso, questões que eram tratadas somente no Código Civil de 1916, agora fazem parte da Constituição Federal, fenômeno conhecido como “constitucionalização do Direito Civil”[1]. Como foi dito, o Direito é um fenômeno histórico-social e, portanto, diz respeito às pessoas. Não obstante, o art. 1º do Código Civil explicita que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Desta forma, em nosso ordenamento jurídico, de origem romano-germânica, estão reconhecidas duas espécies de pessoas: as físicas ou naturais e as jurídicas, sendo que a pessoa física/natural é o ser humano, enquanto a pessoa jurídica é um conceito abstrato de entidade legal, como uma empresa ou instituição. Entretanto, o alvo de nosso estudo é estritamente a pessoa natural e o início de sua vida civil. Conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2002, p. 88), “a personalidade jurídica é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito”. Assim, uma vez adquirida a personalidade jurídica, o indivíduo passa a atuar na condição de sujeito de direito, podendo praticar atos e negócios jurídicos. Para a identificação do inicio da personalidade civil destacam-se três teorias: a Teoria Natalista, a Teoria Concepcionista e a Teoria da Personalidade Condicional. Iniciaremos a discussão com a Teoria Concepcionista. Esta teoria afirma que a vida é constatada a partir da fecundação do óvulo com o espermatozóide, ocorrendo a formação do ovo ou zigoto. Portanto, para esta corrente de pensamento, a personalidade civil é instituída a partir da concepção, pois se há vida, há direitos. É de acordo com esta teoria que o aborto é punido como crime contra a pessoa, conforme os artigos 124 e 126 do Código Penal. Além disso, podemos afirmar que a CLT também adota a Teoria Concepcionista, visto que nos artigos 392, 393 e 394 encontram-se dispositivos de proteção à maternidade, visando proteger principalmente a vida do nascituro. Já a Teoria da Personalidade Condicional afirma que a lei resguarda desde a concepção a personalidade civil, com a condição do nascimento com vida. Os adeptos desta teoria entendem que o nascituro possui direitos sob condição suspensiva. A condição suspensiva seria o nascimento com vida, e, sem esta condição, não haveria personalidade jurídica. Por fim, há a Teoria Natalista, que defende a idéia de que só existe personalidade jurídica após o nascimento, também sob a condição de nascer com vida. O Código Civil adota tal corrente ao estabelecer, no art. 2º, que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Neste ponto, esbarramos em duas questões interessantes: como determinar com precisão o nascimento com vida? E, também, quais são os direitos do nascituro? Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2002), o nascimento com vida pode ser identificado pelo funcionamento do aparelho cardiorrespiratório. Assim, caso ocorra morte antes ou durante o parto, é possível provar se houve ou não o nascimento com vida, através, por exemplo, do exame de docimasia hidrostática de Galeno, que verifica se há ar nos pulmões da criança. Se o sujeito respirou, mesmo que por poucos segundos, então nasceu com vida e adquiriu a personalidade civil (o que, por exemplo, influencia imensamente na questão dos direitos sucessórios). Quanto aos direitos dos nascituros, podemos elencar o direito à vida, direito à alimentos, direito à filiação e investigação de paternidade, direito à curatela (encargo deferido por lei a alguém capaz para reger a pessoa e administrar os bens de quem não pode fazê-lo por si mesmo, conforme o art. 1.779 do Código Civil), direito de receber doações (condicionado ao seu nascimento com vida) e direito de suceder (direito de receber por testamento, também condicionado ao nascimento com vida). Por fim, a questão principal em torno do nascituro é o momento da aquisição da sua personalidade e da sua capacidade civil. Como já foi dito anteriormente, nosso Código Civil adota a Teoria Natalista, descrita em seu art. 2º. Porém, o moderno entendimento, baseado nos atuais julgados e reforçado pela salvaguarda do próprio art. 2ª (ao estabelecer que os direitos do nascituro são garantidos pela lei), conclui-se que a personalidade do mesmo deve ser atribuída desde o momento da concepção (não confundindo esta com a capacidade, que é apenas um atributo da personalidade). Desta forma, embora o Código Civil brasileiro adote o posicionamento tradicional de que a personalidade civil só é adquirida através do nascimento com vida, assim estabelecido no art. 4º do Código de 1916 e mantido no art. 2º do Código de 2002, concluímos que, se a vida é determinada no momento da concepção – e o Direito Civil assim entende ao proteger os direitos do nascituro – a personalidade civil também deveria ser obtida com a concepção[2]. 3. Diferentes conceitos acerca da morte No Direito, o ser humano é definido como pessoa física ou natural. A aquisição da personalidade civil ocorre no nascimento com vida e, conseqüentemente, termina com a morte. Entretanto, assim como ocorre com o início da vida, determinar o exato momento da morte é uma tarefa difícil, repleta de contrapontos teóricos e doutrinários. Para Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 132), “a parada do sistema cardiorrespiratório com a cessação das funções vitais indica o falecimento do indivíduo. Tal aferição, permeada de dificuldades técnicas, deverá ser feita por médico, com base em seus conhecimentos clínicos e de tanatologia”. Maria Helena Diniz salienta que: “A noção comum de morte tem sido a ocorrência de parada cardíaca prolongada e a ausência de respiração, ou seja, a cessação total e permanente das funções vitais, mas, para efeito de transplante, tem a lei considerado a morte encefálica, mesmo que os demais órgãos estejam em pleno funcionamento, ainda que ativados por drogas” (DINIZ, 2001, p. 266). Para Sílvio de Salvo Venosa (2002, p. 193) – e de acordo com o moderno entendimento – “a morte será diagnosticada com a paralisação da atividade cerebral, circulatória e respiratória”. Da mesma forma compreende Marcelo Soares (02 mar. 2008), ao afirmar que a “morte cerebral é o momento no qual, medica e juridicamente, determina-se o falecimento de uma pessoa”. Há ainda conceitos religiosos, psicológicos, filosóficos e sociológicos para a morte, como bem exemplifica Newton Aquiles Von Zuben: “A morte é um termo, uma ruptura. A morte em si não existe; no entanto, a realidade que se estende por debaixo do conceito toma as formas mais variadas. Temos a morte física, como queda na entropia; a morte biológica expressa no cadáver; a morte genética ou a des-programação programada que determina a duração de nossa vida; a morte espiritual; ou a morte psíquica, a do demente enclausurado em seu autismo; e as inúmeras faces da morte social” (VON ZUBEN, 11 mar. 2008). Independente de qual seja o conceito adotado, a morte da pessoa natural encerra a personalidade civil. Ricardo Gariba Silva (10 mar. 2008) afirma que “a duração da vida coincide com a da personalidade jurídica, que se constitui em um atributo da pessoa humana, e a ela está indissoluvelmente ligada. Assim, desde que vive e enquanto vive, o homem é dotado de personalidade”. Entretanto, há um prolongamento após a morte, uma espécie de projeção dos direitos da personalidade. Assim como o nascituro tem expectativa de direitos desde a concepção, ao morto é garantido o reconhecimento à sua memória, com proteção legal da honra, do nome e da imagem, além do respeito a seus espólios, o que inclui a inviolabilidade e o cumprimento de disposições de vontade manifestadas em vida através de testamento vital. Conforme Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 133), a morte deverá ser atestada por profissional de Medicina, “ressalvada a possibilidade de duas testemunhas o fazerem se faltar o especialista, sendo o fato levado a registro, nos termos dos arts. 77 à 88 da Lei de Registros Públicos”. Entre os efeitos jurídicos da morte, destacam-se a extinção do pátrio poder, a dissolução do vínculo conjugal, a abertura da sucessão, a extinção de contrato personalíssimo, etc. Contudo, é preciso destacar que o paciente terminal, mesmo em agonia ou grande sofrimento, ainda mantém a personalidade jurídica, pois vive. 4. Eutanásia, ortotanásia e distanásia Findada a tentativa de explicar e conceituar a morte dentro de nosso ordenamento jurídico, chegamos a um dos pontos principais deste trabalho: eutanásia, ortotanásia e distanásia. Hoje, são cada vez mais comuns os relatos de pessoas que reivindicam a própria morte em decorrência de doenças graves ou presumivelmente incuráveis. Há uma preocupação crescente com a qualidade de vida das pessoas, mesmo na hora da morte. Reivindica-se então uma morte digna, o que significa, conforme os acadêmicos franceses Jean-Louis Baudouin e Danielle Blondeau (1993, p. 107), “a recusa de se submeter às manobras tecnológicas que só fazem prolongar a agonia. É um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana […] significa o desejo de reapropriação de sua própria morte, não objeto da ciência, mas sujeito da existência”. A justificativa para esta opção pela morte se dá em situações nas quais o tratamento médico se torna um fim em si mesmo, ficando o ser humano em segundo plano, sujeito a sofrimentos possivelmente desnecessários. Segundo Roxana Cardoso Borges, doutora em Direito pela PUC/SP, “nesta situação o paciente sempre está em risco de sofrer medidas desproporcionais, pois os interesses da tecnologia deixam de estar subordinados aos interesses do ser humano” (BORGES, 2005, p. 230). Desta forma, apela-se para a eutanásia, derivada do grego “eu” (bom) e “thanatos” (morte), que significa vulgarmente “boa morte”[3]. A eutanásia é, portanto, a morte provocada em pacientes vítimas de forte sofrimento e/ou doença incurável, motivada por compaixão. Caso a doença não for incurável, afasta-se a eutanásia. Há ainda o auxilio ao suicídio, previsto no art. 122 do Código Penal, no qual o agente responde ainda que apenas forneça os meios necessários para que o doente finde sua própria vida. Segundo o Presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D’Urso (10 mar. 2008), “a eutanásia no Brasil é crime, trata-se de homicídio doloso que, em face da motivação do agente, poderia ser alçado à condição de privilegiado, apenas com a redução da pena”. Ele compartilha o posicionamento dos legisladores penais brasileiros, que não deixaram possibilidades legais para a eutanásia. Contudo, concorda que “na prática a situação é bem diferente, pois envolve, além do aspecto legal, o aspecto médico, sociológico, religioso, antropológico, entre outros” (D’URSO, 10 mar. 2008)[4]. Assim, segundo o Código Penal brasileiro, o que foi definido como eutanásia é considerado homicídio privilegiado. E ainda, se não estiverem presentes aqueles requisitos (doença grave ou incurável, decisão pessoal do enfermo), enquadra-se na hipótese de homicídio simples ou qualificado, dependendo do caso. Desta forma, D’urso (10 mar. 2008) afirma que “embora muito remota pelos princípios humanos e cristãos da sociedade, a eutanásia, caso seja legalizada no Brasil, se estará admitindo uma forma de burlar o crime de auxílio ao suicídio pela modalidade libertadora”. Complementando, considera que “a vida é nosso bem maior, a dádiva de Deus. Não pode ser suprimida por decisão de um médico ou de um familiar, qualquer que seja a circunstância, pois o que é incurável hoje, amanhã poderá não sê-lo e uma anomalia irreversível poderá ser reversível na próxima semana” (D’urso, 10 mar. 2008). Correlata à eutanásia, existe a distanásia, que se caracteriza pelo prolongamento artificial da vida, infligindo sofrimento e agonia ao doente: “é expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano” (BORGES, 2005, p. 235). Com isso, ao invés aferir ao paciente uma morte natural, prolonga-se sua angústia, sem reais expectativas de curar a enfermidade ou proporcionar uma melhor qualidade de vida. Conforme Maria Helena Diniz (2001, p. 316), “trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte”. Em oposição à distanásia, há o conceito de ortotanásia, que, em sentido literal, significa a morte correta: “orto” (certo), “thanatos” (morte). Na prática, consiste no não prolongamento artificial do processo de morte além do que seria o processo natural[5]. Considera-se então um meio termo entre eutanásia e distanásia, sendo o procedimento moralmente correto a ser seguido: “Na situação em que ocorre a ortotanásia, o doente já se encontra em processo natural de morte, processo este que recebe uma contribuição do médico no sentido de deixar que esse estado se desenvolva no seu curso natural. Apenas o médico pode realizar a ortotanásia” (BORGES, 2005, p. 235). No campo da Bioética, o entendimento é de que o médico não está obrigado a prolongar o processo de morte através de meios artificiais, sem que este seja a vontade do paciente. Ocorre que a ortotanásia é conduta atípica para o Direito Penal, pois não é a causa de morte da pessoa, uma vez que o processo de morte já está instalado. Deste modo, o propósito da ortotanásia é justamente evitar a distanásia: “em vez de prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia)” (BORGES, 2005, p. 235)[6]. Neste ponto, é necessário refletir sobre o grau de autonomia que o indivíduo possui quanto às circunstâncias em que irá morrer. Ao contrário da eutanásia, a idéia de morte digna corresponde à autodeterminação do indivíduo sobre os últimos momentos de sua vida. Assim, o reconhecimento da autonomia da pessoa quanto a esses momentos seria imprescindível para a garantia de sua dignidade. Isto quer dizer que, segundo Roxana Borges (2005, p. 231), “é assegurado o direito (não o dever) à vida, e não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento”. Para a autora, o conceito de dignidade humana é o ponto principal na discussão sobre o que prevalece: o direito à vida ou do direito à morte digna. A pessoa tem a proteção jurídica de sua dignidade, sendo fundamental o exercício do direito de liberdade, assim como o respeito à autonomia e ao direito de decidir sobre como serão seus últimos momentos. “Não se trata de defender qualquer procedimento que causa a morte do paciente, mas de reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação” (BORGES, 2005, p. 231). Por outro lado, conforme a procuradora Raquel Elias Ferreira Dodge: “A indisponibilidade do corpo humano deve considerar, sobretudo, que a vida é o bem jurídico de mais alto valor, inalienável e intransferível, que exige dever geral de abstenção, de não lesar e não perturbar, oponível a todos – é o chamado efeito erga omnes” (DODGE, 10 mar. 2008). Nesse sentido, o consentimento do indivíduo tem validade limitada. Só é válido o consentimento obtido sem vícios na manifestação da vontade, que eventualmente decorrem de coação, fraude, dolo ou simulação. O sujeito precisa então estar ciente dos fatos e circunstâncias para que possa validamente se manifestar, tendo plena capacidade de compreensão. Mesmo assim, ainda segundo Raquel Dodge (10 mar. 2008): “É-lhe vedado dispor acerca de determinados bens jurídicos, como a vida, pelo que o consentimento em que o matem, ainda que seja obtido sem vontade viciada, não retira a ilicitude do ato, nem a responsabilidade do sujeito que lha retira ou contra ela atenta”. Por fim, em nosso ordenamento jurídico, no qual a vida é um dos direitos fundamentais mais relevantes, prevalece o entendimento majoritário de que a liberdade não abrange a disponibilidade da vida, visto que esta é intangível e indisponível. 5. Aborto e da “pílula do dia seguinte” A origem etimológica da palavra aborto é “ab” (privação) e “ortus” (nascimento), ou seja, privação do nascimento. Há quem defenda que o correto seria abortamento, uma vez que é o termo empregado na medicina. Independente da terminologia, aborto ou abortamento é a interrupção artificial e intencional da gestação. É considerado crime contra a pessoa pelo Código Penal, tipificado nos artigos 124 e 126, sendo lícito somente em casos de estupro (aborto humanitário) ou risco de morte para a gestante (aborto necessário). Há também o erroneamente denominado aborto de anencéfalo (que ocorre na ausência total ou parcial do cérebro, sendo diagnosticada a morte cerebral do feto), e o aborto de hidrocéfalo (doença caracterizada pelo acúmulo excessivo de liquido cérebro-espinhal no interior do cérebro, causado por um tumor ou má formação congênita). No primeiro caso é incorreto dizer que há aborto, pois, em analogia ao art. 3º da Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, na qual a exigência é o diagnóstico de morte encefálica, não há que se falar em aborto se o feto já faleceu do ponto de vista médico. Trata-se então de um crime impossível, pois não se pode matar quem já está morto. Já no caso da hidrocefalia há de fato o aborto, pois embora o feto tenha uma má-formação cerebral, existe a possibilidade de vida. Ocorre que a hidrocefalia pode causar a morte cerebral do feto ainda na gestação, tornando-se então caso de anencefalia. Vale ainda ressaltar que o caso da menina Marcela de Jesus, que foi diagnosticada com anencefalia e surpreendeu a todos vivendo um ano e oito meses, na verdade, era portadora da meroencefalia, anomalia na qual ainda há resquícios de atividade cerebral, enquanto na anencefalia há a ausência total. Diante o exposto, surge um importante questionamento: seria possível definir com precisão o início da vida intra-uterina e saber a partir de que momento ocorre o aborto? Neste contexto, seria a chamada “pílula do dia seguinte” abortiva? Inicialmente, devemos estar cientes que a vida é o bem jurídico mais valioso. Não obstante, a Constituição Federal considera-a como direito fundamental, cabendo ao Estado assegurá-lo em dois aspectos: primeiro ao direito de continuar vivo e segundo ao direito de se ter uma vida digna. De acordo a Teoria Concepcionista, a vida é determinada a partir da fecundação do óvulo com o espermatozóide (ocorrendo então a formação do ovo ou zigoto) e, através do art. 2º do Código Civil, são garantidos os direitos do nascituro, em especial o direito à vida. Assim, diante da atual legislação, o aborto em qualquer fase da gestação é considerado crime, como reforça o advogado Aleksandro Clemente: “Pois bem, se é indiscutível que a vida é um direito fundamental, e que a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica o declaram inviolável, só nos resta saber quando começa a vida. Para isso nos valemos da ciência. Desde 1827, com Karl Ernest Von Baer, considerado o pai da embriologia moderna, descobriu-se que a vida humana começa na concepção, isto é, no momento em que o espermatozóide entra em contato com o óvulo, fato que ocorre já nas primeiras horas após a relação sexual. É nessa fase, na fase do zigoto, que toda a identidade genética do novo ser é definida. A partir daí, segundo a ciência, inicia a vida biológica do ser humano. Todos fomos concebidos assim. O que somos hoje, geneticamente, já o éramos desde a concepção” (CLEMENTE, mar. 2008). Destarte, a pílula do dia seguinte é um produto químico, de tipo hormonal, considerado contraceptivo ou, mais precisamente, como um contraceptivo de emergência. Se usado dentro de um curto período de tempo após ato sexual presumivelmente fértil, deve impedir uma gravidez indesejada. Contudo, o início da vida, pelo ponto de vista de muitos estudiosos, ocorre imediatamente nas primeiras horas após a relação sexual. Isto significaria que, de acordo com a legislação vigente, na qual qualquer medida para impedir a gestação após a concepção deve ser considerada prática abortiva, a pílula do dia seguinte é um abortivo?  Em caso positivo, porque estas pílulas são facilmente encontráveis e tão populares? Não deveriam ser proibidas pela lei? Porque a pessoa que as utiliza não é punida por prática de aborto? Como se sabe, a legislação não acompanha de forma eficaz as mudanças sociais e os costumes. Há sempre um longo período de tempo entre um código e outro, sendo que nosso Código Penal entrou em vigência em 1940. Assim, nas palavras de Luiz Flavio Gomes (05 mar. 2008), “nosso Código Penal ainda é bastante conservador em matéria de aborto”. De fato, há poucas menções elucidativas para o assunto. Sabe-se que é crime abortar ou consentir o aborto, e sabe-se que o aborto só é permitido em casos de estupro ou risco de morte para gestante. Contudo, não há maiores detalhes sobre os métodos de aborto, quando se dá de fato o início da vida ou os períodos de gravidez em que o aborto é mais nocivo à gestante. Levando em conta que o tema é cada vez mais discutido (incluindo o plebiscito em Portugal que permitiu a população opinar sobre a legalidade ou não do aborto), cria-se uma necessidade jurídica por maiores informações. É exatamente o caso da pílula do dia seguinte. Se é ou não abortiva, depende necessariamente do que se considera como o início da vida. Não obstante, há os que defendem que não é um método abortivo, mas sim preventivo, pois age antes que a gravidez ocorra, dificultando o encontro do espermatozóide com o óvulo (fecundação). Em entrevista à Agência Estado, a obstetra Denise Coimbra diz que a ação deste medicamento não é abortiva, mas sim de implantação: “isso significa que ela mexe com o endométrio, que passa a não ser um local adequado para que o bebê se implante” (COIMBRA apud AGÊNCIA ESTADO, 02 mar. 2008). Complementando, o Ginecologista e Professor da UNICAMP/SP, Luis Bahamondes, afirma que “ela ganhou a legitimidade da OMS [Organização Mundial de Saúde], já foi aprovada pelo Ministério da Saúde e não é abortiva. Só ficou sem regulamentação por tanto tempo devido a questões religiosas” (BAHAMONDES apud AGÊNCIA ESTADO, 02 mar. 2008). Mas há também opiniões contrárias, em geral vinculadas à religião, como as do Padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, Presidente do Instituto Pró-vida de Anápolis: “A pílula impede que o ser humano concebido na trompa venha a se implantar no útero. Ora, a causação da morte de um ser humano dentro do organismo materno é um aborto. A conclusão óbvia, que ninguém poderia negar, é que a chamada pílula do dia seguinte é abortiva” (CRUZ, 10 mar. 2008). Contudo, em seu manifesto “anti-pílula” divulgado pela internet, há uma interessante resposta de um fabricante do produto, que, após ser questionado quanto à sua função abortiva, afirmou: “Segundo a OMS […], a gravidez só tem início após a implantação do ovo no útero, quando Postinor-2 não tem mais efeito. Portanto, Postinor-2 não é abortivo” (ACHÉ apud CRUZ, 10 mar. 2008). Por fim, o grande desafio inerente a esta questão é definir com precisão o início da vida. A legislação brasileira é omissa nesta questão, pelo menos em relação à objetividade, exatidão, deixando dúvidas quanto a qual posicionamento devemos adotar, ou ainda, por exemplo, quais são os critérios que nos permitem comprovar se há ou não vida em um óvulo recém fecundado, mas não implantado no útero. Esta é uma questão de difícil solução, pois é certo que os conceitos morais e religiosos de cada indivíduo influenciam em seu entendimento sobre quando se inicia a vida. Não há como estabelecer, de antemão, uma definição precisa e indubitável a este respeito. O que se pode afirmar é que, pela legislação atual, as pílulas do dia seguinte não são abortivas. Sendo tal produto eficaz somente se ingerido em até 72 horas após a relação sexual, período este que, de maneira geral, é insuficiente para se provar a gravidez, a pílula não constitui aborto. 6. Soberania Popular versus Soberania do Estado A soberania popular é um princípio fundamental textualmente integrado à Constituição brasileira, através do art. 1º, parágrafo único, que estabelece que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Assim, em Estados democráticos como o Brasil, a legitimidade do governo e da lei está, em tese, baseada no consentimento dos governados. Trata-se de um contrato social[7], no qual os indivíduos aceitam ser governados em troca de proteção, ao invés de viverem sujeitos aos perigos e riscos de um Estado natural no qual não existem leis. Já a soberania do Estado é o poder político supremo e independente, inerente ao próprio conceito de Estado, seja na ordem interna ou no âmbito internacional. O Estado tem então completa autonomia para se autogovernar e legislar, sem se submeter a pressões internas ou externas. Mas a questão é: se “todo poder emana do povo”, o que ocorre se o “povo” vier a reivindicar que o aborto e a eutanásia sejam legalizados? Seria possível atender ao anseio popular? Ou há aspectos jurídicos que impossibilitam tais práticas, mesmo como o aval da maioria? Para iniciar esta reflexão tomemos como exemplo o referendo de Portugal, no qual a maioria optou democraticamente pela legalização do aborto, o que foi um marco histórico para um país com notável fervor religioso. Esta situação reforça uma tendência internacional na quais países como Alemanha, Austrália, Canadá, China, Cuba, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, entre outros, permitem o aborto em qualquer situação. De forma semelhante, com apenas algumas exigências (ausência de condições financeiras ou psicológicas para levar adiante a gravidez), o aborto também é legalizado na Espanha, França, Índia, Itália, Nova Zelândia, Reino Unido, Rússia, Uruguai, etc. (WORLD ABORTION LAW MAP, 02 jun. 2008)[8]. Observemos que grande parte destes países são líderes econômicos mundiais e exercem enorme influência na cultura contemporânea. Além disso, a Alemanha e a Itália são consagradas fontes do pensamento jurídico brasileiro, cujas teorias são muitas vezes acolhidas pela doutrina pátria e, não obstante, o sistema adotado no Brasil é o romano-germânico, também denominado Civil Law. É evidente que o simples fato de existir uma tendência internacional para a legalização do aborto não significa que o mesmo venha a ocorrer no Brasil, uma vez que nosso Estado tem soberania, autonomia e independência para firmar seus próprios posicionamentos. Porém, a sociedade tem se mostrado cada vez mais dinâmica e a todo instante vivenciamos a derrocada de um antigo paradigma. Nada impede que aquilo que a legalização ocorrida em inúmeros países venha a ser reivindicada pelo “povo” brasileiro. Resta saber se isto é juridicamente possível. Não se pode negar o caráter extremamente polêmico e controverso do assunto, mas o fato é que, embora muito distante na prática, existe tal possibilidade. O ponto crucial é que não existe direito fundamental absoluto, nem mesmo uma relação hierárquica, sendo que até o direito à vida pode ser limitado em algumas situações, ao exemplo da pena de morte em caso de guerra declarada, prevista no art. 5º, XLVII, da CF/88, assim como no caso do policial que tira a vida de alguém no estrito cumprimento do dever legal ou, até mesmo, do civil que se vale da legitima defesa e do estado de necessidade. Além disso, a Constituição Federal nada estabelece sobre o aborto ou a eutanásia, o que ocorre é o conflito entre estes direitos fundamentais constitucionais: de um lado o direito à vida e de outro a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Portanto, o aborto não pode ser considerado inconstitucional, pois se assim o fosse, não existiriam as duas possibilidades consagradas pelo Código Penal (aborto em caso de risco para a gestante e em caso de estupro). E o que assegura estas duas possibilidades é justamente a prevalência de um direito fundamental sobre o outro. No primeiro caso (aborto necessário), trata-se da vida do feto versus a vida da mãe, prevalecendo a da última. No segundo (aborto humanitário), ocorre o conflito entre a dignidade da vítima de estupro versus a vida do feto[9]. Se o “povo” viesse a reivindicar a legalização do aborto, bastaria que fosse alterado o Código Penal, estendendo a prevalência da dignidade da gestante para todas as situações de abortamento, não se limitando ao aborto humanitário. Desta forma, se no aborto humanitário o direito à vida é suprimido pela dignidade da mãe, nada impediria que o mesmo viesse a ocorrer com o aborto comum, mesmo em âmbito constitucional.  O princípio da isonomia poderia ser invocado para fundamentar que não somente à vítima de estupro seja permitido interromper a gravidez indesejada, mas a toda e qualquer gestante. Assim, juridicamente, não há nenhum obstáculo para a legalização do aborto. Contudo, é preciso reconhecer que se trata de mera hipótese teórica, uma vez que o conflito de direitos fundamentais exige delicada interpretação da Constituição, na qual prevalece a Soberania do Estado em tomar posicionamentos, independente de pressão popular, visando garantir a segurança jurídica do país. Já no caso da eutanásia a situação é ainda mais complexa. Inicialmente porque não existe sequer uma tendência internacional para a legalização, pelo contrário, apenas paises como Albânia, Canadá, Holanda, Países Baixos, Bélgica e o estado de Óregon nos EUA permitem tal prática. Conforme a doutrinadora argentina Gisela Farias, na Itália, existe uma organização denominada EXIT, com sede em Turim, que por cerca de cinco mil dólares transporta interessados à Holanda para realizarem a eutanásia, e, “si bien hay protestas en Italia, también hay muchos que consideran válida la possibilidad de ayudar a un ser querido a evitar los crueles e inútiles sufrimientos del final” (FARIAS, 2007, p. 96). O fato é que a eutanásia tem sido duramente combatida pelas autoridades políticas e religiosas de diversos países, incluindo a autoridade máxima da Igreja Católica, o Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), que a repudia arduamente. Neste contexto é que os alguns países chegaram a legalizar a eutanásia em certas circunstâncias, mas voltaram a proibi-la, como ocorreu nos Territórios do Norte da Austrália. Desta forma fica muito distante, se não totalmente ofuscada, a possibilidade de legalização da eutanásia no Brasil. Mas isto não quer dizer que a ortotanásia, que representa a preservação do processo natural de morte, sem interferência de métodos artificiais para prolongar a vida sem expectativas de cura, também deva ser repudiada em nosso ordenamento jurídico. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A rejeição pela Comissão de Constituição e Justiça do Projeto de Lei 1.135/91, que trata da descriminalização do aborto, indica que o Brasil ainda permanecerá na contramão dos movimentos internacionais. Assim, exceto em caso de aborto necessário ou humanitário, uma gravidez indesejada deve obrigatoriamente ser levada adiante mesmo contra a vontade da mãe, que pode ter sua liberdade e dignidade cerceadas pela lei. De forma semelhante, um enfermo pode ser obrigado a permanecer vivo sem qualquer perspectiva de cura ou melhora. Cabe-nos indagar se isto é humanamente correto e, ainda, se o livre arbítrio e a dignidade incluem abdicar da própria vida. Embora ainda não se vislumbre sequer uma tendência internacional para a descriminalização da eutanásia, não podemos nos esquecer de que o Direito deve ser dinâmico e flexível para acompanhar as mudanças sociais. O Projeto de Lei 1.135/91 foi rejeitado com base na inviolabilidade constitucional do direito à vida, mas o fato é que a Constituição Federal protege tanto a vida quanto a liberdade e a dignidade como direitos fundamentais, sem hierarquia ou grau de importância, pois todo direito fundamental tem igual peso e valor. Talvez a questão devesse ser decidida através da consulta popular, como ocorreu em Portugal, afinal estamos em um Estado democrático de Direito. Por fim, em um mundo globalizado, no qual a mulher tem conquistado cada vez mais espaço e independência, não estaria apta a decidir entre levar adiante ou interromper a gravidez? Ou o Estado brasileiro ainda acredita que seja necessário tomar esta decisão pela gestante? Estas são questões cuja magnitude exige a participação popular.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-58/aborto-e-eutanasia-temas-polemicos-no-ordenamento-juridico-brasileiro/
Subordinação da mulher, supressão de sua identidade, criminalização do abortamento em casos de anencefalia e a Igreja Católica
O presente trabalho pretende discorrer a respeito da construção da proibição legal ao aborto no Brasil e a permanência desta proibição em casos de anencefalia, apesar da total inviabilidade fetal extra-uterina. Para tanto, se utiliza da antropologia e dos papeis de gênero, focando especificamente o papel da Igreja Católica na manutenção da mentalidade contrária ao abortamento de feto com anencefalia na sociedade e sua influencia no poder judiciário.
Biodireito
Introdução O abortamento e sua descriminalização são um tema muito atual e polêmico, por envolver opiniões múltiplas, nem sempre possíveis de conciliar, devido à influência de valores morais acerca da temática (DINIZ, 2006:32; DINIZ, ALMEIDA 2004: 136; BUGLIONE, 2005: 98) A anencefalia é uma patologia de etiologia multicausal que resulta na morte do feto em 100% dos casos. Ao portador de anencefalia não há qualquer possibilidade de  sobrevida, é portanto, um feto inviável (TOURINHO, 2004: 40; BARROSO Petição Inicial apresentada na ADPF n. 54, tópico II, encontrada no site www.stf.gov.br em 10/10/2006, HOROVITZ, 2004: 29) Para constatar a anencefalia, basta que se verifique a ausência do perfil encefálico normal durante a ultra-sonografia. O Diagnóstico tem 100% de certeza (DINIZ 2004: 19; FRANCO, 2005: 1; Minístro Marco Aurelio. Liminar ADPF n. 54, encontrada no site: www.stf.gov.br).  A ecografia colorida tem alta precisão, sendo possível até mesmo a um leigo (DINIZ, 2006: 129) a verificação da existência do problema. A respeito, em entrevista dada à Débora Diniz (Diniz, 2004: 19; FRANCO, 2005: 15) em 03 de março de 2004, Gabriela Cordeiro, genitora de uma criança anencefálica contou que “na ultra-sonografia colorida se vê tudo direito. Quando ela virava a cabecinha não tinha nada”. Além disso, a anencefalia aumenta sobremaneira os riscos do parto e da gravidez. A gestação de feto anencefálico potencializa na gestante sintomas que estão presentes na gravidez normal, mas que acarretam risco de vida. Neste sentido, Thomas Gollop (GOLLOP, 2004: 27), médico obstetra, professor da USP, especialista em medicina fetal esclarece: “Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à mulher grávida…” No mesmo sentido posiciona-se o médico Jorge Andalaft (ANDALAFT, 2004:31) ao dizer que: “Há riscos à saúde da mulher tanto no período gestacional quanto no parto. Este é um parto muito mais complicado, com um risco aumentado na ordem de 22%. As complicações são decorrentes da própria deformidade do feto, que por não possuir a caixa craniana formada, não encaixa corretamente para o parto, então temos fetos sentados, fetos atravessados e isso é um grande risco para a vida da mulher…” Ademais, a saúde psíquica está compreendida no conceito de saúde em si. Estudos comprovam que a gravidez anencefálica pode levar a mulher a uma completa desorganização psíquica e emocional (LAUTERSLAGER 2002:5). A mulher que se encontra nesta situação sofre indescritivelmente. A literatura especializada chega mesmo a comparar seu sofrimento à tortura (DINIZ, 2006), fato tipificado como crime e de hediondez comparada. Este sofrimento lhe acarretará danos psíquicos inigualáveis. Exatamente por estes fatores, recente pesquisa feita pelo IBOPE[1] sobre Direitos reprodutivos, relação Igreja-Estado e Temas Relacionados, intitulada “aborto e temas relacionados” demonstrou que 76% dos brasileiros concordam que a mulher possa recorrer ao aborto “quando o feto apresenta um problema grave e não tem nenhuma chance de sobreviver após o nascimento”. Não obstante disto, a gravidez de feto portador de anencefalia continua sendo imposta às mulheres que devem levar esta gravidez até seu termo final, segundo a lei criminal do Brasil, sendo enquadrada no tipo “aborto” do Código Penal Nacional. A discussão sobre a interrupção da gestação por má formação fetal assumiu três espaços de debate público como prioritários no Brasil. O primeiro deles foi o poder legislativo, onde, segundo dados de Débora Diniz, de 1972 a 2004 foram apresentados 12 projetos de lei sobre este tema. Além disso, há um conjunto de projetos que propõem a autorização ou proibição do aborto em mais situações, o que terminaria por legislar sobre o tema. O segundo e terceiro espaços de negociação foram o judiciário e o Ministério Público. Há quem aponte para 1989 (Biancarelli, 2004), outros para 1991 (DINIZ, 2004: 17) como a data do primeiro alvará autorizando um abortamento, quando teve início no judiciário uma batalha entre organizações feministas, como a ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) e a THEMIS (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero), e a Igreja Católica, especialmente a Confederação de Bispos do Brasil (CNBB) e o movimento pró-vida, em torno da concessão ou não pelos juízes de alvarás autorizando o abortamento em casos de comprovada anencefalia fetal às mulheres que assim escolhessem. Esta disputa culminou na Argüição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais n. 54, proposta pela confederação nacional dos trabalhadores da saúde (CNTS), com assessoria da ANIS, recebida como cabível pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e ainda pendente de julgamento. A situação causou certo alvoroço na sociedade, especialmente entre os juristas e profissionais de saúde, e, pôde-se observar que, aqueles contrários à descriminalização do abortamento de fetos portadores de anencefalia costumam utilizar argumentos ético-religiosos para embasar sua defesa, especialmente usando argumentos Católicos (Cristóbal Orrego S. 2005: 128). Se por um lado a vasta maioria dos processos e pareceres era favorável às mulheres (a estimativa nacional é que 95% da jurisprudência é favorável ao abortamento em casos de anencefalia), por outro lado, os pedidos negados e pareceres contrários (5% dos casos) eram por fundamentação antes religiosa, privada do julgador que jurídico-penal (DINIZ, 2004:19). Contudo, a Igreja Católica nem sempre criminalizou o aborto, foi com Pio IX na Apostólica Sedia, em 1869, que o aborto passou a ser condenado pela Igreja. O que pretendo demonstrar é que esta condenação se deu devido à assimetria sexual existente na cultura ocidental. Assim, pode-se dizer que há uma constante reconstrução cultural, e que a subordinação feminina vem sendo mantida através de instituições tradicionais da sociedade. Neste caso, influenciam  diretamente na manutenção da criminalização do abortamento anencefálico a Igreja e o Estado, dentre os quais, tratarei da Igreja. O Estado é ao mesmo tempo emancipador, pois é através do judiciário e das leis vigentes em nosso país que muitas mulheres tem conseguido autorização para abortar; e opressor, visto que o legislativo mantém a proibição ao abortamento e o judiciário mantém um posicionamento ambíguo, que causa insegurança jurídica às mulheres e trabalhadores da saúde, não tendo ainda uma decisão unificada sobre o tema. A Igreja, de outra parte, faz uso do judiciário, ao mesmo tempo em que este último faz uso dos dogmas daquela para manter as decisões negativas de autorização. Cabe citar que a influencia da Igreja também figura nos outros poderes, especialmente no legislativo, contudo, aqui será analisado apenas o poder judiciário e o Ministério Público. A subordinação feminina. Hunt (2001: 11) defendendo que a tradição codificou uma antropologia que concede privilégio ao macho explicou que “as conseqüências dessa concepção patriarcal se concretizam em leis que restringem o acesso ao controle da natalidade e ao aborto…” Neste sentido, para chegarmos às razões de haverem leis morais que proíbem o “aborto”, das quais irei enfocar as leis do catolicismo, devemos partir de um estudo sobre como se dá a dominação masculina na cultura que de ora em diante chamarei judaico-cristã, e demonstrar através da literatura antropológica de gênero como das formas de desigualdade e poder socialmente construídas chegou-se à proibição moral do aborto nestas normas. Para Rosaldo (1995:14) “Dominação masculina (…) parece ser, antes, um aspecto da organização da vida coletiva, uma padronização das expectativas e crenças que produz um desequilíbrio na forma em que as pessoas interpretam, avaliam e respondem às formas particulares de ações femininas e masculinas.” Há quem entenda (PISCITELLI, 2002: 10) que as origens da subordinação feminina se encontram no processo reprodutivo, vez que são as mulheres as únicas capazes de engravidar e amamentar, e dado que os bebês humanos têm um enorme período de dependência física materna, as mulheres seriam forçadas pela biologia a depender dos homens. Outros posteriormente, passaram a trabalhar com o que Gayle Rubin denomina sistema sexo/gênero. Este seria o conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana, e nas quais estas necessidades sociais são satisfeitas. Acompanhando Lévi-Strauss e Freud, a autora localiza esta transformação na passagem entre natureza e cultura. Partindo do sistema sexo/gênero que considera observável, ou seja, o sistema de Strauss, nota na teoria sobre parentesco e troca de mulheres, que o parentesco, o casamento, instaura a diferença, a oposição, exacerbando no plano da cultura as diferenças biológicas entre os sexos. O dimorfismo sexual provocou a interdependência entre homem e mulher e a regulação sexual da sociedade, o que desencadeou no heterossexualismo obrigatório e na assimetria sexual. Segundo Bourdieu (2003:116), ainda hoje as mulheres são responsáveis pela manutenção do sistema de parentesco, realizando reuniões familiares, organizando refeições, troca de presentes, etc. Entretanto, surgiram críticas à teoria de Gayle Rubin, pelos estudiosos(as) de gênero pós-modernos, no sentido de que ela trabalhava com oposições como natureza e cultura, bem como com uma separação radical entre os sexos. A respeito, podemos citar os trabalhos da Joan Scott e o da Judith Butler, que afirmam não haver uma continuidade histórica de certas estruturas e instituições; trabalham com uma noção de multiplicidade de poder e sujeitos – identidades não fixas; tratam da linguagem e do discurso como exercícios que produzem e constituem as instituições e os homens enquanto seres históricos e culturais; e compreendem a produção do saber como ato de poder. Sexo passa a ser visto como culturalmente construído e gênero como meio de discurso para a construção do sexo. De sua parte gênero é produto de diferentes tecnologias sociais, discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas e da vida cotidiana.  Para Butler, esta construção produz uma sensação falsa de estabilidade (continuidade histórica), de existência de um ser natural, e isto trabalha para os interesses da construção heterossexual e da regulação da sexualidade dentro do domínio reprodutivo. Para esta autora é impossível sectar “gênero” dos cruzamentos políticos e culturais nas quais é produzido e sustentado. Religião, é um eixo da diferença que se intersecciona com gênero e resulta em  multiplicidade de sujeito, por esta razão o Estado laico não pode interferir em questões como esta  usando argumentos religiosos. Para se manter a dominação masculina, conforme Bourdieu (BOURDIEU 2003:100/101, LAQUEUR 2001:209) “é preciso reconstruir (…) a história da (re)criação continuada da dominação masculina (…) em outros termos, uma ‘história das mulheres’, que faz aparecer, mesmo à sua revelia, uma grande parte de constância, de permanência, se quiser ser conseqüente tem que dar lugar, e sem duvida o primeiro lugar, à história dos agentes e das instituições que concorrem permanentemente para garantir esta permanência, ou seja, Igreja, Estado, Escola…” (grifo meu). Pode-se dizer, então, que a história não é um constante, um estático. A história da reprodução vem sido garantida a muito tempo por mecanismos e estratégias que promovem esta continuidade através de instituições, como é o caso da Igreja Católica e seus agentes, que atuam sobre o inconsciente; e a “história das mulheres” se cruza com a história desta instituição. Neste sentido, ainda para Bourdieu, a Igreja Católica inculca explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e pelo dogma da inferioridade das mulheres. Age ainda através dos textos sagrados [como a idéia de nossa senhora, mãe virgem que se doou completamente ao filho], da liturgia e até mesmo do espaço dos templos religiosos. (interferência minha) Se entendermos como quer Foucault que poder não é apropriado, mas localizado, podemos entender que quando a maternidade passou a ser vista como dependendo da mulher muito mais do que do homem, o poder se localizou na mulher, surge uma desordem em uma ordem estabelecida de gênero, assim, surge a proibição do aborto no seio da Igreja para proteger a posição dominante do homem. Ramírez (2002:138) confirma isto defendendo que, a decisão de abortar é tomada em ultima instância pela mulher, e demonstra isto através de pesquisa realizada em Porto Alegre por Leal e Lewgoy, em que ficou constatado que o índice de incidência de aborto são reportados diferentemente entre os dois sexos nas camadas populares deste Estado. Assim, mulheres reportam maior número de abortamentos que homens, dado que a autora considera seria mais viável interpretar como resultado da não informação aos homens por suas parceiras. Por outro lado, a mulher não é vista como atora social, mas como mão reprodutora. A mulher é quem carrega o filho, o homem passa a ser responsável pela gravidez apenas na medida em que participou do ato sexual. Assim, a mulher/mãe passa a ser vista como certa, ao mesmo tempo em que quanto ao pai/homem restam dúvidas. Isto ocasiona responsabilidades diferentes para ambos, a mulher é igual a mãe, deve ter instinto para ser mãe, e portanto, não pode almejar ter sua gravidez interrompida. Stratern explica citando Houseman (STRATERN 1995: 325) que “como conseqüência de gestação e parto, a relação entre identidade sexual feminina (ligada ao órgão genital) e função procriativa maternal é potencialmente contínua, enquanto entre identidade sexual masculina (ligada ao órgão genital) e função paternal é necessariamente descontínua. Em outras palavras, uma identificação absoluta de parentalidade física e jurídica só é possível no caso da maternidade” Novamente Ramírez (2002: 121/132) cita Butler dizendo que “gênero seria uma fantasia instituída e inscrita na superfície do corpo. Nessa perspectiva, a maternidade é vista como uma instituição compulsória para as mulheres, definida como uma essência de si e como lei de desejo; uma economia libidinal materna como forma específica e histórica de organização da sexualidade em uma matriz heterossexual reprodutiva”. A antropologia patriarcal redutiva da complementaridade homem-mulher, ou seja, o heterossexualismo obrigatório tem sido resultado de inúmeros documentos papais trazendo a maternidade como a razão ultima da mulher e de sua sexualidade. Laqueur (2001: 230) sugere a este respeito que a maternidade compulsória é um dos efeitos mais profundamente arraigados da ideologia do gênero, ou seja, Mulher e Mãe são vistos como sinônimos. Toda a mulher deve querer ser e ter “o dom” da maternidade, nas palavras dele “…mulheres = Mulher = Mãe.” A mãe é quem gesta, quem dá a luz, quem amamenta. A mãe é certa. O pai é posto em dúvida, pois a paternidade se comprova apenas com exames médicos (como o DNA). A relação da mãe aparece como fato natural da vida, inquestionável. Até mesmo entre os estudos de gênero, podemos encontrar esta uniformização da mulher/mãe. Assim, para Rosaldo (1995:14) “Simone de Beauvoir, Kate Millett, Suzan Brownmiller, Adrienne Richer, iniciaram seus textos com o que parece aos antropólogos uma evocação ultrapassada dos registros humanos. Na suposição de que preparar os alimentos, cobrar coisas dos filhos, falar com amigas ou celebrar sua fertilidade ou vitalidade sexual significa o mesmo para qualquer mulher independentemente do tempo e do lugar…” Compreende-se esta imposição ao ler Moore (2000:17) “…os   discursos   sobre   sexualidade    e   gênero freqüentemente   constroem   mulheres   e   homens   como   tipos diferentes de indivíduos ou pessoas. Essas pessoas marcadas por gênero corporificam diferentes princípios de agência – como no caso de muitas culturas ocidentais, onde a sexualidade masculina e  pessoas  do  gênero  masculino  são  retratadas  como  ativas, agressivas, impositivas e poderosas, enquanto que a sexualidade feminina e   pessoas   do   gênero   feminino   são   vistas   como essencialmente  passivas,  fracas,  submissas  e  receptivas [como mães].  Esses discursos marcados por gênero são em todos os casos construídos através da  imbricação mútua  com diferenças de  raça,  classe, etnicidade e religião.” Entretanto a mulher deveria poder escolher se quer ou pode ser mãe naquele momento, mais do que isto, no caso específico da anencefalia, em que o feto é absolutamente inviável, a mulher deve poder escolher entre ter em seu ventre por nove meses um feto que não sobreviverá. Moore (2000:41) menciona ainda que “Wade enfatiza que a experiência da identidade está presa à experiência do poder, e que desafios ao exercício do poder ou a seus efeitos em termos  de status,  estratégias e  interesses são percebidos   como   ameaças   à   identidade.”  Assim, sem o poder de decidir sobre levar uma gravidez por nove meses para ver seu filho nascer no parto, ou não, a mulher tem sua identidade suprimida. A igreja católica e o Judiciário. Na idéia de parentesco de nossa cultura, afirma-se uma relação direta entre o intercurso sexual e a concepção, levando ao parto. A posição atual da Igreja Católica é a de que no momento da concepção já há uma vida no ventre da mulher, que não pode ser interrompida, ainda que não haja possibilidade de sobrevida para este feto fora da mulher e que a mulher sofra riscos de vida e danos à saúde devido à gestação. Daí a noção ocidental de que após a concepção tudo o que se segue depois acontece automaticamente, é uma questão de processo biológico que seguirá seu caminho se não for interrompido por fatores externos. Dom Odílio Scherer, Bispo de São Paulo[2], Secretário Genal da CNBB ao tratar do assunto posiciona-se no sentido de que “…mesmo o eventual sofrimento causado à mãe por ela se encontrar nesta situação não justifica a eliminação do feto…” e continua “é verdade que nos casos de anencefalia pode haver algum risco para a saúde da mãe, mas nem sempre risco de vida.” (grifos meus)   Estudo realizado em 2004 por Débora Diniz e Diáulas Costa Ribeiro(2004:67) em torno dos processos de requisição de autorização de abortamento mostra que três premissas as quais se reforçam mutuamente são usadas na justificação da proibição do aborto de feto inviável: a premissa da santidade da vida humana, a da ladeira escorregadia e a premissa da potencialidade. Estes são os argumentos listados por juízes e promotores ao votar/julgar um pedido de alvará de abortamento improcedente. A primeira delas diz respeito à idéia de que a vida é um dom, ou um bem divino, e que não deve ser objeto de intervenção humana. Neste sentido, qualquer tentativa de interferir no ciclo biológico da vida seria um atentado às leis divinas, e, portanto, moralmente inaceitável. Conforme Diniz (DINIZ, DIAULAS, 2004:68), “grande parte dos autores que defende a premissa da santidade da vida baseia-se em crenças religiosas que partem do pressuposto da intocabilidade da vida humana. A santificação da vida humana pressupõe uma alienação do poder decisório sobre a própria existência em nome do divino.” A segunda premissa, da ladeira escorregadia, defende que uma maior flexibilização na lei criminalizadora do aborto provocaria uma flexibilização moral no campo da reprodução. Assim, defende-se que a descriminalização do aborto por inviabilidade fetal seria o início da ladeira para se chegar à descriminalização da eugenia. A ultima premissa – da potencialidade – defende que há uma relação de continuidade entre um feto e um adulto. O feto seria um adulto potencial. Assim, os direitos e prerrogativas sociais de um indivíduo seriam transferidos ao feto. No caso da anencefalia não há esta potencialidade, mas, ainda assim, por esta teoria todo e qualquer feto deve ser tratado como um indivíduo vivo, danos à vida deste seriam o mesmo que danos à sua própria vida. Conclusão. Direito é político, no sentido de que se preocupa menos com a verdade da filosofia (epísteme) que com a opinião (doxa). Assim, levar um debate à justiça significa a partir de critérios objetivos chegar a uma decisão que interessa a todos e todas. Ou seja, não impõe uma verdade, mas possibilita de acordo com Aristóteles (2001: capítulo sobre a justiça) “o bom e o eqüitativo em situações concretas”. A assimetria sexual e o heterossexualismo obrigatório são mantidos ao longo da história na sociedade por meio de instituições e agentes que moldam o comportamento de homens e mulheres até que este comportamento passe a ser tido por “natural”. Ao decidir/opinar negativamente em processos de requisição de autorização para abortamento usando argumentos religiosos, os juízes/promotores estão reproduzindo a idéia de que há um sentido único essencial e universal, que reproduz através dos dogmas da Igreja Católica imposições de gênero que mantém e alimentam a subordinação feminina. A Igreja molda a cultura da sociedade, através de suas normas e preceitos morais e éticos, inculca nos indivíduos idéias familiaristas e sexistas, tais como que a mulher é mãe e deve agüentar qualquer sofrimento em nome dos filhos, mesmo que estes se nascerem não venham sequer sobreviver por algumas horas. Criminalizar o abortamento em casos de inviabilidade fetal pela presença de anencefalia é um comportamento marcado por gênero. Este comportamento suprime da mulher o poder de decidir sobre seu corpo, sua saúde, sua vida; e quando se subtrai o poder de escolha das mulheres em uma situação limite como é a gravidez de um feto anencefálico significa suprimir sua identidade. Mais que isto, homens e mulheres estão em desigualdade com relação a este processo e às responsabilidades conseqüentes. A gestação de um feto anencefálico trás danos a toda a família, que acompanha a gestação e o sofrimento da mulher sabendo de antemão qual será o fim, mas, ninguém é atingido como a mulher, que, mais que os problemas de saúde e o risco de vida, carregará em seu ventre um feto, quisá por nove meses, sem que haja a expectativa da chegada de um filho. O Brasil é um país laico e suas normas são regidas pelos princípios constitucionais, dentre os quais se encontra o princípio da igualdade entre homens e mulheres (artigo 5º, inciso I da Constituição Federal de 1988), por esta razão, é indispensável uma regulamentação acerca da prática de aborto nestes casos, a fim de que se resguarde a ética individual e a paridade de gênero.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-58/subordinacao-da-mulher-supressao-de-sua-identidade-criminalizacao-do-abortamento-em-casos-de-anencefalia-e-a-igreja-catolica/
Direito dos animais: comentários à legislação federal brasileira
O presente trabalho faz uma breve análise da legislação federal brasileira sob a óptica do movimento pelos direitos dos animais.  Observa-se que o mencionado corpo normativo, embora, por evidente, essencialmente construído com uma visão antropocêntrica, contém avanços significativos e capazes de tutelar de maneira eficiente, se não todos, pelo menos alguns direitos significativos dos animais.
Biodireito
INTRODUÇÃO Como facilmente se concluí do título deste artigo, seu objetivo primordial é o de realizar uma análise da legislação federal brasileira diretamente relacionada aos direitos dos animais.  Cabe destacar que possui particular interesse a legislação voltada à proteção do animal enquanto ser vivo, com interesses próprios e distintos daqueles dos seres humanos, paradigma central do movimento pelos direitos dos animais.  Assim, não são relevantes no presente contexto os dispositivos legais de mera proteção ambiental ou de estoques, cuja vigência transcende, por motivos óbvios, os interesses dos próprios animais não humanos, atendendo, na maioria das vezes, primordialmente aos interesses dos seres humanos.  Aliás, tal tipo de legislação é aprovado com uma visão antropocêntrica, que não se coaduna com a abolição do “especismo” e com os direitos dos animais.  É o caso, por exemplo, de dispositivos que objetivam a regulação de estoques para exploração humana, tais como a Convenção Internacional para Regulamentação da Pesca da Baleia (sobre a qual existem diversos dispositivos legais), ou o Decreto-Lei 221 de 28/02/1967 que dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca. Também não interessam, no presente contexto, dispositivos legais que protejam os animais enquanto propriedade, já que também desconsideram os interesses próprios destes seres, não indo assim ao encontro dos objetivos centrais do movimento pelos direitos dos animais. Como muito bem observa RODRIGUES (2003) o bem jurídico tutelado pela algumas destas leis, “…não são propriamente os Animais, porém a função ecológica, pois não são considerados sujeitos de direitos pela doutrina majoritária”. Interesse específico desperta a legislação que proteja os animais contra a crueldade, proibindo ou minimizando a exposição dos mesmos a procedimentos e atos cruéis e capazes de lhes provocar sofrimento.  Não é intenção exaurir o tema, mas destacar os principais aspectos e dispositivos pátrios que demonstrem o eventual avanço legislativo brasileiro na esfera federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 05/10/1988 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, seguindo uma tendência mundial, dedicou capítulo específico (Capítulo VI do Título VIII) à proteção ambiental, incluindo proteção à flora e fauna nativas, em consonância com o disposto na Declaração da Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, realizada em 1972.  No que concerne os direitos animais reza o Art. 225, § 1o., Inc. VII, in verbis: “Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. (grifo nosso). Sem dúvida, os animais são objetos de proteção ampla em nível constitucional, com interesses próprios, claramente independentes daqueles dos seres humanos.  Há, entretanto, pelo menos duas grandes dificuldades para efetiva proteção dos direitos animais garantidos constitucionalmente, quais sejam, (1) o conceito de “animal” e, (2) o conceito de “crueldade”.  Atualmente, não há qualquer legislação vigente que defina claramente estes dois conceitos. No que se refere ao conceito de “animal” cumpre mencionar que se encontram em tramitação no Congresso Nacional, como veremos mais adiante, projetos de lei que, de certa forma, suprem esta deficiência, ao menos para algumas atividades específicas. Quanto ao conceito de “crueldade”, o Decreto 24.645 de 17/07/1934 contém, como também veremos adiante, o conceito de maus-tratos, que pode preencher, ainda que parcialmente, a referida lacuna. Decreto 24.645 de 10/07/1934 – Estabelece medidas de proteção aos animais Fundamental o Art. 1o. deste dispositivo, que coloca sob tutela do Estado “todos os animais existentes no país”, e mais, atribuí ao Ministério Público a função de substituto legal dos mesmos, com capacidade, assim como os membros das “Sociedades Protetoras dos Animais”, de assisti-los em juízo (Art. 2o., § 3o.). Em nossa opinião este Decreto é uma verdadeira obra-prima no que se refere aos direitos dos animais, pois cristaliza princípios normativos que são atualmente buscados pelos advogados destes direitos em todo o mundo.  Sua análise mais apurada revela que, ao contrário do senso comum, sobrepassa o instituto da propriedade e da mercancia dos animais, muito embora, como reconheça RODRIGUES (2003), ainda não tenha havido “…reconhecimento do novo status quo como sujeitos de direito a despeito do disposto no §3o. do Art. 2o do Decreto 24.645, de 1934…”. Na mesma direção segue ACKEL FILHO (2001), “Já se pode afirmar que a norma atribui aos animais uma espécie de personificação, que os torna sujeitos de direitos dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação.” A interpretação deste Decreto conduz à conclusão de que o Ministério Público pode ser qualificado como substituto processual, tendo assim a possibilidade de fazer valer em juízo qualquer decisão sobre direito individual e indisponível dos animais.  Cabe mencionar que, como é de amplo conhecimento, a substituição processual permite, neste caso, ao Ministério Público avocar para si o papel de parte no processo.  Repetindo as palavras de RODRIGUES (2003): “Ao considerar que o Ministério Público possui legitimidade para substituir as partes para as quais atua em nome próprio, na qualidade de autor ou réu, de pessoas físicas ou jurídicas a quem são atribuídas personalizações, o legislador, mediante o Decreto 24.645, não só conferiu nova função relevantíssima ao Ministério Público, mas também reconhece que os animais não são meramente coisas como se abstrai do Código Civil.” Aliás, parece haver aqui um conflito de leis, já que se os animais fossem considerados coisas não deveria ter o Ministério Público legitimidade para a referida substituição processual determinada pela norma em questão.  Este tema é mais profundamente analisado na já mencionada obra de RODRIGUES (2003). Além disto, o Art. 3o. do Decreto enumera 31 situações consideradas “maus tratos”, e que sujeitam o indivíduo que os praticar à penalidades previstas no Art. 2o.. Como se pode aduzir da análise dos comportamentos elencados, alguns deles vão diretamente ao encontro dos anseios dos atuais movimentos pelos direitos dos animais, enquanto outros são claramente utilitaristas e talvez satisfaçam os adeptos do movimento pelo bem-estar animal. Dentre os incisos do Art. 3o que respeitam os princípios defendidos pelos advogados dos direitos dos animais tem-se: “V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação; XV – prender animais atrás dos veículos ou atados às caudas de outros; XXV – engordar aves mecanicamente; XXVI – despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos a alimentação de outros; XXVIII – exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem ou sobre pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca; XXIX – realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécies ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado; XXX – arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculos e exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias; XXXI – transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores, e outras aves de pequeno porte, exceção feita das autorizações para fins científicos, consignadas em lei anterior.” Os demais incisos do referido artigo tratam precipuamente de proibições que visam minimizar eventual sofrimento dos animais mantendo, todavia, uma visão antropocêntrica e, portanto, “especista”. Contudo, como se pode constatar pelos incisos transcritos, trata-se de legislação com aspectos extremamente avançados, que proíbe terminantemente diversas práticas contrárias aos interesses dos animais. Algumas destas práticas, infelizmente, ainda podem ser corriqueiramente observadas em distintas regiões do país.  Por motivos desconhecidos tais comportamentos, proibidos desde 1934, continuam se perpetuando sem a devida interferência do Estado que, corretamente, colocou os animais sob sua tutela.  Um levantamento breve na jurisprudência também permite vislumbrar que o Ministério Público não tem atuado de forma determinante na defesa dos interesses dos animais como lhe determina o Decreto. Houve na Doutrina, por algum tempo, discussão acerca da eventual revogação deste decreto, em face do Decreto Federal 11 de 18/01/1991, que aprovou a estrutura do Ministério da Justiça revogando expressamente inúmeros decretos, dentre eles o Decreto 24.645.  Ocorre, todavia, que o Decreto 24.645 foi editado em 1934, portanto em período de exceção, pelo então presidente Getúlio Vargas, equiparando-se a Lei.  Evidentemente, não pode uma Lei ser revogada por instrumento que lhe é inferior, no caso um Decreto.  Esta é, por exemplo, a posição de MARTINS (2004).  Tal debate, todavia, parece superado uma vez que o Decreto 761 de 19/02/1993 revogou o Decreto Federal 11 de 18/01/1991, dando-se assim uma repristinação, que é o entendimento de DIAS (1999), uma das mais proeminentes defensoras dos direitos dos animais em nosso país. Muito embora nenhuma outra legislação vigente defina claramente o que considera “maus tratos”, o que por si só demonstra o valor do Decreto 24.645, mencione-se que legislação inequivocamente em vigor, mais especificamente a Lei 9.605 de 12/02/1998, conhecida como Lei dos Crimes Ambientais, que também será analisada mais adiante, considera crimes os maus tratos aos animais, com a devida cominação de penas. Decreto-Lei 3.688 de 3/10/1941 – Lei das contravenções penais Este Decreto estabelece em seu Art. 64: “Crueldade contra animais Art. 64 – Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão simples, de 10 (dez) dias a 1 (um) mês, ou multa. § 1º – Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º – Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.” Observe-se que apenas a primeira parte do caput do artigo citado atende aos objetivos dos advogados dos animais, na medida em que proíbe a crueldade contra estes.  Os demais dispositivos apenas evitam excessos e crueldade, indo assim ao encontro do movimento pelo bem estar animal.  Falha a lei em não definir o que considera tais excessos ou atos de crueldade. Decreto 5.197 de 03/01/1967 – Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras providências O Art. 1o. deste Decreto é também de alta relevância, porque define toda a fauna silvestre, ou seja, quaisquer espécies e em qualquer fase de seu desenvolvimento e que viva naturalmente fora do cativeiro, assim como seus ninhos, abrigos e criadouros, como propriedade do Estado, proibindo a sua utilização, destruição, perseguição, caça ou apanha.  Proíbe também, em seu Art. 3o., “o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha”. Sem dúvida, um artigo como o desejado por todos os defensores dos animais, embora se refira exclusivamente ao animais silvestres.  Todavia, o resto do texto legal descreve uma série de situações em que tais atividades são permitidas, inclusive a caça amadora, retirando assim muito do seu impacto efetivo. Em alguns aspectos preocupa-se com o bem estar animal, ao, por exemplo, proibir a caça “com visgos, atiradeiras, fundas, bodoques, veneno, incêndio ou armadilhas que maltratem a caça”.  Todavia, continua permitindo, inexplicavelmente, esta atividade de pouco ou nenhum significado útil para os humanos nos dias de hoje, mas altamente questionável dos pontos de vista moral e ético. Os demais artigos centram-se em aspectos regulamentares da caça, e um pouco sobre a pesca, estabelecendo penalidades para os infratores. Aspecto interessante, e ao que parece fartamente ignorado, é o preceito contido no Art. 35, caput, de que, a partir de 1969:  “Nenhuma autoridade poderá permitir a adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos sobre a proteção da fauna, aprovados pelo Conselho Federal de Educação”.  E mais, em seu § 1o. determina aos programas de ensino dos níveis primário (hoje fundamental) e médio o oferecimento de ao menos duas aulas anuais sobre o tema.  Não bastasse, diz o § 2o. que:  “Igualmente os programas de rádio e televisão deverão incluir textos e dispositivos aprovados pelo órgão público federal competente, no limite mínimo de cinco minutos semanais, distribuídos ou não, em diferentes dias.” Lei 6.638 de 08/05/1979 – Estabelece normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais e determina outras providências. Esta lei tem claro cunho utilitarista indo ao encontro dos anseios dos defensores do bem estar animal, uma vez que não proíbe a prática da vivissecção, mas regulamenta sua utilização. Veta, em seu Art. 2o., a vivissecção sem o uso de anestesia, em centros não registrados, sem a supervisão de técnico especializado, em um período de aclimatação em biotérios e “em estabelecimentos de ensino de primeiro e segundo graus e em quaisquer locais freqüentados por menores de idade” (Inc. V) (grifo nosso).  Este inciso é claramente ignorado, ao menos em nosso conhecimento, em todas as instituições universitárias brasileiras que atuam nas áreas da saúde (particularmente medicina e enfermagem), veterinária e ciências biológicas, dentre outros.  Como é notório, a cada dia mais tem acesso ao ensino superior jovens com idade inferior a 18 (dezoito) anos, que desde o primeiro ou segundo ano de seus cursos de graduação freqüentam disciplinas nas quais se pratica a vivissecção, tais como zoologia e, particularmente, fisiologia.  Muito embora o objetivo do referido inciso, em face do caráter utilitarista da lei, pareça ser muito mais o de proteger a formação psicológica dos jovens do que conferir efetiva proteção aos direitos animais, os defensores destes direitos parecem não estão atentos ao fato, nem tampouco os responsáveis por estas atividades, que também parecem desconhecer, ou pior ainda, simplesmente ignorar, a referida legislação. Lei 7.173 de 14/12/1983 – Dispõe sobre o estabelecimento e funcionamento de jardins zoológicos e dá outras providencias Trata a referida lei dos procedimentos a serem adotados para o funcionamento de estabelecimentos que mantenham animais vivos em cativeiro, ou semi-liberdade, para a visitação pública, ou seja, jardins zoológicos, conforme definidos no Art. 1o. Do ponto de vista dos direitos dos animais merece destaque principalmente o Art. 7o., in verbis: “Art 7º – As dimensões dos jardins zoológicos e as respectivas instalações deverão atender aos requisitos mínimos de habitabilidade, sanidade e segurança de cada espécie, atendendo às necessidades ecológicas, ao mesmo tempo garantindo a continuidade do manejo e do tratamento indispensáveis à proteção e conforto do público visitante.” Ou seja, a legislação exige determinadas condições de “habitabilidade, sanidade e segurança” para cada espécie mantida, todavia, com um duplo caráter, ou seja, de um lado “atendendo as necessidades ecológicas” e, portanto, tendo os animais como foco determinante das condições, e de outro a garantia de continuidade “do manejo e do tratamento indispensáveis à proteção e conforto do público visitante” (grifo nosso), ou seja, o objeto último a ser protegido e mantido confortavelmente é o ser humano. O Art. 3o., bem como em certa medida o Art. 16, conferem alguma proteção aos direitos dos animais, já que, em razão do que dispõe o art. 1º da Lei nº 5.197, de 03/01/1967, deixa claro que os animais da fauna nativa, ou indígena, são propriedade do Estado e não podem ser objeto de comercialização.  Abre, entretanto, exceção para os espécimes nascidos em cativeiro. Lei 7.643 de 18/12/1987 – Proíbe a pesca de cetáceos nas águas territoriais brasileiras, e dá outras providências Indubitavelmente uma lei que, em um único artigo, atende plenamente os anseios do movimento em defesa dos direitos dos animais, na medida em que proíbe, sem qualquer exceção, a pesca, ou mesmo o molestamento intencional, de todas as espécies de cetáceos nas águas territoriais brasileiras, cominando pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa, com possibilidade de perda da embarcação em caso de reincidência.  Desnecessários outros comentários. Lei 9.605 de 12/02/1998 – Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências A conhecida “Lei dos Crimes Ambientais” traz em seu bojo, na Seção I do Capítulo V, um conjunto de 9 (nove) artigos referentes aos crimes contra a fauna.  Em que pese ainda uma certa conotação utilitarista, como se denota nos dispositivos que permitem a exportação de couros de anfíbios e répteis desde que devidamente autorizadas (Art. 30), ou no Art. 29, que define como crime “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória”, mas tão somente se praticados “sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”, não há dúvida de que o presente instrumento contém alguns avanços importantes na defesa dos direitos dos animais. Os artigos da mencionada seção tratam de diferentes aspectos do relacionamento entre animais não humanos e humanos, incluindo a pesca e a caça.  Todavia, no contexto dos direitos dos animais, há que se destacar a norma incriminadora do Art. 32, na medida em que parece atender aos princípios defendidos por seus advogados, in verbis: “Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.” Tal dispositivo deixa clara a posição dos animais como bem juridicamente tutelado independentemente do eventual interesse dos seres humanos.  O animal é, claramente, o objeto central do dispositivo.   Este artigo deve ser interpretado em conjunto com o Decreto 24.645 de 10/07/1934, na medida em que este último é o único dispositivo legal que define maus-tratos, como já mencionado. Igualmente importante o disposto no parágrafo 1o. deste mesmo artigo, já que também incrimina aquele que “realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo”, mesmo que o fim seja o avanço da ciência ou do conhecimento humano, quando existam recursos alternativos.  Este dispositivo evidencia e importância da adequada compreensão dos mecanismos dolorosos e de sofrimento dos animais, assim como a da busca de recursos que possibilitem o aprendizado e o avanço do conhecimento sem a necessidade de seu emprego, especialmente se com o uso de técnicas cruéis ou dolorosas.  Tal preocupação não é apenas brasileira, mas vem crescendo significativamente em diversos países, existindo centenas de cientistas e instituições internacionais que vem buscando seriamente por alternativas ao uso de animais no ensino e na pesquisa, como por exemplo o “Fund for the Replacement of Animals in Medical Experiments”[1] (Fundo para Substiuição de Animais em Experimentos Médicos) e o “European Center for the Validation of Alternative Methods”[2] (Centro Europeu para a Validação de Métodos Alternativos). Decreto 3.842 de 13/06/2001 – Promulga a Convenção Interamericana para a Proteção e a Conservação das Tartarugas Marinhas, concluída em Caracas, em 1º de dezembro de 1996 No que se refere especificamente aos direitos dos animais merece destaque, na convenção em epígrafe, o constante do Art. 4o., Item 2, alínea a.  Tal dispositivo proíbe a captura, a retenção ou a morte intencionais das tartarugas marinhas, bem como o comércio doméstico destas, de seus ovos, partes ou produtos.  Assim, vê-se respeitado o objetivo de proibição absoluta do uso de animais, como preconizado pelos advogados destes.  Destaque-se também que a proibição inclui todas as fases de desenvolvimento destes organismos, incluindo-se os ovos.  Desnecessários quaisquer comentários adicionais acerca da propriedade do referido dispositivo legal. Lei 10.519 de 17/07/2002 – Dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeio e dá outras providências Neste dispositivo legal cumpre observar ab initio, não ser o mesmo compatível com o movimento dos direitos dos animais, na medida em que permite a utilização destes em atividades que, inegavelmente, são fontes de grande estresse e sofrimento.  Tal diploma pretende apenas minimizar tais efeitos, sem, todavia, alcançar plenamente seus objetivos.  Tal afirmativa embasa-se em dicotomias presentes inclusive na própria legislação.  O Art. 3o., Inc. II, da Lei 10.519, por exemplo, determina que a entidade promotora do evento deverá prover médico veterinário habilitado, e a quem caberá, dentre outros, “impedir maus tratos e injúrias de qualquer ordem”.  O Art. 3o do Decreto 26.645/34 é o único dispositivo legal brasileiro que define maus tratos, dentre os quais se inclui (Art. 3o., Inc. IV), golpear voluntariamente qualquer “órgão ou tecido de economia” .   Ora, todos os que já assistiram a um rodeio sabem que golpear os animais é atividade absolutamente corriqueira, e assim, ilegal nos termos do decreto mencionado.  Na verdade, praticamente impossível imaginar-se um rodeio sem a concretização de golpes em diversas partes dos animais envolvidos.  Mencione-se que o Inciso refere-se a órgão ou tecido de “economia”, seja lá o que isto signifique.  Possivelmente refira-se a partes que possuam interesse comercial, o que denota, apesar de tudo, sua clara visão antropocêntrica.  De qualquer sorte, inegável que praticamente qualquer parte das diferentes espécies de gado empregadas nestas atividades tem valor e interesse comercial, estando assim sob a proteção deste dispositivo. CONCLUSÕES Em resumo, como se pode aduzir destas breves análises, a legislação federal brasileira, embora essencialmente antropocêntrica, contém alguns dispositivos capazes de tutelar de maneira eficiente, se não todos, pelo menos alguns direitos significativos dos animais, livrando-os de maus tratos e sofrimentos absolutamente desnecessários.  Neste diapasão merece destaque o Decreto 24.645 de 10/07/1934 que, estabelece diversas medidas efetivas de proteção dos direitos animais, além de personificá-los, na medida em que define o Ministério Público como substituto processual.  Tal legislação, todavia, está por merecer uma atualização, já que completou mais de 70 anos de existência, período no qual significativa evolução do pensamento ocorreu na sociedade humana, permitindo assim uma visão não tão antropocêntrica do tema.  Esta atualização deve passar também pelo Ministério Público que, ao nosso ver, não está, no que se refere ao direito dos animais, desempenhando de maneira proeminente o papel que lhe foi confiado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-57/direito-dos-animais-comentarios-a-legislacao-federal-brasileira/
Tutela do consumidor diante dos organismos geneticamente modificados – uma análise acerca da rotulagem
O presente artigo busca desenvolver o tema da rotulagem dos organismos geneticamente modificados e analisar sua regulamentação no Brasil. A partir do estudo dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Precaução, e do Direito à informação, pretende-se investigar as causas de sua não aplicação, sempre com base na idéia de que se deve permitir ao consumidor fazer a escolha de modo esclarecido.
Biodireito
1. Introdução Em uma sociedade em que novas tecnologias são desenvolvidas diariamente, torna-se de vital importância que os aplicadores do direito se debrucem e estudem as conseqüências que poderão decorrer da sua utilização na vida prática. As tecnologias não se limitam mais ao âmbito de criar ou modificar máquinas com a finalidade de tornar o nosso dia-a-dia mais agradável e confortável. Atualmente e cada vez mais, há noticiário acerca do desenvolvimento de pesquisas no âmbito da medicina que podem vir a possibilitar a clonagem humana, seja com fins terapêuticos ou não, a descoberta de novos genes que poderão ser utilizados para tratar determinada enfermidade ou ser responsável por determinadas características. Esta é área de preocupação do biodireito, portanto. Contudo, nas últimas décadas, as descobertas e modificações realizadas pelo ser humano em organismos vegetais e animais, que vêm sendo estudados, desenvolvidos e introduzidos na cadeia alimentar, não são divulgados de forma massiva nos meios de comunicação apesar de seu extraordinário potencial de impacto tanto na vida social como no meio ambiente. Este aspecto do biodireito também é importante estudar. Ao tratar dos organismos geneticamente modificados, JORGE RIECHMANN[2] apresenta estatísticas impressionantes e afirma que, em 1999, antes mesmo que os transgênicos fossem largamente conhecidos pela população como uma nova realidade na área alimentícia, mais de 70% dos produtos comercializados nos supermercados estadunidenses continham em sua composição algum tipo de ingrediente que havia sido objeto da engenharia genética. Não obstante, naquele mesmo ano, o Laboratório de Nutrição de York, Inglaterra, divulgou um aumento mais do que significativo de 50% de alergias à soja após apenas um ano da introdução da soja transgênica na cadeia alimentar[3]. Diante desse impasse entre desenvolvimento de tecnologias e as possíveis conseqüências à saúde humana por sua utilização, busca-se, por este estudo, um entendimento acerca da ausência de uma efetiva aplicação da rotulagem de produtos compostos que utilizam organismos geneticamente modificados, apesar de existir legislação específica acerca do tema em nosso ordenamento jurídico. 2. O que são organismos geneticamente modificados Os organismos geneticamente modificados são obtidos a partir da transferência de genes de um ser vivo para outro por meio da transgenia, constituindo variedades que tiveram seu genoma alterado a partir da introdução de DNA proveniente de outro ser vivo, contendo uma seqüência promotora, estrutural e terminal. A seqüência estrutural permitirá que o organismo transgênico expresse a característica relevante desejada, uma vez que determinará a produção de uma proteína nova. Essa nova proteína pode, por exemplo, tornar uma variedade vegetal resistente a certo tipo de herbicida, como é o caso da soja Roundup Ready, um tipo de semente de soja que foi desenvolvida pela Monsanto na década de 80, resistente a herbicidas à base de glifosato. É importante estabelecer as principais distinções entre o melhoramento tradicional e a transgenia (técnica do DNA recombinante). As técnicas tradicionais estão restritas ao cruzamento sexual, apresentando, o organismo obtido, invariavelmente metade do código genético das variedades parentais da mesma espécie que o originaram. O que torna a transgenia uma técnica economicamente relevante é a possibilidade de controle específico dos genes que serão transferidos, além de possibilitar a expressão de genes cujas características são conhecidas em uma espécie distinta daquela da qual foi extraído o DNA. Em que pese permitir a transgenia a alteração genética de qualquer espécie, o presente artigo cingir-se-á tão-somente às variedades vegetais e à questão da rotulagem como mecanismo de garantir ao consumidor uma escolha baseada num juízo esclarecido. Melhoramento tradicional[4]: Técnica da Transgenia:   3. O Direito à Saúde a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Partindo da idéia de transgeníase exposta acima, pode-se, então, iniciar uma crítica voltada para o cenário jurídico nacional. Como toda construção, deve-se, antes de tudo, desenvolver uma base a partir da qual aquela deverá ser feita e, no presente artigo, busca-se uma fundamentação diretamente extraída dos princípios e direitos fundamentais (arts. 1º e 5º da Constituição Federal de 1988), principalmente, daqueles diretamente ligados ao Direito Civil. Assim, de início, é imperativo trabalhar-se com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Inserido no artigo 1º, inc. III, da Constituição Federal, tal princípio inaugura a Ordem Jurídica Nacional, atuando como seu fundamento (e, principalmente, para os direitos e garantias fundamentais) e forçando a adaptação de todos os outros direitos que em sua égide se situam. Se a Constituição é centro de referência para todas as leis e atos administrativos nacionais, a conformidade com seu texto e suas idéias é obrigatória, sob pena de inconstitucionalidade. Porém, a simples enunciação do princípio, por si só, não é garantia de que este venha a ser seguido. Corre-se, ainda, o risco de deixar em aberto seu conteúdo. Logo, faz-se necessário delimitar sua substância para com ela trabalharmos. Tal princípio transporta para dentro do ordenamento jurídico um suporte ético, servindo como modelo para as relações intersubjetivas na comunidade ou entre esta e o Estado. Historicamente delimitado, aquele princípio tem seu conteúdo definitivamente aceito[5], basicamente, a partir do pensamento de Kant, com “a dignidade da pessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio”[6], podendo-se afirmar que a concepção de dignidade da pessoa humana como algo inerente a qualquer ser humano parece melhor se amoldar ao ordenamento pátrio. No âmbito do Direito Civil, a ser melhor trabalhado neste artigo, mencionam-se as palavras de FRANCISCO AMARAL: !”om uma visão mais atualizada, pode-se dizer que pessoa traduz a qualificação jurídica da condição natural do indivíduo, em uma transposição do conceito ético de pessoa para a esfera do direito privado, e no reconhecimento de que são inseparáveis as construções jurídicas da realidade social, na qual se integram e pela qual se justificam[7].” Como decorrência disso, o ser humano, perante o Estado e a comunidade, deve ser encarado e respeitado, por si só, como ser racional e independente para a tomada de suas decisões. Para tanto, a idéia de dignidade da pessoa humana impõe certas condutas ao Estado (sentido positivo do princípio), devendo este atuar sempre em prol do desenvolvimento da dignidade humana, possibilitando sua inserção social e as condições necessárias para isso. Tem o dever também, de repelir aquelas condutas que venham de encontro ao enunciado ético imposto pelo princípio; o Estado, enquanto ente organizado pela coletividade, deve sempre trabalhar em prol desta, nunca em seu desfavor. Do mesmo modo, tal postulado impõe certas condutas de abstenção perante a pessoa (sentido negativo), cabendo ao Estado e à comunidade respeitar a autonomia ética do ser humano, quanto ao seu desenvolvimento e formação. “[…] sustenta-se que uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação[8].” No âmbito da Dignidade da Pessoa Humana, quando se trabalha com os organismos geneticamente modificados e, principalmente, com questões relacionadas à transgeníase e à bioética, torna-se obrigatório invocar o Direito à Saúde, potencial afetado por aqueles. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Deste modo se pronuncia a Constituição Federal em seu art. 196, traçando, nitidamente, uma linha, em conformidade com todo o exposto acima, de atuação do Estado. De outra maneira não poderia ser o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, do qual transcreve-se o trecho abaixo: “O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”. (Decisão Monocrática – Supremo Tribunal Federal – Relator Ministro GILMAR MENDES – AI 565098 / RS – RIO GRANDE DO SUL – Julgado em 21/11/2005 – Publicado DJ 02/12/2005  PP-00053) Reconhecidamente, o direito à saúde é um direito fundamental do ser humano, mesmo que fora do rol do art. 5º da Constituição Federal. Sua inegável importância, ao que parece, dispensa comentários. Sua positivação no texto da Lei Fundamental, além disso, demonstra o importante caráter social da Constituição de 1988, impondo ao Estado promover, tal qual o sentido positivo do princípio da dignidade da pessoa humana, o respeito à saúde dos cidadãos e a sua manutenção. Para isso, deverá adotar uma postura ativa e ética de revisar as políticas públicas a serem implantadas e apoiadas no Brasil, tendo o interesse público como paradigma. “Assim, o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como – e esta a dimensão mais problemática – impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde […][9]” Em relação aos organismos geneticamente modificados encontra-se aqui uma barreira inicial, pois não têm ainda um caráter seguro, devendo, por enquanto, serem utilizados com bastante cautela, cabendo ao Estado, pelo próprio preceito constitucional, fazer esta mediação para a sua incorporação no cotidiano, buscando sempre minimizar os efeitos que estes possam vir a causar à saúde humana. 4. O Princípio da Precaução Um dos principais problemas advindos das pesquisas e da utilização dos OGMs está relacionado à imprevisibilidade dos efeitos que a alteração da estrutura físico-química desses organismos pode gerar para a saúde dos seres humanos. É aqui que se pode ressaltar a aplicação do princípio da precaução. Este princípio, ainda pouco debatido em nossa doutrina, foi desenvolvido pela doutrina alemã. Em 1804, Georg Ludwig Hartig, um dos mais importantes engenheiros florestais alemães de todos os tempos, afirmava que uma administração florestal inteligente é aquela capaz de se utilizar da Natureza de tal forma que torne possível às próximas gerações usufruir as mesmas vantagens das quais usufrui a atual[10]. O Vorsorgeprinzip surge, então, como um princípio diretor de política relativa à proteção do meio ambiente e da saúde, reforçando os dispositivos existentes que objetivam o respeito à proporcionalidade, o direito à informação e à prevenção dentre outros, servindo ainda como base para a elaboração de novas normas. Apesar de sua larga existência, apenas em junho 1992, após ser citado pelo Tratado de Maastricht como princípio basilar do Direito Comunitário europeu, foi ele consagrado expressamente pela primeira vez na ordem internacional. A Declaração da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em seu capítulo 35, parágrafo 3, da Agenda 21, refere-se a sua aplicação sem, contudo, defini-lo: “(…) In the face of threats of irreversible environmental damage, lack of full scientific understanding should not be an excuse for postponing actions which are justified in their own right. The precautionary approach could provide a basis for policies relating to complex systems that are not yet fully understood and whose consequences of disturbances cannot yet be predicted.” [11] (Ante ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, a falta de completo conhecimento científico não deve ser usada como justificativa para postergar a adoção de medidas que se justificam por si mesmas. O enfoque baseado no princípio da precaução pode servir como base para políticas relativas a sistemas complexos que ainda não são completamente compreendidos e cujas conseqüências não podem ainda ser previstas – tradução livre) Entretanto, mesmo após regulamentação no Protocolo de Cartagena que trata da Biossegurança[12] e autoriza sua utilização como fundamento no caso de uma eventual recusa na aquisição de organismos geneticamente modificados, sua efetiva aplicação ainda é sede de debate. Os Estados Unidos, grandes produtores de organismos geneticamente modificados, defendem que os transgênicos, como qualquer outro produto agrícola, devem se submeter, no âmbito da OMC, ao princípio do livre-comércio, enquanto a União Européia, mais conservadora, filia-se ao entendimento de que o Protocolo de Cartagena e, conseqüentemente, o princípio da precaução devem ser utilizados universalmente como fundamentos a sua política de autorização prévia da entrada e venda desses produtos, em vigor desde 1990[13]. Contudo, torna-se importante distinguir o princípio em tela da responsabilidade civil e do princípio da prevenção. Prevenir é, segundo definição do Dicionário Aurélio[14], dispor com antecipação, ou de sorte que evite dano ou mal. Apesar de aparentemente os termos, precaução e prevenção apresentarem-se como sinônimos, distinguem-se quanto ao conhecimento ou não dos possíveis riscos ou conseqüências futuras. Assim, segundo ensinamento doutrinário, enquanto o princípio da precaução busca evitar danos ainda desconhecidos, ou, ao menos, incertos tendo em vista a falta de um estudo conclusivo acerca dos efeitos nocivos que podem decorrer da utilização de determinado produto, o princípio da prevenção se aplica quando os riscos já são conhecidos. A responsabilidade civil afasta-se do princípio em debate, pois somente poderá incidir quando os danos já foram causados, impondo ao agente responsável pela sua produção algum tipo reparação. Desta forma, é elucidativa a definição francesa trazida pela Lei Barnier de fevereiro de 1995, como sendo este o princípio segundo o qual a ausência de certeza, levando-se em consideração o conhecimento do momento, não pode retardar a adoção de medidas efetivas e proporcionais, visando prevenir riscos de danos graves e irreversíveis, a um custo econômico aceitável[15]. 5. O Direito à Informação Enquanto, há menos de um século levava-se meses para que uma informação cruzasse o Oceano Atlântico, com o desenvolvimento dos meios de telecomunicação hoje as trocas são instantâneas, tornando o direito à informação de vital importância, principalmente no que diz respeito às novas tecnologias e suas conseqüências. Sendo este, portanto, na atualidade, considerado como um dos principais direitos dos cidadãos. A Constituição Federal de 1988, elevando-o à categoria de direito e garantia fundamental, em seu artigo 5º inciso XXXIII, dispõe que sendo todos iguais perante a lei, independentemente de qualquer distinção, “têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.” Como bem analisa ANA CLÁUDIA BENTO GRAF[16] “o direito de acesso às informações públicas é decorrente do princípio da publicidade ou da transparência, previsto no art. 37 da Constituição Federal”, sendo, assim, um principio norteador da política publica. Desta forma, afirma Luis Gustavo Grandinetti[17] que esta garantia fundamental se apresenta tanto como um direito subjetivo público, oponível ao Estado com o objetivo de impedir qualquer tipo de obstáculo e possibilitar a livre investigação, como um direito subjetivo privado, oponível às pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, a fim de exigir a correção ou a exibição de informações. Citando Pilar Cousido, sustenta que a informação tem uma dupla função: uma função social e outra política. Como função social se apresenta com o objetivo de disseminar o conhecimento, a fim de que, estando em posse daquela informação, os cidadãos estejam em condições mais igualitárias, aproximando-os um dos outros, de forma a torná-los mais aptos a tomar decisões e a comparti-las. Em sua função política, o direito à informação faz-se essencial para garantir que o cidadão exercendo o seu poder de opção, possa escolher de forma consciente, haja vista que por meio de informações sérias, seguras e imparciais, encontra-se cientificado de todas as possíveis conseqüências que poderão decorrer de sua escolha. Em âmbito infraconstitucional, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º inciso III, estabelece como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. Pode-se concluir que: “direito à informação lida com o processo massivo de informação compreendido como aquele dirigido para alcançar, senão toda, boa parcela da comunidade. É justamente aí que reside a circunstância de ser um direito difuso, ou seja, pertence a todos, sem poder ser fracionado entre os integrantes da comunidade. A informação a todos interessa, a todos submete, a todos é dirigida, a todos acessível. Se não atinge todas as pessoas de cada comunidade, pelo menos está disponível, potencialmente, para atingi-las[18].” 6. A legislação brasileira e a rotulagem: análise crítica Além do artigo 6º, inciso III, do CDC, especificamente acerca da rotulagem dos organismos geneticamente modificados, são relevantes a Lei Federal 11.105/05 (Lei de Biossegurança), o Decreto 4.680/03 e a Portaria 2.658/03. O artigo 40 da Lei de Biossegurança prevê que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento. O Decreto Federal 4.680/03, por sua vez, dispõe em seu artigo 2º que “Na comercialização de alimentos e ingre­dientes alimentares destinados ao consu­mo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produ­to, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto.” É imprescindível ressaltar a impossibilidade de a Lei de Biossegurança ter seu conteúdo modificado pelo Decreto 4.680/03 que a regulamenta, de acordo com o princípio da legalidade e da hierarquia das leis. Nesse diapasão, com a promulgação da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), foi revogada a disposição do Decreto 4.680/03 que restringe a rotulagem aos produtos que tenham composição transgênica acima do limite de um por cento, uma vez que o Decreto 4.680/03 não pode conter disposições que contrariem ou sejam incompatíveis com a Lei de Biossegurança. A Portaria 2.658/03 estabelece o layout do símbolo que deverá ser estampado nos produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de Organismos Geneticamente Modificados. Por fim, cita-se o Decreto 5.591/05 que regulamenta os dispositivos da Lei de Biossegurança, repetindo em seu artigo 91 a disposição do artigo 40 da Lei 11.105/05 de que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de decreto específico. No entanto, é patente o desrespeito às normas de rotulagem, principalmente ao considerarmos o recrudescimento da produção de gêneros alimentares geneticamente modificados e a inobservância de embalagens devidamente rotuladas. Em sua defesa, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação alega[19]estar cumprindo o disposto no Decreto 4680/03 e que todos os produtos industrializados existentes no mercado brasileiro que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGMs obedecem ao limite de 1% (um por cento) estabelecido pelo Decreto em comento. Entende-se, porém, que o dispositivo que condiciona a rotulagem à presença de OGMs acima do limite de 1% (um por cento) foi revogado pela Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05). Entretanto, é possível vislumbrar uma esperança de aplicação da rotulagem, expressa na liminar[20], proferida pelo Juiz Federal da VARA ÚNICA DE RONDONÓPOLIS,  Francisco Alexandre Ribeiro: “PROCESSO 2007.36.02.000701-5. D E C I S Ã O. O autor requereu a concessão de medida liminar que determine à terceira ré, BUNGE, que providencie a inclusão nos rótulos e documentos fiscais de seus produtos, nos termos do art. 40 da Lei 10.105/2005 [Lei 11.105/05] e do Decreto 4.680/2003, a informação de que eles derivariam de soja transgênica (emenda à petição inicial, fls.53/55). 2. A referida ré, por seu turno, requereu o indeferimento do pedido liminar, ao argumento de que seu produto final não conteria traços de soja transgênica, razão por que não estaria sujeita, segundo o Decreto 4.680/2003, à obrigação de rotulagem (petição à fls.73/81). 3. Os representantes judiciais da União e da ANVISA, embora intimados a se manifestar, não o fizeram, sob o pretexto de não ter interesse jurídico acerca do pedido liminar sob exame ( fls.88/89 e 104/105, respectivamente). 4. É o relatório. 5. A princípio, não se verifica nenhuma controvérsia quanto ao fato de que há traços relevantes de OGM (organismos geneticamente modificados) na soja em grãos que é industrializada pela filial da BUNGE em Rondonópolis, conforme apurado no exame administrativo requisitado pelo Ministério Público Federal à Superintendência Federal de Agricultura em Mato Grosso (ofício às fls.48/50). 6. Importa saber, então, se tal fato deve ou não ser informado nos rótulos dos produtos industrializados pela filial da BUNGE neste município. 7. O art. 40 da Lei 10.105/2005 [Lei 11.105/05]  preceitua: “Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.” 8. A norma é de uma clareza solar: o alimento e o ingrediente alimentar que contiver ou for produzido a partir de OGM ou derivado deverá conter tal informação no respectivo rótulo! 9. Assim, se os produtos que a filial da BUNGE em Rondonópolis-MT afirma produzir – a saber: óleo de soja degomado (destinado ao refino) e farelo de soja (ingrediente alimentar animal) – o são a partir de OGM (soja transgênica), forçoso é convir que devam, sim, ser devidamente rotulados com esta informação. Note-se que a informação não será no sentido de que tais alimentos/ingredientes CONTÊM OGM, mas, sim, que são produzidos A PARTIR DE OGM.  10. A rigor, a tese advogada pela BUNGE é fruto, no meu sentir, da interpretação isolada e literal do quanto disposto no art. 2º, caput, do Decreto 4.680/2003 – mais precisamente no trecho “com presença acima do limite de um por cento do produto”, – editado para regulamentar o direito à informação estatuído no Código do Consumidor em face dos alimentos transgênicos – e o pior -, agravada pelo solene e total descaso pela superveniência de lei especial sobre o assunto (Lei 10.105 /2005) [Lei 11.105/05]. 11. Ocorre que o decreto invocado (Decreto 4.680/03), enquanto ato normativo, por força do princípio da legalidade, é absolutamente subordinado à lei em sua função de regulamentá-la, não podendo, sob nenhuma hipótese inovar na ordem jurídica nem muito menos contrariá-la, razão por que, com a edição da Lei de Biossegurança (Lei 10.105/05) [Lei 11.105/05], restou revogada toda e qualquer disposição legal ou regulamentar com ela incompatível, mormente aquela invocada pela ré, ao menos no sentido que dela tenta extrair, de cunho exclusivamente gramatical. 12. Note-se que a interpretação sistemática do referido decreto chegaria a resultado bem diverso, mais consentâneo com o que veio a ficar estreme de dúvida pela novel lei, qual seja, de que a rotulagem deva informar tanto o percentual de OGM detectável no produto final, quanto aquele encontradiço na respectiva matéria-prima. 13. A par da sensível fumaça do bom direito, antolha-se, ainda, a presença do periculum in mora. O perigo de demora aqui é qualificado pelo evidente risco de perecimento de direito, não, obviamente, do direito objetivo à informação, mas, sim, do subjacente direito subjetivo coletivo de um sem-número de consumidores, o qual, a cada processamento de soja transgênica sem a consectária rotulagem, será, ao longo da demanda, diuturna e reiteradamente vilipendiado, o que, lógica e curialmente, deve ser coarctado, desde logo, à guisa de precaução e prevenção, pelo Poder Judiciário. 14. Diga-se, por fim, que com a edição da Lei de Biossegurança, no que tange à questão dos alimentos transgênicos, o que se espera da agroindústria e da indústria alimentícia, de um modo geral, é uma tomada de posição, clara e transparente, a seu respeito, sem maniqueísmos nem preconceitos. Entretanto, enquanto não se avança nesse campo – mais pertencente à Ética do que ao Direito -, salvantes raras e louváveis exceções no âmbito empresarial, o mínimo que se deve assegurar é o direito à informação do cidadão brasileiro quanto ao conteúdo e à origem do produto alimentício que está comprando, cabendo a ele, aí sim, tomar também a sua posição a favor ou contra os transgênicos. 15. Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar, determinando à BUNGE que providencie a inclusão nos rótulos e documentos fiscais relativos aos alimentos/ingredientes produzidos a partir de soja transgênica (OGM), por intermédio de sua filial de Rondonópolis, a respectiva informação nesse sentido, nos termos regulamentares estatuídos no Decreto 4.680/2003, no prazo de trinta (30) dias. Oficie-se aos órgãos regionais da ANVISA e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, cientificando-lhes da presente decisão e requisitando-se-lhes a fiscalização do respectivo cumprimento. Citem-se e intimem-se os réus, por carta precatória. Intime-se o autor. Publique-se. Rondonópolis-MT, 27 de setembro de 2007. FRANCISCO ALEXANDRE RIBEIRO Juiz Federal Pode ser apontada como uma conquista relevante a recente rotulagem[21] dos óleos de milho produzidos pela empresas Bunge e Cargill, rés na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo, Processo nº 583.00.2007.218243-0, em cumprimento à decisão liminar proferida no dia 12 de Setembro de 2007 pelo Juízo da 3ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo. No entanto, as conquistas são específicas, havendo uma gama de produtos notadamente produzidos a partir de OGMs por ser rotulada. As dificuldades concernentes à aplicação da legislação de rotulagem de transgênicos em vigor advêm principalmente da complexidade do tema em tela. Os OGMs são, em primeiro lugar, uma questão de saúde pública, uma vez que os possíveis riscos que seu consumo pode acarretar à saúde humana são ainda desconhecidos. Além disso, o tema pode ser concebido sob o aspecto do direito à informação, devendo ser assegurado, nesse sentido, o direito de escolha por parte do consumidor do produto que irá consumir com base num juízo esclarecido. Por fim, os transgênicos representam um risco eminente de impacto ambiental. Assim, ao se falar em rotulagem, também se deve considerar as falhas no tocante à fiscalização, que são, atualmente, justificadas pelo fato de, até o momento não se ter decido acerca da competência para que seja exercida, reflexo também da complexidade acima citada. 7. Conclusões Vistas algumas premissas que tornam possível o entendimento acerca da rotulagem de organismos geneticamente modificados (transgênicos) no Brasil, pode-se então, atingir determinadas conclusões. Inicialmente, cabe constatar-se o fato de, até o momento, pouco se ter comentado acerca da rotulagem dos organismos geneticamente modificados. Este tópico de extrema importância para o consumidor só começa a surgir atualmente, a partir da nova lei de biossegurança, muito embora a legislação existente seja datada de 2003. Isto é, há quatro anos o poder público vem se omitindo na defesa do consumidor e, do mesmo modo, na sua fiscalização. Vistos os princípios da dignidade da pessoa humana, o da precaução e os direitos à saúde e à informação, tomados como modelo para este estudo, percebe-se que, adotando tal conduta, o Estado acaba por violar a todos. A idéia da dignidade humana, em seu sentido positivo e negativo, resta esvaziada, uma vez que os organismos geneticamente modificados, possíveis causadores de danos à saúde, até o momento, não tiveram uma regulamentação mais efetiva, principalmente em relação à rotulagem, assim como não têm qualquer tipo de controle que seja condizente com seu porte. Do mesmo modo, pode-se também afirmar quanto ao direito à saúde, haja vista que pouco se fala em relação à situação dos consumidores e aos efeitos que podem a estes serem causados, em explícito desrespeito ao princípio da precaução. Talvez, seja o momento de se citar um argumento mais prático, qual seja, o fato de, em havendo rotulagem, os OGMs acabam por terem sua rastreabilidade facilitada no caso de virem a causar qualquer dano seja ele ao ser humano ou ao meio ambiente. Em relação ao direito à informação, expresso no Código de Defesa do Consumidor como um dos direitos básicos deste, é também suprimido, uma vez que não há, atualmente, qualquer tipo de rotulagem, de modo que, como indicado no item anterior, esta só começa a ser exigida atualmente por meio de decisões judiciais. Resta indagar como é possível permitir ao consumidor uma escolha esclarecida e consciente acerca de sua opção de consumo, se para isso não lhe foi fornecida a informação necessária. Como se pôde notar ao longo desta pesquisa, a idéia da rotulagem dos organismos geneticamente modificados envolve questões jurídicas bastante complexas que devem ser pensadas sempre tendo em vista a ótica do Direito Civil e do Direito Constitucional, e, precipuamente, uma visão voltada para o interesse público, haja vista que, antes de tudo, essa é uma questão que envolve interesses concernentes a todos os brasileiros e são eles, enquanto consumidores, os diretamente afetados.           Prof. Adjunto de Direito Civil na UFRJ e na UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da UNIFLU. Coordenador Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas     Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ     Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ     Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-57/tutela-do-consumidor-diante-dos-organismos-geneticamente-modificados-uma-analise-acerca-da-rotulagem/
A doação de órgãos como exceção ao princípio da indisponibilidade do corpo humano
Esperamos apresentar uma explicação que forneça aos leitores um mínimo de conhecimento a respeito dos direitos da personalidade, especificamente no que tange ao direito à integridade física e doação de órgãos como exceção ao princípio da indisponibilidade do corpo humano. Este artigo divide-se basicamente em três partes. Em principio, verificaremos a indisponibilidade do corpo humano, fundadas em determinadas características. Posteriormente em análise geral, através de doutos doutrinadores, trataremos de como se dá a disposição do próprio corpo ou parte dele (exceção), em vida ou pós-morte e quais foram às transformações ocorrentes no meio social. Por fim, mostraremos claramente as disposições normativas que regulamentam o assunto: doação de órgãos. Este artigo, como vocês leitores verão, pressupõe uma explicação geral e uma linguagem simples de ser assimilada.
Biodireito
I. INTRODUÇÃO Esperamos apresentar uma explicação que forneça aos leitores um mínimo de conhecimento a respeito dos direitos da personalidade, especificamente no que tange ao direito à integridade física e doação de órgãos como exceção ao princípio da indisponibilidade do corpo humano. Este artigo divide-se basicamente em três partes. Em principio, verificaremos a indisponibilidade do corpo humano, fundadas em determinadas características. Posteriormente em análise geral, através de doutos doutrinadores, trataremos de como se dá a disposição do próprio corpo ou parte dele (exceção), em vida ou pós-morte e quais foram às transformações ocorrentes no meio social. Por fim, mostraremos claramente as disposições normativas que regulamentam o assunto: doação de órgãos. Este artigo, como vocês leitores verão, pressupõe uma explicação geral e uma linguagem simples de ser assimilada. II. DIREITOS DA PERSONALIDADE E A PROTEÇÃO À INTEGRIDADE FÍSICA: PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DO CORPO HUMANO  Em suma, notaremos neste contexto o aspecto dos direitos da personalidade no que se refere à integridade física.  Por integridade física, abrange o direito ao corpo e nele incluindo “os seus tecidos, órgãos e partes separáveis, e o direito ao cadáver” (AMARAL, 2006, p.263), Nota-se que assegura, não somente a vida e a totalidade do corpo humano, como também, tutela à totalidade do corpo do cadáver. Neste mesmo sentido, menciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “O bem jurídico integridade física representa a projeção do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o corpo do sujeito e no próprio texto constitucional, pode ser verificado regras que vedam a pratica da tortura, o tratamento desumano ou degradante, a aplicação de penas cruéis” (Gama, 2006, p.34) Já é sabido que a vida humana reclama de “especialíssima proteção, impondo a repulsa contra todo e qualquer risco a degradação ou destruição a sua integridade” (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p.118), desde que um conjunto de homens, racionalmente, impôs limites ao Estado e aos outros homens através da elaboração de normas que resguardassem os direitos do cidadão, que “pré-existiam à ordem jurídica” (TEPEDINO, 2004, p.33). Torna-se importante mencionar, que o indivíduo que desrespeita a integridade física de outrem, desrespeita a norma constitucional, em conseqüência comete crime por lesão corporal onde há “qualquer alteração desfavorável produzida no organismo de outrem, anatômica ou funcional, local ou generalizada de natureza física (…) seja qual for o meio empregado para produzi-la” (MIRABETTE, 2001, p.105)  A integridade física por ser um conjunto de “atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico” (TEPEDINO, 2004, p.34), tem algumas características a se destacar, tais como: a extrapatrimonialidade, a indisponibilidade, o caráter absoluto, a imprescritibilidade, a intransmissibilidade, e, por fim, a irrenunciabilidade e impenhorabilidade.   Limitaremos apenas a quatro características que se enquadram ao contexto da pesquisa. Por indisponibilidade “retira do seu titular a possibilidade dele dispor, tornando-os também irrenunciáveis e impenhoráveis” (TEPEDINO, 2004, p.34). Assim entendem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, mostrando que “o corpo como projeção física da individualidade humana também é inalienável” (GAGLIANO; FILHO, 2007, p.157) Resta a duvida. Se o corpo humano, seja na vida e também após a morte, carrega a proteção à integridade física tendo como característica a indisponibilidade, sendo também, irrenunciáveis e impenhoráveis, como é permitida a doação de órgãos, e a disposição do corpo ou de suas partes? III. DISPOSIÇÃO DO CORPO OU DE SUA PARTE EM VIDA OU POST-MORTEM SEGUNDO PERSPECTIVAS DOUTRINÁRIAS É inquestionável que a doação de órgãos tem sido tema recorrente no meio Acadêmico Cientifico, seja por anseio de trazer enormes benefícios ao ser humano, seja por envolver questões éticas e jurídicas. O assunto é de tamanha complexidade. Por tal motivo, procuramos nos limitar o que dizem os doutrinadores. Citado por Paula Fernanda Diniz e Ingrith Gomes Abrahão, já dizia Habermas: “O progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias ampliam não apenas as possibilidades de ação já conhecidas, mas também possibilitam um novo tipo de intervenção […]. Na medida que o organismo humano é compreendido nesse campo de intervenção, a distinção fenomenológica de Helmuth Plessner entre ‘ser um corpo vivo’(Leib sein) e ‘ter um corpo’ (Köper haben) adquire uma atualidade impressionante; a fronteira entre a natureza do que ‘somos’ e a disposição orgânica do que ‘damos’ a nós mesmos” (Habermas citado por, Diniz; Abrahão, 2007, p.131) Habermas, numa perspectiva positiva se mostrou impressionado quando tratou de dispor sobre os avanços das ciências biológicas e as modificações ocorrentes a respeito da intervenção ao organismo humano. Estabelece, portanto, a distinção entre o “ser” e o “ter”. Paula Martinho da Silva citada por Diniz e Ingrith Gomes Abrahão, observa que os avanços das ciências biológicas associados ao exercício da Medicina são favoráveis ao homem, “quando falamos de transplantes de órgãos e tecidos de origem humana. Hoje, o corpo humano valoriza-se extraordinariamente e todos os seus elementos se tornam sinônimo de esperança e solidariedade. Torna-se dia a dia mais utilizável por outrem, mais capaz de contribuir para que corpo de outrem possa tratar-se, ou muitas das vezes salvar-se. Não se limitando a uma mera intervenção terapêutica (pelo menos na óptica do doador) os transplantes refletem importantes questões éticas em torno da experimentação do corpo humano, das próprias decisões políticas em matéria de saúde, e num campo mais vasto, coloca-nos questões fundamentais em torno do principio da dignidade humana” (Paula Martinho da Silva, citada por, Diniz; Abrahão, 2007, p.131) Gn Por estas questões acima esposadas pela autora é que se dá o primeiro passo para afirmação de que possa se permitir a disposição do próprio corpo ou de parte dele. Amaral considera que o transplante é a “retirada de um órgão, tecido ou parte do corpo humano, vivo ou morto, e sua utilização, com fins terapêuticos num ser humano” (Amaral, 2006, p.265). O transplante aqui tratado é denominado de transplante homogêneo que é realizado “entre seres da mesma espécie” (Chaves, 1994, p. 215). Sabemos que a doação do corpo ou parte do mesmo fere diretamente ao princípio da indisponibilidade, dentre outros. Porém, por questões éticas, políticas e até mesmo jurídicas, são admitidos disposições gratuita de “partes do corpo humano, vivo ou morto, (…) se não causar prejuízo ao titular e tendo em visa um fim terapêutico, altruístico ou cientifico” (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p.119) Em suma, temos duas modalidades de disposições: em vida ou post-mortem. A doação em vida, “pode ser feita livremente pelo titular, por decisão exclusivamente sua” (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p.119). A disposição não é permitida para qualquer fim e para qualquer pessoa que queira realizar a doação. Segundo Francisco Amaral, é legal a doação realizada somente por “pessoa juridicamente capaz, (…) gratuitamente, (…) para fins terapêuticos ou de transplantes” (Amaral, 2006, p.264). Em caso de morte “a retirada do tecido, órgãos ou parte do corpo humano, (…) deverá ser precedida de diagnostico de morte encefálica, constatada e registrada na forma da lei” (AMARAL, 2006, p.264). Em ambas as modalidades verificadas são imprescindíveis a vontade do titular querer dispor de seus órgãos. A desistência pode ser dada a qualquer momento em vida e, no caso de morte, por seus familiares.  3. Regulamentação do transplante: Artigos 13 e 14 do CC-2002 e Lei 9.434/1997 Após, verificada às doutrinas, torna-se necessário trazer algumas verificações nos dispositivos da norma, com o fim de concluir a presente pesquisa. No Código Cível a “parte que trata dos direitos da personalidade em espécie, tem-se o artigo 13 a 15 que versam sobre o direito à integridade psicofísica” (GAMA, 2006, p.33). Especificamente sobre a integridade física, têm-se os artigos 13 e 14 como referências. O artigo 13 do CC regula da seguinte maneira. “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. “Parágrafo único. Em se tratando o ato previsto neste artigo será para fins de transplantes, na forma estabelecida em lei especial” (CC, 2002) O artigo 14 da CC dispõe que é “valida, com objetivo cientifico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte“ (CC 2002). Como visto, “só pode atender a finalidades cientificas ou altruísticas, jamais voltadas à exploração econômica” (GAMA, 2006, p.34) A referida lei especial é a lei 9.434/1997. Sintetizamos alguns de seus artigos que se enquadram diretamente com o tema proposto. Senão, vejamos: “Art. 9º. É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante ou terapêuticos. § 3º. Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. § 4º. O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada. § 5º. A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização” 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluímos com a presente pesquisa que o a doação de órgãos ou parte dos mesmos, seja em vida ou em morte, trata-se de um assunto polêmico tanto no meio acadêmico, como no meio social, vindo a repercutir também no âmbito jurídico. Notamos que para que seja realizada a doação de órgãos por uma pessoa, temos vários requisitos a serem preenchidos. Observamos que além dos dispositivos da lei é imprescindível a declaração de vontade do doador, o que decorre da autonomia privada. Os avanços no âmbito da Ciência Biológica e inclusive da Medicina, cada vez mais, vem trazendo benefícios para o ser Humano. No que tange à doação de órgãos cabe a norma jurídica regular. Certo é que, a princípio, o que vigora é a indisponibilidade do corpo humano, pois os direitos da personalidade protegem a integridade física. No entanto, a exceções (doação de órgãos) torna-se necessária, pois, valoriza extraordinariamente o corpo humano. Ato que demonstra símbolo de solidariedade e de esperança. Ato que vem contribuir para outrem possa muitas das vezes permanecer vivo.  Além do amor fraterno, não há mais tamanha nobreza quanto este gesto.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-55/a-doacao-de-orgaos-como-excecao-ao-principio-da-indisponibilidade-do-corpo-humano-2/
Aspectos contemporâneos da reprodução assistida
O presente estudo visa a analisar aspectos contemporâneos atinentes à reprodução assistida, especialmente com relação à problemática dos embriões excedentes e da pesquisa com células-tronco embrionárias, vislumbrando-a diante da sociedade atual, com todas as suas nuances, a fim de se compreender, afinal, a sistemática que atualmente norteia o assunto.
Biodireito
1. Introdução Mister se faz a análise de que em décadas a sociedade modificou-se estruturalmente de uma maneira espantosa, assim como o ordenamento jurídico vem mostrando algumas recentes inovações acerca da procriação assistida e temas a ela atinentes. É imprescindível, pois, a compreensão do tema, a fim de se analisar quais são as modificações sociais relacionadas ao tema, algumas advindas das técnicas de reprodução assistida e outras, geradoras destas, elucidando-se quais os rumos tomados pela sociedade e explicando como muitos de seus problemas contemporâneos interagem. A sociedade moderna está passando por uma revisão de seus conceitos e princípios tradicionais, principalmente com relação ao direito de família. Contemplando-se alguns aspectos polêmicos acerca da reprodução assistida, é possível vislumbrarmos os rumos que vêm sendo tomados pela legislação, doutrina e jurisprudência brasileiras. É provável, pois, que estejamos participando de uma mudança profunda em conceitos acerca do vínculo familiar e, inclusive, da própria vida, de modo que ao menos devemos tentar acompanhar conscientemente este processo único pelo qual a sociedade está passando. 2. Reprodução Assistida 2.1. Considerações gerais A Reprodução Humana Assistida é a intervenção do homem no processo de procriação natural, possibilitando que pessoas com problemas de infertilidade alcancem a maternidade ou a paternidade. A influência das religiões levou à crença de que a fertilidade ou esterilidade era uma manifestação exclusiva de Deus, sendo inadmissível qualquer intromissão do homem nessa seara, dogma que permaneceu durante séculos. [1] A pílula anticoncepcional, contudo, tornou possível aos casais um planejamento familiar, assim como a tecnologia advinda com as técnicas de reprodução assistida permitiu aos casais inférteis ultrapassar esse determinismo biológico, dissociando a esterilidade de um simples acaso da natureza ou um desígnio de Deus, para encontrar-lhe causas e soluções científicas. Em 25 de julho de 1978, no Hospital Geral de Oldham, Inglaterra, nasceu Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo. No Brasil, a primeira experiência bem sucedida de fertilização in vitro tem como resultado a curitibana Anna Paula Caldeira, que nasceu em 7 de outubro de 1984. [2] A partir do nascimento do primeiro bebê de proveta, amplamente divulgado pelos meios de comunicação, as práticas biomédicas na área de reprodução assistida se difundiram e passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas, trazendo questões como: o congelamento de espermas e embriões, e as práticas heterólogas de reprodução assistida, inclusive para pessoas solteiras e post mortem. [3] 2.2. Aspectos Éticos e Religiosos A reprodução assistida não viola princípios éticos[4], pois respeita a realização de cada ser, no tocante à possibilidade de procriação, e a vida como resultado de uma decisão de amor, inclusive mais consciente que a fecundação obtida pelo método tradicional, em função do termo de consentimento informado. Sílvio de Salvo VENOSA [5] afirma, acertadamente, que se deve comprovar a necessidade, oportunidade e conveniência da medida, admitida como último recurso do casal na busca pela fertilidade, quando todos os tratamentos possíveis para a reprodução natural tenham se frustrado. É importante ressaltar que, em função de aspectos éticos e para que a reprodução assistida continue a representar uma decisão de amor, deve existir necessidade de sua utilização, ou seja, a esterilidade, a fim de que tal procedimento não seja banalizado a ponto de ser o meio mais conveniente para escolher as características genéticas dos filhos. Nesse sentido, a Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina proíbe a utilização da reprodução assistida com o intuito de seleção de características genéticas, salvo se para a prevenção de doenças genéticas. Contudo, entende-se que as técnicas de reprodução assistida só devem ser utilizadas quando existente probabilidade de sucesso, ou seja, se os embriões não possuírem notáveis anomalias, que impediriam o desenvolvimento intra-uterino ou produziriam um feto com malformações graves. [6] Já com relação ao aspecto religioso, a posição tradicional da Igreja Católica considera que o embrião é um ser humano desde a concepção, motivo pelo qual adotou uma postura dogmática que não aceita a evolução da tecnologia, condenando a fecundação artificial sob o argumento de que altera o ritmo natural da vida. [7] Os últimos documentos publicados pela Igreja – a “Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação”, conhecida Donnum Vitae, e o Evangelium Vitae – estão em consonância com a sua posição tradicional, considerando tanto a fecundação artificial homóloga como heteróloga como moralmente ilícitas. [8] Em que pese a oposição da Igreja Católica com relação às técnicas de reprodução assistida, respaldada no conceito tradicional de família e na consideração de que apenas quando há a fecundação “natural” está presente o amor familiar, a realidade é que muitas vezes naquelas gestações, planejadas e longamente aguardadas, com o auxílio de tais técnicas, encontra-se uma maior maturidade dos pais, que se preparam especialmente para a paternidade, não sendo racional impedir-lhes de exercer essa função. Por influência religiosa, existia certa crença popular de que seria inadmissível a intromissão humana na reprodução. É preciso salientar que as técnicas de reprodução assistida representam um avanço científico, tal como os existentes nas mais variadas áreas da saúde, de modo que impedir sua utilização seria o mesmo que impedir a cura de doenças que no passado inevitavelmente levavam à morte. Demonstra-se, assim, que existem muitas interferências do homem no mundo em que vive, as quais levam a sociedade rumo a uma melhor qualidade de vida, erradicando doenças, por exemplo. Enfim, se a fecundação assistida fosse questionada por interferir nos desígnios de Deus, então, não deveriam existir também os hospitais, de forma a permitir que aqueles se cumprissem, ainda que fatalmente. Ora, os avanços científicos vêm, ao longo dos tempos, dissociando os mais diversos eventos do mero acaso da natureza, mostrando a possibilidade de o homem utilizar seu saber científico em prol da comunidade. Em contrapartida à oposição religiosa, a fecundação in vitro recebe uma crescente aceitação nos meios científicos, ainda que alguns a submetam a condições e restrições éticas. Percebe-se, pois, que a moral católica tradicional deve ser repensada à luz das conquistas científicas atuais. [9] 2.3. Tutela Jurídica Atualmente, no Brasil, não possuímos nenhuma lei que ampare e regulamente a evolução da tecnologia empregada na reprodução assistida, resultando numa prática livre e sem controle governamental, sobretudo em função do brocardo jurídico segundo o qual o que não é proibido é permitido. [10] As únicas normas existentes estão contidas na Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina, de 1992, que traça os caminhos éticos a serem seguidos pelos médicos, porém, não possui caráter impositivo ou sancionador em caso de descumprimento de seus preceitos. [11] O atual Código Civil apenas mencionou algumas técnicas de reprodução assistida, constatando sua existência, todavia, deixou de regulamentá-las, motivo pelo qual a matéria precisa ser objeto de regulamentação por lei específica. [12] O art. 1.597 do Código Civil trata da presunção de paternidade na constância do casamento em relação aos filhos havidos de fecundação artificial. Segundo tal dispositivo, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: “(…) III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” O Novo Código Civil contempla, ainda que de maneira não aprofundada, a fecundação artificial homóloga, inclusive a post mortem, e a inseminação heteróloga, desde que com prévia autorização do marido, constituindo um grande avanço na legislação se comparada com o Código Civil revogado. [13] A Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, por sua vez, tem como regras principais a serem observadas na reprodução assistida: a vedação de comercialização de partes do corpo humano; a doação gratuita de gametas ou embriões; o sigilo sobre a identidade dos doadores e receptores; a obrigatoriedade de consentimento informado para os casais inférteis e doadores; o tempo máximo de 14 dias para a permanência do embrião fora do corpo materno; etc. [14] Existem alguns projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional sobre a reprodução assistida, consistindo em pequenas variações da Resolução 1.358/92 e que devem ser aperfeiçoados.[15] Um dos projetos mais completos é o elaborado pelo Senador Lúcio Alcântara (nº 90/99), que se encontra em fase mais adiantada de tramitação, embora alguns de seus dispositivos sejam considerados inconstitucionais. [16] 2.3.1. Esterilidade e direito à procriação Desde os tempos mais remotos, a esterilidade foi considerada um mal, em contraposição à fecundidade, vista como uma dádiva. Nas artes muito se cultuou a mulher grávida, já que a fecundidade era tida como um elo com o divino, e na própria Bíblia há referências expressas à esterilidade como sinal de castigo. [17] A discriminação pela pessoa estéril se reflete ainda hoje sobre a sociedade moderna, podendo aquela sentir-se desigual às demais pessoas do convívio social não pelo fato de ser incapaz de conceber, mas sim por não poder escolher entre ter ou não ter filhos. Todavia, o avanço da ciência permitiu aos casais estéreis a possibilidade de procriar, de exercer a maternidade ou a paternidade. [18] No Direito Brasileiro, pode-se falar verdadeiramente do direito à procriação em face do art. 226, § 7º da Constituição da República e da lei 9.263/96. [19] A Constituição, no § 7º do art. 226, expressamente cuida do planejamento familiar, estabelecendo a liberdade de decisão do casal, desde que respeitados os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, ao mesmo tempo em que impõe ao Estado o dever de recursos educacionais e científicos para o exercício de tal direito. [20] Entende-se que, sendo função constitucional do Estado a promoção e o incentivo ao desenvolvimento tecno-científico (art. 218 do CF), e a proteção da família (art. 226 da CF), inclusive propiciando recursos educacionais e científicos para o planejamento familiar (art. 226, §7º), seria incoerente uma proibição de procriar mediante as técnicas de reprodução assistida. Com o advento da Lei nº 9.263/96, regulamentou-se em nível infraconstitucional o planejamento familiar, direcionado não mais ao casal apenas, mas ao homem e à mulher, individualmente considerados. Logo, pode-se depreender o reconhecimento da existência do direito de qualquer pessoa (homem ou mulher) ao planejamento familiar, incluindo a adoção de técnicas de reprodução assistida, inferindo-se que a lei autorizou a monoparentalidade obtida por esse meio. [21] Diante do exposto e da análise de nosso ordenamento jurídico, percebe-se que o legislador assegurou o direito à procriação, configurando-se a utilização de tais técnicas, portanto, como uma atividade lícita, pois o Estado não pode negar às pessoas que se beneficiem dos avanços advindos de áreas que ele mesmo dá especial proteção. [22]    2.4. Reprodução Assistida A Procriação Artificial ou Reprodução Medicamente Assistida (RMA), é um conjunto de técnicas através das quais se permite a reprodução assexuada, com importância especialmente em casos de esterilidade, em que a concepção só será possível por meio de tais técnicas. [23] As técnicas mais comuns de Reprodução Mecanicamente Assistida (RMA) são: a) Inseminação intra-uterina: os espermatozóides, previamente recolhidos e congelados, são reaquecidos a 37ºC. e transferidos, por meio de uma cânula, para o interior do aparelho genital feminino (fundo do útero), onde se dá a fecundação; b) Transferência intratubária de gametas (GIFT): os gametas feminino e masculino são previamente isolados e transferidos para o interior das trompas uterinas, onde ocorrerá “naturalmente” a sua fusão; c) Transferência intratubária de zigotos (ZIFT) ou inseminação extra-uterina: ambos os gametas do casal são colocados em contato in vitro (em um tubo de laboratório) em condições apropriadas para sua fusão, implantando-se os zigotos resultantes no útero da mulher; d) Fecundação in vitro (FIVETE): o zigoto ou zigotos continuam a ser incubados in vitro no mesmo meio em que surgiram, até que se dê sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (no estágio de 2 a 8 células) são transferidos para o útero ou para as trompas. É o chamado “bebê de proveta“. [24] A FIVETE (Fertilização in vitro e transferência de embriões) é geralmente utilizada quando a mulher não consegue manter o feto em seu útero até o final da gravidez.[25] Nas técnicas de inseminação artificial, os gametas (óvulo e espermatozóide) podem provir do casal, caso em que a RMA será homóloga, ou não, quando será heteróloga. Este último tipo de RMA ocorre na hipótese de um ou ambos os gametas do casal não serem viáveis, havendo a necessidade de se recorrer a um doador de espermatozóides ou de óvulos. [26] A inseminação homóloga é indicada para casos de incompatibilidade ou hostilidade do muco cervical, oligospermia (quando é baixo o número de espermatozóides ou reduzida sua mobilidade) e retroejaculação (quando os espermatozóides ficam retidos na bexiga). [27] A inseminação heteróloga é utilizada, por exemplo, nos casos de absoluta esterilidade masculina (causada por azzospermias ou oligospermias), incompatibilidade do fator RH e havendo doenças hereditárias graves do marido. [28] Da inseminação homóloga decorrem algumas questões que merecem destaque no contexto social contemporâneo, como a maternidade sub-rogada, o congelamento de embriões e a procriação artificial post mortem. Da inseminação heteróloga, merecem destaque: a doação de gametas, que remete à paternidade sócio-afetiva, e a inseminação sem o consentimento do marido. 3. Rumos da Reprodução Assistida 3.1. Monoparentalidade A sociedade, ao longo dos tempos, com a evolução social e tecnológica, passou por modificações estruturais, deixando de reconhecer como família apenas a advinda do casamento, assim como presenciou a ruína da estrutura familiar patriarcal, centralizada na figura do pai, que detinha o pátrio poder e a quem cabia, inclusive, o poder de decisão sobre a fecundação e a formação familiar. [29] O ordenamento jurídico vem se adaptando às novas realidades sociais, com a substituição do pátrio poder pelo poder familiar, bem como com o reconhecimento da família monoparental e da igualdade entre os filhos e entre os cônjuges. Historicamente se percebe uma supremacia do homem nas relações familiares e a existência, por séculos, de uma família biparental, ao menos teoricamente. Esses aspectos insistem em deixar alguns resquícios na sociedade moderna, de modo a fazer com que alguns estudiosos relutem em aceitar um direito à procriação, posicionamento que provavelmente possui arraigadas raízes culturais. A família monoparental é uma realidade social que não pode ser negada, bastando verificar a numerosa existência de pais e mães solteiros, que na maioria das vezes cumprem seu mister de forma admirável. O direito à procriação, que permite a utilização das técnicas de reprodução assistida pelas pessoas em geral, ainda que cumpridos certos requisitos, é assegurado pelo ordenamento jurídico brasileiro e está intimamente relacionado à possibilidade de pessoas não vinculadas a um parceiro, como mães solteiras, delas se utilizarem. Seria ilógico se nosso ordenamento, com fulcro no artigo 42, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente, permitisse que pessoas solteiras adotassem uma criança e, simultaneamente, proibisse-as de recorrer à reprodução assistida, sobretudo porque se reconhece a monoparentalidade como entidade familiar. Ademais, se a monoparentalidade foi expressamente reconhecida na Constituição Federal como espécie de família (art. 226, § 4º), não se pode negar a constituição de uma família monoparental, ainda que advinda de adoção, como é o caso de uma mulher solteira que adote. Tal como na adoção, também não há razão em se proibir a utilização de técnicas de reprodução assistida por pessoas não vinculadas ao casamento ou à união estável. A hipótese, na verdade, é idêntica àquela de mulheres que, ao engravidarem, são surpreendidas com o abandono do parceiro. [30] Há quem entenda, como Anison Carolina PALUDO [31], que o uso de tais técnicas deve ser permitido inclusive com relação aos homossexuais, uma vez que, devido a sua opção sexual, torna-se impossível a procriação de forma natural. Além disso, fundamenta-se no art. 3º inciso IV da Constituição Federal Brasileira, que estabelece como dever do Estado “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O argumento segundo o qual a monoparentalidade seria admitida tanto em caso de adoção como na reprodução assistida, poderia ser “transplantado” para justificar a reprodução assistida por homossexuais, já que alguns tribunais [32] do país vêm permitindo a adoção pelos mesmos. Certo é que, permitida a adoção por homossexuais, não haveria óbice para que homossexuais se utilizassem das técnicas de RMA. Entretanto, ainda que se considere a existência de um direito à procriação para pessoas separadas, desde que haja necessidade do procedimento, tanto a adoção como a utilização das técnicas de reprodução assistida por homossexuais ainda geram muita polêmica na sociedade. Com a transformação social, passaram a existir inúmeros pais solteiros, a cuja realidade o direito se adaptou, reconhecendo a família monoparental. Diferente é o caso dos homossexuais, cuja capacidade para orientar os filhos no tocante à sexualidade pode ser questionada, além de não sabermos se a sociedade está realmente preparada para esta mudança. Enfim, apesar das decisões judiciais favoráveis à adoção por casais homossexuais, esse posicionamento é minoritário, representando uma pequena parcela social. Se a adoção por homossexuais é amplamente questionável, o mesmo ocorre com a utilização de técnicas de reprodução assistida pelos mesmos. Apenas a evolução da sociedade poderá nos trazer respostas, posto que em alguns países, como na Dinamarca, França, Portugal, Suécia e Alemanha há a expressa previsão de matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, enquanto no Brasil tem-se uma legislação essencialmente omissa, apesar da recente Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica, estabelecer no artigo 5º que as relações pessoais “independem de orientação sexual”. [33] 3.2. Paternidade sócio-afetiva Não se pode ignorar que o vínculo familiar moderno se distanciou do modelo tradicional, sendo formado por laços sócio-afetivos. O pluralismo familiar é uma realidade, não apenas percebida no mundo fático, como também reconhecida constitucionalmente.[34] O advento das técnicas de reprodução assistida auxiliou na instituição de uma nova concepção de filiação, em que o aspecto afetivo sobrepujou o meramente biológico, advindo daí a chamada paternidade sócio-afetiva. O papel da vontade, nos casos de reprodução assistida, passou a ter bastante relevância, fazendo ruir todo o arcabouço existente no tocante ao sistema de presunções de paternidade, maternidade e filiação, os quais foram instituídos sob a égide de uma sociedade eminentemente patriarcal. [35] Antigamente vigia o princípio “mater semper certa est”, segundo o qual a mãe era sempre certa, já que era impossível fecundar o óvulo fora do útero materno ou transplantá-lo em outra pessoa, entretanto, com o advento da reprodução assistida tal princípio deixou de ser uma verdade incontestável. Logo, a certeza da maternidade não pode ser fundada tão somente na gestação do bebê, especialmente nos casos de maternidade sub-rogada (“barriga de aluguel”). [36] Com relação à paternidade, o brocardo “pater ist est, quem nuptiae demonstrat”, segundo o qual se tem como pai da criança o marido de sua mãe, também foi fulminado pelo advento de novas relações familiares, especialmente nos casos de inseminação heteróloga. Não há maiores problemas com a inseminação homóloga, em que a paternidade biológica coincide com a sócio-afetiva, salvo se a inseminação ocorrer post mortem (caso em que há a dissolução do casamento). [37] A atual orientação doutrinária prega uma desbiologização da filiação, reconhecendo-se a paternidade e a maternidade além dos laços biológicos, para valorizar o elemento afetivo ou psicológico, a intenção de assumir as responsabilidades e deveres em face da filiação.[38] Dessa maneira, o fato gerador do vínculo de parentesco deixou de ser o ato sexual para consistir na vontade, aderindo-se, pois, a uma concepção mais humanizada de família, consoante com o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Maria Helena DINIZ [39] define como filiação o vínculo existente entre pais e filhos, seja em função de um parentesco consangüíneo em linha reta e em 1º grau, ou em função de uma relação sócio-afetiva, advinda da relação de adoção ou da inseminação artificial heteróloga. Na inseminação heteróloga, caso em que um dos gametas, seja masculino ou feminino, mostra-se inábil para suscitar a fecundação, a inseminação pressupõe a doação de gametas (óvulos ou sêmen). Nesse caso, a fecundação se torna possível com a junção do material genético de um componente do casal com o advindo de doação, implantando-se o embrião resultante na mulher que solicitou do procedimento, de modo que a criança será filha genética de apenas um dos membros do casal. Percebe-se, pois, que na doação de gametas relega-se a um segundo plano a questão genética, de modo que, se houve uma doação de óvulos, a mãe gestacional será detentora da maternidade, não obstante não ser a criança sua filha genética. Por outro lado, tendo-se em vista um caso de maternidade sub-rogada, em que os embriões obtidos de material fecundante do casal (inseminação homóloga) são implantados em uma terceira mulher, que gestará a criança, a mãe genética será detentora da maternidade, considerando-se a mãe gestacional como mera hospedeira. [40] À primeira vista, as soluções para ambos os casos poderiam parecer incongruentes, porquanto ora se privilegia o aspecto biológico, já que a mãe gestacional se submete ao parto, ora o aspecto genético. Entretanto, ambas as situações possuem seu fundamento na paternidade sócio-afetiva, haja vista que se concede importância ao ânimo de procriar e pela intenção de assumir, independentemente do vínculo biológico ou genético, as responsabilidades e deveres em face da filiação. Não poderia ser diferente, porque apenas a paternidade sócio-afetiva pode explicar a filiação advinda da maternidade de substituição, caso em que uma terceira mulher, além de gestar uma criança, que será posteriormente entregue a um casal, ainda doa seus óvulos.[41] Essa mulher se apresenta como mãe biológica e genética da criança gerada, no entanto, não preenche o requisito da filiação sócio-afetiva, visto que não existiu a intenção de assumir essa maternidade, mas de tão somente contribuir para a paternidade e maternidade de outrem. É justamente em função da paternidade sócio-afetiva que na inseminação heteróloga de uma mulher, cujo procedimento envolve a doação de sêmen, há a exigência do consentimento do marido, pois através dele o homem assume a paternidade da criança, demonstrando a intenção de assumir a filiação, como se houvesse uma adoção antenatal do filho. Logo, o marido não poderia desistir da paternidade após o procedimento, nem tampouco impugná-la. 3.3. Anonimato do doador de gametas Em casos de inseminação heteróloga com doação de gametas há a chamada multiparentalidade, que consiste na existência de mais de um pai ou de uma mãe para o sujeito resultante de uma reprodução medicamente assistida, fazendo surgir a condição de pais biológicos (ou genéticos) da criança e pais sócio-afetivos, que tiveram ânimo de procriar. [42] Como não é possível que uma pessoa concebida por técnica de reprodução assistida tenha uma pluralidade de mães e pais, considera-se tão somente a paternidade sócio-afetiva, desconsiderando a biológica. [43] No que tange ao doador de gametas, não restam dúvidas sobre a necessidade de seu anonimato, haja vista a doação implicar em abdicação da paternidade, incluindo quaisquer direitos e deveres a ela inerentes. Entretanto, até que ponto ficaria assegurado tal anonimato, se o Estatuto da criança e do adolescente prevê a investigação de paternidade a qualquer tempo? Primeiramente, assevera-se que o anonimato do doador não deve ser concebido em uma noção absoluta, porquanto pode ser afastado em prol de interesses de maior relevância. Não se pode esquecer que, havendo doação de gametas por um doador anônimo, existe a possibilidade de parentes biológicos desejarem casar entre si, sem saberem do impedimento existente, gerando filhos com mazelas biológicas. [44] Por esse motivo, o doador de gametas ou de embriões permanece como genitor biológico do filho resultante de técnica de RMA, tal como ocorre na adoção. O Direito brasileiro parece acompanhar o direito sueco, que praticamente equipara a situação causada pela reprodução heteróloga à situação da adoção, pois em ambos os casos, ao menos um dos pais não é progenitor biológico da criança, o que justifica a similaridade estabelecida.[45]   Da mesma maneira que na adoção, o doador de gameta, assim como o pai biológico, abdica de sua paternidade, de modo que o vínculo com a criança gerada teria apenas reflexos jurídicos negativos, não sendo capaz de atribuir àquele os direitos e deveres relativos à paternidade, tais como alimentos, herança, direito ao nome, etc. Nessa esteira de entendimento, Maria Helena DINIZ [46] nos ensina que a criança gerada através de reprodução heteróloga tem direito apenas a sua identidade genética, sobretudo para se prevenir de moléstias congênitas e evitar o incesto, o que não se confunde com o direito à filiação, nem gera o direito de reivindicar nome de família, pensão alimentícia e herança do pai genético. Assim, não poderá pleitear o estabelecimento de relação de parentesco, nem responsabilidade civil do doador. É evidente que se houvesse o reconhecimento de paternidade dos doadores de gametas, responsabilizando-os pelos inúmeros filhos advindos de um ato de benevolência, desestimular-se-ia a doação e inviabilizar-se-ia a própria reprodução assistida em muitos casos, já que não é raro a doação de gametas apresentar-se como a única chance de um casal estéril possuir um filho. Portanto, vislumbra-se a incongruência de tal entendimento, que afrontaria a própria paternidade sócio-afetiva, reconhecida sistematicamente por nosso ordenamento jurídico. 3.4. Inseminação post mortem Na inseminação post mortem, é possível à esposa ser inseminada com sêmen de seu marido, criopreservado em um banco de sêmen, após o falecimento deste. Há divergência na legislação internacional acerca da possibilidade de tal prática, de modo que a Alemanha, a Suécia e a Espanha vedam-na.[47] Embora alguns autores brasileiros rechacem a RMA post mortem, esta prática é defendida por autores que, consentâneos com a realidade atual e com o Código Civil de 2002 (art. 1.597, III), sustentam ser o vínculo de filiação determinado pelo consentimento deixado em vida pelo de cujus. A doutrina majoritária tem entendido que a inseminação post mortem exige como pressuposto o consentimento deixado em vida pelo de cujus, por meio de declaração expressa, conforme os ensinamentos de Maria Helena DINIZ.[48] Destarte, não bastaria a manifestação tácita, de modo que a maioria da doutrina e o Enunciado 106 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil de 2002, exigem autorização escrita do de cujus. O consentimento para a inseminação post mortem, dado pelo de cujus, procede-se da mesma forma que o consentimento do marido, para que sua esposa receba o sêmen de outro homem, na reprodução heteróloga, equivalendo a uma adoção antenatal do filho, ou seja, antes mesmo do seu nascimento. Tal consentimento contém o elemento anímico, que consiste no desejo de constituir e manter um vínculo de paternidade com a criança, fazendo valer, mais uma vez, o princípio da paternidade sócio-afetiva. Resta-nos saber se a criança resultante de inseminação post mortem possui direitos sucessórios. A Espanha veda a inseminação post mortem, embora garanta direitos ao nascituro (inclusive sucessórios) quando houver declaração escrita do de cujus, por escritura pública ou testamento. Já a Inglaterra permite tal prática, apesar de não garantir direitos sucessórios, salvo se houver documento expresso neste sentido. [49] A personalidade está atrelada à possibilidade do sujeito ser titular de direitos e obrigações. Nesse sentido, existem três correntes doutrinárias brasileiras acerca do início da personalidade: a natalista, a concepcionalista e a da personalidade condicional. Pela corrente natalista, a personalidade civil se inicia a partir do nascimento com vida, enquanto para a teoria concepcionista, a partir da concepção. [50] O art. 4º do Código Civil dispõe: “A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”. Na primeira oração, adotou-se a teoria natalista, enquanto que na segunda, a concepcionista. Resta-nos claro, contudo, que a personalidade não se inicia apenas com o nascimento nem tampouco com a concepção, pois se assim fosse, estar-se-ia indo de encontro à primeira afirmação, donde se extrai que o legislador não teve a intenção de conceder direitos atuais ao nascituro, mas apenas resguardar algumas expectativas de direito. [51] Nesse sentido, a teoria da Personalidade condicional, que nos parece mais acertada, estabelece que, conquanto se reconheça direitos ao nascituro desde a concepção, o nascimento com vida é uma condição suspensiva para sua efetivação, assim, somente adquirirá direitos patrimoniais (como herança e doação) se nascer com vida. Por outro lado, entende-se que o embrião laboratorial não estaria inserido no conceito de nascituro, motivo pelo qual não possui tais direitos assegurados, salvo se implantado em um útero feminino.[52] De qualquer modo, independentemente da teoria adotada, são assegurados inúmeros direitos ao nascituro, dentre os quais o direito à sucessão, que especialmente nos interessa. [53] A criança resultante de inseminação post mortem evidentemente possui direitos sucessórios, já que é filha biológica do de cujus e a Carta Magna veda qualquer discriminação entre os filhos, sejam advindos ou não de técnicas de reprodução assistida. Todavia, tem-se-lhe concedido apenas a sucessão testamentária (e não a sucessão legítima), respaldada no dispositivo referente à prole eventual, motivo pelo qual se exige que haja concepção no prazo de dois anos e exista disposição do de cujus sobre a mãe do beneficiário. Logo, não havendo testamento para beneficiar a sua prole eventual, os filhos concebidos post mortem com sêmen congelado do “de cujus” não seriam herdeiros. [54] Esse entendimento pode vir a sofrer alterações, no sentido de se permitir também a sucessão legítima à prole post mortem, dada a impossibilidade de desigualdade de tratamento entre os filhos.[55] É provável que, em um futuro próximo, seja concedida a igualdade de tratamento entre tais filhos, tal como ocorreu com o Código Civil de 2002, quando suprimiu as antigas classificações de filhos legítimos, ilegítimos, adulterinos, etc., reconhecendo que eles possuem os mesmos direitos, sendo irrelevante se nascidos dentro ou fora de uma relação matrimonial, através ou não de técnicas de reprodução assistida. 3.5. Embriões Excedentes e Células-tronco embrionárias A evolução social tem trazido à sociedade essa questão polêmica, alvo de atuais debates sociais, visto que envolve o direito à utilização das técnicas de reprodução assistida e a possibilidade de desenvolvimento pela ciência de técnicas que levam à cura de doenças, esbarrando em um aspecto polêmico: o início da vida. Referimo-nos à problemática da destinação dos embriões excedentes advindos das técnicas de reprodução assistida, sobretudo com relação a sua utilização para a pesquisa com células-tronco. As células-tronco possuem uma característica peculiar, pois podem constituir diferentes tecidos do organismo, motivo pelo qual têm sido intensamente estudadas, uma vez que podem tratar infindáveis problemas, como câncer, mal de Parkinson, Alzheimer, doenças degenerativas e cardíacas, e doenças neuromusculares em geral. [56]   Há muitas incertezas quanto à manipulação de tais células, de modo que os cientistas normalmente as depositam em uma região específica do corpo humano e esperam que haja a substituição das células lesionadas. Luiz Eugenio MELLO, pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo, afirma que “o mecanismo de atuação da aspirina só foi descoberto depois de décadas de utilização do remédio”, sustentando que “às vezes, entender que uma estratégia funciona vem antes de entender como ela funciona”.[57] O Brasil é o país que possui o maior número de pacientes inscritos em testes de terapia de células-tronco.[58] Pesquisas recentes nessa área têm mostrado a eficácia da técnica, que tem melhorado sensivelmente a vida dos pacientes que a ela se sujeitaram, representando uma esperança para milhões de brasileiros e um passo gigantesco na história da ciência. Vislumbra-se a possibilidade de as células-tronco serem usadas para reparar células ou tecidos danificados por uma doença ou um ferimento, existindo a expectativa de que sejam desenvolvidos órgãos inteiros em laboratório para substituir os lesionados.[59] As células-tronco poderão evitar transplantes, contudo, isso ocorrerá com o advento de novas técnicas, mais aperfeiçoadas do que as utilizadas atualmente. [60] As células-tronco adultas possuem certas limitações, ao passo que as células-tronco embrionárias vêm se mostrando mais eficazes na formação de qualquer tecido do corpo humano, além de possibilitarem a cura de doenças cerebrais, a criação de órgãos para transplante e o tratamento de doenças genéticas. Deve-se ressaltar que a pesquisa com células-tronco embrionárias pressupõe embriões advindos ou das técnicas de reprodução assistida, como embriões excedentes de clínicas de fertilidade ou por via da clonagem. A clonagem consiste em um processo pelo qual se obtém um novo ser de uma célula somática já diferenciada, que é introduzida em um óvulo e, de alguma forma, regride a um estágio inicial, comportando-se o óvulo como se tivesse sido fecundado. A clonagem pode ocorrer para fins reprodutivos, tal como aconteceu com a ovelha Dolly, ou meramente terapêuticos. [61] Os gêmeos univitelinos ou monozigóticos são clones naturais, oriundos de um único zigoto que se subdividiu até o 14º dia após a fecundação. A ovelha Dolly foi gerada por meio da clonagem reprodutiva, como se fosse uma irmã gêmea nascida posteriormente, porém, foi um processo difícil, já que a clonagem reprodutiva possui uma eficiência baixa e um grande número de abortos e embriões malformados. [62] Os animais resultantes de clonagem reprodutiva apresentam inúmeros problemas, como gigantismo, defeitos cardíacos, problemas imunológicos, etc. Dolly precisou ser sacrificada aos seis anos de idade, quando a expectativa de vida de ovelhas é de doze anos, porque possuía uma doença pulmonar progressiva, comum apenas em animais mais velhos. [63] Por esses motivos, as academias de ciência de vários países, inclusive do Brasil, solicitam o banimento da clonagem reprodutiva humana, ao mesmo tempo em que incentivam a clonagem terapêutica, procedimento em que o óvulo “fecundado”, por uma célula somática, não é implantado em um útero, mas se divide em laboratório para a fabricação de diferentes tecidos, consistindo em uma cultura de tecidos, prática laboratorial muito comum. [64] A clonagem terapêutica representa uma grande esperança na produção de órgãos e tecidos de mesma composição genética do paciente, evitando-se a rejeição e incompatibilidade com o organismo do transplantado. Além disso, seria possível prever o futuro fim das filas para transplante de órgãos, caso essa tecnologia fosse desenvolvida.[65] No entanto, a clonagem terapêutica também possui suas limitações, pois dificilmente teria utilidade para os doentes cerebrais, devido à pequena taxa de sucesso da clonagem e a necessidade de diversas repetições, e para os portadores de doenças genéticas, cujas células também possuem o mesmo defeito genético. Simultaneamente ao desenvolvimento de tecnologias que necessitam da utilização de embriões, estima-se que existam apenas no Brasil vinte mil embriões congelados, dos quais 90% não possuem qualquer expectativa de vida e poderiam ser utilizados em pesquisas cujo objetivo é salvar vidas e curar doenças, enfim, melhorar a qualidade de vida da população. [66] Esse excedente de embriões existe em virtude da complexidade do implante dos pré-embriões no útero, pois a obtenção da gravidez se faz em um percentual de 50% e por esse motivo estimula-se a ovulação na mulher.[67] Como todos os embriões obtidos não podem ser implantados de uma vez só, já que seriam grandes os riscos de uma gestação gemelar, o que poderia causar risco à vida da gestante e dos bebês, ficam eles criopreservados, para uma utilização posterior pelo casal. Assim sendo, eventual proibição sobre a existência dos embriões excedentes inviabilizaria a própria reprodução assistida, atentando contra o direito de procriação. Resta-nos analisar os posicionamentos quanto à questão no direito comparado. Na Inglaterra, em obediência a uma lei limitando o tempo de estocagem de embriões humanos a cinco anos, milhares de embriões foram eliminados. [68] A Alemanha, por meio de uma lei aprovada em 1991, proíbe a utilização de embriões, porém, apresenta uma lacuna, já que apesar das células-tronco embrionárias não poderem ser produzidas no país, não há qualquer proibição com relação à manipulação das mesmas, se adquiridas em outros países. Isso porque se teme uma migração de cientistas para países em que possam livremente pesquisar sobre o tema. [69] A tendência geral na Europa consiste na relativização da proteção ao embrião, podendo-se citar a França, que está revisando as questões de Bioética. Prevê-se que futuramente haverá a permissão da pesquisa com embriões, desde que possuam no máximo sete dias de vida e haja consentimento dos casais genitores. [70] A Grã-Bretanha assume a posição dianteira no campo da bioética. Desde 1990, permite a pesquisa com embriões de até duas semanas de idade, pois considera que a vida começa juridicamente a partir do 14º dia após a fecundação. Estima-se que dos quase oitocentos mil embriões gerados por inseminação artificial, cinqüenta mil chegaram às mãos dos pesquisadores. [71] No final de 2000, o Parlamento inglês discutiu a questão, que culminou com a aprovação da pesquisa com embriões até 14 dias para clonagem terapêutica. Proibiu-se, porém, a clonagem reprodutiva, que consiste na implantação de células-tronco embrionárias no útero feminino. [72] A maioria dos países da comunidade européia, o Canadá, a Austrália, o Japão, a China, a Coréia e Israel aprovaram pesquisas com células embrionárias de embriões até 14 dias. Essa posição é respaldada pelas academias de ciência de 63 países, inclusive do Brasil. [73] A pesquisa com células-tronco embrionárias, portanto, surge como alternativa para a destinação dos embriões excedentes e como a única perspectiva para algumas enfermidades, como as doenças cerebrais e doenças genéticas, não curáveis por meio das células-tronco adultas nem tampouco pela clonagem terapêutica. As pesquisas, porém, sofrem um entrave: a inviolabilidade da vida humana, o que exige a análise de seu início sob uma ótica interdisciplinar, já que o tema transcende o direito civil. Enfim, o início da vida, questão que vem sido protelada há muito tempo, agora surge como grande e premente necessidade legislativa e social. Recentemente, com o artigo 5° da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), o Brasil, diante dos novos anseios sociais, permitiu a pesquisa científica com células-tronco embrionárias, desde que cumpridos alguns requisitos, embora tenha proibido a clonagem terapêutica. Contudo, foi proposta uma ação de inconstitucionalidade no STF, alegando que o referido dispositivo violaria o direito à vida, cujo atual deslinde foi favorável à pesquisa com células-tronco embrionárias, demonstrando os novos rumos ideológicos trilhados pela sociedade. [74] Enquanto o STF discutia a questão no Brasil, as pesquisas com células-tronco só avançaram no exterior, recebendo incentivos governamentais.[75] Se o STF porventura houvesse decidido pela proibição de tais pesquisas, nosso país sofreria um grande retrocesso científico, perderia cientistas e, futuramente, necessitaria da tecnologia assim desenvolvida. [76] Mais do que desenvolver tecnologias visando o bem-estar de sua população, o Brasil deve revisar suas leis, seja regulamentando adequadamente a reprodução assistida, cujo projeto de lei mais completo (PL 90/99) ainda se mostra insatisfatório, como permitindo o desenvolvimento das tecnologias relacionadas às células-tronco embrionárias e a clonagem terapêutica. Para que nosso país possa regular tais condutas adequadamente, faz-se necessário, talvez, uma nova concepção para o início da vida, em consonância com o novo contexto em que a sociedade se encontra, sendo capaz de afastar dogmas religiosos irrefutáveis e concepções tradicionais que não mais se adequam ao novo mundo em que vivemos. Como vimos ao longo desse trabalho, a sociedade evoluiu, modificaram-se os conceitos de família, de paternidade, de filiação e, assim, também, os de vida. O Direito tão-somente acompanha essas mudanças sociais, controlando o uso da tecnologia através da regulamentação de condutas. A Teoria Tridimensional do Direito nos ensina, justamente, que direito é fato, valor e norma, demonstrando que não se trata de um fenômeno estático, mas dinâmico, envolvendo os fatos que ocorrem na vida social, os valores de uma sociedade em determinado momento histórico (pela evolução das idéias) e as estruturas normativas. Portanto, é imprescindível uma definição acerca do início do direito à vida, extraída da própria sociedade em que vivemos, seja de suas normas, de suas concepções científicas ou de seu avanço social. 4. Atuais Anseios Sociais quanto ao Início da Vida A realidade social e tecnológica dos dias atuais em muito se difere de épocas em que o conceito de vida surgiu. Aliás, os conceitos sempre se adaptam ao contexto a que se referem, pois não persistem se contrários às necessidades e concepções sociais, mas extinguem-se, dando lugar à standarts mais acertados e adequados. A fecundação assistida é uma realidade, e com ela adveio a problemática dos pré-embriões excedentes, que muitas vezes precisam ser descartados pela sua inviabilidade e, por outro lado, podem ser utilizados na pesquisa com células-tronco embrionárias. Simultaneamente, surge a técnica da clonagem terapêutica, útil para salvar muitas vidas, curando diversas doenças, mas que implica a manipulação de óvulos e sua divisão em laboratório sem a implantação no útero, esbarrando igualmente na questão do início da vida. No Brasil, embora o ordenamento jurídico constitucional priorize a inviolabilidade do direito à vida, há uma omissão acerca da definição do exato momento do início da vida, deixando a questão para ser resolvida pela doutrina e jurisprudência. A questão, porém, que não quer calar é: poderiam alguns embriões excedentes ser utilizados em pesquisas com células-tronco ou a inviolabilidade de seu direito à vida deve ser resguardada a todo custo? [77] Sob a ótica civilista, o nascituro tem direitos da personalidade garantidos desde a concepção, o que lhe assegura inúmeros direitos, tais como: o direito aos alimentos, direito à sucessão e a receber doações. Contudo, entende-se que apenas o embrião implantado no aparelho reprodutor de uma mulher, pode ser considerado nascituro, de modo que o embrião laboratorial, tanto o pré-implantatório como o excedentário, não possui tais direitos assegurados. [78] Em oposição à teoria da Personalidade condicional, existe a teoria Concepcionista, que entende existir vida desde o momento da concepção, protegendo o ser humano em qualquer fase de seu desenvolvimento, incluindo os embriões, e apresenta-se incompatível com a reprodução assistida e com a pesquisa de células-tronco embrionárias, já que esta envolve destruição dos mesmos. [79] Segundo Orlando GOMES [80], a existência da personalidade civil coincide com a duração da vida humana, porém, a ordem jurídica admite aquela em hipóteses em que esta não ocorre, como no exemplo da personalidade fictícia do nascituro e do ausente. Estas ficções atribuem personalidade porque reconhecem a aptidão para ter direitos, mas seria logicamente absurdo admitir a condição de pessoa natural para quem ainda não nasceu ou já morreu. Apenas dilata-se o termo inicial e final da vida humana para que sejam protegidos certos interesses. Assim, as teorias acerca da personalidade civil do nascituro não constituem material adequado para a análise do início do direito à vida e, consequentemente, para resolver a problemática dos embriões excedentes de técnicas de reprodução assistida. Esse é o motivo pelo qual passamos a uma breve explanação multidisciplinar acerca do tema. De forma sucinta há quatro correntes quanto ao início da vida humana: [81] a) Teoria da fecundação: defende que o início da vida começa com a concepção, pois uma vez penetrado o óvulo pelo espermatozóide, surgiria uma vida distinta de seus progenitores, com patrimônio genético único, inédito e irrepetível. [82] b) Teoria da nidação: defende que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero; c) Teoria encefálica: defende que o início da vida começa com o início da atividade cerebral; d) Teoria do Nascimento: defende que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião. Esse critério desconsidera totalmente o embrião como ser humano, não condizendo com nosso ordenamento jurídico, que concedeu direitos e obrigações ao nascituro, nem com os avanços das ciências biológicas. As religiões em geral condenam veementemente a pesquisa com células-tronco embrionárias, ao passo que o comitê francês de bioética caracteriza o embrião como pessoa humana em potencial, reconhecendo não saber se a preservação de um ser biológico prometido a uma existência trágica consiste no mais alto senso moral ou em uma reprovável obstinação pela vida. [83] A Igreja Católica entende que o início da vida se dá com a fecundação, repudiando qualquer tipo de experimentação com embriões, bem como seu congelamento, e inclusive as técnicas de fecundação in vitro. [84] Não é razoável que em nome de uma dogmatização do direito à vida seja retirada a oportunidade da ciência de encontrar a cura, seja através das células-tronco ou outras técnicas atuais, para milhares de crianças que possuem distrofia muscular, doença que leva à deterioração muscular e à morte precoce, ou de idosos com doenças degenerativas. [85] Faz-se necessária uma reflexão profunda acerca do início do direito à vida, o que afeta a existência de verdades absolutas secularmente consideradas. Pode-se mencionar que a Igreja Católica, que sempre proclamou o valor absoluto da vida humana, por solicitação do Papa, pedira ao biólogo italiano Daniele Petrucci a destruição de embriões in vitro, o que demonstra o quão restrito pode ser o pensamento advindo de dogmas irrefutáveis. [86] Ademais, antes da Igreja Católica se amparar na intangibilidade da vida humana desde a fecundação, sustentou, com a mesma veemência, a tese da animação retardada, de fundamento bíblico, que consistia na infusão da alma por Deus em um momento posterior à fecundação e à atividade sexual dos progenitores.[87] Tal posicionamento, sustentado por séculos, leva-nos a refletir acerca da rígida postura que adotam alguns defensores da humanização instantânea do fruto da concepção, o que dá à intangibilidade do embrião força de verdade revelada, além de equiparar a fecundação in vitro a um sacrifício de vidas humanas. [88] Também se faz necessário lembrar que quando foi introduzida a vacinação contra a varíola, os teólogos discutiram se tal prática deveria ser admitida ou se seria uma violência para com a natureza dos homens e as leis de Deus. [89] Percebe-se que a moral católica tradicional deve ser repensada à luz das conquistas científicas atuais e, como enfatiza Eduardo A. AZPITARTE: “Seria preferível que, se a moral católica chegasse a se enganar, alguma vez o fizesse por animar a um encontro apaixonado com a verdade e o bem e não que, por segurança, como sucedeu em outras situações históricas, ficasse para trás na marcha da ciência e do progresso.” [90] Os defensores da teoria da fecundação normalmente sustentam que a partir da concepção tem-se um novo ser, dotado de patrimônio genético único, argumento inverídico, pois existem formações patológicas naturais, que, embora possuam um DNA diverso do corpo materno, não podem originar um ser humano, como a mola hidatídica e o teratoma. Estes consistem em conjuntos de células com o mesmo DNA do embrião, suscetíveis de crescimento e que jamais poderiam ser considerados como vida humana. [91] Um argumento científico que embasa a teoria da nidação é a segmentação do indivíduo, que consiste no fato de os gêmeos monozigóticos [92], que possuem o mesmo código genético, separarem-se no momento da implantação do zigoto no útero, ou ao menos, obrigatoriamente, antes que se finde a nidação (14 dias após a fecundação). Desse modo, só se poderia cogitar de um ser humano quando presente a característica da unicidade e, até que se ultrapassasse essa fase de segmentação, não haveria como reconhecer ambos os seres como uma pessoa.[93]  Na esfera penal, considera-se para fins de cometimento do aborto, que a vida intra-uterina se inicia com a fecundação ou constituição do ovo ou zigoto, ou seja, a concepção. Entretanto, tendo-se em vista a ausência de proibição de comercialização, no país, do DIU e das pílulas anticoncepcionais do “dia seguinte”, que impedem a implantação do zigoto no útero, deve-se aceitar, para fins penais, sob pena de considerar tais práticas como abortivas, o posicionamento de que a vida se inicia juridicamente com a implantação do ovo no útero materno (nidação). [94] É interessante ressaltar que o emprego de meios como a pílula do dia seguinte e o DIU impedem tanto a fecundação como a nidação. Assim, adotada a teoria da nidação, os sistemas que impedem a fixação do óvulo fecundado, seja por meios mecânicos ou pela ingestão de hormônios ou outras drogas, serão considerados anticonceptivos e não abortivos; enquanto que se houvesse a adoção da teoria da fecundação todos estes métodos configurariam manobras abortivas. [95] Poder-se-ia imaginar que o critério da nidação é inadequado por não proteger a vida humana advinda da fecundação in vitro [96], porém, o pré-embrião assim obtido pode receber tutela jurídica não por ser considerado vida humana, mas através de norma especificamente a ele destinada, que regulamentasse de forma adequada o destino dos pré-embriões excedentes. De maneira similar, o aborto já incide somente sobre a morte de um embrião já implantado no útero materno, e não sobre aqueles fecundados em laboratório. Verifica-se que, frente a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, inclusive das normas penais, que repelem o aborto, protegem o direito à vida e não coíbem práticas contraceptivas que impedem a fixação do zigoto, a única interpretação viável e harmônica seria a de que o ser humano só é considerado a partir da nidação, da fixação do embrião no útero. [97] Atualmente, com o advento da clonagem reprodutiva, em que qualquer célula somática (seja de uma cutícula ou de um fio de cabelo) pode gerar um ser se implantado em um útero, pode-se chegar ao cúmulo de se considerar que a destruição de qualquer célula humana representa a destruição de uma vida humana em potencial. Além disso, inviabilizar-se-ia as pesquisas com células-tronco embrionárias, já que os cientistas, ao manipularem tais células, buscando produzir tecidos e órgãos para transplantes, poderiam incidir em condutas equiparadas ao homicídio. [98]  Nesse sentido, mostra-se lógico o posicionamento das academias de ciência de 63 países, inclusive do Brasil, que aprovaram pesquisas com células embrionárias de embriões até 14 dias, o que reforça o critério da nidação, já que esta ocorre aproximadamente neste momento. Do mesmo modo, basta vislumbrarmos os recentes posicionamentos no direito comparado, pois a maioria dos países da comunidade européia, a Grã-Bretanha, o Canadá, a Austrália, o Japão, a China, a Coréia e Israel, têm considerado que a vida começa juridicamente a partir do 14º dia após a fecundação, o que respalda a teoria da nidação. O recente dispositivo da Lei de Biossegurança, declarado constitucional pelo STF, permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias, o que exige, talvez, uma nova concepção para o início do direito à vida, pois a captação dessas células-tronco pelos cientistas implica a destruição do embrião e, para alguns estudiosos do assunto, mais vale salvar uma vida já existente do que obstinadamente proteger uma promessa de vida. Percebe-se, portanto, que a sociedade nitidamente clama por uma evolução do conceito de vida, através de uma análise apurada dos problemas outrora inexistentes, como o número alto de pré-embriões congelados no país, a permissão governamental quanto ao uso de meios anticontraceptivos que impedem a fixação do zigoto no útero, dentre outros.[99] O recente posicionamento do STF que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias beneficia milhares de portadores de doenças degenerativas e hereditárias, igualmente demonstrando o caminho que está sendo trilhado rumo a uma nova concepção acerca do início da vida e novos horizontes para a sociedade moderna. 5. Conclusão A sociedade hodierna em muito se difere da concebida por nossos ancestrais, apresentando novas tecnologias e conceitos, alguns aparentemente trazidos pela reprodução assistida, a maioria decorrência verdadeira da evolução social, que age concomitantemente sobre os vários setores sociais. Vislumbra-se o desenvolvimento do conceito de paternidade sócio-afetiva, em detrimento das antigas concepções que davam prevalência aos critérios genético e biológico. Demonstra-se, pois, que a sociedade ruma a concepções mais humanizadas, e não somente científicas, embora estas influenciem aquelas. Há, na realidade, uma interação entre os vários setores sociais e as inúmeras ciências na busca de soluções para os problemas contemporâneos. Logo, é factível a constatação de que a sociedade clama por uma evolução nas concepções acerca da vida humana, que repercutem em vários setores jurídicos, dentre eles a reprodução assistida. A grande quantidade de pré-embriões congelados no país, a necessidade em se utilizar embriões para a pesquisa com células-tronco embrionárias, a permissão governamental quanto ao uso de meios anticontraceptivos que impedem a fixação do zigoto no útero, como o DIU, são fatos que denotam a escolha social pelo critério da nidação quanto ao início da vida. Esse critério já está explícito, seja nas normas penais, na conduta da comunidade ou nos anseios científicos. Simultaneamente, o DNA, que embasa a teoria do início da vida pela fecundação, mostra-se como um aspecto não primordial para a determinação do início da vida, pois o ser humano intra-uterino não pode ser reconhecido tão-somente pelo seu material genético, da mesma forma que um cadáver não o é. Da mesma maneira, a paternidade, de um modo geral, desvinculou-se do mero fator genético e biológico quando se erigiu a paternidade sócio-afetiva. Se formos um pouco mais além, poderemos perceber que, assim como o DNA deixou de ser o aspecto primordial para o início da vida humana, também não o é para seu término, inferindo-se daí um novo conceito de vida. Não há como negar, nem voltar atrás, a tecnologia hoje existente incorpora-se à nossa realidade, e de nada adianta tentarmos legislar para os nossos antepassados. Certo é que, utilizando-se do bom senso, o homem será capaz de trazer cada vez mais melhorias à sociedade, podendo fazer uso, para esta finalidade, de regramentos os mais diversos. A Reprodução Humana Assistida é palco de inúmeras inovações tecnológicas, em que se somam conhecimentos científicos a fim de obter uma melhor qualidade de vida dos indivíduos. Nosso ordenamento jurídico simplesmente retrata os anseios sociais e, na retaguarda da evolução biotecnológica, busca soluções para os problemas já existentes e aqueles que possivelmente, em um futuro próximo, possam surgir. Incumbe ao Direito adaptar-se às novas realidades sociais, substituir antiquados conceitos por concepções mais consentâneas com a atualidade, assim como quando reconheceu o poder familiar, a igualdade entre os filhos e entre os sexos, o pluralismo familiar e a monoparentalidade, dentre outros. Todavia, é evidente que o ordenamento jurídico ainda assegurará direitos e formulará teorias hoje não imagináveis, porque existe um processo de transformação e evolução contínuos. Dessa forma, é provável que inexistam dúvidas, em um futuro próximo, acerca da utilização de células-tronco embrionárias, do direito de procriação e do direito de sucessão legítima à prole post mortem, dentre outros. Não obstante, é imprescindível que estejamos atentos a todas as mudanças pelas quais nossa sociedade ainda passará, que sejamos capazes de aderir a novas concepções, deixando de lado dogmas antes irrefutáveis.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-54/aspectos-contemporaneos-da-reproducao-assistida/
Pesquisa clínica no Brasil e responsabilidade ética: Um estudo das normas à luz da Bioética
A pesquisa com seres humanos é antiga e sempre provocou polêmicas no que tange aos aspectos éticos. Nela está inserida a pesquisa clínica e, especialmente a que envolve novos medicamentos, vem crescendo muito em nosso país nos últimos dez anos, cujo desenvolvimento se deve, fundamentalmente, à Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde. Após a Resolução 196/96, que tornou-se referência nacional e internacional no cenário da pesquisa envolvendo seres humanos, vieram outras que ajudaram a normatizar a pesquisa clínica no Brasil, assegurando a preservação dos interesses individuais e universais envolvidos. Este artigo tem como objetivo analisar as principais dessas normas à luz da Bioética.
Biodireito
1. Introdução A experimentação com seres humanos é antiga e, segundo Vieira e Hossne, aceita-se como marco referencial do nascimento da experimentação científica o século XVI, com Galileu (apud Segre, Cohen, 1999: 159). Os experimentos que mais marcaram a história foram na área biomédica, porém os seres humanos foram utilizados em experimentações de diversas áreas, tais como a psicologia, odontologia, nutrição, física, fisioterapia e outras. Vale dizer que a área biomédica é sempre a mais comentada e divulgada, por trazer repercussões na perspectiva de cura e prevenção de doenças, longevidade e sonho de imortalidade. A pesquisa clínica está inserida na pesquisa que envolve seres humanos e pode ter como objetivo a pesquisa de novos medicamentos, novos procedimentos de diagnóstico e terapia, novas técnicas cirúrgicas e fisioterápicas, dentre outros estudos envolvendo seres humanos. Por ser a pesquisa com novos medicamentos a que vem ganhando maior destaque no nosso país, iremos tratar aqui especificamente dela e dos documentos normativos nacionais pertinentes ao tema. Para começar a falar sobre o assunto, definimos como ponto de partida o relato de três importantes experimentos, que marcaram a nossa história científica: a descoberta da vacina contra a varíola, que consistiu em colocar crostas de pústulas de varíola na mucosa nasal de pessoas sãs, inocular líquido da varíola bovina nas pessoas para torná-las imunes à doença, até chegar à inoculação da varíola humana no próprio ser humano, que resultou na descoberta da vacina; as primeiras pesquisas sobre a dengue utilizaram voluntários que eram civis que cumpriam penas na prisão estadual e muitos soldados americanos, em vista da dificuldade de se encontrar voluntários; vale destacar também o experimento sobre a poliomielite, que resultou em experimentar a vacina Salk, descoberta em 1950 nos Estados Unidos, em milhões de crianças, divididas em grupos tratado e de controle, sendo que as crianças do grupo controle recebiam soro fisiológico no lugar da vacina sem que os pais tivessem conhecimento (Hossne, Vieira, 1987). Este ponto de partida nos leva a uma reflexão, defendida por Machado (1), de que não se deve fazer um julgamento ético retroativo, ou seja, é impossível tentar fazer uma análise ética atual sobre um caso concreto antigo, visto que são condutas contraditórias e até mesmo desastrosas. “A experimentação com seres humanos tem sido feita ao longo dos séculos, com diferentes padrões de ética e de qualidade, em todo o mundo. De um lado, deve-se assegurar, por meio da experimentação, a aplicabilidade dos novos conhecimentos para o bem da humanidade e, de outro, devem-se criar mecanismos de salvaguarda para evitar os abusos da experimentação, a ‘cobaização’ do ser humano” (Hossne, Vieira, apud Segre, Cohen, 1999: 160). O primeiro mecanismo de proteção do ser humano foi criado em 1947, logo após o julgamento dos crimes cometidos durante a Segunda Grande Guerra. Este documento, chamado de Código de Nüremberg, criou o que podemos denominar “os 10 mandamentos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos”, nos quais, pela primeira vez na história, podemos observar responsabilidades e a presença dos referenciais da bioética (2) , conforme sintetizamos e destacamos os principais termos em negrito, conforme abaixo: 1. Obter o consentimento do voluntário, considerado legalmente capaz, sendo que o dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador; 2. A pesquisa não pode ser feita de maneira casuística, devendo produzir resultados vantajosos para a sociedade (eis o referencial bioético da justiça); 3. Pesquisa prévia em animais e da evolução da doença; 4. Deve-se evitar o sofrimento e danos desnecessários ( eis o referencial da não-maleficência); 5. Quando houver risco de morte ou invalidez permanente, o próprio pesquisador deve submeter-se ao experimento; 6. O risco deve ser proporcional ao benefício (aqui notamos o referencial bioético da beneficência); 7. Proteger o participante de qualquer possibilidade de dano (eis o referencial do respeito à vulnerabilidade do sujeito de pesquisa); 8. O pesquisador e equipe devem ser cientificamente qualificados para a condução da pesquisa; 9. Garantir a liberdade do participante se retirar da pesquisa a qualquer momento (e não faltou o referencial bioético supremo da autonomia); 10. O pesquisador deve suspender a pesquisa, se houver possibilidade de dano ao participante. Ao falarmos de responsabilidade ética faz-se necessário traçar um paralelo diferencial entre responsabilidade ética e responsabilidade civil, visto que no campo dos julgamentos fazemos menção às conseqüências esperadas e, dentre elas, não deixamos de pensar nas penalidades e aí entra a responsabilidade civil. Para tanto, precisamos tentar responder o que é ética e o que é moral? Ética, na concepção do Professor Hossne, é o juízo crítico de uma situação em conflito, ou seja vem de dentro pra fora, ao contrário de moral, que é um acordo social e vem de fora pra dentro, como por exemplo os códigos deontológicos. Sabemos que ética não se confunde com moral, pois a moral é imposta e a ética é percebida. É certo, porém, que quanto mais evoluída for a sociedade menos esta se preocupará com a ética social, permitindo que cada indivíduo possa agir de acordo com sua ética pessoal. A ética, portanto, não se adquire com o nascimento, pois ela é a percepção do que é mais adequado num conflito entre a razão e a emoção (Segre, Cohen, 1999). Mas, então, o que seria responsabilidade? Responsabilidade, na definição de Muñoz e Almeida, é a capacidade de assumir todas as conseqüências dos seus próprios atos e omissões, e que, portanto, pode ser conceituada como a exata noção do dever (apud Segre, Cohen, 1999: 121). A responsabilidade pode ser analisada no âmbito da ética e no âmbito jurídico e, neste último, portanto, mora a responsabilidade civil. Encontramos no artigo 927, do Código Civil Brasileiro, uma fundamentação básica da responsabilidade civil, conforme segue in verbis: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” Podemos observar que, ao se cometer um ato ilícito que venha a causar dano a alguém, ficar-se-á obrigado a repará-lo, independendentemente de culpa e quando a natureza da atividade que causou o dano, por si só, implicar em risco para terceiros. Assim, as atividades de risco, como as desenvolvidas por um hospital e não menos por uma instituição que realize pesquisas com seres humanos, estarão obrigadas a reparar os danos que venham a cometer, independentemente de culpa e, aqui, podemos observar a teoria da responsabilidade objetiva. Importante analisarmos também o artigo 186 citado: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano à outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Destacamos que não só por ação que se comete ato ilícito, mas por também por omissão, mesmo que o dano seja exclusivamente moral. Com base nos conceitos ora expostos, vejamos agora a sua aplicação no cenário da pesquisa que envolve seres humanos. Mas, o que é pesquisa com seres humanos? Quem é o patrocinador do estudo? Quem é o pesquisador? O que faz a instituição e qual o papel do Comitê de Ética em Pesquisa – CEP? Em termos gerais e simplificados e dando enfoque aos sujeitos do título deste trabalho: pesquisador é quem faz o plano (projeto de pesquisa); a instituição oferece os meios para a realização do plano e responde pelos recursos oferecidos; o patrocinador pode também fazer o plano ou financiá-lo para que o pesquisador o execute. E o CEP, qual o papel do CEP nessa história? O CEP é quem aprova tudo isso e, ao aprovar o plano, ou melhor, o projeto de pesquisa, torna-se co-responsável pelos aspectos éticos, nos termos da Resolução 196/96  do Conselho Nacional de Saúde, hoje considerada o manual da pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil e que conquistou o respeito nacional e internacional nesse assunto, conforme veremos adiante. Vejamos, agora, algumas hipóteses meramente exemplificativas, envolvendo responsabilidades: Exemplo 1: Um protocolo de estudo internacional chega num centro de pesquisas do Brasil, na versão original, e passa a ser traduzido pelo próprio pesquisador (executor da pesquisa). Como sabemos, todo protocolo tem um objeto e um objetivo que devem estar em conformidade com a Resolução 196/96. O projeto é analisado pelo CEP da instituição que, aprovado, é encaminhado à CONEP (3) que também o aprova. Assim, está pronto para ser iniciado, porém, o mesmo pesquisador que fez a tradução, altera a tradução do seu objeto no momento da execução da pesquisa e, em decorrência disso, 90 % dos sujeitos de pesquisa pioram ou adquirem a doença, e ocorrem 2 mortes. Pergunta-se: quais as principais responsabilidades envolvidas, com relação ao pesquisador e ao CEP neste caso? Exemplo 2: um estudo duplo cego (4), no qual 2 sujeitos de pesquisa recebem a medicação nova e 3 recebem a medicação convencional. Passado algum tempo, os 2 que recebem a medicação nova estão vivos e apenas 1 que recebe a medicação convencional está vivo. Qual a responsabilidade do CEP neste caso? E perante o sujeito de pesquisa, quem responde? Para responder essas e outras perguntas é necessário conhecermos as normas existentes aplicáveis à pesquisa clínica envolvendo novos medicamentos. 2. Resoluções do Conselho Nacional de Saúde Os documentos normativos seguintes não foram iniciativa do Poder Legislativo Brasileiro e, por isso, não apresentam roupagem de lei, no entanto, inegavelmente têm poder cogente e força de lei, muito embora emanadas pelo Poder Executivo, especificamente pelo Conselho Nacional de Saúde, órgão de controle social do Ministério da Saúde, sob a forma de Resolução Normativa e que merecem destaque no quesito eficácia. 2.1 Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996: Panorama histórico de sua criação Já discorremos sobre a preocupação com a ética na experimentação com seres humanos, no final da Segunda Grande Guerra, após o julgamento em Nüremberg dos crimes contra humanidade, que deu origem ao Código de Nüremberg, em 1947, que foi o primeiro documento internacional a tratar do tema pesquisa com seres humanos. Logo depois, em 1964, veio a Declaração de Helsinque, com várias atualizações posteriores (1975, 1983, 1989. 1996, 2000 e 2003). Surge, então, na década de setenta, diante do avanço científico e tecnológico que “trouxe consigo novos desafios para a experimentação de seres humanos não só no sentido individual, mas também no sentido de comunidade”, a necessidade de elaborar um novo documento internacional sobre o tema (VIEIRA e HOSSNE, apud COHEN e SEGRE, 1999, p. 161). Dessa forma, surgiu o documento “Diretrizes Ética Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos”, elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em conjunto com o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS), em 1981, que foi traduzido e editado pelo Ministério da Saúde do Brasil em 1985 e teve sua terceira versão publicada em português em 2002, pelas Edições Loyola. Sob a influência deste contexto internacional, apesar de ter sido muito importante, porém pouco conhecida entre os pesquisadores, foi elaborada no Brasil, em 1988, a Resolução nº 1, pelo Conselho Nacional de Saúde, que estabelecia normas para a pesquisa em saúde. A propósito, em 1995 foi realizada uma pesquisa em Comitês de Ética em Pesquisa de 26 hospitais brasileiros que chegou a seguinte conclusão: “Os resultados destes estudos demonstraram em primeiro lugar que é lamentável a forma como vem sendo realizada a pesquisa biomédica no Brasil, em relação aos parâmetros estabelecidos por normas nacionais e internacionais. Em segundo lugar, a necessidade de uma ampla divulgação das normas nacionais e internacionais de pesquisa em saúde, do papel dos Comitês de Ética em Pesquisa e a sua diferença com relação às Comissões de Ética Médica.” (KIPPER, OSELKA et al, 1995, p. 61-67) A busca pelo aprimoramento das normas para pesquisa com seres humanos tornou-se, a partir daí, uma constante no meio científico brasileiro. Após sete anos de aplicação da Resolução CNS nº 1/88 pela Comissão Intersetorial de Ciência e Tecnologia (CICT), o Conselho Nacional de Saúde decidiu pela revisão da Resolução nº 1/88, com os objetivos de atualizá-la e de preencher lacunas geradas pelo desenvolvimento científico. Foi, então, designado o Grupo de Trabalho, integrado por representantes de vários segmentos sociais e  profissionais de diversas áreas, coordenado pelo Prof. William Saad Hossne, Conselheiro Titular representante da Sociedade Civil e da Comunidade Científica e Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética à época (NUNES  apud CONEP/MS, 2000, p. 7). O processo de aprimoramento das normas para pesquisas envolvendo seres humanos, sob responsabilidade do Grupo Executivo de Trabalho designado pelo Conselho Nacional de Saúde, sendo os seus membros: William Saad Hossne, Sérgio Ibiapina Ferreira da Costa, Fátima Oliveira, Artur Custódio Moreira de Souza, Leocir Pessini, Simone Nogueira, Jorge Bermudez, Márcio Fabri dos Anjos, Marília Bernardes Marques, Álvaro Antônio da Silva Ferreira, Antonio Fernando Infantosi, Albanita Viana de Oliveira, Omilton Visconde, Roque Monteleone, Elisaldo Carlini (Secretário de Vigilância Sanitária/MS) e Corina Bontempo Duca de Freitas (CONEP, 2000, p. 11). O processo foi extremamente complexo, amplo, coerente e representativo, pois divulgou informações através de cartas à comunidade civil, científica e de profissionais; consultou cientistas, pesquisadores, profissionais de diversas áreas, setores da bioética, conselhos de profissão, associações e entidades representativas de usuários do sistema de saúde, representantes do movimento de mulheres e instituições religiosas; revisou literatura e legislação brasileira e de diversos países, bem como teve o apoio de representantes da área jurídica e de direitos humanos; discutiu e debateu as opiniões e pontos de vista que retornaram das consultas, ganhando o apoio da indústria e de órgãos do Ministério da Saúde. O resultado de todo esse trabalho não poderia ser melhor, pois deu origem, em 10 de outubro de 1996, à Resolução nº 196, que está em vigência há dez anos, e representa um verdadeiro manual da pesquisa com seres humanos, respeitada nacionalmente e elogiada internacionalmente. Hossne e Freitas, Coordenador e Secretária Executiva do Grupo Executivo de Trabalho, respectivamente, fizeram um relato de trabalho na Série Cadernos Técnicos, do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, publicada pelo Ministério da Saúde em 2000 (p. 17-21), da qual extraímos os trechos abaixo: “Buscando a legitimação das propostas de modificações da Res. 01/88 e diante da necessidade de que estas refletissem os conceitos atuais de bioética, consideradas as perspectivas da sociedade como um todo, além da sua adequação à situação nos setores de ponta, responsáveis pela execução das pesquisas, foi definida uma metodologia de trabalho, conforme a Res. 173/95, que incluiu: – ampla consulta à comunidade científica e à sociedade, solicitando análises e sugestões para aprimoramento da Res. 01/88; – divulgação das Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS-OMS); – estímulo à realização de seminários institucionais para discussão aprofundada do assunto; – consolidação das propostas e apresentação em Audiência Pública; – apresentação da proposta preliminar no Congresso Brasileiro de Bioética; – apresentação final e aprovação no Conselho Nacional de Saúde. Desta forma o grupo começou seu trabalho através de duas vertentes: consulta à sociedade e revisão cuidadosa da literatura. Este processo, pioneiro no Brasil, com metodologia de ampla consulta, teve como primeira etapa a identificação de entidades e pessoas envolvidas com a pesquisa, a bioética e as políticas públicas, incluindo as associações científicas, universidades, instituições de pesquisa, entidades profissionais, entidades da sociedade civil da área de direitos humanos, direito sanitário, defesa do consumidor, movimentos de mulheres, associações de portadores de patologias, instituições religiosas  entre outras. Procurou-se assim abranger representantes das áreas temáticas específicas: reprodução humana, genética, biossegurança, pesquisas envolvendo populações indígenas, equipamentos e dispositivos para a saúde, fámacos e medicamentos. Foram encaminhadas 2.300 correspondências solicitando sugestões e enviando material básico para subsídio, incluindo a revista Bioética, publicada pelo Conselho Federal de Medicina, contendo as diretrizes nacionais e internacionais. O Informe Epidemiológico do SUS, edição de março de 1996, com distribuição de 20.000 exemplares, publicou também as diretrizes internacionais, a Res. CNS 01/88 e as Resoluções CNS 170 e 173 sobre o processo de revisão, solicitando sugestões. Esta divulgação provocou o desencadeamento de discussões e do interesse de aprofundamento sobre bioética em diferentes grupos, talvez um dos resultados mais importantes do trabalho. Seminários institucionais e locais foram realizados por várias entidades científicas e da sociedade civil, para organização de pontos de vista coletivos a respeito do tema. Algumas instituições definiram grupos de trabalho, para elaborar sugestões, entre elas a Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ; a Secretaria de Saúde de Santa Catarina, que formou comissão com representação do Sindicato dos Médicos, do Conselho Regional de Odontologia e do Conselho Regional de Enfermagem do mesmo Estado; a Universidade de Brasília; a USP, especialmente o Hospital das Clínicas da FMUSP; o Hospital das Clínicas de Porto Alegre e vários Comitês de Ética Médica de Unidades de Saúde. O CNS participou de iniciativa locais de Oficinas e Seminários, também com o objetivo de recolher sugestões (…). Também foi discutido o tema em encontro do Mercosul em São Paulo, em agosto/96, e em reunião da Sociedade Brasileira de Investigação Clínica, em 28/09/96. Os membros do grupo mobilizaram seus pares visando incentivar as discussões e participaram de diversos eventos científicos que solicitaram apresentações sobre o tema bioética, tendo sido perceptível a mobilização da sociedade, inclusive através da imprensa. Após esta primeira fase e com a análise das sugestões recolhidas nos eventos e nas 119 correspondências recebidas, muitas delas de grupos institucionais, correspondendo a um número considerável de pessoas, elaborou-se um documento preliminar, enviado novamente a um grande número de entidades e especialistas e apresentado em Audiência Pública, realizada  em Brasília, no Ministério da Saúde, em 20/6/96. Nessa Audiência Pública, além das manifestações especialmente solicitadas de entidades tais como Associação Brasileira de Empresas de Biotecnologia (ABRABI), Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), Associação Brasileira de Médicos Assessores de Indústria, Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, Sociedade Brasileira de Farmacologia Clínica, Superintendência de Cooperação Científica e Tecnológica do Ministério das Relações Exteriores, Ministério Público Federal e Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital dos Servidores Públicos/IAMSPE. A ética nas pesquisas foi também discutida no Congresso Brasileiro de Bioética, em São Paulo, de 26 a 28/06/96, e tema de uma mesa complementar na 10ª Conferência Nacional de Saúde, em setembro/96. A revisão bibliográfica constou da análise da legislação de vários países da América Latina, EUA e Canadá, Comunidade Européia e organismos Internacionais, além da legislação brasileira correlata e bibliografia diversa com organização de banco de informações bastante extenso a ser disponibilizado no Centro de Documentação do MS. […] Desta forma acredita-se que estas normas realmente são resultado do que pensa a sociedade brasileira, construída a partir dos requisitos do Ministério da Saúde/Governo, da comunidade científica, dos sujeitos da pesquisa e da sociedade como um todo, constituindo efetivo instrumento de concretização da cidadania e de defesa dos direitos humanos.” Assim foi criada a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, cuja história de nascimento e criação serve de exemplo ao nosso Poder Legislativo e, certamente, lhe serviria de modelo de conduta para proceder necessárias reformas legais, como é o caso da reforma da legislação penal que carece esse país. A Resolução 196/96 trouxe de forma simples e, ao mesmo tempo, completa, um manual operacional da pesquisa com seres humanos, contemplando os princípios, agora denominados referenciais básicos da bioética (5), sendo eles o da autonomia da pessoa, da não maleficência, da beneficência e o da justiça, condensando e fundindo de forma apropriada as disposições éticas dos três principais documentos que tratam da ética na pesquisa com seres humanos: Código de Nüremberg, Declaração de Helsinque e Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Com a Resolução 196/96 foi criada a Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP), cuja finalidade e principais características veremos a seguir. Acreditamos que o apoio da área jurídica no processo de sua elaboração foi fundamental, pois de maneira assertiva incluíram no seu corpo (preâmbulo) a fundamentação legal na qual se apóia e está em fiel cumprimento: a Constituição Federal, o Código Civil e Penal Brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e algumas leis federal relacionadas ao sistema de saúde pública. Tais disposições garantiram o poder cogente da Resolução 196/96, cuja força de lei é incontestável e extremamente eficaz, visto que o seu descumprimento pode acarretar em descumprimento de norma constitucional, civil, penal ou consumerista. Enfim, a Resolução 196/96 é resultado de um trabalho planejado, fundamentado, eficiente e digno de elogios. É um marco na história da pesquisa envolvendo seres humanos do nosso país. 2.1.1 Resolução 196/96: Apresentação e aplicabilidade A Resolução 196/96 apresenta dez capítulos, nos quais são tratados, respectivamente, do preâmbulo, dos termos e definições utilizados na pesquisa, dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, do consentimento livre e esclarecido, dos riscos e benefícios, do protocolo da pesquisa, do Comitê de Ética em Pesquisa – CEP, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, da operacionalização e das disposições transitórias. A ordem dos capítulos segue uma seqüência lógica de contextualização, que facilitam a compreensão e o entendimento. Seguindo a ordem dos capítulos, faz-se necessário destacar no preâmbulo a alma jurídica que deu força de lei à Resolução 196/96, ou seja, quando disposto no preâmbulo que a Resolução “cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da legislação brasileira correlata: Código de Direitos do Consumidor, Código Civil e Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da Saúde 8.080, de 19/09/90 (dispõe sobre as condições de atenção à saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes), Lei 8.142, de 28/12/90 (participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde), Decreto 99.438, de 07/08/90 (organização e atribuições do Conselho Nacional de Saúde), Decreto 98.830, de 15/01/90 (coleta por estrangeiros de dados e materiais científicos no Brasil), Lei 8.489, de 18/11/92, e Decreto 879, de 22/07/93 (dispõem sobre retirada de tecidos, órgãos e outras partes do corpo humano com fins humanitários e científicos), Lei 8.501, de 30/11/92 (utilização de cadáver), Lei 8.974, de 05/01/95 (uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados), Lei 9.279, de 14/05/96 (regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial), e outras”, automaticamente garantiu-se a sua eficácia mediante o seu cumprimento integral, caso contrário estar-se-ia descumprindo a própria Constituição Federal, ou o Código Civil e Penal, ou uma lei federal, constituindo-se a infração em provável cometimento de crime ou ato ilícito, passível de processo judicial perante a vítima ou ao Ministério Público. No Capítulo II são adotadas algumas definições, conforme foram extraídas da Resolução e seguem abaixo com negrito aos termos que, no nosso  entendimento, merecem maior atenção : II.1 – Pesquisa – classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, relações ou princípios ou no acúmulo de informações sobre as quais estão baseados, que possam ser corroborados por métodos científicos aceitos de observação e inferência. II.2 – Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais. II.3 – Protocolo de Pesquisa – Documento contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais, informações relativas ao sujeito da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e à todas as instâncias responsáveis. II.4 – Pesquisador responsável – pessoa responsável pela coordenação e realização da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa. II.5 – Instituição de pesquisa – organização, pública ou privada, legitimamente constituída e habilitada na qual são realizadas investigações científicas. II.6 – Promotor – indivíduo ou instituição, responsável pela promoção da pesquisa. II.7 – Patrocinador – pessoa física ou jurídica que apóia financeiramente a pesquisa. II.8 – Risco da pesquisa – possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente. II.9 – Dano associado ou decorrente da pesquisa – agravo imediato ou tardio, ao indivíduo ou à coletividade, com nexo causal comprovado, direto ou indireto, decorrente do estudo científico. II.10 – Sujeito da pesquisa – é o(a) participante pesquisado(a), individual ou coletivamente, de caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração. II.11 – Consentimento livre e esclarecido – anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa. II.12 – Indenização – cobertura material, em reparação a dano imediato ou tardio, causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida. II.13 – Ressarcimento – cobertura, em compensação, exclusiva de despesas decorrentes da participação do sujeito na pesquisa. II.14 – Comitês de Ética em Pesquisa-CEP – colegiados interdisciplinares e independentes, com “munus público”, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos. II.15 – Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido. II.16 – Incapacidade – Refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado, de acordo com a legislação brasileira vigente. A Resolução traz em seu capítulo III, disposições sobre a eticidade na pesquisa envolvendo seres humanos, a qual definimos conforme o organograma abaixo:   De acordo com a Resolução, a eticidade na pesquisa envolvendo seres humanos deve estar fundamentada em quatro referenciais da bioética que são: a beneficência, a autonomia da pessoa, a justiça e a eqüidade. O referencial da beneficência pode ser traduzido neste caso como a proporção razoável dos riscos e benefícios que a pesquisa deve respeitar, evitando riscos desnecessários ou que previsivelmente possam causar sérios prejuízos ao sujeito de pesquisa. Dessa forma, o benefício deve se sobrepor ao risco para que a pesquisa seja eticamente aprovada e desenvolvida. O respeito à autonomia da pessoa humana nada mais é que o fiel cumprimento da aplicação adequada do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou seja, a vontade e a liberdade de escolha e poder de decisão do voluntário da pesquisa jamais poderá ser subjugada. Os referenciais da justiça e da eqüidade completam a relação pesquisa e sujeito de pesquisa, uma vez que preconiza que toda pesquisa deve trazer resultados sócio-humanitários e que se revertam para a coletividade, além de orientar que os desiguais sejam tratados de maneira desigual, como por exemplo as comunidades indígenas, em vista da maior vulnerabilidade que representam. Deste capítulo podemos também extrair os dez mandamentos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos: 1. Adequar a pesquisa aos princípios científicos e obedecer a metodologia adequada; 2. Fundamentar a pesquisa na experimentação prévia com animais; 3. Aplicar o TCLE ao sujeito de pesquisa e garantir a privacidade e confidencialidade das informações; 4. Comunicar os resultados da pesquisa às autoridades sanitárias; 5. Garantir aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto; 6. Respeitar os valores e costumes de comunidades, participantes do estudo; 7. Nas pesquisas internacionais, comprovar as vantagens aos sujeitos de pesquisa do Brasil; 8. Utilizar o material biológico e os dados coletados somente para a finalidade da pesquisa; 9. Considerar os riscos e benefícios quando a pesquisa for realizada em mulheres em idade fértil ou grávidas; 10. Descontinuar o estudo somente após parecer do CEP. O capítulo IV da Resolução 196/96 trata do documento mais importante da pesquisa, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, que é o instrumento fundamental que dá início à pesquisa e pode ser definido conforme a tabela abaixo:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-48/pesquisa-clinica-no-brasil-e-responsabilidade-etica-um-estudo-das-normas-a-luz-da-bioetica/
Prática do aborto na sociedade contemporânea: perspectivas jurídicas, morais, econômicas e religiosas
O presente artigo visa abordar a discussão da prática do aborto na sociedade, principalmente em nosso país. Atualmente, a mídia tem veiculado diversas discussões acerca deste tema tão polêmico face à proposição de projetos de lei visando à descriminalização desta prática. Segundo o Código Penal Brasileiro (1940) o aborto é proibido, e somente não se aplica a pena para os casos de risco concreto para a gestante e gravidez resultante de estupro. O aborto é objeto de estudo cujos argumentos não se auto-sustentam na perspectiva de uma análise técnica, mas também moral e religiosa.
Biodireito
Introdução O seguinte artigo visa analisar as principais questões relacionadas ao tema abortamento. É analisada, primeiramente, a questão de quando começa a concepção de vida. Ainda, analisa-se as causas que podem levar ao aborto, a questão jurídica do tema e a incidência desse em nosso país e no mundo. Também constam no seguinte artigo, os tipos de conseqüências que podem surgir devido ao ato de abortar. A intenção é mostrar o quão perigoso pode ser, mas também o lado da necessidade de abortar que possuem algumas mulheres em casos específicos. São focadas as conseqüências legais para quem sofre e para quem comete o aborto, além das conseqüências psicológicas e físicas com as quais a mãe terá que conviver. O artigo visa passar informação sobre o tema para todos os tipos de leitores de forma clara e consistente. Definição de Aborto O termo “aborto” que – cientificamente – indica o produto do abortamento foi popularmente usado como sinônimo deste, confundindo-se, assim, a ação com o resultado dela. Apesar da ressalva, usar-se-á indistintamente neste trabalho, dado a consagração do termo. O aborto – ou abortamento – seria a expulsão do concepto antes da sua viabilidade, seja ele representado pelo ovo, pelo embrião ou pelo feto. Então, é a interrupção da gravidez antes da prematuriedade – abortamento; durante – parto prematuro; completada – parto a termo e ultrapassada – parto serotino. O abortamento pode ser espontâneo ou provocado. Espontâneo é quando por fatores físicos ou psicológicos o concepto não se desenvolve e é expulso do corpo da mãe naturalmente. Enquanto o provocado, é quando a gestante utiliza métodos para induzir ou retirar o feto. Este trabalho limitar-se-á a desenvolver o estudo do aborto provocado. Conceito de Vida O primeiro dos direitos naturais do homem segundo Allan Kardec (apud MOREIRA, 2001) é o direito de viver. O primeiro dever é defender e proteger o seu direito: a vida. O mais elementar direito humano é o de nascer os subseqüentes de liberdade, igualdade, educação, saúde, justiça, só possuem sentido se existir o próprio ser humano para desfrutá-los. Portanto, cercear o direito à vida é negar todos os demais possíveis de ser executados. Hoje em dia há uma grande discussão sobre a partir de quando começa a vida – principalmente devido à prática do abortamento – estas giram em torno de diversas posições psicológicas, médicas, religiosas, antropomórficas. Estes pontos de vista são os mais variados principalmente o religioso – um dos mais influentes – afirma que a vida humana nasce desde a concepção, outros acreditam que esta só existe depois que o feto tem seu cérebro desenvolvido, ainda existem grupos adeptos da idéia de que a vida só passa a existir a partir do nascimento da criança. Aspecto Jurídico “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […].” (1988, Constituição Federal, artigo 5). A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Consequentemente, a vida é o bem supremo em nossa sociedade. Assim, o caráter absoluto do direito à vida só poderia ser afastado quando seu sacrifício visasse proteger um bem de equivalência idêntica, qual seja uma outra vida, nos casos especiais em que tal medida se justificasse, por exemplo, não se aplica a pena nos casos de legítima defesa (artigo 25, Código Penal), no caso de aborto para resguardar a vida da gestante em perigo – aborto necessário – (artigo 128, I, Código Penal), ou ainda no caso de gravidez resultante de estupro – aborto humanitário – (artigo 128, II, Código Penal). Atualmente, está em discussão no país, o caso de não se aplicar a pena para o aborto eugênico, este acontece quando o feto não tem condições de sobreviver após o nascimento. O caso mais conhecido neste tipo de abortamento é o do aborto por anencefalia, que é quando a criança não possui cérebro, ou este está mal formado, portanto não terá condições de sobreviver. Interessante neste caso da anencefalia é analisar a legislação brasileira, que, senão redundante, muitas vezes torna-se “curiosa”. Nota-se na Lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, que é a lei de Transplante de Órgãos, em seu artigo 3, que prevê a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinadas a transplante, somente se e quando for diagnosticada a morte encefálica do paciente, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção de transplantes. Ora, neste caso a lei é bem clara, que quando constatada a morte encefálica é permitido a remoção de órgãos, e conseqüentemente, devido a isto, se obteria a morte biológica do paciente. Consequentemente, conclui-se que provavelmente a legislação atual deverá ser mudada em breve. As pessoas que sustentam o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte: em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. Se até em caso de estupro – em que o feto está bem formado – nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Observa-se ainda que a anencefalia não é uma situação excepcional em nosso país. De cada 10.000 nascimentos, 8,6 % apresentam tal anomalia. Isso vem causando muita aflição para as pessoas envolvidas e também para os médicos, que muitas vezes ficam indecisos e perdidos, sem saber o que fazer. As leis não devem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja, portanto deve caber ao legislador deixar em aberto para quem quiser seguir suas crenças ou não. Aspecto Econômico O aspecto econômico do abortamento é bastante avaliado hoje em dia. A maioria das mulheres que engravidam, são jovens que não tem condições financeiras de criar seus filhos. A prática do aborto seria uma solução – mesmo que desumana – para esse problema, já que assim, aconteceria um efetivo controle de natalidade, diminuindo a pobreza e consequentemente a marginalidade no país. Ainda há outro lado nesta questão financeira. Hoje em dia, é da ciência de todos que existem inúmeras clínicas que fazem abortamentos clandestinos, e cabe salientar, que estas clínicas cobram preços altíssimos, assim, somente uma pequena parte da população faz esse tipo de prática, de maneira higiênica, sem correr riscos de vida. Quem não tem condições de pagar um abortamento em uma dessas clínicas, termina por usar outros métodos como o uso do medicamento Citotec – que vai eliminando o feto aos poucos, como um sangramento – o uso de objetos como facas, tesouras, que introduzidos na vagina, podem até perfurar o útero, e ainda abortos feitos até mesmo dando socos na própria barriga. Ainda existe o argumento de que continuarão a ser realizados abortos, quer o aborto seja descriminalizado ou não, e deste modo, deve-se fornecer melhores condições às mulheres que desejem abortar. A resposta óbvia ao argumento é: roubar é crime, mas há roubos na mesma. Por isso, o melhor é descriminalizar o roubo e, deste modo, fornecer melhores condições aos pobres ladrões, para que não rasguem as calças no arame farpado nem incorram no risco de tropeçar e partir uma perna quando fogem da polícia. A resposta será obviamente: “você está a ser tremendamente injusto — o aborto e o roubo são coisas completamente diferentes”. Mas é claro que são; ninguém está a dizer o contrário. O ponto é simplesmente o de que, se acharmos que o argumento de que “as pessoas fá-lo-iam na mesma” não é por si só, justificação suficiente para descriminalizar o roubo, então também não poderá ser, por si só, justificação suficiente para descriminalizar o que quer que seja, aborto. É extremamente necessário salientar também, que seria um absurdo tentar diminuir a marginalidade, a violência e o crescimento populacional desta maneira. É plausível que haja uma conscientização da população sobre o sexo seguro e prevenção da gravidez. Existem inúmeros métodos contraceptivos, para todas as faixas de renda, inclusive doados pelo governo para as pessoas que não tem condições de comprarem preservativos ou pílulas anticoncepcionais. O que deve haver é um programa forte, com profissionais qualificados para educar a população sobre um controle efetivo de natalidade. Aspecto Moral O aspecto moral do aborto é o principal fato da popularidade do assunto. A sociedade se divide em duas vertentes. De um lado, as pessoas a favor da prática do abortamento, alegam que é pior para a sociedade ter que conviver com indivíduos marginalizados e desamparados pela família, e de outro, a parte que é contra afirma que o aborto fere o direito a vida que todos possuem, mesmo dentro do ventre de outro. A moral, neste caso, é bem afirmada, principalmente quando se reflete que com a prática do aborto legalizada, o mundo se tornará ainda mais promíscuo. Outro aspecto moral ligado ao aborto extremamente polêmico, é o argumento utilizado – na maioria das vezes por movimentos feministas – que o corpo pertence à gestante, então esta tem o direito de fazer o que bem entende com ele. Este argumento limita-se a fugir à questão porque as feministas nunca chegam a dizer nada acerca do estatuto moral do feto, pois nunca dizem se o feto tem, ou não, o direito à vida. Esta é uma falha grave pela seguinte razão: Se o argumento das feministas fosse, simplesmente, o de que “o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há de fazer com ele”, então isso implicaria que seria moralmente permissível abortar até no nono mês. Afinal, no nono mês a criança ainda está no ventre da mãe. As feministas podem agora aceitar esta conclusão, ou rejeitá-la. Imaginemos que a aceitam. Nesse caso, ficam com a dificuldade de explicar porque é que não se pode matar uma criança recém-nascida. Afinal, era possível matá-la dois minutos antes, mas agora já não? Isso parece extremamente arbitrário. Imaginemos agora que as feministas rejeitam a conclusão de que é moralmente permissível abortar no nono mês. Nesse caso, terão de nos dizer a partir de que altura é que o feto, ainda na barriga da mãe, começa a ter o direito à vida. Aí, cabe outra discussão: Quando começa a vida? Uma pergunta difícil ou até impossível de se responder. Se partíssemos da premissa de que a vida começa desde quando há metabolismo no corpo, a vida começa desde a concepção do feto, portanto, seria impossível abortá-lo. Aspecto Religioso O aborto, visto pelo aspecto moral, muitas vezes se confunde com o religioso, o que é erroneamente falado. O aspecto religioso do aborto é bem diferente do moral. Enquanto o moral se refere a que tal prática fere a conduta da sociedade, o religioso consiste em afirmar que a vida é suprema em todos os casos. Eles afirmam que se Deus deu vida a este feto, foi porque ele quis que este existisse, e consequentemente, se este foi mal formado ou fruto de estupro, também aconteceu desta maneira porque foi da vontade de Deus. A posição oficial da Igreja Católica classifica o aborto como um dos pecados sujeitos à excomunhão: “A gravidade do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio […]” (João Paulo II, Encíclica Evangelium Vitae, 25/03/1995, nº. 58). Conseqüências Físicas O aborto causa sérios danos à mulher que o pratica. Quando feito o abortamento ela tem que estar ciente de todas as conseqüências que irão acompanhá-la após a “operação”. As conseqüências físicas, dependendo do método usado, podem ser muito sérias para a mulher, inclusive por ela correr risco de morte. Assim, o aborto, quando não determina a morte, pode imprimir marcas indeléveis no corpo físico. (MOREIRA, 2001). A mulher corre o risco de ter sérias hemorragias, infecções, lesões intestinais, complicações renais e hepáticas pelo uso de produtos tóxicos. Dependendo do método utilizado, podem ocorrer perfurações do útero, esterilidade e abortos espontâneos em próximas tentativas de ter outro filho. Porém, quando o aborto é feito em condições boas e decentes, alguns desses riscos podem diminuir. Conseqüências Psicológicas Segundo Juliane e Maria Júlia Pietro Peres, o aborto além de prejudicar fisicamente a mãe também deixa danos psicológicos graves nesta. Sabe-se que muitas das mães que praticaram o aborto, acabaram depois ficando com sentimento de culpa, remorso e arrependimento. Ainda, muitas acabam ficando com a auto-estima baixa, perdem o desejo sexual, passam a ter comportamentos auto-destrutivos e entram em uma profunda depressão. Além disso, ainda existe bastante preconceito para com a mulher que pratica o aborto, causando assim sérios danos aos relacionamentos sociais desta mulher. Conseqüências Legais Quando se trata de conseqüências legais para quem pratica o aborto, nota-se de acordo com o que já dissemos, que o Código Penal em casos de aborto para resguardar a vida da gestante em perigo (artigo 128,I) e em casos de gravidez resultante de estupro (artigo 128,II) é considerado legal, não tendo assim pena para quem o cometer. Então, em todos os outros casos de abortamento, a pena pode variar em: para a gestante, de 1 a 3 anos de detenção, para o aborteiro, de 1 a 4 anos se houve o consentimento da mãe, e de 3 a 10 anos se não houve o consentimento desta. As penas são agravadas se houve lesão corporal da “vítima” elevando a pena para de 2 a 8 anos. Incidência É surpreendente o alto número de mulheres que praticam o aborto. Segundo pesquisa divulgada no ano passado pela Organização Mundial de Saúde, seis milhões de mulheres praticam aborto induzido na América Latina todos os anos. Destas, 1,4 milhões são brasileiras, e uma em cada 1.000 morre em decorrência do aborto, já que as condições em que são feitos esses abortamentos são precárias e muito perigosas em função de serem métodos ilegais, feitos assim na clandestinidade. Dentro dessas estatísticas, a América do Sul fica em primeiro lugar no número de abortos clandestinos por ano, vindo em segundo a América Central e em terceiro a África. Os abortos são feitos em 48% por meninas de até 19 anos. E, ainda, no Brasil, a cada mil adolescentes grávidas, trinta e duas recorrem ao aborto. De acordo com Moreira (2001), existem Dados do Fundo das Nações Unidas para a População (FUNUAP) que mostram que em conseqüência de abortamentos, morrem por ano nos países da América Latina (inclusive no Brasil) seis mil mulheres, consistindo na terceira causa de morte materna, depois das hemorragias e da hipertensão. Morrem ainda, cerca de setenta mil mulheres por ano em todo o mundo em conseqüência de abortos praticados em condições de risco, clandestinamente. E ainda um número desconhecido, porém muito elevado de mulheres que sofrem de lesões pós-aborto. Mesmo em países que o aborto já é legalizado, ainda existem mulheres que morrem por causa de más condições operatórias. Existem poucos lugares em que as condições são favoráveis e não apresentam risco à mulher, além disso, o custo é altíssimo, fazendo com que muitas procurem métodos mais baratos, porém mais perigosos. Por exemplo, dos estimados 5,3 milhões de abortos induzidos na Índia (onde o aborto é legal), em 1989, 4,7 milhões ocorreram fora de estabelecimentos de saúde aprovados, consequentemente, em condições potencialmente inadequadas. Conclusão A partir do estudo realizado para a realização deste artigo, compreende-se que o aborto não deve ser completamente legalizado em nosso país. Concorda-se com os casos – já supracitados – legalizados vigentes no Código Penal e afirma-se também que seria de extrema importância a legalização do aborto eugênico. Acredita-se que o feto – ou melhor, dizendo, o bebê – possui vida desde a sua concepção, consequentemente ele já é um ser humano, e assim, indiscutivelmente ele possui o direito de viver, independentemente das condições econômicas, morais ou religiosas da sociedade. “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 3, 1948). “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 7, 1948). Em suma, um “feto” não deve ser discriminado por não ter nascido ainda, deve ser considerado um cidadão, que tem os seus direitos iguais tanto quanto os já nascidos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-46/pratica-do-aborto-na-sociedade-contemporanea-perspectivas-juridicas-morais-economicas-e-religiosas/
Perícias em DNA: a coisa certa pode ser feita de forma errada? Um estudo de caso hipotético
A introdução das técnicas para identificação humana por análise de DNA nos tribunais de países como os Estados Unidos da América foi cercada de desconfiança por uma significativa parcela da comunidade científica e dos operadores do direito. Esta objeção se deveu, em parte, a inexistência de regras definidas e padronizadas para os laboratórios envolvidos nestes exames. Embora tal período de crítica tenha contribuído para o estabelecimento de rígidos critérios para os serviços prestados, falhas ainda podem ocorrer. Neste artigo, é apresentado um caso criminal hipotético em que se aplicou a genética forense como ferramenta investigativa. O objetivo é demonstrar algumas possibilidades de erro já descritas na literatura especializada.
Biodireito
1. Introdução Na área criminal, um dos propósitos da identificação humana por DNA (genotipagem) é testar uma hipótese de que determinada pessoa é a fonte doadora de uma evidência biológica. Dentre os possíveis resultados desta investigação constam a exclusão – as amostras biológicas possuem origens diferentes; o laudo com resultados inconclusos – não é possível determinar, com base nos resultados dos testes, se as amostras provêm ou não do mesmo doador; a inclusão (ou não exclusão) – as genotipagens são similares e originaram-se da mesma fonte. Esta última conclusão de similaridade genética meramente descreve o fato de que não foram detectadas diferenças entre duas amostras através dos testes realizados (INMAN e RUDIM, 1997). As genotipagens de regiões STR através da técnica da PCR (reação em cadeia da polimerase) podem apresentar similaridades em três circunstâncias: 1. As amostras possuem a mesma fonte: a evidência biológica (mancha de sangue, saliva, esperma etc) se origina da mesma pessoa que cedeu a amostra utilizada como referência; 2. A similaridade é coincidência: o doador da amostra referência e o verdadeiro doador do material biológico possuem alelos coincidentes em relação aos marcadores examinados; 3. A similaridade é acidental: isto decorre de erros durante os processos de coleta e/ou análise das amostras. Em casos de abuso sexual e em cenas de múltiplos assassinatos, por exemplo, é comum a análise de amostras contendo mistura de DNA de duas ou mais pessoas. Há situações em que os profissionais responsáveis não levam em consideração tais aspectos, fazendo pairar dúvidas a cerca de seus resultados (PARADELA et al., 2006). Em relação às investigações criminais, cada rastro biológico encontrado na cena de um crime ou no corpo da vítima pode representar um vestígio ou uma prova fundamental para elucidar questões. Portanto, deve haver um cuidado absoluto no levantamento dos vestígios de material orgânico, quando todo e qualquer material passa a ter relevância. Sabe-se que a exposição do DNA a fatores como luz solar, microorganismos e componentes químicos pode provocar a degradação da molécula. Logo, quanto melhor for a coleta e a preservação do material coletado, melhor será a análise do material genético extraído (PARADELA e FIGUEIREDO, 2007). Os erros mais comuns nas genotipagens envolvem troca ou contaminação de amostras e análise incorreta dos dados. Tal fato pode ser constatado a partir de algumas manchetes publicadas nos últimos cinco anos, tais como: “DNA errors lead to murder case review” (The Times on line, fevereiro de 2007); “Forensic lab errors in hundreds of crime cases” (The Guardian,fevereiro de 2007); “POLICE FORENSICS: DNA mix-up prompts audit at lab” (Las Vegas Review-Journal, abril de 2002); “Audit calls for changes in police DNA lab” (Las Vegas Review-Journal , maio de 2002); “Laboratório do PR é condenado por erro em exame de DNA” (Folha de Londrina, julho de 2006); “More than 200 cases reopened after DNA error” (The Independent, maio de 2007). Entretanto, se os exames forem corretamente executados, as amostras estiverem em condições para análise (a degradação do DNA pode interferir nos resultados) e os cálculos forem apropriadamente executados, a confiabilidade dos testes de DNA é absoluta. A seguir é apresentado um caso hipotético de investigação de abuso sexual que exemplifica algumas das falhas descritas na literatura em análises desta natureza. 2. O caso hipotético 2.1 – O caso: violência sexual contra mulher com vestígios de sêmen detectados no raspado vaginal coletado da vítima. 2.2 – O laudo: o documento em que a análise do material genético é apresentada informa a comparação de marcadores genéticos STR (regiões curtas repetidas in tanden) presentes nas seguintes amostras: EVIDÊNCIA BIOLOGICA – esfregaço vaginal coletado da vítima (V); AMOSTRAS REFERÊNCIA – amostras biológicas (sangue) cedidas pela vítima e pelo principal suspeito (S1). De acordo com o laudo, os alelos encontrados foram visualizados com auxílio de fluorescência e a razão de verossimilhança foi determinada, não excluindo (S1) como doador das células espermáticas encontradas na evidência biológica. Os resultados são parcialmente apresentados na Tabela 1.   Tabela 1 – Tipagens e avaliação dos resultados.   2.3 – Análise do laudo técnico hipotético O uso de reações MULTIPLEX empregando corantes fluorescentes associado à detecção automatizada para determinação de alelos STR pela técnica da PCR fornece não só informação qualitativa dos alelos presentes na amostra (tipagem), mas também informação quantitativa referente às intensidades relativas das bandas. Como conseqüência, isto possibilita aferir a quantidade de DNA amplificado (CLAYTON et al, 1998). Com freqüência, é possível separar as contribuições principal e secundária em misturas simples (BAN, 2000; CLAYTON et al, 1998; EVETT et al, 1998) e determinar a presença de “STUTTER BANDS”, bandas extras geradas pelo deslizamento da enzima TAQ POLIMERASE e que apresentam uma unidade de repetição a menos que a verdadeira (GILL et al, 1997). Vale ressaltar que tal artefato de técnica é comum nas reações MULTIPLEX utilizadas neste caso. No laudo técnico em questão não é mencionada a avaliação dos picos de intensidade (“PEAK AREAS”) das bandas referentes aos alelos identificados. Tal análise é importante para eliminar eventuais interpretações equivocadas dos resultados (BAN, 2000; CHANNELL, 2000; GUTIN et al, 1999; EVETT et al, 1998; GILL et al, 1998) e determinar as freqüências estatísticas considerando-se somente os loci para os quais não há múltiplas possibilidades interpretativas. Todo o processo envolvido na análise de DNA é importante e a interpretação adequada dos resultados é essencial (MELENDEZ, 2001). As análises estatísticas são utilizadas para interpretar os resultados das genotipagens (SALDANHA, 2001). Quando o teste falha em excluir um acusado como possível contribuinte para uma evidência, deve-se calcular a representatividade estatística do emparelhamento (MELGAÇO, 1998). Este cálculo depende da freqüência dos alelos encontrados em determinado grupo populacional (MONSON e BUDOWLE, 1998; ROEDER, 1994; WEIR, 1996). A análise de misturas pode ser complexa uma vez que várias combinações de genótipos podem ser consideradas, de acordo com cada situação (CURRAN et al, 1999). Existem diferentes estratégias para tratamento estatístico de misturas (MAIA et al, 2001; SZAKACS, 2001). Embora o tipo de cálculo para determinação da razão de verossimilhança utilizada neste caso seja reconhecida por alguns autores como uma maneira apropriada para interpretar evidências (AIKEN, 1995; EVETT e WEIR, 1998), outros tratamentos estatísticos poderiam ser utilizados para validar os resultados em situações que envolvem misturas de materiais biológicos (SZAKACS, 2001; CURRAN et al, 1999; WEIR et al, 1996). Tais metodologias levam em consideração diferentes hipóteses para construção do perfil alélico em misturas como a encontrada no esfregaço vaginal da vítima. Considerações finais Em análises forenses de DNA, os resultados podem incluir ou excluir suspeitos como doadores de amostras encontradas em cenas de crime ou no corpo da vítima. O mesmo acontece quando o propósito do estudo é investigar a existência de vínculo genético, pode-se incluir ou excluir a possibilidade de ocorrência do parentesco analisado. As exclusões não requerem análise estatística desde que sejam absolutas, ou seja, haja diferenças entre as amostras que não justificadas por outra razão. As inclusões, por sua vez, devem ser analisadas estatisticamente, pois é preciso saber a freqüência em que o emparelhamento pode ocorrer. 3. Considerações gerais Para a aceitação de um trabalho pericial, dois componentes devem ser considerados: a acurácia (validade) e a consistência (reprodutibilidade) das análises. Em análises de DNA, o perito deve informar honestamente as limitações dos testes, quando estas existirem. Qualquer falha entre a coleta de amostras e a divulgação dos resultados pode levar a conclusões equivocadas em exames de DNA. São recomendações básicas de quesitos para a elaboração do laudo pericial de análise de DNA: identificação do número do inquérito policial ou processo judicial; identificação das partes envolvidas e amostras; informação da etnia (raça) dos envolvidos, quando possível e relevante; citação da metodologia empregada na coleta e armazenamento de materiais e, se necessário, esclarecimento dos cuidados empreendidos para manutenção da cadeia de custódia destes materiais. Em adição, o laudo deve conter informações bibliográficas a cerca das metodologias utilizadas para a extração, quantificação e amplificação do DNA; forma de identificação dos alelos obtidos nos testes e fundamentos empregados para os cálculos estatísticos (CHANNELL, 2000). As freqüências estatísticas utilizadas como base para os cálculos também devem ser mencionadas (US CONGRESS, 1990). 4. Conclusões O fato de duas amostras terem o mesmo perfil para um grupo de marcadores genéticos em especial não significa, obrigatoriamente, que elas possuam a mesma origem. Quando a tipagem genética de duas amostras é igual, torna-se necessário expressar numericamente a significância deste evento. O número de marcadores empregados, a presença de subestruturas na população e a mistura de amostras podem interferir nos resultados. A expressão estatística dos resultados deve basear-se na presença ou não de misturas de material biológico, como é freqüentemente observado em casos de abuso sexual. Uma questão fundamental no uso do DNA como evidência é a validação científica dos métodos de análise. Em outras palavras, é preciso ter garantias científicas de que os testes podem inequivocamente identificar inclusões e exclusões para cada marcador genético utilizado. Inicialmente, a credibilidade dos testes deve partir da natureza das amostras biológicas utilizadas. Com freqüência, as amostras são encontradas em superfícies não-estéreis, podendo sofrer danos após contato com a luz solar, microorganismos e solventes. Existem procedimentos que podem minimizar a ação destes fatores de degradação do DNA. Entretanto, muitos cuidados devem ser tomados para evitar equívocos na interpretação. A amplificação pela PCR (reação em cadeia da polimerase) que é largamente empregada nas tipagens genéticas, pode produzir falhas e artefatos quando a qualidade do material biológico está comprometida. Amostras parcialmente degradadas podem proporcionar, por exemplo, a amplificação preferencial de alelos e o surgimento das bandas fantasmas (“stutter bands”). No primeiro caso, tem-se a amplificação de um alelo em detrimento do outro. Isto pode gerar a falsa impressão de se tratar de um indivíduo homozigoto ao invés de heterozigoto para o locus em estudo. Já as bandas fantasmas decorrem de falhas no processo que geram bandas com uma unidade de repetição a menos que a do alelo original. Deste modo, pode-se interpretar equivocadamente o resultado como um falso heterozigoto ou identificar um alelo erroneamente. Na atualidade, existem tecnologias, como os leitores por fluorescência capazes de dirimir dúvidas e evitar erros desta natureza. Contudo, estes equipamentos são caros e poucos técnicos no Brasil estão capacitados a operá-los. Outro fator importante é a reprodutibilidade dos testes. Em Ciência, é preciso que os resultados sejam passíveis de reprodução para que sejam aceitos como verdade científica. No campo forense, não é incomum a necessidade de repetição das tipagens. Isto pode encarecer o processo, mas não deve ser descartado, principalmente quando o que está sob suspeita é o teste em si. Para as análises de DNA, diversos quesitos podem ser postulados para a interpretação dos dados, incluindo-se neste ponto a escolha e o uso apropriado das técnicas; as supracitadas freqüências populacionais empregadas para os cálculos e o tipo de análise estatística empregada; os controles de qualidade adotados; a documentação dos procedimentos; a qualidade dos equipamentos e reagentes utilizados e a capacitação técnica dos profissionais envolvidos. Todas as etapas empreendidas para a tipagem do DNA, desde a coleta até a interpretação do significado estatístico dos dados obtidos, serão consubstanciadas em uma peça pericial escrita que servirá aos interesses de seus leitores. Em instância final, o laudo poderá ainda servir como elemento de convicção para juizes, promotores e advogados nas ações penais. Cabe a advogados, juizes e a comunidade científica estar atentos ao fato de que os testes absolutamente não são infalíveis, como ocorre com qualquer outra atividade humana. Deve-se implementar no Brasil, conforme já ocorre em outros países, rigorosos padrões de qualidade para garantir a credibilidade de tão importante ferramenta.           Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Mestre em Biologia (UERJ) Especialista em Educação Professor Universitário Vice-presidente do Colégio FOrense de Gestores e Educadores Biologistas – CFGEB Treinado em Entomologia Forense pelo COFGEB Consultor em Genética Forense da Academia Jurídica Perito Judicial membro da Associação dos Peritos Judiciais do Estado do Rio de Janeiro Ex-pesquisador associado do Instituto de Biologia da Florida International University (Florida/EUA) Ex-cientista visitante do setor de DNA do Laboratório Criminal de Palm Beach Couny Sheriff’s Office (Florida/EUA) Treinado nos EUA em: análises de regiões STR (STR MegaPlex Training) por Virginia Division of Forensic Science e Palm Beach Count Sheriff’s Office Investigação de cenas de crima (Crime Scene Update) pelo Palm Beach Community College Análises estatísticas de genotipagens (The analysis of DNA profiles using statistical frequencies to determine the occurrence of profiles in the general population) pelo setor de DNA da Palm Beach Count Sheriff’s Office     Bacharel em Biomedicina pela Univercidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO Especialista em Genética Humana pela Conselho Regional de Biomedicina Mestre em Morfologia (Genética Molecular) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Professor Universitário Secretário Geral do Colégio Forense de Gestores e Educadores Biologistas – COFGEB Treinado em Entomologia Forense pelo COFGEB Membro da Comissão Científica de Genética Médica e Molecular da Associação Gaúcha de Biomedicina Consultor em Genética FOrense da Academia Jurídica, filiado à Associação dos Peritos Judiciais do Estado do Rio de Janeiro     Coordenação Geral de Investigação por Análise do DNA in vivo e post mortem da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-45/pericias-em-dna-a-coisa-certa-pode-ser-feita-de-forma-errada-um-estudo-de-caso-hipotetico/
Prolongamento da vida de pacientes terminais
O presente texto visa analisar a recepção do nosso ordenamento jurídico da recente Resolução n° 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal.
Biodireito
1.INTRODUÇÃO Em 28 de novembro de 2006 foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução n° 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, cuja ementa citamos: Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Em nosso texto sustentaremos que a citada resolução é nula, por tratar de tema manifestamente ilegal, com efeitos discutíveis e limitados no campo da responsabilidade médica. Sendo certo que os médicos e demais pessoas que agirem em conformidade com a citada resolução não estarão isentos da responsabilidade civil e criminal oriunda de seus atos. 2.REVOGAÇÃO TÁCITA DE DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE ÉTICA A Resolução CFM n° 1.805/2006 revogou tacitamente alguns artigos do Código de Ética do Médico (Resolução CFM n° 1.246/1988). Um deles é o Art. 66 proíbe o médico de “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal”. Também o Art. 21 deveria ser rescrito, visto que a eutanásia passiva não encontra respaldo nas normas legais vigentes no país. Outro revogado seria o Art. 42 que impede o médico de praticar ou indicar atos médicos proibidos pela legislação do país. Entendemos que o Conselho Federal de Medicina também revogou o Art. 55 do Código de Ética que proíbe o médico de “usar da profissão para corromper os costumes, cometer ou favorecer crime”. 3.RESPONSABILIDADE ÉTICA E PENAL DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA Os próprios membros do Conselho se utilizaram da digna profissão e de seus cargos para regulamentar ato de disposição da vida do paciente, a chamada ortotanásia (eutanásia passiva), procedimento vedado e criminalizado pela legislação brasileira. Fazendo isso, o Conselho deixa de respeitar o princípio ético de qualquer profissão que é o de obedecer as leis de seu país tentando por meio de resolução limitar o preceito da inviolabilidade do direito à vida, fundamentado no Art. 5° caput da Constituição do Brasil. O ato de reunir o conselho para votar determinada resolução cujo objeto é crime previsto na legislação brasileira (Homicídio expresso no Art. 121 do Código Penal ou Auxílio a suicídio elencado no Art. 122 do mesmo código) já seria o suficiente para desrespeitar, dentre outros, o disposto no Art. 55 do Código de Ética Médico. O conselho não poderia, ao seu critério, adiantar matérias que devem ser tratadas pelo Poder Legislativo. Assim como a competência do conselho federal não é suficiente para afastar a aplicação do previsto no Art. 286 do Código Penal, que classifica como crime o ato de, publicamente, incitar a prática de crime. Todavia, em teoria, a competência e legitimidade do Conselho Federal já seria suficiente para transformar prática da eutanásia em sua forma passiva (chamada também ortotanásia) em comportamento ético. Mesmo em desconformidade com norma pública, o médico que praticar tal ato estaria isento da responsabilidade ética, uma vez que é o órgão máximo do Conselho profissional que determina o que é ou não ético. A atribuição legal do conselho de disciplinar as normas éticas da profissão apenas torna mais grave a repercussão da aprovação da resolução. Temos grande dificuldade em aceitar algum tipo de efeito de uma resolução claramente ilícita e nula. Mas acreditamos que talvez seja possível que a resolução tenha relativa eficácia quanto a responsabilidade ética do médico perante os conselhos regionais e o federal. 4.ASPECTOS CONSTITUCIONAIS E PENAIS Muito embora defendamos que as chamadas “cláusulas pétreas”, inclusas no § 4° do Art. 60 da Carta Magna, não devam ser consideradas imutáveis ou intransponíveis, mesmo a vida, acreditamos que uma resolução do órgão máximo de um conselho profissional não pode tratar sobre assunto que ainda se encontra em debates legislativos. Alegando as disposições do Art. 1°, III (dignidade da pessoa humana) e Art. 5°, III (não submeter a ninguém a tortura nem a tratamento desumano ou degradante) da Constituição Federal, a nova resolução justifica o ato ilegal de deixar o paciente morrer. Os princípios constitucionais evocados são realmente relevantes, mas não estamos certos de que estariam eles acima da vida humana. Mas isso não seria novidade na legislação brasileira, uma vez que o Art. 128, II do Código Penal impede a punição de quem pratica Aborto no caso de gravidez resultante de estupro, chamado também de “aborto sentimental” ou “aborto humanitário”. Nesta situação se considera o bem jurídico “saúde psicológica da mãe” (que poderíamos também chamar de dignidade da sua pessoa) de maior valor que a vida do feto. Mas, por outro lado, uma resolução do Conselho jamais teria o status hierárquico normativo que o Código Penal goza. 5.BREVE ANÁLISE DA REDAÇÃO DA RESOLUÇÃO CFM N° 1.805/2006 Paradoxalmente, a resolução do Conselho impõe menos condições para permitir a morte do paciente do que o Código Civil exige para a celebração de casamento de uma pessoa com iminente risco de vida (Art. 1.540 e 1.541 do referido Código Civil). Exigências para se atestar a legalidade de um matrimônio não se fazem necessárias para cessar o tratamento de um doente terminal, caso este em que basta o parecer do médico e a vontade da pessoa ou de seu representante legal (Art. 1° caput da Resolução CFM n° 1.805/2006). Outra inovação da resolução é de dar poderes ao representante legal para dispor da vida do seu representado. Situação sem igual na legislação pátria, pois não deve ser confundida com as de estado de necessidade (Art. 23, I do Código Penal) que visa resguardar a integridade física e não a dignidade. Também não é clara a situação do enfermo sem capacidade de se expressar e sem representante legal. Uma norma que trata de assunto tão sério necessitaria de elaboração mais cuidadosa e técnica. O Art. 1° caput da resolução em análise reza que: “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. Em nossa interpretação, o trecho “respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal” significa que, no caso de ausência de autorização, no caso do paciente não puder expressar sua vontade e na ausência de representante legal, o médico poderá decidir. Mas a redação causa insegurança jurídica. 6.CONCLUSÃO Concluímos que a Resolução n° 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina possui eficácia somente quanto à responsabilidade ética do paciente, conforme a competência do órgão conferida pelo Art. 2° da Lei Federal n° 3.268/1957. De forma que os Conselhos Regionais não poderão aplicar penalidades aos profissionais que se arriscarem a realizar a eutanásia passiva. Sendo certo que a eutanásia ativa continuaria sendo procedimento anti-ético. Paralelamente, a resolução em nada se modifica quanto a responsabilidade civil e criminal do médico que pratica a eutanásia passiva (ou ativa). Em suma, a resolução é mais um ato de publicidade do que necessariamente um ato eficaz no que tange a disciplina da conduta médica. Já que os médicos que a realizarem não serão penalizados pelo conselho profissional, mas serão processados civil e criminalmente. Ao nosso ver, seguindo literalmente a legislação penal brasileira, a aprovação de semelhante resolução é crime de “Incitação ao crime” previsto no Art. 286 do Código Penal que consiste em “incitar, publicamente a prática de crime”. E que os membros do Conselho Federal de Medicina deveriam ser responsabilizados. As ciências biomédicas evoluíram a ponto de conceder aos médicos os conhecimentos necessários para a realização de diagnósticos perfeitos e imutáveis? Acreditamos que não. E se há certeza da futura ocorrência da morte, alguém detém o direito de abreviá-la sob o fundamento do princípio da dignidade humana ou para se evitar tratamento degradante? Até sustentamos que sim, mas somente se por vontade expressa do próprio enfermo e enquanto manter-se consciente e capaz, não sendo possível, sob nenhuma hipótese ou justificativa a substituição de sua vontade pela de seu representante legal. E enquanto não houver adaptação legislativa, todo aquele que se omitir ou auxiliar na prática de eutanásia ainda responderá pelo crime. Esperamos que o Conselho Federal de Medicina reavalie seu ato e revogue a resolução n° 1.806, pelo menos até eventual alteração das normas legais que regem a matéria. Sugerimos aos médicos que se opõem ao prolongamento da vida de pacientes terminais que, no máximo, se recusem a tratar esses tipos de pacientes agindo estritamente no que prescreve o Art. 28, e observando as condições dos Arts. 36 e 61, todos do Código de Ética da profissão. Assim como o policial não pode legislar sobre a pena de morte, também o médico não pode legislar sobre a eutanásia. Situações que representam lados opostos da mesma moeda e que devem obedecer as mesmas regras jurídicas.           Advogado e Consultor Empresarial, formado pela Universidade Veiga de Almeida (RJ). Orientador Jurídico do Grupo APSA – Gestão Patrimonial e Negócios Imobiliários. Associado ao escritório Schneider & Grechi Advogados Associados. Coordenador do portal JurisIntel (www.jurisintel.com).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-45/prolongamento-da-vida-de-pacientes-terminais/
Alerta para o consumidor: os riscos e benefícios dos anabolizantes
Os esteróides anabolizantes androgênios (EAA) são muito semelhantes à testosterona, a qual é um hormônio natural. O uso oral ou injetável dessas drogas pode prover ao usuário uma vantagem na prática de esportes de competição, pois elas estimulam o crescimento dos músculos e melhoram o desempenho esportivo. Contudo, elas também podem produzir efeitos colaterais graves. Por essa razão, a sua utilização tem levantado questões éticas e de segurança. Neste sentido, o código de defesa do consumidor (CDC) visa a proteção do consumidor em vários momentos, que dentre elas, encontra-se na efetivação das relações de consumo, ou seja, na hora da aquisição dos produtos ou serviços,e inicia sua  trajetória dando-lhe o direito de ser informado antecipadamente sobre as características principais do produto a ser consumidor, recebendo “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços”, com especificações correta na quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que possam apresentar à pessoa humana. O presente estudo teve como objetivo demonstrar a utilização abusiva nos dias atuais dos EAA, principalmente por pessoas que cultuam o corpo conforme o que a sociedade impõe, em detrimento da sua própria saúde. Finalmente foi observado que apesar do já haver solicitação junto a Secretaria de Vigilância Sanitária, providências para que se estabeleça possível controle na comercialização de tais produtos – esteróides anabolizantes e “hormônios” – através de receituário e adequação dos locais de venda, ainda hoje se discute se os EAA devem ou não ser considerados substâncias semelhantes aos psicotrópicos, e devem ser tão intensamente regulados e fiscalizados.
Biodireito
1) Introdução Nas sociedades de consumo pós-industriais há crescente valorização do corpo, refletida, principalmente, nos meios de comunicação de massa, que expõem como modelo de corpo ideal e de masculinidade um corpo musculoso – contribuindo para que, cada vez mais, um número crescente de jovens envolva-se com o uso de esteróides anabolizantes, na intenção de rapidamente desenvolver massa muscular (Courtine, 1995). O consumo dessas substâncias, especialmente entre jovens fisiculturistas e atletas, com uso ascedente em vários países (Lise et al., 1999; Nilson, 1995; Perry et al., 1992; Scott et al., 1996) e diversos estudos têm documentado os danos à saúde causados pelo seu uso (Evans, 1997; Korkia & Stimson, 1997; Rich et al., 1999). Os esteróides anabolizantes androgênios (EAA) são muito semelhantes à testosterona, a qual é um hormônio natural. O uso oral ou injetável dessas drogas pode prover ao usuário uma vantagem na prática de esportes de competição, pois elas estimulam o crescimento dos músculos e melhoram o desempenho esportivo. Contudo, elas também podem produzir efeitos colaterais graves. Por essa razão, a sua utilização tem levantado questões éticas e de segurança. No entanto, apesar da proibição do uso de EAA pelas organizações esportivas amadoras e profissionais em todo o mundo, ele continua sendo um problema em muitos esportes nos quais a força física é fundamental. A situação, em parte, decorre da falta do conhecimento de que uma alimentação balanceada e de qualidade, a não ser em situações especiais, atende às necessidades nutricionais de um praticante de exercícios físicos, inclusive de atletas de nível competitivo, o que dispensaria o uso de suplementos alimentares. Quando se trata do uso de algumas drogas e hormônios de comprovada ação ergogênica[1], mas que oferecem riscos para a saúde e são considerados doping, a situação caracteriza-se não somente como antiética, mas até mesmo criminosa. Se ficar caracterizado o dolo do profissional responsável pela prescrição, há necessidade até mesmo de uma ação punitiva advinda da justiça comum. Trata-se muitas vezes de um comércio ilegal, sem controle dos setores da vigilância sanitária, funcionando no próprio ambiente de prática de exercícios e contando com a participação, direta ou indireta, de profissionais responsáveis pelas sessões de exercícios físicos. A regra, nestas circunstâncias, é a inexistência de prescrição médica e/ou orientação de nutricionista com formação em ciência do esporte, que são os profissionais qualificados para atuarem neste contexto. O que deveria ser cogitado somente em situações específicas, sempre contando com a participação de profissionais qualificados, tende a ser usado por indivíduos que não apresentam nenhuma indicação. Prevalece o interesse econômico menor, em detrimento do bem estar e saúde da população. Esta prática, mesmo quando conta com a atuação de profissionais da medicina e da nutrição, muitas vezes é adotada sem uma base de conhecimentos convincente, de forma empírica. Existe, em geral, falta de comprovação científica suficiente para a ação proposta. Assim, a partir do momento que o homem vive numa sociedade capitalista, busca no mercantilismo e nas práticas comerciais o seu modo de vida e na sua sobrevivência, em detrimento da sua própria saúde. No entanto, o Estado deve regular estas praticas abusivas para garantia dos direitos de todos os cidadãos. O presente estudo tem como objetivo demonstrar a utilização abusiva nos dias atuais dos EAA, principalmente por pessoas que cultuam o corpo conforme o que a sociedade impõe, em detrimento da sua própria saúde. No segundo tópico demonstra-se que no Brasil, apesar das solicitações de várias instituições, a Anvisa não regula este tipo de comércio, e no terceiro tópico apresenta-se o comportamento do consumidor e seus principais princípios decorrente do Código de Defesa do Consumidor. 2) O uso de esteróides anabólicos androgênios A história dos esteróides anabolizantes começou há quase um século, quando os cientistas estudaram uma substância secretada pelos testículos, que conferia masculinidade a homens e animais, contam Pope et al. (2000), e que no século XIX, o médico francês Charles-Édouard Brown-Séquard injetou em si mesmo um extrato de testículos frescos de porco-da-índia e cão e convenceu-se de que lhe dava força e vitalidade. Não havia nenhum hormônio ativo naquela porção, mas em 1930, cientistas alemães descobriram a testosterona, o hormônio masculino primário, e começaram a criar seus análogos sintéticos conhecidos como esteróides anabólicos androgênicos. No início dos anos 40, descrevem Pope et al. (2000), as tropas de Hitler recebiam esteróides para torná-las fortes e agressivas; depois, os médicos começaram a usá-los em homens de meia-idade que sofriam de depressão ou falta de interesse sexual, pensando em reverter a andropausa, mas outros tratamentos tornaram-se mais eficazes. Nos anos 50 foi reconhecida a capacidade dessas drogas de criar musculatura e em 1954, os russos participaram dos campeonatos de halterofilismo em Viena, com atletas produzidos por esteróides. Os empresários perceberam que podiam ganhar dinheiro com atletas que usavam anabolizantes, e essas substâncias se espalharam pelo mundo do fisioculturismo e outros esportes que requerem tamanho e força, como o futebol. Na década de 70 haviam se instalado definitivamente nas competições onde os fisioculturistas ficavam cada vez maiores, aumentando cada vez mais as doses, surgindo imagens de ombros e braços inflados também nas revistas, TV e cinema. Atualmente, o abuso dos EAA está alcançando patamares muito altos e se tornando muito comum o seu uso entre os praticantes de atividades físicas em geral. São substâncias sintéticas derivadas da testosterona, que promovem síntese protéica alterando a função anabólica do organismo (Moorandian, 1987). Os EAA começaram a ser utilizado por atletas como princípios para aumento da performance física na década de 50 e desde então seu uso é crescente. Porém, na década de 70 as substâncias anabólicas foram banidas pelo Comitê Olímpico Internacional (Kohler e Lambert, 2002). A administração de esteróides anabólicos em humanos potencializa a síntese protéica e causa hipertrofia da musculatura esquelética. Essa potencialização da síntese protéica é realçada quando os esteróides anabólicos são combinados com o exercício de força (Tamaki et al., 2001). Existem muitos estudos relacionando o uso de esteróides e melhora de variáveis físicas. Um dos possíveis efeitos é a melhora da síntese protéica nos músculos esqueléticos (Tamaki et al., 2001; Regozkin, 1979), sugere-se ainda que haja um efeito anti-catabólico em altas concentrações circulantes, contrapondo a ação dos corticosteróides (Hickson et al., 1990). Outra possibilidade ainda é ação do esteróide no sistema nervoso central, elevando a atividade do sistema nervoso autônomo adrenérgicos e serotoninérgicos no hipotálamo, aumentando s níveis dea agressividade, permitindo assim os indivíduos treinarem mais intensamente (Tamaki et al., 2003). Indivíduos com hipogonadismo e portadores do vírus HIV, associados com perda de peso, após 12 semanas de tratamento com DN, tiveram um aumento na retenção de nitrogênio e um aumento de 0,9kg a 1,2kg/semana de massa magra comparado com o grupo placebo, na ausência de treinamento (Strawford, 1999). Em pacientes portadores do HIV, sabe-se que o DN causa aumento na massa muscular e no peso corporal quando utilizado continuamente durante 16 semanas; em doses de 200mg, 400mg e 600mg nas primeiras semanas e com uma redução gradual nas últimas semanas de administração e simultâneo treinamento de resistência progressiva (Sattler et al., 1999). Em contrapartida, muitos estudos têm reportado o uso dos EAA no aumento da agressão em ratos machos. Lumia et al. (1994) relataram que uma exposição de 10 semanas de propionato de testosterona (1mg, 3 vezes na semana) diminuiu a postura submissa em relação ao grupo controle. Já em relação ao comportamento sexual, Clark e Blasberg (1998) avaliaram o efeito de 2 semanas de exposição aos EAA, em que relataram uma alteração na receptividade sexual utilizando-se de estanozolol, oxinandrolona e 17α metil-testosterona. O mesmo efeito é descrito pelos mesmos autores em outro estudo, em que avaliaram os efeitos de 12 semanas de tratamento com 3 doses de 6 tipos de EAA individuais na expressão do comportamento sexual de ratas. Observaram que existiu uma alteração no comportamento do ciclo estral, porém com exceção do DN que apresentou baixo efeito (Clark et al., 2003). Encontra-se também na literatura, porém com poucas referências, o efeito dos EAA sobre a ansiedade. Esses efeitos foram primeiramente reportados por Bitran et al (1993), quando observaram o efeito de altas doses de proprionato de testosterona em ratos submetidos a um protocolo de “labirinto”.  Os mesmos autores relataram alterações no desenvolvimento da ansiedade dos animais tratados com a droga quando observados no “open field”, porém essas alterações não afetaram os níveis de atividade dos mesmos.ne, and testosterone cypionato effects on the rana expressteroids. Por outro lado, os efeitos adversos do uso indiscriminado dos EAA foram relatados por muitos autores, tais como, hipertensão, retenção hídrica, (Bagchus et al., 2005), problemas cardiovasculares, ginecomastia, acnes severas, problemas hepáticos (Beutel, 2005), aumento da agressividade e violência (Breuer, et al., 2001), ainda podendo causar um aumento na resistência a insulina principalmente por reduzir à tolerância a glicose e eventualmente podendo aparecer os sintomas de diabetes tipo II (Mottram, e George, 2000). Os hormônios sintéticos derivados da testosterona têm sido usados, por muitos atletas, de diferentes modalidades esportivas para melhorar a performance atlética em esportes profissionais e também nos esportes amadores, existem pesquisas clássicas sobre os efeitos dos esteróides anabólicos nos treinamentos anaeróbios (força), mas existem poucas publicações sobre a administração das drogas em esportes aeróbios (resistência). No estudo de Georgieva e Boyadjiev (2004), os autores compararam a administração do DN em ratos submetidos ao treinamento aeróbio submáximos em esteira rolante com grupo experimental controle que treinava sem administração da droga, demonstrando que o grupo tratado com DN melhorou em 46% a performance em relação o grupo somente treinado. O mecanismo de sinalização intracelular dos esteróides androgênicos ocorre por meio da ativação de receptores citoplasmáticos, cujos efeitos envolvem a ativação dos processos de transcrição e transdução gênica (Holterhus et al., 2002). 3) Regulamentação dos EAA no Brasil No Brasil, os anabolizantes fazem parte da Legislação sobre Substâncias e Medicamentos Sujeitos a Controle Especial (Brasil, 1999), com psicotrópicos, entorpecentes e outras substâncias especiais, constando de: diidroepiandrosterona (DHEA), estanozolol, fluoximesterona ou fluoximetiltestosterona, mesterolona, metandriol, metiltestosterona, nandrolona, oximetolona, seus sais e isômeros, sujeitos a Receita de Controle Especial em duas vias. Os rótulos contêm faixa vermelha com os dizeres: “venda sob prescrição médica” e “só pode ser vendido com retenção da receita”. A propaganda somente poderá ser feita em revistas ou publicações técnico-científicas de circulação restrita a profissionais de saúde (Philippi, 2004). Existem outras drogas perigosas, citadas por Pope et al. (2000), usadas como queimadoras de gordura e legais, como a pseudoefedrina e a fenilpropanolamina, existentes nos descongestionantes e que no Brasil, são vendidas com receita médica. Segundo Philippi (2004), os estimulantes são perigosos e até fatais em doses excessivas, que são vendidos com receita como a anfetamina e a metanfetamina (metedrina), queimam gordura, causando dependência, e os hormônios da tireóide, não controlados rigorosamente e fáceis de obter no mercado negro. O clenbuterol, de uso veterinário, com capacidade de queimar gordura e desenvolver musculatura, usado ilegalmente no mundo inteiro, pode produzir complicações cardiovasculares perigosas e até fatais. Também são usadas a gonadotropina coriônica humana e o gama-hidroxibutirato. Na academia, a droga injetável mais popular parece ser Nubain (nalbufina), um analgésico quimicamente relacionado com a morfina, embora não tão causadora de dependência; os usuários ficaram viciados usando o analgésico para tratar dores de lesões produzidas pelo halterofilismo. O nandrolon, um pró-hormônio proibido na Europa, consta da lista de substâncias não permitidas do IOC – International Olympic Committee. Foi identificado na urina de jogadores de futebol alemães, como descreve Dokkum (2002) citado por Philippi (2004), que foram punidos severamente. Os esteróides anabólicos androgênios chegam ao Brasil provenientes dos Estados Unidos, Alemanha, Espanha, França, Argentina, Uruguai ou Paraguai com muita facilidade e sem qualquer tipo de fiscalização. De acordo com a Secretaria de Vigilância Sanitária, até hoje não há qualquer disposição legal ou regulamentar que imponha controle de comercialização e uso de tais substâncias, ou seja, o Brasil não tem legislação específica no controle sobre anabolizantes[2]. Em reunião realizada em 1997, o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) propôs que os EAA sejam avaliados pelo Ministério da Saúde para posterior medidas por parte das autoridades quanto ao controle mais rígido da comercialização e importação dos produtos farmacêuticos que os contém. Também foi proposto que o Ministério Extraordinário dos Esportes promova campanha nacional de esclarecimento das conseqüências do uso e abuso dos EAA e a realização de exames anti-doping nas competições nacionais. No Serviço de Informação de Substâncias Psicoativas (SISP), o número de solicitação de informações sobre os EAA vêm crescendo gradativamente, pois o uso indevido tem sido encontrado entre freqüentadores de academias de musculação, atletas de halterofilismo, pessoas de baixa estatura, na tentativa de melhorar a aparência, ou com o fim de melhorar a performance sexual ou para a diversão. No entanto, o uso abusivo e indiscriminado pode ocasionar efeitos colaterais graves, os quais são desconhecidos por muitos usuários. São consideradas drogas ilícitas aquelas cuja utilização, de acordo com a Agência Mundial Antidoping e o Comitê Olímpico Internacional (COI), caracteriza uma infração de códigos éticos e disciplinares, podendo ocasionar sanções aos atletas, bem como aos seus técnicos, médicos e dirigentes. A lista de substâncias e métodos proibidos, aprovada em 1o de setembro de 2001, consta no Anexo A do Código Antidoping do Movimento Olímpico. I. Classes de substâncias proibidas: a) Estimulantes; b) Narcóticos; c) Agentes anabolizantes (1. Anabólicos esteróides androgênios;2. Beta-2 agonistas); d) Diuréticos; e) Hormônios peptídicos, miméticos e análogos (1. Hormônio gonadotrófico coriônico -somente em atletas masculinos; 2. Gonadotrofinas pituitárias e sintéticas – somente em atletas masculinos; 3. Corticotrofinas /ACTH, tetracosactide; 4 . Hormônio de crescimento (hGH); 5. Fator de crescimento tipo insulínico-1 (IGF-1) / Precursores e análogos destes hormônios são também proibidos; 6. Eritropoetina (EPO); 7. Insulina (exceção feita a atletas insulino-dependentes). 4) Comportamento do consumidor A proteção do consumidor, a ser conferida através de normatização do direito do consumidor, configurou-se numa necessidade premente para todas as nações desenvolvidas ou em desenvolvimento, instando a adoção de medidas preventivas, coercitivas e punitivas, visando a assegurar a esta figura proteção à vida, à saúde, à liberdade de escolha e à igualdade de condições nos contratos (Donato, 1993). O tema de defesa do consumidor somente ganhou relevância no cenário nacional a partir da promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990, revolucionando na sociedade brasileira com relação à proteção dos direitos do consumidor. Mas para isto o consumidor tem que tomar consciência de seus direitos, a fim de que possa exercê-lo convenientemente (Vieira, 2002). O CDC estabelece como fundamento de toda a elaboração normativa da vulnerabilidade do consumidor, procurando dotá-lo das informações necessárias e dos instrumentos adequados para a tutela dos seus interesses. Deve-se reconhecer que não se trata simplesmente de um código de consumo, mas de um Código de Defesa do Consumidor, integrando, por isso, a chamada ordem pública de proteção. Neste sentido, o instrumento legal visa a proteção do consumidor em vários momentos, que dentre elas, encontra-se na efetivação das relações de consumo, ou seja, na hora da aquisição dos produtos ou serviços,e inicia sua  trajetória dando-lhe o direito de ser informado antecipadamente sobre as características principais do produto a ser consumidor, recebendo “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços”, com especificações correta na quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que possam apresentar à pessoa humana[3](grifo nosso). 4.1) Princípios norteadores da defesa do consumidor O CDC possui alguns princípios que norteiam a defesa do consumidor, dentre eles o principio da transparência e o direito de informação. Por meio deste princípio o legislador dispôs que o amplo acesso dos consumidores ao conjunto de informações relativas ao fornecimento e ao contrato a ser celebrado é condição para o exercício consciente e racional das opções no mercado de consumo. Na cultura do consumidor brasileiro, as escolhas são fundadas, principalmente por motivações emocionais. Porém, para fins jurídicos, tem-se a presunção absoluta que estes são movidos pro critérios de absoluta racionalidade no momento de consumir bens e serviços necessários à satisfação de necessidades (Vieira & Vieira Junior, 2005). O CDC estabelecendo o princípio da devida informação, protege o consumidor na aquisição do produto em que deverá conter todas as informações necessárias, não podendo a apresentação ou propaganda de produtos ou serviços enganar ou induzir a erro as pessoas às quais é dirigida[4] (Vieira, 2002). Ressalta-se, no que se refere à informação e à educação dos consumidores, que o adquirente de produtos ou usuários de serviços deve dispor das informações adequadas que lhe permitam: a) conhecer as características essenciais, a natureza da qualidade, quantidade e o preço dos produtos e serviços oferecidos; b) escolher de forma racional os produtos e serviços concorrentes; c) utilizar com plena segurança e de modo satisfatório os produtos e serviços e d) pretender o ressarcimento dos danos eventuais provenientes do produto ou do serviço recebido. O dever de informar é de suma importância para o mercado de consumo, visto ser o principal instrumento para nortear o consumidor em suas decisões. O cumprimento do dever de informar pelo empresário é o aspecto que permeia todos os grandes assuntos referidos pelo Código: a inversão do ônus da prova relaciona-se ao direito da informação; definição do fornecimento perigoso, por exemplo, é função da adequabilidade e suficiência das informações prestadas sobre os riscos à segurança e a saúde dos consumidores; há defeito de comercialização na improbidade de informações acerca do uso do produto ou serviço; considera-se vicio de qualidade o descompasso entre as informações constantes de publicidade, embalagem, rotulagem ou recipiente e a realidade de fornecimento; toda a disciplina tem como referência o conteúdo veiculado nas mensagens (Vieira & Vieira Junior, 2005). O principio da transparência, expresso no CDC, traduz-se na obrigação do fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer os produtos e serviços que são oferecidos e, também, gerará no contrato a obrigação de propiciar-lhe o conhecimento prévio de seu conteúdo. Ainda, complementa-se pelo princípio do dever de informar. A Constituição Federal (CF) também prevê o direito a informação, dispondo de três maneiras: o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. O primeiro é uma prerrogativa concedida às pessoas físicas e jurídicas, ao assegurar que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veiculo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na CF”. O direito de informar não é, no entanto, absoluto, e a própria norma constitucional impõe limites ao estabelecer que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Isto significa que o direito de informar não pode transpor os limites estabelecidos pelo marco regulatório. O direito de se informar é uma prerrogativa concedida às pessoas. A CF assegura esse direito no que diz respeito à informação em geral, mas garante o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Neste sentido, é possível exigir a informação de quem a detém desde que sejam respeitadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Mas é necessário compreender sua correlação com as garantias constitucionais. O direito de ser informado nasce sempre do dever que alguém tem de informar, como fez o CDC ao estabelecer a obrigatoriedade do fornecedor informar o comprador. Este está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto ou do serviço, suas características, suas qualidades, seus riscos, seus preços, etc. de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. Trata-se de um dever exigido mesmo antes do inicio de qualquer relação. A informação passou a ser um componente necessário do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela. Assim, pela soma dos princípios, compostos de dois deveres ―transparência e informação―, estabelece-se a obrigação do fornecedor dar todas as informações pertinentes sobre seu produto e/ou serviço oferecido e colocado no mercado, bem como, das cláusulas contratuais por ele estipulada (Vieira & Vieira Junior, 2005). Assim, o chamado “direito do consumidor” constitui-se hoje em dia num dos temas mais amplos e que afeta e se refere a casos de todos os setores da sociedade moderna. Situados nesta perspectiva, considera-se tudo como direito do consumidor: o direito à saúde e à segurança; o direito de defender-se de publicidade enganosa e mentirosa; o direito de exigir as quantidades e qualidades prometidas e pactuadas; o direito de informação sobre os produtos, os serviços e suas características, sobre o conteúdo dos contratos e a respeito dos meios de proteção e defesa; o direito à liberdade de escolha e à igualdade na contratação; o direito de intervir na fixação do conteúdo do contrato, o direito de não se submeter às cláusulas abusivas; o direito de reclamar judicialmente pelo descumprimento ou cumprimento parcial ou defeituoso dos contratos. O direito de associar-se para a proteção de seus interesses; o direito de voz e representação em todos as instituições cujas decisões afetem diretamente seus interesses; o direito, enfim, como usuário, a uma eficaz prestação dos serviços públicos e até mesmo, à proteção do meio ambiente (Vieira & Vieira Junior, 2005). Portanto, para o consumidor exercer, com total liberdade, o direito de contratar ou não aquisição de um produto ou serviço, deve, sem dúvida, conhecer, com detalhes, o bem a ser consumido. E esse esclarecimento, o CDC exige que o fornecedor lhe dê, tendo em vista ser ele imprescindível. 5) Considerações Finais Parece claro que, atualmente, informações erradas ainda prevalecem sobre as informações farmacológicas corretas nos círculos esportivos. É necessária informação, educação e divulgação das implicações do uso indiscriminado e não-terapêutico destas drogas para melhorar a habilidade de a lidar com os problemas técnicos e de saúde associados ao uso destas por atletas e não-atletas. Apesar do já haver solicitação junto a Secretaria de Vigilância Sanitária, providências para que se estabeleça possível controle na comercialização de tais produtos – esteróides anabolizantes e “hormônios” – através de receituário e adequação dos locais de venda, ainda hoje discute-se se os EAA devem ou não ser considerados substâncias semelhantes aos psicotrópicos, e devem ser tão intensamente regulados e fiscalizados.               Mestre em Educação Física, doutorando em Biologia Funcional e Molecular-Fisiologia/ UNICAMP, Docente Centro Universitário Litoral Norte – UNIMODULO
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-45/alerta-para-o-consumidor-os-riscos-e-beneficios-dos-anabolizantes/
A legalidade do aborto eugênico em casos de anencefalia
O presente trabalho aborda questões referentes à prática abortiva em situações em que o feto padece de anencefalia. A análise far-se-á por meio de exame do tema sob uma perspectiva jurídica, social e humanitária, relacionando-as à negativa influência que a religião ainda exerce no âmbito normativo. Pretende-se, com isso, defender a tese da legalidade do aborto eugênico em casos de anencefalia.[1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A prática do aborto sempre foi tema muito controvertido, tendo sempre provocado muita polêmica e controvérsias em nossa sociedade. É assunto remoto, mas que, de épocas em épocas, ressurge discutindo situações que estremecem os ditames sociais. A interrupção da gravidez de feto portador da anencefalia fez retornar ao panorama nacional as aventadas discussões acerca da legalidade ou ilegalidade da prática abortiva. Diante da propositura, em 2004, da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Conselho Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, a polêmica e as discrepâncias de idéias existentes acerca do tema em análise voltaram a figurar na sociedade brasileira. Questiona-se: deve-se sempre proibir a prática abortiva quando o feto não possuir qualquer viabilidade de vida extra-uterina? Uns optam pela liberalidade, integral e indiscriminada. Outros, fervorosamente, clamam pela tipificação total e incondicional, mormente respaldados pelos apelos religiosos e morais. Sabe-se que o Direito, contudo, visa à realização do bem comum, que seria o bem individual de cada pessoa, enquanto esta pertence a um todo. Desta forma “o indivíduo colima o bem da comunidade, na medida em que ela representa o seu próprio bem” [2], segundo as noções da justiça social e solidária. Para tanto, faz-se mister reunir os anseios controvertidos e resolvê-los de forma equilibrada. Haverá o Direito, de fato, bem como a justiça, conseqüentemente, sempre que a sociedade, organizadamente, sopesar seus valores e guiá-los a um fim comum, o qual será essencial para a harmonia do coletivo. Assim sendo, é necessário que o tema aqui proposto receba um respaldo jurídico equilibrado. Os extremos são perigosos. Deve haver um contrapeso entre as idéias alvitradas, para que nem as tendências religiosas que marcam a personalidade de alguns profissionais de direito, nem os ideais anárquicos, que alguns juristas carregam consigo, se sobreponham indiscriminadamente um ante o outro diante da discussão da prática abortiva, mais precisamente, o aborto em casos de anencefalia. Discutir-se-á a justiça e o Direito, não o moralismo. O objetivo do presente escrito, desta forma, incide em analisar nomeadamente a prática do aborto em casos de anencefalia sob uma perspectiva jurídica, social e humanitária. Para tanto, buscar-se-á por meio de uma pesquisa teórica e bibliográfica, coletar as informações mais atinentes à matéria e coordená-las em um pensamento que possa servir como sugestão à conjuntura jurídica atual. Utilizaremos, igualmente, o método dialético e hipotético-dedutivo, na medida em que será necessário contrapor e harmonizar idéias e normas, para que o problema possa ter uma solução juridicamente aceitável. 2 A PROBLEMÁTICA DO ABORTO    Primeiramente, a palavra aborto provém do latim ab-ortus, ou seja, “privação do nascimento” [3]. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), abortamento é “a morte do embrião ou feto antes que seu peso ultrapasse 500g, atingido antes das primeiras 22 semanas de gravidez”[4]. Por tratar-se de tema polêmico, houve a necessidade de aperfeiçoarem-se os conceitos, utilizando termos menos pejorativos e menos agressivos. O aborto, neste caso, seria a interrupção da gravidez, espontânea ou provocada, de um embrião ou de um feto antes do final de seu desenvolvimento normal, com a conseqüente destruição do produto da concepção. As mais remotas notícias sobre métodos abortivos datam do século XXVIII a.C, na China, de acordo com Célia Tejo[5]. No antigo Império Romano, lembra José Maria Marlet[6], por considerarem ser o feto parte do corpo da mulher e de suas vísceras, o ato em questão não era considerado crime. Foi o apogeu do Cristianismo que influenciou fortemente as concepções do mundo antigo, por meio das severas punições atribuídas pela Bíblia Sagrada àqueles infiéis que praticassem ou se permitissem praticar o aborto. Desde então, o abortamento foi erigido à categoria de crime na maior parte do mundo. Assim sendo, a transformação cultural e histórica comparece no quadro causal-explicativo do problema do aborto, na medida em que se questionam tradições, alteram-se costumes, criam-se novos conceitos e normas e leis se modificam e propõem. A polêmica é motivada, sobretudo, pelos diversos ângulos de visão existentes e possíveis sobre o assunto. A questão ético-religiosa, imperativamente, é crucial em relação ao aborto, posto que cruza com as noções de contracepção, um dos temas mais delicados da Igreja, em que são registradas graves posturas de transponibilidade extremamente difícil. Isto se explica pela forte influência que a religião possui e sempre possuiu perante os homens, e pelo posicionamento de subordinação que estes mantêm ante esta Instituição. A Igreja é a responsável pela formação do caráter moral do indivíduo, influenciando cegamente e interferindo na liberdade de reflexões de cada um, convertendo-o sempre em favor de seus dogmas. Tal intocabilidade e incondicionalidade são, no entanto, inaceitas por correntes que se opõem a esse tipo de argumentação. Surge, assim, a disputa, pois os legisladores são suscetíveis às paixões e influências religiosas, éticas e filosóficas, sendo praticamente impossível agirem de forma neutra em suas criações normativas. Belíssima é a posição da teóloga Ivone Gebara, a favor da descriminalização e legalização do aborto como forma de abrandar a violência contra a vida: Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade abortiva. […] Uma sociedade que silencia a responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as mulheres, desrespeita seus corpos e sua história é uma sociedade excludente, sexista e abortiva. […] Nessa linha de pensamento, concentrar a defesa do inocente somente no feto, é uma maneira de […] não denunciar a morte de milhares de mulheres inocentes vítimas de um sistema que aliena seus corpos e as pune impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de tomar uma decisão ajustada a suas reais condições. Em seqüência, sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro se posiciona absolutamente contrário ao aborto, admitir tão só duas exceções: o aborto necessário e o sentimental ou humanitário, admitindo que em algumas situações a proteção à vida do embrião ou do feto não é absoluta, existindo outros bens jurídicos que a ela se sobreponham. Desta forma, no aborto sentimental, ao se pautar na justificativa de que não é humano exigir da mulher que uma gestação venha a lhe recordar continuamente o sofrimento que a gerou, o bem jurídico a ser defendido é o livre arbítrio dela, sobrepondo-se ao direito à vida. Diante de tal ciência, a juíza Matilde Josefina[7] tece críticas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro em permitir um aborto do produto de um estupro, e não aceitar aquele em que o feto não terá condições de sobreviver. 3 O ABORTO EUGÊNICO Esta é uma análise superficial, mas essencial para o entendimento do assunto que pretendemos abordar: a prática do aborto em casos de anencefalia. O grande problema, segundo Célia Tejo[8], reside no ponto da disponibilidade da vida humana. O aborto eugênico, segundo Ricardo Henry Marques Dip[9], “é o aborto fundado em indicações eugenésicas, equivalente a dizer, em indicações referentes à qualidade da vida”. A eugenia ocorre quando há comprovação de que o feto nascerá com má-formação congênita. Neste sentido, os casos de anencefalia são, a princípio, sua espécie. Francis Galton foi o primeiro a discorrer sobre a eugenia, correlacionando-a a necessidade de haver uma seleção forçosa da raça, pois, segundo ele[10] a seleção natural já não se realizava entre os homens porque os governos e as instituições de caridade passaram a proteger os fracos, os doentes, os incapazes, o que levou e ainda leva a decadência da raça humana e ao surgimento de toda a espécie de doenças que contaminaram a sociedade. Para interromper esse declínio, deveria impedir-se a propagação dos degenerados, dos débeis mentais, dos alcoólatras, dos criminosos, em resumo, de todas as pessoas indesejadas na sociedade. Este princípio pode ser considerado como sendo o pressuposto inspirador para o terrorismo que o alemão Adolf Hitler instaurou no século 20, ao pretender a realização do arianismo, uma raça pura onde apenas os alemães fortes mereceriam sobreviver. Todavia, ainda hoje algumas características da teoria galtoniana fazem parte do cenário mundial, ainda existindo sociedades que permitam a prática de eliminação dos fetos com má-formação. Entretanto, imperativo ressaltar que a anencefalia não encontra respaldo nessa linha de argumentação. Não seria a anencefalia meramente uma má-formação física, mas a inexistência de um importante órgão do encéfalo, o cérebro, sem o qual a viabilidade existencial extra-uterina fica comprometida. Trata-se de uma má-formação irreversível e gravíssima, em razão da qual o feto não sobreviverá. É condicionante de sobrevida, não podendo, para nós, ser confundida com a discriminação em razão de deformidade física ou mental, posto não se poder falar em viabilidade de vida. Em seguida, parece-nos repugnante a idéia de se admitir indiscriminadamente o aborto eugênico. A vida humana não pode ser mensurada segundo critérios indefesos de proveito à coletividade. A má-formação física ou mental não pode servir de justificativa para se sobrepor ao direito, universalmente reconhecido, de que todos possuem gozo a vida. A Declaração Universal dos Direitos do Homem reconheceu em seus artigos 1º e 2º que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos têm capacidade para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de raça, cor, sexo, entre outros. No mesmo sentido a Constituição Brasileira elevou o princípio da dignidade da pessoa humana como pressuposto para a realização do Estado Democrático de Direito (art. 2, II, CF). Assim sendo, o nosso presente propósito reside na tentativa de defender a legalidade da pratica do aborto eugênico em casos que envolvam, tão somente, fetos anencefálicos, porquanto em virtude desta má-formação o feto não conseguirá sobreviver. 4 A ANENCEFALIA A anencefalia é uma má-formação congênita em decorrência de um defeito no fechamento do tubo neural[11]. Também chamada de acefalia, pode ser diagnosticada precocemente através de um exame de ultra-sonografia. O grande ponto dessa questão reside na falta de consenso acerca da precisão de qual momento o feto ou embrião é considerado vivo, se no nascimento, na concepcção ou em período intermediário. Por isto, freqüentemente este debate está combinado com concepções religiosas e morais. Segundo a Sociedade Mineira de Pediatria, “a anencefalia impede que o feto tenha atividade elétrica cerebral, por este não possuir os hemisférios cerebrais constituídos, em parte, pela estrutura funcional mais importante: o córtex cerebral. Conseqüentemente, tem apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual não mantém relação com o mundo exterior e não conscientiza a dor”. De acordo com o presidente do Conselho Federal de Medicina, Dr. Edson de Oliveira Andrade[12], um feto anencefálico tem chance estatística de praticamente cem por cento de estar morto durante a primeira semana após o seu nascimento. Assim, para que haja uma relativa prolongação de seu estado vegetativo, nesse sentindo, questão de horas ou dias, inevitavelmente dever-se-á recorrer aos aparelhos mecânicos, opção esta nem sempre possível para todos por demandar um gasto exorbitante e por nem sempre o feto resistir, na medida em que a sua existência se mantém em razão da sua ligação ao organismo materno. Se determinar o momento de vida não é matéria fácil, precisar o instante de morte também não é tranqüilo. Há na doutrina dois tipos de morte: a morte encefálica e a morte clínica. Segundo Dilío Procópio Drummond de Alvarenga[13], a morte encefálica consiste na cessação da atividade elétrica desse principal órgão do corpo humano, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionando; a morte clínica, por sua vez, tem um conceito mais rígido, exigindo a mais, a parada irreversível da atividade cardíaca. A lei vigente – Lei 9.434/97 – adotou o primeiro conceito, o de morte cerebral ou encefálica, para autorizar a extração de tecidos, partes e órgãos do corpo humano destinados a transplante ou tratamento. A lei que anteriormente tratava tal matéria adotou o outro critério. Percebe-se, assim, a instabilidade que há na doutrina diante do tema. A Resolução nº. 1480, de 8 de agosto de 1997, referenciada pela Lei 9434/97, contudo,  temporariamente, põe fim ao debate ao dispor que a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Assim sendo, se a falta do córtex cerebral não é condição suficiente para ser reconhecida a morte encefálica, a irreversibilidade desta condição e a certeza absoluta de que o feto não conseguirá sobreviver em razão desta deficiência servem como atestado de que a morte é certa, ainda que o feto consiga sobreviver por algumas horas após desligar-se do útero materno. Além disso, o mesmo documento dispõe que a morte encefálica será comprovada se for demonstrada, de forma inequívoca, que o cérebro não mais possui atividade elétrica (art. 6º, a), característica esta permanente nos fetos anencéfalos. Em seguida, a Resolução 1752/2004 do Conselho Federal de Medicina aprovada em 08 de setembro de 2004, veio a permitir a retirada dos órgãos de recém-nascidos anencéfalos, para fins de transplantes. Se o próprio CFM, que é órgão cuja especialidade lhe confere competência e credibilidade para dispor sobre o fim da vida, permite que fetos anencefálicos possam ser alvos de transplantes de órgãos, então o tema está esgotado. Importante é que a morte encefálica não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos, contudo atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo. Esta resolução confirma o Parecer n. 24, de 9 de maio de 2003, do conselheiro Marco Antônio Becker[14], que traz a seguinte recomendação: Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo após a sua expulsão ou retirada do útero materno, dada a incompatibilidade vital que o ente apresenta, por não possuir a parte nobre e vital do cérebro, tratando-se de processo irreversível, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante (grifo nosso)”. 5 A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE ANENCEFALIA Em julho de 2004, o Min. Marco Aurélio de Mello deferiu medida liminar autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. Baseou-se para tanto nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da autonomia da vontade, da legalidade, do direito a saúde e da dignidade da pessoa humana[15]. A decisão foi um avanço para o processo civilizatório, e ainda que a medida tenha sido recentemente derrubada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, a atitude do ministro foi louvável por fazer retornar discussão tão necessária à conjuntura jurídica atual. Em primeiro lugar, consoante a Resolução de 2004 do CFM, já citada, o anencéfalo foi erigido à categoria de natimorto cerebral. Assim sendo, confirmou-se ausência de viabilidade de vida quando o feto não possuir atividade elétrica cerebral. Deste modo julga-se injustificável submeter a mulher aos riscos de uma gravidez e aos traumas psíquicos que dela podem advir, quando não houver qualquer expectativa de que seu filho nascerá com vida. Segundo a FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia[16], a gravidez do feto anencéfalo pode resultar em inúmeros problemas maternos durante a gestação. O puerpério da mulher também pode ser intensificado em decorrência de hemorragias por falta de contratilidade uterina, o que pode levar a uma maior incidência de infecções pós-cirurgícas. Acrescente-se ainda que, de acordo com a médica Ana Clélia de Freitas[17], cerca de 30% dos anencéfalos apresentam outras más-formações congênitas graves, principalmente defeitos cardíacos. Tudo isso fará com que a mulher tenha gestação seja mais penosa para a mulher, e certamente a manutenção deste tipo de gravidez, principalmente quando for indesejada, ocasionará graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da tortura sofrida e do tratamento degradante, por vezes necessário para tais tipos de gestação. Se a morte encefálica atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo, por que compelir a mulher a submeter-se a esse tipo de gestação? Conforme as preleções do professor Antônio Chaves[18], cada vez mais estão sendo ampliadas, no panorama internacional, as indicações de se admitir o aborto em fetos com má-formação cerebral, baseadas no papel que “a nova medicina deve desempenhar na sociedade como forma de valorizar o indivíduo e democratizar as disponibilidades médicas em seu favor”. Em uma pesquisa realizada pelo IBOPE[19], em 2005, 76% da população brasileira dizia-se favorável à prática do aborto quando o feto padecer de acefalia. Isso, somado ao infindável número de clínicas de abortos clandestinas, bem como a existência de inúmeras fórmulas abortivas, reflete a insatisfação de muitas mulheres ante a legislação atual, a qual, enquanto pertencente a um Estado Democrático de Direito, não tem cumprido com os seus fins representativos. Sabe-se que os procedimentos empregados para a interrupção da gravidez possuem alta capacidade degradante no organismo da mulher, em razão de ser o útero um órgão muito vascularizado, o que aumenta a possibilidade de inflamação generalizada, se porventura o processo não for concluído devidamente. Não tendo pessoas capacitadas para tanto, o número de casos de aborto desastrosos é assustador, envolvendo desde a morte materna, até os casos em que o aborto não tenha sido consumado, tendo o bebê resistido e ficado com seqüelas irreparáveis. No Brasil cerca de três milhões de abortos ilegais são praticados por ano, sendo que 340 mil mulheres são internadas por complicações advindas deste procedimento. Segundo a OMS, o aborto é, na América Latina, a causa de 30 a 50% da morte das mulheres que engravidam[20]. Isso tudo se deve pela total falta de higiene dos ambientes clandestinos que intervém indevidamente na gravidez. Os especialistas afirmam que toda a problemática ocorre, principalmente, devido às condições sócio-econômicas das gestantes. Desta forma, não nos parece eficaz para que a situação seja controlada, concentrar as discussões no campo tão-somente da moral. Há que serem discutidas questões éticas, jurídicas e, sobretudo, humanitárias. Em junho de 2002, o Parlamento Europeu adaptou ao relatório “Lancker”, que “aconselhava a tornar o aborto legal, seguro e acessível, apelando aos países para que não perseguissem mulheres que tivessem feito um aborto ilegal” [21]. As Nações Unidas, no ano de 1995, ao mesmo tempo, defenderam durante a “Quarta Conferência Mundial da Mulher”, em Beijing, que os governos deveriam, a partir daquele instante, lidar melhor com os impactos que a prática abortiva clandestina provocava às mulheres e à Saúde Publica, devendo fortalecer o seu compromisso com o bem estar das mesmas. E, não diferente, a Organização Mundial de Saúde defendeu, em 1997, que as nações deveriam reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de qualidade sobre o tema, bem como enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base o compromisso com a saúde das mulheres e não com base nos seus códigos criminais[22]. Desta forma, é necessário que as mulheres que desejem pôr termo à gravidez passem a ter acesso a um aconselhamento prévio, devendo ser prestados os serviços devidos para a sua total informação a respeito das condições de vida do feto que carrega consigo, para que, de acordo com suas convicções morais, religiosas e éticas, ela possa decidir por si só se quer persistir com a gestação ou não. Assim, perquire-se uma liberdade de escolha à gestante, pautada no principio do seu livre-arbítrio. Em seguida, é incompreensível o posicionamento do ordenamento jurídico em permitir o aborto em casos em que a gravidez tenha advindo de estupro, mesmo que este ato ponha em risco a higidez do feto, o qual, a princípio, é saudável. Os legisladores atenuaram o art. 128 do Código Penal justificando-se no fato da não aceitação da mulher em carregar um filho fruto de um trágico momento de sua vida. Ora, isso é no mínimo injusto. Afinal, como pode uma mulher pôr termo a vida de um filho, a princípio saudável, pelo simples fato de rejeitar a forma como ocorreu a gravidez, e não poder uma outra abortar um feto que não terá qualquer expectativa de vida? Por vezes este último é tão mais indesejado que o primeiro, por, neste caso, a mulher carregar em seu ventre um filho que não terá condições de viver. Insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidade de êxito, quando há vontade contrária da mulher, segundo o Juiz Corregedor da Polícia Judiciária da Capital Paulista, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “representa capricho irresponsável do legislador e da sociedade que o apóia, pois este sofrimento poderá evoluir para um grave comprometimento psicológico” [23]. Há, ainda, a possibilidade de risco à saúde da mulher, como já mencionado, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo, por razões humanitárias. A ausência de cérebro mata o feto durante a gestação ou, no máximo, nos primeiros minutos após o parto. É má-formação incurável e qualquer intervenção é em vão. O diagnóstico, neste caso, segundo Antônio Chaves[24], servirá apenas para a preparação psicológica dos pais. Isto porque, a responsabilidade que lhes cabe é manifestadamente maior, exigindo-lhes mais maturidade, além de recursos econômicos, pois se porventura o bebê conseguir vir ao mundo de forma vegetativa, o prolongamento desta “vida artificial” por alguns dias, demandará um gasto considerável, tendo em vista a falência do atendimento público e os caros recursos disponíveis. Desta forma, qual seria o sentido então, fora das preleções religiosas, de obrigar uma mulher a manter uma gestação que terá um desfecho trágico? O Estado teria o direito de punir uma mulher, inocente, com o sofrimento psicologicamente torturante? Em nome de que? O ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, diz que a gravidez deve ser conservada em nome da vida. É lindo isso. Contudo, de acordo com as palavras do jornalista André Petry, a única vida que estaria em discussão é a da gestante, pois o feto não possui qualquer possibilidade de completar dez minutos fora do útero. Assim, deve-se falar na defesa de vida da futura ex-mãe, que, não tendo nenhuma escolha feliz possível, tem o direito ao menos de poder escolher sobre prolongar ou encurtar o seu sofrimento. Nesse mesmo sentido, o jornalista diz que: Quando se combate o aborto de um feto sem cérebro não se está defendendo a vida – defende-se só um dogma religioso pelo qual a interrupção de uma vida, mesmo em estágio intra-uterino, mesmo sem chance de sobrevivência, só pode ocorrer por obra divina[25]. Submeter a mulher ao sofrimento psicológico, mediante o emprego de violência simbólica dos dogmas religiosos, configura-se uma prática torturante.  Posto isso, a Carta Constitucional erigiu a tortura à categoria de crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (Art. 5º,XLIII). Assim sendo, ninguém poderá se submeter a um tratamento degradante por qualquer motivação, inclusive religiosa. Assim, quando se contesta a medida liminar deferida pelo Min. Marco Aurélio, legitima-se a posição de subordinação do Estado perante a Igreja, possibilitando submeter cidadãos que professam religiões diversas ou nenhuma aos dogmas daquela imperada no Estado, desrespeitando-se, assim, a liberdade de crença e o laicismo estatal. Para que a lei penal fosse legítima além de legal far-se-ia a necessidade de reformulá-la. A legitimidade da norma emana da idéia que a sociedade faz do justo. E, certamente, a sociedade brasileira hodierna tem os seus conceitos de justiça alterados, desde o ano de 1940, quando o atual Código Criminal surgiu. Neste sentido, a modificação da lei é necessária para reajustar a expectativa da norma aos anseios dos sujeitos que por meio dela realizam o Direito. A eficácia da norma, nós sabemos, depende do consenso social em observá-la, o que ocorrerá quando esta refletir as vontades do seu público. A anencefalia já é tema resolvido em grande parte do globo, tendo a Alemanha, a Áustria, o Reino Unido, a França, já se posicionado favoráveis a sua liberalização. Felizmente, no Brasil cada vez mais se avultam juristas com o pensamento semelhante ao do Min. Marco Aurélio, como é o caso de Luís Roberto Barroso[26] que defende a necessidade de haver a defesa da saúde da mãe, posto que esse tipo de gravidez pode acarretar perigos a sua salubridade. Neste sentido, o jurista pede a aplicação do instituto do periculum in mora, a fim de resguardar a saúde da mãe de um dano irreparável, enquanto não há consenso sobre a matéria no ordenamento que a proteja. Atualmente têm-se buscado diversas interpretações da lei penal para se possibilitar a antecipação do parto do anencéfalo.  Fala-se em acrescer ao Art. 128, do Código Penal, um novo inciso que estendesse a exclusão da ilicitude aos casos em que o aborto eugênico se consumasse. Foi temendo esta última hipótese que o STF derrubou a liminar autorizadora do abortamento em feto anencefálico, através do voto condutor elaborado pelo Min. Eros Roberto Grau, para quem a manutenção da liminar poderia ensejar uma pretensa intenção da Suprema Corte em reescrever o Código Penal[27]. Compreensível a justificativa, embora não aceitável, principalmente pelo fato de o tema abranger muito mais que políticas normativas. Interessantíssima a corrente de juristas que busca afastar a tipicidade do aborto eugênico em casos de fetos anencefálicos através da tese de que, em fato, não há o tipo aborto em tal conduta. O nascituro possui expectativa de direitos, conforme a Lei de Introdução do Código Civil de 2002. Desta maneira, em se diagnosticando a morte cerebral do feto, não mais haveria bem jurídico a ser tutelado. Conforme o Min. Marco Aurélio, justificando a liminar que concedeu, a interrupção da gravidez no caso de feto anencefálico não caracterizaria aborto, porque não há que se falar em expectativa de vida fora do útero. Concordamos com esta posição. O Estado, quando autoriza a prática do aborto em gravidez oriunda de estupro, explicita que o feto pode ser sacrificado para garantir os direitos constitucionais e, em especial, a honra da mãe. Conclui-se daí, que nem sempre a vida está acima dos princípios constitucionais, bem como, manter um ser morto no útero materno prolonga inultimente o sofrimento da mãe, sem nenhum benefício à vida, contrariando o princípio bioético da beneficência[28], que garante a autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo.  Nestes moldes, o direito à vida, em nosso ver, amparados pelo ponto de vista do advogado Manuel Sabino Pontes[29], seria conseqüência lógica da dignidade da pessoa humana. É justamente este o fundamento invocado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, autora da ADPF 54, para quem a impossibilidade do aborto eugênico em feto anencefálico violaria a dignidade da condição feminina. O filósofo norte-americano Ronald Dworkin refere-se à criminalização do aborto como algo antes de indesejável, ser igualmente terrível. Justifica a atitude das mulheres que contrariam a ordem estatal e tomam qualquer atitude para evitar o prolongamento da gravidez, no fato de que o trauma que irá persegui-las e o dano ao seu amor próprio são incomensuráveis, só podendo ela própria ser capaz de mensurar a extensão dessas dores, jamais um terceiro. A libertação da ordem jurídico-estatal das visões moralistas e religiosas, conforme Gustavo Rabay Guerra[30], representou a elevação do Estado à condição de Democrático de Direito. A Carta Constitucional previu o laicismo do Estado, garantindo a cada cidadão a liberdade de crença e assegurando-o que ninguém será privado de direitos por motivo de opção religiosa (Art. 5º, VIII, CF). Assim sendo, é desumano proibir que a mulher retire de seu ventre o feto, quando já está morto, forçando-a a persistir na gestação. O direito à vida seria sempre absoluto e instransponível? O ordenamento brasileiro não pensou desta forma quando priorizou o livre-arbítrio da mulher ante o direito de viver do feto, nos casos de aborto humanitário. 6 CONCLUSÃO As turbulências existentes sobre o aborto residem, principalmente, no fato de não haver um consenso jurídico internacional acerca dos conceitos de vida e morte. O próprio ordenamento brasileiro absorveu esta inquietude ao manter-se instável perante o tema, mudando de tempos em tempos o seu entendimento a respeito e permitindo-se influenciar pelas concepções religiosas. Como já mencionado, a modernidade jurídica é resultado do desvencilhamento dos aspectos religiosos, pelas normas estatais. É de se esperar, que o tema abordado disponha de um discurso pautado na ética humanista e respeitosa dos valores que circundam a sociedade. Todavia, não devem os argumentos ser baseados em ideais pretensamente moralistas e ligados às convicções religiosas pessoais do feitor da norma. Afinal, Michel Villey já dizia que ser jurista não significa exercer o sarcedócio da justiça, nem seguir ao Evangelho, mas servir ao bem-estar dos homens. Os religiosos têm todo o direito de manifestar suas opiniões e orientar seus fiéis para que sigam os seus ensinamentos, afinal, o Brasil é um Estado Democrático laico, podendo qualquer cidadão professar a crença que almejar. Estamos livres juridicamente dos dogmas das igrejas. Assim, não se concebe que os julgamentos se pautem em crenças e misticismos, tampouco que os aplicadores das leis se deixem mover por suas convicções religiosas. Estar-se-ia legitimando o ponderio da Igreja e assentindo a subsunção das normas às leis das mesquitas e igrejas. O direito à vida é tão inviolável quanto o direito à liberdade do homem, estando a própria Carta Constitucional concordante quanto a isso, ao dispor ambos na mesma linha de importância (art. 5º, caput). Assim, havendo conflito entre os dois direitos, necessário será que haja uma conjugação e sopesamento dos valores abordados, não devendo admitir querer fazer com que a mãe suporte toda a carga de uma gravidez, cujo desfecho será trágico. Inúmeras teorias acerca do tema existem, entretanto todos concordam com a certeza de que, ao final, a má-formação encefálica ensejará na morte da criança, ainda no útero ou dias após o nascimento. Isto posto, diante do fato abordado, deve-se permitir liberdade a cada mulher de decidir se quer ou não prosseguir com a gestação, segundo as suas convicções, pautadas nos princípios da liberdade, da dignidade e da autonomia da vontade.           Acadêmico do curso de Direito das Faculdades de Vitória- FDV/ES
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-42/a-legalidade-do-aborto-eugenico-em-casos-de-anencefalia/
A Autocomposição no Processo Coletivo e a sua Aplicabilidade nas Hipóteses Configuradoras de Improbidade Administrativa
Este artigo tem por objetivo analisar as disposições constitucionais e infraconstitucionais que abrem espaço à autocomposição no processo coletivo e direciona o estudo à compreensão e análise de sua aplicação nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa. Nesse particular, almeja-se, ainda, analisar o revogado art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa, o qual vedava a autocomposição nos processos sobre a matéria, consistindo em um entrave para a solução adequada dos conflitos. Tal análise se dará em cotejo com a Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e com as alterações trazidas através da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e da Lei n. 14.230/2021.
Direito Administrativo
Introdução Com vistas à resolução dos conflitos emergentes na sociedade e a uma resolução adequada, tem-se mostrado necessária a compreensão de que a justiça, por vezes, se dará por soluções advindas de meios diversos da jurisdição estatal. Nota-se, desse modo, que a justiça estatal clássica abre espaço a uma justiça alternativa, com meios diversos para a solução de conflitos. Nesse contexto, propõe-se o cabimento da autocomposição nos processos coletivos. Enquanto modalidade específica de autocomposição, há o compromisso de ajustamento de conduta, previsto na Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) – modificada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), o qual volta-se à realização de acordo entre os órgãos públicos legitimados e os interessados, aqui considerados aqueles cuja conduta precisa se adequar às exigências legais. Levando-se em consideração uma justiça multiportas, merece destaque a utilização do compromisso de ajustamento de conduta visando à tutela dos direitos coletivos, desde que observado o princípio da adequação. Transportando-se a temática para as ações de improbidade administrativa, identificava-se na Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, vedação expressa à transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa (art. 17, § 1º). Tal vedação não se demonstrava mais em consonância com a realidade dos últimos anos, na qual a efetiva resolução do conflito tem cada vez mais passado por caminhos distintos do processo judicial. Nesse sentido, foi inicialmente editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a Resolução n. 179/2017 que, em seu art. 1º, § 2º, apontava como possível a celebração de compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, mesmo diante da vedação legal que vigorava à época. Com a publicação da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime) e da Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, o dispositivo legal foi expressamente revogado, o que demonstra que o Legislativo tem reconhecido as mudanças que o ordenamento jurídico hodierno demanda. O presente estudo visa, portanto, analisar a autocomposição nos processos coletivos, dando maior destaque à realização do compromisso de ajustamento de conduta e do acordo de não persecução civil, bem como a adequação de tais instrumentos nos casos que envolvam atos de improbidade administrativa, a partir do exame da revogada vedação contida na Lei n. 8.429/92 e da hipótese de acordo criada pela Resolução n. 179/2017 do CNMP.   1. A autocomposição nos processos coletivos A autocomposição pode ser definida como um meio de resolução de controvérsias no qual se lança mão do consenso gerado naturalmente pelas partes envolvidas no conflito, objetivando a solução pacífica da lide. Consoante entendimento de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, (2000, p. 80-81) a autocomposição pode ser extraprocessual (à margem do processo), intraprocessual (a ser produzida entre as partes ou com intervenção da autoridade judicial) e até mesmo pós- processual, quando no âmbito da execução. A utilização da autocomposição tem sido fomentada no ordenamento jurídico brasileiro através de diversas formas, a exemplo da Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que leva em consideração a necessidade de ser consolidada uma política de incentivo aos mecanismos consensuais de solução de litígios. Em termos de direito comparado, nota-se que as soluções negociais, assim como no caso brasileiro, iniciaram-se de forma tímida e com poucos adeptos no direito norte-americano, tendo passado por intensas transformações e estímulos que datam desde a década de 70. Tal medida é justificada pelo aumento das queixas públicas acerca das ineficiências e injustiças advindas do sistema judicial tradicional dos Estados Unidos. Aos poucos, as soluções negociais se tornaram comum e amplamente empregadadas no território estadunidense (EDUARDS, 1986). No Código de Processo Civil de 2015 (CPC), a autocomposição recebeu um significativo tratamento. De acordo com Fredie Didier Júnior (2015, p. 273), o CPC passou a ser estruturado de forma a estimular a realização da autocomposição, diante de dispositivos que: i) estruturam o procedimento com vistas a inserir a tentativa de autocomposição como ato anterior à defesa proposta pelo réu; ii) permite a homologação judicial de acordo extrajudicial de qualquer natureza; iii) autoriza que, no acordo judicial, seja incluída matéria estranha ao objeto litigioso do processo; e iv) permite acordos processuais atípicos evidenciados nos negócios jurídicos processuais. Observa-se que, com a adoção da solução negocial, as partes conseguem, além da resolução do conflito, outros benefícios dificilmente obtidos através da forma usual de resolução de controvérsias. Na análise dos métodos alternativos de solução de conflitos, há quem vislumbre entre as diversas vantagens de tais expedientes a existência de um maior controle e a grande probabilidade de resultados positivos (HENRY, 2000). Ademais, merece ser elencado como um grande benefício da solução negocial o curto lapso temporal que pode ser proporcionado aos interessados na resolução do litígio, uma característica bem atraente, haja vista a duração dos processos judiciais que, em grande parte dos casos, tem sido marcada por longos prazos. Do microssistema de processo coletivo, cuja formação corresponde a um complexo de legislações, destacam-se a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, mais conhecida como Lei da Ação Civil Pública (LACP), e a Lei n. 8.078 de 11 de setembro de 1990, difundida como Código de Defesa do Consumidor (CDC). Esses diplomas legais acabaram por formar o cerne do processo coletivo brasileiro, disseminando sua aplicabilidade às demais legislações inseridas no microssistema (DE AZEVEDO, 2012). Entretanto, foi com o diploma consumerista que a aplicação da solução negocial deixou de ser restrita às questões do âmbito do direito privado, estendendo a sua incidência para a seara do processo coletivo. O CDC incluiu o art. 5º, § 6º na LACP, dispositivo que prevê que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial” (BRASIL, 1985). Para além do âmbito extrajudicial, a possibilidade de realização da autocomposição também ocorre dentro da relação processual, ou seja, no curso da ação em defesa dos interesses coletivos, mesmo que a legislação expresse apenas a possibilidade extrajudicial de autocomposição (art. 5º, § 6º da LACP). Destaca-se que, na hipótese extrajudicial de autocomposição, originalmente formulada através do compromisso de ajustamento de conduta, há a constituição de um título executivo extrajudicial, seguindo-se o disposto no art. 784, inciso XII do CPC e do art. 5º, § 6º da Lei n. 7.347/85. Já quando celebrado durante o curso da ação, sua homologação resultará na extinção do processo com julgamento do mérito, conforme a previsão do art. 487, III, b, do CPC (GARCIA; ALVES, 2017). Antes das alterações legais, já existiam divergências doutrinárias acerca da possibilidade de negociações que envolvessem os direitos e interesses coletivos. Nessa acepção, Antonio do Passo Cabral (2016, p. 327) dispunha que grande parte da doutrina entendia ser impossível a realização da autocomposição nas ações de natureza coletivas em virtude de os legitimados extraordinários não serem titulares dos direitos transindividuais, e, sendo estes indisponíveis, a sua negociação seria inconcebível. No raciocínio do autor, este entendimento restaria por equivocado, afinal, já se demonstrava como necessária a aplicabilidade da autocomposição nas ações coletivas, versando sobre o modo e o tempo da reparação do dano coletivo, de forma a visar a máxima efetividade da tutela de tais interesses. Dessa forma, Cabral (2016, p. 327) conclui que, embora tais direitos sejam considerados indisponíveis em algum grau, esta característica não possui força suficiente a impedir a realização dos meios negociais de resolução de controvérsias no âmbito dos processos coletivos. Assim, ainda que existissem entendimentos contrários à possibilidade de soluções negociais no âmbito dos direitos coletivos, parcela considerável da doutrina já admitia tal possibilidade, evidenciando a adequada aplicação dos métodos autocompositivos ante realidade jurídica dos últimos anos. Todavia, o uso de tal mecanismo de solução de conflitos não poderia ser utilizado de maneira irrestrita, haja vista que a negociação no âmbito da tutela coletiva impede a ocorrência de concessões sobre os direitos coletivos propriamente ditos, tornando inadmissível a sua renúncia (GAVRONSKI, 2016). Isso não implica em dizer que a utilização do mecanismo de solução negocial reduziria drasticamente. A bem da verdade, Alexandre Amaral Gavronski (2016, p. 351) conclui que ocorrem inúmeras autocomposições cotidianamente, seja no transcurso das ações civis públicas e das ações coletivas, através de acordos firmados entre os legitimados e os réus, que serão homologados judicialmente, bem como fora do processo coletivo, por intermédio do compromisso de ajustamento de conduta que era aplicado no início da implementação da solução negocial, sendo este último instrumento melhor explanado no tópico seguinte.   1.1 O compromisso de ajustamento de conduta Conforme apresentado alhures, o CDC foi o diploma legal que inseriu o art. 5º, §6º na LACP. Com esse dispositivo, passou-se a ser possível a realização do compromisso de ajustamento de conduta – espécie de autocomposição extrajudicial – no âmbito dos direitos coletivos lato sensu. Além do CDC, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), consoante o disposto no art. 211, também previu a possibilidade de ser firmado tal mecanismo de solução negocial. Destarte, pode o compromisso de ajustamento de conduta ser definido como um instrumento lavrado em termo, contendo obrigações de fazer ou não fazer (MAZZILLI, 2006). Na ótica de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 93-110), o escopo do compromisso de ajustamento gira em torno de qualquer obrigação de fazer ou não fazer, na tutela de qualquer direito, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Na prática jurídica dos últimos anos, principalmente no âmbito do Ministério Público, o compromisso de ajustamento de conduta passou a ser denominado como termo de ajustamento de conduta, muitas vezes referido apenas pela sigla TAC, sendo a inclusão da expressão “termo” dada em virtude de tal instrumento ser lavrado de tal forma. No que tange as partes integrantes da formulação do TAC, tem-se, no polo ativo, os órgãos públicos legitimados a defenderem os direitos transindividuais da coletividade. Dessa forma, esses órgãos são os mesmos que fazem parte do rol de legitimados à propositura da ação civil pública ou coletiva. Quanto ao polo passivo, tem-se o agente responsável pela causação do dano aos interesses transindividuais, devidamente representado por advogado, devendo adequar a sua conduta às exigências legais após se firmar o TAC. A parte integrante do polo passivo está sujeita às penalidades previstas no próprio compromisso de ajustamento de conduta pactuado, além de que este passará a ser considerado um título executivo extrajudicial, consoante dispositivos legais pertinentes à matéria. (MAZZILLI, 2006). Destaca-se que os sujeitos que integram o polo passivo do termo de ajustamento de conduta, ou seja, os compromissários, podem ser pessoas naturais, pessoas jurídicas de direito privado ou de direito público, além dos órgãos públicos e entes sem personalidade jurídica, sendo suficiente a detenção de personalidade judiciária. (JELINEK, 2016). Além dessas possibilidades, Rochelle Jelinek (2016, p. 239) define que também é possível ocorrer situações nas quais os legitimados passivos são os representantes de pessoas jurídicas de direito privado ou de pessoas jurídicas de direito público. Por fim, vale apontar que não se pode confundir o compromisso de ajustamento de conduta com a transação. Ambos são mecanismos de autocomposição, entretanto, conforme advertem Emerson Garcia e Rogério Pacheco (2017, p. 906), a transação é um negócio jurídico no qual ocorrem concessões recíprocas, sendo proibida a sua aplicação no âmbito dos interesses difusos. Em contrapartida, o ajustamento de conduta é, no entendimento dos autores, passível de ser realizado na seara dos direitos difusos, visto que não cuidam de realizar disposições quanto ao direito material. Malgrado tal entendimento, reflexões foram feitas acerca da impossibilidade de aplicação do TAC diante de algumas vedações que eram existentes no ordenamento jurídico brasileiro, consoante se busca demonstrar a seguir.   2. A vedação legal da autocomposição prevista no art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa e o contexto de sua edição A Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa (LIA), regulamentou o art. 37, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), elencando, exemplificativamente, os atos configuradores de improbidade administrativa e as respectivas sanções a serem aplicadas em cada hipótese, devendo-se, para tanto, observar o princípio da proporcionalidade. (GARCIA, 2012). A LIA revela, então, a necessidade de controle da atuação dos agentes públicos, a ser rígido e intenso, de modo a aperfeiçoar a atividade estatal e adequar os agentes aos valores de um Estado Democrático de Direito (GARCIA; ALVES, 2017). Nota-se que a LIA se propôs a moralizar a conduta dos agentes públicos e a afastar eventuais ingerências capazes de levar à impunidade, ante a desconfiança da sociedade nas novas instituições públicas constituídas após o término do período militar (ZAGANELLI; ROCHA, 2017). Analisando-se o curso da legislação brasileira no combate à corrupção, é possível identificar, nos momentos antecedentes à Lei n. 8.429/92, um déficit no tratamento jurídico das “disfunções administrativas patrocinadas pela improbidade de agentes públicos e o cotidiano do gerenciamento da res publica, etiquetado com a impunidade” (FAZZIO JÚNIOR, 2016, p. 02), o que permite compreender a extensão dada pela lei de 1992 aos atos configuradores da improbidade administrativa e as sanções gravosas conferidas a esses atos. Em um cenário tal como o vislumbrado atualmente, de crescente complexidade das atividades ilícitas a assolar a Administração Pública, a exigir constantemente uma atualização dos “programas corretivos” (FAZZIO JÚNIOR, 2016, p. 02), a LIA voltou-se, assim, à proteção de bens e interesses públicos, punindo os atos que acarretam enriquecimento ilícito ou lesão ao erário e aqueles contrários aos princípios da Administração Pública (arts. 9º a 11). Como sanções a serem aplicadas isolada ou cumulativamente, a Lei n. 8.429/92 prevê, em seu art. 12, a perda de bens ou valores de origem ilícita, o ressarcimento do dano, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a multa civil e a proibição de contratar ou receber incentivos do poder Público. Dentre as disposições da Lei n. 8.429/92, identificava-se, em seu art. 17, §1º, a proibição de transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa, com a finalidade de impedir concessões indevidas, em proteção à probidade administrativa e ao patrimônio público. (TAKAHASHI, 2013). Nota-se que se tratava de uma vedação no âmbito processual, de modo que já existia entendimento no sentido de que, interpretando-se o dispositivo em comento para além de sua expressão literal, a proibição nele contida também alcançava “acordos na fase pré-processual dos procedimentos administrativos instaurados e presididos pelos colegitimados” (GARCIA; ALVES, 2017, p. 906), sob pena de se esvaziar a norma em comento. As ações sobre a matéria de que trata a Lei n. 8.429/92, ante o fato de terem por objeto o patrimônio público e a moralidade administrativa, não admitiam concessões mútuas próprias da transação, (CAMBI; LIMA, 2011) razão pela qual vedava-se a sua realização, bem como acordos e conciliação. Como já delineado alhures, já existia quem apontasse a indisponibilidade do interesse público – um conceito jurídico indeterminado – como razão para a vedação trazida no teor do art. 17, §1º, da LIA, aduzindo que por pertencerem a toda uma coletividade, os bens e interesses públicos não estariam sujeitos à disposição do administrador. Outro fator que era levado em conta para a compreensão da existência da vedação do revogado art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92, era a proximidade existente entre a ação penal e a ação de improbidade administrativa. A demonstrar tal proximidade, podem-se citar as sanções possíveis no âmbito penal e no âmbito da improbidade, bem como a estruturação do processo existente à época da vedação, verificando-se a não mais existente defesa prévia na ação regulada pela LIA (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018). Verificadas as semelhanças entre as ações mencionadas, necessário notar que, à época da edição da LIA, o Direito Penal brasileiro inadmitia qualquer hipótese de negociação para a resolução dos conflitos acerca da matéria. Por essa razão, é possível concluir que a barreira que foi erguida em relação à solução negociada no âmbito da improbidade administrativa era fruto da proibição outrora existente no Direito Penal (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018). No entanto, a partir da Lei n. 9.099/95, foram desenvolvidas técnicas direcionadas à solução consensual dos conflitos na justiça penal. Cita-se, por exemplo, os institutos despenalizadores da transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/95) e da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95). Diante de tais mudanças, questionava-se quanto ao acerto da vedação que restava mantida no art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92, uma vez verificada a possibilidade de negociação acerca das sanções penais.   2.1 A inadequação do art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa ao atual modelo de realização da justiça Após a breve análise do contexto de elaboração da Lei n. 8.429/92 e das razões para vedação anteriormente prevista em seu art. 17, §1º, mister reforçar a inadequação do referido dispositivo à realidade brasileira recente. Nesse particular, não se pode olvidar que, para a realização da justiça, não é imprescindível a adoção da via judicial, pois a efetiva resolução de determinado conflito é possível, de maneira célere e econômica, a partir de meios que, em atenção ao caso concreto, mostram-se mais adequados. É possível vislumbrar que o interesse público que vedava concessões no campo da improbidade administrativa era o mesm que, em casos específicos, permitiria a busca por uma solução consensual, a qual poderia despontar como mais adequada à resolução do conflito. Assim, “a indisponibilidade do interesse público, em vez de constituir um óbice à via consensual, coloca-se como um dever de consenso” (TAKAHASHI, 2013, p. 32). Como mencionado anteriormente, soluções negociadas foram pensadas até mesmo no âmbito do direito penal – compreendido como ultima ratio – com vistas ao deslinde efetivo e célere de situações descritas em lei. Desse modo, havendo autorização legal para o mais (responsabilidade penal), considerava-se existente o permissivo para o menos (responsabilidade por improbidade administrativa) (CAMBI; DINIZ, 2018). Por essa razão, evidencia-se que a Lei n. 8.429/92 necessitava se adequar à realidade na qual estava inserida, sendo imprescindível sua interpretação sob a ótica constitucional, a fim de que não houvesse prejuízo aos princípios legais da Administração Pública como o da eficiência (art. 37, caput, da CRFB/88, introduzido pela Emenda Constitucional n. 19/1998) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CRFB/88, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004), inexistentes à época da promulgação da LIA (CAMBI; DINIZ, 2018). E é a partir de uma leitura constitucional da Lei n. 8.429/92 que se pode inferir que não era adequada a interpretação literal do art. 17, §1º, já que este não estava em harmonia com o microssistema de combate às lesões à Administração Pública que imperava e ainda impera (ZANETI JR; ALVES, 2016).   3. A Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e sua influência na autocomposição em matéria de improbidade administrativa A inadequação do disposto no art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92 ao ordenamento jurídico brasileiro restou expressa na Medida Provisória 703/2015 (MP 703/2015), a qual, em que pese as críticas a ela dirigidas, andou bem ao revogar o dispositivo ora questionado. A MP 703/2015, porém, havia caducado, uma vez que esgotado, em maio de 2016, seu prazo de tramitação no Congresso Nacional. Apesar da perda de validade da referida Medida Provisória, esta já havia demonstrado ser, de fato, necessária uma mudança da legislação acerca da improbidade administrativa, privilegiando-se a prevenção ou a reparação de eventuais danos causados ao patrimônio público e à probidade administrativa. Diante do cenário narrado, é essencial a compreensão de que a morosidade na equalização legislativa não poderia resultar na paralização dos operadores do direito que, diante das inovações, devem apresentar respostas dotadas de eficiência (ZAGANELLI; ROCHA, 2017), já que existente o risco de tornar lento e pouco efetivo o combate aos atos de improbidade. Assim, pode-se dizer que havia um desejo por punições rigorosas aos atos de corrupção e atos ímprobos e, de outro lado, como já explicitado, uma busca por soluções consensuais para tais controvérsias (TAKAHASHI, 2013). Em atenção a tal realidade, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 26 de julho de 2017, publicou a Resolução n. 179, que disciplina a realização do compromisso de ajustamento de conduta. Este ato normativo, ainda em vigor no âmbito ministerial, traz em seu art. 1º, caput e §2º, a seguinte redação: “Art. 1º O compromisso de ajustamento de conduta é instrumento de garantia dos direitos e interesses difusos e coletivos, individuais homogêneos e outros direitos de cuja defesa está incumbido o Ministério Público, com natureza de negócio jurídico que tem por finalidade a adequação da conduta às exigências legais e constitucionais, com eficácia de título executivo extrajudicial a partir da celebração. Como se nota, a Resolução n. 179/2017 seguiu caminho diverso do que estava traçado pelo art. 17, §1º, da LIA, prevendo, expressamente, como cabível a celebração do compromisso de ajustamento de conduta nos casos referentes a hipóteses configuradoras da improbidade administrativa. Vislumbra-se, na edição e na aplicação de tal ato normativo, a busca por uma atuação não apenas processual do Ministério Público, voltando-se o órgão à produção de resultados efetivos para a realização da justiça. A Resolução n. 179/2017 do CNMP demonstra, com efeito, a postura do denominado Ministério Público Resolutivo, que faz uso dos procedimentos administrativos ao seu alcance com vistas à uma solução célere e direta para conflitos que afetam interesses metaindividuais, evitando-se medidas direcionadas à judicialização das demandas. (CAMBI; FOGAÇA, 2017). Ao firmar compromissos de ajustamento de conduta, permitindo-se, mediante uma solução dialogada, a prevenção ou a reparação de danos causados por atos ímprobos, o Parquet já promovia o acesso à justiça e a tutela do interesse público. Apesar de existente o entendimento de que “o poder ‘regulamentador’ dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar” (STRECK; SARLET; CLÉVE, 2006), a inovação trazida pela Resolução n. 179/2017 do CNMP já se revelava dotada de constitucionalidade, legalidade e coerência com o ordenamento jurídico brasileiro (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018). Ante a resistência existente por parte da doutrina brasileira com relação à celebração do compromisso de ajustamento de conduta no âmbito da improbidade administrativa, é preciso ter em conta que a solução consensual não requer a renúncia a um direito ou parte dele (TAKAHASHI, 2013). Firmando um ajuste no qual conste que o agente público responsável pela conduta ímproba realizará o pagamento da dívida ao erário de maneira parcelada, o Ministério Público não estaria renunciando a um direito, mas sim permitindo que este se concretizasse de maneira viável. De maneira diversa não poderia ser, como a própria Resolução n. 179/2017 aponta em seu art. 1º, §1º: “Art. 1º O compromisso de ajustamento de conduta é instrumento de garantia dos direitos e interesses difusos e coletivos, individuais homogêneos e outros direitos de cuja defesa está incumbido o Ministério Público, com natureza de negócio jurídico que tem por finalidade a adequação da conduta às exigências legais e constitucionais, com eficácia de título executivo extrajudicial a partir da celebração. Admitindo-se, assim, como cabível o compromisso de ajustamento de conduta em casos de improbidade administrativa, foram surgindo hipóteses de quando seria alcançada a autocomposição. Um primeiro entendimento identificado no estudo da matéria segue no sentido de que seria conveniente a possibilidade de compromisso de ajustamento de conduta firmado em casos nos quais os atos ímprobos possuíssem menor lesividade, com facilitada reparação do dano. Rogério Pacheco Alves (GARCIA; ALVES, 2017, p. 912) já admitia a transação nas hipóteses de menores prejuízos ao patrimônio coletivo. O autor ainda apontava que o ajuste poderia versar sobre os aspectos patrimoniais das sanções, sem, contudo, tocar nas sanções mais graves, como a perda da função pública. Ademais, o autor já asseverava que a disciplina prévia da matéria em lei seria essencial, pois, sem esta, o ajuste de conduta seria ilegal (GARCIA; ALVES, 2017). Outra hipótese abraçada por parte de doutrina para o cabimento do compromisso de ajustamento de conduta no âmbito da improbidade administrativa era a de sua celebração apenas quanto aos direitos patrimoniais. Nesse caso, não se estaria a inovar como se propõe a Resolução n. 179/2017, tendo em vista que a face ressarcitória/desconstitutiva da ação de improbidade não era objeto de vedação quando da vigência do art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/90, ante a sua identidade com qualquer ação popular ou ação civil pública, permitindo-se a celebração de acordos parciais (DIDIER JR; ZANETI JR). Não haveria, então, proibição quanto ao ajuste sobre as condições, prazos e modos de prestação do valor referente à reparação do dano ao patrimônio público e à perda da vantagem ilícita obtida. A denominada face sancionatória das ações de improbidade administrativa, porém, não poderia ser objeto do acordo, impondo-se, assim, o ajuizamento da ação civil pública para a aplicação das demais sanções do art. 12 da LIA. Por esse motivo, seria de pouco interesse prático para o agente responsável pela conduta ímproba firmar um acordo, pois, de qualquer maneira, a ação seria proposta contra ele (GARCIA; ALVES, 2017). Vale ressaltar a existência de maior utilidade em compromissos de ajustamento de conduta firmados não apenas para a reparação do dano, mas à própria prevenção do ato ímprobo. A prevenção do ilícito é desejada pelo sistema jurídico, visto que a reparação, em diversos casos, não apresenta resultados satisfatórios. Nessas hipóteses de acordo com caráter preventivo, o ajustamento de conduta versaria sobre uma obrigação de fazer ou de não fazer, com a cominação de uma sanção pecuniária para o seu descumprimento, consistindo o compromisso em um título executivo extrajudicial (GARCIA; ALVES, 2017). Da leitura do art. 2º, § 1º, da Resolução 179/2017 do CNMP, extrai-se a possibilidade de realização de um negócio jurídico típico, o qual, com base na cláusula geral da negociação processual constante no art. 190 do CPC, (DIDIER JR.; ZANETI JR, 2018) volta-se, nesse caso, ao ajustamento das condições nas quais se dará o cumprimento das sanções pelo agente ímprobo e em que termos será realizado o ressarcimento ao erário. Note-se que, pelo próprio texto da Resolução (art. 1º, § 1º), as concessões admitidas nos negócios jurídicos atípicos outrora mencionados não são cabíveis na celebração do compromisso de ajustamento de conduta. Ante a tendência mundial pela justiça consensual e sendo a sanção proposta na fase de inquérito, mediante o TAC, a mesma a ser obtida em uma sentença judicial impositiva, após um processo judicial moroso e custoso, deve o órgão ministerial ser eficiente ao zelar pelos poderes públicos, pelo patrimônio público e pelo fortalecimento da democracia. Assim, não havia, portanto, razão para se negar validade a um TAC que, pela via consensual, permitia que se obtivesse o mesmo que poderia ser obtido por uma sentença judicial. (SANTOS, 2012). Portanto, ainda que não houvesse disciplina legal específica acerca de compromisso de ajustamento de conduta a ser firmado no âmbito da improbidade administrativa, era imprescindível uma atuação dos órgãos públicos com vistas à promoção de meios mais adequados à solução de conflitos sobre a matéria. Com políticas públicas de incentivo à composição, para uma eficaz e rápida recomposição do patrimônio público (GAJARDONI et al., 2014) e com o controle popular sobre os ajustes, proporcionando o acesso à justiça por meios adequados e efetivos, ainda que diversos da demanda judicial.   4. A revogação expressa da vedação contida no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade Administrativa e a criação do acordo de não persecução civil O ordenamento jurídico brasileiro tem apresentado uma sequência de inovações as quais reconsideraram o alcance do interesse público. Aos poucos, as alterações implementadas após a LIA foram levando a um esvaziamento normativo do disposto no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade. Podem ser citadas como inovações que relativizaram a indisponibilidade do interesse público: i) a previsão da transação penal na Lei n. 9.099/95 para crimes de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação; ii) a previsão do acordo de leniência, na Lei n. 12.846/2013, a ser celebrado com pessoas jurídicas que praticaram atos contra a Administração Pública, porém, aceitaram colaborar efetivamente com as investigações e com o processo administrativo; e iii) a possibilidade de utilização da mediação como meio para a solução de conflitos no âmbito da Administração Pública (art. 3º da Lei n. 13.140/2015). (CAMBI; DINIZ, 2018). Neste cenário, somando-se a instrumentos normativos como a já citada Resolução n. 179/2017 do CNMP, houve mais do que um esvaziamento normativo do art. 17, §1º, da LIA, mas sim sua revogação tácita com a publicação da Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2015), um fator de grande relevo que já era capaz de demonstrar a inadequação da continuidade da aplicação da vedação prevista na Lei de Improbidade. Como já abordado, o referido dispositivo da LIA trazia em seu texto a vedação de conciliação, acordo e transação nas ações de improbidade administrativa. A Lei de Mediação, por seu turno, em art. 36, §4º, prevê: “Art. 36. No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União. […] Da leitura do artigo, nota-se que este, expressamente, já permitia a autocomposição nas ações de improbidade, revogando, ainda que tacitamente, o § 1º, do art. 17, da LIA, apesar da relutância por parte de muitos intérpretes que permaneceram aplicando a vedação em questão. Assim, já era de se notar que a vedação se mostrava inadequada ao modelo de realização de justiça que cada vez mais vinha fincando raízes em nosso ordenamento jurídico. O acordo entre as partes, tal como o realizado no compromisso de ajustamento de conduta, era uma alternativa que devia ser almejada pelo mundo jurídico, assim como pela sociedade, inclusive em conflitos que envolvessem hipóteses de improbidade administrativa. Em que pesem as divergências existentes acerca da revogação ou não do art. 17, § 1º, da LIA, a Lei n. 13.964/2019, mais conhecida como Pacote Anticrime, colocou um ponto final em tal imbróglio. Isso porque o referido diploma legal trouxe, dentro de suas diversas mudanças, a alteração do dispositivo legal supracitado, passando a ser previsto expressamente a possibilidade de celebração de acordo de não persecução cível. Assim, o Pacote Anticrime foi a primeira legislação que revogou expressamente a vedação então existente no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade, alterando-se a sua redação e passando a prever, de forma expressa, a admissão da autocomposição, através do denominado acordo de não persecução cível. Na lição de Rogério Rudiniki Neto (2021, p. 291): “O acordo de não persecução cível possui clara inspiração na figura do termo de ajustamento de conduta em atos ímprobos de menor potencial ofensivo. Esta figura foi pioneiramente criada no âmbito do Ministério Público do Estado do Paraná, por meio da resolução 01/2017 do Conselho Superior do MPPR, tendo a ideia sido, em seguida, adotada em âmbito nacional pela resolução n. 179 do Conselho Nacional do Ministério Público. Quando da edição dessas resoluções partiu-se das seguintes premissas: em atos ímprobos de menor potencial ofensivo dificilmente serão impostas as sanções mais gravosas, sujeitas à reserva de jurisdição, previstas na Lei n.º 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), tais como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos. Nesses casos, em geral, é imposta multa, além da obrigação de reparar o prejuízo ao erário, sendo contraproducente aguardar um longo e dispendioso processo judicial quando o próprio agente ímprobo pode ter interesse em resolver rapidamente sua situação mediante a realização de acordo com o Ministério Público”. Em atenção às demandas atuais e aos novos métodos desenvolvidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, não se deve negar que o Legislativo e o Executivo conseguiram vislumbrar a incompatibilidade do disposto no art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92, com a busca por uma efetiva realização da justiça que os tempos atuais cada vez mais têm demandado. Afinal, como já apontado por Fazzio Jr. (2016, p. 461-462) ao tratar dos acordos de leniência, ante a corrupção pública no Brasil se encontrar em um estágio tão avançado, far-se-ia necessária uma leitura mais aberta do tema, a fim de que o direito não se encontrasse defasado em cotejo com a realidade atual. Assim, já era necessária uma atuação mais eficiente e resolutiva por parte dos órgãos públicos responsáveis diretamente pela tutela da Administração Pública. A expressar essa atuação eficiente e evolutiva, lançando mão das ferramentas disponíveis, a exemplo do já mencionado termo de ajustamento de conduta, que evidentemente forneceu bases ao acordo de não persecução cível. Portanto, de forma a ratificar todo o pensamento construído pela doutrina e jurisprudência favoráveis à autocomposição nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, o Pacote Anticrime trouxe uma grande segurança jurídica aos operadores de direito, fazendo com que as discussões em torno da vedação anteriormente contida no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade não fosse mais objeto de entrave aos métodos autocompositivos. Malgrado tal contexto, o acordo de não persecução cível trazido pela Lei n. 13.964/2019 não cuidou de apresentar o campo de abrangência do novel instituto. Assim, na ótica de Renato de Lima Castro (2020, p. 212): “[…] deve-se nominar acordo de não persecução cível como gênero, para abarcar todas as espécies abstratamente previstas na legislação, sendo espécies: compromissos de ajustamento de conduta; acordos de não persecução em sentido estrito não instrumentais e acordos de não persecução cível de caráter instrumental. Estes se concretizam nas colaborações premiadas ocorridas na improbidade administrativa ou no acordo de leniência. Já os acordos de não persecução em sentido estrito não instrumentais são aqueles que não exigem qualquer espécie de colaboração do autor do fato ímprobo. Recaem sobre os atos de improbidade administrativa de gravidade média/grave, ou de escassa gravidade, que são as modalidades de ato de improbidade de menor potencial ofensivo. Note-se que, no TAC, em decorrência de sua limitação legal contida na Lei de Ação Civil Pública e na Resolução nº 179/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, o titular da pretensão poderá firmá-lo sem disponibilização do direito material, limitando-se o acordado ao prazo ou forma de cumprimento da obrigação pactuada. Assim, v.g., no parcelamento dos danos causados ao erário, ou do pagamento da multa imposta, parcela-se, sem disponibilidade do direito. O TAC, assim, pode ser efetivado a qualquer tempo. Já no acordo de não persecução cível em sentido estrito não instrumental, várias situações podem ocorrer. A uma, o ato de improbidade administrativa é dotado de escasso desvalor de comportamento e de resultado e que, segundo o princípio da proporcionalidade, assim como a eficiência administrativa, legitimam que o Ministério Público, fundado em um juízo discricionário devidamente motivado, justifique o rápido ressarcimento do erário, ou o pagamento de eventual multa imposta, sem a propositura de outras sanções decorrentes do ato de improbidade. Nesta hipótese, firma-se um instrumento, materializado no próprio acordo de não persecução cível, com antecipação da sanção que, segundo a magnitude do injusto ímprobo, é apropriada à espécie. Este acordo de não persecução cível pode ser na fase da investigação, ou no processo, até a contestação”. Conquanto o Pacote Anticrime tenha solucionado as questões em torno da vedação da autocomposição nas hipóteses atos ímprobos e inserido no ordenamento a figura do acordo de não persecução cível, ainda restavam dúvidas acerca do alcance do instituto, demandando-se novas disposições legais para regular a matéria. Enquanto isso, os operadores do direito lançavam mão de instrumentos normativos já existentes como, por exemplo, a já citada Resolução 179/2017 do CNMP. Solucionando tal panorama dúbio, foi publicada a Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, que alterou grande parte da Lei de Improbidade Administrativa. A nova legislação revogou o art. 17 e seus parágrafos 1º a 4º, da LIA, trazendo uma nova redação. Nela, o caput do art. 17 tratou de abarcar apenas a legitimação do Ministério Público na propositura das ações relativas ao ato de improbidade administrativa, bem como a utilização do rito comum previsto no CPC como regra para o procedimento de tais ações. É somente no art. 17-B, inserido pelo novel diploma legal, que a autocomposição nas hipóteses de improbidade administrativa toma forma e ganha campo de aplicação. De acordo com o referido dispositivo: “Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados: I – o integral ressarcimento do dano; II – a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados. I- da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação; II- de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação; III- de homologação judicial, independentemente de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa 5 (cinco) anos, contado do conhecimento pelo Ministério Público do efetivo descumprimento”. (BRASIL, 2021). Assim, o outrora denominado acordo de não persecução cível se tornou o atual acordo de não persecução civil, alterando-se apenas o último termo dado ao instituto, sendo delimitado legalmente o procedimento a ser tomado para os casos que admitirão a autocomposição. Nota-se que a legislação trouxe os requisitos necessários para que o acordo de não persecução civil seja oferecido pelo órgão ministerial, além de destacar quais os resultados mínimos que devem ser atingidos através da solução negocial, quais sejam, o ressarcimento integral do dano e a devolução à pessoa jurídica lesada da vantagem obtida indevidamente. Interessante notar, também, que a legislação encerrou as discussões em torno do momento adequado para o oferecimento do acordo de persecução civil. Assim como o Código de Processo Civil privilegia que a conciliação seja oferecida a qualquer tempo, o § 4º, do art. 17- B, transcrito alhures, dispõe que a solução negociada poderá ser feita no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade e, até mesmo, no momento da execução da sentença condenatória, demonstrando o quanto o Processo Coletivo busca, cada vez mais, a solução adequada dos conflitos através da autocomposição.   Conclusão Diante do estudo desenvolvido, nota-se que a realidade jurídica contemporânea cada demanda a necessidade de aplicação dos meios adequados para a solução dos conflitos emergentes na sociedade, com vistas, principalmente, ao acesso à justiça. É evidente que os meios de resolução de controvérsias não são exclusivos dos processos judiciais conflituosos, notando-se que, em muitos casos, a via consensual se mostra mais efetiva e célere, sendo intensamente estimulada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Por essa razão, sua possibilidade no âmbito dos processos coletivos não é só possível, como recomendada. De análise do microssistema do processo coletivo, extrai-se a plena compatibilidade da solução negociada para os litígios de caráter coletivo. A partir dessa conclusão, entende-se também adequada a via consensual nos casos de hipóteses configuradoras da improbidade administrativa. Muito embora a Lei n. 8.429/92, em seu art. 17, § 1º, vedasse as soluções consensuais nas ações de improbidade administrativa, sendo essa vedação estendida à fase pré-processual, atualmente não é possível mais vislumbrar quaisquer óbices à proibição em comento, ante a recente publicação da Lei n. 14.230/2021, que instituiu o acordo de não persecução civil, a partir de um panorama jurídico inaugurado por medidas como a Resolução n. 179/2017 do CNMP e do Pacote Anticrime. As arguições em torno da indisponibilidade do interesse público enquanto fundamento à vedação de autocomposição no âmbito da improbidade administrativa não têm mais espaço no atual contexto jurídico, visto que não somente na nova disposição legal, mas também na própria tutela do interesse público, a autocomposição se impõe enquanto dever. Assim, depreende-se que andou bem o Legislativo e o Executivo ao aprovar e sancionar as mudanças legais que acabaram por revogar a vedação prevista no extinto art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92, já que tal proibição não possuía mais razão de ser na realidade contemporânea. O combate à corrupção e à improbidade administrativa requer medidas efetivas e céleres para recomposição do patrimônio público e para a tutela da moralidade administrativa. Dessa forma, o acordo de não persecução civil, previsto legalmente, demonstra-se, assim como o termo de ajustamento de conduta, como instrumento de autocomposição capaz de pôr fim ao litígio sem deixar de realizar a tutela dos direitos, sendo, em muitos casos, a solução adequada disponível.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/a-autocomposicao-no-processo-coletivo-e-a-sua-aplicabilidade-nas-hipoteses-configuradoras-de-improbidade-administrativa/
Reforma administrativa brasileira: PEC n. 32/2020 – medidas propostas na seara da organização administrativa
Como sói acontecer a toda proposta de reforma é que a sua ocorrência traga melhorias à condição anterior. Dessa feita, pautado nesse escopo, o projeto foi justificado como possibilidade à modernização das relações na administração pública relativas à regulamentação dos servidores públicos e à organização administrativa, bem assim às relações entre os Poderes Executivo, Legislativo e o Judiciário. Este artigo, fruto de vários estudos de literaturas quanto às mencionadas questões, se coloca como uma reflexão crítica às pretensas inovações progressistas.
Direito Administrativo
Introdução Embora a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº32/2020 fora apresentada pelo Poder Executivo como sendo um projeto de modernização das relações que envolvessem a força de trabalho da administração pública, de sua leitura e exame não há como se inferir de modo a compatibilizar com o discurso propagado, ao contrário, nos leva a um questionamento sobre as reais consequências dessas alterações. Deveras, antecipando alguns dos resultados que seriam gerados pela PEC, a medida provisória nº 922, de 28 de fevereiro de 2020, apontada por muitos como sendo uma minirreforma administrativa, autorizava à gestão pública a contratação temporária em diversos setores e, destaque-se, em muitos casos prescindindo de concurso público, além da terceirização irrestrita. Não obstante, sua vigência se estancar em junho de 2020, já se sentia seus efeitos na quantidade de contratações precárias realizadas nesse interstício, isto é, num período exíguo de quatro meses. Atualmente, diante dos trâmites para a aprovação dessa reforma administrativa, muitas são as discussões pertinentes ao tema, seja esclarecendo a sociedade acerca dos termos do projeto, seja amadurecendo a própria Emenda.   A reforma administrativa pretendida é de caráter amplo, segmentando-se, portanto, em três etapas. Constituída a primeira pela PEC, que traz alterações significativas do texto constitucional; a segunda consiste em um conjunto de medidas infraconstitucionais com Projetos de Leis Complementares (PLPs) e de Leis Ordinárias (PLs), cujos temas seriam a gestão e desempenho, consolidação de cargos, funções e gratificações, diretrizes de carreiras, mudanças nas formas de trabalho, arranjos institucionais, ajustes no estatuto do servidor. A terceira e última, inserida em um contexto mais amplo denominado Reforma Administrativa, viria em formato de Lei Complementar (PLP), regendo e regulamentando os direitos e deveres do novo serviço público e a governança remuneratória. Já salientamos, no início deste artigo, que a PEC nº32/2020 é apenas a primeira fase das três que englobam a chamada reforma administrativa brasileira, cujo tópicos serão detalhados nos próximos itens. A segunda fase, visando oferecer um serviço público de melhor qualidade e eficiência, contaria com a edição de um conjunto de leis complementares e ordinárias direcionados a reorganizar a gestão de pessoas e respectivo desempenho. Nesse estágio, dois outros projetos seriam contemplados: um no âmbito organizacional, a chamada modernização de formas de trabalho e, outro, que versaria sobre a atualização do Decreto-Lei 200/67. Por fim, em sua derradeira etapa, os cargos e as funções que não foram tratados de modo minucioso na atual emenda, bem como ajustes no estatuto do servidor com alterações na lei n. 8.112/90, seriam objeto de reforma em outros projetos de lei. Ainda nessa fase, – após a promulgação da PEC nº32/2020 -, seria editado um projeto de lei onde estariam incluídos o novo marco regulatório das carreiras, isto é, a política de governança remuneratória. Além do que, a elaboração de um possível novo código de ética dos servidores públicos e uma lei de greve específica para os trabalhadores no serviço público, são temas previstos por essa reforma. O amarro dessa tríade já vem sendo apelido de fase reformista, porquanto de sua aprovação resultará em outras propostas e mudanças de leis para alteração de outros dispositivos que englobam a administração pública, gerando um efeito cascata, como se vislumbra do fragmento abaixo. A primeira fase reformista corresponde à PEC n. 32/2020, que, se aprovada, desencadeará diversas outras propostas: (i) projetos de leis ordinárias para disciplinar, em síntese, os temas “gestão de desempenho”, “consolidação de cargos, funções e gratificações”, “diretrizes de carreiras”, “modernização das formas de trabalho”, “arranjos institucionais”, “ajustes do estatuto do servidor público” (segunda fase); (ii) projeto de lei complementar para tratar do que se tem denominado de “Novo Serviço Público” (terceira fase). Em pouco mais de 30 (trinta) anos de promulgação da Constituição Federal, a PEC n. 32/2020, caso aprovada, ensejará uma segunda “Reforma Administrativa” na atual era constitucional, após a Emenda Constitucional n. 19, de 4 junho de 1998. Contudo, a leitura do texto da PEC n. 32/2020 esclarece que seu objetivo é, na realidade, operar uma reforma gerencial no quadro e no regime de pessoal, não constituindo autêntica medida de reorganização ou de reestruturação administrativa.[2]   1.1     Justificativa A motivação que subsidia a reforma, transcrita abaixo, supostamente, ancora-se no comprometimento do orçamento público e o aumento com as despesas obrigatórias. No entanto, apesar dessa justificativa “moralizadora”, é preciso o contínuo debate e estudos quanto ao assunto, a fim de que a sociedade possa participar da escolha e reconhecer a melhor. Apesar de contar com uma força de trabalho profissional e altamente qualificada, a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, é a de que o Estado custa muito, mas entrega pouco. O país enfrenta, nesse sentido, o desafio de evitar um duplo colapso: na prestação de serviços para a população e no orçamento público. A estrutura complexa e pouco flexível da gestão de pessoas no serviço público brasileiro torna extremamente difícil a sua adaptação e a implantação de soluções rápidas, tão necessárias no mundo atual, caraterizado por um processo de constante e acelerada transformação. Torna-se imperativo, portanto, pensar em um novo modelo de serviço público, capaz de enfrentar os desafios do futuro e entregar serviços de qualidade para a população brasileira.[3]     Outro pretexto apregoado para suportar a emenda constitucional consiste na demanda por uma modernização da administração pública com a, consequente, dinamização dos serviços públicos prestados à população e garantia das condições financeiras e orçamentárias para existência do estado brasileiro.   Diversas são as propostas de renovações previstas pela Emenda Constitucional, na seara administrativa. A primeira grande alteração almejada pela PEC n. 32/2020 refere-se à inclusão de novos princípios aos já consolidados no atual artigo 37 da Constituição Federal pátria de 1988, que são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A modificação consistiria na inserção de novos fundamentos como inovação, transparência, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade, cuja versão passaria, então: Art. 1º A Constituição passa a vigorar com as seguintes alterações:   “Art. 37. A administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública, eficiência e subsidiariedade e […],[4]   Essa pretensão de agregar princípios inusitados ao já consolidados foi considera dispensável, quando não supérflua, ao funcionamento da máquina pública, sendo retirados pela comissão de cidadania e justiça e mantidos os princípios constantes do atual texto da Constituição Federal, em seu artigo 37. No que versa sobre princípio da boa governança pública, incluso no caput do Art. 37 da CF, seu objetivo consistiria em estimular uma cooperação maior entre os entes federativos, no sentido de dinamizar as relações de parceria entre os estados e municípios.   2.1  Modalidades de ingresso no serviço público Outra questão, objeto de reforma, atingiria diretamente o servidor público, no que diz respeito à redução de jornada de trabalho e de salários; e, em especial, quanto à forma de seu ingresso, que deixaria de sê-lo sob a égide do chamado Regime Jurídico Único (RJU) e passaria a ser substituído por cinco tipos de vínculos; consoante a seguinte versão: Nesse contexto, a reforma administrativa traz significativas alterações nas relações de trabalho no setor, inclusive no que tange à aplicação das formas de contratação e flexibilização do instituto da estabilização dos servidores. Em termos gerais, pode-se dizer que ela extingue o RJU e institui um novo regime que possibilita cinco vínculos distintos entre os servidores e a administração pública, que são: vínculo de experiência; cargo típico de Estado; cargo por prazo indeterminado; vínculo por prazo determinado; e cargo de liderança e assessoramento. Nos três primeiros, o ingresso é via concurso público e nos dois últimos por seleção simplificada, sendo que a estabilidade fica assegurada apenas aos ocupantes de cargos típicos de Estado, ainda a serem definidos em lei complementar.[5]   Dito isso, mister se faz o exame de cada uma das modalidades de vínculos, entre trabalhador e administração pública, propostas no teto da reforma, que são eles: Cargo típico de Estado, Cargo por prazo indeterminado, Vínculo por prazo determinado, Cargos de liderança e assessoramento, Vínculo de experiência. No que se refere ao vínculo Cargo típico de Estado, seu ingresso se daria por concurso público; sua posse, ocorreria após o término do vínculo de experiência, à semelhança do atual estágio probatório; sua estabilidade estaria garantida, e eventual demissão estaria condicionada ao processo disciplinar ou por insuficiência de desempenho. Note-se que, tais cargos seriam definidos posteriormente por lei complementar federal. No Cargo por prazo indeterminado, a forma de admissão e respectiva posse se daria da mesma maneira ao que sucede no Cargo típico de Estado, com a ressalva de que neste, o servidor não gozaria de estabilidade, podendo ser demitido por processo disciplinar, insuficiência de desempenho ou, ainda, por outros motivos a serem definidos em lei posterior. Dentre essas últimas possibilidades se enquadraria a obsolescência da atividade, caracterizada pela dispensabilidade do ofício executado pelo servidor; ou, ainda, quando o órgão fosse extinto; ou o serviço passasse à iniciativa privada por contrato de cooperação ou por meio da terceirização, Distintamente dos vínculos por Cargo típico de Estado e Cargo por prazo indeterminado acima discorridos, nos cargos de Vínculo por prazo determinado, o acesso respectivo se daria por processo seletivo simplificado, à semelhança das atuais seleções simplificadas. Esses cargos não seriam contemplados pela estabilidade, além de substituírem os atuais temporários. Por fim, nos Cargos de liderança e assessoramento, o ingresso se daria por processo seletivo simplificado e o trabalhador não gozaria de estabilidade. Dessa feita, o que se observa nesses dois últimos cargos – Vínculo por prazo determinado e de liderança e assessoramento – é que a administração pública seria dotada de maior liberdade em contratar quando do surgimento de situações temporárias, como por exemplo, o aumento da demanda de trabalho. Atente-se que a instituição dos cargos citados acarretaria tratamento idêntico nos três poderes, – Executivo, Judiciário e Legislativo -, resultando a extinção dos postos de chefia e assessoramento de baixa complexidade e responsabilidade, e, a consequente, substituição dos atuais cargos comissionados.   2.2  Vínculo de experiência Por fim, o cumprimento do vínculo de experiência estaria condicionado, segundo o texto da PEC em seu artigo 1º, à aprovação do candidato no concurso público de provas ou de provas e pontuações de títulos. Art. 1º A Constituição passa a vigorar com as seguintes alterações:   “Art. 37. …e, também, ao seguinte:   II – a investidura em emprego público depende de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, na forma da lei;     Assim, o vigente estágio probatório seria convertido em vínculo de experiência que se traduziria na segunda etapa do concurso público; sendo essa fase de caráter eliminatório, portanto sua reprovação implicaria na impossibilidade de admissão ao cargo. Destaque-se que, embora o vínculo de experiência seja condicionante para a posse ao cargo, sua duração vai depender deste, ou seja, para os cargos típico de estado o vínculo de experiência seria de dois anos e para os cargos com prazo indeterminado, seria de um ano. Contudo, em ambas hipóteses, apenas serão selecionados os candidatos com o melhor desempenho durante citado período de experiência, por força do artigo constitucional 37: Art. 1º A Constituição passa a vigorar com as seguintes alterações:   “Art. 37. …e, também, ao seguinte:   II-A – a investidura em cargo com vínculo por prazo indeterminado depende, na forma da lei, de aprovação em concurso público com as seguintes etapas: a) provas ou provas e títulos; b) cumprimento de período de, no mínimo, um ano em vínculo de experiência com desempenho satisfatório; e c) classificação final dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência;   II-B – a investidura em cargo típico de Estado depende, na forma da lei, de aprovação em concurso público com as seguintes etapas: a) provas ou provas e títulos; b) cumprimento de período de, no mínimo, dois anos em vínculo de experiência com desempenho satisfatório; e *CD203710783500* PEC n.32/2020 Apresentação: 03/09/2020 18:49 – Mesa c) classificação final dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência;[6]   Uma mudança significativa na investidura, refere-se à quantidade de candidatos aceitos em primeira etapa, isto é, o seu número seria superior ao das vagas disponíveis, sendo o critério da admissibilidade a aprovação na etapa vínculo de experiência, com base no melhor desempenho. Portanto, estaria eliminado aquele candidato reprovado nessa fase.   2.3  Desligamento do cargo Outra proposta de alteração conjeturada pela emenda, diz respeito à exoneração do servidor efetivo estável, disposta no artigo 2º da PEC. Aliás, sua redação se encontra calcada no artigo 41, § 1º, item I, quanto à exigência do trânsito em julgado da sentença para a destituição do cargo. Além do que, a decisão judicial proferida por órgão colegiado também se tornou motivo para a extinção do vínculo administrativo. Note-se, entretanto, que toda e qualquer decisão nesse sentido, deverá observar a avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, a fim de garantir a ampla defesa. Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)[7]     Ademais, a PEC sugere a regulamentação do desligamento por insuficiência, mediante lei ordinária, destituindo a lei complementar como via de normatização da matéria, presente no artigo 41 da Carta Magna pátria. Destaque-se que as regras de desligamento por insuficiência de desempenho aos ocupantes dos cargos exclusivos de Estado e por prazo indeterminado, só se aplicariam após o fim do vínculo de experiência e da efetivação no cargo.   2.4  Extinção de vantagens e benefícios Dentre os termos da nova proposta de emenda à Constituição há aquele que prenuncia a extinção de vantagens e benefícios, a partir de sua promulgação. Essa medida, por certo, impactaria os servidores das três esferas de governo, porquanto seriam suprimidos os seguintes privilégios: – Licença-prêmio, assiduidade, capacitação ou outra decorrente de tempo de serviço; – Aumentos retroativos por qualquer razão, inclusive fruto de negociação salarial; – Férias superiores a 30 dias, incluindo professores e outros cargos; – Adicional por tempo de serviço, independente de denominação; – Aposentadoria compulsória como punição; – Parcelas indenizatórias sem previsão legal; – Adicional ou indenização por substituição não efetiva (substituto que não exerceu as funções do titular efetivamente); – Redução de jornada de trabalho sem a correspondente redução de remuneração, salvo em caso de saúde previsto em lei; – Progressão ou promoção exclusivamente por tempo de serviço; – Incorporação à remuneração de quaisquer valores referentes ao exercício de cargos ou funções.    Os cortes de benefícios ocorreriam a partir da vigência das novas deliberações, o que autoriza inferir que servidores que já se encontravam em gozo de algum desses privilégios permaneceriam incólumes, quanto aos seus direitos, por força do princípio do direito adquirido. O projeto de reforma contemplaria, ainda, a institucionalização do regime de dedicação exclusiva para os servidores ocupantes de cargos típicos de estado, ou melhor, seria vedado a eles o exercício de qualquer outra atividade remunerada e, assim, manter-se-ia os direitos já adquiridos. Ressalta-se que essa determinação admite restrições, nos termos do o artigo 5º I, II e III, abaixo transcrito: Art. 5º Poderão manter os vínculos existentes na data de entrada em vigor desta Emenda à Constituição, se houver compatibilidade de horário e observado o disposto no art. 37, caput, inciso XI, da Constituição, os servidores e os empregados públicos que acumulem: I – dois cargos ou empregos públicos de professor; II – um cargo de professor com um cargo técnico ou científico; ou III – dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.[8]   Os limites acima referidos são dirigidos aos servidores de cargos típicos, portanto, a contrário senso, todos os outros que não se enquadrassem nessa categoria estariam isentos. Dessa feita, aos ocupantes dos demais tipos de cargos seriam permitidos a acumulação de funções gratificadas, desde que observadas duas situações: a compatibilidade de horários e a inexistência de conflito de interesses.   2.5   Estabilidade dos futuros servidores Por força dessa emenda constitucional, o usufruto da estabilidade pelo servidor estaria sujeito à prática de dois anos de vínculo de experiência, além de um ano de exercício no cargo, perfazendo três anos laborais obrigatórios No que se refere àqueles ocupantes de cargos por prazo indeterminado, o risco de demissão seria cambiante, visto que estariam subordinados à ocorrência de qualquer destas hipóteses: privatização do serviço ou sua terceirização, resultando na extinção do órgão, incorporação ou fusão. Os locados em cargos por prazo determinado observariam as mesmas determinações a que submeteriam os servidores de cargos por prazo indeterminado, isto é, sua demissão ocorreria a partir do momento em que o serviço passasse a ser terceirizado, privatizado, ou o cargo considerado obsoleto pelo gestor ou, ainda, o órgão extinto, transformado, incorporado ou fundido. Destaque-se que a exoneração do servidor estaria dependente ao cumprimento de certos requisitos, consoante relato acima, como a existência prévia de sentença condenatória transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, além da avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, para garantir a ampla defesa. Na hipótese de invalidação da demissão por sentença judicial, o servidor estável seria reintegrado ao serviço público, independentemente da existência da respectiva vaga, como se depreende dos dispositivos abaixo: Art. 2º Ao servidor público investido em cargo efetivo até a data de entrada em vigor do regime jurídico de que trata o art. 39-A da Constituição é garantido regime jurídico específico, assegurados: I – a estabilidade, após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório; II – a não aplicação do disposto no art. 37, caput, inciso XXIII, alíneas “a” a “j”, da Constituição na hipótese de haver lei específica vigente em 1º de setembro de 2020 que tenha concedido os benefícios ali referidos, exceto se houver alteração ou revogação da referida lei; e III – os demais direitos previstos na Constituição. § 1º A avaliação de desempenho do servidor por comissão instituída para essa finalidade é obrigatória e constitui condição para a aquisição da estabilidade. § 2º O servidor a que se refere o caput, após adquirir a estabilidade, só perderá o cargo nas hipóteses previstas no art. 41, § 1º, incisos I a III, e no art. 169, § 4º, da Constituição.[9]   Durante o processo de instauração da PEC, – promulgação e implantação do novo regime -, a obtenção da estabilidade no serviço público estaria vinculada ao cumprimento de três anos de efetivo exercício do cargo, bem assim da avaliação positiva do estágio probatório, por uma comissão instituída com essa finalidade. O artigo 1º da PEC dispõe sobre a avaliação de desempenho, ressaltando a proibição da dispensa do servidor por motivos políticos ou partidários e determina sua regulamentação. Aliás, a ausência de regulamentação respectiva se estende à perda de cargos de experiência, por prazo determinado, por prazo indeterminado, e dos cargos típicos de Estado, antes de adquirida a estabilidade.   As reformas trazidas até aqui reportavam-se, precipuamente, à figura do servidor público concursado ou contratado. Contudo, o presente tópico refere-se à função de Presidente da República. A propósito, este um dos pontos mais polêmicos da reforma administrativa, tratado em sua primeira etapa pela PEC nº32/2020, diz respeito ao aumento de poderes conferidos ao Presidente da República. Por essa via, o chefe do Executivo estaria autorizado a proceder reformas na organização administrativa do Estado por meio de decreto, desde que não acarretasse aumento de despesas, ou seja, a alteração não atingisse nem resvalasse a seara financeira. Ao presidente seria outorgado o direito de fundir ministérios diretamente subordinados a ele, extinguir ou fazer modificações nas entidades autárquicas e fundacionais, transformar cargos de ministro de Estado, extinguir cargos públicos vagos. Aliás, esses seriam alguns dos poderes a ele adicionados. Sobre essa questão, os defensores da PEC entendem ser essa extensão de autoridade apenas uma autonomia organizacional, tópico pontual de reforma do artigo 84, VI, da CF, que concederia soberania para deliberação por decreto, a fim de: – Transformar cargos, quando vagos, mantida a mesma natureza do vínculo; – Reorganizar atribuições de cargos do Poder Executivo; –  Extinguir órgãos; – Extinguir cargos (efetivos ou comissionados, ocupados ou não), funções e gratificações; – Reorganizar autarquias e fundações; – Ampliar as possibilidades para que os órgãos públicos possam fazer contratualização por desempenho e metas, incluindo no art.37, § 8º, CF: – Possibilitar contratação de pessoal temporário com recurso próprio; – Realizar procedimentos específicos para a contratação de bens e serviços; – Proceder à gestão das receitas e patrimônio próprios; – Promover a avaliação periódica das metas de desempenho; e – Ensejar a transparência e prestação de contas do contrato.   Essas prerrogativas se estenderiam ao ente público, cuja independência e liberdade seriam mais amplas, visto que a ele seria permitido promover alterações sem a anuência do órgão superior respectivo; além do mais lhe seria autorizado a promover a substituição de serviços que poderiam ser prestados, inclusive, por servidores públicos.   Conclusão Das diversas literaturas que versam sobre a Emenda 32/20, algumas reflexões merecem ser feitas, principalmente, no que versa sobre a admissão, estabilidade e garantias a que os novos servidores –  Cargo típico de Estado, Cargo por prazo indeterminado, Vínculo por prazo determinado, Cargos de liderança e assessoramento, Vínculo de experiência -, estariam sujeitos. E, em contraposição, é significativa, senão, preocupante, a expansão de poderes à função de Chefe do Executivo, por meio de Decretos. Dessarte, sobre as alterações propostas envolvendo os servidores públicos e seus respectivos ingressos mediante concursos públicos, percebemos, de um lado, a pouca garantia quanto a sua permanência, em face de uma possibilidade sempre presente de demissão por critérios dos mais diversos, tais como a obsolescência, extinção, privatização, fusão de órgãos, desnecessidade da atividade. Fatores, que por certo, gerariam um sentimento de insegurança. De outro, a admissão de candidatos mediante processo seletivo simplificado poderia resultar no comprometimento da eficiência e qualidade na prestação do serviço, tão caras à administração pública. No que diz respeito, ainda, à Emenda, constatamos que tais reformas não atingiriam Membros do Poder Maior, ou seja, a eles não seriam retirados ou limitados seus direitos, vantagens e benefícios. Essa benesse contemplaria os magistrados no Judiciário, parlamentares no Legislativo, procuradores e promotores no Ministério Público, Presidente da República, Vice-Presidente da República, Ministro de Estado, Governador, Vice-Governador, Prefeito, Vice-prefeito, nos Executivos. Das questões abordadas, depreendemos que as medidas propostas foram de caráter questionável, privilegiando alguns em detrimento da camada majoritária de servidores públicos, embora estes tão relevantes e necessários para a eficiência da gestão pública.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/reforma-administrativa-brasileira-pec-n-32-2020-medidas-propostas-na-seara-da-organizacao-administrativa/
O Dever de Motivação na Responsabilização do Agente Público por Improbidade Administrativa: Impactos da Lei 13.655/2018 e da Lei 14.230/2021
O artigo buscou demonstrar que a responsabilização do agente público por improbidade administrativa está jungida ao dever de motivação, com esteio em princípios, na legislação constitucional e na legislação infraconstitucional, que penalizam o dolo e o erro grosseiro. O método indutivo foi utilizado como método de abordagem. O método comparativo foi trabalhado como método de procedimento. E como técnica de pesquisa, a análise foi desenvolvida a partir da técnica de pesquisa bibliográfica e documental no ramo de conhecimento do Direito Constitucional, Direito Administrativo e do Direito Comparado.
Direito Administrativo
Introdução A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB foi alterada pela Lei 13.655/2018, introduzindo uma atualização da forma pela qual haveria de serem interpretadas as normas de direito público. O controle interno e externo dos atos do poder público e consequentes responsabilidades, por vezes, interpretadas de forma legalista/ taxativa sem que pudessem ser examinadas as circunstâncias pelas quais permearam atos de administração e sem que fossem verificados motivos determinantes, das reais necessidades e reservas possíveis de atuação, que, não dissociadas servissem de azo para o efetivo controle administrativo. Além disso, foram almejados objetivos para compatibilidade constitucional e interpretação do direito público, patrocinando eficiência e segurança jurídica com fim de evitar a nulidade dos atos administrativos.   A Lei 14.230/2021 estabeleceu novas regras para os processos por improbidade administrativa. Assim, são considerados atos de improbidade administrativa aqueles que causam enriquecimento ilícito do agente público, lesão ao erário ou violação dos princípios e deveres da administração pública. A principal inovação é que a improbidade só pode ser caracterizada quando há comprovação de dolo do gestor. Ou seja, quando fica provado que há intenção maliciosa, e não apenas imprudência, negligência e imperícia. A Lei 8.429/1992, originária da Lei de Improbidade Administrativa, encontra fundamento de validade no § 4º do artigo 37 da Constituição Federal. A improbidade administrativa depreende o que é contrário à honestidade, à boa-fé, à honradez, à correção de atitude. O ato de improbidade, nem sempre será um ato, poderá ser qualquer conduta comissiva ou omissiva praticada no exercício da função ou fora dela encontrando-se regulado na Lei 8.429/92, quanto ao enriquecimento ilícito (art. 9º), danoso ao erário (art. 10) e violação aos princípios da Administração (art. 11). Em direito administrativo, a licitude, corresponde ao requisito de validade do ato, sendo fundamental a finalidade e moralidade públicas, cujo ato, tornando incompatível com o ordenamento jurídico (inadequado) permite o controle dos atos da Administração, diante de sua vinculação, não tratando de simples ato discricionário. A inadequação do ato é demonstrada, legalmente, também, quando da Lei de Ação Popular, que, mesmo sendo de caráter discricionário quanto ao motivo (móvel) perde suporte de validade ao disposto no artigo 2º, da Lei 4717/1965 a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido. O ato de improbidade administrativa é conceituado por BERTONCINI (2018): “Considera-se ato de improbidade administrativa para os fins do art. 37, § 4.º, da Constituição Federal, e de sua Lei de regência (8.429/92), as condutas de qualquer agente público contrárias diretamente aos princípios da finalidade, publicidade, do concurso público, da prestação de contas e da licitação, bem como a violação de segredo e a prevaricação, independentemente de qualquer resultado material, e os comportamentos prescritos na lei (regras), que produzam os resultados prejuízo ao erário e enriquecimento sem justa causa do agente e ou do terceiro, ensejando tais procedimentos, normalmente dolosos e excepcionalmente culposos, marcados pela violação do princípio da moralidade, responsabilização sujeita a um regime jurídico próprio, autorizador da aplicação proporcional das sanções pertinentes e compatíveis de perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios fiscais ou creditícios, independentemente das instâncias administrativa, criminal, civil e política, tendo em vista a concretização do projeto constitucional de probidade na Administração Pública”. Com efeito, o artigo 10 da Lei 8.429/1992, até a sua mudança, que cuida dos atos de improbidade administrativa, que causam lesão ao erário, corresponde a única modalidade de ato de improbidade que permitia a punição de agentes públicos na modalidade culposa. Em conformidade com o disposto no artigo 28 da LINDB teria acabado essa possibilidade, de modo que eles passariam a responder apenas quando agissem dolosamente, restando assim impunes na modalidade culposa. Diante desses elementos, necessária se fez a construção das questões propostas utilizando-se o método dedutivo para análise legal, sistemática e finalística dos diplomas que associam a compreensão do estudo.   Tem-se que o dever de motivação é pressuposto do Estado de Direito, constituindo um necessário instrumento do controle da atividade jurisdicional, na esfera processual é na motivação que o juiz presta contas do exercício do poder jurisdicional, demostrando às partes, aos tribunais e reflexamente aos casos parelhos a ratio decisória. O dever de motivação é fundamental para a ascensão da tutela de segurança jurídica, onde expande a jurisdição em decorrência de sua função, aclarando a ratio quando da materialização da congruência entre as normas e os fatos que a embasam, de forma argumentativa de que tratam as alterações da LINDB e sua regulamentação. Nesse sentido, tratou a regulamentação da LINDB com o advento da Lei 13.655/2018 e do Decreto 9.830/2019, em relação aos pilares de: motivação e decisão, revisão e decisão na invalidação, revisão quanto à validade por mudança de orientação geral, nova interpretação de normas de conteúdo indeterminado, regras de transição, termo de ajustamento de gestão, responsabilização do agente público, dos novos instrumentos de pacificação e da segurança jurídica na aplicação das normas. Imbuído nessas matérias estão os princípios da consequência prática, consequência jurídica, da reserva do possível e da segurança jurídica e a modulação de efeitos. Por certo, a motivação compreende o dever do julgador e uma das mais importantes garantias do devido processo legal, posto ser indispensável ao controle e a legitimação da atividade judicial e administrativa essa instrumentalizada a partir do Decreto em obediência ao disposto no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal. Diante disso, desde a promulgação da Lei 13.256/2015 (Código de Processo Civil), dá nova interpretação ao dever de motivação das decisões, o qual estabelece, de forma bastante detalhada, o que é motivar adequadamente uma decisão judicial (artigo 489, § 1º e § 2º). A justificativa do estudo, conforme destaque, é a interpretação e destaque das novas disposições legais a necessária sistematização entre as normas: disposições processuais civis, a Lei 13.655/2018, o Decreto 9.830/2019 e a Constituição Federal. O Código de Processo Civil, no que concerne à matéria, expôs situações em que a decisão não será fundamentada garantindo um provimento de maior qualidade (artigo 489, § 1º e 2º). Desta senda, mostra-se preciso resguardar o devido processo constitucional, permitindo um maior controle contra arbitrariedades, subjetivismos e abuso de poder. Por essa medida justifica-se a questão se as normas disciplinadas na LINDB estão em conformidade com o dever de motivação do julgador disciplinadas no Código de Processo Civil. Talvez por uma decorrência lógica e sistemática, o Código de Processo legitima o interesse processual de aclarar decisão por base por base do artigo 1.022, parágrafo único, II. A conectividade da legislação processual e civil para com a LINDB representa constitucionalização das relações civis, compreendendo interpretação máxima de nova leitura dos instrumentos legais e disso se extrai do artigo 8º do Código de Processo Civil, ao indicar dignidade da pessoa humana, observação da proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e eficiência. Desta premissa, o artigo 1º do Código de Processo Civil nos revela que, o direito processual civil será ordenado, disciplinado e interpretado à luz da nossa atual Constituição Federal. A partir daí a interpretação do direito com reflexo processual não passa ser mais subjetiva e sim imperativa com base na tutela de segurança. Está é uma das formas de ver o que HESSE (1991) chama de força normativa da Constituição, refutando a assertiva de que a Constituição jurídica só possui capacidade de regular e de motivar uma vez que seja compatível com a Constituição real. Nesse sentido, a Constituição escrita possui força normativa própria, daí o título de seu livro. Com isso, ao afirmar que tal negação do direito constitucional irá negar também o seu valor enquanto ciência jurídica, uma vez que o Direito Constitucional é ciência normativa, não sendo, portanto, uma ciência da realidade, tal como ocorre com a Sociologia e a Ciência Política, muito embora as cortes supremas tenham a faculdade de conferir as leis interpretação conforme a carta política. Tecnicamente, o inciso I do artigo 489, § 1º do Código de Processo Civil impõe que o magistrado demonstre a correlação dos fatos com suporte fático do ato normativo, já o inciso II, exige a justificação da utilização de conceitos jurídicos indeterminados. O caput do artigo 489 por sua vez, trouxe inovação da identificação do caso aos elementos da sentença, não considerando fundamentada decisão que não explicar relação com causa e a questão decidida, motivos justificadores de outra decisão, que não enfrentar todos os argumentos deduzidos, não indicar enunciado jurisprudencial que não identifique a causa e não usar os julgamentos majoritários sem o uso do distingue-se. A reflexão perante o questionamento perpassa, justamente, pela correlação do disposto no inciso IX do artigo 93 da CF, lembrando a base da constituição real, que, a decorrer de sua inobservância, confere nulidade a decisão. Assim, parece prudente entender que o julgador tem necessariamente que expor os motivos que o levou a entender de que modo às provas confirmam os fatos alegados nos autos. Em mesma senda o Decreto regulamentador da LINDB inova ao tratar da necessidade de motivação de decisões baseadas em valores abstratos. O Decreto regulamentador da LINDB determinou a necessidade de a decisão ser motivada com a contextualização dos fatos, quando cabível, e com a indicação dos fundamentos de mérito e jurídicos, contendo em seus fundamentos a congruência entre as normas e os fatos que a embasaram de forma argumentativa, normas, a interpretação jurídica, a jurisprudência ou a doutrina que a embasaram. A lei processual civil, no artigo 489, §1, do Código de Processo Civil que dispõe: não será considerada fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acordão, que: II empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso. Além disso, o inciso V, do artigo 489, §1º, exige racionalidade no uso de precedentes pelo julgador, buscando impedir a citação indiscriminada de emendas de julgados que muitas vezes são impertinentes ao caso concreto. O Enunciado 307 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) elenca a nulidade da sentença e da teoria da causa madura, nos seguintes termos: “307: (Arts. 489, § 1º, 1.013, § 3º, IV) Reconhecida à insuficiência da sua fundamentação, o tribunal decretará a nulidade da sentença e, preenchidos os pressupostos do § 3º do art. 1.013, decidirá desde logo o mérito da causa. (Grupo: Competência e invalidades processuais)”. Nessa linha parece ter caminhado o legislador na ordenação das regras gerais civis quando da elaboração de dispositivos não só para permitir o motivo justificador da decisão tomada pelo administrador como a evitar nulidades dos atos. O legislador civil com base nas alterações além de preocupar com a fundamentação do caso concreto destacou que quando da indicação do cumprimento de obrigações decorrentes da sentença, há necessidade do decisor apresentar quando possível consequências realizáveis, empregando operabilidade e materialização. Desta feita, entende-se ter havida regulamentação da exegese da motivação para o administrador público como ao julgador processual civil quando da alteração do Código de Processo Civil, em sintonia com o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Com efeito, a máxima da proporcionalidade é verificada pelos critérios da adequação do meio utilizado para a persecução do fim, necessidade desse meio utilizado e a aplicação estrito senso da proporcionalidade, isto é, da ponderação. Por essa situação em vertente do direito material, estando diante de uma colisão entre direitos fundamentais, utiliza-se um meio, verificando o uso deste, solucionando a colisão por uma ponderação. Em diversos casos, contudo, não se reconhece a existência de nulidade, nem as pronuncia em vista de um juízo de proporcionalidade relativo a efeitos práticos. Em algumas situações, o desfazimento do ato administrativo poderia gerar efeitos muito mais nocivos do que a sua preservação. De outro modo, em medida de controle externo, acentua-se controle com a prospecção de efeitos, com marco de início quando da chegada do processo no Tribunal de Contas, conforme Tema 445 do Supremo Tribunal Federal. Nesses termos, em sendo realizado controle deste, atribui-se o marco de 05 (cinco) anos em respeito à segurança e confiança legítima de aposentados e pensionistas conforme Súmula Vinculante 03 do Supremo Tribunal Federal. Para evitar risco de nulidade o legislador determinou a necessidade congruência entre as normas e os fatos que embasaram de forma argumentativa, levando a construção da subsunção do fato à norma para controle do processo pelas partes acerca dos fundamentos da decisão. Quanto ao fundamento baseado em notas técnicas, pareceres, informações e decisões atestou facultatividade ao julgador somente sob esse prisma, compreendendo critério acessório e estepe de fundamentação. Além da fundamentação, o legislador exigiu do agente público a necessidade de quando da tomada das decisões, sejam observadas as consequências práticas sempre que a questão versar valores jurídicos abstratos. Processualmente falando, podemos utilizar esse ordenamento para fomentar antecipação e operabilidade prática de um direito em casos em que, a realização de perícias, afira se há reflexo da aplicação da norma ao caso concreto, cuja perpetuação e postergação da lide, esperando o término do processo de conhecimento, leve a triste situação de casos de procedência da lide sem liquidez na face de execução, como no caso de reajustes e aplicação de índices de atualização monetária, cuja sentença, vulgarmente falando, se torne negativa. No que tange a nulidade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa a lei exige que o administrador público indique de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Em medida de cautela administrativa instituiu o legislador a necessidade de quando da interpretação de normas gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. De igual sorte, circunstâncias práticas quanto à regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. Nesse prisma me parece ter sido legalizada a reserva do possível.  O princípio da reserva do possível surgiu na Alemanha, em 1972, fruto de uma ação impetrada por alunos que pleiteavam o direito de ingresso na Universidade Pública, no curso de medicina. A alegação utilizada para justificar tal direito foi baseada na Lei Fundamental Alemã em seu artigo 12, I, onde estabelece que, todos os alemães têm o direito de livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional. De forma explicativa MATTA (2006), descrevendo o princípio e sua relação com a proporcionalidade: “Entre essas duas reservas do possível a fática e a jurídica deve caminhar o administrador público na busca para tornar sua ação a mais eficiente possível. Observados os limites materiais e as imposições jurídicas, deve o administrador ponderar dentre as diversas alternativas possíveis àquela que promove o melhor custo-benefício. Nesse balanço entre bônus e ônus, entram não apenas os recursos financeiros em si, mas toda a gama de interesses coletivos e individuais afetados pela ação administrativa. Em decorrência da revisão quanto à validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos cuja produção de efeitos esteja em curso que tenha sido concluída ou de orientação geral levará em consideração as orientações gerais da época. Assim, no tocante as regras objeto de mudança o estabelecimento de uma regra de transição”. Além disso, a legislação estabelece mecanismos como o de compensação evitando a litigiosidade de interesses e maiores responsabilidades entre as partes. Na hipótese de a autoridade entender conveniente para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público, poderá celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, após oitiva do órgão jurídico, realização de consulta pública, caso seja cabível na presença de razões de relevante interesse geral. A decisão que celebra o compromisso será também motivada com a congruência entre as normas e fatos. O compromisso tem por fim buscar a solução proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais e não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecido por orientação geral; prevendo a obrigação das partes, o prazo e o modo para cumprimento, forma de fiscalização quanto a sua observância, os fundamentos de fato e de direito, tendo eficácia de título executivo extrajudicial e tratando as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. O processo administrativo que subsidiar a decisão de celebrar compromisso será instruído com pareceres técnicos conclusivos: do órgão competente sobre a viabilidade técnica, operacional e, quando for o caso, sobre as obrigações orçamentário-financeiras a serem assumidas, do órgão jurídico sobre a viabilidade jurídica do compromisso, contendo a análise da minuta proposta, a minuta do compromisso, as alterações decorrentes das análises técnica e cópia de outros documentos que possam auxiliar na decisão de celebrar o compromisso. Além disso, a edição de atos normativos por autoridade administrativa poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico. A convocação de consulta pública conterá a minuta do ato normativo, disponibilizará a motivação do ato e fixará o prazo e as demais condições. ISSA (2015) nos traz exemplo de um modelo que emprega as manifestações dos interessados: “A agência reguladora deverá analisar todas as manifestações ofertadas pelos interessados, com exposição motivada a respeito da opção adotada, tendo em vista que nada adiantaria estabelecer-se um procedimento amplo e com participação de diversos interessados, se a agência viesse posteriormente a selecionar as manifestações sobre as quais irá tecer comentários. Os atos normativos sujeitos à regra do artigo 29 são aqueles editados por autoridade administrativa que tenha caráter geral e abstrato como regulamentos, resoluções, circulares e portarias que afete o direito dos particulares de todas as Administrações direitas e indiretas, bem como órgãos que, embora não recebam o nome de agência, regulam setores específicos (CVM, BACEN, IBAMA etc.)”. Com isso, conclui-se que as normas disciplinadas na LINDB estão em conformidade com o dever de motivação do julgador disciplinadas no Código de Processo Civil.   A forte atuação dos agentes públicos nos Tribunais de Contas no controle externo, em especial na crescente profissionalização e especialização dos Tribunais gerou uma mudança de postura na gestão pública. A crescente especialização tem demonstrado cuidado dos gestores para com o desempenho das atividades e iluminado o legislador a exigir a motivação de atos e aferição de consequências. No entanto, são complexas as situações de atuação dos gestores na utilização de recursos públicos, especialmente em um país de diversas realidades diferentes a depender das regiões, o que passou levantar diversas discussões acerca da apuração e responsabilização dos agentes públicos a proporção dos meios e fins, fatores reais, condições atuais, lendo-se obstáculos e dificuldades. Perante a nova disposição da LINDB, o agente público, somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções. Perante a lei, considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. Pietro, comentando o então artigo 27 do Projeto de Lei do Senado Federal nº 349/2015 atual art. 28, entendeu que o dispositivo tem por objeto acabar com a controvérsia quanto à responsabilização profissional, especialmente dos advogados públicos, pela opinião técnica ou jurídica que emitem para dar embasamento a uma decisão adotada no âmbito da Administração Pública. Apenas em caso de dolo ou erro grosseiro tais agentes poderiam ser responsabilizados. O erro grosseiro está intrinsecamente ligado a um agir com desleixo, incúria, desmazelo, desprezo à coisa pública, o que, aparentemente, ultrapassa a mera questão da análise da delegação de competências e de sua culpa in vigilando e da culpa in eligendo. A apuração do erro do administrador necessariamente precede da apuração de processo administrativo específico, sendo que nem sempre a causalidade entre a conduta e o resultado danoso implicará responsabilização, exceto a própria comprovação de dolo ou erro grosseiro, independente do dano ao erário conforme a LINDB. A caracterização do dolo e erro grosseiro também se fazem necessários para a responsabilidade do agente público quando da sua opinião técnica de mesma sorte quando a culpa in vigilando. Desta feita, a decisão que atribuir a responsabilidade do agente deverá considerar: A natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública; as circunstâncias agravantes ou atenuantes; os antecedentes do agente; o nexo de causalidade e a culpabilidade do agente. Por decorrência das novas disposições legais, dúvidas surgirão acerca da expressão do dolo e erro grosseiro diante do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal. A lei geral, por diretriz de seu conteúdo garante a permanência da lei anterior. Talvez por esse motivo tenha sido editada a Lei 14.230/2021, para atender as especificidades ao conteúdo da LINDB no tocante a necessidade de dolo no caso do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa, justamente porque compreendem prejuízo ao erário, cuja essência da LINDB dissocia a culpa para aferição da responsabilidade conquanto presente o dolo. Desta feita, a necessidade da análise das questões objeto de apreciação: Se as normas disciplinadas na LINDB, no tocante a limitação por dolo ou erro grosseiro estão em conformidade com a Constituição Federal, e se a LINDB motivou o legislador à elaboração da Lei 14.230/2021, que dispõe sobre improbidade administrativa. O dispositivo Constitucional ao versar acerca da responsabilidade do agente público não excepcionou a modalidade se por dolo ou culpa, o que traz para nós reflexão acerca da necessidade de responsabilização somente quando da prova dolo de que trata a LINDB e agora a Lei 14.230/2021, em todas as hipóteses de improbidade administrativa e não somente as descritas nos artigos 09 e 11 do dispositivo. Recentemente, tivemos o afastamento de responsabilidade de agente público por culpa in elegendo quando da aplicação do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa, o que parece já ser uma sinalização de mudança de paradigma no tocante as mudanças legislativas objeto de análise, muito embora a fundamentação tenha permeado pela aferição da culpa, mesmo atribuída suposta intenção correspondente à aferição do dolo. Em medida de hermenêutica e escala das regras jurídicas não é de ser atribuída análise das leis pela antinomia, vez que a Constituição Federal prevalece, seja pelo critério da especificidade, seja pelo critério da hierarquia. Pela leitura do ordenamento jurídico constitucional disciplinado no § 6º do artigo 37, quando da responsabilização objetiva, há independência da mensuração da culpa do agente. Com base nessa limitação restaram correntes discussões acerca da extensão e constitucionalidade do dispositivo supra em face do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal, dispositivo que deixa certa a responsabilidade da Administração de forma objetiva, ou seja, sem a imputação ao lesado de comprovar a culpa da administração, limitando-se a atestar o elo entre o fato lesivo à causa e aquele que implique a violação de direitos e causador do dano efetivo, sem prejuízo da ação regressiva, se o caso. A responsabilidade objetiva, porém, independe da verificação de espécies de culpa, em destaque ao que aponta BELMONTE (2020): “São requisitos da responsabilidade objetiva: a) o desenvolvimento habitual de atividade de risco ou previsão legal específica, b) dano patrimonial ou extrapatrimonial; c) relação de causalidade entre a lei e o dano. No entanto, as especificidades de atos, ditos ímprobos, excepcionam a desnecessidade da comprovação da culpa, como regra geral e atribuem às questões a que são peculiares, à sobreposição do dolo a culpa, não somente as hipóteses disciplinadas nos artigos 9º e 11 da LIA, como agora em simetria às hipóteses do artigo 10 da respectiva lei o que já vinha sendo sinalizado pelo STF. Outrora, também, o STJ quando da análise da aplicação do artigo 71 da Lei de Licitações de contratos administrativos, quando da ADC 16, quanto à culpa pela omissão, permeado ao dever de fiscalização, tal qual objeto do julgamento do Recurso Especial 1.713.044/SP”. No que tange a responsabilidade do tomador de serviços, o TST reputa responsabilidade deste pelos atos de seus prepostos diante da ausência de fiscalização na prestação de serviços. Desta feita, o retrato acerca da importância da culpa para a prestação de serviços decorrentes da intermediação de mão de obra não é idêntico ao mais, quando da presença de atos de improbidade administrativa decorrente do artigo 10 da lei de improbidade recentemente promulgada e ao que aos atos administrativos gerais de que trata a LINDB. Não o bastante, a questão também perpassa pela análise acerca da invasão da competência judiciária ou administrativa, sob pena de ser violado o princípio constitucional da tripartição dos poderes. Sendo assim, necessário refletir se as mudanças legislativas indicativas de atribuição de responsabilidades e com a ideia de irresponsabilidade do agente por mera culpa no espectro da lei de improbidade administrativa, perquirindo-se a mens lege para fiel atendimento ao bem comum, em atenção aos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação, intimamente ligados ao caso em estudo.   Conclusões O direito segue aos reclamos judiciais que desafiam aos tribunais interpretar as normas, aplicá-las aos casos concretos, modulando efeitos de sua aplicação. A elaboração da LINDB deixou certa a necessidade de transparência dos atos administrativos, a motivação dos atos e mensuração das consequências práticas quando da interpretação, decisão, elaboração de atos, tomada de opiniões, materialização de compromissos, adotando responsabilidade a eles por dolo ou erro grosseiro. Capitaneada por esse fim, inobstante critério atemporal, a mais Alta Corte do país sedimentou a mesma interpretação ultrapassando ao que era decidido acerca da responsabilidade omissiva da Administração Pública por culpa, quando do julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 16, no julgamento do Recurso Especial 1.713.044/SP. Acompanhando a mesma tendência jurisprudencial, o legislativo conferiu paridade da necessidade de dolo para todas as hipóteses de improbidade administrativa em aversão à culpa in elegendo e in vigilando peculiares aos precedentes que deram ensejo a confecção da Súmula 331 do TST. Assim, conclui-se que as normas disciplinadas nas alterações legislativas, no tocante a limitação por dolo ou erro grosseiro recebem tratamento diferenciado ao que consta da Constituição Federal, dada especialidade da Lei de Improbidade Administrativa e da LINDB, em harmonia à inovação da ordem jurídica pela Lei 14.230/2021 – de forma que a responsabilização do agente público deverá estar sempre jungida ao dever de motivação, após exercício do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-dever-de-motivacao-na-responsabilizacao-do-agente-publico-por-improbidade-administrativa-impactos-da-lei-13-655-2018-e-da-lei-14-230-2021/
Intervenção do Estado no Domínio Econômico: Repressão ao Abuso do Poder Econômico
O objetivo deste artigo é realizar uma análise sobre a repressão do Estado ao abuso do poder econômico, a qual se embasa no §4º, art. 173 da Constituição Federal de 1988. Destarte, utilizou-se o método de abordagem dialético, dado que trata-se da melhor forma de atingir os objetivos do artigo de elucidar um tema de extrema relevância social. Além disso, por meio da metodologia bibliográfica, serão verificados os impactos desta redação constitucional na estrutura do Estado, se sua interação com as demais leis atinge o objetivo esperado. Em outras palavras, será feita a análise da eficácia da referida lei, analisando se o método utilizado é o que melhor atende ao interesse público. Serão apontadas as falhas e como ocorrem, além de um estudo do porquê a proibição do aumento arbitrário dos lucros em momento de calamidade pública pode acabar por ter o efeito contrário, sendo ainda prejudicial para a população.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO  O objeto do presente trabalho é a função do Estado de repressão ao abuso do poder econômico, que integra o rol de situações em que a Constituição Federal autoriza a intervenção do Estado no domínio econômico.  Neste sentido, o foco do trabalho é fazer uma análise da influência do Estado na formação de monopólios privados, o que deveria ser defeso conforme o art. 173 da Constituição Federal (1988). Ainda, será tratado como o Estado acaba por ser a gênese da dominação do mercado, através de concessões de privilégios monopolistas, que podem ser feitos através de forma direta, atribuindo vantagens a determinadas empresas de maneira aberta, levando a exclusão de concorrentes, ou de maneira indireta, mascarada como penalidade aos rivais, e justificada como sendo favorável ao bem-estar geral.  O referido artigo 173 da Constituição Federal de 1988 dispõe o seguinte:    ‘’Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. […] § 4.º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros’’ (grifo nosso).    Neste sentido, recorremos à Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, que regulamenta a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Consoante o art. 1º, cabe ao CADE a repressão ao abuso do poder econômico, isto é, definir se houve a existência de abuso do poder econômico, e em caso positivo, cominar sanções aplicáveis.  O artigo 5º do mesmo dispositivo legal separa a estrutura interna do CADE em três órgãos: Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, Superintendência-Geral e Departamento de Estudos Econômicos. Todos, concomitantemente, possuem o dever de fiscalizar e prevenir abusos do poder econômico. Ressalta-se que um tópico abordado no trabalho — a regulação de preços — não possui sua competência atribuída a autarquia, conforme consta no próprio site do CADE.  O estudo ainda abordará a parte do §4º do artigo 173 da Constituição Federal, a partir de uma análise conjunta com o artigo 39 da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990 (que versa sobre a proteção do consumidor) e seus efeitos. Com isso, se pretende chegar a conclusão de que pode gerar um haver um efeito contrário ao esperado pela lei, já que, ao determinar a repressão ao aumento arbitrário dos lucros, pode acabar por refletir em consequências negativas a população.  Destarte, utilizou-se o método de abordagem dialético, dado que trata-se da melhor forma de atingir os objetivos do artigo de elucidar um tema de extrema relevância social. Além disso, por meio da metodologia bibliográfica, serão verificados os impactos desta redação constitucional na estrutura do Estado, se sua interação com as demais leis atinge o objetivo esperado.    Os monopólios naturais criados pelo Estado são imputados de coerção, porque, através de leis julgam-se de forma diferente os atos que são ambíguos, usando como critério não o que se efetua, mas sim quem o faz, por exemplo, a venda de petróleo no mercado interno brasileiro só é permitida ser realizada por aqueles que receberam o aval legal, caso um fornecedor busque atender um cliente disposto a comprar seu produto o indivíduo será tolhido de seu direito em alocar a sua propriedade, seu capital e de trocá-lo por petróleo por conta de um decreto que o marginaliza.     Conforme elucidado por Murray Rothbard (1970, p. 101) em seu livro Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal, ‘’o necessário para abolir o monopólio é que o governo anule as próprias criações’’. Isso se dá, pois, o governo tem poder de proibir a produção e/ou comercialização de determinado produto por determinadas empresas. Isso leva os demais negócios a possuírem um privilégio, pois o Estado eliminou a concorrência, já que coibiu forçosamente possíveis rivais de tentar conquistar os consumidores em potencial.    Há vários exemplos conhecidos que podem ser citados de modo a tornar cristalina a existência de monopólios “estatais”. Ressalta-se que, conforme será exposto posteriormente, — o monopólio de serviços essenciais não é vantajoso para o bem-comum —. Existe também concessões monopolistas mascaradas por mecanismos espoliativos, são exemplos: (a) padrões de qualidade, onde empresas são punidas quando o Estado (e não os consumidores) considera seu produto de baixa qualidade; (b) salário mínimo, que acaba por excluir dos mercados trabalhadores menos produtivos, causando desemprego; (c) licenças, que impõe diversos requisitos para realizar determinados serviços, sendo um destes o pagamento da taxa de licenciamento, que acaba por barrar qualquer hipótese da empresa interessada entrar no ramo desejado e efetuar um bom serviço à população; dentre outros.  Monopólios estatais só abarcam prejuízos para os consumidores, já que há uma oferta reprimida fazendo com que o valor do bem ou serviço fique inflacionado, tendo em vista que a escassez, sem a influência da concorrência, aumenta, por conseguinte, os preços também. Se não existem antagonistas, a empresa detentora da exclusividade de fornecimento pode determinar maior valor para aquilo que produz e os consumidores serão induzidos a aceitá-lo, sendo assim, serão afetados diretamente de adquirir as mercadorias ou serviços feitos por um produtor mais eficiente, ou de melhor custo benefício; A situação persiste quando se trata de serviços essenciais, como a água e luz.  Então, levando-se em conta o que foi observado, podemos deduzir que a emanação de sanções por parte do Estado com intuito de garantir idoneidade acaba por mitigar os benefícios do capitalismo, como, a geração de riqueza e criação de empregos. Porém, o capitalismo é bastante incerto, hostil e instável, neste meio os empresários não podem permanecer confortáveis, uma vez que, nele não é o melhor nem o mais inteligente que sobrevive, mas sim aquele que melhor se adapta, contudo, o que a maioria dos empresários almeja é que o governo lhes proteja da concorrência e lhes assegure uma fatia garantida de lucro, permitindo desfrutar a vida sem aflições e sem constantes inquietações acerca de como evoluir seus serviços aos consumidores.     Para abordar este tema, faz-se necessária a diferenciação entre aumento dos preços e aumento dos lucros. A priori, o aumento dos preços, per si, não é defeso por lei, já que esse aumento pode ser devido à elevação da produção do produto, conforme elucidado pelo próprio John Maynard Keynes, em seu livro ‘A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda’, que retrata (1936, p. 282):    (…) ‘’o preço da oferta tem, conseqüentemente, tendência para subir à medida que a produção obtida por meio de dado equipamento aumenta. Assim sendo, o aumento da produção é acompanhado por uma alta de preços, independentemente de qualquer variação na unidade de salários.’’ (sic)    Ainda, ‘à medida que aumente a demanda efetiva, traduz-se, em parte, numa elevação da unidade de custos e, em parte, num aumento da produção´ (KEYNES, 1936, p. 285).     Destarte, é extremamente importante entender a lei de acordo com a finalidade a qual foi criada, bem como se atende ao interesse público. No caso em tela, o §4º do art. 173 da CF, ao mencionar ‘aumento arbitrário dos lucros’, refere-se a elevação sem justa causa dos preços dos produtos, isto é, o aumento dos valores sem haver aumento na produção, como pode ocorrer em casos de monopólio natural ou de fato, conforme registro do Alberto Venâncio Filho em seu verbete Abuso do Poder Econômico. Sendo assim, a elevação do preço, desde que seja proporcional a ampliação da produção, não caracteriza aumento arbitrário dos lucros.    Conforme Karl Marx alega (1865):    ‘’(…) para explicar o caráter geral do lucro não tereis outro remédio senão partir do teorema de que as mercadorias se vendem, em média, pelos seus verdadeiros valores e que os lucros se obtêm vendendo as mercadorias pelo seu valor, isto é, em proporção à quantidade de trabalho nelas materializado’ e ‘que lucros normais e médios se obtêm vendendo as mercadorias não acima do que valem e sim pelo seu verdadeiro valor’.’’    Com essa afirmativa, pode-se aduzir que uma das formas de evitar o lucro excessivo, é por meio da intervenção do Estado.    Para uma análise mais profunda, observa-se o art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:    ‘’Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) IX – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais; X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.’’     É fundamental analisar se essa lei realmente atende o interesse público, visando o bem comum. Para isso, precisa ser eficaz ao regular o lucro das empresas. Essa questão torna-se duvidosa ao compreender que o aumento de preços, considerado como prática abusiva, na verdade, pode ser benéfico para a população, conforme será abordado a seguir.    O preço reflete a escassez relativa de uma mercadoria, ao congelar o preço tal informação se perde. Isso significaria que, como já dito por Hayek em seu livro Caminho da Servidão, ‘não podemos confiar no forte senso de justiça do povo‘ (1944, p. 132). Ora, se a população considera justo pagar um valor mais alto para determinado produto, não cabe ao Estado intervir nisso. Como Mises já escreveu e Hayek ratificou, a tática de tabelar preços já está demonstrada ineficiente, conforme demonstrado em diversos momentos, inclusive no plano Cruzado, onde o congelamento dos preços originou a redução do abastecimento em mercados. Muitas vezes faltavam produtos por conta do desincentivo de produção. A inflação sobre o custo acelerou, mas em relação às receitas mantinham-se estagnadas, não devido ao consumo, mas sim por uma decisão forçada do governo. Há estudos hodiernos que corroboram com esse pensamento, como a pesquisa feita pelo ecônomo Caio Augusto, em seu artigo ‘’Qual poderia ser o preço da gasolina se não houvesse congelamento?’’, onde revela que o valor da gasolina, caso não houvesse congelamento, poderia chegar a R$ 2,72.    A situação não é diferente em momentos como os de calamidade pública. Na verdade, o congelamento e o tabelamento dos preços geram consequências negativas para a população nos momentos de normalidade, bem como nos momentos atípicos, por exemplo, na situação tratada no caso em tela, de calamidade pública. O desinteresse das empresas em produzir mais é um fator de extrema importância nesse aspecto. Se a empresa não pode aumentar o valor de seus produtos, nenhum incentivo terá para produzir mais oferta, conforme a necessidade da demanda. Isto aplica-se tanto em casos em que a elevação dos preços deveria ocorrer devido a aumento de produção quando aumento dos lucros per si. Ou seja, faltariam produtos nas prateleiras, como já demonstrado anteriormente no caso do plano Cruzado. Coibir o acréscimo dos valores é prejudicial para a população, tanto em situações onde há ascensão do lucro das empresas, quanto em situações em que é necessário o aumento para que consiga ampliar a produção do produto, a fim de atender a toda a demanda.    Outro aspecto negativo, é o controle discricionário e arbitrário que seria exercido pelas autoridades, conforme afirma Hayek (1944):    ‘’Não é, portanto, porque os interesses econômicos com os quais tais medidas interferem são mais importantes que os outros controles de preços e quantidades deve ser excluído num sistema de livre mercado, mas porque esse tipo de controle não pode ser exercido com normas, sendo por sua natureza discricionário e arbitrário. Conceder tais poderes à autoridade, significa, na verdade, dar-lhe o poder de determinar o que deve ser produzido, por quem e para quem.’’    De fato, é inconcebível colocar uma decisão tão significativa, que deveria ser tomada por todos, nas mãos de poucos. É ilusório o pensamento de que poucas pessoas podem, efetivamente, representar várias. E, se assim o fosse, deveriam deixar o mercado agir per si, pois aí que se manifesta a real vontade da população, ao dizer se o produto vale realmente o preço que está sendo ofertado, e caso não o valha, cabe ao mercado reconhecer e baixar o valor. Trata-se da Lei da oferta e da procura4.   Se houver uma obrigação de manter os preços mesmo em épocas de aumento da demanda, isso pode gerar ainda mais malefícios: como há poucos produtos (já que não há incentivo para que as empresas produzam mais, já que isso geraria mais gastos e não entraria mais dinheiro para suportar tais gastos), e o preço continua o mesmo, a população teria um incentivo para comprar em grandes quantidades, seja pelo temor de que o produto acabe, ou para que possa, posteriormente, revender o produto mais caro para quem precise, e assim, lucrar em proveito próprio. Conforme o artigo 39, IX, já elucidado anteriormente, é proibido negar a venda de produtos para compradores que desejam adquiri-los mediante pronto pagamento, salvo exceções definidas por lei. Ocorre que, nesses casos, geralmente há um número máximo de itens que é permitido comprar, mas estes itens não se destinam a quem realmente precisa, e sim a qualquer pessoa que os queira. Sendo assim, a necessidade real que levaria a pagar um valor mais alto pelo produto é atropelada pela urgência momentânea de pessoas que apenas não querem esperar a situação normalizar e desejam se abastecer do produto, já que o preço segue o mesmo enquanto a quantidade ofertada está escassa. Imaginando um caso hipotético, onde há falta de gasolina devido ao não abastecimento dos postos pela fornecedora: neste caso, há diversas pessoas precisando de gasolina por diversos motivos. Algumas pessoas necessitam da gasolina, pois, com este cenário atípico, não sabem quando a venda do produto será normalizada, sem faltar estoque, bem como não sabem quando irão precisar utilizar seus veículos para se locomover, já que há imprevistos e urgências que ocorrem repentinamente. Estas pessoas, com o intuito de se prevenir de futuras dificuldades, irão optar por abastecer-se de gasolina, afinal o valor não aumentou, o produto pode estar momentaneamente extinto do mercado e, além disso, é melhor ‘pecar pelo excesso’. Por outro lado, pode ter uma família no qual um integrante está com uma enfermidade que requer visitas periódicas ao hospital, ou, ainda, alguma doença que demande idas ao nosocômio sempre que o paciente sentir-se com mal-estar ou tiver crises, caso contrário seja provável seu óbito. Como já dito alhures, é obrigação do estabelecimento fazer a venda do produto para compradores que o desejem mediante pronto pagamento, portanto, não necessariamente a quem realmente necessite do produto. Isso significa que pessoas que apenas querem prevenir-se de futuras e hipotéticas situações poderão comprar a gasolina, que no que lhe concerne não estará disponível para emergências realmente graves e urgentes de indivíduos que precisam disto para sobreviver. Há também casos em que sujeitos compram o produto mesmo com a pretensão de usar para uma emergência atual e sem a finalidade de precaver-se, mas sim de modo a locupletar com a venda do produto para uma família em iminente apuro, como no caso mencionado anteriormente. Esse cenário, além de afastar a coerência das medidas adotadas pelo Estado (de coibir a venda para alguém que apresente somente dinheiro e não uma razão justa para a concessão do produto), ainda acaba por prejudicar o comprador, que, por sua vez, invés de pagar para o posto de gasolina uma quantia mais alta, entretanto ainda apropriada devido ao momento de atipicidade, acabará por pagar o valor decidido arbitrariamente pelo indivíduo vendedor, que irá comercializar pelo maior valor possível, a fim de obter o maior lucro.  Destarte, vale a reflexão sobre se o evitamento do aumento dos lucros realmente é o mais favorável ao interesse público, já que deste modo, há falta do produto escasso para todos. É o mesmo que ocorre com o álcool em gel hodiernamente, apesar de muitas indagações sobre as pessoas com menos condições financeiras não obterem o produto, o aumento do preço é o melhor a se fazer, pois, assim, ao menos, haverá produto no mercado. Com a interferência do Estado, não há incentivo para a produção de mais álcool em gel, e, portanto, o produto encontra-se em falta em diversos estabelecimentos, o que consequentemente pode levar a um agravamento da questão da saúde pública, dificultando ainda mais o controle da propagação da COVID-19, conforme demonstrado no artigo ‘’Para que haja máscaras e álcool em gel para todos, só há uma solução: deixar os preços subirem’’ publicado pelo administrador e empreendedor Thiago Fonseca.    Uma maneira de organizar o assunto é começando pelos fundamentos do próprio estado democrático de direito, onde um dos pressupostos é que ele emane parâmetros para a liquidação dos problemas existentes, com lastro neste viés se justifica a intervenção do estado no poderio econômico que nada mais é do que todo ato ou medida legal que restrinja, acondicione ou tenha o propósito de suprimir a iniciativa privada em determinado campo, mirando assim, o desenvolvimento nacional por meio da centralização de recursos e/ou regulamentação destes, entretanto, estes antecedentes podem levar a um desempenho subótimo da sociedade, pois, através de aspectos subjacentes que caracterizam este complexo, como a corrupção, a burocracia e o poder de estatuir, elaborasse entraves fazendo com que o estruturante, ou seja, o Governo, passe a ser o principal financiador de déficits.   Ao refletirmos sobre a ineficiência do Estado em alocar recursos, dois aspectos se destacam a corrupção e a burocracia, a primeira é quando um governante vestisse de estratégias para tomar posse do dinheiro público de modo a maximizar seus próprios benefícios, apesar desta prática ser ilegítima é algo comum e acarreta redução do crescimento econômico. O segundo fator se dá quando lobistas induzem o burocrata a elaborar restrições, porque, além de terem seu aporte inicial restituído e conquistarem uma excelente margem de lucro, concomitantemente, garantem receitas restritas por um longo período com uma ofensiva tácita aos seus concorrentes, por outro lado, o gestor querendo aumentar seu poder opta por segui-las, consequentemente surge lentidão, desperdícios e espoliações, assim acaba que poucos são favorecidos em detrimento de muitos. Levando-se em conta o que foi observado podemos relacionar tais fatos a tragédia dos comuns, pois, ela rege esta conjuntura, indivíduos agindo de modo racional e independente ao dividirem um recurso mútuo buscam aumentar suas vantagens, mesmo que isso contrarie o que seria melhor para a comunidade, fazendo com que o erário seja superexplorado e levando a administração a aumentar seus gastos cada vez mais.   Ademais, há a teoria da captura, a qual discorre que as indústrias reguladas tendem a corromper as agências reguladoras, levando essas a agir de modo em que garantam privilégios e proteção aos interesses comerciais e/ou políticos das indústrias que dominam o setor em questão. Tal conduta vai ao desencontro do interesse público, haja vista que, ao invés destes órgãos beneficiarem os consumidores garantindo-lhes segurança e qualidade em um ou mais ramos do mercado, ela, na verdade, acaba por sofrer de um efeito rebote, já que influências externas impõem o sufocamento de possíveis concorrentes, fulminando a competitividade que possibilitaria o aperfeiçoamento dessas ramificações. Outrossim, o suborno de funcionários públicos trata-se do valor pago em troca da não aplicação penal, ao aceitar a propina o funcionário público está indo contra diversos princípios da administração pública(princípio da legalidade, impessoalidade e moralidade). Todavia, para a realidade de alguns empresários este obstáculo é o único caminho viável até os consumidores, destarte, pode-se entender o pagamento do suborno como uma licença informal que permite ao aliciante enfim ingressar em um meio de negócios e assim passar a comercializar sua mercadoria livre de pressões externas.   O Estado falha ao desconsiderar a ação humana. Não é o ideal que ocorra, porém, é impossível afastar o fato que o ser humano nem sempre irá executar o que é dele esperado, ignorar a corrupção é negar fatos intrínsecos à natureza do homem, se ele puder achar um caminho para desviar das normas ou criá-las para usufruto, assim fará, seria utópico idealizar qualquer sistema onde as falhas humanas não se encontram presentes, por conseguinte, devemos levar tais fatores em consideração e licenciar alternativas que almejam – e obtenham sucesso em – alinhar esses transvios.    Conforme elucida Eduardo Levy em um comentário sobre o livro ‘’A Lei’’, de Frédéric Bastiat (2016, p. 60):    ‘’Se o privilégio da proteção governamental contra a competição – fosse garantido apenas por um grupo da França, os ferreiros, por exemplo, tal ato constituiria uma espoliação legal tão óbvia que não poderia durar muito. É por isso que vemos todas as atividades protegidas se combinarem em prol de uma causa comum. Elas até se organizam de modo a dar a impressão de representar todas as pessoas que trabalham. Instintivamente. Sentem que se esconde a espoliação legal ao generalizar-lá.’’(N.A)    Segundo Houaiss, o termo ‘’espoliação’’ é o ‘’ato de privar alguém de algo que lhe pertence ou a que tem direito por meio de fraude ou violência; esbulho’’. Neste trecho, trata-se da ‘’liberdade negativa’’, já trazida por Isaiah Berlin, e tema do artigo científico publicado por Júlio Cesar Casarin (2018), o qual diz que: ‘’a liberdade é negativa porque opera “negativamente”, ou seja, pela não-interferência alheia naquelas esferas protegidas da vida do indivíduo, dos grupos e das associações’’. Sendo assim, tem-se que a liberdade negativa é encontrada, por exemplo, na falta de interferência estatal perante a imprensa. A falta de censura por parte do Estado faz com que a imprensa possa manifestar-se exercendo sua liberdade, portanto, basta a não intromissão de terceiros para que seja dada a autonomia para expressar o que entender ser válido. Diferentemente da liberdade positiva, onde o indivíduo pode agir por si próprio e tomar as rédeas de sua vida e suas escolhas. No trecho supracitado, há uma confusão entre ambas, dado que, conforme o prórpio Bastiat, bem como Berlin reconheceu, as duas liberdades são contraditórias, isto porque, na intenção de dar mais autonomia para a população (liberdade positiva, que versa acerca do poder de controle das próprias escolhas), o Estado acaba por exercer coação sobre eles, ferindo a liberdade negativa dos mesmos. É o dilema encontrado no trecho citado alhures, onde há um privilégio concedido apenas para um grupo, possibilitando, assim, maior independência e autoridade para certo grupo, mas, para que isto possa ocorrer, deverá haver a liberdade positiva, por meio de imposições e prévias coações para com estes grupos.    CONCLUSÃO  O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 dispõe que: ‘A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social(…)’. Portanto, há um impasse entre a proteção à livre iniciativa e as regras que o próprio Estado impõe para realizar a manutenção do status quo, sob a justificativa de conceder uma melhor qualidade de vida à população. Mas, o que realmente ocorre é o desincentivo a empresas pequenas de abrirem seus negócios, haja vista que é exigida uma série de complicações que tornam o processo demasiado burocrático e demorado, o que impede a entrada de novos concorrentes no mercado, facilitando a formação de monopólios, os quais o próprio Estado devia evitar, conforme o art. 173 da Constituição Federal de 1988.  Outro fator que facilita a criação de monopólios é o suborno a qual os funcionários públicos estão sujeitos. A teoria da captura corrobora com esse pensamento, já que a corrupção é benéfica para quem produz no ramo, dado que, por meio de um pagamento, é possível que a agência reguladora aja de acordo com os interesses comerciais ou políticos de determinada empresa que atue naquele setor.  Em que pese ser defeso o monopólio de determinado setor por uma companhia privada, a situação se inverte quando se trata de monopólios estatais: são permitidos, ainda que sem a anuência da população. Todavia, tal prática não é de fato proveitosa para a população, posto que, além de não ter o poder de escolha e ter que aceitar o que terceiro (o Estado) crê que é melhor, há a falta de competitividade nas empresas para dominarem o mercado e se tornarem bem sucedidas. A competitividade leva a melhor prestação de serviços e/ou a elevação da qualidade dos produtos, a fim de atrair mais clientes. Quando os clientes são obrigados (por não haver outra opção) a aceitar determinado serviço ou produto, há a ausência de motivação para prestar o melhor atendimento possível, uma vez que não há a ameaça de perder a clientela para rivais. O cenário permanece o mesmo quando trata-se de serviços essenciais, como o fornecimento de água e luz. Se não há disputa pelos consumidores, não há estímulo para aperfeiçoar o exercício da função, ou então um preço mais atrativo para conquistar usuários.  Impactos contrários ao esperado não ocorrem somente na questão de desanimar empresários a abrir seus negócios, tornando o cenário propício para a criação de monopólios, mas também acarreta um desestímulo nas empresas já constituídas a prosseguirem sua produção. Isso ocorre nos casos da repressão ao aumento arbitrário dos lucros, que ocasiona na falta de incentivos a empresas de aumentarem a produção de determinado produto em que houve aumento na demanda. Tendo em vista que o aumento dos valores pode culminar na possibilidade de haver produtos suficientes para atender toda a demanda, o que não ocorreria em casos de fixação de um valor máximo sobre estes, pode-se concluir que o aumento dos lucros, na verdade, é mais efetivo para satisfazer o interesse público.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/intervencao-do-estado-no-dominio-economico-repressao-ao-abuso-do-poder-economico/
A Inexigibilidade de Licitação para Contratação de Serviços Técnicos Especializados de Natureza Predominantemente Intelectual a Luz da Nova lei de Licitações 14.133/21: Do Requisito da Singularidade
O presente trabalho buscará explanar a respeito da inexigibilidade de licitação na contratação dos serviços de caráter predominante intelectual, a luz da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, publicada no dia primeiro de abril de 2021. Tem como objeto precípuo aclarar os conceitos envolvidos nesse instituto, principalmente no que tange aos requisitos de dispensa pela via da inexigibilidade, quais sejam, a singularidade e a notória especialização previstos na lei 8.666/93. Será utilizada técnica comparativa dos dispositivos legais, associada às construções doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao tema, por meio do método de pesquisa bibliográfica. O artigo tem o intuito de elucidar a caracterização de tais requisitos que geraram na doutrina mais de uma interpretação, e em razão da complexidade do tema buscar o devido enquadramento das normas licitatórias à hipótese, sem que haja o desvio de finalidade, e atendendo em excelência os princípios da eficácia e eficiência.
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo tem o condão de aclarar de maneira sucinta a respeito do instituto da Contratação Direta por meio da Inexigibilidade de licitação. Tratará das alterações advindas da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei 14.133/21, especificadamente quanto a contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual. Tem o objetivo de destrinchar os conceitos que permeiam tal modalidade de contratação direita, com foco no preenchimento dos requisitos da inviabilidade de competição, previsto no texto legal, assim como a notória especialização e a problemática do requisito da singularidade do serviço técnico. Para o desenvolvimento do trabalho será utilizada técnica comparativa dos dispositivos legais, associada a doutrina e jurisprudência pátria quanto ao tema, por meio do método de pesquisa bibliográfica. O intuito é aplicar a devida exegese da nova legislação ao caso concreto para direcionar o Administrador Público na devida aplicação da Lei, evitando o desvio de finalidade e a violação dos preceitos constitucionais. Ademais por se tratar de tema recente, mas com vasta repercussão no meio acadêmico e jurídico, ainda não há posicionamento jurisprudencial pacificado. Contudo buscaremos embasar o posicionamento que melhor coadura com a hermenêutica constitucional, bem como atender aos princípios constitucionais que envolvem o procedimento licitatório.   Nas palavras da ilustríssima doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2], aproveitando -se parcialmente do conceito de José Roberto Dromi (1975:92), entende a definição de licitação como:   “[…]um procedimento administrativo através do qual um ente público, fazendo-se valer do seu exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se enquadrem nas condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de oferecerem propostas dentre as quais será selecionada e aceita a mais conveniente para a celebração do contrato”   Conforme preceitua o Artigo 37, inciso XXI da Constituição da República de 1988 (CF/88), as compras, obras, serviços e alienações de bens a serem realizados pelos entes públicos, ressalvados os casos especificados em lei, serão precedidos de processo licitatório. In verbis:   “XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”   Publicada em primeiro de abril de 2021, com aplicação imediata, a Lei 14.133, Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, substituirá a antiga Lei de Licitações 8.666/93, a Lei do Pregão 10.520/02 e a Lei do Regime Diferenciado de Contratação Lei 12.462/11, também conhecida como RDC, mediante a revogação destas, conforme previsão em seu artigo 193, vejamos: “Art. 193. Revogam-se: – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei; – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.”   Ademais no decurso do prazo de dois anos mencionado no inciso II do artigo 193, o legislador colocou a salvo a possibilidade da Administração Pública optar pela adoção da presente legislação, com prévia especificação nos editais e ou a utilização das leis que serão revogadas nos demais instrumentos convocatórios. Tal possibilidade se dá em razão da coexistência com as demais normas correlatas neste período, previsão do caput artigo 191:   “Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.”   Convém também destacar que a Lei 14.133/21 refere-se a normas gerais de licitação, regulamentada pela União em razão da sua competência privativa[3]. Aplica- se às Administrações Públicas Diretas, Autárquicas, Fundacionais da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Cabendo de maneira suplementar aos outros entes regulamentarem as normas e regras específicas da localidade. Em consonância com a previsão do § 1º, do artigo 1 º, não serão abrangidas as Empresas Estatais, em razão do Estatuto Próprio, qual seja, a Lei 13.303/2016, excetuados os crimes contra a licitação, incluídos pelo Artigo 178 no Código Penal[4]. Senão vejamos “§ 1º Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.” O novo diploma legal não representa um rompimento com o antigo regime jurídico, visto que trouxe a unificação de diversas normas constantes nos instrumentos normativos infralegais. Positivou entendimentos do Tribunal de Contas da União, assim como acolheu entendimentos doutrinários dando continuidade aos Institutos já existentes. A Nova Lei de Licitações buscou solucionar problemas já existentes. O economista austríaco Joseph Schumpeter, cunhou em seu livro “Ciclos de negócios: uma análise teórica, histórica e estatística do processo capitalista.”[5], o termo “Inovação incremental”, o qual pode ser utilizado para interpretar e entender a nova Lei: trata-se de um progresso legislativo que busca solucionar, pacificar e dar melhor aplicação das normas licitatórias sobre os problemas preexistentes, com mecanismos jurídicos também já existentes.   Conforme já mencionado a priori, constitui regra a realização do procedimento licitatório pela Administração Pública Direta, Indireta, Autárquica e Fundacional, em todos os entes da Federação, para que realize compras, obras, aquisições de serviços e alienações de bens, previsão do Artigo 37, XXI da Constituição de 1988. O Inciso XXI traz em seu corpo legal a possibilidade de que haverão casos especificados, excepcionais, em lei que não será obrigatória o certame. Tratam-se dos casos de Contratação Direta, mediante a licitação dispensável, no qual, o legislador trouxe rol taxativo, em que não será viável a licitação, os casos de inexigibilidade de Licitação em que não há a competitividade, cujo é rol exemplificativo e por fim a licitação dispensada.   2.1.         Da Licitação Dispensável A licitação será dispensável quando houver discricionariedade da Administração Pública, mediante a vinculação do ato ao interesse Público, e viabilidade do certame. As hipóteses estão previstas nos incisos do Artigo 24 da Lei 8.666/93 e nos incisos do artigo 75 da Lei 14.133/21. Nas Palavras do Douto Professor José dos Santos Carvalho Filho[6]: “A dispensa de licitação caracteriza-se pela circunstância de que, em tese, poderia o procedimento ser realizado, mas que, pela particularidade do caso, decidiu o legislador não torná-lo obrigatório. Diversamente ocorre na inexigibilidade, porque aqui sequer é viável a realização do certame.”   Assim, a licitação dispensável está relacionada a possibilidade do Administrador em razão da particularidade do caso, dispensar o certame para adquirir o bem ou serviço por meio da contratação direta. A dispensa está intrinsecamente ligada aos casos em que a Lei atribuiu essa oportunidade.   2.2 Da Inexigibilidade de Licitação Em contrapartida a licitação dispensável, outra exceção ao dever de licitar, é a inexigibilidade da licitação. A inexigibilidade está prevista no artigo 25 da Lei 8.666/93 e Artigo 74[7]da Lei 14.133/21 são róis exemplificativos, com a utilização da expressão “em especial”, prevista no caput de ambos antigos. Neste contexto a licitação será inexigível quando não houver competitividade capaz de tornar viável o certame. Previsto no final do inciso XXI[8], Artigo 37 da Constituição Federal 1988, implícito no Art. 3 da Lei 8.666/93 por meio do princípio da isonomia e no Artigo 5 Da lei 14.133/21 o princípio da competitividade, visa alcançar o objetivo da proposta mais vantajosa para a Administração. Busca adotar medidas de ampla divulgação, vedação de critérios injustificados de exclusão ou de qualificação que venham a comprometer o caráter competitivo do certame. Cumpre também frisar que o mecanismo visa atender o objeto precípuo das licitações, previsto no Art. 11 da Lei 14.133/21, quais sejam, objetivo da proposta mais vantajosa a administração, atender o princípio da isonomia, corroborar com a eficiência e economicidade do certame público e incentivo a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.   2.3 Da Licitação dispensada Diferentemente da Licitação dispensável, em que há discricionariedade da administração em decorrência do objeto da licitação cabendo a possibilidade de não licitar, a licitação dispensada o Legislador determinou que não se licite. Referem-se aos casos, em sua maioria, de alienação bens móveis e imóveis. Nos casos de bens imóveis, a Lei 8.666/93 discorre no inciso I, alíneas “a” a “i” do artigo 17, que a alienação de bens Imóveis será como regra mediante autorização legislativa para administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais. A alienação dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência. Já na lei 14.133/21 no artigo 76, alíneas “a” a “j” houve uma importante alteração legislativa, mantendo as hipóteses de dispensa de licitação, todavia, a modalidade a ser utilizada para a alienação de bens é o Leilão, permanecendo a autorização legislativa e avaliação prévia. No que tange aos Bens móveis também haverá possibilidade a dispensa da licitação nas hipóteses do inciso II, alíneas “a” a “f” do artigo 17 da lei 8.666/93 e inciso II, alíneas “a” a “f” do artigo 76 da Lei 14.133/21. Dessa forma as exceções ao dever de licitar, por parte da Administração Pública, não dão ao administrador o poder de contratar diretamente ao seu bel prazer. É necessário a adequada interpretação das hipóteses de contratação direta, sejam elas, licitações dispensáveis, inexigíveis ou dispensadas e seu devido enquadramento nas situações legais, devendo sempre pautar-se priorizando o interesse Público.   3.  Da Contratação De Serviços Técnicos Especializados De Natureza Predominantemente Intelectual. Após discorrer sobre as hipóteses de Contratação Direta, aprofundaremos nas situações que enquadram a inexigibilidade de licitação, em especial, quando da contratação dos serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual. Previsto no Art. 25 inciso II da Lei 8.666/93 que faz menção ao artigo 13[9], prevê a possibilidade da inexigibilidade de licitação quando não houver competitividade. Os casos em for realizada a contratação dos serviços enumerados no Artigo 13 da referida lei, desde sejam de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, traz ainda a vedação para os serviços de publicidade e divulgação a licitação será inexigível. A lei 14.133/21 por sua vez aglutinou no Artigo 74 as hipóteses de inexigibilidade de licitação, descrevendo nas alíneas “a” a “g” os casos que anteriormente estavam previstos no artigo 13 da Lei 8.666/93 e ainda acrescentou a alínea “h” como mais uma situação que não será exigida a licitação por não haver a competição:   “[…]h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem no disposto neste inciso.”   A problemática do presente tema está relacionada quanto a redação do Artigo 74, inciso III da Lei 14.133/21 quando da supressão da expressão “natureza singular”. A alteração legislativa gerou na doutrina um debate a respeito da utilização do mecanismo de contratação direta, sem a necessidade do requisito da singularidade do serviço, o que de certo modo desburocratizou a forma de compra e aquisição pela administração, porém em contrapartida parte da doutrina entende que fragilizou o instituto.   4.  Da Notória Especialização Será requisito para a contratação direta, pela via da inexigibilidade a luz da lei 14.133/21: que os serviços de natureza predominantemente intelectual, especialmente os previstos em lei, segundo a redação do Art. 74, sejam exercidos por indivíduos com notória especialização. A execução do serviço será realizada por aquele que seja notável em sua área de atuação, com especialidade que coaduna com o objeto a ser contratado. O conceito de notória especialização está elencado no bojo do § 1o do Art. 25 da Lei 8.666/93[10] e no § 3º do artigo 74 da lei 14.133/21. Senão vejamos:   “[…]§ 3º Para fins do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”   Consideramos, portanto, a luz do dispositivo legal o notório especialista aquele que, em razão da sua capacitação, experiência profissional, é possível apurar que possui aptidão satisfatória para a adequada e plena execução do serviço a ser contratado.   O requisito da singularidade estava previsto no Art. 25, inciso II, da Lei 8.666/93 e suprimido no Artigo 74, inciso III, da Lei 14.133/21 parte da doutrina entende tratar- se de ponto central que possibilita o afastamento da necessidade do certame licitatório. Diz respeito a oportunidade de vários executores possuírem aptidão para a execução do serviço. Tal condição possui caráter eminentemente subjetivo, não havendo critérios objetivos suficientes para averiguá-los. Vejamos o ensinamento do Douto Professor Celso Antônio Bandeira de Mello[11]: “São licitáveis unicamente (…) bens homogêneos, intercambiáveis, equivalentes. Não se licitam coisas desiguais. Cumpre que sejam confrontáveis as características do que se pretende e que quaisquer dos objetos em certame possam atender ao que a Administração almeja.” Nesse ínterim, há constante embate na doutrina pátria quanto a conceituação técnica da singularidade e sua supressão do novo diploma legal. O jurista Carlos Pinto Coelho Mota[12] ao abordar o tema na Lei 8.666/93 em atenção aos dizeres de Régis Fernandes, conceitua a singularidade como “[…] característica própria de trabalho, que o distingue dos demais.”. Assim como Petrônio Braz[13] A singularidade […] “traz sentido especial, com peculiaridades que permitem distinguir a coisa, não podendo a expressão ser entendida literalmente.” A singularidade possui conceito indeterminado, assim como outros institutos dentro do ambiente licitatório. A doutrina do Direito Administrativo, caracteriza o conceito indeterminado como uma penumbra, não é possível uma vinculação absoluta e concreta, impede uma definição precisa sobre o significado, mas não as consequências legais de seu descumprimento. O Jurista alemão Karl Engisch, em sua obra “Introdução ao pensamento jurídico”[14], traduzida pelo Douto João Baptista Machado, entende o conceito jurídico indeterminado como “um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos. Os conceitos absolutamente determinados são muito raros no Direito.” A indeterminação do conceito não se confunde com conceito dúbio. Embora não seja possível sua conceituação absoluta, por meio da hermenêutica jurídica é possível sua melhor aplicação, e interpretação sem distanciar do pressuposto legal. O Professor Tercio Sampaio[15] ensina com excelência tal situação, em seu livro “Introdução ao Direito: técnica, decisão, dominação”:   “A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos, constitui a tarefa da dogmática hermenêutica […]. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar–lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento.”   A indeterminação do conceito de singularidade não representa o real problema da supressão do requisito do diploma legal. O impasse está presente na prática pelos agentes públicos quando da utilização em excesso, muitas das vezes sem observar os limites da legalidade, e da presunção de legitimidade. A difícil qualificação do objeto singular no contrato pode ocasionar desvio de finalidade. O professor Eros Roberto Grau[16], discorre a respeito da diferença do pressuposto da singularidade retirado do inciso III no Artigo 74 da Lei 14.133/21, presente no Inciso II da Lei 8.666/3 e o pressuposto da exclusividade, por sua vez utilizado no inciso I do Art. 25 da Lei 8.666/93:   “Ser singular o serviço, isso não significa seja ele necessariamente o único. Outros podem realizá-lo embora não o possam realizar do mesmo modo e com o mesmo estilo de um determinado profissional ou de uma determinada empresa.”   É impreterível que não haja confusão entre singularidade e exclusividade, ou até mesmo raridade. O Tribunal de contas em decisão do Plenário[17], através do voto do Rel. Ministro Bruno Dantas cunhou o seguinte entendimento:   “Observa-se que o conceito de singularidade a que se reporta o inciso II do art. 25 da Lei 8.666/1993 está vinculado à ideia de complexidade e especificidade da contratação almejada. Quanto maior o grau de complexidade do caso mais se espera do profissional especialização e experiência. Por isso que à luz da autorizada doutrina de Marçal Justen Filho compreende-se a natureza singular do serviço técnico especializado pretendido como uma situação diferenciada e sofisticada que requer elevado nível de segurança e cuidado.”   Pode-se concluir também que a pluralidade de indivíduos capazes de executar a atividade de natureza predominantemente intelectual não caracterizará a existência de concorrência. Não há critérios objetivos para comparação da execução do serviço singular, por parte dos executores, o critério ainda é subjetivo e a singularidade é um elemento primordial.   Os serviços que não estão elencados nos incisos do artigo 13 da Lei 8.666/93 e nas alíneas “a” a “h”, do inciso III, Art. 74 da Lei 14.144/91, e que em razão de seu objeto ser ordinário, são considerados comuns. O art. 6, inciso XIII da Lei 14.133/21 conceitua os bens e serviços comuns como: “[…] aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade podem ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado;” O serviço técnico especializado, por sua vez, segundo o Douto professor Hely Lopes de Meirelles[18] constitui:   “[…]os prestados por quem, além de habilitação técnica e profissional – exigida para os serviços técnicos profissionais em geral -, aprofundou-se nos estudos, no exercício da profissão, na pesquisa científica, ou através de cursos de pós-graduação ou de estágios de aperfeiçoamento”   Nestes termos não podemos utilizar-se da inexigibilidade, sob o fundamento da inviabilidade da competição quando da contratação de serviços considerados ordinários ou comuns, mesmo que pela eventualidade venha a ser exercido por profissional ou empresa com notória especialização. O requisito da notória especialização analisado isoladamente se demonstra frágil sem a presença da singularidade. Dessa forma concluísse também, profissionais ou empresas qualificadas não poderão ser restringidas de participar do certame de contratação de serviços comuns, sob o pretexto de que são notoriamente especialistas na área, por força do princípio da isonomia e competitividade. Não há configuração da hipótese de inviabilidade da competição em razão do objeto da contratação.   Nessa toada, apenas a notória especialização é insuficiente para a decisão do contratante, quando da contratação direta pela via da Inexigibilidade. A notória especialização não necessariamente inviabilizará a competição, o fato de mais de um indivíduo possuir qualificação técnica quanto a execução do contrato, não o torna complexo o suficiente para que seja capaz de dispensar o certame. Em que pese o Tribunal de Contas da União (TCU) ter firmado entendimento por meio da Súmula 252[19] , com o advento da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14.133/21 surgiu o questionamento quanto a permanência da utilização da singularidade para a devida utilização do instituto da inexigibilidade. Parte da doutrina utiliza o argumento da literalidade da Lei para fundamentar que a redação da nova legislação ao remover a expressão “natureza singular” busca simplificar o instituto da contratação direta. Parte do pressuposto da vontade do legislador as hipóteses previstas no artigo 74, inciso III da Lei 14.133, desburocratizar o processo de inexigibilidade. O Douto jurista Leonardo Mota Meira[20], em sua publicação “Dispensa de licitação na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei nº 14.133/2021. A vontade do gestor e a necessidade de planejamento” discorre sobre a importância da aplicação da literalidade, principalmente vinculada a exigência de especificar no instrumento convocatório a legislação que será adotada no certame. Vejamos:   “Logo, pela literalidade do art. 191, não existe dúvida de interpretação quanto à existência e utilização, durante os próximos dois anos, da “antiga legislação” e da Lei nº 14.133/2021, seja para procedimentos licitatórios, seja para as situações relativas às dispensas de licitação e inexigibilidade de licitação.   “[…] Tratando, então, especificamente, da dispensa de licitação, a restrição quanto à utilização da legislação e procedimentos que serão adotados na contratação é mesma: ou se utiliza as regras da Lei n º 8.666/93 ou se utiliza as regras da Lei nº 14.133/2021.”   Todavia cumpre enfatizar a previsão no Art. 191 da Lei 14.133/21 da possibilidade do Administrador de optar pela Legislação atual, e a utilização da lei 8.666/93, desde que expressamente disposta no instrumento convocatório. Deve ser utilizada a exegese que melhor guarda consonância com a disposição constitucional do dever de contratar pela licitação como regra. Ainda que o Artigo não faça a remissão a singularidade de forma expressa, como já abordado anteriormente a notória especialização por si só não inviabiliza competição. Desse modo, sua utilização deverá ser vinculada ao interesse público e atenção aos preceitos constitucionais previstos no Art. 37, inciso XXI da CF/88. Outro argumento utilizado pela doutrina para justificar a desnecessidade da singularidade na contratação direta pela via da inexigibilidade diz respeito a distinção entre o objeto e a necessidade. O professor Luciano Ferraz[21], em sua publicação “The Walking Dead na Administração- temporada final (nova lei de licitações)”, dispõe:   “[…]Com a previsão da hipótese de contratação por inexigibilidade baseada fundamentalmente em notória especialização do prestador, o legislador democrático objetivou afastar o teste, a experimentação, o risco, optando pela qualificação certa e comprovada de profissionais experts que se podem colocar a serviço da Administração Pública. O diferencial subjetivo é que prepondera nesse caso, mercê̂ da vinculação da atividade administrativa ao princípio da eficiência.”   Perfeitamente pontuado pelo douto Professor, a previsão legal do conceito de notória especialização visa traçar critérios objetivos para o instituto. Confrontando a confusão de exclusividade e singularidade, a notória especialização pode ser comprovada de maneira clara e objetiva. Tal ponto também guarda relação com a indeterminação do conceito de singularidade. Ademais, a demanda singular, não tem condão de justificar a contratação de objeto não singular, tão somente com notória especialização. A singularidade da demanda, com caráter predominantemente intelectual, distingue-se dos serviços comuns, conforme já foi enfrentado anteriormente. A necessidade singular e o objeto singular justificam-se no viés da adequação, pautado nos princípios da eficiência e ao princípio da proporcionalidade, em sua essência, proporcionalidade útil. O requisito corrobora para atender o objetivo da proposta, que corresponde ao objeto do contrato. Os Ilustríssimos juristas, Lúcia Valle Figueiredo e Sérgio Ferraz, fazem importante ensinamento a respeito desse ponto, em sua obra “Dispensa e Inexigibilidade de Licitação”[22]: “E esse outro dado conceitual importante é o de que a notória especialização, que serviu para que determinado contratante fosse selecionado com escudo e o manto da inexigibilidade da licitação, seja em si um dado essencial para a satisfação do interesse público a ser atendido. Se o serviço é daqueles em que a notória especialização é absolutamente acidental, apenas uma moldura que enfeita o prestador de serviços, mas não integra a essência da realização, tal como desejada, do objeto contratual, nesse caso sua invocação será viciosa e viciada, e, portanto, atacável através de todas as figuras de vício do ato administrativo, com a consequente apenação do administrador.” Necessário que haja o requisito da singularidade como meio de aclarar e corroborar com os demais requisitos para direcionar a Administração Pública durante a contratação para atender o princípio eficiência e moralidade. Não deixando os critérios ao bel prazer do julgador da proposta, ou que seja utilizado apenas o requisito da notória especialização, que poderá ser viciado e não consiga de fato atender o interesse público dentro do objeto do contratado. Vejamos as palavras do professor Matheus Carvalho[23] “A Administração Pública possui a tarefa árdua e complexa de manter o equilíbrio social e gerir a máquina pública, composta por seus órgãos e agentes. Por essa razão, não poderia a lei deixar a critério do administrador a escolha das pessoas a serem contratadas, porque essa liberdade daria margem a escolhas impróprias e escusas, desvirtuadas do interesse coletivo. De fato, os gestores buscariam contratar com base em critérios pessoais, atendendo a interesses privados.” Corroborando para a manutenção do requisito da singularidade, o TCU[24] já se posicionou a respeito da controvérsia, com vistas ao Artigo 30, inciso II, da Lei 13.303/16,[25] o Estatuto Jurídicos das Estatais, que embora trata-se de legislação correlata, possui a redação similar do novo Artigo da Lei 14.133/21, por coerência a adoção de ambos os requisitos é primordial para salvaguardar a segurança jurídica. Leia-se: “A contratação direta de escritório de advocacia por empresa estatal encontra amparo no art. 30, inciso II, alínea “e”, da Lei 13.303/2016, desde que presentes os requisitos concernentes à especialidade e à singularidade do serviço, aliados à notória especialização do contratado.” Vejamos o brilhante apontamento do jurista Diego Ávila[26]:   “Por tais razões, não obstante o texto legal da nova Lei de Licitações não possua tal previsão (de observância da singularidade), entendemos que a singularidade é requisito que deve ser mantido pela Administração quando da verificação da contratação direta por inexigibilidade em serviços técnicos executados por notórios especialistas, mesmo porque, o que justifica a contratação de um profissional que detenha qualificação diferenciada é a complexidade do objeto, ou seja, a singularidade.”   Podemos concluir, portanto, que a contratação direta, pela via da inexigibilidade de licitação se justifica pela ausência de competição, notória especialização, singularidade.   Considerações Finais Após detida análise e dissecação sobre os institutos que permeiam a Contratação Direta pela via da Inexigibilidade, para os serviços de natureza predominantemente intelectual, podemos concluir que o mecanismo corresponde a exceção do procedimento licitatório. Além de representar casos excepcionais, sua utilização está condicionada ao preenchimento dos requisitos: (I) Inviabilidade de competição, (II) Natureza Singular, e (III) Notória especialização. O trabalho árduo de tentar elucidar e aclarar os requisitos tem fundamento na dificuldade por parte dos próprios órgãos e entidades da Administração em conduzir o certame licitatório não convencional. Tem o intuito de conduzir os variados entendimentos jurídicos a um melhor enquadramento no novo diploma Legal e ao objeto precípuo das licitações. Por fim busca extirpar a insegurança jurídica no momento de proceder a utilização desses sistemas, e proporcionar melhores ferramentas para o Controle Externo e Interno de legalidades. Por decorrência lógica, com o precedente de aplicação dado pelo Tribunal de Contas da União, com fulcro na Lei 13.303/16, quando da utilização do mesmo instituto na Contratação Direta pela via da inexigibilidade, a fundamentação legal, constitucional e principiológica é semelhante. Notavelmente a comprovação da inviabilidade da competição, não poderia escapar da mesma verificação quanto aos critérios objetivos da notória especialização, bem como que a necessidade singular e objeto singular sejam também inteiramente atendidos para que haja a segurança jurídica.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/a-inexigibilidade-de-licitacao-para-contratacao-de-servicos-tecnicos-especializados-de-natureza-predominantemente-intelectual-a-luz-da-nova-lei-de-licitacoes-14-133-21-do-requisito-da-singularidade/
Uma análise do comportamento das decisões judiciais frente a requisição administrativa por respiradores durante a pandemia de COVID-19
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa e análise jurisprudencial sobre as decisões envolvendo conflitos advindos da requisição administrativa por respiradores pela rede pública de saúde, em razão da super demanda, ocasionada pela situação de pandemia do COVID-19, a qual afetou em grande número os estados brasileiros. Em um primeiro momento busca explicar os litígios, mostrando de que maneira eles vêm ocorrendo. Depois apresenta as decisões, observando a partir delas, quais têm sido suas tendências e fazendo uma crítica. Utiliza como metodologia, a busca por referências bibliográficas onde se publicam as sentenças, além da doutrina, como auxiliar na análise dela.
Direito Administrativo
Introdução Em dezembro de 2019, foi identificada uma nova doença nomeada de COVID-19, causada por um coronavírus, que é uma grande família de vírus comum em muitas espécies de animais, raramente infectando seres humanos. No entanto, o denominado SARS-CoV-2, foi identificado em Wuhan na China e se transmite entre as pessoas (OPAS, 2020). A doença pode apresentar quadros que variam de assintomáticos à graves, dos quais o afetado pode apresentar dificuldade para respirar e necessitar de suporte ventilatório (Id., 2020). Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou que o surto da doença (COVID-19) seria Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, que é o maior nível de alerta da Organização segundo o Regulamento Sanitário Internacional. Posteriormente, em março, a doença foi caracterizada pela Organização, como uma Pandemia, quando uma doença deixa de afetar apenas uma região e passa a atingir diferentes continentes (Id., 2020). No dia 26 de fevereiro de 2020, o Brasil registrou o primeiro caso da doença em um homem de 61 anos no estado de São Paulo e se tornou o primeiro país da América Latina a relatar a doença (AMORIM; MARINS, 2020). Por causar infecção nos pulmões e consequentemente, dificuldade para respirar em pacientes com estado grave, a oxigenação do sangue e a capacidade de eliminar gás carbônico, fica comprometida. Com isso, há necessidade de utilização de um aparelho que o ajude a manter um nível satisfatório de oxigênio para sua sobrevivência (OLIVEIRA, 2020). Existem dois tipos principais de ventiladores mecânicos, um por meio de cateter (tubos) ou máscara, conectado a uma máquina, que “empurra” o ar para dentro dos pulmões e deixa o ar sair na expiração, o qual faz com que muitos se recuperam. Mas caso não haja sucesso nessa técnica, se opta por um ventilador mecânico invasivo, onde o tubo é inserido pela boca até a traqueia, enquanto a pessoa é sedada para não se sentir desconfortável. Com isso os pulmões descansam e se recuperam (Id., 2020). Com o rápido avanço da doença, a demanda por esses equipamentos cresceu de forma exponencial, de maneira que, houve falta dele para muitos pacientes da rede pública. Diante disso, o poder público se viu diante de uma situação onde o instituto da requisição administrativa, seria necessário. A requisição administrativa é uma forma de intervenção do Estado na propriedade particular, prevista no artigo 5º, inciso XXV da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), in verbis: “(…) no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;” (BRASIL, 1988). Conforme define Hely Lopes Meireles (1998, p. 511):   “[…]é a utilização coativa de bens ou serviços particulares, pelo Poder Público, por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante e indenização ulterior, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias.” (MEIRELES,1998,p. 511)   Ainda conforme exemplifica Dirley da Cunha Júnior (2015, p. 421):   “Cuida-se de modalidade de intervenção na propriedade particular, fundada na urgência, por meio da qual o Estado faz uso de bens móveis e imóveis ou serviços prestados por particulares, em face de situações de iminente perigo público (como por exemplo, grave deficiência no atendimento à saúde pública; epidemias; calamidades públicas; inundações; catástrofes, etc).” (JÚNIOR, 2015, p. 421, grifo nosso)   De forma simplificada, em uma situação de extrema necessidade, em que haja urgência na utilização de algum bem do particular, o Estado pode solicitá-lo para ser usado, de maneira coatora, pagando pelo o devido posteriormente. Como no caso da pandemia, onde, não havendo respiradores suficientes na rede pública, é possível se solicitar de empresas particulares. A requisição em regra é uma forma de intervenção restritiva na propriedade, ou seja, o particular não perde a propriedade do bem (FILHO, 2014, p. 796). No caso de bens móveis e fungíveis, a coisa não poderia ser restituída ao dono, por isso se tornaria uma intervenção supressiva, ainda assim, não pode se confundir com a desapropriação, pois conforme explica Júnior (2015, p. 422), na desapropriação a indenização é feita antes, ao contrário da requisição, onde se indeniza depois, também em decorrência de seu caráter urgente, não depende de apreciação do judiciário para imissão na posse, sendo executada diretamente pela Administração Pública, ao contrário da desapropriação. A requisição tem como pressuposto essencial o caráter urgente, sem o qual o particular pode questioná-la judicialmente para invalidá-la (FILHO, 2014, p. 805). A prescrição para postular indenização se for o caso, consuma-se em cinco anos contados a partir do momento em que o uso do bem pelo Poder Público se inicia, conforme o parágrafo único do artigo 10 do Dec. Lei 3.365 (BRASIL, 1941). A Constituição coloca como competência da União legislar sobre requisição no artigo 22, inciso III (BRASIL, 1988), nada impede que a execução desse ato seja feita por demais entes federativos se presentes os pressupostos circunstanciais exigidos pela Constituição e pela lei. A Lei 8.080 de 1990, regula as condições para promover, proteger e recuperar a saúde e a organização e funcionamento de seus serviços. No artigo 15, inciso XIII, assegura:   “Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: (…)XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;” (BRASIL,1990, grifo nosso)   Em fevereiro de 2020 foi promulgada a Lei n° 13.979 dispondo sobre medidas a serem adotadas no enfrentamento a pandemia, a qual seu artigo 3°, inciso VII, diz que as autoridades podem requisitar bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, garantidas a elas, indenização posterior. No caso em questão podem o Ministério da saúde e gestores locais de saúde, agirem, em acordo ao § 7º, incisos I e III do referido artigo (BRASIL, 2020). Deve-se atentar ao fato de que a requisição administrativa, como forma de intervenção do Estado na propriedade privada, deve ser utilizada como último recurso, afim de alcançar o objetivo primordial da administração pública, que é o interesse coletivo. Pois ao mesmo tempo que a constituição defende o interesse social, também coloca como direito fundamental as garantias individuais, como a propriedade privada, como se verifica no seu art. 5°, inc. XXII (BRASIL, 1988). O objetivo desta pesquisa é investigar de que maneira o Poder Público na esfera federal, estadual e municipal tem feito a requisição de aparelhos tão importantes para combater a doença que se alastra na população, os litígios que tem surgido a partir disso e como os tribunais tem lidado com eles, através de uma busca por jurisprudências.   A respeito do tema, encontra-se os mais diversos litígios relativos a ele, seja entre o poder executivo Estadual e empresas que fornecem os respiradores, ou daquele com hospital particular e até mesmo entre entes federativos, União e Estado, por exemplo.   1.1. Concorrência entre a rede pública e privada. O hospital particular São Francisco, em São Roque, no estado de São Paulo, entrou com pedido em sede de Mandado de Segurança, para reaver sete respiradores que foram requisitados pela prefeitura da cidade com base em um decreto municipal de calamidade pública (VIAPIANA, 2020). Segundo o hospital, os equipamentos foram retirados de maneira inadequada (BRASIL, TJ-SP, 2020, p. 84). Alegou o hospital que houve violação ao princípio da legalidade, pois o decreto não havia sido ainda publicado no Diário Oficial, na data da medida que foi executada. Tratando-se, portanto, de uma medida de caráter liminar. O hospital também relatou que suas atividades foram prejudicadas pela requisição. (Id, 2020, p. 82) Em casos como esse, fica exposta uma concorrência entre a saúde como um serviço público sendo prestado pelo Estado e pela iniciativa privada. Uma das questões a serem levadas em conta, é se o Estado pode ter preferência sobre o particular na falta de um equipamento essencial na rede pública, onde os mesmos estão em um número mais do que suficiente naquele. Ou ainda quando a requisição do Estado sobre o privado causaria um desfalque neste. A saúde, é um direito social e de todos, de acordo com o artigo 6° e 196, respectivamente, da CRFB/88, que também a coloca como um dever do Estado assegurá-la (BRASIL, 1988). Ferraz e Bejamin (2004, p. 84), dizem que a responsabilidade de oferecer a saúde, é do Estado, ainda que haja delegação a iniciativa privada e concorrência entre eles. No entanto, o papel do Estado nesse caso, é de dar continuidade ao serviço se houver impossibilidade de entidades privadas com ou sem fins lucrativos faze-los. Há de se levar em conta, que a destinação dada pelo ente particular é a mesma dada pelo público, a de atender ao interesse social. Por isso, é legítimo analisar na decisão, a razoabilidade da medida tomada, já que essa também deve reger a Administração Pública. Não se pode considerar justo, retirar de pacientes da rede privada que tiverem reivindicado primeiro em razão de necessidade os aparelhos, para passa-los aos da rede pública. Pois seria uma forma de ferir o princípio da isonomia, fazer uma acepção dos usuários de um mesmo serviço de natureza pública. Outro ponto tratado pelo hospital, foi de que estaria faltando o requisito essencial para requisição administrativa, a urgência (BRASIL, TJ-SP, 2020, p. 87). Carvalho Filho (2014, p. 806) coloca que o perigo público iminente é pressuposto do instituto ao qual o ato de requisição é vinculado. Mas esses requisitos são cabíveis apenas ao administrador avaliar e não ao Poder Judiciário. A este é legítimo que examine se há vício de legalidade, arbítrio do administrador na avaliação do perigo, relativo ao motivo ou objeto do ato, ou falta de congruência entre esses, o que permite invalidação na via judicial. Inclusive esse foi o posicionamento colocado pelo juíz na sentença sobre o caso. A respeito disso, ele afirmou:   “Obviamente que, em certos casos, a pretexto de exercer a discricionariedade, pode a Administração Pública disfarçar uma ilegalidade. Tal questão deve ser analisada pelo Poder Judiciário, principalmente no que concerne às causas, motivos e finalidades do ato administrativo, sempre sob a análise da razoabilidade e proporcionalidade da conduta adotada pelo Administrador” (BRASIL,TJ-SP, 2020, p. 86)   Considerou que não foi o caso em voga, pois como o magistrado entendeu, não há nada que possa ser considerado ilegalidade, nem mesmo sobre o aspecto da discricionaridade. O ato se deu antes da publicação da Lei em Diário Oficial para que fosse preservada sua efetividade. O juiz não citou a necessidade do hospital particular e um possível prejuízo aos pacientes desse pela medida.  A urgência, considerou notória, pois se trata de uma pandemia mundial e foi fundamentada sob a égide do artigo 374, I do Código de Processo Civil (CPC/15) (BRASIL, 2015).   1.1.1 Isonomia entre usuários da rede pública e particular Em um caso, onde se discutiu a igualdade entre pacientes da rede pública e privada, a União, em março de 2020, requisitou todos os aparelhos da empresa fornecedora Magnamed S/A, os disponíveis para entrega e os que seriam produzidos nos próximos 180 dias seguintes, entre os quais, vinte estavam sendo auferidos pelo hospital particular Albert Einsten em São Paulo. O qual então, entrou com pedido de tutela provisória, para que fossem excluídos os ventiladores por ele adquiridos e que suas futuras compras não fossem prejudicadas pela Lei 13.979/20 que autorizou as requisições. (BRASIL, TRF-3, 2020, p. 3) O pedido para ser excepcionado do referido ato administrativo, fundamentou-se pelo Hospital ter uma notória utilidade pública, atuando com parcerias e convênios de gestão de estruturas públicas de saúde, disponibilizando leitos de UTI ao SUS, realizando atividades que dependem de respiradores, que com a aquisição prejudicada, poderia não atender as demandas.(Id, 2020, p.2). Diante do deferimento parcial de seu pedido, entrou com agravo de instrumento, ao passo que a União também, requerendo os 20 respiradores que não poderia mais requisitar, sob argumento de que haveria risco de dano grave, pela essencialidade dos ventiladores e que a decisão estaria relativizando a requisição administrativa, abrindo assim brecha para outras demandas de mesma natureza, sobrepondo o interesse privado ao público, segundo ela, além de outros pontos. E teve sua tutela deferida (Id, 2020, p. 4). Foi então, quando o hospital particular, mediante agravo interno, informou que os ventiladores já estavam em uso e ainda frisou que os assistidos por ele, eram pacientes do Hospital M’Boi Mirim, da rede pública mantido em parceria com o Einsten, explicando que atua justamente para atender os mesmos pacientes a que se objetiva com a requisição, as pessoas carentes. Portanto não prejudicaria atividades do Poder Público. Além disso, não poderiam simplesmente desligar equipamentos em uso na UTI, para devolvê-los a Magnamed, pois isso ocasionaria a morte de pelo menos vinte pessoas. (Id, 2020, p. 5). O judiciário não apreciou a liminar, alegando, que, obviamente os ventiladores não deveriam ser desligados, fosse na rede pública ou privada, mas sim, novos aparelhos deveriam ser devolvidos a Magnamed (Id, 2020, p.5). Na ação, o Hospital particular citou que, vidas pagantes não tem importância maior ou menor do que aquelas que dependem do SUS. E que é com o dinheiro das que pagam, que o hospital consegue atuar na rede pública. (Id, 2020, p.5) O relator no caso, disse haver de desconsiderar a destinação dada aos respiradores pelo hospital à rede pública, primeiro por se ater ao princípio da impessoalidade. E segundo, porque não poderia excepcionalizar os respiradores já comprados, sob pena de comprometer o abastecimento que se pretende ao fazer as requisições administrativas. Ainda, não poderia determinar que se condicionasse esses pedidos do Estado a uma contraprestação preexistente (Id., 2020, p. 7). E não havia nos autos, prova de que os equipamentos iriam para a rede pública associada ao hospital (Id., 2020, p.8). O juiz também ressaltou o seu papel nesses casos, quando há utilização do Executivo, de seus instrumentos de organização e gerenciamento de saúde, o qual deve ser metódico, apenas intervindo em violações flagrantes às leis e à Constituição (Id., 2020, p.7). Ele acrescentou que não faria distinção em termos de valoração e hierarquização da vida:   “A rigor, como adiante esclarecido, não se fez nem se fará, através de decisão judicial no âmbito da demanda em exame, qualquer distinção em termos de valoração e hierarquização da importância da vida e, portanto, sem estabelecer distinção prévia sobre ser mais importante dotar o sistema público ou a rede privada de atendimento médico-hospitalar, já que a destinação, baseada em critérios de urgência e necessidade, envolve juízo administrativo afeto ao Poder Público, tendo em conta dados e fatores de avaliação médica sistêmica.” (BRASIL, TRF-3, 2020, p.9)   Citou ainda, que a insinuação da rede privada beirou a leviandade e má fé processual. E que na verdade, o que se levou em consideração, foram os elementos probatórios levando a crer que não havia saturação da rede privada e por isso os equipamentos, poderiam ser redirecionados para rede pública (BRASIL, JF-SP, 2020, p.10). Ou seja, o judiciário alegou estar analisando precipuamente, a disponibilidade desses equipamentos, observando que não faltariam dessa forma, aos pacientes da rede privada.   1.2.  Disputa entre entes federativos, por respiradores fornecidos pelo particular Aparelhos já adquiridos pelos Estados e Municípios com fornecedores privados, foram mais de uma vez requisitados pela União, gerando assim litígios a serem levados a juízo. O Estado do Ceará e o Município de Fortaleza, adquiriram, por meio de contratos com a empresa particular Intermed Equipamento Médico e Hospitalar Ltda., 94 respiradores pulmonares, sendo 20 para o Instituto Doutor José Frota (IFJ), uma autarquia pertencente ao Município de Fortaleza, 24 para Secretaria de Saúde dele e 50 a Secretaria de Saúde do Estado (SESA). Os quais não foram entregues, por intervenção do Ministério da Saúde (MS), que requisitou, por meio de Ofício, toda produção existente e a ser produzida, no período de 180 dias subsequentes ao recebimento do mesmo (BRASIL, JF-CE, 2020, s.p). No entanto, em posterior Ofício, o MS retificou o primeiro, na parte em que ele iria confiscar os equipamentos. Dessa forma a empresa não teria justificativa para não fornecer os respiradores.  Conforme o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Ceará (MPE-CE) argumentaram, a contratação foi anterior ao Ofício e o próprio MS veio a excepcionar depois, os aparelhos já destinados a esses entes para fins de requisição (Id., 2020, s.p.). O juiz, nesse caso concedeu uma tutela liminar em sede de Ação Civil Pública, para que fossem suspensos os efeitos das requisições administrativas. Para que estando na posse da empresa privada ou da União, fossem entregues ao Estado e Município requerentes, fixando também multa diária em caso de descumprimento (Id., 2020, s.p.). O Magistrado, fundamentou sua decisão com base em outras, advindas de conflitos da mesma natureza, em que há uma disputa da União requisitando respiradores já adquiridos com entidades privadas, por outros entes federativos. Um deles tratando-se do Município de Recife em Pernambuco, pedindo que a decisão indeferindo liminar para entrega de equipamentos, fosse suspensa e o magistrado decidiu favoravelmente ao município. Dentre os argumentos, a Prefeitura de Recife explicou que já havia montado toda uma estrutura para fornecer o tratamento adequado a seus pacientes, várias Unidades de Tratamento Intensivo (UTI’s), com eletrocardiogramas, régua de gases medicinais, bombas de infusão, cardioversores, entre outros. Faltando apenas os respiradores, sem os quais, segundo eles, o tratamento, em caso de a doença ser de média e alta gravidade, é ineficiente (BRASIL, TRF-5 b, 2020, p. 02). A União teria requisitado todos os respiradores da Magnamed Tecnologia Médica S/A FILIAL, dos quais o Município já teria adquirido para devida destinação pública (Id., 2020, p. 02) O ente em questão também justificou a necessidade dos equipamentos para a cidade com alto índice de idosos, que representam a parcela da população considerada grupo de risco com o acometimento da doença, que pode sofrer com uma elevada taxa de letalidade. Em contrapartida, a destinação dada pela União aos ventiladores pulmonares não teria sido revelada, questionando-se a real necessidade e urgência do ato administrativo em questão (Id., 2020, p. 02) Foi colocada em pauta, toda questão econômica envolvendo os gastos feitos em função do tratamento para pacientes com COVID-19, que não teriam eficácia diante da falta de respiradores e consequentemente representariam um prejuízo ao erário, além do dano irreparável, caso a saúde pública do ente entrasse em colapso(Id., 2020, p. 03). Um outro ponto a ser destacado como argumento, é o que diz respeito a autonomia dos entes federativos (Id., 2020, p. 03), positivado na CRFB/88, no art. 18 (BRASIL, 1988). Não existe hierarquia entre os entes federativos, eles são autônomos, independentes entre si e complementares. Permitir que a União possa requisitar aparelhos já adquiridos por outro ente federativo seria ferir o princípio, sobrepondo os interesses daquela sobre este. Ainda que se possa argumentar que o interesse público da União abranja um maior número de pessoas que os interesses de um Município, nesse caso em análise, este último justificou a necessidade de uma maneira mais específica, clara, demonstrando a urgência devida, diferentemente da União. Como já afirmado anteriormente, esse juízo sobre a urgência cabe apenas ao administrador, porém o judiciário pode apreciar a questão, analisando se há vício de legalidade e arbítrio do administrador. O que não foi também apreciado nesta ação. Nesse caso, a medida tomada contra a decisão, foi a suspensão de liminar e sentença, pois é cabível ao Poder Público, pedir ao presidente do Tribunal, quando existe como foi demonstrado, perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, segundo artigo 15 da Lei 12016/09 (BRASIL, 2009). O magistrado ressaltou na decisão que não fez juízo de mérito com relação a lide, mas sim político com relação aos possíveis danos aos valores a serem defendidos (BRASIL, TRF-5 b, 2020, p. 4). Ainda sobre o conflito federativo envolvendo a requisição de bens públicos estaduais e municipais, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Mandado de Segurança nº 25.295/DF, entendeu ser inadmissível ainda que pela União, esse ato. No precedente, o Decreto Presidencial 5392/05 havia declarado Estado de Calamidade Pública no Sistema Único de Saúde (SUS), autorizando por isso, requisição pelo Ministério da Saúde sobre bens, serviços e servidores afetos de hospitais municipais. O Ministro Relator Joaquim Barbosa, na época entendeu haver falta de motivação expressa e o Ministro Eros Britto, ainda disse que se tratava não de requisição, mas de intervenção federal no município apossando-se de bens, serviços, servidores e recursos públicos municipais, pela União, sem que estivesse em situação de estado de defesa e do estado de sítio previstos pela CRFB/88, nos artigos 136, II E 137. Considerou ainda, que houve desafetação do Município, de serviço destinado também a ele, pela Constituição, segundo artigo 196 (BRASIL, STF, 2005). O Ministro também explicou que a Constituição, apenas determinou que a requisição incidisse sobre bens particulares. Ao que o outro Ministro Cezar Peluzo, acrescentou que a requisição pressupõe que o bem objeto da intervenção, tenha uma destinação diversa da prevista constitucionalmente, de atender iminente perigo público (Id, 2005). Esse último entendimento, é interessante na medida em que pode ser utilizado como argumento para questionar também a requisição de equipamentos em hospitais particulares. Nesse caso, a requisição só seria válida, em se tratando de fornecedores desses equipamentos. Diante da decisão do juiz federal do Ceará, para que fossem entregues, liminarmente, os ventiladores pulmonares ao Estado e ao Município de Fortaleza, como foi citado anteriormente, a União, insatisfeita, ingressou com Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo da decisão atacada. Ela alegou, que emitiu ofício, por meio do Ministério da Saúde excepcionando os aparelhos já adquiridos por outros entes federativos, mas que os eles não foram entregues a esses entes pela empresa Intermed, pois não haviam sido os contratos finalizados (BRASIL, TRF-5 a, 2020, p.2). O juiz indeferiu o pedido, por considerar haver necessidade de produção de provas quanto ao alegado sobre a finalização ou não dos contratos, o que não seria possível naquele momento do processo. O juiz também não aceitou o pedido de efeito suspensivo, por entender não haver ali risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Como ele justificou, os objetivos de ambos são os mesmos, combate a crise provocada pelo coronavírus. Ainda reconheceu maior legitimidade na demanda do Estado e do Município, por estarem mais próximos dos seus habitantes, com destinações mais específicas, determinadas (Id, 2020, p.6) .Todos esses argumentos do magistrado, corroboram o que foi analisado e concluído, anteriormente nesse artigo. A respeito de todos os argumentos apresentados pela União, de que seria a mais adequada e eficiente para fazer a distribuição de ventiladores para os entes federados. De que o Ministério da Saúde seria o órgão mais capaz de analisar quais as regiões seriam prioritariamente mais necessitadas, cuja a capacidade de respiradores instalados seriam insuficientes ou estariam perto do limite. De que seria o único a poder agir como um regulador natural do Sistema Único de Saúde. Destarte, que sua medida, seria a melhor, centralizando aquisições e distribuição dos equipamentos. Não ferindo, segundo ela, a competência dos entes. Pois ela, sendo a mediadora desses aparelhos, os distribuiria igualmente, na medida das necessidades de cada localidade. Sendo assim, mitigaria o poder econômico de alguns, em detrimento de outros (Id, 2020, p.2). O juiz apenas refutou essas alegações dizendo que a Lei 13.979/20, no seu artigo 3°, inciso VII, invocado pela União, fala apenas da requisição de bens e serviços de entes privados. Portanto não há justificativa cabível para reivindicá-los, uma vez que foram adquiridos pelo Estado e Município, não pertencendo mais ao particular que o fabricou (Id, 2020, p.6). Além disso, embora o juiz não tenha comentado na sentença, o próprio SUS tem como característica ser descentralizado, conforme artigo 198, inc.  I, da CRFB/88, in verbis:   “Art.198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;” (BRASIL, 1988)   O Município de Santana de Parnaíba foi mais um, dos muitos afetados pela requisição da União quando já havia adquirido os equipamentos anteriormente. Ele utilizou o caput do artigo acima para questionar a medida tomada pelo ente federado. E diz ainda que:   “(…)a centralização da aquisição dos ventiladores pulmonares pela União, sem norma que a ampare e regule como se dará a distribuição dos equipamentos para os demais entes da Federação, deixa a população do município requerente em absoluto abandono, sem chance de recuperação para os pacientes em estágios mais graves, embora tenham sido realizados investimentos na aquisição.”(BRASIL, JF-SP,2020)   Esse argumento, leva a conclusão de que em todos esses casos parecidos, onde há requisição pela União, de equipamentos já adquiridos, são obstadas a finalidade de combate a pandemia por entes locais que fundamentam muito bem a necessidade dos respiradores e fazem até o investimento financeiro. Em contraponto a uma justificativa vaga, de que melhor distribuiria eles e baseando-se nisso, fazem requisições administrativas deliberadamente. Vale lembrar, que um dos princípios que regem a Administração Pública é o da motivação, segundo a Lei 9784/99 no caput do artigo 2°. E os atos administrativos devem ser obrigatoriamente motivados quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses (BRASIL, 1999, art. 50, inc. I), como são os casos apresentados. O princípio diz respeito a declaração expressa do motivo que ensejou o ato (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p. 161). O §1° do artigo 50 da Lei 9784/99 também diz que a motivação deve ser clara, explícita e congruente (BRASIL, 1999). Considerando que a União, quando requisita para si, deixa em falta outro ente federativo, seria exigível que ao menos indicasse em uma fundamentação plausível para que localidades está requisitando os ventiladores, quais são as reais necessidades delas e porque sua demanda seria mais urgente que a do outro. Na decisão envolvendo Santana de Parnaíba, o juiz defendeu que os equipamentos ainda não pertenciam ao Município embora a compra dos ventiladores estivesse com a despesa extratificada em nota de empenho, pois os direitos reais sobre bens imóveis só se dão a partir da tradição, segundo o artigo 1226 do Código Civil (BRASIL, 2002). Ele não considerou a requisição válida por outros motivos, relativos ao ato administrativo que apresentou vícios de competência, forma e motivo. Esse último, muito importante, pois já defendido como essencial nesse trabalho e que não tem se observado na maioria das requisições feitas. Sobre isso o juiz fundamentou:   “E, por fim, também entendo demonstrado o vício de motivação, uma vez que os ofícios fazem referência genérica à “necessidade de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de interesse nacional decorrente do Coronavírus (COVID-19)”, o que consiste na finalidade do ato – embora não mencione critérios de distribuição e a destinação dos aparelhos. Do ato não constou expressa motivação, assim entendida a razão fática pela qual foi adotada a medida extrema de obstar a venda e requisitar todos os ventiladores pulmonares disponíveis e os que serão produzidos nos próximos 180 (cento e oitenta) dias. Nesse tópico, o Supremo Tribunal Federal, tem precedente no qual declarou a nulidade de requisição de bens sem indicação de motivo (MS 25.295-2/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 20.4.2005)”. (BRASIL, JF-SP, 2020, p.9)   Essa decisão do STF, em sede de Mandado se Segurança, citada pelo juiz, foi anteriormente destrinchada nesse artigo.   1.3 A necessidade de esgotar outras medidas administrativas. É importante o ente público verificar, que outras medidas poderiam ser tomadas para abastecer a rede pública de saúde, com os ventiladores. A própria Lei 13.979/20, por exemplo, que autoriza a requisição, também prevê a dispensa de licitação para bens e serviços destinados ao enfrentamento da pandemia. Inclusive, no caso aqui citado, em que o Ceará, adquiriu 50 ventiladores pulmonares por meio de sua Secretaria de Saúde, o fez através dessa medida (BRASIL, JF-CE, 2020). Barros Gomes e Marcelo Gomes (2020, p. 186) questionam em sua obra, a razoabilidade da requisição. Alexandrino e Paulo (2008, p. 204) dizem que o princípio da razoabilidade encontra aplicação, em especial, no controle de atos discricionários que resultem em restrição ou condicionamento a direitos dos administrados. Esse é o caso da requisição. Eles explicam:   “(…) se trata de controle de legalidade ou legitimidade, e não de controle de mérito, vale dizer, que não se avaliam conveniência e oportunidade administrativas do ato, o que implicaria, se fosse o caso, a sua revogação- mas sim sua validade. Sendo o ato ofensivo aos princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade, será declarada sua nulidade; o ato será anulado, e não revogado.” (ALEXANDRINO; PAULO,2020, p. 204, grifo do autor)   Eles acrescentam que o Poder Judiciário, ao ser provocado nessas situações, deve analisar adequação, necessidade e proporcionalidade. Sendo que a adequação corresponde ao ato ser efetivo para atingir a finalidade perseguida. E a necessidade é relativa a existência de algum outro meio menos gravoso e igualmente eficaz para se ter esses objetivos (ALEXANDRINO; PAULO,2008, p.205). A proporcionalidade é o requisito que proíbe os excessos, os meios utilizados pelo administrador, devem ser proporcionais ao fim por ele almejado. (Id, 2008, p. 206) Ora, em muitos casos, a requisição tem obstado o próprio meio perseguido, se mostrando inadequada, além de que a necessidade também não se faz presente, na medida em que há outros meios de se enfrentar a pandemia, adquirindo os ventiladores por meio da contratação direta por exemplo. E esses requisitos faltados, comprometem também o da proporcionalidade, justamente porque é uma medida muito mais drástica frente a uma alternativa mais apropriada. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), propôs ADPF, com pedido para que o SUS passasse a controlar e gerenciar todos os leitos, públicos ou privados. Requereu assim aos entes federativos, a requisição da totalidade de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas relativos à saúde (BRASIL, STF, 2020, p. 5). O juiz arguiu que a situação de perigo exigida pela lei para realizar a requisição, só poderia ser verificada por um administrador e ele decidir sobre isso feriria a separação de poderes. E ainda que a medida, caso fosse apreciada, seria uma imposição da requisição sem analisar antes a existência de outra medida cabível. Conforme transcrito abaixo:   “Por essa razão, vulneraria frontalmente o princípio da separação dos poderes a incursão do Judiciário numa seara de atuação, por todos os títulos, privativa do Executivo, substituindo-o na tomada de decisões de cunho político-administrativo, submetidas a critérios de conveniência e oportunidade, sobretudo tendo em conta a magnitude das providências pretendidas nesta ADPF, cujo escopo é nada mais nada menos do que a requisição compulsória e indiscriminada de todos os bens e serviços privados voltados à saúde, antes mesmo de esgotadas outras alternativas cogitáveis pelas autoridades federais, estaduais e municipais para enfrentar a pandemia.”(BRASIL, STF, 2020, p. 9, grifo nosso)   Ou seja, este também foi um caso em que o judiciário, em sua última instância, considerou necessário verificar outras formas de se combater a pandemia antes de se cogitar a requisição.   Conclusão No final do ano de 2019 e início de 2020, uma nova doença surgiu, com características altamente contagiosas e sendo, em muitos casos, mortal. Essa situação não tardou se tornar uma questão de saúde pública, tendo em vista a potencial sobrecarga de pacientes, tanto no sistema público como privado de saúde. As autoridades públicas passaram a ter como prioridade a defesa da saúde, com instalação de leitos de UTI e equipamentos necessários para o tratamento da doença. Entre eles, os respiradores pulmonares, essenciais para a recuperação de pacientes graves. Frente a pandemia, foi prevista uma grande demanda por ventiladores, a qual fez com que o Poder Público precisasse adquiri-los com urgência. Para isso a Lei, baseada no que já garante a Constituição, autorizou a requisição administrativa desses aparelhos. Esse é um instituto administrativo, que permite a retirada coativa de bens particulares pela administração pública com fim de atender a um interesse maior, coletivo e urgente. As autoridades, de fato fizeram uso desse recurso, de forma que, o particular, vendo seu bem requisitado, questionou a necessidade do ato e os abusos, ilegalidades e arbítrio envolvidos nele. Como no primeiro caso apresentado nesse artigo. Nele, observou-se que a autoridade judicial não teve dificuldade em considerar válida a requisição feita pelo Município ao particular. Tendo em vista que não poderia julgar se a medida foi necessária, cabendo apenas ao administrador fazer isso. A urgência se mostrou notória por se tratar de uma pandemia e também não houve ilegalidade. Contudo, o presente artigo trouxe a reflexão acerca da finalidade em comum, do público e do particular, em exercer um serviço social. Ainda que na rede privada não haja caráter universal, continua tendo um papel complementar e abrangente de parte da população, que também precisa da assistência. Ainda que com a requisição, esses pacientes da rede privada se desloquem para a pública, na falta dos equipamentos no particular, continuaria havendo respiradores sendo necessitados pela mesma quantidade de pessoas, continuando sobrecarregado o sistema de saúde como um todo, não resolvendo problema algum. A requisição, poderia ter efetividade, sobrando equipamentos na rede privada, caso contrário o que se tem é a valoração de pacientes públicos e privados, ou uma medida obsoleta. No segundo caso de requisição, o magistrado disse que a decisão buscou observar a disponibilidade dos aparelhos, para autenticar a requisição. Os casos mais complicados que foram levados a juízo e aqui verificados, envolveram requisição pela União, de aparelhos já adquiridos pela Administração Pública a partir de um outro ente federativo, por acrescentar ao litígio uma questão de conflito federativo. A tendência do judiciário nesse caso, foi de conceder os respiradores aos entes que o adquiriram primeiro, gerando inclusive precedentes utilizados nas justificativas das sentenças posteriores. O que se observou em todos esses casos, foi uma falta de justificativa da União para requisitar os aparelhos em detrimento de outro ente federativo, não especificando a aplicação deles e nem sua necessidade mais urgente. Houve o argumento de que melhor avaliaria e distribuiria os ventiladores, mas não foi juridicamente plausível frente a natureza descentralizada do SUS. Outro argumento contrário a requisição de equipamentos de saúde, foi apresentado em um precedente do STF, onde o ministro Cezar Peluzo defendeu que a requisição pressupõe destinação diversa de atender perigo público. Essa compreensão deslegitima até mesmo casos onde não há conflito federativo. A Intervenção Pública na propriedade particular é um recurso delicado, pois se trata de valores extremamente protegidos pela Constituição, que é a propriedade particular e o interesse público. A supremacia do interesse público a justifica, mas deve ser utilizada como última alternativa. Além disso, há uma busca em comum por atender esse interesse, mesmo da rede privada. O diálogo nesse caso é essencial, para verificar inclusive, a disponibilidade dos bens. Mas precipuamente, o Poder Público tem outras alternativas e não foi observado nenhuma motivação expressa, do porque as requisições estão sendo preferidas ao invés de uma outra medida, como a contratação direta por exemplo, ou se há impossibilidade de tomar outra iniciativa. Esse artigo deixa então, esse questionamento.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/uma-analise-do-comportamento-das-decisoes-judiciais-frente-a-requisicao-administrativa-por-respiradores-durante-a-pandemia-de-covid-19-2/
O Desenvolvimento Nacional Sustentável nas Licitações
O presente artigo na área de Direito Administrativo foi desenvolvido com o objetivo de desvelar aspectos das licitações sustentáveis, em especial sobre o conceito de desenvolvimento nacional sustentável e a sua relação com as contratações públicas. A pesquisa qualitativa será baseada em livros e artigos sobre o assunto, assim como na legislação. Com a presente pesquisa procura-se desenvolver a sustentabilidade e a implicação do novo objetivo da licitação, relacionando-se com os demais princípios do instituto. Conclui-se pela utilização da licitação como forma de aplicação de políticas públicas, na seara de promover a adoção de práticas sustentáveis no âmbito das administrações públicas e incentivar o setor privado.
Direito Administrativo
Introdução A inclusão da “promoção ao desenvolvimento nacional sustentável” no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993 como um dos objetivos da licitação ampliou consideravelmente as hipóteses de utilização a serem dadas a tal instituto jurídico. Usar do modo de contratação do Estado com os particulares como uma forma de agenciamento ao desenvolvimento nacional sustentável ainda é um conceito recente no ordenamento jurídico brasileiro, apesar de haverem entendimentos no sentido de que, independentemente da redação proposta pela Lei nº 12.349/2010, tal princípio já estaria implícito na Constituição Federal de 1988. No presente artigo buscou-se verificar se, o Estado, grande consumidor de bens e serviços, ao promover a licitação como meio de satisfação das suas necessidades, pode usar de sua grande capacidade econômica para incentivar a sustentabilidade, diante da inserção do princípio do desenvolvimento nacional sustentável no art. 3º da Lei nº 8666/1993. Ainda, como complemento a questão, buscou-se examinar se é obrigatória a observação de critérios sustentáveis nas licitações e compras públicas ou é mera discricionariedade do gestor público, bem como, se a observação de exigências de natureza ambiental e de sustentabilidade poderia frustrar o caráter competitivo de certame licitatório. No desenvolvimento do artigo, optou-se, na metodologia de abordagem, o método dedutivo, onde, a partir da relação entre enunciados básicos, denominadas premissas, chegou-se à uma conclusão, sendo analisadas várias legislações e pensamentos doutrinários, apontando-se os mais adequados para aplicação ao instituto da licitação sustentável. Na metodologia de procedimento, a monográfica, explorando-se a legislação, as doutrinas, e a jurisprudência dos tribunais de contas, fazendo-se, após, uma análise que permita definir o tema. Os instrumentos utilizados no desenvolvimento caracterizam-se pelas pesquisas bibliográfica, documental e legislativa, e ainda, englobando artigos de revista e internet, além de vários outros meios e técnicas de pesquisa direta e indireta.   1 O conceito de licitação e sua utilização como instrumento de aplicação de políticas públicas A Administração Pública brasileira, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988, foi incumbida de prestar vários serviços, considerados essenciais para uma convivência harmoniosa e digna entre os cidadãos. Para tanto, localizando e planejando as atividades do serviço público, o Estado necessita adquirir e contratar uma enorme quantidade de bens e serviços. Nesse momento é que o instituto da licitação acontece. Marçal Justen Filho (2013, p. 494) a define como:   “A licitação é um procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos visando a seleção da proposta de contratação mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica.”   Pode-se observar que é um procedimento administrativo, ato formal, disciplinado por lei, que visa promover a escolha da proposta que melhor atenda aos interesses da Administração Pública. Ao proceder com a Licitação, o ente público, após regular procedimento e finalização do certame, celebrará um contrato administrativo, regulado também pela Lei de Licitações e definido no art. 2º, parágrafo único, do diploma legal. Desse modo, já com o conceito anteriormente abordado, estão inseridos os objetivos de tal instituto: estabelecer condições de igualdade entre os interessados em contratar com a Administração e satisfazer o interesse público com a proposta que melhor o atenda. José dos Santos Carvalho Filho (2014, p. 243-244) destaca que um dos fundamentos inspiradores da licitação foi a moralidade, ponderando que veio para prevenir condutas de improbidade por parte dos gestores públicos, como a escolha pessoal por determinado contratado, já se relacionando com o princípio da impessoalidade. O cumprimento do princípio constitucional da isonomia é o que fundamenta todo o arcabouço da licitação. Em seu artigo 3º e parágrafos seguintes, a Lei de Licitações dispõe sobre condutas vedadas aos agentes públicos que possam comprometer o caráter competitivo do certame. Tendo em vista a dimensão e enorme quantidade de gastos públicos, tais dão fundamento de que os contratos celebrados com os particulares refletem significativamente na economia. Assim, reduzir o instituto somente a um procedimento que procura satisfazer por critérios econômicos (proposta de menor valor) seria desconsiderar o impacto econômico e social causado na sociedade. Marçal Justen Filho (2014, p. 17) destaca a importância da contratação administrativa como instrumento de implementação de políticas públicas, informando que os gastos públicos são um fator essencial de promoção do desenvolvimento econômico e social. Como exemplo, cita o pensador econômico mundialmente conhecido, John Mayard Keynes, notório por ter desenvolvido a teoria entre os gastos públicos e realização de políticas públicas de interesse geral da sociedade. Intervindo significativamente na economia mediante a aplicação de recursos financeiros, o Estado estará contribuindo para a concretização fática dos princípios constitucionais, como do artigo 3º, inciso II da Constituição Federal, que estabelece como objetivo da República a promoção do desenvolvimento nacional. E, especificamente sobre o tema ambiental, o artigo 225 dispõe que todos tem direito à um meio ambiente ecologicamente equilibrado e é dever do Poder Público e da sociedade garanti-lo para as gerações presentes e futuras. Além disso, o artigo 170, inciso VI do mesmo diploma legal, dispõe como princípio da atividade econômica a defesa do meio ambiente. Outra importante contribuição do Estado para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável é o seu aspecto regulador, na medida em que obrigará aos interessados em contratar com a administração pública a alterarem seus métodos de produção, exigindo que observem as obrigações ambientais. Marcos Weiss Bliacheris (2015, p. 148) conclui que: “De fato, o Estado, ao promover as licitações sustentáveis toma a função de um duplo regulador, o de regular a produção por meio de sua função clássica, ao regular os modos de produção e em seu papel indutor, ao assumir o papel de consumidor sustentável e colocar o seu peso na economia a serviço deste objetivo.”   Inclusive, esta foi uma das propostas motivadoras da edição da Medida Provisória nº 495/2010, que posteriormente veio a ser convertida na Lei nº 12.349/2010, conforme consta na exposição de seus motivos: “4. Com efeito, observa-se que a orientação do poder de compra do Estado para estimular a produção doméstica de bens e serviços constitui importante diretriz de política pública. São ilustrativas, nesse sentido, as diretrizes adotadas nos Estados Unidos, consubstanciadas no ‘Buy American Act’, em vigor desde 1933, que estabeleceram preferência a produtos manufaturados no país, desde que aliados à qualidade satisfatória, provisão em quantidade suficiente e disponibilidade comercial em bases razoáveis. No período recente, merecem registro as ações contidas na denominada ‘American Recovery andReinvestmentAct’, implementada em 2009. A China contempla norma similar, conforme disposições da Lei nº 68, de 29 de junho de 2002, que estipulada orientações para a concessão de preferência a bens e serviços chineses em compras governamentais, ressalvada a hipótese de indisponibilidade no país. Na América Latina, cabe registrar a política adotada pela Colômbia, que instituiu, nos termos da Lei nº 816, de 2003, uma margem de preferência entre 10% e 20% para bens ou serviços nacionais, com vistas a apoiar a indústria nacional por meio da contratação pública. A Argentina também outorgou, por meio da Lei nº 25.551, de 28 de novembro de 2001, preferência aos provedores de bens e serviços de origem nacional, sempre que os preços forem iguais ou inferiores aos estrangeiros, acrescidos de 7% em ofertas realizadas por micro e pequenas empresas e de 5%, para outras empresas. (BRASIL, 2010)”   Assim sendo, pode-se afirmar que a utilização da licitação como meio de promoção do desenvolvimento nacional sustentável é uma forma de aplicação de políticas públicas que visam dar concretização aos princípios constitucionais e objetivos da República.   2 O desenvolvimento nacional sustentável O conceito de desenvolvimento nacional sustentável traz uma carga axiológica e social muito abrangente, podendo abarcar os campos da economia, política, sociologia, ecologia, e demais. Um dos conceitos mais citados é aquele presente no Relatório de Brundtland de 1987, no qual a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente da ONU apresentou documento denominado “Nosso Futuro Comum”, que definiu o desenvolvimento sustentável, resumidamente, como a capacidade de utilizar os recursos naturais satisfazendo as necessidades presentes mas sem comprometer as gerações futuras. Juarez Freitas (2016, p. 43) define o princípio da sustentabilidade como: “[…] trata-se do princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem estar.”   De início, já se observa o caráter múltiplo que a abrange o tema, de modo que o mesmo emerge questões de justiça social, meio ambiente adequado, responsabilidade das esferas pública e privada, reconhecimento do direito das gerações futuras, dentre outros. O objetivo disposto no art. 3º da Lei de Licitações também pode ser considerado de modo mais abrangente, na medida em que se aplica à todos os entes da federação e à todas a contratações públicas. Utilizando do conceito do autor acima (FREITAS, 2016), podemos sintetizar a sustentabilidade como multidimensional, pois propõe uma alteração nos mais variados campos da sociedade. É um princípio constitucional de aplicação imediata, encontrando previsão inclusive na legislação infraconstitucional (a exemplo do disposto no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993). Enquanto dimensão jurídica da sustentabilidade, entende-se como um princípio jurídico que acarreta na obrigação do Estado e da sociedade de garantir à todos os cidadãos e às futuras gerações um meio ambiente limpo e sadio. Por consequência, reconhece a nova titularidade de direitos às gerações futuras, conforme prevê o art. 225 da Constituição Federal/1988. Juarez Freitas (2016, p. 73-75), relaciona uma série de mudanças que consequentemente são necessárias em virtude da aplicação do princípio do desenvolvimento nacional sustentável, com destaque para a garantia dos seguintes direitos fundamentais: direito à longevidade digna; direito à alimentação saudável; direito ao meio ambiente limpo, com inventivo às energias renováveis; direito à educação de qualidade; direito à democracia; direito à informação livre e de conteúdo qualificado; direito ao processo judicial e administrativo célere; direito à segurança; direito à renda oriunda do trabalho decente, com incentivo à poupança e à responsabilidade fiscal; direito à boa administração pública e direito à moradia digna e segura. Além das disposições constitucionais, encontra respaldo em mais diplomas legais, merecendo destaque: a Lei nº 6.938/81 que institui a Política Nacional do Meio Ambiente com a “compatibilização do desenvolvimento econômico social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, inciso I); a Lei nº 10.257/2001 que estabelece diretrizes gerais da política urbana; a Lei nº 9.433/1997 – Política Nacional de Recursos Hídricos; a Lei nº 11.445/2007 – Diretrizes para o saneamento básico; a Lei nº 9.985/2000 – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza; a Lei nº 12.187/2009 que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima; a Lei nº 12.587/2012 – Política Nacional de Mobilidade Urbana, dentre outros dispositivos legais que corroboram a sustentabilidade como princípio norteador. Assim sendo, não restam dúvidas de que o princípio da sustentabilidade encontra total respaldo legal não somente na Constituição, mas também em dispositivos infralegais, os quais incorporam notadamente a adoção de práticas sustentáveis nas mais diversas áreas.   3 As licitações sustentáveis Como exposto alhures, a Administração Pública tem a obrigatoriedade de licitar, bem como, o princípio do desenvolvimento nacional sustentável encontra respaldo constitucional e infraconstitucional, sendo, portanto, valor e objetivo a ser buscado tanto pelo Estado como pela sociedade. Primeiramente, numa definição contida no endereço eletrônico do Ministério do Meio Ambiente, consta que: “[…] pode-se dizer que as compras públicas sustentáveis são o procedimento administrativo formal que contribui para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, mediante a inserção de critérios sociais, ambientais e econômicos nas aquisições de bens, contratações de serviços e execução de obras. De uma maneira geral, trata-se da utilização do poder de compra do setor público para gerar benefícios econômicos e socioambientais.(BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, 2017).”   Observa-se que o órgão ministerial apresenta a licitação sustentável como uma forma de utilização da enorme capacidade de compra do Estado para gerar benefícios nas esferas econômica e socioambiental, mediante a fixação de critérios que permitam selecionar a proposta mais vantajosa considerando os aspectos sociais, ambientais e econômicos envolvidos na aquisição do bem ou na contratação do serviço.As licitações sustentáveis são também denominadas de “compras públicas sustentáveis”, “eco aquisição”, “compras verdes”, “compra ambientalmente amigável” e “licitação positiva”. Christiane de Carvalho Stroppa (apud MENEGUZZI, 2015, p. 24) define a licitação sustentável como: “[…] um processo por meio do qual as organizações, em suas licitações e contratações de bens, serviços e obras, valorizam os custos efetivos que consideram condições de longo prazo, buscando gerar benefícios à sociedade e à economia e reduzir os danos ao meio ambiente natural.”   O conceito aborda a questão da valoração dos “custos efetivos” considerados não só imediatamente, mas a longo prazo, reduzindo os possíveis danos gerados ao meio ambiente natural. É neste sentido também que a Consultoria-Geral da União em documento denominado “Guia Nacional de Licitações Sustentáveis” elenca a licitação sustentável de um modo mais abrangente: “Licitação sustentável, por sua vez, é a licitação que integra considerações socioambientais em todas as suas fases com o objetivo de reduzir impactos negativos sobre o meio ambiente e, via de consequência, aos direitos humanos. Trata-se de uma expressão abrangente, uma vez que não está delimitada pelo procedimento licitatório em si, mas perpassa todas as fases da contratação pública, desde o planejamento até a fiscalização da execução dos contratos. (CARVALHO; FERREIRA; VILLAC, 2016, p. 12-13)”   A noção exposta acrescenta a necessidade de incorporar a sustentabilidade em todas as fases da licitação: no planejamento e constatação da necessidade de adquirir/contratar; durante a fase externa, com a publicação de edital que disponha de forma clara as condições para a seleção da proposta que coadune com critérios sustentáveis e durante a execução do contrato.Referido documento ainda menciona que são características da licitação sustentável: a redução do consumo; a análise de todo o ciclo de vida do produto para determinar sua vantajosidade econômica; o estímulo para que o mercado assimile e comece a adotar práticas sustentáveis e o incentivo para a inovação na forma de reduzir e racionalizar os impactos nos recursos naturais. Estando previsto o princípio da promoção do desenvolvimento nacional sustentável na norma geral de licitações e contratos administrativos, deve ser aplicado por todos os entes da federação. Freitas (2016, p. 253) sustenta que não há margem para discricionariedade pelo administrador público em aplicar a sustentabilidade nos procedimentos licitatórios, dado ser cogente valor constitucional. Promover o desenvolvimento nacional sustentável através da licitação implica em uma releitura dos demais princípios aplicáveis ao procedimento sob a ótica da sustentabilidade. É necessário frisar que, a promoção da sustentabilidade não significa que os demais princípios (isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade, vinculação ao instrumento convocatório e demais aplicáveis) não serão aplicados. Muito pelo contrário, diante da carga valorativa e dos diferentes aspectos ligados ao desenvolvimento sustentável (econômica, social, ética, ambiental), sua aplicabilidade está intrinsecamente ligada com a efetivação dos demais princípios constitucionais e os específicos do procedimento licitatório, neste sentido: “A legitimidade dos requisitos de sustentabilidade e dos regimes de preferências destinados a fomentar o desenvolvimento nacional condiciona-se, pois, indelevelmente à observância dos limites impostos pelos princípios precedentes e concorrentes. Assim, a economicidade e a vantajosidade passam por uma releitura que as confirma e potencializa, a partir de sua interconexão com as cláusulas (a serem obrigatoriamente previstas nas licitações e nos contratos) ditadas pelos padrões específicos de sustentabilidade e preferencialidade. (BICALHO, 2013, p. 1245-1254).” A “proposta mais vantajosa para a Administração” será aquela que está alinhada com as políticas públicas da sustentabilidade, nos dizeres de Juarez Freitas (2016, p. 260). Também para fazer a estimativa do preço, deverá pautar-se na legalidade e na razoabilidade como norteadores para os critérios em busca do desenvolvimento nacional sustentável, para não infringir na isonomia do certame. O gestor público será instado a levar em consideração os custos e a estimativa de efeitos da contratação/aquisição a longo prazo, não somente na visão reducionista a curto prazo, sob a estreita visão do mandato eleitoral. Para tanto, o autor sugere três premissas para a aplicação exitosa no âmbito das licitações e contratações públicas sustentáveis. A primeira diz respeito à fase interna, na qual o administrador deverá indagar se realmente ela é necessária e se levou em consideração a estimativa dos custos diretos e indiretos, bem como os benefícios ambientais, sociais e econômicos da aquisição/contratação/obra. Além de que, se está amparada no arcabouço jurídico e com suficientes critérios imparciais e probos para a escolha. Neste sentido, a motivação da escolha de critérios sustentáveis deverá ser justificada, na forma do artigo 50 da Lei nº 9784/1999 (Processo Administrativo). Feito isto, na definição do objeto, deverá inserir critérios de avaliação da proposta com os requisitos de sustentabilidade (nos aspectos ambiental, econômico e social). Nisto, convém ressaltar que o artigo 6º, inciso IX e o artigo 12, inciso VII da Lei nº 8.666/1993 dispõem que: “IX- Projeto Básico-conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos […] Art. 12. Nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços serão considerados principalmente os seguintes requisitos: VII- impacto ambiental. (BRASIL, 1993).” (grifo nosso)   Eduardo Fortunato Bim (2015, p. 199) faz ressalva que: “Esse impacto deve ser globalmente considerado. É o impacto ambiental do ciclo de vida, analogamente ao custo do ciclo de vida, que deve ser considerado, não apenas na execução da obra, mas na sua manutenção e operação, incluindo ainda eventual desativação/desmobilização e geração de resíduos.”   Nota-se que já existe previsão para a obrigação de adequado tratamento do impacto ambiental e dos custos da obra. Freitas (2016, p. 263) exemplifica “não se considere exclusivamente o custo econômico imediato para a construção de prédio, mas também o da manutenção e o da operação, à vista das soluções e dos materiais escolhidos.” Sendo certo que, sob o prisma da sustentabilidade, a avaliação do custo da obra deverá levar em conta as estimativas dos custos diretos e indiretos e as externalidades geradas pelo empreendimento. Na terceira questão, aponta para a execução do contrato, na fiel salvaguarda do cumprimento das obrigações celebradas. A fiscalização precisará se os custos diretos e indiretos previstos no contrato estão de acordo com a estimativa e se estão sendo bem executados, sempre sob o princípio da proporcionalidade, inclusive, mediante a aplicação das penalidades por descumprimento das cláusulas contratuais, na forma prevista nos artigos 78 e 87 da Lei nº 8.666/1993. O próprio princípio da igualdade admite sua mitigação em casos que estejam coadunados com objetivos e valores constitucionais. Neste sentido, convém fazer menção ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello (apud BARCESSAT, 2015, p. 75): “Em sendo abstrata, a lei é genérica, ou seja, abarca os gêneros em todas as medidas descritas. Sendo genérica, não pode excepcionar, a não ser quando as exceções forem oriundas de critérios objetivos, baseados em permissivos constitucionais inequívocos.” Percebe-se que a isonomia admite o tratamento diferenciado para as ocorrências que estejam legalmente amparadas nos instrumentos legais e justificados mediante correlação com os dispositivos constitucionais. Sendo que, no caso das licitações sustentáveis, existe previsão expressa na própria Lei Geral de Licitações (art. 3º, caput) e amparo na Constituição Federal/1988, especialmente nos artigos 170, inciso VI e 225. Este também é o entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 384): Ainda outra exceção à regra da isonomia diz respeito às normas que permitem exigências, no instrumento convocatório, que favoreçam o desenvolvimento sustentável, em consonância com o princípio da licitação sustentável (analisado no item 9.3.10); tais exigências são compatíveis com os princípios da isonomia e da razoabilidade, já que as cláusulas discriminatórias, no caso, têm por objetivo a proteção do meio ambiente, com fundamento em preceitos constitucionais,contidos especialmente nos artigos 170, VI, e 225, §1º, V.   Sintetizando, Barcessat (2015, p. 76) pondera que a Administração Pública poderá optar por especificar objetos de licitação que venham a contribuir para a promoção da sustentabilidade, esclarecendo que a vedação da lei é para exigências não justificadas juridicamente e que não tenham relação com os objetivos da licitação. Cita, como exemplo, a possibilidade de cobrança de móveis com madeira certificada ou material elétrico com certificado de baixo consumo de energia. De outro norte, Marçal Justen Filho (2014, p. 76) argumenta que devem ser ponderados os princípios e objetivos da licitação, indicando que, possivelmente, nem sempre a proposta que considere a proteção ao meio ambiente será a de valor econômico mais baixo. Inclusive, o autor ressalta que a alteração do art. 3º foi no sentido de garantir que o julgamento da vantajosidade seja considerada não estritamente sob o viés econômico restrito. Complementando o ponto e fazendo já correlação com o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, pode-se auferir que a característica de se obter a melhor proposta é de conseguir a melhor qualidade possível pelo menor preço. Contudo, a proposta de menor valor estará inevitavelmente condicionada ao atendimento das exigências previstas no instrumento convocatório, que deverão estar expressas de forma clara no edital, conforme prevê o artigo 45, §1º da Lei nº 8.666/1993. Também a Lei nº 10.520/2002, que instituiu o pregão estabelece em seu artigo 4º, inciso X: “para julgamento e classificação das propostas, será adotado o critério de menor preço, observados os prazos máximos para fornecimento, as especificações técnicas e parâmetros mínimos de desempenho e qualidade definidos no edital. (BRASIL, 1993)”   Nesse sentido, explica Eduardo Fortunato Bim (2015, p. 201): “Se os padrões ambientais interessam ao Estado, eles devem ser inseridos nas licitações e descritos nos editais de maneira clara e precisa, evitando o indesejado aumento da subjetividade. A licitação sustentável não viola o julgamento objetivo das propostas porque os padrões devem estar claros no edital, inclusive os de julgamento, se as exigências ambientais contarem pontos.”   Assim, a definição clara e objetiva de critérios sustentáveis nos Editais de Licitação vincularia os licitantes, o que, consequentemente, apontaria para uma seleção de proposta mais vantajosa respeitando o princípio da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo. Entretanto, convém ponderar que o aumento de critérios de sustentabilidade nos Editais deve dar-se de forma gradativa, possibilitando que o mercado se adeque a nova realidade, conforme entendimento do Tribunal de Contas da União em medida liminar deferida por decisão monocrática, o Relator Ministro Benjamin Zymler, no processo nº 003.405/2010-9-TCU: “Entre as possíveis irregularidades suscitadas na representação formulada ao TCU, e que justificaram a adoção do provimento cautelar, destacava-se a exigência editalícia de comprovação, por parte do licitante, de que o equipamento estaria em conformidade com a ‘norma EPEAT, na categoria GOLD’, o que, em síntese, demonstraria que o equipamento atendia a normas internacionais de proteção ambiental. Para a representante, a aludida exigência técnica era restritiva à competitividade do certame. Em seu despacho, considerou o relator ‘louvável a preocupação dos gestores em contratar empresas que adotem em seus processos produtivos práticas responsáveis ambientalmente’. No entanto, para ele, ‘a adoção dessas restrições ambientais deve se dar paulatinamente, de forma que os agentes do mercado possam se adaptar a essas novas exigências antes delas vigorarem plenamente. Caso contrário, estar-se-ia criando uma reserva de mercado para as poucas empresas que cumprirem de antemão essas exigências, implicando violação ao princípio constitucional da livre concorrência, maiores custos e reduzidas ofertas de produtos’. No caso concreto, o reduzido número de empresas aptas a preencher o requisito ambiental editalício (em torno de três), acabaria, em princípio, ‘por reduzir excessivamente a competitividade do certame’. Esse fato indicava que a exigência, ‘ao menos no presente momento, é desarrazoada’. O Plenário, por unanimidade, referendou a cautelar. Decisão monocrática no TC-003.405/2010-9, rel. Min. Benjamin Zymler, 24.02.2010. (grifo nosso).”   Verifica-se que, mesmo antes da alteração do artigo 3º da Lei de Licitações, alguns entes federais já vinham adotando critérios em suas aquisições, no entanto, de forma proporcional e paulatinamente, de maneira que não venha a restringir o caráter competitivo do certame. Outro ponto diz respeito ao princípio da eficiência, previsto no art. 37 da Constituição Federal/1988, incluído pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998, conhecida como a reforma da Administração Pública. José dos Santos Carvalho Filho (2014, p. 30-32) explica que tal inserção revelou um descontentamento da sociedade na qualidade da prestação dos serviços públicos, o que, por só ser acrescentado no plano Constitucional não gera mudanças significativas, mas que é necessário uma mudança nas práticas dos governantes. O autor explica que: “O núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que émais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõea execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional.Há vários aspectos a serem considerados dentro do princípio, como a produtividade eeconomicidade, qualidade, celeridade e presteza e desburocratização e flexibilização.” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 31)   Pode se fazer uma conexão com a sustentabilidade no aspecto econômico, quando exige que se evitem desperdícios ou empreendimentos desnecessários para a adequada prestação dos serviços públicos, prezando por uma Administração Pública que planeja e monitora seus atos e o montante de recursos (materiais, humanos, técnicos) empregados. Correlacionando com o aspecto do desenvolvimento nacional sustentável, Emery (2016, p. 93) explica: “[…] eficiente será o processo que alcance o máximo de objetivos fundamentais com a utilização e dissipação da menor quantidade de recursos possíveis, em que recursos, como dito, não significam apenas os recursos financeiros, mas a totalidade de recursos disponíveis, e objetivos não são apenas os imediatos, mas também os de longo prazo, incluindo a disponibilidade de recursos naturais e a possibilidade de uma vida saudável e plena das gerações futuras.”   Tendo como pressuposto o valor constitucional do princípio da sustentabilidade e que a eficiência será norteada pelo atendimento dos objetivos da Carta Magna, pode-se afirmar que: eficiente será o ato que atue por objetivo de concretizar os direitos fundamentais, nas visões a médio e longo prazo, com condutas sustentáveis, que prezem pela redução da emissão de gases de efeito estufa, tratamento da água e esgoto, serviços médicos apropriados, com redução da poluição atmosférica. Sendo certo que, mesmo a eficiência estando ligada à aspectos de orçamento e responsabilidade fiscal, deve também ser medida qualitativamente, considerando a soma de benefícios obtidos além da economia de recursos imediata, conforme argumenta o mesmo autor (EMERY, 2016, p. 96). Por fim, a alteração da finalidade da licitação afetará os demais princípios aplicáveis, levando a uma releitura dos mesmos, mas considerando uma interpretação que se valha de proporcionalidade entre os mesmos, na seara de uma harmonia entre todos, necessária para que a licitação sustentável não venha a se revestir de uma ilegalidade abusiva. Mas, é possível vislumbrar que a sustentabilidade no âmbito dos procedimentos licitatórios encontra total consonância com os demais princípios.   Considerações finais Assim sendo, procurou-se apresentar o significado da licitação sustentável, sustentando a noção do desenvolvimento nacional sustentável, bem como, a nova definição dos objetivos da contratação pública. Na primeira parte, apresentou-se o conceito da licitação, abarcando os seus princípios e objetivos legais, bem como, a possibilidade de usá-la como meio de aplicação de políticas públicas. Chegou-se à conclusão de, dada a enorme capacidade econômica do Estado e sua intervenção por meio das aquisições e contratações que realiza, pode usar-se do procedimento licitatório como uma forma de incentivar condutas sustentáveis por parte dos particulares, além de estruturar uma nova forma de gestão pública, de modo que se considerem os direitos das gerações futuras, conforme dispõe o art. 225 da Constituição Federal de 1988. A inserção do objetivo da licitação em promover o desenvolvimento nacional sustentável gerará reflexos nos demais princípios do instituto. A ‘proposta mais vantajosa para a administração’ deverá ser aquela que atenda aos critérios estabelecidos no edital e que ofereça um preço compatível com o mercado, e necessariamente, atente para critérios de sustentabilidade. A adoção de critérios e exigências sustentáveis nas licitações não contraria o princípio da isonomia. Como bem explanado, a promoção ao desenvolvimento nacional sustentável encontra respaldo na Constituição Federal/1988 e nas normas infraconstitucionais, o que permite a maleabilidade da igualdade no certame. Contudo, para evitar ilegalidades, a definição dos critérios sustentáveis deverá ser tecnicamente justificada.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-desenvolvimento-nacional-sustentavel-nas-licitacoes/
O Acordo de não Persecução Civil no Âmbito da Lei de Improbidade Administrativa e o Princípio da Moralidade
A proposta do presente artigo é analisar se a celebração de acordo de não persecução civil no âmbito da ação civil por ato de improbidade administrativa ofende o princípio da moralidade, tendo em vista que além da recuperação do dano causado ao erário, a Lei n.º 8.429/92 também se destina a proteger a probidade administrativa, a qual tem como principal expressão, o princípio da moralidade. Assim, é necessário analisar se a alteração legislativa proposta ofende o princípio administrativo acima mencionado. Nessa direção, o presente trabalho visa, primeiramente, a analisar o princípio da moralidade como núcleo central da proteção à probidade administrativa, em sequência será analisada a possibilidade de celebração de termo de ajustamento de conduta no âmbito dos atos de improbidade administrativa para, por fim, avaliar se a utilização de meios de solução alternativas de conflitos no âmbito da ação de improbidade administrativa ofende o princípio da moralidade administrativa.
Direito Administrativo
Introdução A possibilidade de ressarcimento ao erário em caso de desvios pela prática de atos ímprobos já é prevista na legislação brasileira desde a Constituição Federal de 1824. No entanto, foi a Constituição Federal de 1946 que trouxe maiores avanços acerca do tema, isso porque previu a possibilidade de sequestro e perdimento de bens em razão do enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função pública, medidas regulamentadas através da Lei n.º 3.164/57 (previu a tutela extrapenal repressiva da improbidade administrativa), da Lei n.º 3.502/58 (tratou do sequestro e perdimento de bens) e da Lei n.º 4.717/65 (ação popular), sanções que se tornaram mais severas com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 01/69. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a improbidade administrativa surgiu como um modelo vinculado ao direito administrativo, possuindo como centro o princípio da moralidade, tendo o art. 37, § 4º, da Constituição Federal elencado as sanções em caso da prática de atos enumerados como ímprobos, no intuito de atender aos anseios da sociedade como forma de combate à corrupção, bem como aos eventuais abusos praticados pelos agentes públicos e preservar a probidade administrativa. Nesse diapasão, é possível verificar que a nova roupagem dada aos atos de improbidade administrativa após a Constituição Federal e, em especial, após a entrada em vigor da Lei n.º 8.429/92 buscou não só a recuperação do patrimônio público eventualmente desviado, mas também o respeito à coisa pública e sua gestão de forma ética e honesta, tanto que tipificou como ato de improbidade administrativa as condutas que ferem os princípios constitucionais administrativos, independentemente da existência de dano patrimonial (art. 11, da Lei n.º 8.429/92). A partir da referida constatação se faz necessário analisar se a alteração trazida na Lei n.º 13.964/19 (Lei Anticrime), a qual possibilita a realização de acordo no âmbito da ação de improbidade administrativa, afronta a finalidade principal da Lei de Improbidade Administrativa que se refere à proteção da moralidade administrativa, uma vez que a Lei n.º 8.429/92 não visa apenas ao ressarcimento ao erário, mas também à aplicação de outras sanções, a exemplo da perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, como forma de manter uma gestão pública proba, através do afastamento do cenário da Administração Pública de gestores desonestos.   1 O princípio da moralidade como núcleo central da Lei de Improbidade Administrativa O princípio da moralidade, no direito administrativo, retoma a Maurice Hauriou (1910) quando buscou introduzi-lo no Conselho de Estado da França, órgão responsável pela jurisdição administrativa na França, desenvolvendo as bases do referido princípio através da sanção do desvio de poder, a fim de possibilitar o controle dos atos administrativos discricionários, tendo em vista que, à época, somente era permitido o controle dos atos administrativos vinculados, garantindo, com a referida inovação, uma maior atuação e controle das ações governamentais pelo referido Conselho. Nesse sentido, segundo Antônio José Brandão (1951)  a teoria do enfrentamento do desvio de poder de Hauriou representou a introdução do elemento moral no cenário jurídico. No Brasil, o princípio da moralidade administrativa foi incorporado legalmente como forma de combate ao desvio de poder nos moldes acima mencionados em 1965 com a sanção da Lei n. 4.7617/65 – Ação Popular. Nesse diapasão, têm-se que a moralidade administrativa é o precedente lógico de toda conduta administrativa, vinculada ou discricionária, possuindo, segundo José Guilherme Giacomazzi (2002), dois aspectos: o aspecto objetivo, representado pela boa-fé e o aspecto subjetivo, traduzido através do dever de probidade. Assim, apesar de alguns poucos autores ainda não reconhecerem a autonomia do princípio da moralidade em relação a outros princípios administrativos, em especial em relação ao princípio da legalidade, a controvérsia acerca do tema foi dirimida com a promulgação da Constituição Federal de 1998 que concedeu ao princípio da moralidade patamar idêntico ao do princípio da legalidade nos termos do  caput do seu art. 37, razão pela qual não mais se sustenta o argumento de que o princípio da moralidade estaria incluído no princípio da legalidade. Em face da referida posição alcançada pelo princípio da moralidade, a Constituição Federal de 1988 previu ainda em seu art. 5º, LXXIII a possibilidade de sua apreciação judicial, o que possibilitou a sanção pela prática de atos de improbidade administrativa. Nesse sentido, a probidade administrativa, nos moldes trazidos pela Constituição Federal, tem o princípio da moralidade em sua centralidade, podendo ser considerada como um dos efeitos da aplicação da boa-fé, isso porque pune o agente público que age com desonestidade, violando o princípio da boa-fé. Apesar de a referida lei ter sido sancionada em 1992, somente em 1999, edição da Lei n.º 9.784/99, foi trazida um conceito legal do referido princípio da moralidade no art. 2º, IV, desse diploma legal. Ainda que o princípio da moralidade não esteja subordinado ao princípio da legalidade, deve observância ao princípio da juridicidade, o qual tem como base os limites jurídicos da razoabilidade, finalidade e boa-fé, ou seja, para que reste caracterizada a violação ao princípio da moralidade se faz necessário que ocorra também uma lesão àquele princípio. Dessa forma, a prática de qualquer ato administrativo pode vir a ofender o princípio da moralidade, no entanto, sua maior incidência ocorre em relação aos atos administrativos discricionários, tendo em vista a existência de mais de uma possibilidade disponível ao administrador no momento da tomada de decisão, diferentemente do que ocorre com os atos administrativos vinculados. (GIACOMOZZI, 2002).Por fim, sendo a moralidade administrativa, não apenas um princípio, mas também um valor socialmente definido, pertencente à coletividade de forma indivisível e indeterminada, Wallace Paiva Martins Júnior (2015) defende que sendo um patrimônio social, é passível de recomposição em caso de lesão por meio de condenação do ofensor à compensação financeira a título de dano moral coletivo.   2 A finalidade da celebração de não persecução civil na Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa Em razão da necessidade de modernização do direito administrativo, no intuito de atender aos anseios da população, os administrativistas passaram a defender a utilização de alguns meios alternativos de solução de conflitos a fim de dar mais celeridade e efetividade na resolução das questões administrativas. Nesse sentido, Juliana Bonacorsi de Palma(2015) defende que a consensualidade na Administração Pública, apesar de recente já integra as cadeias acadêmicas como ramo de pesquisa e consolidada em parte dos sistemas jurídicos brasileiros. Continua a autora: “[…] apesar de reconhecida como tema relativamente recente na agenda de estudos teóricos no direito administrativo, a consensualidade já integra a produção acadêmica neste ramo do Direito, e em torno desse objeto são desenvolvidas análises sobre seus mais variados aspectos. Ao menos como uma linha de pesquisa, a consensualidade na Administração Pública encontra-se sedimentada em significativa parcela dos sistemas jurídicos de direito administrativo.” Ainda nesse sentido, a celebração de acordos pela Administração Pública não pode ser considerada, em alguns casos, como a mitigação da indisponibilidade do interesse público, mas como uma forma de perseguir uma maior efetividade no serviço público. (DAL POZZO, 2015). Nesse diapasão, a utilização dos meios de solução alternativas de conflitos descritos no presente item, no âmbito da ação de improbidade administrativa, possuem, prioritariamente, efeitos vinculadas à reparação do dano, já que não estamos tratando aqui do acordo de colaboração premiada mediante o qual é permitida a diminuição de outras penas a serem aplicadas ou até que seja afastada a sua aplicação. A celebração de acordos no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrava tem seu fundamento em tratados internacionais, especialmente na Convenção da OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico, a qual foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 152/2002 e promulgada pelo Decreto n.º 4.410/2002, passando a fazer parte do microssistema jurídico nacional de combate à corrupção e segundo Antônio Araldo Ferraz Del Pozzo (2015) tem o sentido de “[…] suavizar as sanções aplicáveis àquele que praticar o ato lesivo à Administração Pública — em troca de colaboração efetiva da pessoa jurídica, desde que dessa colaboração resulte a obtenção de elementos probantes para a identificação dos demais envolvidos na prática do ato ilícito e garanta maior celeridade na obtenção de provas que comprovem a materialidade do ato ilícito sob investigação.”   Com a entrada em vigor da Lei n.º 12.846/13, doutrinariamente o acordo de leniência passou a ser considerado como instrumento de direito administrativo sancionador. No Brasil o instituto passou a ter uma maior visibilidade após a descoberta dos atos de corrupção praticados contra a Petrobrás, quando então o acordo de leniência foi amplamente utilizado a fim de recuperar partes dos recursos desviados e assim minorar os prejuízos sofridos pela estatal. Nesse sentido, a Medida Provisória n.º 703/15 alterou o art. 11, da Lei n.º 12.846/13, a fim de determinar que “[…] o acordo de leniência celebrado com a participação das respectivas Advocacias Públicas impede que os entes celebrantes ajuízem ou prossigam com as ações de que tratam o art. 19 dessa Lei e o art. 17 da Lei n.º 8.429/92 […]”,  no entanto, a referida norma perdeu sua vigência 120 dias após publicação, tendo em vista que não foi convertida em lei. A medida provisória acima mencionada tinha por finalidade adequar as disposições da Lei de Improbidade Administrativa ao microssistema de combate à corrupção, do qual faz parte, juntamente com a Lei n.º 4.717/65 (Ação Popular), Lei n.º 7.347/85 (Ação Civil Pública), a Lei n.º 12.846/13 (Anticorrupção), entre outras. O acordo de não persecução civil no contexto da ação de improbidade administrativa busca, conforme já afirmado, prioritariamente, a reparação do dano causado ao erário público, sendo celebrado na fase pré-processual ou processual. No âmbito da ação de improbidade administrativa, o acordo de não persecução civil adota uma feição de negócio jurídico bilateral atípico, possuindo natureza processual e material, isso porque além de servir como instrumento probatório, também põe fim ao conflito, através, por exemplo, do perdão judicial, revelando assim um aspecto material. (DIDIER JR., 2017). Ainda nesse sentido, devem-se observar que as sanções aplicadas em razão da prática de atos tipificados como de improbidade administrativa têm características de direito administrativo sancionador, o qual é conceituado por Fábio Osório Medina (2015). Dentro desse contexto, a Lei n.º 13.964/19, mais conhecida como Lei Anticrime, alterou a redação do art. 17 da Lei n.º 8.429/92 passando a permitir a celebração de acordos nas ações civis pública por ato de improbidade administrativa, especialmente a celebração do acordo de não persecução civil. No entanto, entanto, em razão de se tratar se um instrumento de solução consensual de conflitos incluído recentemente em nosso ordenamento jurídico, ainda que se considere uma aplicação no âmbito do direito penal, é possível observar que ainda não possui seus contornos definidos e ainda suscita dúvidas junto aos aplicadores do direito, especialmente no que se refere a comunhão de vontade dos seus agentes para a sua celebração, tendo em vista a competência concorrente para tanto (Ministério Público e pessoa jurídica lesada) e ainda a possibilidade de comunicação de efeitos entre os acordos de leniência e os acordos de não persecução civil celebrados pela mesma pessoa jurídica. Tais questões podem ser exemplificas através da afetação em repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em 26.04.2019, do Tema n.º 1043 que trata da “Utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, art. 129, §1º)”.  Nesse sentido, o STF, sob o fundamento de que a ação de improbidade administrativa é instrumento de direito penal sancionador, irá decidir acerca da possibilidade de utilização de instrumentos típicos de direito penal em face da proximidade de ambas, o que demonstra as dúvidas que ainda pairam sobre o tema.   3 A celebração de acordo de não persecução civil no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa e o princípio da moralidade A Resolução n.º 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mesmo antes da sanção da Lei n.º 13.964/19, que alterou a redação do art. 17 da Lei n.º 8.429/92, já trazia autorização para que seus membros celebrassem termos de ajustamento de conduta no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Na mesma linha, autores como Marcelo Figueiredo (2009) e Wallace Martins Júnior  (2001) apesar de defenderem ser incabível a realização de transação no contexto da Lei de Improbidade Administrativa, isso anteriormente à alteração legislativa acima mencionada, já defendiam a necessidade da flexibilização da legislação acerca do tema a fim de permitir a celebração de acordos em caso de colaboração nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, uma vez que traria uma maior efetividade à repressão das condutas ímprobas, além da maior eficiência na reparação do patrimônio público lesado, um dos objetivos da lei que trata dos atos de improbidade administrativa. Nesse sentido, em outros países, a exemplo dos Estados Unidos da América, os primeiros os acordos celebrados em modalidade similar, apesar de eficientes, não apresentaram limites objetivos, razão pela qual sofriam diversas críticas. Porém, a partir de 1990, quando ocorreu uma intensificação da investigação dos cartéis internacionais, passou a ser adotado um novo modelo, o qual possuía critérios mais objetivos para sua celebração, os quais ainda sofrem críticas de ordem moral nos dias atuais, em razão das vantagens concedidas, as quais chegam a ser consideradas por alguns como prêmios. Dessa forma, ainda que os atuais acordos celebrados nos Estados Unidos da América, no âmbito das leis que tratam do combate à corrupção, demonstrem uma maior eficiência em razão dos resultados alcançados, podem vir a ofender um sentimento coletivo de moralidade. Já em outros países como a Alemanha, Chile e, especialmente no México, não há críticas pelos motivos acima mencionados quanto à utilização do instrumento de solução consensual em debate, tendo em vista que, nos países elencados, não há discussão quanto à possibilidade de afronta ao princípio constitucional da moralidade, uma vez que priorizam a efetividade no combate à corrupção, aos cartéis e às demais práticas ilícitas criminais vinculadas ao direito econômico. Por outro lado, países como o Canadá desenharam acordos de leniência e instrumentos similares de modo a buscar, além da reparação patrimonial, preservar a moralidade administrativa como uma das suas bases, distanciando–se de um modelo que visa, prioritariamente, a recuperação dos danos materiais sofridos, relegando a uma posição secundária a proteção do princípio da moralidade. Realizada a explanação acerca da dinâmica dos acordos destinados ao combate à corrupção e reparação dos danos em alguns países do mundo, passamos à análise no específica do tema no Brasil. Primeiramente, é importante então destacar que, conforme já discutido em capítulo anterior, o núcleo central da defesa da probidade administrativa é o princípio da moralidade, erigido a princípio constitucional pela Constituição Federal de 1988, isso porque tal princípio tem, segundo José Guilherme Giazomazzi (GIAZOMAZZI, 2012), em seu aspecto objetivo a exteriorização da boa-fé e no aspecto subjetivo a observância dos deveres de probidade e ética no trato da coisa pública. Dessa forma, a recomposição patrimonial do erário público, apesar de ser de extrema importância, tanto que previsto no art. 37, §4, da Constituição Federal como uma das sanções em razão da prática de ato de improbidade administrativa, é apenas um dos aspectos da reparação nos casos da prática de atos de improbidade administrativa, já que o patrimônio imaterial do Estado também é lesado, especialmente quando se trata dos casos dos atos de improbidade administrativa previstos no art. 11, da Lei n.º 8.429/92, dispositivo que prevê a possibilidade de condenação em caso de ofensa unicamente aos princípios administrativos. Dentro dessa perspectiva, os defensores do instituto em comento (acordo de não persecução civil), especialmente nas ações de improbidade administrativa, sustentam que tal medida não fere o princípio da moralidade administrativa e, em consequência, não há ofensa ao patrimônio público imaterial, uma vez que o referido instrumento visa o combate à corrupção e à prática de crimes contra a Administração Pública, razão pela qual promovem a recomposição do patrimônio imaterial estatal. Nessa mesma direção, utilizam como um dos argumentos a seu favor o fato de que a diferença entre a ação civis pública por ato de improbidade administrativa e os atos praticados no âmbito da Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/13) diz respeito somente ao sujeito ativo, tendo em vista que a primeira lei abrange, necessariamente, o agente público e o particular (pessoa física ou jurídica) e a Lei Anticorrupção tem no seu polo passivo apenas o particular (pessoa jurídica), porém ambas possuem a mesma finalidade, qual seja, combate à corrupção na Administração Pública, de acordo com as obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito internacional em razão da ratificação de acordos internacionais que tratam do combate mundial à corrupção. Ainda em relação aos argumentos que reforçam as vantagens da celebração de instrumentos de solução consensual de conflitos, seus defensores sustentam que os referidos instrumentos materializam o princípio constitucional da eficiência, incluído na Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional n.º 45/04, uma vez que pela análise de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referentes ao ano de 2015 constatou-se que os percentuais da recuperação dos danos causados ao erário nas condenações em ações civis públicas por atos de improbidade administrativa são muito baixos, o que demonstraria, segundo os referidos defensores, que a utilização dos meios consensuais para a resolução de conflitos se mostra mais resolutivo na recomposição do patrimônio público lesado. Dentro desse contexto, para uma análise mais aprofundada da acerca do tema é necessário delimitar o objetivo principal das sanções em razão da pela prática de atos de improbidade administrativa. Nesse sentido, a Lei n.º 8.429/92, editada para regulamentar o art. 37, §4º, da Constituição Federal, tem por objetivo sancionar a prática de atos ímprobos, como uma das formas de assegurar a probidade administrativa e a honestidade na gestão pública, características que podem ser consideradas como reflexos do princípio constitucional da moralidade administrativa. Assim, ao se permitir que sejam celebrados acordos de não persecução civil ou termos de ajustamento de conduta no âmbito das ações civis públicas por atos de improbidade administrativa, como forma de se afastar uma eventual condenação, é necessário ter cautela a fim de não diminuir a importância e o âmbito de abrangência do princípio da moralidade administrativa, já que tal princípio não se destina apenas a proteger o patrimônio público material, mas busca, precipuamente, garantir uma administração pública honesta, na qual seus administradores persigam sempre o bem da coletividade sem interesses escusos divergentes dos previstos constitucionalmente, ou seja, destina-se também a preservar o patrimonial público imaterial, razão pela qual as soluções consensuais de conflitos adotadas devem ter entre seus objetivos a utilização de cláusulas que prevejam, além do ressarcimento do dano, uma outra sanção de cunho vinculado ao patrimonial imaterial do Estado. Nesse diapasão, havendo a recomposição patrimonial do erário em razão da celebração de acordo, é certo que os deveres de probidade, honestidade e boa-fé podem vir a ser violados pelas condutas dos réus desde que somente a reparação do dano seja a obrigação do agente que celebra o referido acordo, tendo em vista que apenas a reparação de cunho material não se mostra suficiente para desfazer ou minorar os efeitos lesivos à moralidade administrativa, já que o combate à corrupção não pode se limitar a buscar a recuperação patrimonial do ente público, isso porque a ofensa ao referido princípio constitucional ocorre independentemente do dano patrimonial e sua respectiva reparação. Dessa forma, é importante não nos distanciarmos da finalidade pela qual as sanções, em razão da prática de atos de improbidade administrativa, foram previstas na Constituição Federal – garantir a que Administração Pública fosse pautada pela honestidade e boa-fé, como forma de proteger os princípios administrativos constitucionais. Nessa direção, a recuperação do dano ao erário por força da celebração de acordo de não persecução civil ou outra modalidade de solução consensual de conflito ainda que seja uma forma eficiente de combate à corrupção, deve prever ainda alguma outra sanção ao agente a fim de não resumir o combate à improbidade administrativa a uma questão unicamente material, preservando, dessa forma, a moralidade administrativa, pilar de toda a Administração Pública e ainda norteador das relações jurídicas públicas. Ainda acerca do tema é importante observar que sendo a moralidade administrativa reflexo da honestidade na condução da gestão pública, ao se buscar protegê-la quando da opção por uma das modalidades de solução consensual de conflitos, estar-se-á também efetivando o combate à corrupção nos moldes dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Para encerrar o capítulo e corroborar a posição aqui defendida quanto à importância da preservação do princípio da moralidade administrativa no contexto das modalidades das soluções consensuais de conflito no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa, transcrevemos trecho da dissertação de mestrado de Moser Vhoss “A improbidade administrativa e a possibilidade de reparação do dano à legitimidade da administração pública” quando tratou do dano imaterial à Administração Pública em razão da prática de ato de improbidade administrativa e segue “O ato de improbidade administrativa, além de por vezes ocasionar dano material ao patrimônio público, parece poder também ocasionar, portanto, dano à legitimidade do Estado e da Administração, já que contribui para que o cidadão administrado se desestimule no cumprimento de obrigações tributárias, administrativas e, enfim, em portar-se adequadamente como cidadão respeitoso para com os preceitos que a ele são dirigidos.” (VHOSS, 2010).    Conclusão Pela exposição realizada, podemos constatar que a vedação original de celebração de transação no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa decorreu do momento histórico e legal na qual foi criada, onde não existiam exceções ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, uma vez que a Lei n.º 9.099/95 só veio a ser promulgada  três anos após a Lei n.º 8.429/92, bem como o fato de ainda não existir, à época, uma consistente regulamentação acerca das soluções alternativas de conflitos que também veio ocorrer alguns anos após, tendo sua maior expressão com a promulgação da Lei n.º 13.140/15 e o atual Código de Processo Civil – CPC, o qual possui como um dos seus princípios basilares a conciliação como forma de resolver conflitos. De igual modo, alguns dos princípios tratados internacionais tratados internacionais que tratam do combate à corrupção somente foram ratificados pelo Brasil também após a publicação da Lei n.º 8.429/92, a qual não possuía parâmetros mais atuais e modernos a fim de balizar sua forma de execução, especialmente no que se refere à possibilidade de utilização de modalidades de soluções consensuais de conflitos, ainda excipientes no Brasil à época no âmbito do direito administrativo. Corroborando com a conclusão acima, é possível observar que com o transcorrer do tempo as soluções consensuais de conflitos no país, especialmente após a vigência da Lei n.º 9.099/95 se desenvolveram e hoje já podem ser encontrados em praticamente todas as áreas do direito, como forma de trazer mais eficiência e rapidez nas soluções dos conflitos jurídicos interpessoais. Baseados nos argumentos acima expostos e ainda no fato de que a lei que trata dos atos de improbidade administrativa (Lei n.º 8.429/92) faz parte, conjuntamente com outros diplomas legais, a exemplo da Lei 4.717/65 (Lei que trata da ação popular), Lei n.º 7.377/85 (lei que trata da ação civil pública) e da Lei n.º 12.846 (Lei Anticorrupção), entre outras, do microssistema de combate à corrupção, nos moldes dos tratados internacionais acerca do tema ratificados pelo Brasil, um dos problemas nacionais mais combatidos na atualidade dada sua importância e consequências que trazem não só para a Administração Pública, mas para toda sociedade, razão pela qual a possibilidade de utilização de meios consensuais de solução de conflitos se mostra como um instrumento em busca da efetividade na execução da referida tarefa. No entanto, é importante observar que a questão também deve ser observada não somente do ponto de vista pecuniário, canalizando-se os esforços na recuperação do dano causado ao erário, mas deve também buscar a concretização da finalidade de proteção do patrimônio imaterial do Estado, trazido na observância da probidade administrativa, uma das finalidades constitucionais que justificaram a edição da Lei n.º 8.429/92, especialmente no que se refere à proteção dos princípios administrativos constitucionais, a exemplo do princípio da moralidade, considerado como um dos pilares da Administração Pública, razão pela qual é possível concluir que as soluções consensuais de conflitos acima mencionadas e legitimadas pelo nosso ordenamento jurídico, para preservarem o princípio constitucional em comento, devem prever, além das sanções pecuniárias, especialmente no que se refere à reparação do dano ao erário, uma  outra sanção ao agente responsável a fim de não reduzir a questão da probidade administrativa a uma questão unicamente vinculada ao patrimônio material da Administração Pública, afastando-se de um dos objetivos precípuos do Diploma Legal em comento. Nesse contexto como forma de cumprir o preceito constitucional de combate à improbidade administrativa, deve-se buscar conjugar a reparação do dano causado à Administração Pública com a proteção do seu patrimônio imaterial, representado pelos seus princípios administrativos. Dessa forma, podemos então chegar a uma conclusão final no sentido de que os instrumentos de solução consensual de conflitos admitidos na legislação pátria, para que cumpram, no âmbito da Administração Pública, a finalidade de blindar ou, pelo menos, prevenir que atos praticados em desacordo com os princípios e leis, que firam a probidade administrativa, possam ser reiteradamente praticados pelos mesmos agentes públicos e particulares, devem prever sanções, aos agentes que vierem a celebrar acordos de não persecução civil ou outra modalidade de solução consensual de conflitos, sanções que não se limitem a condições unicamente patrimoniais, ligadas à reparação dos danos materiais ao erário em consequência, mas também prevejam outras condições como forma de buscar reparar o patrimônio imaterial do Estado e, em consequência, preservar o princípio constitucional da moralidade administrativa, pilar da Administração Pública brasileira.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-acordo-de-nao-persecucao-civil-no-ambito-da-lei-de-improbidade-administrativa-e-o-principio-da-moralidade/
Delegação do poder de polícia
O presente trabalho tem como intuito trazer à tona o debate acerca da delegação do poder de polícia. A administração pública, como detentora da vontade social, tem algumas prerrogativas que ao particular não cabem, são os chamados poderes da administração pública, a saber: poder discricionário; poder vinculado; poder normativo; poder disciplinar; poder hierárquico; e poder de polícia. Busca-se tratar do poder de polícia, que representa o poder de império estatal, o qual limita a liberdade e os direitos dos cidadãos. Diante dessas características, inicia-se um debate acerca do exercício desse poder por particulares ou pessoas da administração pública de direito privado, as chamadas empresas estatais, isto é, poderia o particular receber poderes do estado a ponto de limitar os direitos de seus semelhantes. Foi com essas indagações que ocorreu a elaboração do presente trabalho, buscando respondê-las de forma clara e concisa, mas com o devido cuidado de abordar de forma sistemática todas as nuances temáticas.
Direito Administrativo
Introdução O Estado é uma ordenação que tem por finalidade específica e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território, na qual a expressão ordenação denota a ideia de poder soberano, institucionalizado (PALLIERI apud SILVA, 2015, P. 99). Assim, como se nota, o Estado é formado por quatro elementos essenciais, povo, território, poder soberano e fins (SILVA, 2015, P. 99-100). Desta forma, o povo constitui um dos elementos necessário à sua existência, por esse motivo ele nos representa. Como atributos dessa competência a administração pública detêm alguns poderes que não cabem aos particulares, que são o poder discricionário, vinculado, normativo, hierárquico, disciplinar e de polícia. Este último tem um maior destaque por parte da doutrina, haja vista que afeta os particulares, ou seja, é externo, restringindo os direitos e atuação destes. Deste modo, resta a indagação se caberia a administração pública delegar o exercício do poder a entes privados, estes teriam o “poder” de restringir direitos dos seus semelhantes? Bem, em 2002 no julgamento da ADI 1.717/DF, cujo relator foi o Ministro Sydney Sanches, o STF entendeu que seria inconstitucional. Todavia, o tema ainda não é pacífico e é bastante mutável no cenário brasileiro, assim surge outra dúvida, teria a possiblidade da Suprema Corte mudar de entendimento em um lapso temporal tão curto? Isso, a datar da edição deste trabalho não pode ainda ser respondido e sim especulado, entretanto, muito provavelmente serão abordados e terão que se pronunciar sobre a temática, isto é, se o Projeto de Lei 280/17 for aprovado.   1.1. Noções Gerais O Estado está em um plano superior aos particulares, haja vista que em uma República representa os interesses dos seus cidadãos. Diante disso, necessita de algumas prerrogativas especiais, que o distingue dos particulares, atribuindo-lhes possibilidades de realizar atos privativos de sua condição. São os chamados Poderes da Administração Pública, que na conceituação de Carvalho Filho (2018, p. 53) é “o conjunto de prerrogativas de direito público que a ordem jurídica confere aos agentes administrativos para o fim de permitir que o Estado alcance seus fins.” Nessa perspectiva, vale destacar os ensinamentos de Alex Muniz Barreto (2008, p. 57), que em sua obra define os poderes como:   Prerrogativas legais conferidas aos entes públicos para o pleno exercício da função administrativa, assegurando a efetividade da sua atuação, interna e externa, mediante o estabelecimento de uma autoridade normativamente limitada. Por meio desses poderes, a lei estabelece a  possibilidade da Administração condicionar as atividades dos seus agentes e de particulares, adequando-as às exigências do interesse geral. (BARRETO, 2008, p. 57)   Embora a expressão “poder” dê a impressão de que se trata da uma faculdade dos agentes administrativos, na realidade trata-se de um “poder-dever”, já que reconhecido ao poder público para que o exerça em benefício da coletividade; os poderes são, pois, irrenunciáveis. Todos eles encerram prerrogativas de autoridade, as quais, por isso mesmo, só  podem ser exercidas no limite da lei. (DI PIETRO, 2018, p. 115) Todavia, é necessário fazer a distinção entre os poderes administrativos e os poderes políticos. Os primeiros são apenas instrumentos de garantir que o Estado chegue aos fins almejados, enquanto que os últimos, têm natureza estrutural, são a chamada “Tripartição dos poderes”, encontram-se no artigo 2º (segundo) da Constituição Federal e tem como prerrogativa garantir a estruturação de um Estado Democrático de Direito. Nesse seguimento, é de extrema importância o ensinamento de Alex Muniz Barreto ao afirmar:   Embora ambos representem formas de manifestação do Poder do Estado (summa potestas), os poderes administrativos não se confundem com os poderes políticos. É que os primeiros possuem a mesma natureza instrumental da função administrativa da qual decorrem, servindo de mecanismos para a sua eficaz realização (poderes de execução ou de consecução). Já estes últimos têm natureza estrutural, refletindo a própria tripartição constitucional dos Poderes da União (art. 2º da CF/88), por meio da qual se forma uma estrutura de órgãos legislativos, jurisdicionais e executivos que possuem prerrogativas políticas específicas (poderes de formação ou de composição). (BARRETO, 2008, p. 57)   Explicitadas as noções gerais, é importante passar a tratar das espécies desses poderes.   1.2. Espécies dos poderes administrativos Feitas as devidas anotações sobre a definição dos poderes administrativos, cumpre-nos ressaltar suas espécies, a saber: (1) Poder Vinculado; (2) Poder Discricionário; (3) Poder Hierárquico; (4) Poder Disciplinar; (5) Poder Normativo; e (6) Poder de Polícia. Como é notório existem seis poderes elencados pela doutrina. Todavia, a esta não é pacífica, existe um posicionamento minoritário em afirmar que existem apenas quatro poderes, restando os outros dois apenas como atributos dos outros. Este é posicionamento defendido por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, no qual consiste que o Poder Vinculado e o Discricionário nada mais são que atributos dos demais poderes. Para melhor elucidação da problemática é necessário a transcrição de suas palavras que melhor explicarão seu posicionamento, a saber:   Quanto aos chamados poderes discricionário e vinculado, não existem como poderes autônomos; a discricionariedade e a vinculação são, quando muito, atributos de outros poderes ou competências da Administração. O que ocorre é que várias competências exercidas pela Administração com base nos poderes regulamentar, disciplinar, de polícia, serão vinculadas ou discricionárias, dependendo da liberdade, deixada ou não, pelo legislador à Administração Pública. (DI PIETRO, 2018, p. 115)   Contudo, esta obra tratará da posição majoritária na doutrina, não entrando no mérito da questão, ou seja, será abordado como poderes da Administração Pública os seis supracitados.   1.2.1. Poder Vinculado É o Poder no qual o administrador está completamente restrito as normas legais, não há margem de escolha para o mesmo, devendo aplicar as premissas indicadas pelo legislador. Nesse sentido, cumpre ressaltar os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a saber:   O chamado “poder vinculado”, na realidade, não encerra “prerrogativa” do Poder Público, mas, ao contrário, dá ideia de restrição, pois, quando se diz que determinada atribuição da Administração é vinculada, quer-se significar que está sujeita à lei em praticamente todos os aspectos. O legislador, nessa hipótese, preestabelece todos os requisitos do ato, de tal forma que, estando eles presentes, não cabe à autoridade administrativa senão editá-lo, sem apreciação de aspectos concernentes à oportunidade, conveniência, interesse público, equidade. Esses aspectos foram previamente valorados pelo legislador. (DI PIETRO, 2018, p. 115)   Portanto, o exercício deste poder, resume-se em dá um fiel seguimento a norma, ela é que informa todos os requisitos a serem seguidos. A título de exemplo temos a aposentadoria por idade, determinado contribuinte completou a idade para receber seu direito, deverá desde já recebe-lo, não cabendo ao agente administrativo verificar se ele tem ou não capacidade laborativa.   1.2.2. Poder Discricionário No exercício deste poder temos o inverso do poder vinculado, enquanto que neste o administrador segue estritamente as normas legais, que ditam todos os procedimentos, no primeiro há uma certa margem de escolha, isto é, cabe ao administrador adequar o procedimento à conduta, sempre dentro dos limites legais, em nome da oportunidade e conveniência. Alex Muniz Barreto (2008, p. 58) leciona que este “é o poder que confere ao administrador a capacidade de decidir sobre qual a medida mais adequada à Administração, o que lhe permite valorar e escolher o comportamento mais oportuno e conveniente à gestão dos interesses coletivos.” Todavia, vale ressaltar que tanto cabe a autoridade pública deliberar sobre a conduta, como pode deixar de praticá-lo, se assim for mais conveniente o oportuno. Entretanto, o jurista não pode entender que tal poder é ilimitado, ele encontra limites fixados expressamente em lei. Verifica-se a atribuição deste poder, por exemplo, na exoneração de um servidor público comissionado. (BARRETO, 2008, p. 58)   1.2.3. Poder Hierárquico Este é clássico poder da Administração pública, é por meio dele que é escalonado os graus de subordinação, elencando a administração estratégica, a tática e a operacional. Basta uma analisada superficial nos estudos da administração geral e pública e veremos que não existe administração interna sem essas três vertentes. Com isso, resta-nos informar que o poder ora estudado é fundamental para a estrutura interna de determinado órgão público. Gustavo Scatolino e João Trindade (2016, p. 343) em sua obra Manual de Direito Administrativo, conceituam como o poder “que dispõe a Administração para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores e os órgãos integrantes de uma mesma estrutura.” Portanto, com análise breve do tema, observa-se que tal poder está apenas no âmbito interno da administração, sendo fundamental tanto na esfera pública quanto privada. Não cumpre a esta obra adentrar pormenorizadamente na temática, sob pena de fugir do verdadeiro intuito do trabalho, em suma essas são as principais características deste poder-dever estatal.   1.2.4. Poder Disciplinar Como o nome é bastante sugestivo não precisamos ir muito além para entendermos tal poder. Disciplina, de acordo com o Dicionário de Língua Portuguesa Soares Amora (2013, p. 230), é o “conjunto de prescrições destinadas a manter a boa ordem”. Assim, busca-se a harmonização dentro da administração, no qual a autoridade pública apura e punir as faltas funcionais de seus subordinados (apresentando aqui o Poder Hierárquico). Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 119) “poder disciplinar é o que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidade aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa; é o caso dos estudantes de uma escola pública.” Vale salientar que não se confunde com o poder punitivo do Estado, pois este é realizado através da jurisdição penal, enquanto que o poder ora estudado só abrange as infrações relacionadas com o serviço público, destinando-se apenas à repressão de irregularidades funcionais praticadas por seus próprios servidores, isto é, dá-se apenas no campo interno. (BARRETO, 2008, p. 60)   1.2.5. Poder Normativo Chamado também de poder regulamentar, consiste na edição de atos gerais para complementar as leis e garantir a sua aplicação efetiva. Valendo observar a orientação dada por José dos Santos Carvalho Filho (2018, p. 59), a saber: “A prerrogativa, registre-se, é apenas para complementar a lei; não pode, pois, a Administração alterá-la a pretexto de estar regulamentando. Se o fizer, cometerá abuso de poder regulamentar.” Segundo os ensinamentos de Miguel Reale (1980, p. 12-14) os atos normativos podem ser divididos em Originário e derivado, os primeiros “se dizem os emanados de um órgão estatal em virtude de competência própria, outorgada imediata e diretamente pela Constituição, para edição de regras instituidoras de direito novo”; já os derivados se caracterizam pela “explicitação ou especificação de um conteúdo normativo preexistente, visando à sua execução no plano da praxis”. Feitas as devidas anotações é importante destacar, que como todos os outros poderes, este encontra-se subordinado aos ditames legais (lato sensu), devendo respeitar o princípio da hierarquia das normas.   Por se referir ao tema central estudado, este poder será tratado em tópico específico, no qual será realizada uma análise pormenorizada sobre todos os seus aspectos.   2.1. Conceito Ao passo que o poder disciplinar busca a harmonização no âmbito interno da administração, este poder tem o mesmo intuito, no entanto, seu alcance se dá para com os administrados, isto é, se dá no âmbito externo. A norma prevê uma ampla liberdade aos particulares, podem fazer tudo que não é expressamente proibido em lei. Todavia, há também a previsão da autoridade dos entes públicos controlar a conduta dos membros do grupo social, podendo inclusive intervir na esfera privada para reprimir atos atentatórios ao bem comum. (BARRETO, 2008, p. 62) Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 151) “é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público.” Nesse diapasão, vale ressaltar que o ordenamento jurídico não foi omisso quanto a conceituação deste instituto, o artigo 78 do Código Tributário Nacional define poder de polícia como sendo a “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.” Realizadas as devidas conceituações, é necessário fazer uma distinção entre polícia administrativa e judiciária. A primeira, se dá para um trabalho eminentemente preventivo, enquanto que a segunda dá-se para a repreensão de determinada conduta. Enquanto que a polícia administrativa inicia e se completa no âmbito de uma função administrativa, a polícia judiciária se dá pela atuação da função jurisdicional, regida pelo Código de Processo Penal. Para melhor elucidação do tema segue os ensinamentos de Alex Muniz Barreto:   O poder de polícia – originário da designação norte-americana “police power” – é exercido através da polícia administrativa, que não se confunde com a denominada polícia judiciária. A diferença essencial está no fato de que a atuação da primeira recai apenas sobre bens, direitos e atividades dos particulares, no sentido de condicioná-los aos fins sociais, como o desfazimento de uma obra edificada irregularmente ou na imposição de multa de trânsito ao respectivo infrator. Já a segunda age sobre pessoas, reprimindo condutas delituosas e funcionando como ferramenta da persecução penal do Estado em face de criminosos. Dessa forma, enquanto a polícia judiciária tem por objetivo o combate às ações ou omissões delitivas, através do aparelhamento da polícia civil – sendo auxiliada pela polícia militar no patrulhamento ostensivo -, a polícia administrativa dedica-se ao controle e intervenção nos bens, direitos e atividades de particulares, mediante a atuação preventiva ou repressiva dos seus vários seguimentos, tais como: a) polícia florestal; b) a polícia sanitária (vigilância sanitária); c) polícia de trânsito e transportes; d) polícia ambiental (exercida pelo IBAMA e outras entidades); e) polícia de costumes; f) polícia de edificações, dentre outras.(BARRETO, 2008, p. 63)   Diante disso, resta-nos a conclusão que o instituto ora estudado tem como fundamento o princípio da Supremacia do Interesse público sobre o privado, haja vista que havendo um conflito entre esses dois, prevalece o primeiro. Devidamente definido, cumpre destacar as características que são decorrentes de seu uso.   2.2. Características A doutrina costuma trazer três características referentes a esse poder, que são: (1) Autoexecutoriedade; (2) Discricionariedade; e (3) Coercibilidade. A primeira característica consiste na possibilidade de seus atos serem executados sem prévia autorização judicial, como salienta Carvalho Filho:   A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a Autoexecutoriedade. Tanto é autoexecutória a restrição imposta em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimentos e destruição de alimentos nocivos ao consumo público. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Esse o sentido da autoexecutoriedade. (CARVALHO FILHO, 2018, p. 91)   A segunda, chamada de discricionariedade consiste na faculdade que via de regra a lei prevê, para as autoridades administrativas escolherem as providências mais apropriadas ao exercício do poder polícia em cada caso concreto, podendo dessa forma, optar pelas medidas que se mostrem compatíveis ao restabelecimento do interesse público. (BARRETO, 2008, p. 64) Por fim, temos a coercibilidade, é inseparável da autoexecutoriedade, é o que Hely Lopes Meirelles (2003, p. 134) define como “a imposição coativa das medidas adotadas pela administração”. Essa característica afirma a imperatividade do poder de polícia, é através dela que o Estado cumpre seu poder-dever independente de aceitação do administrado, visando sempre a supremacia do interesse público sobre o privado.   A doutrina classifica o poder de polícia em originário e delegado, o primeiro seria aqueles exercidos pela Administração Direta, União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Já a segunda se dá quando a atividade é exercida pela Administração Indireta, conforme os ensinamentos de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2018, p. 303): “o poder de polícia originário é aquele exercido pela administração direta, ou seja, pelos órgãos integrantes da estrutura das diversas pessoas políticas da Federação (União, estados, Distrito Federal e municípios).” Enquanto que o poder de polícia delegado “é aquele executado pelas pessoas administrativas do Estado, isto é, pelas entidades integrantes da administração indireta.” Nesse seguimento, não existem celeumas jurídicos quanto à possiblidade de uma determinada lei específica delegar atribuições do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito público (autarquias e fundações públicas de direito público). A vedação consiste na impossibilidade dessas pessoas criarem leis. Fora isso, podem exercer o poder de polícia e inclusive aplicar sanções das mais variadas formas, desde que a competência seja atribuída por lei. (ALEXANDRINO; PAULO, 2018, p. 304) O problema surge quando se trata da possibilidade de delegação a entidades integrantes da administração pública que têm personalidade jurídica de Direito Privado, como é o caso das empresas públicas e sociedades de economia mista. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 1.717/DF, cujo relator foi o Ministro Sydney Sanches, decidiu sobre a impossibilidade de delegação a entidades privadas. Segue trecho do julgado: … não me parece possível, a um primeiro exame, em face do nosso ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e punir no que concerne ao exercício de atividades profissionais.   Nos ensinamentos de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, tal argumento tem como fundamentação “que o exercício de atividades de polícia tem fundamento no poder de império e que este não pode ser exercido por nenhuma pessoa dotada de personalidade jurídica de direito privado.” Todavia, a doutrina e alguns tribunais superiores têm entendido, hodiernamente, que há a possibilidade para entidades da Administração Pública Indireta de direito privado, desde que respeitem algumas divisões sumariamente realizadas. Nesse sentido que se deu o julgamento no Superior Tribunal de Justiça, do REsp 817.534/MG, no qual definiu a consecução do poder de polícia em quatro grupos, a saber: (1) legislação, (2) consentimento, (3) fiscalização, (4) sanção. Assim, valemo-nos da explicação de Carvalho Filho para uma maior elucidação do tema:   O que se precisa averiguar é o preenchimento de três condições: (1ª) a pessoa jurídica deve integrar a estrutura da Administração Indireta, isso porque sempre poderá ter seu cargo a prestação de serviço público; (2ª) a competência delegada deve ter sido conferida por lei; (3ª) o poder de polícia há de restringir-se à prática de atos de natureza fiscalizatória, partindo-se, pois, da premissa de que as restrições preexistem e de que se cuida de função executória, e não inovadora. (CARVALHO FILHO, 2018, p.83)   Em comunhão de sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 863 -864) leciona que os particulares podem exercer atos materiais que precedem e/ou que sucedem os atos jurídicos do poder de polícia. O primeiro se dá, por exemplo, no uso de equipamentos eletrônicos a fim de fiscalizar o cumprimento das normas de trânsito, pertencentes a empresas privadas contratadas pelo estado. A segunda dar-se-á, por exemplo, quando o Poder Público contrata uma empresa privada para demolir obras efetuadas irregularmente, na qual a administração tenha como função demoli-la como uso do poder de polícia. Ou seja, mesmo que a entidade privada execute determinadas atribuições, a titularidade ainda reside com o Poder Público. Em complemento, afirma Rafael Maffini (2009, p. 75):   É necessário salientar que é possível a transferência a particulares, desde que se o faça com regularidade licitatória e contratual, de atos materiais de preparação do poder de polícia propriamente dito (ex.: expedição de tíquetes de parquímetros, o ato de fotografar veículos em controladores eletrônicos de velocidade, o ato material de vistoriar um veículo para fins de licenciamento etc.). O que não é possível é a transferência a particulares da prática de atos administrativos – dotados de cunho decisório, portanto – de polícia administrativa (ex.: o licenciamento de veículos automotores, a decisão quanto à autuação de trânsito, a decisão quanto à apreensão de veículo, a decisão quanto à demolição de obra irregular etc.). Trata-se, pois, de atividade estatal indelegável a particulares.   Vale ressaltar, que a delegação não pode ser outorgada a pessoas da iniciativa privada, desprovidas de vinculação oficial de entes públicos, visto que, por maior que seja a parceria que tenham com estes, jamais serão dotadas da potestade (ius imperii) necessária ao desempenho da atividade política.” (CARVALHO FILHO, 2018, p. 84) Assim, Marçal Justen Filho afirma:   Veda-se a delegação do poder de polícia a particulares não por alguma qualidade essencial ou peculiar à figura, mas porque o Estado Democrático de Direito importa o monopólio estatal da violência. Não se admite que o Estado transfira, ainda que temporariamente, o poder de coerção jurídica ou física para a iniciativa privada. Isso não significa vedação a que algumas atividades materiais acessórias ou conexas ao exercício do poder de polícia sejam transferidas ao exercício de particulares. O que não se admite é que a imposição coercitiva de deveres seja exercitada por terceiros, que não os agentes públicos.   Em suma, não há delegação de ato do poder de polícia para particular, salvo hipóteses excepcionalíssimas. Todavia, pode haver a delegação para entidades da Administração Pública de direito privado, e particulares, desde que esses tenham um vínculo com a administração e exerçam apenas atividades preparatórias ou sucessivas ao poder de polícia, quanto àqueles, podem desde que sejam atividades fiscalizatórias e devidamente previsto em lei. Entretanto, o tema não resta aqui finalizado, pois ainda haverá muitos embates doutrinário e jurisprudenciais, haja vista que há um Projeto de Lei a tramitar no Senado Federal que se aprovado for trará à tona o debate de forma mais aguçada. Trata-se do PL 280/17 que estabelece diretrizes e requisitos para a delegação, no âmbito da Administração Pública Federal, do serviço público de fiscalização administrativa a particulares. Caso o referido projeto torne-se lei veremos o posicionamento atual do STF acerca do assunto.     Conclusão Portanto, verifica-se que o poder de polícia está para limitar a liberdade dos particulares, isto é, faz inversão ao poder disciplinar, enquanto este regula as relações internas à administração pública, àquele atinge o âmbito externo, ou seja, os cidadãos que não tem vínculo direto com a administração. Como poder de limitar direitos dos particulares, a doutrina o chama de poder de império do estado, que tem como características ser coercitivo, auto executável e discricionário. Diante disso, surge o impasse, há ou não possiblidade de delegação para particulares? Como verificado, o STF se pronunciou em 2002 sobre a impossibilidade. Todavia, com o passar dos anos foi-se enxergando a viabilidade, seja doutrinariamente seja por meio de legislações. Atualmente a doutrina (majoritária) entende que é possível apenas alguns atos, como de natureza fiscalizatória, seja antes do uso do referido poder (caso dos radares de trânsito), seja depois (caso da demolição de um prédio). Entretanto, vale salientar que o particular deve preencher alguns requisitos, como a previsão legal e a contratação de forma regular, por meio de licitação e/ou contratos públicos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/delegacao-do-poder-de-policia-2/
O Alto Custo Da Corrupção Na Saúde Pública Dos Brasileiros
No Brasil existem fatores que induzem negativamente o combate a corrupção, resultando em demasiado prolongamento desse mal, essa pesquisa tem por objetivo encontrar os problemas que ocasionam essa perpetuação. Analisando o excesso de leis, assim como, a punição aos agentes infratores de modo ineficiente. Iremos expor que a pandemia da COVID-19 demonstrou a realidade vivida na saúde pública brasileira que nos acomete há anos. Em detrimento do caráter excepcional, houve a necessidade da criação de leis para dispor em relação ao enfrentamento, assim como a dispensa de licitações referente aos contratos de utensílios para o combate. Como metodologia, trata-se de uma pesquisa aplicada, com abordagem qualitativa, com objetivos explicativo e exploratório, utilizando-se como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica.  Como veremos, muitos governantes desviaram verbas públicas que deveriam ser destinadas ao enfrentamento da epidemia, ocasionando mais sofrimento ao povo brasileiro, ou seja, o vírus da corrupção, juntamente com o da COVID-19 demonstra alto índice de prejudicial no aspecto socioeconômico.
Direito Administrativo
Introdução O Brasil está saturado de atos de corrupção. Por todos os lados, observamos suas inúmeras formas de aparições, começando pelas manifestações no campo social, em que não temos a capacidade de nos atentar ao fato de que já são demonstrações de corrupções, o jeitinho brasileiro está enraizado na sociedade, buscando sempre modos mais fáceis de alcançar os objetivos. O amplo campo de legislações que se encontra nosso país, é um fator prejudicial a não diminuição da corrupção, interferindo de modo assíduo no prolongamento dela, pois o brasileiro tentará de todas as formas buscar brechas nas normas, que na grande maioria, são ilegais, e de baixo custo. Sendo assim, é muito dispendioso seguir à risca as leis. Atualmente estamos enfrentando uma difícil realidade que devasta o mundo, a pandemia da COVID-19. E o que mais notamos são empresas se aproveitando de um momento de extrema urgência e calamidade pública, elevando os preços dos materiais essenciais ao combate, e ainda, agentes públicos desviando verbas públicas, que deveriam ser destinadas ao enfrentamento da pandemia. A corrupção tem o poder crucial de fazer um estrago onde ela se prolifera. Na saúde pública ela ataca na falta de meios para se ter um bem-estar de excelência, em que governantes inescrupulosos não medem esforços para tirar da população o pouco que lhe é dado. Mas esses corruptos acreditam que não estão fazendo mal a sociedade, uma vez que, as consequências não são individualizadas, pois atingem a sociedade em um todo. Tornando mais trágica as consequências da corrupção na saúde pública, sendo impossível dimensionar quantas pessoas são afetadas pelo vírus da corrupção.                         É enganoso dizer que a corrupção advém dos dias atuais, podemos considerá-la como um dos fenômenos mais antigos da nossa sociedade, ela evoluiu juntamente com o ser humano ao decorrer dos anos. Contudo, só foi tipificada no Direito Romano, onde as penas iriam ao pagamento de multa, até pena de morte. Entender como esse fenômeno começou a ser punido, nos trará clareza para distinguir o que já foi feito, e para o que ainda podemos fazer (CORDEIRO, 2017).   Na era medieval, a corrupção ainda não havia sido identificada como um crime, mas sim, considerada como ganância, o querer ser melhor que o outro. Era vista como um pecado, atrelada a qualquer conduta ruim do ser humano. Sendo conceitualizada por muito tempo, como um desvio de caráter, dificultando a condenação do ato, por ser em sentido muito amplo. A corrupção era chamada de “barataria”, que significava a atividade de dar, já pensando na retribuição.   Ao longo da história, no século XVII, podemos considerar como uma das causas de perpetuação da corrupção, o baixo salário de integrantes do poder público, nos dizeres de Adriana Romeiro “[…] os indivíduos mais bem remunerados, como os vice-reis, mostravam-se menos propensos às práticas de enriquecimento ilícito, ao contrário dos ouvidores, os oficiais do tesouro real e os funcionários inferiores das províncias.” (2017, p.65).   Não há como dizer quando de fato começou a corrupção, mas há indícios de punições a prática, como por exemplo, na Grécia Clássica, nas palavras de George Sarmento, (2002, p.28),   “[…] em Atenas, três crimes justificavam a abertura de processo contra um magistrado eleito pelo povo: a conspiração contra a democracia, a traição em favor de um inimigo da cidade e a corrupção, ou seja, a utilização do mandato popular para a satisfação dos interesses pessoais. (Apud CORDEIRO, 2017, p. 70).”   A corrupção era uma das características mais conhecidas no Egito, A Folha de São Paulo veiculou uma notícia, onde em 2004, um pesquisador egípcio encontrou indícios de corrupção e nepotismo, que datam 3.000 anos atrás. A ocasião foi de que houve um roubo de joias que estavam escondidas na tumba de um faraó, e quem cometeu o crime foram pessoas que trabalhavam no governo, elas foram livradas das penas, e jogaram a culpa em pessoas comuns. (ABDELHADI, 2004).   Havia atitudes antigamente que não era consideradas atos ilícitos, um exemplo, nas palavras da historiadora Adriana Romeiro, “Como é sabido, na Espanha do final do século XVII, como meio de contornar as necessidades econômicas da Hacienda Real, os cargos políticos e de justiça do governo americano passaram a ser vendidos.” (2017, p.61). Esse foi um dos meios mais fáceis e transparentes de comprar funções no poder público.   Esses são alguns casos de corrupção, e a forma como eles foram tratados ao decorrer dos anos. Ter esse conhecimento histórico sobre o assunto é importante, em razão de todo ser humano estar inserido em um contexto ao nascer, e o comum é ele dar segmento aquele pensamento, ou a cultura estabelecida no seu convívio social, ou seja, é o que lhe é apresentado ao decorrer de sua vida.   Na formação do Brasil, foi enviado uma elite para administrar o país, em nome do Rei de Portugal, para cobrar impostos, e extrair o máximo de riquezas de nossas terras. Não havia nenhuma intenção de construir uma nação, um dos motivos para a má formação de caráter dos brasileiros (FURTADO, 2012).   “Desde o tempo colonial, ocorreu uma reprodução na matriz política da Coroa Portuguesa, referente à gestão e às políticas aplicadas no Brasil-colônia. Ou seja, desde o início, a corrupção faz parte da história nacional. A desorganização do governo e do Estado português foi transferida à colônia brasileira, com muitas particularidades, como, por exemplo: leis confusas, morosidade e ineficiência das estruturas administrativas. Não havia sistema jurídico operoso e ocorria uma enorme confusão entre o público e o privado, ou seja, houve a possessão do espaço público pelo privado e, também, por agentes públicos corruptos. Eram altos índices de práticas e aceitação de práticas corruptivas. (Caroline Fockink, 2019, p.184)”   Com as condutas trazidas pelos portugueses, deram margem para perpetuação da corrupção, os brasileiros foram acostumados com a confusão do que é público com o que é privado, nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso,   “A corrupção no Brasil tem origens e causas remotas. Aponto sumariamente três. A primeira é o patrimonialismo, decorrente da colonização ibérica, marcada pela má separação entre a esfera pública e a esfera privada. Não havia distinção entre a Fazenda do rei e a Fazenda do reino – o rei era sócio dos colonizadores -, e as obrigações privadas e os deveres públicos se sobrepunham. (2019, p. 10).”   Encontramos a corrupção, em todos os elementos do Estado, assim como na política, nas igrejas, o primeiro bispo do brasil, Pedro Fernandes Sardinha, já demonstrava características, ou seja, ele vendia os perdões aos fiéis, que deveriam pagar pelo perdão, de acordo com o pecado cometido e para isso, existia uma tabela com os valores de cada pecado. Ele teve um fim trágico, no caminho de volta a Portugal, foi comido pelos índios caetés.  Mais uma história, que comprova que a corrupção não se encontra apenas na política (REZZUTTI, 2018).   Corrupção é tirar vantagem em cima dos outros. Enquanto ela é apenas um suborno ao policial para não ser mutado, “está tudo bem”, mas, e quando ela retira dinheiro do SUS (Sistema Único de Saúde)? E quando mortes são causadas diretamente por governantes que desviam o dinheiro público destinado a saúde? O mal é o mesmo, mas as consequências, são vidas.   O problema não está no sistema que foi adotado no Brasil, não está na monarquia, não está na ditatura, não está na democracia, não é um sistema que corrompe, é um sistema que foi corrompido, o grande problema está em uma sociedade que não quer se livrar dessas práticas. Nesse sentido Mairal escreve, “[…] quando um sistema político está contaminado pela corrupção encontrará oportunidades para obter subornos sob qualquer regime econômico.” (2018, p.27).   Hoje em dia só descobrimos os casos de corrupção no país, porque as delações premiadas estão sendo feitas com mais frequência. Visto que, a corrupção não é o ato apenas de uma pessoa, existe a necessidade de duas ou mais pessoas para as práticas serem realizadas com sucesso. Não há como só uma pessoa fazer. Deve haver essa troca, é uma colaboração.   O caso do “mensalão” foi um marco inicial de uma sociedade que deixou de aceitar os casos de corrupção, que deixou de julgar normal as práticas ilícitas entre o setor privado e o poder público; e o maior processo da história do nosso país que perduram até os dias atuais, é a Lava Jato, onde foi descoberto um dos maiores esquemas de propinas e desvios da Petrobras (PINOTTI, 2019).   Os estudos sobre as causas da corrupção se iniciaram nos anos de 1950, nos Estados Unidos. O país, estava com dificuldades em seu processo de modernização, sem conseguir progredir, precisando de soluções, com isso deram, de um modo mais sistêmico, uma abertura maior ao assunto (FILGUEIRAS, 2009).   No significado original, a palavra é “derivada do latim corruptione, que significa putrefação, decomposição e adulteração” (Adriana Romeiro, 2017, p.19), porém, não podemos nos apegar a um significado tão sucinto, cabendo a nós nos aprofundarmos em suas diversas aparições, para um melhor entendimento do que realmente vem a ser a corrupção na qual nos vemos inseridos diariamente.   Temos um difícil papel de conceitualizar corrupção, logo devemos abranger suas inúmeras formas de aparições. Para começar, não devemos apenas nos restringir as manifestações políticas, visto que, ela se encontra primeiramente no âmbito da vida social de cada ser humano. A corrupção tem sido tratada nos últimos anos de uma forma mais assídua, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), compreende,   “A corrupção é um complexo fenômeno social, político e econômico que afeta todos os países do mundo. Em diferentes contextos, a corrupção prejudica as instituições democráticas, freia o desenvolvimento econômico e contribui para a instabilidade política. A corrupção corrói as bases das instituições democráticas, distorcendo processos eleitorais, minando o Estado de Direito e deslegitimando a burocracia. Isso causa o afastamento de investidores e desestimula a criação e o desenvolvimento de empresas no país, que não conseguem arcar com os “custos” da corrupção. (Disponível em < https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/corrupcao/index.html> Acesso em 02 março de 2021).”   Um traço natural de cada indivíduo, é preservar o convívio em sociedade, o pensamento pelo bem comum, e por conseguinte, o cuidado pelo bem público. O desvio dessa personalidade resulta, no egoísmo, na ganância, e quando ela é vista no âmbito social, consequentemente, será notada na política também (FILGUEIRAS, 2009).   A dificuldade origina-se das várias práticas que podem se enquadrar como corrupção. O fato de os indivíduos perpetuarem esse ato, nos mostra que a corrupção foi sendo aceita dentro das repartições públicas, tornando mais árduo o trabalho de combatê-la. De tanto ser praticada, tornou-se comum, um bom exemplo, é quando, “Um funcionário que aplique rigorosamente a lei administrativa (aduaneira, fiscal etc.) a um familiar ou amigo será socialmente objeto mais de críticas do que elogios.” (Mairal, 2018, p.25) perante um país acostumado em burlar as leis, não há lugar para quem vá de encontro a essa prática.   Quando falamos da corrupção dentro do âmbito social, estamos falando do dia a dia de cada pessoa, onde ela está presente mesmo que nós não a percebamos. Está presente no trânsito, quando passamos no sinal vermelho, ou quando invadimos a preferencial. De plano, foi um ato tão pequeno que não há problema, e sempre que a pressa aperta aos condutores, eles dão um jeitinho de conseguir o que querem. Outro exemplo, é quando conhecemos alguém que possa facilitar, ou até mesmo ajudar a apressar algum serviço, seja em empresa privada, ou no serviço público, a frase “dá um jeitinho aí” é dita com tanta propriedade e tranquilidade, que não afeta ninguém, e quem fez esse serviço, fica com o sentimento de que quem pediu está te “devendo uma”. E assim se propaga a corrupção, uns cobrando os outros por estarem lhe devendo um favor, e nisso vão burlando normas e princípios. A cada dia que passa, o que vemos são pessoas e mais pessoas, presas a situações, normais e decorrentes da vida em sociedade, buscando formas de “facilitarem” essas situações, com vistas a alcançar o que querem de forma mais efetiva e rápida. Mais um exemplo, é quando uma pessoa está na fila de um banco, esperando por atendimento, com pressa, assim como várias outras pessoas que também estão na fila, se lembra que possui um certo “conhecido” que trabalha nesse mesmo banco, e decide pedir para que ele dê uma “mãozinha”, passando-o à frente dos demais, mesmo que alguns desses demais detenham preferência, como os idosos. O “conhecido”, acata o pedido, e em minutos, toda a questão se vê resolvida. Bom, a quem devemos apontar como um corrupto? Ambos, pois aquele que cedeu ao pedido, é tão corrupto quanto aquele que fez o pedido.   Essas situações, são recorrentes em pessoas que preferem “dar um jeitinho”, ao invés de seguirem as regras. Para essas pessoas, quando surge a oportunidade de se dar bem às custas de um método mais fácil, não há por que seguir leis. É um modo tão egoísta de viver, onde o bem comum é deixado de lado, para seguir os próprios interesses. Onde pequenos atos são realizados dentro do campo social, e as grandes práticas são encontradas na esfera política, e econômica. (CONSTANTINO, 2016).   Mas como podemos julgá-los? Se nosso país é tão cheio de normas, que existem leis que pegam, e leis que não pegam. Quanto a isso, Rodrigo Constantino afirma “[…] (pois a função precípua da burocracia parece ser a de criar dificuldades legais para vender facilidades ilegais depois) […]”. (2016, p.19).   É tão sufocante esse emaranhado de diretrizes, que o jeito mais fácil de o enfrentar é não o seguir, e não o seguindo, vemos de forma clara, a corrupção se espalhar por todos os cantos, se entrelaçando nas mais diversas situações existentes na sociedade, nos mostrando a obviedade do que é a corrupção: a opção de não seguir o certo, para alcançar o objetivo final, de uma forma mais rápida e por, muitas vezes, a custo zero. Uns dizem que a corrupção impede o desenvolvimento, e outros alegam que ela é um fator impulsionador da modernização, sobre o viés da concepção positiva da corrupção, na visão de Ivan César Ribeiro,   “Na esfera econômica a corrupção permitiria contornar o excesso de regulação e acelerar procedimentos. Uma empresa em busca de uma licença para comerciar poderia, por exemplo, reduzir os seus custos e aumentar a eficiência pagando ao agente do governo um valor para acelerar o processo de expedição desta licença. Assim, a corrupção também funcionaria como um incentivo de produtividade aos agentes públicos. (2005, p.12).”   Seguindo o mesmo pensamento, o professor Fernando Filgueiras escreve, “Do ponto de vista dos benefícios, a corrupção pode agilizar a burocracia, ao tornar mais rápida a emissão de documentos e autorizações formais por parte do Estado.” (2009, p. 395). O excesso de leis, abre oportunidades para métodos mais ágeis, implicando em um crescimento “falso” do país. Onde as empresas vão crescer firmadas em burlar leis e conseguir privilégios.   Em contrapartida a esse pensamento, Walfrido Warde, escreve, “A corrupção é uma das mais importantes causas da desigualdade. A ausência de um combate adequado à corrupção aprofunda as desigualdades intoleráveis e odiosas do nosso país […]”. (2018, p.12). A corrupção tem sido fundamental para a estagnação do desenvolvimento do país, não há crescimento seguro alicerçado em trapaças.   Não há como falar em um desenvolvimento igualitário de uma sociedade que está enraizada por corrupção. O progresso é de apenas uns, justamente aqueles que se dão bem às custas de “jeitinhos”.   O brasileiro passou a ter como qualidade, a malandragem. Como se dar bem as custas dos outros pudesse ser um atributo, mal sabem que são tão titulares da corrupção como os políticos de Brasília. A naturalidade que é trazida a malandragem ultrapassa os limites da singularidade. Para Rodrigo Constantino, “O jeitinho é, em essência, apelar a um elo pessoal ou emocional para burlar alguma norma e obter algum privilégio.” (2016, p. 19).   O “jeitinho brasileiro” é capaz de distorcer o que deveria ser reto, para algo absurdo praticado por pessoas “tolas”. Quem faz o certo, é visto como errado, uma vez que, há meios mais fáceis, menos burocráticos para se conquistar os desejos. Mas qual o custo dessas práticas recorríveis da nossa sociedade? Ao enumerarmos os custos da corrupção, começaremos pelos custos econômicos que nosso país vem sofrendo, com tantos desvios de dinheiro público, impossibilitando a melhoria dos setores básicos do país, como principalmente, a saúde. A mais prejudicada com tudo isso é a população, que ao mesmo tempo, é a única que pode mudar essa realidade.   Um dos empecilhos para redução da corrupção está justamente alicerçado no fato dela “não causar prejuízo a ninguém”. Um exemplo disso, é quando tratamos das classes mais carentes do nosso país, destes lhes são retirados o direito a melhor educação, aos melhores tratamentos na área da saúde, a um transporte público de qualidade, mas o mais interessante, é que elas não têm dimensão do que elas poderiam ter, então, não há como acionar a Justiça, pois não sabem o que de fato poderia lhes serem ofertados pelo Estado.  (PINOTTI, 2019).   A pandemia causada pelo vírus da COVID-19, vem ceifando vidas, sem olhar a quem, não importa a classe social, não importa a cor, o vírus não se atenta a isso. A falta de hospitais, e equipamentos tem sido marcos importantes de um país que não destinou o suficiente, e desviou milhões de reais, não apenas em época de pandemia, mas desde antes disso, nosso sistema de saúde já se encontrava precário, justamente porque a corrupção não vem de hoje. Estamos apenas sofrendo as consequências, e quais são elas? São vidas. É lastimável analisar que, em um momento tão crítico, onde deveria haver mais união, o que mais tem importância é o dinheiro, pasmem, o interesse particular vem acima de qualquer interesse de coletividade, independentemente de qualquer colapso instaurado.   O Índice de Percepção da Corrupção, criado pela Transparência Internacional, classifica os países em todo mundo, sendo avaliados com notas de 0 a 100, onde 0 indica um país altamente corrupto, e 100 o país mais íntegro. O Brasil se manteve estagnado, com nota 38 em 2020, e em 2018 e 2019 com nota 35, não há o que se falar em um avanço significativo nos últimos anos, pois o IPC conta com uma margem de erro de 4,1 pontos para menos ou para mais. A Transparência Internacional ainda trouxe que o Brasil vem sofrendo sérios retrocessos no combate efetivo da Corrupção. (BRASIL, 2020).   Nos últimos anos, o combate a corrupção veio sendo abordado pelos candidatos políticos de uma forma mais assídua nas suas campanhas, pois perceberam que os brasileiros começaram a se posicionar e a cobrar das autoridades um combate confiável a corrupção. Isso não significa que eles fizeram algo, apenas que aprenderam um modo prático e fácil de ganhar votos. O Brasil encontra-se muito aquém do esperado no combate a corrupção, está abaixo da média do BRICS (39) e mais abaixo ainda da média mundial que perfaz 43 pontos (BRASIL, 2020).   A estagnação do Brasil no IPC deve ser questionada sim, pois nosso país está muito longe de alcançar a meta de ser um país limpo de corrupção. Com a diminuição da corrupção teremos um país mais evoluído moralmente e economicamente, e então, viveremos em uma sociedade que terá confiança.   4.1 A Insegurança Jurídica é um campo fértil para a corrupção Outro custo que é trazido pela corrupção, é a insegurança jurídica. É clara a incerteza da população em um ordenamento jurídico frágil, pois a sensação de impunidade nos invade de uma forma gigantesca, o sentimento é que estamos em um país onde a lei vale para alguns, mas não para todos.   Crimes de colarinho-branco vão se repetir por muitos anos ainda, visto que, raramente a lei é aplicada para eles. “[…] um direito penal seletivo e absolutamente ineficiente em relação à criminalidade de colarinho-branco criou um país de ricos delinquentes.” (Luís Roberto Barroso, 2019, p.18). Uma frase dura, que retrata a realidade do nosso país, não estamos sob um sistema legislativo igualitário.   O sistema deveria agir de uma forma a trazer segurança à população, a resultar em certeza de que crimes vão ser punidos. E não é por falta de penas, pois disso, nosso sistema conhece bem, ao ponto de sobrecarregá-lo, neste sentido, a mestre em direito penal, Caroline Fockink, aponta,   “A confiança nas instituições é considerada um elemento fundamental, pois elas são criadas legalmente para atender às demandas sociais, prestando segurança pública, assistência jurisdicional e demais serviços sociais necessários e estabelecidos legalmente. O objetivo na criação de uma instituição pública justamente está centrado no dever de dar atenção, com eficiência, honestidade e probidade ao propósito a que foi criada. Quando isso ocorre, cria-se um círculo positivo de confiança da população nas instituições. A instituição pública está, então, respondendo positivamente às expectativas sociais. (2019, p. 184).”   No Brasil, vemos o quão acessível é operar em situações ilícitas, havendo incentivo para essas ações, como o ganho fácil e farto, e pior, não há grandes riscos de condenação a esses infratores, elevando os índices de criminalidade no país. O Sistema Legislativo brasileiro perdeu a eficácia em agir como uma forma de prevenção geral, causando temor de punição. (BARROSO, 2019).   O excesso de leis, e o cumprimento delas de modo não igualitário, resulta em um campo fértil para a corrupção. Na primeira, as brechas serão a procura incansável para conseguir vantagens, ou seja, alternativas mais baratas e menos penosas, e na segunda a busca será por quem tem mais poder, ou seja, em todos os casos, sempre se livrando do cumprimento das normas. Obvio que, em muitas situações o excesso de normas traz dificuldades para seu cumprimento. E a quem iremos atribuir a culpa dessa vez? Aos legisladores? A cultura brasileira é a grande vilã dessa história, o jeitinho brasileiro fugirá dos trâmites legais, sempre que possível seja, para facilitar sua vida.   “[…] quanto mais ambiciosa a norma for, mais aumentarão as oportunidades para a corrupção: “Uma regulamentação mais rigorosa não garante produtos de maior qualidade (…). O que sim estimula é o aumento da corrupção” observe-se que, além disso, a proliferação de requisitos leva a que requisitos importantes coexistam com os secundários. E se o cumprimento dos últimos for muito difícil, tende-se a recorrer à corrupção para contorná-los. Assim o suborno pode levar a que não se controle nenhum tipo de requisito. (Héctor A. Mairal, 2018, p.117).”   Quando dizemos que o excesso de leis, é um fator da corrupção, podemos dar como exemplo os altos impostos que são cobrados no nosso país. Encontraram uma brecha, em que quanto mais alto fica, mais dinheiro o governo tem. Só que não há distribuição eficaz desses valores nas principais necessidades da sociedade. Sendo assim, é insignificante o crescimento do Brasil, poderíamos facilmente ser um país de primeiro mundo, se não enriquecêssemos apenas uma classe de pessoas. E isso é resultado de um povo que está impregnado em sua grande maioria pela cultura da malandragem.   “O Brasil é de longe o campeão mundial no tempo gastos pelas empresas na preparação de documentos para o pagamento de impostos e contribuições: 1.958 horas ao ano, seis vezes a média de 332 horas registrada nos países da América Latina e Caribe, de acordo com o mais recente relatório do Banco Mundial sobre ambiente de negócios em todo o mundo. (EXAME, 2017, Disponível em <https://exame.com/> Acesso em 07 de abril de 2021).”   Mais um dado assustador que representa a abundância de normas que se encontra o Brasil, é “O país acumula 5,9 milhões de normas editadas nas três esferas de governo (União, Estados e municípios) desde a Constituição de 1988.” (Luciana Albernaz, 2021, disponível em < https://sindeprestem.com.br > acesso em 10 abr. 2021). Esse excesso causa a procura por brechas, e na maioria delas são brechas ilegais. Por exemplo, hoje em dia é muito difícil abrir uma empresa, pois há muitos trâmites a serem seguidos, que trazem duas alternativas, a primeira é procurar o mais fácil de forma ilícita, ou seja, pedindo “uma ajudinha” aos funcionários públicos, ou as pessoas que detêm poder, e o segundo, é não fazer, não abrir. Das duas formas, a economia é atingida, trazendo prejuízos.   “O Brasil é um dos países com a mais intricada burocracia do mundo, o que representa não só um custo adicional para empresas e desincentiva investimentos, como também produz aumento nas oportunidades para que atos de corrupção sejam praticados. Afinal, o pagamento de propina tem como objetivo, com frequência, superar entraves e obstáculos burocráticos. (Unidos Contra a Corrupção, p.41. 2018).”   Quando um funcionário público renuncia ao seu dever legal de preservar o bem comum, para buscar seu enriquecimento próprio, ele não está apenas colocando em descrédito os funcionários públicos, mas também está colocando os entes públicos do Estado, fazendo com que os cidadãos não acreditem nas instituições. Os agentes públicos têm poderes positivos e negativos sobre a sociedade, capazes de resultar em respeito pelos entes públicos e pelas leis, quando suas atitudes forem benéficas a sociedade. (FOCKINK, 2019).   Os maiores prejudicados somos nós, enquanto população, pois não confiamos no sistema do nosso país, e muito menos nos funcionários que o representam. Essa insegurança de que as leis só funcionam para alguns, traz consequentemente o não seguimento das normas, visto que, elas não são impostas para todos.   A operação Lava Jato, teve inspiração na operação Mãos Limpas, que ocorreu na Itália entre os anos 1992 – 1994, ou como ficou conhecida, MANI PULITE, teve grande repercussão pois tratava-se da máfia italiana envolvida diretamente em esquemas fraudulentos com os funcionários públicos. (DAVIGO, 2019). O início da operação se dá com a narração a seguir,   “SEGUNDA-FEIRA, 17 DE FEVEREIRO DE 1992, 17H30MIN. Luca Magni, um empresário de 32 anos, comparece na Via Marostica 8, em Milão, no escritório de Mario Chiesa, presidente do Pio Albergo Trivulzio, histórica casa de repouso para idosos fundada no século 18. Magni é dono de uma pequena empresa de limpezas, a ILPI, de Monza, que trabalha também para o Trivulzio. Chiesa é um representante do Partido Socialista Italiano e não esconde suas ambições políticas: sonha em se tornar prefeito de Milão em um futuro próximo. Magni é recebido após meia hora de espera. Ele deve entregar quatorze milhões de liras a Chiesa, valor da propina negociada por um contrato de 140 milhões de liras.’ Carrega uma caneta transmissora no bolso do casaco e segura uma maleta com uma câmera escondida. “Para dizer a verdade”, recorda Magni, “eu tinha muito medo, estava muito nervoso. O engenheiro Chiesa estava ao telefone, e tive de esperar dez minutos em pé até que ele concluísse a ligação. Então, dei-lhe um envelope que continha sete milhões de liras. Disse a ele que ainda não tinha os outros sete” Chiesa não reage. Apenas pergunta: “Quando você trará o resto?” “Na próxima semana”, responde o agitado Magni Depois, despede-se e, ao sair, quase esbarra com um policial à paisana.  (Gianni Barbacetto, 2016, p. 37).”   A partir daí muitas acusações foram feitas, e a mais desafiante foi quando Chiesa declarou que era apenas quem fazia os trabalhos, mas que quem mandava era o Partido Socialista Italiano. E deu início as investigações sobre líder do Partido (MIGALHAS, 2017). Como é relatado pelo Doutor Walfrido Warde (2018, p.96) “A operação levou à prisão inúmeros políticos e empresários, dentre eles o primeiro-ministro e líder do Partido Socialista Italiano, Bettino Craxi, determinando o fim da Primeira República Italiana (1948-1994)”.   O diferencial da operação foi a realização de condenações aos verdadeiros chefes da Máfia Italiana, exterminando dois partidos que mandavam na Itália. Foram acusadas cerca de 4.520 pessoas envolvidas nos crimes de corrupção, sendo vista como um “efeito dominó”, descobrindo casos inescrupulosos. A cada momento das investigações, era evidente o fato de que na Itália o pagamento de propina era uma regra. (MORO, 2016).   A operação Mãos Limpas foi um marco divisor na Itália, incorrendo em antes da operação e depois, pois acabou com dois partidos que dominavam o país, essa é uma das referências positivas, vejamos,   “A consequência a curto prazo foi a derrocada dos principais partidos que governaram a Itália desde o início da Republica: Democracia Cristã e Partido Socialista Italiano, os quais sumiram do mapa político, deixando espaço para o avanço de forças novas […] Esta mudança abrupta no esquema a que Itália havia se acostumado desde o início da Republica, fez surgir a concepção da ‘Mani Pulite’ como um divisor de aguas na vida pública italiana, de forma que se fala de Primeira República (antes de Mani Pulite) e Secunda República (depois de Mani Pulite), apesar de não ter ocorrido alguma ruptura institucional – os termos são apenas jornalísticos, mas entraram na linguagem comum e, com certeza, entrarão na história. (MIGALHAS, 2017, disponível em < https://www.migalhas.com.br/ > acesso em 16 de abr. de 2021).”   A Mani Pulite tem um final trágico, em razão da corrupção sistêmica enraizada naquele país. Os próprios magistrados foram acusados de cometer excessos em prisões cautelares, pasmem, mesmo sem ter a comprovação de que havia inocentes. Alegando ainda não estarem em um Estado de Direito Democrático. Houve diminuição das penas, aprovaram leis que dificultavam os processos de investigações, visando apenas reduzir as consequências dos processos judiciais, e infelizmente, conseguiram (MORO, 2016).   A Itália parece funcionar de forma contrária ao que está escrito nas leis. Após a descoberta dos esquemas de corrupção, o sistema político reagiu, imediatamente no ano de 1994, por meio do governo. Na tentativa de aprovar o decreto-lei nº 440/1994 que dispunha sobre o impedimento de prisão preventiva as pessoas submetidas as investigações por crimes de corrupção, porém, com a pressão popular, o decreto não foi sancionando pelo Parlamento, e perdeu sua validade. Os efeitos foram trágicos, ao notarem que não havia uma união entre os poderes, e que facilmente as normas estavam afrouxando para os corruptos, diminuiu significativamente as pessoas dispostas a denunciar e a colaborar com as investigações (DAVIGO, 2019).   Mas o que a operação Mãos limpas tem a ver conosco? Nesta operação descobrimos algo muito importante, que não estamos confrontando casos excepcionais de corrupção, e sim, como uma forma de operar o sistema. Piercamillo Davigo, um magistrado Italiano que fez parte da operação Mãos Limpas, nos escreveu, “O instrumento principal utilizado pela máfia e outras organizações não é a violência, e sim a corrupção.” (2019, p.103). Essa frase nos remota ao fato do quão letal é a corrupção.   Devemos tomar como exemplo a Operação Mãos Limpas realizada na Itália, ela demonstra a primordialidade imperiosa de unir todas as instituições contra um sistema corrupto. Não teremos chances contra esse mal, se apenas alguns lutarem contra ele, precisamos nos unir para o combate.   Outro fator que tem trazido riscos evidentes ao combate a corrupção é a dispensa da obrigação de licitações em contratos, em face do momento excepcional que estamos enfrentando. A pandemia da COVID-19 veio mostrando o quão precário é nosso sistema de saúde. Há mais de um ano foi declarado estado de pandemia no mundo, e foi necessário medidas emergenciais para romper com as burocracias para licitações.   As Leis 8.666/1993 e 10.520/2002 estabelecem normas gerais sobre licitações, incluindo os requisitos para o requerimento delas. Tais leis foram substituídas e unificadas pela nova lei de licitações 14.133 que foi sancionada recentemente em 01 de abril de 2021. Nas palavras de Alexandre Mazza, “A Licitação é um procedimento obrigatório que antecede a celebração de contratos pela Administração Pública” (2019, p.826).   Ainda demonstrando um conceito mais abrangente, Mazza traz que é “o procedimento administrativo pelo qual entidades governamentais convocam interessados em fornecer bens ou serviços […] estabelecendo uma competição a fim de celebrar contrato com quem oferecer a melhor proposta” (2019, p.827-828).   O Poder Público não pode escolher livremente por determinada empresa como fazem as empresas privadas, pois devem estar preceituados nos princípios de isonomia, impessoalidade, moralidade e indisponibilidade do interesse público. Devendo ocorrer uma seleção imparcial do melhor contrato para o Poder Público A Constituição Federal trouxe normas a serem seguidas no âmbito da administração pública, em específico sobre as licitações, e com exceções de casos especificados em Lei, a Carta Magna, dispõe,   “Art. 37, inciso XXI, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”   Foi imposto ao Estado a criação de medidas eficazes de combate a pandemia, implicando em uma facilitação de compras de bens e serviços, “[…] exige que a Administração Pública seja cada vez mais rápida e eficiente na sua atuação, justamente para desburocratizar as aquisições que estão sendo feitas no combate a essa doença.” (Bruno Teles, 2020, p.3)   A Lei 13.979 de 09 de fevereiro de 2020, ponderando o Estado de Calamidade Pública, trouxe medidas consideradas adequadas para o enfrentamento da COVID-19, no âmbito nacional. A referida Lei trata da dispensa de licitações enquanto perdurar a pandemia da COVID-19, e aduz dois fatores importantes em seu art. 4º, onde o primeiro é que deve ser usada apenas enquanto perdurar a emergência de Saúde Pública internacionalmente, e o segundo é que a dispensa de licitações é destinada apenas aos bens, serviços ou insumos referentes ao enfrentamento da pandemia, (BOAVENTURA, 2020), vejamos,   “Art. 4º – É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)   Ainda sobre o art. 4º da Lei 13.979, ao fazer referência aos bens, serviços e insumos para o enfrentamento da COVID-19, torna-se vasta as opções, por exemplo, se os servidores públicos precisarem de notebook para trabalhar em home office não haverá licitação, pois versa sobre a não aglomeração nas repartições públicas que é uma das medidas essenciais para o combate a pandemia. É um modo de dar continuidade aos trabalhos, sem exposição ao vírus.  (BOAVENTURA, 2020).   “O atual cenário de enfrentamento de uma crise sanitária com amplos reflexos na prestação da saúde pública demanda uma pluralidade de providências a serem tomadas pelo Poder Público para que haja um mínimo planejamento da execução das ações voltadas ao atendimento das novas demandas geradas pelo cenário adverso. Há um fator de escassez de recursos estatais para atendimento rápido de múltiplas demandas, associado com uma crise econômica que mingua os cofres do Estado e desafia o gestor público. (Gustavo Assed Ferreira, Rafael Assed de Castro, 2021, p.8)”   Em vista da necessidade de rapidez nos processos de compras de materiais para o combate, mais uma vez a Lei teve que dispor sobre a transparência nos processos, pois se tratando do país da malandragem deve se esperar atos de aproveitamento, e foi o que infelizmente aconteceu, e vem acontecendo, vejamos,   “Entre os problemas identificados nos processos de compras públicas estão: grande variedade de preços, valores unitários que não apresentaram reduções nem em compras em grandes quantidades, contratos feitos com empresas de outros setores que não o da saúde e pagamento antecipado por parte das autoridades públicas por materiais ou equipamentos médicos que tinham defeitos, chegaram com atraso ou nunca foram entregues. (Transparência Internacional Brasil, 2021, p. 44).”   A imposição rigorosa de licitações, demonstra mais uma vez a burocracia que está entrelaçada no nosso país. A pandemia da COVID-19 trouxe um caráter de urgência a esses processos, visto que, a demora para concessão de utensílios indispensáveis para o combate à pandemia, tem levado a mortes, de milhões de pessoas. O momento de crise que estamos passando, nos faz pensar em relação a esses inúmeros trâmites que existem no nosso país, nesta perspectiva,   “[…] nos traz uma tarefa no sentido de contratar o mais rápido possível, deixando de lado o formalismo excessivo e tutelando os direitos fundamentais do ser humano, que é o direito à vida e à saúde, sem, no entanto, permitir situações ilegais e permeadas de abusos. Premente é, portanto, a necessidade de mudança de mentalidade, admitindo a flexibilização das normas, como instrumento de inovação, evitando procedimentos burocráticos, que se oponham aos princípios da celeridade e do interesse público. (Carmen Boaventura, 2020, disponível em < https://www.effecti.com.br.> Acesso em 15 de abr. de 2021).”   Contudo, nota-se uma população sedenta por oportunidades de se dar bem na vida, seja elas boas ou ruins, não perdem o momento, se aproveitam de uma emergência para melhorarem de vida, demostrando que o problema não está apenas nos políticos, está na raiz da sociedade brasileira. É incrível como não houve empatia em meio a uma pandemia. Além do sofrimento com a epidemia, as lotações dos hospitais, as faltas de equipamentos para as UTIs, como por exemplo a falta de oxigênio enfrentada por Manaus/AM, vejamos,   “Documentos obtidos pelo Ministério Público de Contas indicam que 31 pessoas morreram por falta de oxigênio em Manaus nos dias 14 e 15 de janeiro, quando a capital atingiu o ápice da falta do insumo. Nesses dois dias, falta de oxigênio nos hospitais de Manaus levou a cidade a um cenário de caos: com recordes nos casos de Covid, a cidade precisou enviar pacientes que dependiam do insumo para outros estados. Parentes de pessoas internadas tiveram que comprar cilindros com o gás por conta própria. (G1 AM, 2021, disponível em < https://g1.globo.com/ > acesso em 13 de abr. de 2021).”   Ainda, no início da pandemia, os equipamentos essenciais para o enfrentamento da COVID-19 tiveram aumentos exorbitantes em relação aos preços antes da pandemia, como por exemplo, nos produtos de álcool em gel, máscaras, luvas. Podemos perceber mais uma vez como o brasileiro é cheio de esperteza e malandragem, aproveitando-se de um momento de vulnerabilidade da população para superfaturar. No final do ano passado, o Ministério Público de Contas do Espírito Santo, investigou, e apontou um superfaturamento na compra de cloro na cidade de Alto Rio Novo, para desinfectar os ambientes usados para enfrentamento, observemos,   “Em razão da compra sem licitação de cloro ativo pela Prefeitura de Alto Rio Novo por valores acima dos praticados no mercado, o Gabinete Especial do Ministério Público de Contas (MPC) apresentou representação na qual pede a condenação dos responsáveis pela aquisição do produto – prefeito, secretário de Saúde e servidora municipal autora do termo de referência – e da empresa contratada à devolução do valor relativo ao dano causado aos cofres públicos pelo sobrepreço do produto, destinado ao enfrentamento da Covid-19. (MPC, 2020, disponível em < https://www.mpc.es.gov.br/ > acesso em 13 de abr.de 2021).”   Nos Estados Unidos, no ano de 2004, quando o furacão Charley assolou o estado da Flórida, além dos inúmeros prejuízos causados, trouxe ainda um debate fervoroso pelos altos preços após o furacão, o Procurador-Geral do Estado, Charlie Crist ficou indignado, em suas palavras,   “Não se trata de uma situação normal de livre mercado, na qual pessoas que desejam comprar algo decidem livremente entrar no mercado e encontram pessoas dispostas a vender-lhes o que desejam, na qual um preço obedece à lei da oferta e da procura. Numa situação de emergência, compradores coagidos não têm liberdade. A compra de artigos básico e a busca de abrigo seguro são algo que lhe são impostas. (Apud SANDEL, 2020, p.13).”   Na Flórida, existe a lei contra os preços abusivos, e ao tentar o cumprimento dela, o Procurador Crist foi coagido por vários economistas que articulavam ter sido impostos “preços justos” pois foram fixados de acordo com demanda de oferta e procura. No entanto, não é assim que uma sociedade boa deve funcionar, a tentativa de obter vantagens em cima da população em tempos de crise, é mais uma demonstração de ganância, essa que deve ser coagida pelo Estado para, ao menos, restringir sua expressão descarada. (SANDEL, 2020).   Ao passarmos por momentos de urgência, não temos outra alternativa a não ser comprar alguns itens necessários para o enfrentamento, a exemplo da COVID-19, máscaras e álcool em gel, e é inadmissível que se aproveitem do momento de fragilidade para faturamento exorbitante, e podemos notar que não são apenas os agentes públicos, mas também a população, os comerciantes. Atitudes como essas, devem ser arrancadas da nossa sociedade, o bem comum deve prevalecer para que todos possam sair da situação de urgência.   6.1 Saúde Pública no Brasil A Constituição Federal de 1988, imputou ao Estado a obrigação do direito à saúde, no art. 196,   “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”   Entretanto, com a falta de orçamento para financiar essa enorme responsabilidade, consequentemente houve um excesso de demanda. Ao estabelecer que é direito do Estado prover o necessário para a saúde dos brasileiros, notamos o quão pesado foi esse encargo para o Governo, por mais que por trás somos nós quem financiamos através de impostos, mas saúde pública ainda se encontra precária.   Não obstante, o Estado não suportou a incumbência de oferecer um sistema de saúde a todos os brasileiros, visto que, a CF ao versar sobre lhe incumbe a oferecer todos os serviços, levando a demanda infinita e dificilmente controlada (GARSCHEGEN, 2020). O Estado por meio de mais burocracias tentou limitar o teto a ser usado pelos Estados e Munícipios, levando a uma “oferta limitada e demanda infinita, ocorre o inevitável: a escassez.” (Bruno Garschagen, 2020, p.157).   Além disso, a corrupção embolsa uma parcela gigantesca que deveria ser disponibilizada ao SUS, ocasionando filas de espera perpétuas. Quem perde mais uma vez, somos nós. Nós que temos que ter limitações ao procurar o Estado para ter uma saúde de qualidade. E onde está o problema? Nas filas infinitas que sobrecarregam um sistema precário? Ou está em nós, brasileiros, que procuramos o direito à saúde que nos foi dado na Constituição Federal? A dificuldade consiste na não punição a agentes infratores que conduzem esse Sistema. Já que ao Estado lhe foi imputado essa obrigação, deve ele fazer de tudo para seguir essa norma. E assim, punir os agentes que desviam dinheiro da saúde pública.   Ao darmos poderes aos políticos sem conhecermos ao menos suas propostas, e além de tudo sermos gananciosos, nas palavras do escritor e colunista Rodrigo Constantino, sobre as eleições no nosso país, “Parece um balcão de negociatas em que os princípios são colocados de lado e os interesses imediatos, priorizados. O malandro vota com o bolso e olhando apenas para o hoje.” (2016, p. 63).   Precisamos pensar e agir como sociedade, analisando as necessidades do país, principalmente com a saúde, e frisamos tanto sobre ela, pois é de suma importância ter uma saúde pública de qualidade, porque acima de tudo, do pobre ao rico, do preto ao branco, estamos falando de vidas. A corrupção na saúde pública é capaz de levar pessoas ao óbito por falta de recursos, nas palavras do Ministro Barroso,   “Corrupção mata. Mata na fila do SUS, mata na falta de leitos, mata na falta de medicamentos, mata nas estradas que não têm manutenção adequada, destrói vidas que não são educadas por falta de escolas. O fato de o corrupto não ver nos olhos da vítima não o torna menos perigoso. (Luís Roberto Barroso, 2018, Disponível em: <https://portal.stf.jus.br> Acesso em 15 abr. 2021).”   Não adianta apenas enumerar os fatores que ajudam na perpetuação da corrupção, ao contrário disso, precisamos buscar formas de nos livrar desse mal que assola nossa sociedade, uma alternativa que o Banco Central encontrou para agilizar nossas vidas, foi também uma forma de ter mais transparência nas transações, de modo a evitar a circulação de dinheiro em espécie, vejamos,   “Em novembro, o Banco Central lançou um novo sistema online de transferências e pagamentos, o PIX. A plataforma tem o potencial de reduzir pagamentos em espécie (uma prática que corresponde a cerca de 70% das transferências financeiras no país) e de aumentar a rastreabilidade de transações, o que pode auxiliar na prevenção de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. (Transparência Internacional Brasil, p.16, 2021).”   Buscando opções de diminuir a corrupção na sociedade brasileira, temos dois elementos importantíssimos para o avanço da mudança que visa a transformação na base do cidadão, ou seja, nos valores morais, e prezar pela transparência nos atos públicos, nas palavras do professor Fernando Filgueiras,   “No que diz respeito à corrupção, constata-se que não basta uma mudança do aparato formal ou da máquina administrativa do Estado propriamente dita, mas reforçar os elementos de uma cultura política democrática que tenha no cidadão comum, feito de interesses, sentimentos e razão, o centro de especulação teórica e prática para uma democratização informal da democracia brasileira. Os avanços das reformas da máquina pública, nas duas últimas décadas, são inegáveis, com o reforço da transparência. Contudo, falta, à democracia brasileira, um senso maior de publicidade, pelo qual a transparência esteja referida a uma ativação da cidadania, à accountability e à participação, sem os quais os esforços de combate e controle da corrupção ficarão emperrados em meio a uma cultura política tolerante às delinquências do homem público. (2009, p. 418).”   Para se ter melhores resultados nessa busca, os valores morais interferem na construção da confiança dos brasileiros nas instituições, e isso se dá, porque os servidores públicos quando não agem de acordo com o art. 37 da Carta Magna, seguindo os “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade” põem em descredito as instituições do Estado.   É necessário que os servidores tenham atitudes pensando no bem comum, para que os cidadãos possam respeitar e acreditar, nas instituições que deveriam apenas proteger. Para o bom andamento da democracia é de suma importância que tenha confiança recíproca, com a população acreditando nas intuições públicas, aumentam a confiança nas leis, pois notam que os funcionários de sua administração seguem e fazem de tudo para que sejam eficazes, esse é um dos caminhos para fugir da corrupção.  (FOCKINK, 2019)   Conclusão Podemos notar uma população mais sedenta por respostas aos incontáveis casos dos crimes de corrupção que permanecem no Brasil, porém, sem compreender que precisam fazer algo para mudar essa triste realidade. A cobrança aos agentes públicos, é essencial, assim como, o conhecimento pelas propostas dos candidatos a cargos públicos, não pensando em apenas uns, mas sim em sociedade. Quando se almeja algo em troca por um voto, você não está pensando no bem comum. E o bem comum, sem sombras de dúvidas, é uma sociedade sem corrupção. É de suma importância compreendermos que por mais que façam a população se acostumar com atos de corrupção, trazendo-os como se não fizessem mal a sociedade, não é bem assim. Não devemos mais aceitar práticas de corrupção que estão tirando do povo o pouco que lhe é dado, de modo a afetar diretamente a saúde pública dos brasileiros. A pandemia da COVID-19 demonstrou as consequências vividas diariamente no nosso Sistema Único de Saúde. O Brasil transmite a população a existência de um caos no ordenamento jurídico brasileiro, onde evidência uma insegurança, em relação ao fato de que as normas não são impostas a todos da mesma forma, trazendo uma desigualdade até na aplicação das leis. Como no excesso delas, implicando na busca por brechas, ocorrendo em mais casos de corrupção. A confiança nas instituições é de grande valia, uma vez que, constroem uma coesão entre o que está no papel, na lei, com o que é praticado. Outra forma de buscar a diminuição da corrupção, é ter uma transparência dos gastos de uma forma mais efetiva, para que os órgãos competentes, como a, Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Polícia Federal (PF) e o Poder Judiciário, possam investigar com mais facilidade os crimes de corrupção, de modo, a quebrar a burocracia que está enraizada fielmente no nosso país. Uma questão a ser pensada é em como se dará os processos de licitações após a pandemia da COVID-19, ainda, em como será realizado os processos de corrupção em especial na saúde pública, pois, alguns governantes não pensaram nas vidas que seriam afetadas por esse vírus mortal. Dessa forma, não há justificativas para ter paciência e cautela com governantes que não mediram esforços para passarem a mão no dinheiro público que deveria ter sido destinado para salvar pessoas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-alto-custo-da-corrupcao-na-saude-publica-dos-brasileiros/
Da suspensão Abrupta das Datas dos Certames e a Eventual Responsabilização do Estado
A pandemia afetou drasticamente o mundo trazendo reflexos em todos os campos, afetando a economia, saúde e trouxe seus reflexos até para os concursos públicos, objeto dessa obra, e isso passa à gerar suspensões de certames e essas interrupções e suspensões podem acarretar danos cíveis aos postulantes aos cargos públicos. O objetivo desta obra é demostrar a possibilidade da responsabilização do Estado, trazendo o entendimento doutrinário, e julgados que demostram essa possibilidade de indenização, que indubitavelmente chegará à porta do poder judiciário o mais breve possível.
Direito Administrativo
Introdução O cargo público sem oposição de embargos é a principal meta de inúmeros estudantes, licenciados e bacharéis no Brasil que, por vezes, passam por abdicações, dificuldades inexplicáveis para que possam ter seu nome no tão sonhado diário oficial. Um desses pontos de dificuldades é   conhecer a empresa (banca) organizadora desses certames, uma vez que suas maneiras de cobrança de conteúdo variam de uma para outra, assim como seu nível de dificuldade, entretanto, o que busca-se aqui, não é como compreender o funcionamento da  banca mas a sua responsabilização por suas ações e omissões com foco nas mudanças súbitas de datas para realização das provas de concurso, e consequentemente a responsabilização do Estado uma vez que esse é principal responsável ainda que de forma subsidiária.   Passado esse fase licitatória[1], não necessariamente quer dizer que essa banca vá de fato cuidar do andamento do certame, entretanto, normalmente é o que ocorre, à partir daí  essa empresa cuidará de todos os atos, organização da datas, valor das taxas de inscrição, todos os critérios da cobrança, se haverá pluralidade de fases, data de realização das provas, eis aqui o ponto mor desse estudo académico,  inúmeras notícias inundam as emissoras televisivas, e mídias audiovisuais acerca das suspensões abruptas  de realização de provas, fatos que acarretam prejuízos aos concurseiros. O principal intuito desse estudo é, portanto, avaliar combater tais condutas danosas da Administração Pública, contra um polo mais fraco que são as pessoas que buscam ter oportunidade na carreira pública. O estudo terá como alicerce a Doutrina e alguns julgados e voltado principalmente nas notícias das mídias sociais, assim como nos meios jornalísticos, como rádio, e televisão.   1. Responsabilização Objetiva do Estado em Sentido Lato Sensu É notório que, quando nos referimos ao Estado, estamos englobando no sentido mais amplo possível no que tange a administração pública, seja por concessionárias, órgãos, autarquias, dessa forma abraçando a administração direta e indireta, superado esse ponto esclareceremos o funcionamento da responsabilização.   1.1 Noções Introdutórias O instituto da responsabilização, não é único e exclusivo do Direito Administrativo, também existente no direito ambiental e no direito privado, grafado no código civil, código defesa do consumidor. A responsabilização, entretanto, divide-se em duas espécies, sendo objetiva e subjetiva, aquela ainda que elencada em mais leis é a exceção à regra. Trataremos das distinções entre a responsabilização civil do particular com a responsabilização do Estado. A responsabilidade Estatal há ausência do elemento subjetivo, seja dolo ou culpa, por isso chamamos de Responsabilidade objetiva do Estado. O código civil, Lei 10.406 de 2002, no artigo 186 deixa evidente que a reparação civil requer o elemento subjetivo. “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Indo mais além, nas disposições Título IX Da Responsabilidade Civil no art. 927 parágrafo único traz a seguinte disposição: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” O que se extrai dos Arts. 186 e 927 parágrafo único, é que no primeiro caso requer esse elemento subjetivo, já no segundo caso, será reparado independente de culpa. E por fim a lei 8.078 de 1990[2],  em seu artigo 14 traz  a responsabilização objetiva, assim dispõe:    “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”( Nosso grifo).         Caminha também nesse sentido o §6° do art. 37 da Constituição Federal:   “§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”   Dessa feita, Esclarece o ilustríssimo autor, Celso Antônio Bandeira de Melo: “A responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem” Das análises dos dispositivos cível e constitucional e da conceituação do honrado professor Bandeira de Melo, resta consolidada a tese da responsabilidade objetiva do Estado, basta apenas comprovação do nexo de causalidade entre o ato lícito ou ilícito praticado pelo agente e o dano causado, por fim fica assegurado à pessoa jurídica entrar com ação de regresso, e nesse caso será analisado com base na responsabilidade subjetiva do agente.   1.2 Teorias da responsabilidade e contexto histórico A primeira teoria surgiu no estado absolutista pautado na ideia que o rei nunca pode errar, neste período não havia responsabilização do ente estatal, afinal o Estado não errava, foi dado para essa teoria o nome de Teoria da irresponsabilidade. Ressalte- se que não há documentos que comprovem a existência dessa teoria no Brasil, ainda que em época de império. No século XX, a teoria da irresponsabilidade caiu em desuso instaurando as teorias civilista, ou seja, instaurando o elemento de culpa, mas apenas nos atos de gestão. Após surgiu as teorias publicistas, que vieram à partir do caso BLANCO ocorrido no ano de 1873. Está teoria divide-se em duas, sendo teria da culpa da administrativa (faute du Service) e teoria do risco, esta também de divide teoria do risco integral e teoria do risco administrativo. Esclareceremos cada uma delas, a culpa do Administrativa é aquela que não precisa identificar o agente que praticou, resta dizer que a responsabilização depende de uma realização de serviço que não funcionou, funcionou mal, ou funcionou atrasado. Já a teoria do risco e seus desdobramentos consagram um ideia de responsabilização objetiva, a distinção é simples na do risco administrativo há exclusões de responsabilidade do restado, e dedução lógica se faz no caso a integral, pois exclusões inexistem.  Por fim resta comprovado que a teoria adotada no ordenamento jurídico Administrativo é a teoria do risco administrativo.   1.3 Possibilidade de responsabilização do agente provocador Um pouco fora do contexto da obra, mas dentro do assunto responsabilização, existe um julgado recente do Superior Tribunal de Justiça, onde muda drasticamente a vertente da responsabilização objetiva, cabendo a subjetiva, desde que a ação seja diretamente em face do agente público. No REsp 1325862/PR de 2013, veja essa fração:     “RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA PUBLICADA ERRONEAMENTE. CONDENAÇÃO DO ESTADO A MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INFORMAÇÃO EQUIVOCADA. AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. DANO MORAL. PROCURADOR DO ESTADO. INEXISTÊNCIA. MERO DISSABOR. APLICAÇÃO, ADEMAIS, DO PRINCÍPIO DO DUTY TO MITIGATE THE LOSS. BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO DANO. 1. O art. 37, § 6º, da CF/1988 prevê uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público. Vale dizer, a Constituição, nesse particular, simplesmente impõe ônus maior ao Estado decorrente do risco administrativo; não prevê, porém, uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública quando o particular livremente dispõe do bônus contraposto. Tampouco confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, o qual, aliás, se ficar comprovado dolo ou culpa, responderá de outra forma, em regresso, perante a Administração.2. Assim, há de se franquear ao particular a possibilidade de ajuizar a ação diretamente contra o servidor, suposto causador do dano, contra o Estado ou contra ambos, se assim desejar. A avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios. Doutrina e precedentes do STF e do STJ (…).”[3]( Grifo nosso)   Em razão dessa controvérsia o Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário 1027633, com relatoria do Min. Marco Aurélio será dirimido e terá   repercussão geral para pacificar esse entendimento.   2. Regime de Contratação das Bancas Examinadoras e sua Responsabilização 2.1 Natureza jurídica da Banca Examinadora À princípio é de salutar a não necessidade de contratação de uma empresa para a realização do certame, pois o próprio órgão ou a pessoa jurídica de direito público poderá, por forças próprias, realizar o concurso, isso pouco ocorre, pelo princípio da especialidade, pois os entes e órgãos, preferem deixar esses atos para empresas especializadas. As empresas especializadas são comumente chamadas de bancas de concursos, que se dispõem a realizar todos os atos do concurso público, em regra, mediante uma licitação, após vencer, torna-se uma concessionária, onde irá prestar o serviço público. A Constituição Federal trata das concessões e permissões no art. 175, que assim dispõe:   “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” (Grifo nosso.)   Perceba que nossa carta política preferiu criar parâmetros das formas que podem ocorrer as prestações de serviços, impondo que sejam mediante procedimento licitatório, assim dando parâmetros que devem ser seguidos, para além disso o poder legislativo brilhantemente complementou esse princípio pela lei 8.987 de 1995. 2.1.2 Análise do art. 25 da Lei 8.987/95 à luz da Constituição Federal.   Vamos à análise:    “Art. 25. Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade.”   Uma simples análise pode fazer o leitor pensar que a administração direta se desonera quanto aos prejuizões causados aos terceiros, contudo isso não prospera, pois a interpretação deve ser feita à luz da Lei Maior, devendo o Estado de Maneira subsidiária responder pela responsabilização, o ilustre autor Matheus Carvalho esclarece: “Em outras palavras, sendo o dano causado por uma entidade prestadora de serviços públicos, somente é possível a responsabilização do Estado após esgotamento das tentativas de pagamento por parte da empresa pelos prejuízos causados, ema vez que a concessionária executa o serviço público por sua conta e risco.”[4]   Concluindo, o Estado responderá de maneira subsidiária sempre que a concessionária na arcar com a responsabilização cível, isto é, o Estado terá obrigação subsidiaria e não solidaria.   2.2 Finalidade do concurso público A realização de concurso público, tem certas finalidades, que de acordo com a doutrina divide-se em dois seguimentos, o interesse público primário e o interesse público secundário. O primário nada mais é do que o interesse da sociedade, afinal de contas a administração pública atua para buscar qualidade de vida para seus tutelados; o secundário é o próprio ímpeto da máquina pública, como no caso de tributos, e arrecadação de valores. Então veja, quando se abre um certame público para prover cargos é de interesse primário, pois há a necessidade de suprir cargos vagos, e suprir de pessoas competentes para executar com maestria os atos da administração. Desta feita, quando esses certames são adiados acarreta prejuízo tanto para a administração público assim como para os postulantes aos cargos públicos, mas aqui focaremos no tema central que é reparação estatal devido essas suspensões abruptas.   Superado a parte de compreensão passaremos a buscar fatos que embasam a real intenção de elaboração dessa obra acadêmica.   3. As Suspensões das Datas de Prova e os Prejuízos Sofridos pelos Concurseiros Explodem nas mídias sociais notícias como as que seguem, o Grancursos online na data de 21 de Fevereiro de 2021  fez a seguinte postagem: No  edital 002 o núcleo de concursos  UFPR , publicado na madrugada da data da prova, suspendendo a aplicação  das provas devido à ausência de segurança à saúde dos postulantes ao serviço público vejamos o informativo:   “Considerando que, na última checagem realizada na madrugada de 21 de fevereiro de 2021 em observância ao seu protocolo de integridade, o Núcleo de Concursos da UFPR denotou a ausência de requisitos indispensáveis de SEGURANÇA para a aplicação das provas do Concurso Público em todos os locais previstos na capital e nas cidades da Região Metropolitana de Curitiba/PR, o que poderia colocar em risco a integridade das avaliações e o tratamento isonômico dos candidatos, bem como a saúde e a biossegurança de todos os envolvidos na realização das provas para o provimento de cargos públicos de Delegado de Polícia, Investigador de Polícia e Papiloscopista, comunica-se – por cautela e com urgência – a SUSPENSÃO da aplicação de todas as provas previstas para o dia 21 de fevereiro de 2021 e o seu ADIAMENTO para outra data a ser oportunamente informada. ”( Grifo nosso)     Podemos perceber que não houve nenhuma preocupação com gastos  dos candidatos à vaga, popularmente chamados de concurseiros, é explicito que  essas pessoas rodam o país inteiro em busca da realização dos sonhos e uma estabilidade financeira, viagens que geram gastos com voo, hospedagem, alimentação. É notório que esse desencadeamento não deve ser arcado pelo candidato, pois não tem culpa dos adiamentos e por esse motivo, essa concessionaria deve indenizar as perdas sofridas. Mas este não é um caso isolado, vamos a outro:     Estes foram alguns dos vários casos que vêm se dissipando no período de pandemia, acarretando prejuízos aos postulantes, pois a ausência de notificação prévia acarreta gastos com viagens, custos de alojamentos, tudo isso em razão da ausência de publicidade de informações, cabendo indenização, e nesse sentido o enunciado 37 sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, corrobora em dizer que as ações de dano moral e material podem ser cumuladas[5]. Neste sentido traremos alguns julgados, que retratam a possibilidade de indenização: “ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANCELAMENTO. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. A anulação de concurso público implica dever da Administração em reparar o dano material causado ao candidato inscrito, mediante o ressarcimento das despesas por ele realizadas em razão do concurso anulado. O mero sentimento íntimo e natural de insatisfação do autor, decorrente da anulação do concurso, não constitui dano à sua esfera moral, que justifique indenização de natureza extrapatrimonial. Ocorrendo a sucumbência recíproca das partes, compensam-se os honorários advocatícios, nos termos do art. 21, do CPC. (TRF4, AC 2008.71.10.000906-5, Quarta Turma, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, D.E. 01/02/2010).” Em que pese versar sobre cancelamento deve ser feita uma analogia que deixa clara e plausível o entendimento da Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pois mostra que os danos sofridos pelo candidato devem ser reparados pela Administração pública. Em outro precedente: ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. REVOGAÇÃO. RESTITUIÇÃO. TAXA DE MATRÍCULA. INTERESSE DE AGIR. AUSENTE. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. ALTERAÇÃO DA SUCUMBÊNCIA. COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS. 1. O Edital n.º 17/2006-CPCP-CWB, que “anulou” o concurso para o qual o autor estava regularmente inscrito, expressou que “na forma do subitem 2.2 do aludido Edital [edital de abertura do certame], os candidatos inscritos terão ressarcidos os valores relativos ao pagamento da taxa de inscrição”. Assim, inexistindo pretensão resistida por parte da demandada, não há que se falar em interesse de agir quanto ao pedido de restituição do valor da taxa de inscrição, motivo porque é de ser mantida a extinção do processo sem resolução de mérito, porquanto ausente condição da ação. 2. A revogação de concurso público, embora ato lícito da Administração, implica dever do Estado em reparar o dano material causado ao candidato inscrito, mediante o ressarcimento das despesas por ele realizadas (e devidamente comprovadas) em razão da não realização do certame. (…) (TRF4, AC 2006.70.12.000612-5, Terceira Turma, Relator Fernando Quadros da Silva, D.E. 08/09/2011). (Grifo nosso) Mais um elogiável acordão do Tribunal Regional 4, onde deixa explicito que ainda nos casos de atos lícitos da administração pública, também deverá ocorrer a responsabilização, haja vista que a responsabilidade objetiva versa tanto nos atos lícitos, quanto nos ilícitos.   “Responsabilidade da Administração Pública. Danos causados por agente público. Desnecessidade de conduta ilícita. O adiamento de concurso público, provocando danos ao candidato, consistentes em gastos com passagens, é passível de indenização pelo Estado, haja vista que a responsabilidade da Administração Pública é decorrente dos danos que seus agentes causarem, nessa condição, independente de culpa ou procedimento contrário ao direito.(TJ-RO – AC: 10032899320048220001 RO 1003289-93.2004.822.0001, Relator: Desembargador Sansão Saldanha, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 11/02/2005.)” Nesse último caso, é o mais enxuto, contudo é o que melhor respalda a estruturação desta obra, de forma brilhante o acórdão reitera a desnecessidade de conduta lícita ou ilícita, demonstra a obrigatoriedade de indenizar, pelo fato do adiamento do certame. A análise desses acórdãos ratificam a possibilidade de Indenização devida aos candidatos em razão das suspensões e adiamento de provas, cabendo o ressarcimento dos valores gastos, como a taxa de inscrição, hospedagens, alimentação, e transporte, desde que, comprovadas.   Considerações Finais O instituto da responsabilização é um ganho social e uma enorme evolução para o campo do direito, e deve ser aplicado em todos os âmbitos jurídicos. Nessa diapasão, o desenvolvimento desta obra buscou elucidar a possibilidade de responsabilização da administração pública direta e indireta, principalmente no período em que é vedada aglomerações, assim tornando instáveis as realizações dos certames. Essas suspensões repentinas acabam acarretando inúmeros prejuízos aos candidatos, principalmente falando do modo financeiro. Restou demonstrado, Indubitavelmente, que ocorrerá a responsabilização objetiva, porém nos casos excepcionais ocorrerá uma responsabilização subsidiária direcionada para o Estado, nos casos de insuficiência indenizatória ou reparatória das chamadas concessionárias ou permissionárias. O que de maneira alguma poderá acontecer é a Administração Pública usar de sua atribuição verticalizada para gerar danos aos civis, sem responder por suas ações, ainda quando, lícitas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/da-suspensao-abrupta-das-datas-dos-certames-e-a-eventual-responsabilizacao-do-estado/
Juros de Mora e Correção Monetária nas Condenações em Face da Fazenda Pública: um Histórico da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e os Novos Paradigmas com o Advento da Emenda Constitucional nº 113/2021
Através do presente estudo, serão investigados os institutos dos juros de mora e da correção monetária, sua natureza jurídica e aplicação, segundo os ensinamentos da doutrina pátria e as decisões dos tribunais superiores. Fixadas as balizas iniciais, será explorada a sistemática dos consectários legais incidentes sobre as condenações impostas à Fazenda Pública, dispensando especial atenção à evolução jurisprudencial quanto ao tema. Por fim, será examinado o novo regime inaugurado com o advento da EC nº 113/2021, ocasião em que serão debatidas as principais controvérsias advindas do novel dispositivo constitucional, o termo inicial de aplicação das novas regras, os questionamentos acerca de sua constitucionalidade, bem como as interpretações que tendem a ser adotadas pelos órgãos jurisdicionais, tomando como base a jurisprudência histórica do STF e do STJ. O trabalho será desenvolvido seguindo uma metodologia de pesquisa doutrinária e jurisprudencial.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO Não é de hoje que os contornos acerca da incidência de correção monetária e juros de mora sobre as condenações impostas à Fazenda Pública vêm gerando controvérsia na academia e sobretudo na prática forense. O tema já foi objeto de emendas à constituição, alterações legislativas, súmulas de tribunais superiores e mudanças de entendimento na jurisprudência. Nesse contexto, é fundamental que o operador do Direito esteja atento e bem atualizado acerca da sistemática vigente no que concerne à atualização monetária, sobretudo porque no Brasil, em que a morosidade da Justiça é um dos maiores desafios do Poder Judiciário, os consectários legais da condenação podem resultar em um montante substancial. Nessa toada, mais recentemente, a discussão acerca da correção monetária e dos juros de mora nas condenações em face da Fazenda Pública ganhou um novo capítulo, com a edição da Emenda Constitucional nº 113/2021, popularmente conhecida como PEC dos Precatórios, que previu em seu art. 3º o seguinte: EC nº 113/2021. Art. 3º. Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente. A forma como o novo dispositivo normativo, de hierarquia constitucional, será recebido e aplicado pelos tribunais pátrios ainda é uma incógnita. Todavia, é possível estabelecer os contornos históricos do instituto jurídico de modo a definir qual o melhor tratamento teórico e prático a ser administrado à matéria, sobretudo quando levado em conta a questão do direito intertemporal. O presente artigo será desenvolvido em etapas sucessivas, no bojo das quais será sistematizado o entendimento prevalente acerca da aplicação da correção monetária e dos juros de mora nas condenações em geral e em face da Fazenda Pública, fazendo um histórico da evolução do entendimento jurisprudencial ao longo do tempo. Primeiramente, serão delineados os contornos gerais dos institutos da correção monetária e dos juros de mora. Em seguida, será feita uma análise preceptiva tendo como foco a jurisprudência dos tribunais superiores. Por fim, será analisada a regra introduzida com a EC nº 113/2021, bem como enfrentadas as novas controvérsias interpretativas surgidas com o advento da nova diretriz constitucional.   Os juros de mora e a correção monetária são consectários legais da condenação e, como tal, podem ser incluídos no dispositivo da sentença, a despeito da ausência de pedido expresso na petição inicial. É o que se extrai do art. 322, §1º, do CPC/2015. Art. 322. O pedido deve ser certo. Inclusive, com o advento do Código Adjetivo de 2015, o Superior Tribunal de Justiça evoluiu sua jurisprudência para considerar que os juros de mora e a correção monetária, além de poderem ser incluídos na condenação mesmo na ausência de pedido expresso, também podem ser inseridos em conta de liquidação, ainda que após o trânsito em julgado da sentença omissa neste ponto. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, a atualização monetária e os juros legais são acessórios da condenação principal, motivo pelo qual, embora omisso o pedido inicial ou mesmo a sentença condenatória a respeito desses consectários, consideram-se eles implícitos, devendo ser incluídos na conta de liquidação, ainda que já homologado cálculo anterior, não implicando esta inclusão em ofensa a coisa julgada. STJ. Corte Especial. RESP 1.354.577. rel. Min. Humberto Martins, DJE 26/05/2017. (Grifo nosso). Destarte, juros de mora e correção monetária são tomados pela jurisprudência do STJ como acessórios da condenação principal, motivo pelo qual a Corte da Cidadania reconhece inclusive a possibilidade de uma decisão implícita no que concerne a esses consectários legais. Ou seja, o Tribunal Superior entende que juros e correção monetária estão presentes na sentença, ainda que esta não faça alusão expressa a eles. Esse entendimento foi reiterado pelo próprio STJ em 2019: É devida a incidência de correção monetária e juros moratórios em ação mandamental para pagamento de retroativos devidos àqueles declarados anistiados políticos, independentemente de decisão expressa nesse sentido. STJ. 1ª Seção. AgInt no MS 24.212-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26/06/2019. Outrossim, a jurisprudência do STF segue a mesma linha, conforme ementa do julgado a seguir colacionado: (…) 2. Havendo condenação da instância inferior ao pagamento de juros de mora e correção monetária, uma vez mantido o acórdão recorrido, também está reconhecido o direito ao percebimento de tais valores, ainda que a respeito do tema não se tenha pronunciado expressamente o STF. No mesmo sentido, vide RMS 36.182/DF, noticiado no informativo nº 940 do STF: Não é necessário o ajuizamento de ação autônoma para o pagamento dos consectários legais inerentes à reparação econômica devida a anistiado político e reconhecida por meio de Portaria do ministro da Justiça, a teor do disposto no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e no art. 6º, § 6º, da Lei 10.559/2002. Com base nesse entendimento, a Primeira Turma deu provimento a recurso em mandado de segurança para afastar a multa imposta à recorrente. Além disso, determinou à União que disponibilize ao anistiado a parcela da reparação econômica de caráter retroativo, acrescida de juros da mora e correção monetária. STF. 1ª Turma. RMS 36182/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 14/5/2019. Destarte, não remanesce dúvida na jurisprudência dos tribunais superiores acerca da definição dos juros de mora e da correção monetária enquanto consectários legais, isto é, acessórios da condenação principal. Fixadas as premissas iniciais do estudo, é oportuno adentrar especificamente no conteúdo de cada um dos institutos em comento.   1.1. NATUREZA JURÍDICA DOS JUROS DE MORA Os juros de mora são acrescidos à dívida como um consectário decorrente do atraso no adimplemento da obrigação. Segundo a doutrina majoritária, eles possuem uma dupla função, tanto de compensar o credor pela demora no cumprimento da obrigação, quanto de penalizar o devedor de modo a desestimular o descumprimento da obrigação. Por conseguinte, a incidência de juros moratórios independe inclusive da existência de prejuízo ao credor, conforme dicção do art. 407 do CC/2002. Art. 407. Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes. Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, os juros possuem natureza jurídica de frutos (art. 95 do CC/2002), mais precisamente de frutos civis (art. 1.215 do CC/2002), uma vez que consistem em “utilidades que a coisa principal periodicamente produz, cuja percepção não diminui a sua substância” (2021, p. 185). Com efeito, conforme lecionam os mencionados autores, “os rendimentos consistem em frutos civis, a exemplo do aluguel, dos juros e dos rendimentos” (2021, p. 185). Ostentando a natureza jurídica de frutos civis, os juros são reputados como bens acessórios, isto é, aqueles que não existem sobre si, abstrata ou concretamente, pois sua existência supõe a do principal (art. 92 do CC/2002). Por conseguinte, incide como regra geral o postulado segundo o qual “o acessório segue o principal” (accessorium sequitur suum principale), corolário do princípio da gravitação jurídica (arts. 233 e 287 do CC/2002). Mais especificamente quanto aos juros moratórios, conforme lecionam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2021, p. 295), estes são, ao lado dos juros compensatórios, uma espécie do gênero juros legais, que são aqueles oriundos de previsão normativa e que podem ser concedidos independentemente de pedido das partes. In verbis: “Nada obstante a regra seja a necessidade de pedido certo, ainda que não pedidos expressamente, os juros legais, a correção monetária e as verbas de sucumbência, inclusive os honorários de advogado, consideram-se implicitamente pedidos pela parte (art. 322, § 1.o, CPC). A lei anexa ao pedido e à sentença os juros legais. Juros legais são os juros oriundos de previsão legal. Podem ser moratórios (arts. 406/407, CC) ou compensatórios (exemplo, art. 15-A, Dec.-lei 3.365/1941). Os juros convencionais escapam da previsão do art. 322, § 1.o, CPC, e não podem ser concedidos independentemente de pedido da parte, sob pena de violação dos arts. 2.o, 141, 490 e 492, CPC. Ainda que o juiz não tenha provido sobre os juros legais na sentença, pode o tribunal contemplá-los de ofício (STJ, 6.a Turma, REsp 251. 613/CE, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08.06.2000, DJ 26.06.2000, p. 228). Não há que se falar aí em reformatio in pejus, porque a matéria é de ordem pública e o tribunal pode conhecê-la por força do efeito translativo do recurso. Nada obstante não mencionados na decisão transitada em julgado, podem os juros legais ser incluídos na liquidação (Súmula 254, STF: ‘incluem-se os juros legais na liquidação, embora omisso o pedido inicial ou a condenação’) e na fase de cumprimento da sentença”. Com relação ao tratamento jurisprudencial da matéria, recentemente, no dia 13/03/2021, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Tema nº 808 da Repercussão Geral (RE nº 855.091/RS), definiu que os juros de mora devidos em razão do atraso no adimplemento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função possuem natureza jurídica de “danos emergentes”, motivo pelo qual não poderiam ser objeto de tributação pelo imposto de renda. Em seguida, de modo a padronizar e uniformizar o tratamento teórico relativo à natureza jurídica dos juros de mora, a Primeira Seção do STJ fixou, em sede de Recurso Especial Repetitivo (art. 1.036 e seguintes do CPC/2015), as seguintes diretrizes: 1) Regra geral, os juros de mora possuem natureza de lucros cessantes, o que permite a incidência do Imposto de Renda; 2) Os juros de mora decorrentes do pagamento em atraso de verbas alimentares a pessoas físicas escapam à regra geral da incidência do Imposto de Renda, posto que, excepcionalmente, configuram indenização por danos emergentes; 3) Escapam à regra geral de incidência do Imposto de Renda sobre juros de mora aqueles cuja verba principal seja isenta ou fora do campo de incidência do IR. STJ, REsp 1.470.443-PR (Tema 878), Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, por maioria, julgado em 25/08/2021 (Grifo nosso). Por conseguinte, conjugando os referidos precedentes vinculantes prolatados por STF e STJ, conclui-se que os juros de mora, em regra, possuem natureza jurídica de lucros cessantes. Porém, excepcionalmente ostentam a natureza de danos emergentes, caso incidam sobre o pagamento em atraso de verbas alimentares devidas a pessoas físicas. Destaque-se que esse novo entendimento jurisprudencial do STF e do STJ não prejudica o enquadramento tradicional, conferido pela doutrina e pela própria jurisprudência dos Tribunais Superiores, dos juros de mora enquanto acessórios da condenação principal.   1.2. NATUREZA JURÍDICA DA CORREÇÃO MONETÁRIA Segundo Fabrício Lunardi e Luiz Otávio Rezende (2019, p. 225), “a correção monetária é usada para recompor a perda inflacionária, de modo a preservar o valor real da moeda”. Assim, ela não é propriamente um acréscimo no montante da condenação, mas sim um prejuízo que é evitado por meio de índices que compensam a corrosão do numerário gerada pela inflação. Destarte, segundo Regina Binhara Esturilio (apud ARAUJO, 2022) a correção monetária pode ser conceituada como o “instrumento por meio do qual se objetiva preservar o poder aquisitivo da moeda, que é naturalmente corroído em razão da inflação aferida em um dado período de tempo”. Refere-se, por conseguinte, a um mecanismo de correção da expressão monetária das obrigações, que ocorre por intermédio da incidência de determinado índice específico, geralmente aferido por institutos oficiais, sobre o valor nominal de determinada obrigação pecuniária. Dessa forma, como bem aponta Rafael Wanderley de Siqueira Araújo (2022), “a correção monetária não gera ganho patrimonial ao credor nem enriquece ou empobrece qualquer das partes da relação; ao revés, apenas mantém incólume o patrimônio do credor, evitando o enriquecimento do devedor em seu prejuízo, em razão do decurso do tempo. Aumenta-se apenas o valor nominal da moeda, com o objetivo de preservar seu valor real, sem valorização; afinal, o que se corrige é o valor da moeda, e não do bem”. Nesse contexto, é merecedora de destaque a doutrina de Pontes de Miranda (2002, p. 677) quanto ao tema: “a expressão ‘correção monetária’ é elíptica. Não é a moeda que se corrige; é o valor da moeda. Mais precisamente: corrige-se o valor das dívidas ou das promessas em moeda, para que o valor, não corrigido, da moeda, deixe de ser nocivo às relações jurídicas entre devedores ou promitentes e credores ou promissários”. De igual sorte, é oportuno colacionar os ensinamentos do Ministro Luiz Fux, contidos em seu voto proferido no âmbito do julgamento do RE nº 870.947/SE, em 20/09/2017: “a correção monetária tem como escopo preservar o poder aquisitivo da moeda diante da sua desvalorização nominal provocada pela inflação. É que a moeda fiduciária, enquanto instrumento de troca, só tem valor na medida em que capaz de ser transformada em bens e serviços. A inflação, por representar o aumento persistente e generalizado do nível de preços, distorce, no tempo, a correspondência entre valores real e nominal (cf. MANKIW, N.G. Macroeconomia. Rio de Janeiro, LTC 2010, p. 94; DORNBUSH, R.; FISCHER, S. e STARTZ, R. Macroeconomia. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 2009, p. 10; BLANCHARD, O. Macroeconomia. São Paulo: Prentice Hall, 2006, p. 29)”. Quanto à natureza jurídica, o STJ tem jurisprudência pacífica no sentido de que a correção monetária possui natureza de recomposição do valor de compra da moeda, consistindo em parcela acessória do crédito principal. (…) 2. Os expurgos inflacionários ostentam a natureza jurídica de correção monetária, razão pela qual devem ser compreendidos como parcelas acessórias do crédito principal, que visam apenas a atualizar o valor monetário, mantendo o status quo ante e impedindo eventual decréscimo do poder aquisitivo. STJ. REsp: 1152170 RJ 2009/0156207-5, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 17/06/2010, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/06/2010. Desta feita, a correção monetária é a parcela de natureza acessória ao crédito principal que tem por escopo resguardar o poder aquisitivo da prestação diante da desvalorização nominal da moeda provocada pela inflação   A matéria é disciplinada expressamente no Código Civil de 2002, sobretudo a partir de seu art. 389, a seguir colacionado: Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. Nessa conjuntura, o art. 398 do CC/2002 estabelece o termo inicial dos juros moratórios na hipótese de obrigações decorrentes de ato ilícito ou evento danoso, isto é, situações que ensejam responsabilidade extracontratual: Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou. Essa compreensão é corroborada pela Súmula nº 54 do STJ, a seguir transcrita. Súmula nº 54 do STJ – Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual. Por outro lado, nas hipóteses de responsabilidade contratual, há que ser feita a distinção entre mora ex re e ex persona. Nesse cenário, ex re é a mora que se constitui de pleno direito com o inadimplemento da obrigação positiva e líquida no seu termo. Destarte, não é necessária qualquer conduta por parte do credor para constituir o devedor em mora, de sorte que os juros moratórios incidirão a partir da data do inadimplemento, conforme art. 397, caput, do CC/2002. Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Mora ex persona, em contrapartida, tem lugar quando a obrigação não tem um termo certo ou então não é positiva e líquida. Em suma, na falta de um prazo certo para a obrigação ser adimplida ou quando esta não for líquida e certa, incidirá a sistemática da mora ex persona, isto é, que depende de uma notificação, interpelação ou protesto para produzir seus efeitos, que terão eficácia ex nunc, ou seja, somente incidirão a partir da efetiva notificação do devedor. É o que aduz o art. 397, parágrafo único, do CC/2002. Art. 397, Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial. Finalmente, caso não haja termo certo nem interpelação extrajudicial, incide a regra geral segundo a qual, a citação inicial válida constitui o devedor em mora, nos termos dos arts. 405 do CC/2002 e 240, caput, do CPC/2015. CC/2002. Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial. CPC/2015. Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Esse também é o entendimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores, cristalizada na Súmula nº 163 do STF, a seguir transcrita: Súmula nº 163 do STF: Salvo contra a Fazenda Pública, sendo a obrigação ilíquida, contam-se os juros moratórios desde a citação inicial para a ação. Destaque-se que o enunciado sumular supramencionado está superado em parte. Isso porque, como bem leciona o Prof. Márcio André Lopes Cavalcante, a primeira parte dessa súmula (“Salvo contra a Fazenda Pública”) não é mais válida por força da Lei nº 4.414/1964. Assim, sendo a obrigação ilíquida, contam-se os juros moratórios desde a citação inicial, mesmo que seja uma ação contra a Fazenda Pública. Quanto ao termo inicial da correção monetária, é fundamental fazer uma distinção entre a condenação por danos materiais (ou patrimoniais) e a condenação por danos morais (ou extrapatrimoniais). Em se tratando de indenização por danos patrimoniais, a correção monetária é devida a partir da data do efetivo prejuízo, conforme Súmula nº 43 do STJ. Súmula nº 43 do STJ – Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo. Por outro lado, na hipótese de danos extrapatrimoniais, a correção monetária tem aplicação desde a data do arbitramento do valor da indenização na sentença ou acórdão condenatórios, nos termos da Súmula nº 362 do STJ. Súmula nº 362 do STJ – A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento. No tocante aos índices aplicáveis a título de juros de mora e correção monetária, encontra aplicação o art. 406 do CC/2002, com a seguinte redação: Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Como bem lecionam Fabrício Lunardi e Luiz Otávio Rezende (2019, p. 226), inicialmente o STJ firmou jurisprudência no sentido de que os juros moratórios deveriam incidir no percentual de 1% ao mês, com fundamento no art. 161, §1º, do CTN, que assim prevê: Art. 161, § 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês. Não obstante, o STJ evoluiu sua jurisprudência e atualmente entende que, como o índice em vigor para a compensação da mora no pagamento de impostos federais é a taxa SELIC (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), por força do disposto na Lei nº 9.065/1995, na Lei nº 9.250/1995, na Lei nº 8.981/1995 e na Lei nº 9.430/1996, esta deve ser o indexador utilizado para o cálculo dos juros moratórios. Vide julgado proferido pela Corte: Conforme decidiu a Corte Especial, ‘atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)’ (EREsp 727.842, DJ de 20/11/08). STJ, REsp 1.102.552/CE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, sujeito ao regime do art. 543-C do CPC. Nesse contexto, destaque-se que, quando incidir, a taxa SELIC não poderá ser cumulada com qualquer outro índice destinado a atualizar o valor da moeda, uma vez que o índice engloba tanto os juros de mora quanto a correção monetária. Nesse sentido, vide julgado do STJ: A incidência da taxa SELIC como juros moratórios exclui a correção monetária, sob pena de bis in idem, considerando que a referida taxa já é composta de juros e correção monetária. STJ. 3ª Turma. EDcl no REsp 1.025.298-RS, Rel. originário Min. Massami Uyeda, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgados em 28/11/2012. Portanto, é pacífico o entendimento de que a SELIC deve ser usada para fins de correção monetária e juros moratórios, quando ambos incidirem a partir da mesma data. A controvérsia exsurge, todavia, nas hipóteses em que a correção e os juros têm termos iniciais diferentes. Isso pode acontecer basicamente em duas situações: i) quando o termo inicial da correção monetária anteceder o dos juros de mora; ou ii) quando o termo inicial dos juros de mora anteceder o da correção monetária. Na primeira hipótese descrita acima, o STF, ao julgar a ADI 5867, a ADC 58 e a ADC 59, teve a oportunidade de proferir decisão no sentido de que a correção monetária deve incidir segundo o IPCA-E até o advento do termo inicial dos juros, data a partir da qual deverá incidir exclusivamente a SELIC. O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente a ação, para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 879, § 7º, e ao art. 899, § 4º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467 de 2017, no sentido de considerar que à atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial e à correção dos depósitos recursais em contas judiciais na Justiça do Trabalho deverão ser aplicados, até que sobrevenha solução legislativa, os mesmos índices de correção monetária e de juros que vigentes para as condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência da taxa SELIC (art. 406 do Código Civil), nos termos do voto do Relator. STF, Plenário, ADI 5867, ADC 58 e ADC 59, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/12/2020. A segunda situação descrita tem como exemplo mais comum a condenação por danos morais em razão da prática de ato ilícito, hipótese em que os juros moratórios incidirão a partir da data do ato ilícito (art. 398 do CC/2002 e Súmula nº 54 do STJ) e a correção monetária a partir do dia do arbitramento do valor da indenização (Súmula nº 362 do STJ). Nesses casos, Nagibe de Melo Jorge Neto (2016, p. 303) entende que o correto seria aplicar a correção monetária em índice próprio (ex.: IPCA-e, INPC etc.) e os juros de mora no percentual de 1% (um por cento) ao mês, aplicando-se o art. 161, §1º, do CTN. In verbis: “Em alguns casos, contudo, por questões de ordem eminentemente práticas, é impossível utilizar-se a taxa SELIC. É que a SELIC, por sua própria natureza, já traz em seu bojo a correção monetária e os juros. Assim, deve ser aplicada a um só tempo a título de juros e correção monetária. Em alguns casos, contudo, o dies a quo da contagem da correção monetária é diferente do dies a quo da contagem dos juros. É o que acontece, por exemplo, na indenização por danos morais. Arbitrada a indenização, a correção monetária deve incidir a partir da prolação da sentença, enquanto os juros incidem desde o evento danoso. Nesses casos, como não se pode aplicar a taxa SELIC, aplica-se correção monetária em índice próprio, normalmente o INPC, e os juros de 1% (um por cento) ao mês, aplicando-se o art. 161, §1º, do Código Tributário Nacional”. Com todo o respeito ao eminente autor, este não parece ser o entendimento mais adequado. Isso porque, conquanto não possa ser cumulada com correção monetária, a finalidade precípua da taxa SELIC é compensar o credor pela demora no pagamento da obrigação, de sorte que sua natureza preponderante é de índice de juros moratórios e não de correção monetária. Nesse sentido, inclusive, é a jurisprudência pacífica do STJ, que expressamente se refere à SELIC como taxa de juros de mora. In litteris: A taxa de juros de mora a que se refere o art. 406 do Código Civil de 2002 é a SELIC. Precedentes. STJ – AgInt nos EDcl no REsp: 1655511/MG, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, Quarta Turma, Julgado em 29/03/2021, DJe 05/04/2021. Por conseguinte, na hipótese de condenação por danos morais, deve ser aplicada a taxa SELIC desde a data do dano, devendo esta incidir até a data do efetivo pagamento pelo devedor. Com efeito, solução em sentido diverso acabaria por gerar significativa distorção na sistemática de incidência dos consectários legais da condenação, chegando ao ponto de subverter a lógica dos encargos legais. Isso porque, segundo dados oficiais do Banco Central, a taxa SELIC média no ano de 2021 ficou no importe de 6,03% ao ano. Em 2020, esse percentual foi de 2,71% ao ano. Por outro lado, a incidência de juros moratórios de 1% ao mês, como sugere o Prof. Nagibe, resultaria em um percentual acumulado de 12% ao ano. Destarte, caso aplicada à hipótese de condenação em danos morais a sistemática de juros moratórios de 1% ao mês desde a data do evento danoso, chegaria-se a uma esdrúxula situação em que a incidência somente de juros geraria um encargo muito maior ao devedor do que a incidência de juros mais correção monetária. Isso porque o percentual fixo de 12% ao ano a título de juros de mora tem se mostrado historicamente mais gravoso ao devedor do que a taxa SELIC, que obteve um rendimento de 6,03% ao ano em 2021 e 2,71% ao ano em 2020. Portanto, sustenta-se a posição de que, mesmo na hipótese de aplicação isolada de juros moratórios, isto é, quanto estes incidem desacompanhados de correção monetária, a SELIC deve ser o índice empregado nas demandas envolvendo particulares.   A execução promovida em face da Fazenda Pública (arts. 534, 535 e 910 do CPC/2015) segue um regime jurídico diferenciado em relação àquela proposta em face do particular. Isso porque os bens públicos são inalienáveis e impenhoráveis, não sendo possível a satisfação do crédito exequendo por meio das medidas expropriatórias convencionais. Não obstante, a mencionada disciplina específica incide somente quanto às obrigações de pagar quantia certa. Por outro lado, nos processos onde se pretende a execução de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, a execução contra a Fazenda Pública segue o regime ordinário do CPC/2015. Destarte, tratando-se de obrigação de pagar quantia certa, o cumprimento de sentença ou a execução de título extrajudicial em face da Fazenda Pública devem observar a sistemática dos precatórios (art. 100 da CRFB). A disciplina constitucional dos precatórios decorre da impossibilidade de aplicação da sistemática prevista na Lei nº 4.320/1964 às condenações judiciais do Erário, uma vez que nestas a liquidação é feita pelo próprio Poder Judiciário. Também é uma forma de assegurar a efetividade da tutela jurisdicional, pois a regra dos precatórios retira do legislador a decisão acerca do pagamento ou não da condenação judicial.   3.1. ÍNDICES APLICÁVEIS NAS EXECUÇÕES EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA O §12 do art. 100 da CRFB, incluído pela EC nº 62/2009, passou a dispor que a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição até o efetivo pagamento, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança. Art. 100, § 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios. Logo em seguida, com o objetivo de disciplinar o novo dispositivo constitucional, foi editada a Lei nº 11.960/2009, que por intermédio de seu art. 5º deu nova redação ao art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997. Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança (Redação dada pela Lei nº 11.960, de 2009). A EC nº 62/2009 foi muito criticada, tendo sido impugnada por intermédio de várias ações diretas de inconstitucionalidade, propostas inclusive por associações ligadas à magistratura nacional. Nesse contexto, o Pretório Excelso, ao apreciar as ADI`s 4357/DF e 4425/DF, declarou a inconstitucionalidade parcial do § 12 do art. 100 da Carta Magna, em relação à expressão “índice oficial de remuneração da caderneta de poupança”, sob o fundamento de afronta à isonomia e à propriedade privada (art. 5º da CRFB). Isso porque, segundo o Supremo, o índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança não reflete os efeitos da inflação e, por conseguinte, não recompõe as perdas decorrentes desta, violando o direito à propriedade, uma vez que é insuficiente para preservar o valor real do crédito a ser pago pela Fazenda Pública. A Suprema Corte também declarou a inconstitucionalidade da expressão “independentemente de sua natureza”, constante no § 12 do art. 100. Isso porque a Fazenda Pública geralmente recebe os seus créditos de natureza tributária com a incidência de SELIC, cujo valor é historicamente muito maior do que a remuneração da caderneta de poupança. Assim, em tais relações jurídicas devem incidir, para o particular, os mesmos índices de juros previstos para o Poder Público, sob pena de infração ao princípio da isonomia e ilegal privilégio ao devedor público nas mesmas condições do devedor privado. Assim, o STF determinou que a Fazenda Pública pague a mesma taxa de juros que ela exige do contribuinte. Na esfera federal, será a SELIC (que também engloba a correção monetária) e nas esferas estadual e municipal, deverá ser observado o valor dos juros por eles cobrados (podendo ser a SELIC ou mesmo 1% ao mês, conforme a legislação específica de cada ente federativo). Como consequência, foi reconhecida a inconstitucionalidade por arrastamento do art. 5º da Lei nº 11.960/2009, que conferiu nova redação ao art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997. Quanto aos juros moratórios, cuja função precípua é a de remunerar o capital ao longo do tempo, o STF decidiu que, em princípio não há inconstitucionalidade na adoção dos índices oficiais de remuneração básica da caderneta de poupança nas condenações impostas à Fazenda Pública decorrentes de relações jurídicas não tributárias. Fixadas as diretrizes constitucionais da matéria pelo Supremo, a Primeira Seção do STJ, no REsp nº 1.270.439/PR (DJe 02/08/2013), sob a sistemática dos recursos repetitivos, posicionou-se pela atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública com base no IPCA-e, juros moratórios de débitos não tributários com base na poupança e juros moratórios de débitos tributários com base na SELIC, que, nesse caso, será a única aplicável, por englobar atualização monetária e juros de mora. No entanto, em 11/04/2013, em sede de decisão monocrática nos autos da ADI nº 4.357/DF, o Ministro Luiz Fux determinou que os Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal continuassem aplicando os índices de juros e de correção monetária na forma que vinham fazendo antes da decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.357/DF e 4.425/DF, sob o fundamento de que as referidas decisões ainda não tinham transitado em julgado, bem como que ainda não havia sido feita a modulação de seus efeitos pela Corte, razão pela qual deveria ser mantida a aplicação integral do art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997. Nesse viés, tem-se que enquanto não transitassem em julgado as decisões nas ADI’s nº 4.357/DF e 4.425/DF, nem fossem modulados seus efeitos, não havia se falar em aplicação de indexadores diversos dos preceituados no art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997. No dia 25/03/2015, o STF pronunciou-se sobre a modulação dos efeitos, dando eficácia prospectiva (ex nunc) à decisão. Ou seja, a inaplicabilidade dos dispositivos declarados inconstitucionais apenas ocorreria da referida data em diante, convalidando-se os precatórios já expedidos. Fazendo um recorte temporal, obtém-se o seguinte resultado: i) até 29/06/2009 (isto é, até a entrada em vigor da Lei 11.960/2009), a atualização monetária deve ser feita com base nos índices fornecidos pelos Tribunais, com juros de mora de 0,5% ao mês até 10/01/2003 e de 1% ao mês a partir de 11/01/2003 (Transição para o Código Civil de 2002); ii) de 30/06/2009 a 25/03/2015, a atualização monetária e o juros de mora deverão incidir segundo os índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança (art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997); iii) a partir de 26/03/2015 (data da modulação dos efeitos das ADI’s 4357/DF e 4425/DF pelo STF), a atualização monetária deverá ser feita pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-e), os juros moratórios nos débitos não tributários deverão incidir segundo os índices de remuneração da caderneta de poupança e os juros moratórios nos débitos tributários deverão incidir segundo a SELIC (englobada, neste caso, a correção monetária) ou segundo o percentual de até 1% ao mês, conforme a legislação de cada ente federado. Em 20/09/2017, ao julgar o RE 870.947/SE, o STF apreciou novamente a matéria, fixando duas teses para o Tema 810 da Repercussão Geral. In litteris: 1) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública, é inconstitucional ao incidir sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput); quanto às condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta extensão, o disposto no art. 1º-F da Lei nº 9.494/97 com a redação dada pela Lei nº 11.960/09; e 2) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina. Em suma, o julgamento do RE 870.947/SE (Tema nº 810) pelo Supremo apenas confirmou o entendimento que já vigorava. No dia 22/02/2018, o STJ decidiu e sistematizou, em sede de recursos especiais repetitivos, uma série de questões acerca da incidência de juros de mora e correção monetária nos débitos da Fazenda Pública. Em razão da importância das conclusões exaradas, as teses fixadas estão a seguir colacionadas: 1.1 Impossibilidade de fixação apriorística da taxa de correção monetária. No presente julgamento, o estabelecimento de índices que devem ser aplicados a título de correção monetária não implica pré-fixação (ou fixação apriorística) de taxa de atualização monetária. Do contrário, a decisão baseia-se em índices que, atualmente, refletem a correção monetária ocorrida no período correspondente. Nesse contexto, em relação às situações futuras, a aplicação dos índices em comento, sobretudo o INPC e o IPCA-E, é legítima enquanto tais índices sejam capazes de captar o fenômeno inflacionário. 1.2 Não cabimento de modulação dos efeitos da decisão. A modulação dos efeitos da decisão que declarou inconstitucional a atualização monetária dos débitos da Fazenda Pública com base no índice oficial de remuneração da caderneta de poupança, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, objetivou reconhecer a validade dos precatórios expedidos ou pagos até 25 de março de 2015, impedindo, desse modo, a rediscussão do débito baseada na aplicação de índices diversos. Assim, mostra-se descabida a modulação em relação aos casos em que não ocorreu expedição ou pagamento de precatório.     3.1 Condenações judiciais de natureza administrativa em geral. As condenações judiciais de natureza administrativa em geral, sujeitam-se aos seguintes encargos: (a) até dezembro/2002: juros de mora de 0,5% ao mês; correção monetária de acordo com os índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; (b) no período posterior à vigência do CC/2002 e anterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora correspondentes à taxa Selic, vedada a cumulação com qualquer outro índice; (c) período posterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança; correção monetária com base no IPCA-E. 3.1.1 Condenações judiciais referentes a servidores e empregados públicos. As condenações judiciais referentes a servidores e empregados públicos, sujeitam-se aos seguintes encargos: (a) até julho/2001: juros de mora: 1% ao mês (capitalização simples); correção monetária: índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; (b) agosto/2001 a junho/2009: juros de mora: 0,5% ao mês; correção monetária: IPCA-E; (c) a partir de julho/2009: juros de mora: remuneração oficial da caderneta de poupança; correção monetária: IPCA-E. 3.1.2 Condenações judiciais referentes a desapropriações diretas e indiretas. No âmbito das condenações judiciais referentes a desapropriações diretas e indiretas existem regras específicas, no que concerne aos juros moratórios e compensatórios, razão pela qual não se justifica a incidência do art. 1º-F da Lei 9.494/97 (com redação dada pela Lei 11.960/2009), nem para compensação da mora nem para remuneração do capital. 3.2 Condenações judiciais de natureza previdenciária. As condenações impostas à Fazenda Pública de natureza previdenciária sujeitam-se à incidência do INPC, para fins de correção monetária, no que se refere ao período posterior à vigência da Lei 11.430/2006, que incluiu o art. 41-A na Lei 8.213/91. Quanto aos juros de mora, incidem segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança (art. 1º-F da Lei 9.494/97, com redação dada pela Lei n. 11.960/2009). 3.3 Condenações judiciais de natureza tributária. A correção monetária e a taxa de juros de mora incidentes na repetição de indébitos tributários devem corresponder às utilizadas na cobrança de tributo pago em atraso. Não havendo disposição legal específica, os juros de mora são calculados à taxa de 1% ao mês (art. 161, § 1º, do CTN). Observada a regra isonômica e havendo previsão na legislação da entidade tributante, é legítima a utilização da taxa Selic, sendo vedada sua cumulação com quaisquer outros índices.   Não obstante os índices estabelecidos para atualização monetária e compensação da mora, de acordo com a natureza da condenação imposta à Fazenda Pública, cumpre ressalvar eventual coisa julgada que tenha determinado a aplicação de índices diversos, cuja constitucionalidade/legalidade há de ser aferida no caso concreto. STJ, REsp 1.495.146-MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 22/02/2018, DJe 02/03/2018 (Tema 905). Destaque-se que, segundo o próprio STJ, não há antinomia entre as teses fixadas no REsp 1.495.146/MG e o que ficou decidido na modulação dos efeitos das ADIs nº 4.357/DF e 4.425/DF. Isso porque, segundo a Corte da Cidadania, a conferência, pelo STF, de eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade do art. 100, §12, da CRFB e do 1º-F da Lei nº 9.494/1997 somente teria o condão de alcançar os precatórios expedidos ou pagos até 25 de março de 2015, impedindo, desse modo, a rediscussão do débito baseada na aplicação de índices diversos. Nos demais casos, portanto, seria descabida a modulação dos efeitos da decisão, devendo ser reconhecida com eficácia ex tunc a inconstitucionalidade do art. 100, §12, da CRFB e do 1º-F da Lei nº 9.494/1997.   3.2. LAPSO TEMPORAL DE INCIDÊNCIA DA CORREÇÃO MONETÁRIA Conforme a literalidade do §§ 5º e 12 do art. 100 da CRFB, a correção monetária dos valores de requisitórios será feita desde sua expedição até o respectivo pagamento. Art. 100, § 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. (Redação dada pela EC nº 62, de 2009) Outrossim, também deve ser feita a correção monetária relativa ao período transcorrido entre o dano efetivo e a imputação da responsabilidade à Fazenda Pública. Isto é, os índices de correção monetária também devem incidir no período compreendido entre a data do efetivo prejuízo e a expedição do requisitório, nos termos do disposto na Súmula nº 43 do STJ. A exceção fica por conta da condenação em danos morais, hipótese em que a correção monetária somente tem início a partir da fixação do montante indenizatório na sentença, conforme Súmula nº 362 do STJ.   3.3. LAPSO TEMPORAL DE INCIDÊNCIA DOS JUROS DE MORA Sobre o pagamento dos precatórios, o STF decidiu no AIAR 495.193/SP e no RE 305.186/SP que não cabem juros de mora no período compreendido entre a expedição do precatório e seu efetivo pagamento, desde que realizado no prazo da CRFB, previsto no art. 100, §5º, da Carta Magna: Art. 100, § 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. (Redação dada pela EC nº 62, de 2009) Nesse sentido, vide enxerto dos referidos julgados: Esta Corte decidiu que não cabem juros de mora no período compreendido entre a expedição do precatório e seu efetivo pagamento, conforme o disposto no art. 100, § 1º, da Constituição federal (redação anterior à EC 30/2000). Agravo regimental a que se nega provimento. STF – AI 495193 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 22/08/2006. Hipótese em que não incidem juros moratórios, por falta de expressa previsão no texto constitucional e ante a constatação de que, ao observar o prazo ali estabelecido, a entidade de direito público não pode ser tida por inadimplente. Orientação, ademais, já assentada pela Corte no exame da norma contida no art. 33 do ADCT. Recurso extraordinário conhecido e provido. STF, RE 305186, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 17/09/2002. Cristalizando o entendimento firmado nos mencionados julgados, o STF editou a Súmula Vinculante nº 17, com o seguinte teor: Súmula Vinculante nº 17 – Durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos. Em 01/07/2020, ao julgar o RE 1.169.289/SC, o STF ratificou a validade e aplicabilidade da Súmula Vinculante nº 17, tendo sido fixada a seguinte tese em sede de repercussão geral (Tema 1037): O enunciado da Súmula Vinculante 17 não foi afetado pela superveniência da Emenda Constitucional 62/2009, de modo que não incidem juros de mora no período de que trata o § 5º do art. 100 da Constituição. Havendo o inadimplemento pelo ente público devedor, a fluência dos juros inicia-se após o ‘período de graça’. STF. Plenário. RE 1169289, Rel. Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Alexandre de Moraes, DJ 16/06/2020 (Repercussão Geral – Tema 1037). Por conseguinte, se o pagamento for efetuado até o final do exercício financeiro subsequente àquele em que o precatório foi apresentado (desde que a apresentação ocorra até o dia 1º de julho), a Fazenda Pública não estará inadimplente, de sorte que não incidirão juros nesse período, mas apenas correção monetária. Até abril de 2017, prevalecia nos tribunais superiores o entendimento de que não deveria haver incidência de juros moratórios no período entre a elaboração da conta e sua expedição. Nesse sentido, vide julgado do STF: (…) a jurisprudência pacífica desta Corte é no sentido de que, não havendo atraso na satisfação do débito, não incidem juros moratórios entre a data da expedição e a data do efetivo pagamento do precatório, tal como assentado na decisão recorrida. Esse entendimento foi consolidado com a edição da Súmula Vinculante 17, cujo texto segue transcrito: (…). Esse entendimento se aplica, da mesma forma, ao período entre a elaboração da conta e a expedição do precatório, porquanto somente haveria mora se descumprido o prazo constitucionalmente estabelecido. STF, RE 592869, Relator Min. Lewandowski, 2ª Turma, julgamento em 26.8.2014, DJe de 4.9.2014. Esse entendimento, todavia, foi revisto em 19/04/2017, data em que o Supremo concluiu o julgamento do RE 579.431, com repercussão geral (Tema nº 96), e decidiu que incidem juros de mora no período compreendido entre a data de elaboração dos cálculos e a expedição da RPV ou do precatório. A tese restou assim fixada: Incidem os juros da mora no período compreendido entre a data da realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório. STF. Plenário. RE 579.431/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 19/4/2017 (repercussão geral – Tema nº 96). De igual sorte, o STJ alinhou seu entendimento ao do STF: Em adequação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, a Corte Especial do STJ adota orientação jurisprudencial no sentido de que incidem juros da mora no período compreendido entre a data da realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório. STJ. Corte Especial. EREsp 1.150.549-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 29/11/2017. Fixadas essas balizas, resta definir os marcos temporais para a incidência dos juros de mora na hipótese de atraso no pagamento do Precatório pela Fazenda Pública. Nesse contexto, o Pretório Excelso definiu que, na hipótese de retardo no pagamento do requisitório pelo ente público, correrão juros de mora desde de o primeiro dia do exercício financeiro seguinte ao fim do prazo constitucional até a data do efetivo pagamento. Outrossim, ainda que o pagamento do precatório seja realizado dentro do prazo constitucional, incidem juros moratórios no período entre a citação e a condenação da Fazenda Pública, seguindo a premissa de que, em regra, os juros moratórios devidos pelo ente estatal devem ser computados somente a partir da sua citação no feito, nos termos do art. 405 do CC/2002, abaixo transcrito: Art. 405 – Contam-se os juros de mora desde a citação inicial. Esse é o entendimento prevalente na jurisprudência: Nos termos da jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, o termo a quo da incidência dos juros moratórios sobre as obrigações ilíquidas devidas pela Administração ao servidor, aplica-se as regras constantes dos arts. 219 do CPC e 405 do Código Civil, os quais estabelecem a citação como o marco inicial da referida verba. STJ, AgInt no REsp 1734432/RJ, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/09/2018, DJe 10/09/2018. Sobre o valor dos dividendos não pagos, incide correção monetária desde a data de vencimento da obrigação, nos termos do art. 205, § 3º, Lei 6.404/76, e juros de mora desde a citação. STJ, Tese firmada para o Tema Repetitivo nº 659, REsp 1.301.989/RS, Segunda Seção, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Julgado em 12/03/2014, Acórdão publicado em 19/03/2014 (grifo nosso). Por conseguinte, somente fica imune à incidência de juros de mora o período compreendido entre a expedição e o pagamento do precatório. Nos demais casos, devem incidir juros moratórios com base na poupança ou na SELIC (ou segundo o percentual de até 1% ao mês, segundo a legislação do ente federado). Com base nos fundamentos acima alinhavados, é possível sintetizar a sistemática dos consectários legais da condenação em face da Fazenda Pública da seguinte forma: a) da ocorrência do dano até a citação inicial, incide apenas correção monetária; b) da citação inicial (regra geral) até a elaboração dos cálculos, incidem juros de mora e correção monetária; c) da elaboração dos cálculos até a expedição do precatório ou RPV, conforme o novo entendimento do STF e do STJ, incidem juros de mora e correção monetária; d) da expedição do precatório até o final do exercício financeiro subsequente, incide apenas correção monetária; d) do final do exercício financeiro subsequente até o pagamento do requisitório incidem juros de mora e correção monetária.   No dia 09 de dezembro de 2021 foi publicada no Diário Oficial da União a EC nº 113/2021, popularmente conhecida como “PEC dos Precatórios”, cujo escopo principal foi a alteração do regime jurídico dos precatórios judiciais, inclusive com a imposição de parcelamentos dos créditos, de modo a postergar para exercícios financeiros seguintes o adimplementos das obrigações da Fazenda Pública. Não obstante, a mencionada emenda constitucional também trouxe uma inovação de impacto substancial sobre o regime de execução das dívidas contra a Fazenda Pública de todos os entes da federação. Trata-se do art. 3º da EC nº 113/2021, com a seguinte redação: Art. 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente. Em suma, o novo dispositivo constitucional previu que a taxa SELIC será o novo índice utilizado para a fixação dos juros moratórios nas condenações judiciais impostas à Fazenda Pública, em substituição ao índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança. Ademais, tendo em vista que a SELIC engloba juros de mora e correção monetária, não podendo ser cumulada com qualquer outro índice (STJ, REsp 1.136.733/PR, Tema Repetitivo 359), ela também incidirá para fins de atualização monetária, conforme expressamente consignado pelo art. 3º da EC nº 113/2021. Nesse contexto, é fato que tanto o STF (RE 870.947/SE – Tema 810) quanto o STJ (REsp 1.495.146/MG – Tema 905) já fixaram precedentes vinculantes no sentido da incidência da taxa SELIC para a compensação da mora e atualização monetária nas hipóteses de dívidas de natureza tributária, desde que o ente federativo condenado utilizasse o referido índice em suas cobranças tributárias. Destarte, a grande inovação do art. 3º da EC nº 113/2021 foi impor a aplicação da SELIC para todas as discussões e condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza. Outro ponto digno de nota é que o art. 3º da EC nº 113/2021 prevê a incidência da SELIC para a atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, “inclusive do precatório”. Essa expressa (“inclusive do precatório”) chama a atenção, porque o entendimento prevalente no STF, inclusive cristalizado no enunciado de Súmula Vinculante nº 17, é no sentido de que “durante o período previsto no § 1º (leia-se §5º) do art. 100 da CRFB, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos”. Ou seja, no regime anterior, considerava-se que não havia mora da Fazenda Pública durante o período previsto para o pagamento, qual seja, da apresentação do precatório até o final do exercício financeiro seguinte, motivo pelo qual não seriam devidos juros de mora, mas apenas correção monetária. A referida expressão, portanto, pode ser interpretada de diversas formas distintas. Pode o intérprete entender que a Súmula Vinculante nº 17 do STF foi superada, de modo que a Fazenda Pública passa a ser considerada em mora mesmo durante o período consignado no art. 100, §5º, da Constituição. Outra alternativa é harmonizar a redação do art. 3º da EC nº 113/2021 à Súmula Vinculante nº 17 do STF, de sorte que será possível a incidência, sobre o precatório, de juros segundo a taxa SELIC, mas somente se não for observado o prazo constitucional para pagamento. Todavia, a solução mais adequada parece ser no sentido de que a expressão “inclusive do precatório” autoriza a incidência da taxa SELIC durante o prazo constitucional para o pagamento do precatório, porém, não a título de juros de mora, mas sim de correção monetária. Com efeito, o art. 3º da EC nº 113/2021 prevê que a SELIC será empregada para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, não definindo uma função preponderante para o índice. Por conseguinte, é razoável o entendimento de que durante o período do art. 100, §5º, da Carta Magna, a Fazenda Pública não está em mora (nos termos da Súmula Vinculante nº 17 do STF), porém, ainda é devida a correção monetária, que deverá incidir segundo a taxa SELIC, conforme previsão expressa do art. 3º da EC nº 113/2021. Em síntese, no antigo regime incidiam juros de mora segundo o índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e correção monetária pelo IPCA-E até a data de expedição do precatório; da expedição do precatório até o final do exercício financeiro subsequente incidia apenas correção monetária pelo IPCA-E; por fim, do final do exercício financeiro subsequente até o pagamento do requisitório incidiam juros de mora (segundo a poupança) e correção monetária pelo IPCA-E. Com a entrada em vigor do novo regime constitucional, a SELIC passa a incidir uma única vez desde o fato gerador da condenação até o efetivo pagamento do requisitório. Feitas essas considerações iniciais, a primeira questão que se coloca é acerca da constitucionalidade do art. 3º da EC nº 113/2021. Tomando como precedente o julgamento das ADIs 4.425/DF e 4.357/DF pelo STF, em que foi declarada a inconstitucionalidade do parcial do § 12 do art. 100 da Constituição (com redação dada pela EC nº 62/2009), o fundamento determinante da decisão foi o fato de que o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança não reflete os efeitos da inflação e, portanto, não recompõe as perdas decorrentes desta, violando o direito à propriedade. Por outro lado, no mesmo julgamento, o Pretório Excelso definiu que a SELIC é índice idôneo para fins de atualização monetária e compensação da mora, tanto que impôs a utilização do referido índice nas condenações da Fazenda Pública Nacional oriundas de relação jurídico-tributária, em obediência ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB). As mesmas conclusões foram repetidas pelo STF no julgamento do RE 870.947/SE, em sede de repercussão geral (Tema 810), e pelo STJ no julgamento do REsp 1.495.146-MG, sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 905). Por conseguinte, a adoção da taxa SELIC para fins de atualização monetária e compensação da mora, por si só, não configura vício de inconstitucionalidade, nos termos da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores. Todavia, é possível vislumbrar inconstitucionalidade material nas hipóteses em que a Administração Tributária estadual ou municipal não adotar a SELIC como índice de juros moratórios. Isso porque a Suprema Corte definiu, no julgamento das ADIs 4357/DF e 4425/DF e do RE 870.947/SE, que, nas relações jurídico-tributárias, a Fazenda Pública deve suportar a mesma taxa de juros que ela exige do contribuinte, em atenção à isonomia. Ocorre que, enquanto na esfera federal essa taxa é a SELIC (logo, não há violação à isonomia), nos Estados e Municípios o valor dos juros é fixado pela legislação específica de cada ente, podendo ser adotada a SELIC ou outro índice, até o percentual de 1% ao mês (art. 161, §1º, do CTN). Na hipótese de adoção, pelo Fisco estadual ou municipal, da SELIC como índice de juros moratórios nas relações jurídico-tributárias, não há que se falar em inconstitucionalidade na aplicação da regra do art. 3º da EC nº 113/2021. Por outro lado, se for adotado qualquer outro índice, não há como ser esposada outra conclusão que não a inconstitucionalidade da aplicação do art. 3º da EC nº 113/2021 ao caso concreto, por manifesta afronta ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB), de sorte que devem ser utilizados os mesmos índices de juros de mora pelos quais a Fazenda Pública do respectivo ente federativo remunera seu crédito tributário. Essa é a solução que melhor prestigia as conclusões exaradas pelo STF quando do julgamento das ADIs 4357/DF e 4425/DF, bem como do RE 870.947/SE. Quanto ao termo inicial para a aplicação da nova sistemática de juros e correção monetária em face da Fazenda Pública, o 7º da EC nº 113/2021 prescreve que: “Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação”. Desta feita, tendo a publicação ocorrido no Diário Oficial da União do dia 09/12/2021, este será o marco inicial para a incidência da norma da EC nº 113/2021. Isso significa que, até 08/12/2021, a correção monetária e os juros de mora das condenações em face da Fazenda Pública seguirão o regime antigo, sistematizado pelo STJ no âmbito do REsp 1.495.146-MG (Tema 905). Logo, somente a partir de 09/12/2021 passa a incidir a nova regra, que será aplicada inclusive às dívidas já existentes quando de sua entrada em vigor, não havendo que se falar em violação ao direito adquirido. Nesse sentido, é necessário esclarecer que não há que se ventilar a aplicação do art. 3º da EC nº 113/2021 somente às dívidas constituídas após a entrada em vigor da novel norma constitucional, tendo em vista que o STF sedimentou em sua jurisprudência a tese de que “não há direito adquirido a regime jurídico”, nos termos do RE 563.965, em sede de repercussão geral (Tema 41). Por conseguinte, as obrigações já existentes se submetem ao novo regime jurídico da EC nº 113/2021 desde de sua entrada em vigor. Esse também é o entendimento mais consentâneo com a jurisprudência do STJ, que admitiu a aplicação da Lei nº 11.960/2009 (na parte em que previu juros de mora segundo o índice de remuneração básica da caderneta de poupança) desde sua vigência, incidindo inclusive sobre as dívidas já existentes quando de sua publicação, nos termos do REsp 1.495.146/MG, submetido à sistemática dos recursos repetitivos (Tema 905). Nesse mesmo sentido, nas condenações em face da Fazenda Pública, os juros moratórios e a correção monetária devem incidir segundo a taxa SELIC, ainda que o título executivo judicial preveja expressamente outros índices (a exemplo de juros segundo o índice de remuneração básica da caderneta de poupança e correção monetária segundo o IPCA-E). Isso porque o art. 493 do CPC/2015 prescreve que, na hipótese de superveniência de fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito, capaz de influir no julgamento do mérito, o juiz deverá tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. O mencionado dispositivo deve ser interpretado sistematicamente, em conjunto com o art. 342, I, do CPC/2015, que autoriza ao réu deduzir novas alegações na hipótese de fato ou direito superveniente. Por conseguinte, na hipótese de direito novo, este deve ser considerado pelo juiz, ainda que de ofício, para proferir a decisão. Esse entendimento é plenamente harmônico com a natureza dos juros de mora e da correção monetária enquanto consectários legais, isto é, acessórios da condenação principal. Deveras, se tanto o STF quanto o STJ admitem a inclusão de juros moratórios e correção monetária em conta de liquidação mesmo diante do trânsito em julgado de sentença omissa nesse ponto (STJ, RESP 1.354.577, Corte Especial e STF, RE 553.710 ED, Plenário), de igual sorte, a superveniência de novos índices deve ser considerada no momento de liquidação da condenação, mesmo que a sentença definitiva preveja em seu corpo a incidência de outros parâmetros. Nesse sentido é a jurisprudência pacífica do STJ, conforme revela trecho da decisão proferida no AgInt no REsp 1.943.231/PR: (…) o Superior Tribunal de Justiça assentou, em sede de recurso especial repetitivo – REsp n. 1.112.746/DF, a tese segundo a qual os juros de mora e a correção monetária são obrigações de trato sucessivo, que se renovam mês a mês. Com isso, devem ser aplicados no mês de regência a legislação vigente e, por isso, a lei nova superveniente que altera o regime dos juros moratórios deve ser aplicada imediatamente a todos os processos, inclusive, àqueles em que já houve o trânsito em julgado e estejam em fase de execução, sem que isso viole a coisa julgada. STJ, AgInt no REsp 1.943.231/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 16/11/2021, DJe 18/11/2021. Por conseguinte, a nova sistemática prescrita pela EC nº 113/2021 poderá ser aplicada inclusive às condenações que transitaram em julgado antes de sua entrada em vigor e que prevêem em seu bojo índices distintos para fins de atualização monetária e compensação da mora, não havendo que se falar em ofensa à coisa julgada, segundo a jurisprudência assente do STJ.   CONCLUSÃO A partir de uma análise teórica e prática a respeito dos consectários legais da condenação, tomando como arrimo os ensinamentos da doutrina pátria e a jurisprudência dos Tribunais Superiores, foi possível delimitar a natureza da correção monetária e dos juros de mora enquanto acessórios da condenação principal, com incidência ex lege, isto é, independente de pedido expresso ou mesmo menção expressa no título condenatório. Quanto aos juros moratórios, restou assentada pelos Tribunais Superiores a sua natureza jurídica de lucros cessantes, em regra, e de danos emergentes, nas hipóteses excepcionais delimitadas pelo REsp 1.470.443-PR (Tema 878). Em relação à correção monetária, sua natureza é de parcela acessória com o escopo de recompor o valor de compra da moeda. Delimitadas as premissas teóricas do estudo, foi exposto o regime de imposição dos consectários legais da condenação nas demandas entre particulares. Nesse contexto, a correção monetária incide desde a data do efetivo prejuízo, na hipótese de danos patrimoniais (Súmula nº 43 do STJ), ou desde a data do arbitramento da indenização, na hipótese de danos extrapatrimoniais (Súmula nº 362 do STJ). Os juros moratórios, por sua vez, são aplicados desde a data do ato ilícito (art. 398 do CC/2002 e Súmula nº 54 do STJ) ou a partir da citação válida (art. 405 do CC/2002), conforme o caso. Quanto aos índices, prevalece o emprego do IPCA-e para fins de atualização e da SELIC para fins de compensação da mora, inacumulável com quaisquer outros índices (art. 406 do CC/2002). Passando à conjuntura específica das condenações em face da Fazenda Pública, foi possível expor da evolução histórica da jurisprudência do STF e do STJ, sobretudo a partir do advento da EC nº 62/2009. Nesse contexto, a partir do julgamento das ADI’s 4357/DF e 4425/DF, bem como do RE 870.947/SE (Tema 810) pelo STF, restou assentada a inconstitucionalidade parcial do art. 100, § 12, da CRFB e do art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997, na parte em que prescrevem, para fins de correção monetária, o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança, sendo válida a sua aplicação para fins de compensação da mora. O STJ, por sua vez, ao apreciar o REsp 1.495.146-MG (Tema 905), determinou a utilização do IPCA-e para a atualização monetária e do índice de remuneração da caderneta de poupança a título de juros de mora. Quanto ao termo inicial de incidência, os juros de mora e a correção monetária em face da Fazenda Pública seguem o mesmo regime das demandas entre particulares, sendo que a regra geral é a incidência de juros de mora desde a citação inicial (art. 405 do CC/2002 e REsp 1.301.989/RS). Todavia, não é admitida a incidência de juros durante o período de graça previsto no art. 100, §5º, da CRFB para o pagamento dos precatórios (Súmula Vinculante nº 17 e RE 1.169.289/SC – Tema 1.037). A análise dos principais entendimentos consolidados pelo STF e STJ acerca da sistemática dos juros de mora e da correção monetária nas condenações em face da Fazenda Pública permitiu empreender um exame acerca das principais inovações e controvérsias geradas com o advento do art. 3º da EC nº 113/2021. A nova regra constitucional prevê a incidência da SELIC, uma única vez, para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora de todas as discussões e condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza. Outrossim, prescreve a aplicação do índice inclusive sobre os precatórios, o que indica que a SELIC será utilizada também para fins de correção monetária do precatório durante o período de graça do art. 100, §5º, da CRFB. Quando à constitucionalidade da nova sistemática, tanto o STF quanto o STJ têm jurisprudência consolidada no sentido da aplicabilidade da SELIC para a compensação da mora e atualização monetária das dívidas de natureza tributária. Por conseguinte, o índice adotado pelo art. 3º da EC nº 113/2021 é adequado ao fim a que se propõe. A única ressalva diz respeito à hipótese em que o ente federativo adota outro índice, diferente da SELIC, para a remuneração de seu crédito fiscal. Nessas situações, os consectários legais das dívidas fazendárias de natureza tributária deverão observar os mesmos índices utilizados pelo Fisco na cobrança de seu crédito fiscal, sob pena de afronta ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB), conforme jurisprudência do STF. Por fim, o novo regime do art. 3º da EC nº 113/2021 somente entrou em vigor no dia 09/12/2021, de sorte que a sistemática antiga será empregada para atualização de todas as dívidas fazendárias até 08/12/2021. Após esta data, o novo regramento deverá ser aplicado, inclusive para as obrigações já existentes quando de sua publicação oficial, uma vez que não há direito adquirido a regime jurídico, segundo o STF. Com efeito, ainda que o título judicial transitado em julgado preveja em seu bojo a aplicação do IPCA-e e da remuneração da poupança, deverá ser aplicado o art. 3º da EC nº 113/2021, pois os juros de mora e a correção monetária são obrigações de trato sucessivo, que se renovam mês a mês, segundo o STJ, não havendo que se falar em violação da coisa julgada.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/juros-de-mora-e-correcao-monetaria-nas-condenacoes-em-face-da-fazenda-publica-um-historico-da-jurisprudencia-dos-tribunais-superiores-e-os-novos-paradigmas-com-o-advento-da-emenda-constitucional-no-1/
Aspectos Hermenêuticos Relacionados à Aplicabilidade da Lei da Liberdade Econômica em Âmbito Municipal e Eventuais Conflitos Normativos
Este trabalho tem por objetivo a análise dos aspectos hermenêuticos relacionados à aplicabilidade da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) em âmbito local e os possíveis conflitos entre os seus dispositivos e as leis de posturas municipais. A elaboração do trabalho se pautou na ideia de que, apesar da importância de se estabelecer normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, muitos aspectos locais não foram considerados, tais como a existência de normas específicas que regulam a liberação da atividade econômica de maneira diferente da preconizada pela legislação federal. A metodologia empregada no texto passou por pesquisa bibliográfica, documental e estudos de casos concretos. Muitos pontos que foram levantados pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive quando a Lei nº 13.874, de 2019, ainda era a Medida Provisória nº 881, de 2019, ensejando o ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, foram aqui discutidos. Buscou-se demonstrar as possíveis interpretações da Lei federal em cotejo com a legislação local diversa, e, por fim, concluiu-se com a indicação da necessidade de regulamentação, em âmbito municipal, de normas que se adequem a esta nova realidade de livre mercado e de impacto regulatório.
Direito Administrativo
Introdução O tema objeto deste estudo é a análise da chamada “Lei da Liberdade Econômica”, que trouxe inovações jurídicas consideráveis e sem precedentes na história do nosso ordenamento jurídico, no que tange ao tema das posturas municipais, que ainda não foram devidamente analisadas pela literatura jurídica com grandes aprofundamentos. A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019) é fruto da conversão da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, e institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, dentre outras providências. Trata-se de uma lei recente, sem jurisprudência formada, motivo pelo qual caminha-se em terreno inóspito. Com a publicação desta Lei Federal, o empreendimento que seja considerado de baixo risco, e para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiro consensuais, poderá exercer suas atividades independentemente de atos públicos de liberação, tais como a licença, a autorização, o alvará, dentre outros. Para tanto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem observar o comando federal, por se tratar de uma norma geral (como a própria Lei se autodenomina), mesmo que suas legislações próprias exijam a emissão de atos públicos para o exercício de quaisquer atividades econômicas. Diante de tal quadro e das interpretações possíveis sobre os limites da atuação da União na expedição de normas gerais em matéria de Direito Econômico, já se adianta que, independentemente da interpretação utilizada, não se revelará inquestionavelmente segura e única. Considera-se o presente estudo como uma análise contextual prévia para fornecer algumas hipóteses interpretativas viáveis. Registre-se também que não é possível avaliar todas as consequências de eventual aplicação extremada da Lei de Liberdade Econômica sobre a atividade de polícia administrativa municipal. Isso porque existe um emaranhado de licenciamentos para as atividades econômicas em âmbito local, muitas vezes disciplinadas em normas específicas. As legislações locais que disciplinam a expedição de atos públicos de liberação da atividade econômica, em razão da anterior ausência de balizas objetivas, serão passíveis de conflito com a nova disciplina federal e deverão, portanto, ser revistas. A questão problema levantada neste artigo corresponde, justamente, a essa revisão das legislações locais que não levam em consideração o grau de risco da atividade econômica executada pelo particular (baixo, médico e alto risco) para exigir determinados atos públicos de liberação e, com isso, como poderiam ser interpretadas essas leis locais em cotejo com a Lei da Liberdade Econômica. Em relação à organização do texto, no primeiro tópico propõe-se a examinar a livre-iniciativa como fundamento da República Federativa do Brasil e qual o papel do Estado na intervenção da atividade econômica, iniciando-se com os aspectos constitucionais, passando pelas formas de atuação estatal na economia, para concluir que a publicação da Lei da Liberdade Econômica é uma das concretizações desta atuação. No segundo tópico, disserta-se sobre a competência e o objeto da Lei da Liberdade Econômica, mormente em relação à sua autoproclamação como norma geral de direito econômico e à sua amplitude quando impõe que suas disposições sejam observadas por todos os entes da Federação. Por fim, no terceiro tópico, perquire-se a análise de conflitos entre a Lei da Liberdade Econômica e a lei local que trate de forma diversa sobre os atos de liberação econômica, e as possíveis interpretações que o exegeta poderia extrair da leitura da Lei federal, além de apontar alguns aspectos que podem ser objeto de eventual regulamentação em âmbito municipal, a fim de se adequar à nova realidade regulatória da atividade econômica.   1 A relevância da livre-iniciativa e o papel do Estado como agente regulador das atividades econômicas A livre-iniciativa é elevada, na Constituição Federal de 1988 (CF/88), a fundamento da República[2], evidenciando a sua relevância jurídica no Estado Democrático de Direito. Sintetizando o postulado da livre-iniciativa, o parágrafo único do artigo 170 da Constituição da República assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Assim, a própria Constituição da República permite que, mediante lei, a atividade econômica possa ser restringida, indicando a incidência do poder de polícia estatal, conceituado por JUSTEN FILHO (2019, p.27) como uma das manifestações mais típicas da função administrativa, destinando-se a promover a compatibilização da atuação do sujeito privado com valores, direitos e interesses de dimensão coletiva. Acerca da estrutura do poder de polícia no Estado Democrático de Direito, disserta Gustavo Binenbojm:   “[…] o poder de polícia é a ordenação social e econômica que tem por objetivo conformar a liberdade e a propriedade, por meio de prescrições e induções, impostas pelo Estado ou por entes não estatais, destinadas a promover o desfrute dos direitos fundamentais e o alcance de outros objetivos de interesse da coletividade, definidos pela via da deliberação democrática, de acordo com as possibilidades e os limites estabelecidos na Constituição” (2017, p. 78).   Especificamente em relação às atividades econômicas, o poder de polícia estatal se revela pelo papel do Estado como agente normativo e regulador, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como dita o artigo 174 da Constituição Federal. Pela leitura do referido artigo, percebe-se que a função normativa e regulatória do Estado não se limita a restringir e a condicionar a autonomia privada, mas também se orienta a incentivar e a planejar condutas sociais e economicamente desejáveis. Assim, ainda que a competência regulatória esteja associada, em termos gerais, ao poder de polícia, é preciso compreender que o âmbito da regulação possui contornos mais amplos e especializados, que superam as concepções tradicionais da discricionariedade administrativa, núcleo do poder de polícia (JUSTEN FILHO, 2019, p. 29). A doutrina de MELLO (2004, p. 641) assevera que há três possibilidades de intervenção do Estado na economia: através de seu poder de polícia; mediante incentivos à iniciativa privada, atuando como propulsor das atividades econômicas; e por meio de sua atuação como agente ativo no setor empresarial, consoante as normas constitucionais. Com a publicação da Lei Federal nº 13.874, de 20 de dezembro de 2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelece garantias de livre mercado, fica evidente a atuação do Estado enquanto agente normativo e regulador, nas funções de incentivo e planejamento para proteger a livre iniciativa e o livre desempenho do ofício, simplificando o registro e a legalização do empreendedor de atividade econômica e estabelecendo direitos e garantias a este exercício.   2 A Lei da Liberdade Econômica: competência e objeto A Lei Federal nº 13.874, de 2019, em seus artigos 1º a 4º, se autointitulou uma norma geral de direito econômico, exigindo sua observância para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica executados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Impôs, ainda, que todas as normas de ordenação pública sobre as atividades econômicas privadas fossem interpretadas em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade. De rigor, as normas de direito econômico se submetem à disciplina da competência federativa concorrente, nos termos do artigo 24, inciso I, da CF/88. E na sistemática desta competência concorrente, ditam os §§ 1º a 4º do referido artigo 24, que a União é titular de competência para produzir normas gerais sobre a matéria, cabendo aos entes federativos mencionados o poder jurídico para instituir normas suplementares, afeiçoando a legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal (HORTA, 2003, p. 356). Isso significa que as normas gerais editadas pela União, no âmbito da sua competência concorrente, podem ser definidas como normas nacionais, possuindo eficácia vinculante para todos os demais entes federativos, cabendo a estes últimos a competência para editar normas especiais relacionadas a assuntos específicos, em prol dos seus próprios interesses. Não obstante, como não existe uma delimitação prévia e expressa sobre o que seja “norma geral”, muitas vezes, há dificuldades em se estabelecer o limite onde termina o “geral” para começar o “específico”, o “local”, o “interesse próprio”, o que pode, eventualmente, causar um conflito de normas, tema a ser tratado no próximo tópico. Em relação ao seu objeto, a Lei Federal nº 13.874, de 2019 visa a instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, dispondo sobre os direitos de toda pessoa natural ou jurídica essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País. Acerca da denominação “Declaração de Direitos”, dissertam LEAL, ALBUQUERQUE JÚNIOR E COSTA FILHO (2019, p. 102):   “A denominação “Declaração de Direitos” sugere que o diploma legislativo sob análise não almeja criar inovações para o direito brasileiro, posto que diversos dispositivos da nova lei apenas remetem a institutos que já gozavam de reconhecimento na doutrina especializada e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Essa flexibilização no sentido de impulsionar a livre-iniciativa, contudo, é apontada pela doutrina especializada como uma das genuínas inovações da Lei de Liberdade Econômica. Trata-se de garantia à livre-iniciativa enquanto liberdade de estabelecimento, a fim de assegurar o direito de iniciar uma atividade econômica, o direito de constituir uma empresa, bem como o direito de, pessoalmente ou sob o manto da pessoa jurídica, proceder com a ordenação de certos meios de produção para certa finalidade econômica”.   Dentre estes direitos, destaca-se aquele que será objeto de estudo mais aprofundado no tópico seguinte: o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica (inciso I do artigo 3º da Lei Federal nº 13.874, de 2019). Veicula referido inciso I do artigo 3º uma atuação negativa, impondo à Administração Pública a obrigação de tolerar que aquelas pessoas realizem alguma atividade, que normalmente seria repelida ou condicionada a certos requisitos ou a certas restrições (LEAL, ALBUQUERQUE JÚNIOR E COSTA FILHO, 2019, p. 102). Ocorre que, em virtude da inexistência, até então, de uma lei geral que tratasse sobre os significados, os parâmetros e a extensão da livre-iniciativa, muitas legislações locais, no exercício do poder de polícia inerente ao Estado, apontaram como restritivas da atividade econômica, tais como as legislações municipais que exigem a emissão de alvará de funcionamento para toda e qualquer atividade, independente do risco que tal atividade gere. Com isso, há necessidade de que tais leis locais vigentes passem por uma filtragem de legalidade e de constitucionalidade, para análise da sua compatibilidade com a lei geral e com as regras de competência legislativa ditadas pela Constituição da República. Outro ponto discutível é a amplitude alicerçada na Lei da Liberdade Econômica, de forma a colocar em dúvida se ela realmente se sustenta, sob o ponto de vista jurídico, como uma norma geral, ou se houve uma invasão de competência, a adentrar em temas supostamente de interesse local. Portanto, a Lei da Liberdade Econômica, aparentemente simples e de fácil leitura, consubstancia exatamente o contrário. Apenas um trabalho cauteloso e acurado de interpretação e análise possibilita a extração do verdadeiro sentido e alcance do que determina o enunciado.   3 O conflito normativo entre a Lei da Liberdade Econômica e a lei local e as possíveis interpretações quanto à sua aplicabilidade O artigo 3º, inciso I, da Lei nº 13.874, de 2019 estabelece ser um direito de toda pessoa, natural ou jurídica, desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica. Convém, inicialmente, abordar as duas expressões-chave do texto legal, quais sejam, “atividade econômica de baixo risco” e “liberação da atividade econômica”. A classificação como “atividade econômica de baixo risco”, segundo o §1º do artigo 3º da Lei nº 13.874, de 2019, depende de legislação específica estadual, distrital ou municipal. Não havendo normatização pelos entes federativos, compete tal mister ao Poder Executivo Federal, e, se este último também for omisso, a matéria pode ser objeto de Resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). Desta forma, se a legislação local não definir, por meio de legislação específica, aquilo que considera como atividade econômica de baixo risco, a fim de cumprir a Lei da Liberdade Econômica, fica o ente municipal vinculado à definição encartada pelos demais entes. Nesse aspecto, foi editada pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, a Resolução nº 51, de 11 de junho de 2019, posteriormente alterada pela Resolução nº 57, de 21 de maio de 2020. Ao contrário de “baixo risco”, a definição de “liberação de atividade econômica” está na própria Lei nº 13.874, de 2019, que em seu art. 1º, §6º define como atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício da atividade econômica. Assim, a necessidade de simplificar suas legislações, a fim de melhor adequar o tratamento conferido pelos entes federados àquele que pretende exercer seu ofício surge como produto da observância da Lei em comento e do estudo do rito até então adotado em âmbito regional ou local. O que pretende a legislação federal é dispensar as atividades consideradas como de “baixo risco” da necessidade de obterem alguns atos públicos de liberação da atividade econômica (como, por exemplo, o “alvará de funcionamento”), devendo tal previsão ser observada pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Relembre-se que a própria Lei Federal nº 13.874, de 2019 se autoproclama como uma norma geral de Direito Econômico, como se verifica da literalidade do §4º do seu artigo 1º. Vale dizer, ela se arvora na condição de norma geral, no seio da chamada competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal – e, sob o aspecto do interesse local, dos Municípios – como previsto no artigo 24 da CF/88. Afinal, o inciso I do referido dispositivo constitucional arrola o Direito Econômico no rol de matérias afetas à legislação concorrente. Em tal situação, o papel da União limita-se a estabelecer normas gerais (§1º), o que não exclui a competência suplementar dos demais entes federativos (§2º e artigo 30, inciso I). Inexistindo norma geral, a competência legislativa dos entes federativos é plena (§3º); advindo, contudo, a norma geral nacional, há a suspensão da eficácia das normas regionais e locais, no que forem a ela contrárias (§4º). Um ponto importante a ser frisado neste momento, para que não haja dúvidas nesse sentido, é que a norma geral expedida pela União não revoga a lei dos demais entes federativos, apenas suspende-lhe a eficácia. Tecnicamente são coisas diversas. Em primeiro lugar, a norma local é plenamente válida em relação às atividades não abrangidas pela norma geral, seja qual for a interpretação que se dê a ela em relação à sua amplitude; em segundo lugar, caso a norma geral seja revogada ou retirada do ordenamento jurídico de qualquer modo, volta a ter plenos efeitos a legislação municipal, que não foi retirada do ordenamento jurídico. Feito este esclarecimento prévio, a atividade do intérprete, regra geral, perpassará pela análise da existência de possível conflito entre as normas federal geral e municipal específica e se haverá a suspensão da eficácia da legislação local no que toca à dispensabilidade de qualquer ato público para o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco. Neste ponto, é bastante discutível se tal previsão se adequa aos limites constitucionais, sem que seja possível, contudo, desconsiderar sua existência e seus possíveis efeitos, em especial a interpretação que o Poder Judiciário dará a esta rede normativa. Sobre o assunto, aduz JUSTEN FILHO (2019, p. 31):   “Não existe definição expressa para a “norma geral” prevista no art. 24, §1º, da CF/88. O tema gera controvérsias significativas, nos diversos ramos do direito. O caso mais conhecido em envolve as normas gerais sobre licitação e contratação administrativa, objeto do disposto no art. 22, inc. XXVII, da Constituição. A expressão “norma geral” atribui à União uma margem de discricionariedade para editar normas vinculantes para todas as esferas federativas. Cabe à União determinar a amplitude e a profundidade da disciplina a ser observada de modo compulsório pelos demais entes federativos. O limite para a norma geral veiculada pela União é a autonomia federativa. É vedado à União eliminar a autonomia mínima inerente à forma federativa de Estado. Essa vedação apanha tanto medidas orientadas diretamente a atingir esse resultado como também as providências de cunho indireto. Uma determinação legislativa proveniente da União infringirá a Constituição quando afetar o núcleo essencial de competências e interesses do ente federativo local”.   Diante do quadro de insegurança hermenêutica, vislumbram-se duas interpretações possíveis, que se passará a expor e que poderão servir de instrumento de aprofundamento de reflexão do intérprete. A primeira interpretação é aquela que se atém à literalidade da norma (a qual, aparentemente, é a desejada pelo legislador federal), no sentido de que toda a legislação municipal referente ao licenciamento de atividades que sejam contrárias ao que consta da Lei da Liberdade Econômica teve sua eficácia suspensa. Se a interpretação for neste sentido extremado, a legislação de posturas municipais em relação a atividades econômicas era eficaz pela inexistência de norma geral de âmbito nacional; com o advento da norma geral, não mais possui eficácia as disposições que lhes forem contrárias. Caso a norma nacional seja, um dia, revogada ou retirada do sistema, voltaria a legislação local a produzir efeitos normalmente. Esta interpretação produz, contudo, profundos efeitos em todo o setor de regulação de atividades no âmbito municipal. Basicamente, no que interessa ao tema ora em análise, aplicar-se-iam, integralmente, as previsões dos artigos 1º e 3º da Lei federal. Valer dizer, para as atividades de baixo risco seria vedada a exigência de prévio licenciamento para o seu funcionamento (mesmo havendo legislação local neste sentido), sendo que por “atividades de baixo risco”, em caso de omissão da legislação municipal, aplicar-se-iam as definições da Resolução CGSIM nº 51/2019, alterada pela Resolução CGSIM nº 57/2020. Trata-se, sem dúvida, de uma grande mudança de paradigma no aspecto regulatório nacional. Mas, também, de uma modificação normativa centralizadora e abrupta, posto não ter levado em consideração as atuais previsões legais municipais e as peculiaridades locais. Inclusive, a constitucionalidade da Medida Provisória nº 881, de 2019 (que deu origem à Lei da Liberdade Econômica) foi questionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), dentre as quais, a que aqui interessa, é a ADI nº 6.156, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Impugnava-se desde questões formais (como a falta de urgência e relevância que permitisse a veiculação da matéria por Medida Provisória) à questão de fundo, como o superdimensionamento da livre iniciativa em menoscabo de outros valores constitucionais da mesma hierarquia, vários dos quais fundamentam o exercício do poder de polícia municipal, que se consubstancia na tradicional expedição do “alvará de funcionamento”, abolido para as atividades de baixo risco, se aplicada a norma federal ipsis litteris. Com isso, haveria afronta ao princípio federativo. Nesse sentido, ditava a petição inicial da referida ADI:   “Como se vê, a MP nº 881/2019 revela um acinte ao princípio da autonomia dos entes federativos, uma vez que invade a competência dos demais entes, não se podendo rotular essa disciplina sob o manto genérico de “norma geral de direito econômico”, por não se enquadrar na previsão do artigo 24 da Constituição Federal de 1988. A União não pode impor sua política econômica aos demais componentes da República Federativa do Brasil. Os denominados “atos públicos de liberação da atividade econômica”, consubstanciados na licença, autorização, no alvará e demais atos exigidos, são circunscritos à competência dos entes municipais, por exemplo, por se tratarem de tema preponderante interesse local, a teor do artigo 30, inciso I, da Constituição”.   Não obstante, a Medida Provisória nº 881, de 2019, foi convertida na Lei nº 13.874, de 2019, antes que a ADI pudesse ser julgada. Em razão da falta de aditamento da petição inicial pelo autor da ADI, o Relator julgou a ação extinta, por falta de objeto, atendendo à jurisprudência pacífica no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Crê-se que este tipo de questionamento formulado na ADI é bastante adequado à previsão que ora se analisa na Lei da Liberdade Econômica. No mínimo, é deveras discutível se ela realmente se enquadra como “norma geral em matéria de Direito Econômico” ou se ultrapassou o “geral” para se tornar o “específico” ou o “exauriente”. Em especial, parece ser problemática a previsão de aplicação de rol de atividades de baixo risco previstas em regulamento federal ou em ato subalterno de um Comitê vinculado à Administração Federal, em inversão hierárquica que coloca uma resolução infralegal de órgão federal acima de uma lei municipal. Sobre o assunto da invasão de competência, assevera ALMEIDA (2005, p. 97):   “O problema nuclear da repartição de competências na Federação reside na partilha da competência legislativa, pois é através dela que se expressa o poder político cerne da autonomia das unidades federativas. De fato, é na capacidade de estabelecer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem subordinação hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que se traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas. Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias regras. (…) Está aí bem nítida a ideia que se quer transmitir: só haverá autonomia onde houver a faculdade legislativa desvinculada da ingerência de outro ente autônomo. Assim, guarda a subordinação apenas ao poder soberano no caso o poder constituinte, manifestado através de sua obra, a Constituição -, cada centro de poder autônomo na Federação deverá necessariamente ser dotado da competência de criar o direito aplicável à respectiva órbita. E porque é a Constituição que faz a partilha, tem-se como consequência lógica que a invasão não importa por qual das entidades federadas do campo da competência legislativa de outra resultará sempre na inconstitucionalidade da lei editada pela autoridade incompetente. Isso tanto no caso de usurpação de competência legislativa privativa, como no caso de inobservância dos limites constitucionais postos à atuação de cada entidade no campo da competência legislativa concorrente”.   Mas tudo isso, por enquanto, é exercício de reflexão. Como cediço, eventual controle de constitucionalidade da Lei deve ser feito, se o caso, de forma concentrada no âmbito das ADIs pelo Supremo Tribunal Federal. Até lá, a Lei da Liberdade Econômica é válida, vigente, eficaz e presumivelmente constitucional, devendo ser interpretada e aplicada. De outro giro, na hipótese de haver legislação local que exija, como regra geral, a emissão de atos públicos (tais como o alvará de funcionamento), independentemente do grau de risco da atividade, também é possível interpretá-la de forma restritiva, sem a necessidade de haver uma suspensão sumária do seu texto pelo advento da norma geral. Nesta interpretação, as atividades consideradas de baixo risco, por dispensarem a exigência de alvará de funcionamento, nos termos da lei geral, estariam excluídas da legislação local e deveriam ser regulamentadas no âmbito municipal por ato próprio. Vale dizer, por exclusão, seria possível que ato legislativo municipal explicitasse essa interpretação restritiva da lei, veiculando lista de todas as atividades consideradas, pela Administração Pública, como de “baixo risco” e que não exigiriam prévio alvará de funcionamento (ou seja, que não se enquadrariam na lei local que o exige). Não obstante, esta lei continuaria válida e eficaz para outras atividades (por exemplo, de médio e alto risco, em que o ato público de liberação fosse exigido), uma vez que, neste ponto, não haveria contradição com a norma geral. Apesar disso, entende-se que, mesmo para aplicação desta interpretação restritiva, é imprescindível uma delimitação, no âmbito municipal, da classificação das atividades econômicas de baixo risco, a fim de dar concretude à Lei da Liberdade Econômica, evitar problemas casuísticos e discussões judiciais por parte dos particulares que considerarem ter seu direito à liberdade econômica ofendido. Considera-se esta regulamentação extremamente importante para a segurança jurídica deste tema em âmbito local. Embora seja possível extrair esta interpretação restritiva da norma municipal, para o fim de adequá-la à legislação federal superveniente, ressalve-se que a Lei de Liberdade Econômica foi enfática ao se constituir como norma geral, aplicando-se as regras da competência concorrente, segundo a qual haverá suspensão das legislações estaduais (ou locais) que lhe forem contrárias. Logo, a interpretação que parece mais consentânea com a vontade do legislador federal é aquela que leva em consideração a sua literalidade, motivo pelo qual, havendo legislação local que não distinga as atividades de baixo, médio e alto risco, dispensando o mesmo tratamento àquele que empreende, sem considerar a complexidade, a dimensão e outras características da empresa, conflita com a novel Lei da Liberdade Econômica, estando, portanto, com a sua eficácia suspensa, nos termos do art. 24, §4º, da CF/88. Neste contexto, apontam-se alguns aspectos que podem ser objeto de eventual regulamentação municipal, tais como a necessidade de reflexão e regulamentação para harmonizar a aplicação da previsão nacional às questões urbanísticas (licenciamento de localização, regulado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo) e à questão da inscrição municipal, que continua obrigatória para toda e qualquer atividade[3]. Também há a necessidade de implementação de fiscalização ostensiva adequada à nova realidade, para as atividades cujo agente se autointitular como de baixo risco e que, por consequência, não necessite de nenhum licenciamento prévio[4], seja para verificação de seu efetivo enquadramento no baixo risco, seja para questões de localização, conforme o zoneamento urbano ou ambiental. E, por fim, a regulamentação clara das atividades de baixo risco de forma adequada ao interesse local, com posterior encaminhamento de notificação ao Ministério da Economia, nos termos do artigo 3º, §1º, inciso III, da Lei da Liberdade Econômica.   Conclusão O papel do Estado como agente normativo e regulador das atividades econômicas se revela pelas funções de fiscalização, incentivo e planejamento, consagradas constitucionalmente. Assim, possui o Estado a competência de, mediante lei, incentivar e planejar condutas sociais e economicamente desejáveis. Foi no exercício destas funções que se instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, inicialmente por meio da edição da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, a qual, apesar da controvérsia a respeito da sua constitucionalidade formal e material, foi convertida na Lei Federal nº 13.874, de 20 de dezembro de 2019, denominada de Lei da Liberdade Econômica. A Lei da Liberdade Econômica se propõe a desburocratizar os empreendimentos de baixo risco, visando a garantir um livre mercado por meio da Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica, dispondo sobre os direitos de toda pessoa natural ou jurídica essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País. Ocorre que um desses direitos tem gerado discussões jurídicas: o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco, para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiro consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica, impondo que este direito seja observado por todos os entes federativos. Por atos públicos de liberação entende-se a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício da atividade econômica. Assim, o que pretende a legislação federal é dispensar as atividades consideradas como de baixo risco da necessidade de obterem alguns atos públicos de liberação da atividade econômica (como, por exemplo, o “alvará de funcionamento”), devendo tal previsão ser observada pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Impõem-se aos entes federativos uma atuação negativa de tolerar que determinados empreendimentos, considerados de baixo risco, exerçam sua atividade, sem que, para isso, haja a necessidade de eventuais atos de autorização estatal. No entanto, como até então inexistia uma lei geral que disciplinasse os significados, os parâmetros e a extensão da livre-iniciativa, os entes federativos, no exercício do poder de polícia que lhe é inerente à atuação regulatória, editaram legislações específicas que restringiam o exercício da atividade econômica, tais como as legislações municipais que exigem a emissão de alvará de funcionamento para toda e qualquer atividade, independentemente do risco que tal atividade gere (baixo, médio ou alto risco). Por este motivo, discute-se a existência de possível conflito entre as normas federal geral e municipal específica, e se a eficácia destas legislações locais restritivas deveria ser suspensa pela publicação de uma norma geral, nos termos do §4º do art. 24, da Constituição Federal. Para tanto, foram analisadas algumas críticas à amplitude da Lei da Liberdade Econômica, especialmente se os seus termos se adequam aos limites constitucionais, ou se houve uma invasão de competência em assuntos locais, além de um superdimensionamento da livre iniciativa em menoscabo de outros valores constitucionais da mesma hierarquia, vários dos quais fundamentam o exercício do poder de polícia municipal. No entanto, em razão da constitucionalidade presumida da Lei Federal nº 13.874, de 2019, é preciso extrair do seu texto possíveis interpretações que poderão servir de instrumento de aprofundamento de reflexão do intérprete. Dentre essas interpretações, desponta a interpretação literal, no sentido de que toda a legislação local referente ao licenciamento de atividades que sejam contrárias ao que consta da Lei da Liberdade Econômica teve sua eficácia suspensa. Esta interpretação extremada produz, entretanto, profundos efeitos em toda a política regulatória das atividades econômicas em âmbito municipal, ou seja, para as atividades de baixo risco seria vedada a exigência de prévio licenciamento para o seu funcionamento, ainda que haja legislação local neste sentido. Por outro lado, na hipótese de haver legislação local que exija como regra geral a emissão de atos públicos (tais como o alvará de funcionamento), independentemente do grau de risco da atividade, também seria possível interpretá-la de forma restritiva, sem a necessidade de haver uma suspensão sumária de seu texto pelo advento da norma geral, excluindo-se apenas as atividades de baixo risco, que deveriam ser regulamentadas em ato próprio. Em outras palavras, haveria uma filtragem da lei local em vigor para excluir da sua abrangência os empreendimentos de baixo risco, continuando válida e eficaz para outras atividades disciplinadas em seu texto (por exemplo, atividades de médio e alto risco, em que o ato público de liberação fosse exigido), uma vez que, neste ponto, não estaria em contradição com a norma geral. Os empreendimentos de baixo risco, por sua vez, deveriam ser veiculados em ato legislativo municipal, para dar publicidade e transparência ao não enquadramento na lei local que exige atos públicos de liberação para o seu exercício, evitando-se problemas casuísticos e discussões judiciais por parte de particulares que considerarem ter seu direito à liberdade econômica ofendido. Neste contexto, independentemente da interpretação que seja dada a este complexo normativo pelo exegeta, aponta-se a necessidade de regulamentação em âmbito local da Lei da Liberdade Econômica, objetivando a sua adequação à nova realidade normativa, mormente no que tange à fiscalização e à observância de todas as normas de zoneamento urbano, ainda vigentes e de interesse local.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/aspectos-hermeneuticos-relacionados-a-aplicabilidade-da-lei-da-liberdade/
Licitações Públicas: Teoria e Prática no Âmbito da Administração Pública
O presente trabalho tem a pretensão de discutir sobre as licitações públicas na teoria e na prática no âmbito da Administração Pública, diante dos desafios, avanços e atualizações apresentados na atualidade. A questão central é analisar as modalidades de licitação constantes na lei n. 8.666/93 e lei n. 10.520/2002 observando qual delas a Administração Pública mais utiliza em seus procedimentos licitatórios. Neste sentido, haverá a explanação de todas as modalidades de licitação, apresentando suas características e conceito, em seguida será feita uma pesquisa em três cidades do Estado de Goiás e por derradeiro, será apresentado as possíveis causas de tal acontecimento.
Direito Administrativo
Introdução Com uma pesquisa qualitativa e exploratória, o presente trabalho busca observar: as licitações públicas na teoria e prática no âmbito da Administração Pública. De início, será apresentado conceito de licitações juntamente com os seus fundamentos expressos que são: o princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Posteriormente, será exibido as modalidades de licitação constantes na lei n. 8.666 de 21 de junho de 1993, as quais sejam: concorrência, convite, tomada de preços, leilão e concurso; e a modalidade pregão prevista na lei n. 10.520 de 17 de julho de 2002, mostrando, o conceito e as principais características das modalidades. Para completar, serão analisados nos anos de 2018 (dois mil e dezoito) e 2019 (dois mil e dezenove) os procedimentos licitatórios realizados em municípios com o número de habitantes pequeno, médio e grande, compreendidos em Cromínia, Itumbiara e Goiânia. Neste sentido, se observará qual a modalidade de licitação mais utilizada em cada um deles, a modalidade mais aplicada em cada ano, e ainda qual a modalidade mais empregada com a junção de todos os municípios da pesquisa. Dessa maneira, é possível: chegar em conclusões através dos dados da pesquisa e apresentar hipóteses que justifiquem tal acontecimento.   Este trabalho tem o propósito de analisar o procedimento licitatório em alguns municípios do Estado de Goiás, sem deixar de lado a beira teórica sobre o tema licitações. Diferentemente do meio privado que tem liberdade para contratar, alienar e adquirir bens, o Poder Público tem um procedimento determinado e preestabelecido em lei, que deve ser executado rigorosamente, esse procedimento é denominado Licitação.   O termo Licitação deriva da expressão latina licitatione, que significa arrematar em leilão. Segundo a escritora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 492) licitação é:   “[…] um procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato […]”.   Sendo assim, regulamentando o artigo 37, inciso XXI da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Lei n. 8.666 de 21 de junho de 1993 disciplina sobre licitações e contratos da Administração Pública direta/centralizada e a Administração Pública indireta/descentralizada. O artigo 3º da Lei n. 8.666/93 estabelece finalidades/objetivos das licitações, objetivando tem-se três finalidades, sendo: o princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, vejamos: Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. É visto que, o princípio da igualdade está previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em síntese ele assegura a todos a igualdade, trata-se de um direito fundamental garantido. Ainda, sobre as bases do princípio mencionado, é importante conceituar a palavra isonomia que no direito administrativo significa, baseada na preposição de Aristóteles, tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.[1]   O princípio da isonomia decorre do princípio da impessoalidade, isto é, são princípios diferentes, mas se relacionam. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 83) o princípio da isonomia “firma a tese de que esta não pode desenvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou detrimento de alguém”.   A desobediência ao princípio da isonomia na licitação faz com que ocorra o desvio de poder, consequentemente o Judiciário é levado a cancelar editais e julgamentos. É importante destacar que, as recomendações que constam nos editais como requisitos da participação do certame não ferem o princípio da isonomia, como por exemplo, o atestado de capacidade técnica ou certidão negativa, pois a Administração Pública tem liberdade para determinar certas qualificações das empresas.   A seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, está prevista no artigo 45, 1°§ da Lei 8.666/93, refere-se aos tipos de licitação, os quais sejam: menor preço, melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta, excetuada a modalidade concurso. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 526), a Administração seleciona a proposta que “se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados”. Nesse contexto, pode-se afirmar que nem sempre a proposta mais vantajosa é a mais barata, isto é, cada um desses tipos de licitação visa que a Administração escolha o mais conveniente.   O menor preço é o tipo em que o preço mais baixo é o melhor para a Administração, sendo assim, os demais critérios como qualidade, prazos, dentre outros podem variar dependendo do caso, podendo assim, a Administração ser prejudicada em relação as suas compras e serviços de modo geral. Vale frisar que, a Lei em determinadas partes como por exemplo os artigos 43, V, art. 44, caput e 45, todos da Lei 8.666/93, estabelecem ‘critérios’ e ‘fatores’ definidos no edital para melhor favorecer a Administração.   A melhor técnica é escolhida por fatores de ordem técnica, é utilizado exclusivamente para serviços de natureza intelectual. Em consonância com o jurista Hely Lopes Meirelles (2009, p. 306) na licitação de melhor técnica a “Administração pretende é a obra, o serviço, o equipamento ou o material mais eficiente, mais durável, mais aperfeiçoado, mais rápido, mais rentável, mais adequado, enfim, aos objetivos de determinado empreendimento ou programa administrativo”. Para facilitar, nesse tipo são utilizados três envelopes um contendo os documentos de habilitação, outro os preços e por fim o envelope com as propostas técnicas.   Para ponderar entre técnica e preço existe um tipo que escolhe a média entre técnica e preço. Leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 610) que os critérios do ato convocatório devem ser “claros e objetivos para identificação de todos os fatores pertinentes que serão considerados para a avaliação da proposta”.   Existe também o tipo maior lance ou oferta, sendo: o maior lance utilizado na modalidade leilão e nas modalidades convite e concorrência a maior oferta. Esse tipo é utilizado especialmente na venda de bens, concessões, permissões e quando a Administração Pública é locadora. Nesse tipo a Administração Pública busca o maior lucro possível. Cabe lembrar que os tipos de licitação auxiliam o Poder Público no sentido econômico, na qualidade das compras e das prestações de serviço, além de oferecer mais lucro para a Administração em sentido amplo, porém em alguns casos os agente públicos não especificam o material ou não selecionam o tipo de licitação que deseja, causando prejuízo que são refletidos na sociedade. Existem casos em que no edital de licitação os itens são discriminados de forma genérica, sem nenhuma especificação de qualidade ou quantidade dentre outras que a Lei permite. Após a especificação sem nenhuma qualificação o fornecedor acaba entregando ou prestando serviços, de certa forma, da maneira que for melhor para ele, independente das necessidades da Administração Pública. A promoção do desenvolvimento nacional sustentável, foi introduzido na Lei n.º 8.666/93 a partir da Lei n.º 12.349, de 15 de dezembro de 2010, implementando que os contratos administrativos tenham cláusulas de sustentabilidade de cunho econômico, social e também cultural. Antes de discorrer sobre licitação sustentável é preciso tratar do conceito de desenvolvimento sustentável, que segundo a conceituada ambientalista e ex-senadora Marina Silva, em uma palestra na revista Exame Fórum, apontou que só se pode ter desenvolvimento se não houver destruição do meio ambiente, sob outra perspectiva o desenvolvimento sustentável é utilizar de forma racional os recursos naturais, reduzindo os danos ao meio ambiente.   Sendo assim, o desenvolvimento sustentável traduz a ideia de desenvolvimento social o que é testificado pelo jurista e professor Sidney Bittencourt (2014, p. 41) que define licitação sustentável sendo aquelas que “exigirão das contratadas o atendimento de critérios ambientais, sociais e econômicos, tendo como fim o desenvolvimento da sociedade em seu sentido amplo e a preservação de um meio ambiente equilibrado”.   De acordo com o Decreto n. 7.746/2012, artigo 4º, são considerados critérios e práticas sustentáveis, dentre outras: o baixo impacto sobre recursos naturais como flora, fauna, ar, solo e água; preferência para materiais, tecnologias e matérias-primas de origem local; maior eficiência na utilização de recursos naturais como água e energia; maior geração de empregos, preferencialmente com mão de obra local; maior vida útil e menor custo de manutenção do bem e da obra; uso de inovações que reduzam a pressão sobre recursos naturais; origem sustentável dos recursos naturais utilizados nos bens, nos serviços e nas obras; e utilização de produtos florestais madeireiros e não madeireiros originários de manejo florestal sustentável ou de reflorestamento.   Vale citar que, muitas vezes a finalidade desenvolvimento sustentável em uma licitação pode estar sendo utilizada de forma errônea e por conseguinte prejudicando os licitantes. Dessa forma, o Acórdão n.º 1375/2015 do Tribunal de Contas da União (TCU), diz que as exigências de sustentabilidade devem estar no objeto e não como condição de habilitação do certame (BRASIL, 2015).   No caso supracitado, foram constatadas irregularidades relativas ao Pregão Eletrônico realizado pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida (FCAA), em que o valor estimado para a contratação de serviços de impressão de material didático foi de R$ 2.933.642,91 (dois milhões e novecentos e trinta e três mil e seiscentos e quarenta e dois reais e noventa e um centavos), sendo o serviço adjudicado à empresa Gráfica Santo Antônio Ltda, pelo valor de R$ 2.899.790,80 (dois milhões e oitocentos e noventa e nove mil e setecentos e noventa reais e oitenta centavos), entretanto, alguns licitantes que apresentaram valores menores do preço adjudicado foram desclassificados do certame, nesse caso concreto, a Gráfica e Editora Liceu Ltda foi desclassifica por não apresentar a certificação Forest Steward Council (FSC) ou equivalente.   2. Modalidades de Licitação No que tange a Administração Pública direta/centralizada, nota-se a presença da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A Administração Pública indireta/descentralizada compõe-se de Empresas Públicas, Sociedade de Economia Mista, Autarquia, Fundações Públicas, no entanto, em relação as Empresas Estatais a Lei n. 8.666/93 não é aplicada integralmente, pois estão sujeitas a Lei n. 13.303 de 30 de junho de 2016, isto é, para as Empresas Estatais segue-se o estatuto jurídico. Uma das principais mudanças que é possível descrever de modo raso é que a Lei 13.303/2016 adotou um modelo mais flexível, não existindo assim modalidades específicas, como é visto na Lei geral de licitações, ou seja, nessa Lei é adotado preferencialmente o pregão para a aquisição de serviços e bens comuns, e não critérios para escolha de modalidades. As modalidades da licitação expressas na Lei 8.666\93, artigo 22, são a Concorrência, Tomada de preço, Convite, Concurso e Leilão, sendo essas, conceituadas na própria Lei. O principal objetivo dessas modalidades é, dentre outras, fazer de forma mais expressa a diferenciação entre as aquisições, locações e alienações que o poder público faz dos particulares.[2] Além disso, o artigo 22, §8, da Lei n. 8.666/93 veda o administrador público a criação ou a combinação de modalidades, mas isso não significa que a União que possui competência para dispor sobre as normas gerais de licitações não poderá criar novas modalidades, um exemplo disso é a Lei n. 10.520/02 que trata do pregão. Um caso curioso, é que as normas gerais de licitação são de competência privativa da União, no entanto, outros entes podem criar normas de licitação em matéria específica ou suplementar quando a norma geral não disciplina. No Estado da Bahia a Lei n. 9.443/05 que trata de normas sobre licitações e contratos administrativos dos Poderes do Estado da Bahia, inverte os procedimentos habilitação e proposta, falando em questões práticas esse procedimento é bem mais rápido e lógico para a comissão e também para os participantes, mas quando observado de forma legal está lei não segue a Lei geral de licitações, porém a Lei continua em vigência no Estado. Existem modalidade vinculadas ao valor do objeto como o convite e a tomada de preços, de outro lado tem-se as modalidades normalmente vinculadas ao próprio objeto as quais sejam: concurso, leilão, pregão. A modalidade concorrência é normalmente vinculada ao valor ou também ao próprio objeto. A escolha de cada modalidade a ser utilizada, pode ser determinada pelo critério de valor exposto no artigo 23 da Lei 8.666/93. De acordo com o artigo 120 da Lei n. 8.666/93 os valores das modalidades podem ser atualizados por intermédio de Decreto. Vejamos a atualização do Decreto 9.412/2018:   Art. 1º Os valores estabelecidos nos 1993, ficam atualizados nos seguintes termos: I – para obras e serviços de engenharia: II – para compras e serviços não incluídos no inciso I:   Os prazos para a realização do evento ou do recebimento das propostas serão contados a partir: “da última publicação do edital resumido ou da expedição do convite, ou ainda da efetiva disponibilidade do edital ou do convite e respectivos anexos, prevalecendo a data que ocorrer mais tarde” (art. 21, §3, da Lei 8.666/93), ou seja, o prazo será contado a partir do momento que o edital é disponibilizado. No caso em que houver modificação do edital, contará a partir da modificação do edital o novo prazo, mas só se a modificação conter uma alteração significativa nas propostas (jurídicas/tramites), conforme art. 21, §4º da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993).   Cabendo a modalidade mais simples, o administrador pode optar pela mais complexa, pelo fato de conceder mais tempo e publicidade, além de sempre poder optar/substituir pela concorrência, conforme art. 23, §4º, da Lei n. 8.666/93 (BRASIL, 1993).   2.1 Concorrência A concorrência é uma modalidade de licitação que exige maiores formalidades, é a modalidade adequada para as contratações de grande vulto, que exige ampla publicidade (art. 21, da Lei 8.666/93) e universalidade (art. 22, §1º, da Lei 8.666/93). De acordo com o Decreto 9.412/2018 as obras e serviços de engenharia com valor maior que 3,3 milhões e as compras com valor maior que 1,43 milhão serão na modalidade de licitação concorrência, todas com intervalor mínimo de 45 dias para os tipos melhor técnica, técnica e preço e empreitada integral e para os demais casos 30 dias. É importante destacar, que os valores para a modalidade concorrência não são somente aqueles citados acima, a Lei de licitações disciplina que no caso de consórcio público (art. 23, §8º, da Lei 8.66/93) formado por até 3 (três) entres da federação o valor aplicado será o dobro dos valores do artigo 23, caput, da Lei 8.666/93 e o triplo no caso em que o número de entes for maior. Simplificando: aplica-se o dobro nos valores acima de 6.600.000 e 2.860.000 em até três entes federativos e aplica-se o triplo nos valores acima de 9.900.000 e 4.290.000 em mais de três entes federativos. Ainda, essas duplicações e triplicações valem para as outras modalidade, em se tratando de consórcio público. A função da concorrência é a contratação de grande monta, ou seja, que movimenta bastante dinheiro, por isso ela tem características marcantes, as quais sejam: a publicidade ampliada em relação as outras modalidades e o formalismo mais rígido possibilitando uma habilitação mais rígida e autônoma. A concorrência está expressa no art. 22, §1º, da Lei n. 8.666/93 (BRASIL, 1993), fato interessante, é que a concorrência pode ser vinculada a natureza do futuro contrato, como a aquisição de bens imóveis, a alienação de bens imóveis — excepcionada a modalidade leilão (art. 19, III, da Lei n. 8.666/93), concessão de direito real de uso, licitações internacionais — com exceção da tomada de preços e do convite, e por derradeiro a concessão florestal (art. 13 da Lei n. 11.284/2006). É o que consta no artigo 23, §3º da Lei n. 8.666/93:   Art. 23, § 3o, A concorrência é a modalidade de licitação cabível, qualquer que seja o valor de seu objeto, tanto na compra ou alienação de bens imóveis, ressalvado o disposto no art. 19, como nas concessões de direito real de uso e nas licitações internacionais, admitindo-se neste último caso, observados os limites deste artigo, a tomada de preços, quando o órgão ou entidade dispuser de cadastro internacional de fornecedores ou o convite, quando não houver fornecedor do bem ou serviço no País.   Existem dois tipos de concorrência, as quais sejam: a concorrência nacional que é conceituada como aquela realizada no território nacional, com apenas empresas nacionais e também a concorrência internacional que é aquela que permite a participação de empresas de outros países, em que o edital deve observar as diretrizes da política monetária e o comércio exterior, além de obedecer o princípio da igualdade em relação aos gravames tributários e pagamentos, de acordo com art. 42, §3 e §4 da Lei 8.666/93. Leia-se: (BRASIL, 1993).               Art. 42 Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atendes às exigências dos órgãos competentes. (…)   2.1 Tomada de Preços A tomada de preços é a modalidade de licitação entre interessados devidamente cadastrados ou que atenderem a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação constante no art. 22, §2º da Lei 8.666/93 (BRASIL, 2018).   Com o objetivo de ampliar a participação de licitantes, a Lei 8.666/93 modificou o conceito de tomada de preços que antes limitava-se para os participantes previamente cadastrados, estando, dessa forma, ausente a universalidade, a modificação da Lei possibilitou que os interessados apresentassem a documentação até o terceiro dia anterior à data do recebimento da proposta. Em relação a análise dos certificados de registros feitos pela comissão de licitação, a fase fica praticamente igual à da concorrência. A tomada de preços é utilizada nas contratações de médio vulto, conforme o Decreto 9.412/2018 a modalidade tomada de preços é escolhida para valores de até 3,3 milhões para obras e serviços de engenharia, para as compras e demais serviços esse valor é de até 1,43 milhão. Observa-se ainda que, para os tipos melhor técnica e técnica e preço o prazo de antecedência para a publicação é de 30 dias e para os demais casos é 15 dias, de acordo com o artigo 21 da Lei de licitações.   2.3 Convite A modalidade de licitação convite é a que exige menos formalismo dentre as demais modalidades, isto se dá pelo fato de ser destinada a contratações de menor vulto (art. 23, I, “a”, e II, “a” da lei 8.666/93). No convite é necessário, no mínimo, três interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados pela unidade administrativa, que afixará, “em local apropriado, cópia do instrumento convocatório e o estenderá aos demais cadastrados na correspondente especialidade que manifestarem seu interesse com antecedência de até 24 (vinte e quatro) horas da apresentação das propostas”, conforme art. 22, §3, da lei 8.666/93 (BRASIL, 1993).   Em relação ao valor o Decreto 9.412/2018 disciplina que a modalidade será convite em obras e serviços de engenharia com valor até 330 mil e para as compras e demais serviços até 176 mil (BRASIL, 2018).   É característica importante do convite a não exigência de publicação de edital, visto que a convocação é por meio de carta-convite enviada com antecedência de 5 dias úteis (art. 21 §2, IV, da Lei 8.666/93). É na carta-convite que são inseridas as regras da licitação.   2.4 Concurso Em primeiro ponto, não se pode confundir concurso público para a contratação de agente públicos com a modalidade de licitação concurso. O principal objetivo da licitação mediante concurso é escolher o trabalho técnico, artístico ou científico, ou seja, o objetivo é de caráter intelectual. Vejamos o conceito de concurso de acordo com o artigo 22, §4, da Lei 8.666/93:   Assim sendo, a Administração pública na modalidade concurso não pretende contratar, mas sim de acordo com as palavras de José dos Santos Carvalho Filho “selecionar um projeto de cunho intelectual e a seu autor conceder um prêmio ou determinada remuneração”. Lembrando que em se tratando de projeto (art. 52, §2, da Lei 8.666/93), a Administração executará somente quando o vencedor autorizar, devendo ser observado o artigo 111 da Lei 8.666/93.   É importante destacar que, nessa modalidade a comissão deve estar apta intelectualmente e também observar todos os critérios possíveis para que não exista desvio de finalidade. O prazo de publicação do resumo do edital do concurso, deve respeitar a regra do artigo 21 da Lei 8.666/93 e ser com antecedência mínima de 45 dias.   2.5 Leilão A modalidade de licitação Leilão é a adotada para a alienação dos bens móveis inservíveis, produtos legalmente aprendidos ou penhorados, e os adquiridos em procedimentos judiciais ou mediante dação em pagamento, conforme o artigo 22, §5ª da lei 8.666/93.   O leilão deve ter ampla divulgação (princípio da publicidade) e antes do processo os bens devem estar devidamente avaliados (princípio da preservação patrimonial dos bens públicos), em relação ao cometimento do leilão pode ser feito por um servidor designado ou por um leiloeiro oficial. Como regra quem “leva” a compra é aquele candidato que ofereceu o maior lance, respeitando a regra do artigo 22, §5º da lei 8.666/93 (BRASIL, 2018).   Outro aspecto que merece destaque é que assim como nas modalidades concurso e convite, a Lei admite a dispensa em alguns documentos na habilitação dos participantes (art. 32, § 1º, da Lei 8.666/93).   2.6 Pregão O pregão é uma modalidade de licitação que não está prevista na Lei de licitações, mas está disciplinado na Lei 10.520 de 2002 e é direcionada para a aquisição de bens e serviços comuns. Nessa modalidade, a disputa pelo fornecimento pode ser feita físico através de propostas e lances em sessão pública ou por meio eletrônico nos termos do Decreto n.º 5.450, de 2005 (BRASIL, 2005).   O pregão é aplicado nos órgãos da administração pública direta, às autarquias, aos fundos especiais, às fundações públicas, às sociedades de economia mista, às empresas públicas e todas as outras entidade que são direta ou indiretamente controladas pela União.   Diferentemente da concorrência, no pregão a fase de julgamento ocorre antes da habilitação, dessa forma os interessados devem apresentar declaração dando ciência que cumprem os requisitos de habilitação e assim poderão entregar os envelopes de proposta e habilitação. Outro ponto de diferença é que somente no pregão a adjudicação é anterior à homologação do procedimento, conforme art. 4º XXI e XXII, da Lei n. 10.520/2002 (BRASIL, 2002).   Nessa modalidade existem propostas escritas e verbais, ou seja, em primeiro momento o pregoeiro julgará a proposta escrita mediante o menor preço e apresentará a ordem de classificação, em seguida, os licitantes poderão apresentar lances verbais, assim como ocorre na modalidade leilão, além disso o pregoeiro poderá negociar diretamente com o participante classificado em primeiro lugar.   Realizou-se uma pesquisa de campo com a finalidade de levantar dados sobre os procedimentos licitatórios publicados no portal da transparência e no site dos munícipios de Cromínia, Itumbiara e Goiânia, analisando o quesito: modalidade predominante. Analisou-se 509 (quinhentos e nove) procedimentos licitatórios realizados nos municípios citados no parágrafo anterior durante os anos de 2018 (dois mil e dezoito) e 2019 (dois mil e dezenove). Desse total, o município de Cromínia realizou 50 (cinquenta) procedimentos, o município de Itumbiara 169 (cento e sessenta e nove) e Goiânia 290 (duzentos e noventa), conforme os dados da tabela 01.   3.1 Modalidade predominante A questão levantada é: qual a modalidade mais utilizada nos municípios de Cromínia, Itumbiara e Goiânia. Para descobrir a resposta desse questionamento, analisou-se cada município separadamente. O pequeno município de Cromínia realizou no ano de dois mil e dezoito 30 (trinta) procedimentos licitatórios e cerca de 73% (setenta e três por cento) das licitações realizadas é na modalidade pregão, já no ano seguinte com 20 (vinte) licitações, observa-se que esse percentual abaixou três pontos, mas ainda no município de Cromínia a modalidade de licitação predominante é o Pregão, conforme exposto no Gráfico 01 – procedimentos licitatórios realizados no município de Cromínia no ano de 2018 e Gráfico 02 – procedimentos licitatórios realizados no município de Cromínia no ano de 2019. A capital do estado de Goiás, Goiânia realizou no ano de 2018 cento e vinte e três procedimentos licitatórios, com a predominância de 83% (oitenta e três por cento) licitações realizadas na modalidade pregão, de acordo com Gráfico 03 – procedimentos licitatórios realizados no município de Goiânia no ano de 2018. Em 2019, o município realizou mais licitações que no ano anterior, porém a modalidade dominante continuou sendo o pregão, conforme Gráfico 04 – procedimentos licitatórios realizados no município de Goiânia no ano de 2019. Visto isso, é necessário buscar um município que encontra-se mediano entre o pequeno município de Cromínia e a grande capital Goiânia, nesse caso foi escolhido o município de Itumbiara que apresentou conclusões semelhantes aos municípios analisados. Em 2018, o município de Itumbiara realizou 104 (cento e quatro) procedimentos, desses 86% (oitenta e seis por cento) na modalidade pregão. No ano de 2019 a porcentagem de pregão chegou a 88% (oitenta e oito por cento), de acordo com Gráfico 05 – procedimentos licitatórios realizados no município de Itumbiara no ano de 2018 e Gráfico 06 – procedimentos licitatórios realizados no município de Itumbiara no ano de 2019.   Conclusão Com os dados do presente trabalho nota-se que o pregão é a modalidade de licitação mais utilizada nos municípios de Cromínia, Itumbiara e Goiânia, isto decorre de suas inovações que permitem mais economia de dinheiro público e de tempo, vejamos algumas dessas inovações de caráter positivo dessa modalidade. A forma eletrônica do pregão possibilita a utilização da internet e dos meio eletrônicos necessários, possibilitando mais transparência que possibilita ao pregoeiro seguir fielmente a impessoalidade, o acompanhamento por tempo real do certame por qualquer interessado, agilidade e facilidade, além disso no pregão eletrônico o número de concorrentes é maior, e consequentemente a proposta mais vantajosa para a Administração é alcançada com êxito. Em relação à economia, o pregão, através da inversão de faces, proporciona que apenas os documentos do licitante classificado em primeiro lugar seja analisado pela, assim a Administração economiza tempo e processo, o que difere das outras modalidades em que em primeiro momento é analisado a habilitação de todos os participantes, e somente após isto são abertas as propostas. Por derradeiro, na modalidade pregão diferentemente das outras modalidades citadas na Lei 8.666/93 não existe a previsibilidade de limites de valores para a sua realização. A única exigência que se insere no pregão é a que os produtos ou serviços devem ser bens e serviços comuns, conforme previsão no artigo 1º da Lei 10.520 de 17 de julho de 2002 (BRASIL, 2002).
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/licitacoes-publicas-teoria-e-pratica/
Eficiência na Concessão e Permissão de Serviço de Transporte Público Coletivo
O presente artigo visa demonstrar a relação entre o princípio administrativo e constitucional da eficiência, inserido no rol de princípios do artigo 37 da Carta Magna, fruto da Emenda Constitucional nº 19/98 e a concessão, a permissão e a prestação do serviço de transporte público estadual e municipal, elencando as principais características e formas pelas quais está presente no transporte público, visto como um serviço essencial à população. O trabalho aborda os meios e técnicas utilizados pelos poderes públicos concedentes e os concessionários e permissionários, com o fim de garantir, com maior efetividade e objetividade, a observância e concretização do princípio analisado, como a adoção de tecnologias já conhecidas dos brasileiros e novos dispositivos (as tecnologias disruptivas), observando as novas regras de privacidade dispostas na legislação brasileira; e métodos no sistema de transporte público atual e a utilização de práticas mais eficientes na formalização do contrato com a iniciativa privada. Intenta-se analisar, por fim, o equilíbrio econômico financeiro e a prevalência do princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses privados da Administração Pública e da iniciativa privada, assim como o impacto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais sobre a prestação desses serviços.
Direito Administrativo
Introdução A Administração Pública é norteada por princípios elencados no Artigo 37, caput da Constituição Federal de 1988, dentre os quais está presente o princípio da eficiência, adicionado pela Emenda Constitucional nº 19/98, tendo em vista a Reforma do Aparelho Administrativo pela qual passava o Estado Brasileiro, cujos objetivos ficaram expressos no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21/09/1995, que originou a emenda acima referida (DI PIETRO, 2017, pg. 37) A reforma acima referida, ocorrida em meados de 1995, trata-se da Reforma do Aparelho do Estado, quando se visava uma administração pública gerencial, mais flexível e eficiente, voltada para o atendimento do cidadão, e não mais para o atendimento voltado para a figura do Estado, como o era na administração pública mais burocrática (no termo mais técnico da palavra, definido por Max Weber)[1], concebida na segunda metade do século XIX, em que muitas vezes o interesse público se confundia com o interesse do próprio aparelhamento estatal (DI PIETRO, 2017, pgs. 38 e 39). O princípio da eficiência impõe ao agente público, nos casos em que os serviços públicos são objeto de contratos de concessão, um modo de atuar e regular as atividades exercidas pelo agente privado que produza resultados favoráveis aos usuários e ao alcance dos fins a que o Poder Público está sujeito a alcançar. O princípio em análise, na concessão e permissão do serviço de transporte público brasileiro se faz presente tanto no momento da firmação do contrato de concessão entre a Administração Pública com a pessoa jurídica ou consórcio de empresas (no caso da concessão) ou pessoa física (no caso da permissão), de forma que é um dos princípios que deram origem ao instrumento e impõe aos contratantes a sua observância, ao fim de levar maior flexibilidade e eficiência a eles próprios; quanto da prestação do serviço contratado pelo concessionário ou permissionário, levando em consideração a eficiência que deve ser levada aos usuários beneficiados, sem deixar de observar o princípio constitucional da legalidade, que limita a flexibilidade adotada pelos contratantes. Nesse contexto, os especialistas em contratos de concessão de serviço público têm inovado no sentido de levar praticidade e flexibilidade aos contratantes, bem como aos usuários, com a instalação de tecnologias disruptivas e outras facilidades, garantindo aos últimos um serviço de transporte adequado, que “de acordo com a definição legal, é o que satisfaz às condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.” (NOHARA, 2013, pg. 160). Além disso, importante fazer uma reflexão, inclusive, quanto ao impacto da Lei Geral de Proteção de Dados, cuja maior parte de seus dispositivos entraram em vigor em 18 de setembro de 2020, sobre a eficiência na prestação desses serviços com a utilização das novas tecnologias. Dessa forma, tem-se como objetivo analisar o princípio da eficiência no Direito Administrativo Brasileiro e sua relação com a concessão e a prestação de serviço de transporte público, identificando tecnologias e facilidades que transformaram esse serviço, tão essencial aos cidadãos brasileiros, mais adequado e eficiente ao Poder Público e aos cidadãos, observando a legislação brasileira de proteção de dados.               O princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, é o mais novo inserido no referido artigo da Carta Magna. Sua inclusão se deu no período da Reforma do Estado, cujos objetivos se apresentavam expressos no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que previa a Reforma do Aparelho do Estado, voltada para tornar a administração pública mais eficiente e zelosa para com o interesse coletivo, em que se denomina de administração pública gerencial, mais eficiente e flexível, abandonando a administração pública burocrática ineficiente, criada na segunda metade do século XIX. Esse modelo de administração “se baseia nos princípios da profissionalização, organização em carreira, hierarquia funcional, impessoalidade, formalismo” (DI PIETRO, 2017, pg. 38). A administração pública gerencial, por sua vez, surge como uma resposta ao desenvolvimento socioeconômico da economia brasileira e mundial, tendo a eficiência da administração pública se tornado essencial, substanciada na ideia da “necessidade de restringir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário (DI PIETRO, 2017, pg. 38).” Neste contexto, o artigo 37 da Carta teve incluído em seus princípios norteadores da Administração Pública o princípio da eficiência, que, segundo José dos Santos Carvalho Filho, “corresponde ao conjunto de métodos empregados pela Administração Pública para alcançar as metas que efetivamente representem a solução de demandas da coletividade.” (CARVALHO FILHO, 2017, pg. 78). Citando Onofre Alves Batista Junior, ainda, Carvalho Filho defende que o administrador deve atuar de forma mais flexível, conforme delimitado pelo princípio da eficiência, sem, contudo, deixar de observar a legalidade e uma fiscalização rígida frente a essa postura mais flexível, de modo que os cidadãos tenham acesso a uma boa administração. (CARVALHO FILHO, 2017, pg. 78). Perante essas premissas quanto à definição de eficiência, faz-se necessário determinar o que seja serviço adequado, cuja finalidade é o que os administradores públicos buscam ao aplicar o referido princípio em suas atividades, sem ignorar o princípio da legalidade. O princípio em análise mostra-se presente na própria definição de serviço adequado, aquele a que o usuário tem direito, uma vez que, como diz Celso Antônio Bandeira de Mello, “a figura estelar em tema de serviço público só pode mesmo ser o usuário, já que o serviço é instituído unicamente em seu prol” (BANDEIRA DE MELLO, 2017, pg. 108). Ele é um importante artifício contra a má administração, uma vez que legitima o controle do exercício da atividade do agente público, tanto pelos cidadãos quanto pelo Poder Público. “ E este controle abrange tanto a competência vinculada, como a discricionária dos agentes públicos. Isso porque o objetivo do princípio da eficiência é a própria satisfação do interesse público.”[2] Em contrapartida à contribuição dos cidadãos aos cofres públicos, estes têm o direito de exigir uma contraprestação que possua uma relação custo/benefício satisfatória, conforme o § 3º, do artigo 37, da Carta Magna, que estabelece a forma legal pela qual os usuários de serviços públicos podem participar da Administração Pública direta e indireta, “isso porque o serviço público e a atividade administrativa do Estado como um todo, deve visar o próprio cidadão”. [3] O serviço adequado é direito dos usuários, como fixamente expressamente no art. 7º, inciso I, da Lei nº 8.987, de 13.02.1995, e representa aquele que satisfaz as condições gerais de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas (Lei nº 8.987/1995, art. 6º, §1º) (grifamos). O tema, porém, será tratado mais profundamente no item 4 do presente trabalho, para que se tenha um foco no princípio na Administração Pública em geral.   Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em sua obra sobre parcerias, discorre sobre a evolução das formas de descentralização administrativa, ideia sobre a qual os serviços públicos no Brasil foram delegados tanto à inciativa privada quanto a empresas estatais. Segundo a autora, a descentralização administrativa caminhou pelo Estado Liberal, em que a atividade estatal se resumia à defesa externa e à segurança interna, tendo-se que o conceito de serviço público ligava-se estritamente à Administração Pública, o que, basicamente, era o critério para separar atividade estatal da privada. Após a fase liberal, os administradores públicos sentiram a necessidade de ampliar as formas de gestão do Estado, tendo em vista as preocupações socioeconômicas que passaram a ter. Assim, passaram a pensar nas ideias de especialização, para que se tivesse melhores resultados; e de “utilização de métodos de gestão privada, mais flexíveis e mais adaptáveis ao novo tipo de atividade assumida pelo Estado” (DI PIETRO, 2017, pg. 62). Com essas novas concepções envolvendo o serviço público, o regime jurídico foi deixando de ser o eixo que separava a atividade estatal da atividade particular, tendo os administradores públicos adotado outras formas de gestão, começando pela delegação dos serviços públicos a empresas privadas, por meio da chamada concessão (DI PIETRO, 2017, pg. 338). Por esse método, o benefício que a Administração Pública tem a seu favor é a própria ideia da eficiência, de modo que o Estado presta o serviço público sem a necessidade de inverter recursos financeiros do Tesouro, por conta e risco do particular. Outrossim, é de se notar que o princípio da eficiência se mostra, também, na concessão de serviços públicos a empresas estatais, de forma que, nela, a Administração Pública “mantém seu poder de controle sobre o concessionário, inclusive na fixação de preços; por outro lado, todos os riscos do empreendimento ficam por conta do concedente (e não mais do concessionário), já que ele é o acionista majoritário da empresa” (DI PIETRO, 2017, pg. 65). O contrato de concessão de transporte público firmado entre uma empresa privada ou consórcio e o Estado apresenta condições que tenham em sua formação a presença do princípio objeto deste trabalho, além do fato de que, como já exposto, a própria concessão mostra-se um ato da Administração Pública influenciado pelo princípio. Dessa forma, cabe analisar a presença deste princípio no próprio contrato de concessão de serviço de transporte público, isto é, de que forma está presente no contrato, observando as condições e benefícios que levam àqueles que o firmam. Um contrato de concessão de serviço de transporte público, como o próprio nome diz, tem por objeto a prestação de serviço público de transporte coletivo. Objetiva transferir os encargos da prestação a um particular (ou consórcio), sob a fiscalização e titularidade estatais. Assim, um contrato de concessão como esse prevê o objeto que será firmado entre os contratantes. Como exemplo, pode-se mencionar o contrato de Concessão da prestação de serviço público de transporte coletivo do município de Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, firmado na data de 27 de abril de 2015, o qual prevê a concessão do serviço em lote único, compreendendo alguns sub-serviços, como o Serviço Especial Ir e Vir, que prevê maior conforto e acessibilidade aos usuários com necessidade especiais, atendendo ao princípio da eficiência que deve ser respeitada pelo Poder Público.[4] A eficiência aparece, ainda, antes mesmo da formalização do Contrato entre o Poder Concedente e a Concessionária, no edital publicado pelo Poder Concedente, no caso em tela, pelo município capixaba, uma vez que no edital encontra-se a modalidade de licitação a ser adotada, visando a preservação do princípio da supremacia do interesse público, qual seja, a prestação do serviço de transporte público de maneira eficiente. Visando a eficiência, ainda, do serviço de transporte público, o contrato de concessão deve ser elaborado sob um valor que não seja oneroso para o Poder Público, mas que prevaleça o interesse público, como no caso do contrato acima referido, cujo valor soma o montante de aproximadamente 615 milhões de reais, para um prazo de 15 anos, podendo ser prorrogado por uma única vez, por igual período. Sobre o prazo da concessão e permissão e sua possível prorrogação, importante mencionar o entendimento da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, na obra específica sobre parcerias com o Poder Público, na qual ela menciona que, embora não haja previsão expressa sobre o prazo dos contratos de concessão na Lei das Concessões, isso não significa que se deve aplicar os limites apontados no artigo 57, da Lei de Licitações, uma vez que a ideia da omissão seria a de não comprometer o orçamentos dos exercícios financeiros subsequentes ao da elaboração do contrato. Os prazos curtos pretendidos pelo legislador, porém, ainda segundo a ilustríssima professora, são, de forma geral, incompatíveis com a concessão de serviços públicos, tendo em vista a necessidade da modicidade e da razoabilidade das tarifas, para o equilíbrio entre a possibilidade dos usuários e as exigências da concessionária, resumidas na obtenção de lucro, no retorno financeiro pretendido com o investimento e a manutenção do serviço adequado prestado, apresentando, assim, a fixação do prazo como elemento essencial ao equilíbrio econômico financeiro e, consequentemente, como instrumento importante para a prevalência do princípio da eficiência no firmamento do contrato, garantindo o referido equilíbrio, e na prestação do serviço público adequado, sem a oneração financeira para os usuários (DI PIETRO, 2017, pg. 134). Os autores Aldemir Berwig e Laís Gasparotto Jalil apontam a presença do princípio da eficiência, ainda, nas licitações públicas, adotadas nas concessões de serviços públicos. Nas licitações realizadas pela Administração Pública, observa-se o excesso de burocratização e o excesso de formalidades legais, o que acaba distanciando o Poder Público Concedente de seu principal objetivo, qual seja, a melhor contratação, e, consequentemente, dificulta a concretização do princípio da eficiência nos atos administrativos da Administração Pública.[5] O contrato acima referido, ainda, contém um elemento importante para a observância do princípio em tela: dos direitos e obrigações dos usuários do serviço de transporte público a ser prestado, resumidos em transporte com segurança, conforto e higiene, respeito pelos servidores que os atendem e a fixação do valor da tarifa em conformidade com a qualidade do serviço (demanda essa, por exemplo, das manifestações populares ocorridas em junho de 2013, iniciadas pelo Movimento Passe Livre, organização não governamental, esses relativos aos direitos); enquanto que as obrigações podem se resumir no pagamento da tarifa correspondente, no zêlo e não danificação dos bens da concessionária e a obediência aos atos administrativos expedidos pela Administração Pública referentes aos serviço prestado, relevando o fato de que o princípio busca os melhores resultados com o menor custo possível e “deve ser visto em face de um interesse maior, o da comunidade”, obrigando o Estado a observar a concretização do princípio na realização de seus atos administrativos, conforme apontado anteriormente.[6] A prevalência do princípio, no contrato de concessão, ainda encontra base no dispositivo das prerrogativas do Poder Concedente, consistidas na intervenção, nos termos das Leis nº 8.666/1993 e 8.987/1995, na declaração da extinção da concessão, nas hipóteses previstas na legislação ou no próprio contrato, em cláusula específica, nas hipóteses  determinadas (como o advento do termo contratual, a encampação ou a caducidade); na fixação de tarifas e revisões contratuais, para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro, já analisado; e, inclusive, de alta relevância, na fiscalização permanente da execução do contrato e do serviço de transporte propriamente dito, zelando pela qualidade, conforto e segurança dos usuários. O contrato de concessão ora analisado, ainda, dispõe sobre um elemento importante para a análise da eficiência no serviço prestado, traduzido na garantia de cumprimento das obrigações contratuais, no caso de descumprimento das condições estabelecidas pela concessionária, por exemplo, de modo a garantir a execução dos serviços prestados pela concessionária da forma e no prazo estabelecidos no contrato firmado, com o foco na prestação de um serviço adequado e eficiente aos usuários. Uma característica dos contratos de concessão em geral, também intrínseca e profundamente relacionado ao princípio administrativo da eficiência, consubstancia-se no poder da Administração Pública de decretar a Caducidade da concessão, como é chamado o descumprimento de uma obrigação nesse tipo de contrato administrativo, e o de Intervenção. Este último poder não possui caráter punitivo, mas sim, mostra-se como uma alternativa na apuração de irregularidade e para a observância do princípio da continuidade do serviço público. As hipóteses que autorizam a intervenção pelo Poder Concedente não estão elencadas em rol algum da Lei nº 8.987/1995, mas seu artigo 32 estabelece que pode ser realizada no momento em que ocorrer o descumprimentos de alguma norma contratual ou legal, ou nos casos em que o serviço não esteja sendo prestado de forma adequada, remetendo a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao artigo 6º, §1º, que dispõe sobre a satisfação pelo serviço prestado pela necessidade de um serviço regular, contínuo, eficiente, seguro, atual, geral, prestado com cordialidade e modicidade das tarifas (DI PIETRO, 2017, pg. 103). Nesse contexto, ainda, o artigo 78, da Lei nº 8.666/1993, estabelece os motivos para rescisão do contrato, de forma unilateral pela Administração Pública, elencados nos incisos I a XII e XVII, sem a necessidade de o Poder Público mover ação judicial contra o particular (DI PIETRO, 2017, pg. 332). Em atenção ao princípio da eficiência e ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro, a intervenção pela Administração deve observar também o contraditório, ao instaurar o processo administrativo para a apuração das referidas irregularidades, atentando-se para os direitos da concessionária firmados no contrato, para que esta não tenha prejuízo causado pela atuação do Estado. Aproximando-se do final do presente item, a relação entre o princípio da eficiência e a formalização dos contratos de concessão em geral pode ser verificada pela possibilidade da adoção da chamada Subconcessão, prevista no artigo 26 da Lei das Concessões, desde que a autorização para tal seja expressa pelo poder concedente. Esta modalidade de contrato tem a mesma natureza jurídica e pública da concessão, e implica a outorga de poderes antes conferidos ao concessionário à subconcessionária, como instituir servidões, gerir recursos públicos utilizados na prestação dos serviçoes, entre outros. No caso da concessão de serviço de transporte público, por exemplo, a concessionária, com o fim de oferecer a seus usuários o melhor serviço com os recursos disponíveis, em contraprestação à tarifa paga por esses cidadãos e sem acarretar prejuízos econômicos financeiros com os custos da atividade de mobilidade, pode se valer da subconcessão de uma parte das linhas de ônibus no município em que atende (DI PIETRO, 2017, pg. 130). No caso concreto, referente ao município de Cachoeiro de Itapemirim, estado do Espírito Santo, a Administração resolveu pela vedação à subconcessão dos serviços de transporte firmados no contrato nº 056/2015, por algum motivo não descriminado no acordo estabelecido. Por fim, a concretização do princípio da eficiência mostra-se presente, no contrato exemplo utilizado no presente trabalho, na Cláusula XIX, relativa à Alteração Contratual, facultada ao poder concedente de forma unilateral, na intenção de prevalecer o interesse coletivo; ou por vontade das partes, com o objetivo de manter o equilíbrio econômico-financeiro existente no momento da celebração do contrato com a empresa concessionária. O princípio da eficiência, em suma, deve estar presente nos contratos de concessão de serviços públicos, no geral, e especificamente para o caso em análise, serviço de transporte público municipal, de forma a garantir aos usuários a prestação de um serviço adequado, nos termos do artigo 6º, §1º, inciso I; o direito à fiscalização sobre a prestação do serviço; o direito ao pagamento de tarifas módicas, garantindo ao concessionário a justa remuneração, possibilitando o melhoramento e a expansão do serviço e lucro, sendo acessível e justo também para os usuários. Além dos direitos voltados para os usuários dos serviços, o contrato de concessão deve apresentar os direitos e obrigações também da Administração Pública concedente do serviço prestado e do agente privado, vencedor do certame criado para a formalização do contrato de concessão, de modo que se respeite o direito do poder de controle e intervenção que possui o poder concedente, para garantir a supremacia do interesse coletivo; e que se observe o direito da iniciativa privada à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro firmado no contrato, inclusive quando ocorrer uma alteração unilateral pelo Poder Público que venha causar algum prejuízo nos referidos moldes. A observância aos direitos e obrigações de todas as partes, portanto, é essencial para a concretização do princípio administrativo e constitucional da eficiência, de modo que torna mais adequado o serviço prestado, garantindo sua continuidade, eficiência e, inclusive, sua melhoria e aprimoramento, conforme a adoção de novas tecnologias pelos concessionários. É o que se verá a seguir, de maneira específica para o serviço de transporte público.   O princípio constitucional da eficiência, conforme apontado, mostra-se presente, nos contratos de concessão de transporte público, na melhoria e aprimoramento do serviço concedido, de modo que o poder concedente e a concessionária devem respeitar o direito dos usuários de a eles ser oferecido um serviço adequado, regular, contínuo, atual, compatível com a tarifa módica a que são obrigados a pagar quando o utilizam e que observe seus direitos enquanto titulares de dados pessoais. Neste contexto, a Administração Pública e os concessionários e permissionários têm implantado novas tecnologias, como as tecnologias disruptivas, com o fim de aprimorar os serviços de transporte coletivo de passageiros,  garantindo aos usuários um serviço satisfatório em relação ao que recebem com o pagamento das tarifas, de modo a evitar que o serviço seja paralisado por algum descumprimento contratual ou má prestação do serviço contratado pela concessionária/permissionária, fazendo valer os princípios da continuidade, da regularidade, da atualidade e da eficiência do serviço de transporte coletivo no país, sem ignorar a privacidade e a proteção de dados pessoais desses usuários. O município de Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, cujo contrato de concessão de transporte coletivo, por exemplo, visando à melhoria e à eficiência do serviço prestado iniciou no mês de março de 2017 a implantação de aparelhos de GPS em boa parte da frota de ônibus urbano na cidade, sistema este que possibilita ao usuário de serviço de transporte monitorar as linhas que operam via internet, em tempo real, a qualquer hora do dia. Essa melhoria, inclusive, está prevista no contrato de concessão nº 056/2015, exaustivamente citado no presente artigo, na Claúsula X (Das Obrigações da Concessionária), subitem 10.1.17, pelo qual o concessionário está obrigado a “promover a atualização e o desenvolvimento tecnológico das instalações, equipamentos e sistemas, com vistas a assegurar a melhoria da qualidade do serviço e a preservação do meio ambiente, nos termos da legislação pertinente”.[7] A instalação fora elogiada, à época, pelo prefeito do município Victor Coelho (PSB), que disse que tal iniciativa possibilitaria uma nova forma de prestação de serviços na cidade. Houve a realização, também, de um diagnóstico do sistema de transporte, elaborado pelo diretor-presidente da Agersa – Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos Delegados, à época, que levantou os benefícios a serem levados ao município, como o menor tempo de espera nos pontos, dada a possibilidade de previsão da chegada dos ônibus a seus locais,  escolha da melhor linha para seu destino, no menor tempo possível e com a utilização de cada vez menos recursos públicos, dado a facilidade de locomoção com o uso de tal tecnologia disruptiva.[8] Outra tecnologia disruptiva muito utilizada atualmente, em âmbito mundial, é o uso do aplicativo Moovit, que, de forma semelhante ao GPS instalado nos ônibus, permite o planejamento de viagens de transporte coletivo pelos usuários e o conhecimento da localização dos ônibus, do tempo da viagem e dos horários de cada linha, acarretando nos benefícios acima apontados, provocados pela instalação de GPS.[9] Ademais, outro dispositivo eletrônico utilizado por estados e munícipios no país é o sistema de bilhetagem eletrônico, pelo qual os usuários efetuam o pagamento das tarifas por um cartão magnético e validadores instalados no transporte. É o que acontece na cidade de Campo Grande, no estado de Mato Grosso do Sul, por exemplo, em que 100% das tarifas são pagas com o cartão. Esta tecnologia também é bastante presente no estado de São Paulo e na capital São Paulo, em que são utilizados o cartão BOM, para as linhas intermunicipais de ônibus e Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), e o cartão Bilhete Único (BU), utilizado para as linhas que operam no munícipio de São Paulo e no Metrô, que podem ser recarregados por meio de pagamento efetuado em terminais disponibilizados nas estações ferroviárias e do Metrô. A empresa que realiza a recarga do Bilhete Único, a Rede Ponto Certo, trabalhou, além disso, com um relógio de pulso que permitia o pagamento da passagem apenas com o gesto do passageiro encostar o dispositivo no leitor do validador, tecnologia esta chamada de Watch2Pay, utilizada também em países como Turquia, Reino Unido e Rússia, sede da Copa do Mundo de Futebol de 2018.[10] Em uma pesquisa realizada na cidade de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2013, publicada na revista Gestão Contemporânea,[11] foram identificados problemas relativos à mobilidade urbana na cidade e as formas de resolução. Na pesquisa qualitativa, foram entrevistados especialistas das áreas de Tecnologia da Informação e de Mobilidade Urbana, todos eles especialistas de órgãos públicos do Rio Grande do Sul e sua capital. Os principais problemas apontados pelos especialistas foram a falta de planejamento a longo prazo, o crescimento acelerado da cidade, o aumento da frota veicular e o excesso o uso de transporte individual. Na pesquisa, ainda, frente a esses problemas, os especialistas também indicaram alternativas de melhorias para a mobilidade urbana e para o uso do transporte coletivo urbano no município. Entre elas, destacam-se o uso das TIMS – Tecnologias de Informação Móveis e Sem Fio, como os smartphones, pelos quais ocorreria uma troca mais eficiente de informações e, consequentemente, uma redução do número de deslocamentos pelos usuários de ônibus (e até mesmo de usuários de transporte individual), gerando um gasto menor dos recursos disponibilizados, conforme apontou o especialista EMU4. [12] Outras propostas indicadas foram o uso de informações antecipadas, mediante o uso de GPS nos ônibus e o uso de painéis de mensagens variadas, como ocorre em outras cidades do país, como São Paulo, em que é possível saber a localização do ônibus a ser utilizado por meio de aplicativos instalados nos aparelhos móveis (como Google Maps e Moovit); ou, ainda, a utilização dos painéis informativos instalados em grandes pontos de ônibus na cidade, como os da Avenida Nove de Julho, auxiliando os usuários a pouparem seus tempos e auxiliarem no gasto cada vez menor de recursos desnecessários.[13] A instalação de novas tecnologias e melhorias nos transportes coletivos, portanto, é uma forma de proteção ao direito do usuário de a ele ser garantido um serviço público de transporte adequado, que satisfaça as condições regularidade, continuidade, eficiência e atualidade, conforme a professora Dinorá Adelaide Musetti Grotti, baseada na Lei Federal nº 8.987/1995, artigo 6º, §1º, citando, ainda, a Lei paulista nº 7.835/1992, que define o serviço adequado.[14] A proteção ao usuário mostra-se presente, nesse sentido, com o fato de que, com o avanço das tecnologias no mundo, os poderes concedentes e os concessionários e permissionários do serviço de transporte público podem garantir um serviço atual, na primeira vista, dada sua modernidade; um serviço contínuo, que evita a paralisação por motivos técnicos e operacionais, o que garante também seu caráter regular; e, claro, eficiente, compatível com a tarifa paga pelos usuários, sem acarretar em prejuízo econômico financeiro à iniciativa privada que administra o serviço e à Administração Pública, com recursos desnecessários. Mais recentemente, porém, acompanhando a realidade regulatória mundial sobre os impactos da tecnologia na privacidade dos usuários e cidadãos, o Brasil editou, em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que entrou em vigor, após diversas alterações legislativas e presidenciais em seu texto, em setembro de 2020. A nova lei, dispõe algumas regras voltada à Administração Pública no tratamento de dados pessoais de cidadãos, usuários de serviços públicos, incluindo os serviços de transporte público coletivo estaduais e municipais. Entre essas normas, podem ser destacadas, na relação existente as concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a Administração Pública, o disposto no artigo 26, §1º, que veda ao Poder Público a transferência a entes privados de dados pessoais de cidadãos constantes em suas bases de dados, exceto nos casos de execução descentralizada de atividade pública que exija a transferência. É o caso, portanto, das empresas prestadoras dos serviços de transporte coletivo, que necessitam dos dados dos cidadãos-usuários para a efetiva prestação dos serviços públicos na utilização do sistema de bilhetagem eletrônica, por exemplo. O mesmo dispositivo, entretanto, prevê a possibilidade de tratamento sem o consentimento do cidadão quando a transferência for respaldada em contratos, convênios ou instrumento congêneres, o que, nos dizeres de Francisco Octavio de Almeida Prado Filho, representa uma obscuridade na lei, que “poderia ser mais específica, indicando com maior clareza os limites de tais contratos, convênios ou instrumentos congêneres” (PRADO FILHO, 2020, pg. 56). Tal questão, juntamente com outras críticas existentes sobre a aplicação da lei no Setor Público, porém, fica para um próximo debate, para que a discussão no presente momento se concentre nos limites impostos pela lei ao tratamento de dados pessoais na prestação de serviços públicos por entes privados. Rocha Sales e Camila Akemi Tsuzuki, por sua vez, alertam para o fato de que o Estado, na prestação de serviços públicos, deve observar os princípios da boa-fé e os demais previsto no artigo 6º da LGPD, dentre os quais se destacam o princípio da finalidade, pelo qual “o tratamento de dados pessoais deve sempre ser realizado para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular”; o da adequação, pelo qual os dados devem ser “compatíveis com a s finalidades informadas” ao usuário; e ao princípio da necessidade, segundo o qual os dados são “limitados ao mínimo necessário ao fim a que se propõe” (ROCHA SALES, TSUZUKI, 2020, pg. 79). As autoras, ainda, lembram o seguinte: “Em coerência com o princípio da finalidade e da necessidade, a Administração deve garantir aos titulares a exatidão, clareza, relevância e atualização dos dados (princípio da qualidade dos dados), além do direito do cidadãos de conhecer a integralidade dos dados pessoais que estão em seu poder, inclusive quanto à forma e duração de seu tratamento (princípio do livre acesso), garantindo informações claras, precisas e acessíveis sobre a realização do tratamento e respectivos agentes de tratamento (princípio da transparência)” (ROCHA SALES, TSUZUKI, 2020, pg, 79).           Importante, por fim, colocar que a observância das novas normas fixadas pela LGPD nos contratos administrativos gera um custo para as empresas e órgãos públicos, de forma que essa realidade exige dos agentes de tratamento de dados pessoais “a implantação, operação e manutenção de toda uma infraestrutura (administrativa, operacional e de pessoal) necessária para o cumprimento dessa tarefa, que obviamente, nesse setor em particular, só pode ser conseguida a partir de tecnologias atuais e modernas” de alto valor (DAL POZZO, FACCHINATTO, 2020, pg. 448). Dessa forma, novos custos de adequação surgirão para as empresas privadas prestadores de serviços de transporte público coletivo, o que “afetará, inclusive, a dinâmica do equilíbrio econômico-financeiro do contrato” (DAL POZZO, FACCHINATTO, 2020, pg. 448). Nesse sentido, é necessário que as empresas privadas e os entes públicos observem tais normas e tal impacto na realidade financeira para a prestação desses serviços, a fim de que o princípio da eficiência seja observado durante a prestação, mantidos os princípios da regularidade, continuidade, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.   Conclusão Em suma, o princípio administrativo da eficiência, elencado no rol de princípios constitucionais do artigo 37 da Carta Magna, criado pela Emenda Constitucional nº 19/98, que no ano de 2018 completou 20 anos na data de 04 de junho, no contexto da reforma do aparelho do estado pela qual estava passando a Administração Pública Brasileira, passando da reforma burocrática (na concepção positiva do termo, criada por Max Weber) para a reforma gerencial, mostra-se como um princípio essencial na defesa dos direitos dos usuários de serviços públicos em geral e, mais especificamente, dos usuários de transporte coletivo no país, seja nos âmbitos municipal e estadual ou no federal, de modo que tal princípio está intimamente ligado ao conceito de serviço adequado fixado na Lei de Concessões, a Lei Federal nº 8.987/1995, fixado em seu artigo 6º, §1º, qual seja aquele que “satisfaz as condições de: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”. Em termos de lógica, segundo aborda Dinorá Grotti, “se esse diploma legal estabelece as qualificações para caracterizar o serviço público, a ele aplicáveis enquanto objeto de concessão ou permissão, tais índices de exigência também devem prevalecer na prestação de serviços efetuada diretamente pelo poder público”[15], sendo aos usuários, portanto, garantido seu direito de terem um serviço adequado e eficiente, em conformidade com o valor da tarifa que devem pagar, seja efetuado pela iniciativa privada, seja pela Administração Pública, em conformidade ao valor pago nas tarifas por eles sustentado. O princípio relaciona-se também, igualmente demonstrado no presente trabalho, com a formalização dos contratos de concessão e permissão e, inclusive, antes de sua formalização, no momento do processo licitatório, antes do conhecimento do vencedor do certame, de forma ao poder público ter um certame mais eficiente, da forma mais justa e imparcial possível com o dispêndio do menor gasto possível. Quando da formalização dos contratos, por sua vez, a eficiência deve ser observada na disposição dos direitos e obrigações dos usuários, do poder concedente e do concessionário ou permissionário, com o intuito de oferecer aos usuários um serviço adequado, sempre atualizado e eficiente; de oferecer ao poder público condições de garantir a prevalência do interesse público sobre o privado, por meio, por exemplo, dos poderes de Controle e Intervenção, quando ocorrer uma irregularidade ou descumprimento de uma norma contratual pelo concessionário, fazendo-se possível concretizar o princípio da legalidade, na presença de mecanismos mais eficientes; e de garantir à concessionária o direito ao equilíbrio econômico-financeiro, em conformidade com o investimento efetuado no contrato com a Administração Pública e compatível com o valor que recebe mediante o pagamento das tarifas pelos usuários; direitos e deveres esses presentes no contrato de concessão do serviço de transporte coletivo do município de Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, firmado entre a Prefeitura Municipal de Cachoeiro de Itapemirim – ES e a concessionária vencedora do certame licitatório CONSÓRCIO NOVOTRANS, em que atua como órgão regulador a Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos Delegados – AGERSA. Em atenção ao princípio da eficiência e à obrigação dos prestadores do serviço de transporte público coletivo de oferecem um serviço atualizado, regular e contínuo, o Poder Público e as empresas concessionárias têm, nos últimos anos, implantado tecnologias para o aprimoramento do serviço, como o uso de aplicativos instalados nos aparelhos móveis dos usuários, como os smartphones, tablets e notebooks, como o Moovit, ou até mesmo a instalação de GPS nos ônibus, que podem ser localizados pelo aplicativo do Google Maps. Além dos aplicativos, outros mecanismos são utilizados pelos administradores desse serviço tão essencial para os cidadãos brasileiros, como a utilização de painéis informativo nos pontos de ônibus, pelos quais os usuários podem saber o tempo de espera de cada linha e o tempo trajeto, como os que existem nos pontos de ônibus da Avenida Nove de Julho, na cidade de São Paulo, SP; e a utilização de cartões magnéticos e relógios eletrônicos usados para o pagamento das tarifas, existentes também na cidade de São Paulo, e já existentes em outros países, como a Rússia, país sede da última Copa do Mundo. Essas modernidades de transporte, inclusive, são objetos de estudo e pesquisas de especialistas em mobilidade urbana, no intuito de aferirem o melhor tipo de serviço de transporte e as formas de se obtê-lo, como levantado pelo grupo de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em pesquisa publicada na revista Gestão Contemporânea, na edição de julho/dezembro de 2013, em que apontaram os principais problemas da mobilidade urbana na capital gaúcha e as alternativas mais bem-vindas pelos usuários para sua melhoria, como a utilização de GPS nos ônibus, para uma melhor previsão do tempo de espera nos pontos de ônibus, do tempo de viagem das linhas e das condições do trânsito na cidade, fazendo esses usuários terem a possibilidade de realizarem suas viagens no menor tempo possível, acarretando aos cofres públicos e do concessionário menor custo com a operação na cidade, garantindo-lhes um serviço adequado cada vez mais adequado e eficiente, conforme determina a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, pelo qual elenca os princípios constitucionais a serem observados nos atos administrativos pela Administração Pública, e a Lei das Concessões nº 8.987/1995, que define, em seu artigo 6º, §1º, o conceito de serviço adequado, baseado nas ideias da regularidade, modicidade das tarifas, continuidade, atualidade e eficiência, um direito que deve ser garantido aos usuários pela Administração Pública e pelas empresas concessionárias e permissionárias. Tais serviços, no entanto, devem observar as novas normas fixadas na legislação pátria sobre a privacidade e proteção de dados pessoais dos usuários cidadãos, sobre tudo o que dispõe os artigos direcionados expressamente ao Poder Público e às prestadoras de serviços públicos, bem como os princípios norteadores da LGPD, de modo a assegurar aos usuários um serviço de transporte coletivo estadual e municipal que preze pela eficiência e demais princípios assegurados na Carta Magna, frente à alteração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos provocado pelo advento da lei e consequente alteração no valor pago às empresas privadas que atualizam suas tecnologias a fim de tratarem adequadamente os dados desses cidadãos, como se tal mudança fosse tratada como uma verdadeira “receita acessória” nesses contratos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/concessao-e-permissao-de-transporte-publico/
Direito Administrativo de Emergência e Covid-19: A responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia
O presente artigo apresentou como objeto de análise a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia causada pela Covid-19. Para tanto, a presente pesquisa desenvolveu-se de modo teórico. A primeira seção tratou da definição de parecerista e parecer jurídico analisando precedentes do STF a respeito do tema e sobre uma possível superação (overruling) de seus motivos determinantes com a eminente entrada em vigor da “Nova Lei de Licitações”[i]. Na seção seguinte, tratamos do regime complexo o qual se submete o advogado público e a definição dos elementos “dolo” e “erro grosseiro”. Na terceira seção, tratamos sobre o “Direito Administrativo de Emergência” advindo da pandemia da Covid-19 e seus impactos na responsabilidade do parecerista público. Em sede conclusiva, chegamos a três parâmetros especiais que devem ser considerados na análise da responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19): a) a análise deve se ater exclusivamente às questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade; b) o atendimento de orientações internas fixadas pelo próprio órgão e c) o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo a ser levado como critério de ponderação na análise da responsabilidade.
Direito Administrativo
Introdução Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o estado de pandemia provocada pelo novo coronavírus (WHO, 2020), desafiando o Estado a lidar com segurança e cautela no tratamento das relações jurídicas preexistentes e das que serão formadas durante o período de excepcionalidade. As atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pela advocacia pública são essenciais no contexto de crise, tendo em conta sua indispensabilidade ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. As tomadas de decisões em caráter de urgência exigem uma advocacia pública com robustez institucional e segurança para analisá-las segundo os parâmetros de legalidade e evitar eventuais práticas criminosas e de improbidade administrativa, a serem praticadas pelos ordenadores de despesa de má-fé. Nesse contexto, merece reflexão acadêmica o estado de indefinição na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União sobre a responsabilidade do advogado público na emissão dos pareceres jurídicos quando analisadas em um contexto de excepcionalidade como o causado pela Covid-19. O problema de pesquisa trazido pelo presente trabalho diz respeito a definição de critérios objetivos para se analisar a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia. Não incorremos em exposições que discutam as medidas estatais de restrição de liberdade (requisição administrativa, lockdown etc.). Ater-nos-emos exclusivamente às delimitações da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade para finalmente se chegar em sua análise sob o contexto de pandemia causada pela Covid-19. Registre-se, agora em sede de justificativa do tema, fazer menção a experiência como estagiário da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa de Cidadania de Caruaru, Pernambuco, que detém atribuições na Curadoria do Patrimônio Público e Probidade Administrativa, o qual nos permitiu refletir de um ponto de vista axiológico as delimitações da responsabilidade do parecerista, devendo essa ser ponderada com cautela no contexto de excepcionalidade causado pela Covid-19. O objetivo geral do presente trabalho foi discorrer sobre a responsabilidade do parecerista em tempos de pandemia. Os objetivos específicos foram delinear critérios objetivos para afastar a imprecisão jurisprudencial da análise da configuração da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade, notadamente pela interpretação do conceito jurídico indeterminado “erro grosseiro” e identificar meios de analisar, com segurança jurídica, a responsabilidade do parecerista no contexto de pandemia gerado pela Covid-19. Para tanto, a presente pesquisa desenvolveu-se de modo teórico, dedicando-se ao estudo, análise e comparação entre as teorias doutrinárias, precedentes do Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Contas da União, bem como legislação envolvendo a interpretação de normas de Direito Público e a legislação e atos normativos envolvendo a Covid-19. As fontes de pesquisa utilizadas foram a documental e a bibliográfica. O tipo de abordagem utilizado foi de pesquisa qualitativa, reunindo fundamentos constitucionais, doutrinários e jurisprudenciais para se chegar aos resultados. Assim, o trabalho desenvolveu-se da seguinte forma: inicialmente, na primeira seção, definimos a noção de parecerista e parecer jurídico. Investigamos o conceito, natureza jurídica e classificações dos pareceres jurídicos, apresentando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Defendemos a superação da discussão quanto à existência de pareceres vinculantes no Brasil a partir da entrada em vigor da “Nova Lei de Licitações”[ii]. Na segunda seção, abordamos a existência de um regime jurídico complexo ao qual se submete o advogado público e a consagração dessa posição com o novo art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, incluído pela Lei nº 13.655, de 2018. Tratamos sobre o conceito de dolo e erro grosseiro, nos aprofundando sobre as divergências internas na interpretação do que é “erro grosseiro” à luz da jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Buscando tratar a matéria com uma abordagem inovadora, buscamos fazer proposições jurídicas quanto à interpretação de erro grosseiro. Após fixar as premissas e pontos de partida quanto a responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade, adentramos na responsabilidade do parecerista público em tempos de Covid-19. Na terceira seção, contextualizamos os impactos do Covid-19 na ordem jurídica vigente, desenvolvendo um “Direito Administrativo de Emergência” que exige do parecerista público, soluções inovadoras e proativas na tomada de decisões da administração pública durante esse período de excepcionalidade. Ao mesmo tempo, como dito em linhas translatas, o advogado público precisa exercer suas atividades com segurança e conforto, de modo que desenvolvemos três parâmetros especiais a serem avaliados na análise da configuração dos pressupostos da responsabilidade do advogado público no exercício de sua atividade consultiva em tempos de Covid-19. Em sede conclusiva, defendemos a importância institucional da advocacia pública como função essencial à Justiça e ao Estado Democrático de Direito, definimos nossa interpretação da jurisprudência do STF e TCU à luz da ordem jurídica vigente (2020) e os contornos jurídicos de erro grosseiro e propomos três parâmetros objetivos para a análise da configuração da responsabilidade civil no contexto de pandemia causada pela Covid-19.   Por vocação constitucional, a Advocacia Pública recebeu seção específica dentro do capítulo das funções essenciais à Justiça, cabendo a seus membros, a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas previstas no Texto Maior: União, Estados e Distrito Federal. Em virtude do princípio federativo, os Municípios, que detém capacidade de autoadministração, poderão instituir em suas esferas a carreira da advocacia pública para servidores de carreiras, facultando-lhe também a contratação de advogados privados para que desempenhem suas funções.   À vista da ordem constitucional vigente, o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto defende como adoção dos seguintes princípios constitucionais informativos da Advocacia de Estado: essencialidade, institucionalidade, igualdade, unidade, organicidade unipessoal, independência funcional, inviolabilidade, autonomia administrativa e autonomia de impulso. (MOREIRA NETO, 2018).[iii]   A abrangência das atribuições constitucionais da advocacia pública é ampla e inclui em quase sua completude toda a organização da Administração Pública no Brasil, nas linhas tracejadas pelo Decreto-lei 200/1967, de modo a excluir apenas as sociedades de economia mista e as empresas públicas, por não ostentarem a natureza pública. Confirmando esse entendimento, em 2019, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5262, firmou orientação no sentido de que o art. 132 da Constituição Federal estabeleceu a unicidade de representação judicial e de consultoria jurídica para administração pública direta centralizada e também para a administração direta descentralizada (ou indireta), que abrange as autarquias e fundações públicas. Assim, ao estruturar a Advocacia Pública e conferir-lhe a unidade de representação judicial e consultoria jurídica para a administração pública direta e direta e descentralizada, no âmbito federal e estadual, a ordem constitucional vigente apresentou significativa mudança em relação ao regime anterior, onde o Ministério Público desenvolvia as referidas atividades.   Em relação a primeira atribuição constitucional da advocacia pública – a representação judicial dos respectivos entes federados, convém pontuarmos que o advogado público que atua perante o Poder Judiciário está presenteando a Fazenda Pública, em virtude da teoria do órgão. Sobre o tema, saudosas são as lições de Leonardo Carneiro Cunha, fazendo referência ao clássico Pontes de Miranda (grifos do autor):   Na verdade, a Procuradoria Judicial e seus procuradores constituem um órgão da Fazenda Pública. Então, o advogado público quando atua perante os órgãos do Poder Judiciário é a Fazenda Pública presente em juízo. Em outras palavras, a Fazenda Pública se faz presente em juízo por seus procuradores. Segundo clássica distinção feita por Pontes de Miranda, os advogados públicos presentam a Fazenda Pública em juízo, não sendo correto aludir-se à representação. (CUNHA, 2019, p. 06)   Sob outro prisma, interessa-nos, para o presente trabalho, tratar da segunda atividade atribuída constitucionalmente aos advogados públicos: a consultoria jurídica pública. A esse respeito, sobrevela registrar o magistério de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:   Por caber constitucionalmente aos Advogados de Estado a função constitucional de consultoria jurídica pública, os atos de natureza opinativa por eles praticados – denominados Pareceres jurídicos – constituem, em consequência, um tipo constitucional de atos próprios e deles exclusivos. (MOREIRA NETO, 2008, p. 105).   Com efeito, quando o advogado público, na condição de consultor da respectiva unidade federada, emite opiniões técnico-jurídicas, que podem ou não ser consideradas para tomada de decisões dos consultores, o faz mediante a elaboração de um parecer jurídico – tipo constitucional de ato próprio, como destacado alhures. Implica-se dizer então, que o advogado público que emite opiniões técnico-jurídicas, no exercício de consultoria de uma unidade federada, coincide com a noção de parecerista público. Assim, parecerista público é o advogado público que emite opiniões técnico-jurídicas, no exercício de consultoria da União (no caso da Advocacia-Geral da União), dos Estados e Distrito Federal (no caso dos Procuradores do Estado e do Distrito Federal) ou dos Municípios (no caso dos Procuradores Municipais ou advogados privados, que entendemos ser agentes públicos por equiparação[iv]). Superada a definição da expressão parecerista público e seu tratamento constitucional, antes de adentrar propriamente no mérito de sua responsabilidade civil, convém pontuarmos algumas considerações sobre o conceito, natureza jurídica e espécies de parecer.   1.1 Parecer jurídico: conceito, natureza jurídica, espécies e impactos da “Nova Lei de Licitações” na matéria Conforme já narrado em linhas translatas, o parecer é uma peça onde se emite uma opinião técnica, que a princípio, não apresenta manifestação de vontade. Dentro dessa compreensão, cabe-nos investigar o conceito e natureza jurídica de parecer jurídico sob a ótica do regime jurídico-administrativo.   A esse respeito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 311) conceitua o instituto como “o ato pelo qual os órgãos consultivos da Administração emitem opinião sobre assuntos técnicos ou jurídicos de sua competência”. Assim, a autora, em obra recente, classifica os pareceres como atos de opinião, o que a princípio, desclassificaria o parecer como ato administrativo, já que dele não se produziria nenhum efeito jurídico (DI PIETRO, 2018).   No mesmo sentido acima transcrito, Hely Lopes Meirelles leciona que:   O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva. (MEIRELLES, 2013, p. 204)   De tal entendimento não diverge a orientação ministrada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 24.073-3/DF, com julgamento ocorrido em 06 de novembro de 2002.[v]   No caso em concreto (STF, MS 24.073/DF), discutia-se a possibilidade do Tribunal de Contas da União responsabilizar, solidariamente com o administrador, o advogado que, chamado a opinar, emitiu parecer técnico-jurídico sobre a questão a ser decidida, no caso, a contratação direta pela estatal (Petrobras), de determinada empresa de consultoria internacional. Nos termos do voto do relator Ministro Carlos Velloso, o parecer “nada mais é do que a opinião emitida pelo operador do direito, opinião técnico-jurídica, que orientará o administrador na tomada da decisão”. A conclusão que se chegou a Suprema Corte, no julgamento do MS 24.073/DF, era que, tendo em conta a natureza opinativa do parecer, o parecerista só poderia ser responsabilizado no caso de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa, em sentido largo. Impõe-se acentuar, contudo, que o Pretório Excelso, no julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631-6/DF, julgado em 09 de agosto de 2007, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, revisou sua orientação e passou a admitir a possibilidade de responsabilização do parecerista pela emissão de pareceres vinculantes[vi]. No caso sob luzes (MS 24.631-6/DF), foi impetrado o mandamus em face de ato do Tribunal de Contas da União, que elencou procuradores autárquicos entre os responsáveis em processo administrativo daquele órgão. Sustentaram os impetrantes, violação de dispositivos da Lei nº 8.443, de 1992, por extrapolação das atribuições do TCU, bem como a violação de dispositivos constitucionais e legais pertinentes ao exercício das atividades de advocacia, especialmente no tocante à advocacia pública. O Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto (MS 24.631/DF), reconheceu que, sem embargo do entendimento manifestado pelo STF anteriormente (MS 24.073/DF), a obrigatoriedade ou não da consulta tem influência decisiva na fixação da natureza do parecer. De tal arte, com base na doutrina francesa de René Chapus, classificou a natureza do parecer em (i) facultativa, (ii) obrigatória ou (iii) vinculante. Vejamos:   Assim, poder-se-ia dizer que:   (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo;   (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer;   (iii) mas quando a lei estabelece a obrigação de ‘decidir à luz de parecer vinculante’ (décidir sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir.” (STF. MS 24.631-6/DF. Relator: Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 09/08/2007, publicado DJe em 01/02/2008.)   O Min. Joaquim Barbosa vai além, buscando, em nosso entender, uma nítida superação do precedente invocado, ao relativizar o caráter opinativo do parecer, de modo que, na estreita da classificação de Chapus. Sustentamos o alegado quando interpretamos trecho do voto do eminente Ministro ao dispor que se tratando de parecer de caráter vinculante, há efetiva partilha do poder decisório, de modo a existir maculação, por vício de competência, do ato administrativo expedido sem a observância do chamado ‘avis conforme’ nos casos em que a lei exige.   Sem embargo da ratio decidendi invocada, o voto do Min. Joaquim Barbosa foi pela concessão do writ (STF, MS 24.631/DF). Entendeu que o entendimento demonstrado nas informações do TCU, uma concepção de “causalidade perversa, com a responsabilização de todos aqueles que ‘potencialmente’ tenham dado ensejo à irregularidade verificada na auditoria”. De tal arte, entendeu que o TCU não conseguiu demonstrar a culpa ou seus indícios, e sustentou que não se afastou do entendimento manifestado no MS 24.073.   O que se deve aquilatar, contudo, que o que mais chamou a atenção da doutrina, quando do julgamento do MS 24.631/DF, foi acerca da classificação doutrinária de Rene Chapus. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal também julgou o Mandado de Segurança nº 24.584/DF no dia 09/08/2007, de relatoria do Min. Marco Aurélio. Entendeu-se, na ocasião, que a manifestação técnica solicitada na forma do art. 38, VI e parágrafo único da Lei nº 8.666/1993 possui natureza jurídica de parecer vinculante. Veja-se, a literalidade do dispositivo:   Art. 38.  […] Parágrafo único.  As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração.   Analisando as decisões acima elencadas, Gustavo Binenbojm e André Cyrino sintetizam a matéria da seguinte forma:   Em suma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permite a responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro, dolo ou sua opinião tiver teor vinculante. Neste último caso, a responsabilidade haverá porque, segundo a Corte, o parecerista seria uma espécie de corresponsável (o que foi destacado pelo Min. Joaquim Barbosa). (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 211).   Avoluma-se, contudo, orientação doutrinária que prefere identificar a análise jurídica prevista no parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/1993 como parecer obrigatório, de modo a defender a inexistência de pareceres vinculantes no Brasil.   A respeito do tema, José Vicente Santos de Mendonça sustenta que:   Além disso, aparentemente não existe, no Brasil, parecer vinculante, ao menos na forma como o ministro Joaquim Barbosa definiu: hipótese legal que obrigue o administrador a “decidir” conforme o parecer ou, então, a nada decidir. Em todos os casos, mesmo naqueles em que a manifestação das assessorias jurídicas é obrigatória, a autoridade sempre poderá refazer/modificar sua proposta de ação, e, assim, submeter novamente a questão à análise jurídica. (MENDONÇA, 2009, p. 171)   No mesmo sentido, Maurício Mota (2015), entende o parecer vinculante é instituto típico do direito francês, sem correspondência no direito brasileiro, de modo que a lei francesa estabelece a obrigatoriedade de decidir à luz de parecer vinculante (décider sur avis conforme).   Sob outro prisma, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Fabrício Motta, em texto em conjunto, divergem do entendimento acima exposto, pontuando a existência de pareceres vinculantes no art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993 (destaques no original).   A análise jurídica, para além de obrigatória, é vinculante: as minutas devem ser analisadas e aprovadas. A participação do órgão jurídico não é apenas função de consultoria, já que tem que examinar e aprovar as minutas de edital e de contrato. Tais manifestações, quando acolhidas pela autoridade competente para decidir, constituem a própria motivação ou fundamentação do ato. A aprovação, no caso, integra o próprio procedimento e equivale a um ato de controle de legalidade e não de mérito; trata-se de hipótese em que o parecer é obrigatório e vinculante. (DI PIETRO e MOTTA, 2015, p. 289).   Os autores supracitados também pontuam que a regra contida no dispositivo legal mencionado “não foi muito feliz ao usar a expressão ‘aprovar’ as minutas de editais e contratos, o que dá a impressão de que a aprovação, no caso, teria a natureza jurídica de ato administrativo produtor de efeitos jurídicos, vinculante para a Administração, e não mera opinião jurídica. ” (DI PIETRO e MOTTA, 2015, p. 289).   Entendemos, data venia, que as discussões no tocante a existência de pareceres vinculantes no Brasil, deixarão de existir com a entrada em vigor da futura Lei de Licitações, oriunda do Projeto de Lei nº 4253, de 2020, na eventualidade dos dispositivos que regem o assunto não serem vetados. Com efeito, o §2º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020, estabelece, com grifos nossos, in verbis:   Art. 52 […]   À evidência, a mens legis aponta que a natureza jurídica do parecer jurídico da futura Lei de Licitações é obrigatório (pois exigido por lei) e não vinculante (pois o administrador não está obrigado a decidir nos termos do parecer).   Aliás, de lege lata, o §5º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020 prevê um parecer jurídico de natureza facultativa, quando das hipóteses elencadas, vejamos:     Insta aduzir, sob esse prisma, que a futura Lei de Licitações, da forma que disciplinou o tema, rechaça qualquer possibilidade de elencar o parecer jurídico (utilizado com base no novo diploma) como vinculante e de partilha de decisão com o Gestor Público. A consequência é que as Cortes de Contas não poderão, per si, de maneira “cega” e “automática”, colocar os advogados públicos como responsáveis por atos a serem julgados no âmbito do Controle Externo (MS 24.631/DF) como sucedeu nas questões de fato elencados em torno do julgamento do MS retromencionado, salvo, na eventualidade de cabal demonstração de dolo ou erro grosseiro – elementos subjetivos que exigem uma profunda cognição e arranjo probatório.   O Texto Supremo dispõe no art. 133 que “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 8906/1994 define em seu art. 32, que “O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”.   À luz dos dispositivos elencados, forçoso se filiar a doutrina que aponta que, por caber aos Advogados de Estado a função constitucional de consultoria jurídica pública, os atos de natureza opinativa por eles praticados constituem um tipo constitucional de atos próprios e deles exclusivos (MOREIRA NETO, 2008).   Nesse sentido, a doutrina de respeito trata de um regime jurídico complexo a qual está submetido o advogado público, pois se remete a um duplo sistema estatutário:   No caso específico do Advogado de Estado, a sujeição torna-se mais complexa, pois se remete a um duplo sistema estatutário, ambos de adesão voluntária, em que são previstos controles sobre seus atos profissionais, incluídos os de consultoria jurídica: (1) por um sistema geral a cargo de seus pares, através dos órgãos corporativos competentes da Ordem dos Advogados do Brasil, e (2) por um sistema especial, também a cargo de seus pares, através de órgãos corporativos competentes da Procuradoria ou Advocacia de Estado do respectivo ente estatal a que sirvam. (MOREIRA NETO, 2008, p. 105).   Assim, a atividade do parecerista exercendo uma função pública deve considerar as peculiaridades e dificuldades enfrentadas no serviço público. Nesse panorama, com o advento da Lei nº 13.655/2018, ocorreram mudanças na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, reforçando o princípio da segurança jurídica quando da tomada de decisões envolvendo o setor público.   A propósito, o novo art. 28 da LINDB, que trata da responsabilidade do parecerista público, assim averba: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. ” O novo dispositivo deve ser entendido como norma especial (advocacia consultiva pública) em relação ao art. 32 do Estatuto da Advocacia (advocacia de modo geral).   No âmbito federal, o Decreto nº 9.830/2019 regulamentou o disposto nos arts. 20 ao art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. No tocante ao que nos interessa, o art. 12 da lex dispõe, in verbis:   Art. 12.  O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.           Sobre o dolo, citemos a posição de José de Mendonça:   Ele é o mais óbvio, e, ao mesmo tempo, o mais difícil de ser caracterizado. É muitíssimo difícil conseguir configurar, de modo a justificar alguma responsabilização, o dolo, a má-fé, de um advogado público parecerista. A conduta dolosa vai ser verificada provavelmente a partir de provas indiciárias, testemunhos, declarações, quebras de sigilos telefônicos, mas nada que, diretamente, exsurja do parecer. Não há muita coisa a ser dita acerca desse standard, senão que dificilmente vai ser incidente de modo puro, ou porque o advogado público vai alegar erro escusável, ou porque imaginará que sua liberdade de opinião e de exercício profissional serão suficientes para escondê-lo (conferir item VI, supra). (MENDONÇA, 2009, p. 172).   Gustavo Binenbojm e André Cyrino também tratam do conceito de dolo:   Haverá dolo quando o gestor agir com intenção de praticar um ato contrário à Administração Pública. Ou, ainda, o técnico que deliberadamente recomendou algo indevido (e.g. um laudo médico que opine falsamente pela licença de um servidor por razões de saúde). A demonstração da ocorrência de dolo, normalmente refletida em uma fraude, pressupõe exame de elemento subjetivo, o que traz dificuldade probatória, e dependerá de investigação cuidadosa. (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 211).   O conceito de dolo parece ser bem delimitado pela doutrina, não podendo se dizer o mesmo quanto os contornos jurídicos da terminologia erro grosseiro, havendo, inclusive, divergências internas no âmbito no Tribunal de Contas da União. Neste viés, o Tribunal de Contas da União passou a se manifestar acerca da interpretação desse último conceito jurídico indeterminado. Vejamos, em apertada síntese, alguns arestos da Corte de Controle da União, com grifos nossos, que demonstram uma falta de clareza quanto a conjuntura do termo:   Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, erro grosseiro é o que decorreu de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave (TCU, Acórdão 2391/2018).   Para fins de responsabilização perante o TCU, considera-se erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 – LINDB), aquele que pode ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal ou que pode ser evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, decorrente de grave inobservância do dever de cuidado (TCU, Acórdão 4447/2020).   A ausência de critério de aceitabilidade dos preços unitários em edital de licitação para contratação, em complemento ao critério de aceitabilidade do preço global, configura erro grosseiro que atrai a responsabilidade do parecerista jurídico que não apontou a falha no exame da minuta do ato convocatório, pois deveria saber, como esperado do parecerista médio, quando as disposições editalícias não estão aderentes aos normativos legais e à jurisprudência (TCU, Acórdão 611/2020).   Em relação ao primeiro aresto (TCU, Acórdão 2391/2018), de relatoria do Min. Benjamim Zymler, houve a associação entre o denominado erro grosseiro e a culpa grave, a partir da classificação de erro em (i) leve, (ii) sem qualificação e (iii) grosseiro. O segundo aresto (TCU, Acórdão 4447/2020) seguiu a mesma linha de entendimento em relação ao dever de cuidado. A respeito do tema, professores Thiago C. Araújo, Fernando Ferreira Jr. e Alice Voronoff comentam com bastante clareza a primeira decisão:   O primeiro, “erro leve”, para que não ocorra, exigiria um grau de atenção superior ao esperado do tomador de decisão. O segundo, “erro sem qualificação”, seria evitado a partir de uma diligência normal, média, por parte do administrador. Já o terceiro, “erro grosseiro”, poderia ser identificado e evitado por gestores que atuassem com um nível de atenção mesmo abaixo do esperado. Somente nesse caso, portanto, estariam os gestores sujeitos à responsabilização por terem agido com culpa grave. Importante frisar: há associação entre o denominado erro grosseiro e a culpa grave. (ARAÚJO, FERREIRA JÚNIOR e VORONOFF, 2019).   De outro vértice, no terceiro aresto (TCU, Acórdão 611/2020), o TCU em vez de adotar como critérios anteriormente utilizados, adotou a figura do parecerista médio, que consoante o voto condutor, “deve saber quando os dispositivos editalícios estão aderentes aos normativos legais e à jurisprudência sedimentada que regem a matéria submetida a seu parecer”.   Sobrevela registrar ainda, que no Acórdão nº 2.677/2018, o TCU adotou mais uma vez a figura do homem médio para definir o erro grosseiro:   Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório pelo TCU. Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, há sobre o assunto algumas hipóteses. No Acórdão 1628/2018-TCU-Plenário, de minha relatoria, houve entendimento no sentido de adotar o critério do administrador médio para a aferição da presença ou não de erro grosseiro. A comparação com um ‘gestor médio’ novamente foi efetuada no Acórdão 1695/2018-TCU-Plenário […]   De tal arte, um dispositivo que buscava garantir segurança jurídica ao administrador e pareceristas (art. 28 da LINDB), passou a causar ainda mais insegurança jurídica aos administradores e emitidores de opinião.   A esse respeito, merece reflexão o pensamento dos professores Thiago C. Araújo, Fernando Ferreira Jr. e Alice Voronoff, com grifos nossos:   Enfim, a máxima efetividade da LINDB depende, para além de um administrador – médio ou não –, também de um legislador atento à lógica de uniformização aliada ao fomento à inovação. Somente assim será possível atingir a finalidade máxima dos dispositivos acrescidos à LINDB: reforçar a segurança jurídica, superando o “Direito Administrativo do Medo” (ARAÚJO, FERREIRA JÚNIOR e VORONOFF, 2019).[vii]   Sem embargo do dispositivo da Lei de Introdução, o §6º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020 estabelecerá (caso não seja vetado) um novo regime de responsabilidade para os pareceristas públicos, ao prever que “O membro da advocacia pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude na elaboração do parecer jurídico de que trata este artigo. ”   Com efeito, como já narrado em linhas pretéritas, o art. 28 da LINDB é especial em relação ao art. 32 do Estatuto da Advocacia, sob o argumento de que enquanto o Estatuto prevê a responsabilidade do advogado em uma perspectiva geral, a Lei de Introdução dispõe sobre a advocacia pública consultiva (o que indubitavelmente, é mais específico).   Insta aduzir que o art. 52, §6º da “Nova Lei de Licitações” é mais específico em relação ao art. 28 da LINDB e o art. 32 do Estatuto da Advocacia, tendo em conta que esse trata da advocacia pública consultiva nas licitações e contratos administrativos. Trata-se de norma especial (art. 52, §6º da “Nova Lei de Licitações) que prevalece sobre a lei geral (art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e art. 32 do Estatuto da Advocacia). Assim, parece-nos que no âmbito do direito administrativo sancionador, deverá haver a aplicação simultânea de ambos diplomas (“Nova Lei de Licitações” e LINDB). Os pareceristas de licitações e contratos administrativos somente responderão quando agirem com dolo ou fraude. Por exclusão, os demais pareceristas, que não lidem com direito contratual público, poderão ser responsabilizados no caso de dolo ou erro grosseiro.   2.1 Proposições jurídicas quanto à interpretação de “erro grosseiro” Conforme já averbado, a análise da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade institucional da conjuntura da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União. Em apertada síntese, a orientação ministrada pelas Cortes permite responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro ou dolo. O estado de insegurança jurídica nos contornos jurídicos da expressão erro grosseiro, agravada pela situação de excepcionalidade da pandemia do Covid-19, nos permitiu refletir academicamente acerca de alguns padrões que podem ser adotados para, em um primeiro momento, delimitar, mediante critérios objetivos, o conceito de erro grosseiro para fins de responsabilização do parecerista em tempos de pandemia, e, sob outro prisma, as medidas que podem ser tomadas pela advocacia pública a fim de trazer um estado de segurança jurídica no exercício de suas funções durante esse período de estabilidade. À primeira vista, sendo o erro grosseiro um conceito jurídico indeterminado, forçoso concluir pela que a ausência de exatidão dos contornos jurídicos dá ensejo à abertura de divergências entre os diversos órgãos jurisdicionais e de controle em sua aplicação. O cerne da ideia do erro grosseiro reside na incerteza do conteúdo e da extensão do conceito. Um primeiro aspecto que poderia ser utilizado diz respeito ao que Enterría e Ramón Fernandez, citados por Gustavo Knaesel Hoffman, denominam de “zonas de certeza e incerteza:   Para García de Enterría e Fernández, a estrutura dos conceitos indeterminados compreende (i) um núcleo fixo (Begriffkern), ou zona de certeza positiva, configurado por dados prévios e seguros onde não há dúvidas quanto à aplicabilidade dos conceitos, (ii) uma zona intermediária ou halo conceitual (Begriffhof), onde não se dá certeza quanto à aplicabilidade ou inaplicabilidade do conceito jurídico indeterminado ao caso concreto e, finalmente, (iii) a zona de certeza negativa, certa quanto à exclusão do conceito. (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1991, p. 396 apud HOFFMANN, 2015, p. 23).   Comentando a doutrina comparada acima elencada, José dos Santos Carvalho Filho dispõe que “[…] na interpretação dos atos de concretização dos referidos conceitos, tem que perseguir, evidentemente, a redução da zona de incerteza para alcançar as zonas de certeza positiva ou negativa.” (CARVALHO FILHO, 2001, p. 115)   Apesar do critério da zona de certeza e incerteza serem construídos como um parâmetro do controle judicial dos conceitos jurídicos indeterminados, entendemos que é possível buscar traçar os contornos jurídicos de erro grosseiro a partir de tais lições. À primeira vista, parece-nos que o conceito de erro grosseiro nunca poderá se relacionar com o conceito de homem médio (ou parecerista médio), tendo em vista dois argumentos. Primeiramente, entendemos que não se pode definir o conteúdo e alcance de um conceito jurídico indeterminado (erro grosseiro) a partir de outro conceito jurídico indeterminado, que também denota uma imprecisão conceitual. Como se sabe, Direito é ciência não exata e que admite amplas interpretações. Afastar as imprecisões conceituais é medida prudente e que mais se aproxima da garantia da segurança jurídica. Sob outro prisma, o título de administrador médio (que podemos aplicar, por analogia, ao parecerista médio) não pode ser definido no mundo do ser (no julgamento de casos concretos), e sim no mundo do dever ser, isso é, no positivismo jurídico, sob pena de grave violação à segurança jurídica. Buscar intitular o gestor como administrador médio a partir de casos concretos, buscando fonte de validade, tão somente na aplicação fria da lei, sem deixar de considerar as dificuldades burocráticas, financeiras e orçamentárias, busca dar uma solução utópica para os problemas envolvendo as escolhas da Administração Pública. Veja-se, a esse respeito, interessante reflexão dos professores Gustavo Binenbojm e André Cyrino, nos apresentando a expressão de Hércules Administrativo:   Todavia, os órgãos de controle parecem crer no mundo da aplicação ex officio da lei. Na verdade, teimam em advogar – muitas vezes com boas intenções – que basta ao administrador seguir os comandos normativos, para que não venha a ser punido. Esse gestor, tem, inclusive, um título. É o administrador médio, segundo a jurisprudência do TCU. Trata-se de uma mente iluminada, que age irrepreensível, cautelosa e diligentemente. Mesmo que a aplicação da lei implique algum juízo interpretativo, essa exegese (idêntica ao dos órgãos de controle) seria verificável de forma certeira por esse gestor, espécie de Hércules administrativo, num paralelo com o juiz filósofo de Dworkin. (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 205).   Assim, melhor razão nos parece apontar que erro grosseiro é expressão sinônima de culpa grave, definida no art. 12, §1º do Decreto nº 9.830/2019 como “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.   Entendemos, outrossim, que a imperícia ou negligência (erro grosseiro) decorrem da grave inobservância do dever de cuidado do parecerista, conforme se extrai de alguns acórdãos do TCU, o que nos parece um parâmetro com maior precisão conceitual do que o termo parecerista médio. Assoma daí, com nitidez, o standard da não-adoção de condicionantes reais de cautela, proposto por José de Mendonça (2009), podendo ser adotados, a partir do padrão elencado, como critérios objetivos: a) o término do espaço de opinião jurídica e do início da área de decisão administrativa e b) o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. Não por outra razão, que Moreira Neto (2008) entende que a opinião expendida no parecer atine apenas a juricidade das questões examinadas, e nada mais do que esse aspecto. Assim, a ideia do término do espaço da opinião jurídica exposta pode ser conectada com que positiva o Manual de boas práticas consultivas da AGU (2016, p. 32), ao estabelecer que o órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade. Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Fabrício Motta (2015), analisando o manual acima, elenca um rol exemplificativo de questões que estão, em princípio, fora do raio de alcance da análise jurídica:     À evidência, os órgãos de controle possuem expertise técnica para apurar as questões acima elencadas, tendo em conta possuírem vocação constitucional para proceder a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, nos termos do art. 70, caput, da Constituição Federal. Todavia, o mesmo não pode se falar em relação aos advogados públicos.   Em acréscimo, vale acentuar o pensamento de José de Mendonça (2009), ao pontuar que o uso de expressões denotativas do término do espaço de opinião jurídica e do início da área de decisão administrativa tem seu valor e adequação, desde que o parecerista não desenvolva argumento implausível para ao final, acrescente a um “a juízo discricionário do administrador”.   Doutra banda, a não-adoção de condicionantes reais de cautela possui como segunda faceta o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. Vejamos como o assunto é tratado por José de Mendonça   Outro condicionante de cautela é o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. É dever do parecerista informar acerca da existência de riscos jurídicos na adoção desta ou daquela linha de ação. Por riscos jurídicos entenda-se instabilidade nos posicionamentos doutrinários capaz de se refletir em instabilidade jurisprudencial, divergência jurisprudencial capaz de anular a ação, riscos pessoais e/ou de responsabilização do ente federativo. (MENDONÇA, Rio de Janeiro, 2009, p. 175)   Parece-nos, face ao exposto, que a definição do conceito de erro grosseiro deve necessariamente ser tratada da seguinte maneira, pelos órgãos jurisdicionais e de contas, notadamente o STF e TCU:           Assim, fixadas as premissas e pontos de partida acima abordados, poderemos adentrar no mérito acerca da responsabilidade do parecerista público em tempos de COVID-19.   Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi notificada sobre a existência de um vírus desconhecido em corpo humano, na cidade de Wuhan, na China. O vírus até então desconhecido foi nomeado como novo coronavírus (COVID-19) e atingiu o status de pandemia em 11/03/2020 (WHO, 2020). Após quase ano do registro oficial (17/12/2020), o coronavírus (COVID-19) já infectou mais de 72.851.747 de pessoas e somou a marca de 1.643.339 mortes. (OPAS, 2020).[viii]   Os impactos causados pela pandemia atingiram abruptamente a forma como se vive em sociedade, suscitando questões sanitárias e sociais que desafiam a forma de aplicação de ciências jurídicas. Nesse sentido, o federalismo cooperativo desenvolvido pelos Estados e Municípios na adoção de medidas sanitárias; os impactos da perda de receita em diversos setores da economia; a necessidade do Estado arrecadar em colisão com as dificuldades econômicas das empresas e a manutenção do emprego em contexto de direito empresarial de crise são apenas singelos exemplos que desafiam os operadores do Direito a refletir medidas de pacificação social nessa situação de excepcionalidade. O Direito Administrativo de Emergência[ix] ganha notoriedade em razão das questões jurídicas, sanitárias e sociais suscitadas pela Covid-19. Com efeito, é a partir de medidas estatais, desenvolvidas na função administrativa, que os gestores poderão tomar decisões envolvendo as medidas sanitárias, como sucedeu com a restrição de direitos fundamentais de liberdade de locomoção e de reunião; Sobre a expressão, Marçal Justen Filho (2020) comenta que se tratar de medidas que afastam, suspendem ou extinguem o direito administrativo até então vigente, de modo a impor a submissão das relações jurídicas em curso a um modelo jurídico diferenciado, ainda que não configurado por via legislativa. Dito isto, passemos a fixar três parâmetros a serem avaliados na análise da configuração dos pressupostos da responsabilidade do parecerista em tempos de pandemia. O parecerista público, que ordinariamente já desempenha um munus publico e função essencial à Justiça, ganha destaque na situação de excepcionalidade, possuindo a árdua tarefa de conciliar a atividade consultiva com as questões sanitárias e sociais suscitadas pela COVID-19.[x] No grave contexto de pandemia do Covid-19, o direito administrativo precisou se reinventar para buscar soluções jurídicas envolvendo tanto as relações jurídicas já firmadas, como as futuras relações jurídicas a serem firmadas neste cenário pandêmico.[xi] Sobre o tema, merece destaque a reflexão de Marçal Justen Filho:   A pandemia afetou o direito vigente e as relações jurídicas preexistentes. Medidas legislativas e administrativas e decisões judiciais adotaram soluções inovadoras para disciplinar não apenas os eventos futuros, como também aqueles do passado – mais precisamente, os efeitos presentes e futuros de atos jurídicos perfeitos e acabados ocorridos no passado. (…) Os institutos jurídicos disponíveis foram concebidos em vista de um cenário radicalmente distinto e incomparável. E se tornou inviável resolver os impasses ocorridos mediante a aplicação dos mecanismos jurídicos já existentes. (JUSTEN FILHO, 2020, publicação eletrônica).   O Direito, ciência do dever-ser, já disponibilizava institutos jurídicos disponíveis, a exemplo da teoria da imprevisão. Contudo, como bem aponta o autor, o cenário trazido pela pandemia tornou inviável resolver os impasses ocorridos mediante a aplicação de como o dever-ser era previsto. Há uma distância incalculável entre o dever-ser dos institutos já previstos e o ser que sucedeu os eventos pandêmicos do ano em curso.   Assomasse, daí, a pandemia legislativa/normativa causada pela Covid-19: foram editados mais de 200 atos normativos federais. Imagine-se ainda, os atos normativos dos 26 Estados, do Distrito Federal e ainda dos 5571, e ainda, as decisões judiciais e recomendações do Ministério Público, Defensoria Pública e da Advocacia Pública. (LEITE, 2020).   Indaga-se, portanto, como pode o (bom) parecerista orientar da melhor forma o administrador público, sem o risco de incorrer no “inseguro” erro previsto no art. 28 da Lei de Introdução? Ab initio, não se pode ignorar que na emissão da opinião jurídica, o parecerista pode ser desafiado a se deparar com questões de fato envolvendo controvérsias na comunidade científica, no tocante o combate à enfermidade. Na ocorrência de casos dessa natureza, deve-se ressaltar mais uma vez que as questões de fato envolvendo matéria fora da expertise jurídica do parecerista não podem levar a sua responsabilização. Portanto, define-se como primeiro parâmetro, na análise de sua responsabilidade, a análise exclusiva das questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade. Acentue-se, contudo, que se o órgão consultor evidenciar a inexistência de consenso científico, o parecerista possui o poder-dever de avaliar a melhor solução à luz dos princípios da prevenção e precaução, conforme proposto pelo Ministro Barroso no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 MC, onde se analisava a constitucionalidade de dispositivos envolvendo a responsabilidade de agentes públicos em atos relacionados à Covid-19. Superado o primeiro parâmetro, cabe acentuar que a ação coordenada dos advogados de estado lotados na Procuradoria Consultiva, se planejando e discutindo em equipe, as diretrizes jurídicas a serem adotadas, tem o condão de trazer maior segurança jurídica para o exercício de suas funções. Nesse sentido, vejamos algumas diretrizes jurídicas elencadas no Boletim Informativo de Março de 2020, da Procuradoria Consultiva da Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco, quanto ao regime de contratação especial e diferenciada da COVID-19:   Caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa (art. 26, parágrafo único, I, da Lei 8.666/93). Diante da inegável celeridade que há de se empregar aos processos de contratação em lume, o requisito já se encontra atendido pelo reconhecimento do legislador federal e estadual, sem que haja necessidade de a autoridade administrativa proceder a explicações adicionais. É suficiente que seja evidenciada a relação entre a demanda administrativa e o fato emergencial, com declaração no sentido de que a contratação pretendida é imprescindível ao atendimento da população no enfrentamento da crise e que o quantitativo contratado é o mínimo necessário para tanto.   Prazo. Essa específica dispensa de licitação é temporária e está adstrita ao prazo em que perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, sem, contudo, haver qualquer limitação quanto ao prazo máximo de 180 dias, que é previsto no art. art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93. (art. 2º da LCE nº 25/2020).   Regra Excepcional. É admitida a contratação de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido. (§3º do art. 4º da Lei nº 13.979/2020, incluído pela MP 926/2020) No tocante ao regime de execução contratual especial e diferenciado do COVID-19, o mesmo Boletim Informativo prevê que:   Antecipação de Pagamento. É admitido pagamento antecipado, mediante justificativa expressa, consideradas as condições do mercado em face da situação crítica de pandemia   Possibilidade de entregas parceladas. O fornecimento de bens sob a forma de entregas parceladas não desconfigura a contratação emergencial. Em determinadas circunstâncias, não será possível impor ao fornecedor a entrega imediata de todo o quantitativo contratado. O Boletim Informativo supracitado também prevê orientação em relação ao regime de transição dos contratos administrativos vigentes e a suspensão de prazos em processos licitatórios, contratações diretas e parcerias com o setor privado.   Dito isto, fixamos que segundo parâmetro, a ser avaliado na análise da responsabilidade do parecerista: o atendimento das orientações internas fixadas pelo próprio órgão. Assim, se o parecerista profere um parecer totalmente dissonante do trabalho coordenado de seus colegas, é mais factível a configuração do dolo ou erro grosseiro aptos a autorizar sua responsabilização. Sob outro prisma, imperioso destacar como terceiro e último parâmetro, o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo, previstos no art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis:   Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.   A norma em elenco trata do pragmatismo jurídico, na estreita das lições de Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, com grifos nossos:   O pragmatismo não possui concepção unívoca, mas há relativo consenso de que as suas características básicas são: a) antifundacionalismo: rejeita a existência de entidades metafísicas ou conceitos abstratos, estáticos e definitivos no Direito; b) contextualismo: a interpretação jurídica é norteada por questões práticas e o Direito é visto como prática social; e c) consequencialismo: as decisões devem ser tomadas a partir de suas consequências práticas (olhar para o futuro e não para o passado) (POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: teoria social e política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. p. 27-62; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A releitura do direito administrativo à luz do pragmatismo jurídico. RDA, v. 256, p. 129-163, 2011. A relevância do pragmatismo jurídico, destacada nas edições iniciais desta obra, foi confirmada, por exemplo, nos arts. 20 e 21 da LINDB, inseridos pela Lei 13.655/2018, que exigem a consideração e a demonstração das consequências práticas, jurídicas e administrativas das decisões estatais. (OLIVEIRA, 2019, p. 567)   Dentro da noção de contextualismo, podemos indagar, em termos mais comuns: Eu posso comparar os atos da administração em um contexto de crise, com os atos de um administrador em um contexto de normalidade? A pergunta, por mais óbvia que seja a resposta, deve ser refletida pelo julgador ou órgão de controle no momento da aplicação de qualquer penalidade.   Avoluma-se, ao princípio da contextualidade, o standard proposto por José de Mendonça (2009), intitulado de necessidade de preservação de heterogeneidade de ideias, de modo a impor que a configuração do que é dolo quanto o que é erro inescusável devem ser interpretados de modo restritivo, sob pena de “risco de censura”.   Concordamos integralmente com o autor, e ainda ressaltamos que essa interpretação deve se tornar ainda mais restrita (restritíssima) quando o conteúdo opinativo envolver os atos de combate ao Covid-19, à luz do princípio do contextualismo previsto no art. 22 da LINDB. Impende destacar que a interpretação restritíssima das opiniões proferidas pelos pareceristas não se trata de um “salvo conduto” ou ausência de qualquer responsabilização. Tal interpretação contraria o princípio republicano (accountabily). Pede-se, tão somente, bom senso e cautela redobrados na análise de opiniões técnicas emitidas pelos pareceristas durante o cenário pandêmico. Nesse sentido, Irene Patrícia Nohara, em obra coletiva, tece importantes considerações sobre a aplicação do art. 22 da LINDB nos atos de combate à pandemia do Covid-19: Assim, não se trata de um “salvo conduto” para todo e qualquer desrespeito às determinações normativas, mas da necessidade de ponderação e calibramento, com bom senso, das exigências legais em função do contexto de dificuldades faticamente enfrentado pelo gestor público. Logo, na imposição de futura responsabilização por determinada ação da gestão, deve-se considerar que o “estado da arte” de conhecimento sobre o comportamento do vírus, quando da declaração da circunstância da Pandemia, era em alguma medida obscuro. (NOHARA, 2020 in LIMA et al, 2020, p. 231) Em conclusão, arremata com precisão a supracitada autora:   Também o controle deve ser equilibrado, ponderado e considerar o primado da realidade, o que não implica em “passar por cima” dos limites jurídicos, pois, se não, toda e qualquer situação grave implicaria rasgar a Lei Maior e legitimar ações sem freios por parte de todos os envolvidos, sendo, então, uma situação muito perigosa e pouco desejável para a sociedade, pois perderíamos os parâmetros mínimos de limites e possibilidades das medidas de enfrentamento da Pandemia, o que nos faria deparar com ações desmedidas do Estado. (NOHARA, 2020 in LIMA, Fernando Rister de Sousa (coord.) et al, 2020, p. 233)   Assim, a responsabilidade do parecerista público em tempos de Covid-19 deve observar os parâmetros acima fixados, de modo a desempenhar seu relevante ministério e atividades essenciais à Justiça e a comunidade com segurança jurídica.   Conclusão O parecerista público desenvolve a atividade de consultoria jurídica pública, função essencial à Justiça por expressa vocação constitucional. À vista disso, o advogado público no exercício da função consultiva deve ser orientado pelo princípio da independência funcional, conforme propõe Diogo Neto, buscando sempre, a partir de suas opiniões técnicas, a visão que melhor atende o interesse público, evitando-se qualquer tempo de pressão ou constrangimento. A jurisprudência do STF tradicionalmente permitia a responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro, dolo ou sua opinião tiver teor vinculante. A Lei nº 13.655/2018 seguiu o entendimento da Corte Suprema no tocante a adoção do dolo e erro grosseiro como pressupostos da responsabilidade do agente público, não podendo se falar o mesmo quanto à obrigatoriedade do parecer, que desde de 2018, perdeu seu sentido. Com a entrada em vigor da Nova Lei de Licitações e passada sua vacatio legis de 02(dois) anos, as discussões no tocante a existência de pareceres vinculante no Brasil serão encerradas, tendo em conta que a única hipótese que sustentava sua existência (art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993) deixará de existir. O novo regime jurídico prevê a possibilidade da autoridade motivadamente rejeitar o parecer jurídico (art. 52, §2º do PL n. 4253/2020). Apesar de tradicionalmente o STF não adotar a teoria da transcedência dos motivos determinantes, entendemos que há boas chances do Pretório Excelso declarar a existência de superação (overruling) em relação aos precedentes que adotaram a divisão dos pareceres na classificação proposta por René Chapus, substituindo-os por um novo precedente, de modo a se harmonizar com a nova ordem jurídica prevista na LINDB, com as inclusões da Lei nº 13.655/2018. Os advogados públicos sujeitam-se a um regime jurídico complexo, em razão da dupla vinculação estatutária (OAB e regime jurídico-administrativo). Apesar do TCU tradicionalmente buscar responsabilizar o advogado público nos termos do art. 32 da Lei nº 8.906/1994, com o advento do art. 28 da LINDB em 2018, a referida Corte passou a responsabilizar o advogado apenas por dolo ou erro grosseiro. O dolo previsto no art. 28 da LINDB é entendido como a intenção voluntária de agir, não havendo grandes divergências quanto à sua definição. Por outro lado, há forte imprecisão conceitual na jurisprudência do TCU quanto à interpretação do que é erro grosseiro. Em alguns arestos, o TCU associa o erro grosseiro à culpa grave. Em outros julgados, o TCU utiliza o critério do homem médio, o que causa insegurança jurídica e propaga um Direito Administrativo do Medo. A fim de pacificar a celeuma jurisprudência do TCU, propomos delimitar os contornos jurídicos do conceito jurídico indeterminado intitulado erro grosseiro, a partir de critérios objetivos aclamados pela doutrina, como as chamadas zonas de certeza e incerteza. De tal arte, a definição de erro grosseiro deve afastar qualquer interpretação que lhe associe aos termos “homem médio”, “administrador médio” ou “parecerista médio”, por também se tratarem de conceitos jurídicos indeterminados e apresentarem algo grau de abstração, subjetividade e imprecisão conceitual. Portanto, entendemos que erro grosseiro deve ser considerado aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia, nos termos do art. 12, §1º do Decreto Federal nº 9.830/2019. A negligência ou imperícia devem ser associadas com a grave inobservância do dever de cuidado, como propõe o TCU em alguns julgados. A grave inobservância do dever de cuidado, por seu turno, deve ser interpretada como a não-adoção de condicionantes reais de cautela, como propõe José Vicente Santos de Mendonça como um dos quatro standards da responsabilidade do advogado público. Com a entrada em vigor da Nova Lei de Licitações, o parecerista que atuar nesse setor somente poderá ser responsabilizado no caso de dolo ou fraude, caso o dispositivo não seja vetado. Após definir as premissas acima, finalmente podemos adentrar na análise da responsabilidade civil do parecerista público em tempos de Covid-19. Em virtude da pandemia causada pelo Covid-19, tem-se aludido a um Direito Administrativo da Emergência, de modo a impor a submissão das relações jurídicas em curso e as que se formarão a um modelo jurídico diferenciado. O parecerista público ganha destaque neste contexto, tendo em vista que é peça fundamental na tomada de decisões do gestor público durante esse período de excepcionalidade. À vista disso, definimos três parâmetros especiais a serem avaliados para a análise da configuração do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19): a) análise exclusiva de questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade. O primeiro parâmetro baseia-se na ideia do término do espaço da opinião jurídica, uma das facetas do standard não-adoção de condicionantes reais de cautela proposto pelo José Vicente Santos de Mendonça, de modo a excluir do alcance do parecerista, exemplificativamente: a.1) oportunidade e conveniência da contratação; a.2) descrição do objeto, à exceção da indicação injustificada de marca; a.3) indicativos de quantidade, estimativas de consumo; a.4) planilhas de preço e critérios de aceitabilidade de preços; dentre outros. O segundo parâmetro é b) o atendimento das orientações internas fixadas pelo próprio órgão. Noutro dizer, os advogados públicos devem realizar um trabalho em equipe e coordenado, estabelecendo as diretrizes jurídicas a serem adotadas e as divulgando em meios eletrônicos, como através de Boletins Informativos e Pareceres Referenciais. Uma opinião jurídica dissonante das diretrizes jurídicas fixadas pelo próprio órgão é um indício de má-fé apto a caracterizar dolo ou mesmo o erro grosseiro por negligência ou imperícia. O terceiro parâmetro é c) o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo. Com efeito, o art. 22 da LINDB prevê o pragmatismo jurídico ao estabelecer que na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. Conforme saudosas lições doutrinárias. Uma das facetas do pragmatismo jurídico, consoante lições doutrinárias de Rafael Oliveira, é o contextualismo, onde a interpretação jurídica é norteada por questões práticas da época, de modo que eu não posso comprar os atos da administração em um contexto de crise, com atos de administração em tempos de normalidade. Preserva-se, à luz do pragmatismo e contextualismo, a necessidade de preservação de heterogeneidade de ideias (quarto standard de José Vicente Santos de Mendonça), o que deve levar o intérprete realizar uma interpretação extremamente cautelosa e restrita para que exista a configuração do dolo ou erro grosseiro. Assim, entendemos que os critérios objetivos fixados no presente trabalho acadêmico podem contribuir para que os advogados públicos desempenhem seu relevante ministério e funções essenciais à Justiça com a garantia da segurança jurídica, tendo por base o Estado Democrático de Direito.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/direito-administrativo-de-emergencia-e-covid-19-a-responsabilidade-do-parecerista-publico-em-tempos-de-pandemia/
A Eficácia da Prestação do Serviço Público no Juizado Especial Federal de Palmas do Estado do Tocantins Através do Teletrabalho
Este artigo dispõe sobre a prestação do serviço público, quanto ao seu conceito, dispositivos legais, princípios constitucionais norteadores e sua real eficácia. Desenvolve também algumas vantagens e desvantagens de uma das formas de prestação de serviço, o teletrabalho. O principal enfoque se deve à continuidade do serviço público através do teletrabalho, devendo ser apresentado de forma positiva mesmo diante do grande desafio enfrentado por todos os servidores, gestores, advogados e cidadãos em geral, sendo ele a pandemia declarada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em março de 2020. A necessidade de adaptação diante de todo este cenário enfrentado exigiu grandes e significativas mudanças, especificamente do Judiciário para garantir a continuidade do serviço público. No caso em tela, foram verificadas as medidas tomadas pelos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária de Palmas no Tocantins. Palavras-chave: Serviço Público. Pandemia. Teletrabalho. Juizados Especiais Federais do Tocantins.,
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O assunto principal deste trabalho se encontra dentro da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 175, onde dispõe a respeito do serviço público que é pertencente ao Poder Público, podendo ser prestado de maneira direta ou indireta. Há de se observar que a prestação do serviço possui a necessidade de se preservar sua qualidade, mesmo em grande produção e ter resultados positivos, deve ser disponibilizado a todos sem distinção com cordialidade, da forma mais econômica possível e no caso dos Juizados Especiais preza-se também pela agilidade. O enfoque está em uma das formas de prestação desse serviço público, o teletrabalho, dentro do Juizado Especial Federal do Tocantins e claramente seus maiores desafios estão na garantia da continuidade deste, mesmo com a situação nebulosa da crise pandêmica enfrentada em todo o mundo e a necessidade rigorosa de se adequar em todas as regras de prevenção, como o isolamente social, por exemplo. O objetivo maior da discussão, além de garantir essa real eficácia na prestação final desse serviço, é levar em consideração os aspectos da Seção Judiciária do Tocantins, especificamente de seus juizados, sendo ela ainda uma Seção pequena em comparação com as Seccionais de outras capitais e apresentar as medidas temporárias e/ou permanentes encontradas para o desdobramente de toda esta difícil situação. Vale pontuar que, a saúde mental e física dos servidores que prestam o serviço público em teletrabalho preventivo é de suma importância assim como o jurisdicionado ter seus anseios e pedidos atendidos pelo poder Judiciário que se encontra em constante mudança com o objetivo de se achar o equlíbrio de interesses e necessidades atuais da socidedade como um todo. Este artigo foi desenvolvido a partir de materiais publicadas em livros, doutrinas, dispositivos legais, artigos e sites oficiais. Além da pesquisa bibliográfica foi utilizada a pesquisa de campo junto ao Núcleo de Apoio aos Juizados Especiais Federais(NUCOD) da Secção Judiciária de Palmas do Tocantins e normativas interiores (atos administrativos) da Seção. Entre as varas desta Seção abordada e o NUCOD, cerca de 80 (oitenta) servidores encontram-se em modo de teletrabalho e passam pelas medidas de retorno progressivo ao trabalho de forma presencial na Sede da Seção Judiciária de Palmas do Tocantins.   1. SERVIÇO PÚBLICO E A UTILIZAÇÃO DO TELETRABALHO 1.1. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS O serviço público se encontra inserido dentro da nossa Constituição Federal de 1988, disposto no art. 175, título 7 relativo à “Ordem Econômica e Financeira”, com o seguinte texto: Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II – os direitos dos usuários; III – política tarifária; IV – a obrigação de manter serviço adequado. Ao desdobrar o texto legal, é possível perceber que os serviços públicos pertencem ao Poder Público e pode ser prestado de forma direta ou por delegação/indireta, embora a prestação efetiva está inserida nos Direitors Constitucionais Sociais, sua titularidade não é exclusiva do Poder Público, e a exigência pontual constada no texto legal trata-se da obrigatoriedade da manutenção desse serviço de forma adequada. 1.2 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO Importante apontar que a constituição da República e qualquer outra Lei não conceituam o serviço público. O conceito doutrinário também não se revela consensual, o que pode se encontrar são correntes teóricas que indicam importantes elementos na identificação da prestação de um serviço público. A expressão “ serviço público”, em sentido subjetivo, se refere a uma soma de órgãos e entidades que exercem atividade administrativa, ou no sentido objetivo quando se menciona uma estabelecidade coleção de atividades.   1.3 PRINCÍPIOS RELATIVOS AO SERVIÇO PÚBLICO Para uma efetiva prestação de serviço pelo estado de forma direta ou indireta, é necessário a utilização dos princípios jurídicos que norteam esse direito social. Importante observar o disposto na Doutrina de Marcelo Alexandrino (2017, p. 226): Os princípios jurídicos não são meras recomendações , conselhos, programas facultativos ou cartas de intenções. São normas jurídicas de observância obrigatória e, se desesrespeitados, acarretam sanções jurídicas concretas, a exemplo de nulidade de um ato administrativo, da responsabilização disciplinar do agente público etc. Dito isto, é possivel apontar os princípios mais relevantes, sendo eles: Princípio da continuidade dos serviços público que impede a interrupção dos serviços prestados à coletividade. Essa continuidade permite admitir o funcionamento pontual e constante, conforme dispõe o Art. 7º da Lei 8987/1995, onde diz que são direitos e obrigações dos usuários: receber serviço adequado. Os doutrinadores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2017, p.264) afirmam que; “A interrupção de um serviço público prejudica toda a coletividade, que dele depende para a satisfação de seus interesses e necessidades.; Princípio da regularidade: O que aponta para a preservação da qualidade do serviço público; Princípio da eficiência requer resultados proveitosos e úteis à sociedade. Para a professora Maria Sylvia Di Pietro, conforme consta em Obra de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2017, p. 255 e 256) este princípio pode ser descrito em duas vertentes, sendo a primeira: “relativamente à forma de atuação do agente público, espera-se o melhor desempenho possível de suas atribuições, a fim de se obter os melhores resultados;” e a segunda: “quanto ao modo de organizar, estruturar e disciplinar a administração pública, exige-se que este seja o mais racional possível, no intuito de alcançar melhores resultados na prestação dos serviços públicos.” Princípio da generalidade: O serviço público deve ser prestado a todos, sem distinções, erga omnes; Princípio da atualidade: Conforme o estado da técnica, ou seja, o uso das técnicas mais atualizadas e eficazes; comprometida pelos serviços públicos, Princípio da segurança: O serviço público não pode colocar em risco a vida da sociedade, pois não podem ter sua segurança; Princípio da modicidade: Por ser serviço público, deverá ser oferecido da forma mais econômica possível; Princípio da cortesia: Os serviços públicos devem ser prestados de forma cordial;   2. A PANDEMIA E O TELETRABALHO No dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma crise histórica: a pandemia do novo coronavírus (COVID-19). O isolamento social está sendo a principal estratégia de prevenção, a pandemia impacta a vida humana em todos os seus aspectos, dentre eles a forma do trabalho, tendo grande destaque a difusão do teletrabalho. O teletrabalho passou a ser incentivado em todo o mundo, inclusive na prestação do serviço público. Sendo mais objetivo ao tema desse artigo, o Judiciário também precisou se adaptar a essa nova realidade, aderindo à maior parte dos seus trabalhos à modalidade teletrabalho, sendo esse um desafio sem precedentes quanto à busca do equilíbrio da qualidade do serviço prestado, da eficiência e ao mesmo tempo respeitando as regras impostas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), visando à segurança e saúde dos servidores e de todos os envolvidos nos atos processuais. 2.1. CONCEITO DE TELETRABALHO Conforme a Organização Internacional de Trabalho (OIT), o teletrabalho é “a forma de trabalho realizada em lugar distante do escritório e/ou centro de produção, que permita a separação física e que implique o uso de uma nova tecnologia facilitadora da comunicação”. Vale salientar que, há quatro classificações distintas para o teletrabalho, sendo elas o home Office que é o teletrabalho em domicílio; os centros compartilhados ou telecentros; o trabalhador de campo, conhecido como teletrabalho nômade ou Itinerante e o teletrabalho em equipes transacionais (colaborativo ou situacional). Este artigo dispõe especificamente sobre o Home Office que é desenvolvido na própria residência do servidor público, podendo ser aderido por vontade da administração pública e do serventuário, dependendo da forma de serviço prestado, quando não há a necessidade de contato direto com o jurisdicionado ou de forma compulsória, assim como aconteceu neste ano de 2020 com a pandemia declarada pelo OMS. A inserção obrigatória no modo Home Office atingiu a todos de forma inesperada, tornando a o “aprendizado tecnológico” terminantemente necessário diante do todo este novo cenário. Os meios de trabalho estão sendo adaptados constantemente com as mais variadas formas de comunicação e suporte entre os agentes públicos e sociedade dentro de todo o contexto tecnológico a fim de garantir a continuidade do serviço público.   2.2. DESVANTAGENS DO TELETRABALHO Essa nova modalidade de trabalho supracitada possui alguns malefícios ligados diretamente ao próprio servidor, sendo eles: o descontrole na disciplina, (falta de rotina), falta de liderança, confusão e a inexistência de delimitação entre o que é vida pessoal e vida profissional, as mesmas podem ser facilmente confundidas. O teletrabalho afasta o servidor do convívio social com os demais colegas de profissão, é necessária a consciência de que os trabalhadores estão mais ansiosos, deprimidos, assustados em decorrência da pandemia. Devido esses problemas apresentados, é fundamental promover encontros virtuais entre os servidores, vídeo chamadas para interação entre os colegas, treinamentos técnicos principalmente aos líderes das equipes, a fim de auxiliá-los sobre como agir frente a essa nova realidade e, enfim, mostrar-se presente, mesmo que não fisicamente. É imprescindível que haja o devido acompanhamento psicológico por parte do Estado, sendo essa sua obrigação, com intuito de assegurar a saúde mental de seus prestadores de serviço. Agora, em relação à comunidade em geral, é importante reconhecer as dificuldades de acesso à nova sistemática para algumas pessoas, infelizmente, o alcance da internet não é para todos, sendo ela restrita tanto às condições sociais ou físicas do usuário. 2.3. VANTAGENS DO TELETRABALHO É importante, também, expor os benefícios constantes no Teletrabalho intrínsecos ao servidor, sendo eles: maior flexibilidade de horário, melhor conciliação entre a vida familiar e profissional, redução de custos em relação à locomoção ao local de trabalho, maior autonomia, facilidade na interação entre colegas/jurisdicionados/advogados/juízes não pertencentes à mesma cidade, o poder de administração do seu tempo, além de contribuir com a não propagação do coronavírus COVID-19. Quanto ao Estado, há de se falar na evidente diminuição de custos, já que uma quantidade considerável de servidores e funcionários em casa reduz os gastos com energia elétrica, água, insumos de trabalho, entre outros. Em relação à comunidade em geral, a vantagem a ser mencionada é a não paralisação do serviço público, essencial ou não, sendo isso possível devido à tecnologia avançada disponibilizada a maioria das pessoas 3. O TELETRABALHO PREVENTIVO NO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL 3.1. CONTEXTO PANDÊMICO E OS DESAFIOS NO SERVIÇO PÚBLICO Com todo o contesto inesperado vivido desde o mês de março de 2020 no cenário mundial o Serviço Público enfrentou grandes desafios para dar continuidade de forma eficiente e respeitando as normas de segurança de enfrentamento à pandemia. 3.2. O TELETRABALHO NO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE PALMAS DO TOCANTINS Não foi diferente quanto às diversas adaptações feitas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região, especificamente pela Seção Judiciária do Tocantins, sediada na cidade de Palmas, Tocantins. Não há como desconsiderar o vultoso desafio enfrentado pelos Juízes, Diretores, Supervisores, Servidores, Estagiários e Prestadores de Serviços desta Seção supramencionada. Podemos considerar que esta adaptação de trabalho ocorreu de forma compulsória e nada progressiva, as medidas tomadas foram baseadas na urgência da dolorosa ocasião e no cumprimento dos princípios disposto em nossa Constituição, conforme comentados no item 2.3. A Seção Judiciária de Palmas possui dois Juizados Especiais Federais, sendo a 03 e 05 vara, cada uma com um Juiz Federal Titular e contam com o apoio de um Juiz Substituto que atua especificamente nas audiências dos Juizados e na Turma Recursal, em auxílio aos JEFS ainda contam com o Núcleo de Apoio aos Juizados Especiais Federais (NUCOD), criado em 10 de outubro de 2016, quando também foi criada a 05ª vara, o segundo Juizado da Seção. Os Juizados Federais recepcionam ações judiciais com valores de causa de até 60 (sessenta) salários mínimos excluindo as ações pertinentes aos procedimentos especiais. A maior parte de seus acervos trata-se de processos previdenciários, contra a autarquia (INSS), sendo ações de aposentadoria por idade, por tempo de contribuição, especial, por invalidez, rural, auxílio-doença, salário-maternidade, seguro-defeso, revisionais de benefícios, entre outros e ainda está recebendo um grande número de protocolos e atermações contra a União, sendo o assunto de auxílio-emergencial. Para os processos de danos morais e materiais em geral, há uma passagem prévia pelo centro de conciliação (CEJUC). Já quanto às ações previdenciárias, algumas necessitam de provas pericias (médica e Social), ou provas testemunhais (audiência), o que normalmente envolve contato direto entre os serventuários e jurisdicionados. Além da possibilidade de protocolo da ação através de advogado (a), há a possibilidade de que o autor ingresse com seu pedido sem a necessidade do acompanhamento técnico, através da prestação de serviço, chamada “atermação”. Pois bem, além das varas, um dos setores que merece destaque e precisou se adaptar a nova realidade foi o NUCOD, especificamente da Seção de Palmas que é o responsável por todo o trâmite das perícias médicas e sociais, por secretariar e organizar as audiências, distribuição de processos aos JEFS, protocolos aos JEFS, pelas atermações e organização e promoção de itinerantes e alguns mutirões. Nota-se que são serviços, em sua maioria, com contato direto à população, advogados, entre outros. Portanto as medidas tomadas pelos Juizados Especiais Federais e Palmas, na maior parte pelo Juiz Coordenador dos JEFs no Tocantins (Dr. Diogo Souza Santa Cecília e Dr. Walter Henrique Vilela Santos) atingem diretamente à forma de serviço prestado pelo NUCOD. 3.3. COMPETÊNCIA DOS JEFS QUANTO AOS PROCESSOS PREVIDÊNCIÁRIOS É e de extrema importância abrir um tópico para os processos previdenciários dentro do contexto deste artigo, pois se tratam da grande maioria dos autos pertencentes aos JEFS e possui um número considerável de autores vulneráveis a toda a crise vivida no mundo atualmente, o que aumenta suas necessidades e a obrigatoriedade da proteção destes por parte do Estado em muitos os aspectos, inclusive em garantir seus direitos efetivados. A evolução socioeconômica teve como fator negativo a má distribuição de renda, o que levaram muitos à situação de miserabilidade, sendo necessária a responsabilização da Seguridade Social na proteção destes, para prevenir e remediar suas necessidades. Partindo desta análise, há de se pontuar que a proteção social foi dividida em três etapas, a assistência pública, o seguro social e a seguridade social. A assistência pública, no Brasil, foi prevista pela Constituição de 1824, em seu artigo 179, parágrafo 31, garantia os socorros públicos, este artigo é considerado equivalente ao artigo 5º da atual constituição vigente de 1988. Já não era suficiente apenas a assistência pública na forma de caridade, foi necessário criar outros mecanismos para garantir que os indivíduos que se encontram em situações vulneráveis, sendo elas temporárias ou não, como o desemprego, doenças, orfandade, entre outros, fossem todos segurados. Podemos analisar o que preconizava Manuel Alonso Olea e José Tortuero Plaza (traduzimos): Dito de outra forma: amadurece historicamente a idéia de que se deve ter um direito à proteção, que as prestações previstas são ‘juridicamente exigíveis’, direito que deriva da contraprestação prévia em forma de quotas pagas pelos beneficiários ou por um terceiro por conta daquele. Partindo destas noções introdutórias é importante observar que a seguridade Social se encontra no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 onde enumera os direitos sociais que objetivam a redução das desigualdades sociais e regionais. É o famoso tripé por ser composto pelo direito à Saúde, Assistência Social e Previdência Social, seu conceito se encontra no artigo 194 da CF/88, “Conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Seguindo deste conceito é possível observar e esmiuçar de que é de competência do Juizado Especial Federal, conforme artigo 3º, da Lei 10.259/2011 “Art.3º. Compete ao juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de 60 (sessenta) salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.” as ações previdenciárias contra o INSS (autarquia Federal), como salário-maternidade, auxílio-doença. Pensão por morte, aposentadorias em geral como parte do direito à previdência Social e que necessitam obedecer a alguns requisitos legais como o pagamento de quotas anteriores pelo próprio beneficiário ou por outrem em favor deste. Há também o Benefício da Prestação Continuada (BPC) que faz parte do direito à assistência social, assegurando o idoso ou deficiente que não puderam contribuir anteriormente, mas que vivem em extrema e comprovada situação de miserabilidade. Nos dois casos, o fato importante é que de que há vulnerabilidade social, em não ser mais possível prover o próprio sustento por situações alheias à vontade do indivíduo, seja por doenças, mortes, idade avançada, entre outros. Ocorre que, as maiorias desses casos são urgentes, exigindo que o Judiciário se mova de forma constante e mais célere possível para apaziguar a situação extrema que o cidadão se encontra e garantir seus direitos. 3.4. MEDIDAS TOMADAS PELO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL DE PALMAS DO TOCANTINS Os Jefs de Palmas, contaram/contam com dois Juizes Federais Titulares como Coordenadores neste período de pandemia, Dr. Diogo Souza Santa Cecília e Dr. Walter Henrique Vilela Santos (atual coordenador) e desde de Março de 2020 criaram adaptações na prestação de serviço afim de cumprir com as regras de segurança da Organização Mundial da Saúde e as regras municipais. A primeira medida tomada foi a constar o teletrabalho preventivo para os servidores que poderiam aderir este meio, já que o antedimento presencial foi suspenso desde março de 2020 até o dia 05 de Outubro de 2020. Como por exemplo no Despacho proferido pelo Juiz Federal Diretor do Foro, Dr. Diogo Souza Santa Cecilia, amparado pela resolução Presi – 9953729 – Tribunal Regional Federal – 1ª região. A forma de atendimento que permite o acesso direto da população ao Judiciário se dá por meio da atermação. Inicial produzida por um servidor, sendo que em Palmas do Tocantins, são realizados pelo NUCOD/TO. Este modelo de atendimento era feito apenas de forma presencial, e atualmente de forma virtual. O jurisdicionado pode acessar um formlário no site potral.trf1.jus.br/sjto/ e aguardar o contato de volta da Seção para iniciar o protocolo da ação requerida. As informações podem ser apuradas na Portaria 10172293, do dia 30 de abril de 2020. Cabe destacar que o número de atermações aumentou de forma significatica por conta dos auxílios ermergenciais. No dia 04/05/2020, foi publicada a portaria 10183007, que determinou a realização, pelo NUCOD, da imediata citação do INSS em todos os processos localizados na Central de Perícias, assim foi possível o oferecimento de propostas de acordo pela representação jurídica do INSS, antes mesmo de algumas importantes fases processuais, como a perícia médica, social ou audiência. No mês de Junho de 2020, o Juiz Federal, Dr. Diogo Souza Santa Cecilia promulgou a Portaria 10277774, com o objetivo de realizar as audiências de forma vitual, através do aplicativo teams, plataforma utilizada para as reuniões e audiências. Segundo informação prestada pelo NUCOD, o novo formato de realização de audiências não foi imposto de forma obrigatória aos advogados, os mesmos foram consultados quanto à suas vontades em aderir ou não e orientados de como procederia o ato e podem, inclusive, acatar de forma parcial, com alguns de seus processos, escolhidos pelo próprio procurador, respeitando a ordem de protocolo. As audiências virtuais ocorrem até hoje , sem data fixa para término e possuem diversas vantagens como proteger as pessoas mais vulneráveis e grupos de risco do vírus, pois, não há a necessidade de deslocamento até a cidade de Palmas, podendo participar da audiência a figura do autor, testemunha, advogado, procurador, servidor, preposto, Juiz e conciliador (em casos de audiências de conciliação), cada um de suas residências ou do local mais acessível possível. O site do TRF1 divulgou uma nota em 24/09/2020 em que considera uma alternativa segura diante da necessidade de enfrentamento ao vírus, sem deixar de contribuir com a continuidade da prestação do serviço público. Frisou o sucesso dessas audiências com o alto número de acordos consensuais realizados na instrução, informando que entre os Juizados de Palmas e das Subseções de Araguaína e Gurupi, somam mais de R$ 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil reais) injetados na economia local, pois os valores são pagos por RPV (Requisição de Pequeno Valor). Ainda em meio a pandemia, houve o reconhecimento de que as perícias médicas eram parte das atividades essenciais, e haviam autores em casos críticos, esperando por esta etapa processual para o seguimento normal de seu processo. Segundo o NUCOD, havia um acumulo com mais de 1.000 processos a espera da realização das perícias médicas e que houve uma prévia discussão se as perícias poderam ser realizadas de forma telepresenciais ou não. Foi promulgada a portaria 10562537 do dia 10 de julho de 2020 , permitindo a marcação das perícias médicas nos consultórios particulares de alguns peritos que se manifestaram favoráveis a esta resolução provisória, os consultórios já possuiam locais adequados e preparados diante do enfrentamento ao vírus. A partir do mês de Agosto de 2020, as perícias médicas foram liberadas para serem realizadas com todo o quadro de peritos atuantes da Justiça Federal de Palmas, seguindo as regras de segurança como medição de temperatura, limite de pessoas dentro do recinto, assentos distantes um dos outros, disponibização de álcool em gel e limpeza constante da sala de espera e dos consultórios, a partir daí as perícias passaram a ser realizadas na própria Secção Judiciária de Palmas. Ainda segundo o NUCOD, desde o mês de Junho de 2020 as perícias médicas se encontram totalmente atualizadas, sem acúmulos exarcebados em filas de espera pelo exame técnico. Quanto às perícias sociais, essas permaneceram suspensas até o mês de setembro de 2020, devido a real necessidade da vísita técnica da perita na residência dos autores. O retorno foi autorizado pela portaria 10701761 do dia 27 de Setembro de 2020, respeitando todas as normas de segurança ditadas pela OMS. O retorno progressivo dos atendimento presenciais que não podem ser resolvidos por telefone, email ou pela plataforma usada pelo TRF1 (TEAMS) podem ser previamente agendados no site do Tribunal, conforme a Portaria 11352361, de 29/09/2020 do Juiz Federal Titular Eduardo de Melo Gama, Diretor do Foro.   4. RESULTADOS Com o decorrer de toda elaboração deste trabalho é possível perceber o aspecto legal e doutrinário da prestação de serviço público e suas questões principiológicas. Foi abordado também a respeito da situação inédita e imprevisível que alcançou todo o mundo, a pandemia declarada pela OMS em 11 de março deste ano de 2020. Uma das principais formas adotadas para assegurar a não transmissão do vírus pela OMS e demais autoridades na área da saúde foi o isolomento social. Com isso, de forma repentina foi necessário implantar o sistema de teletrabalho preventivo, sendo incentivado em todo o mundo, inclusive pelo Tribunal Regional Federal da 01ª região e consequentemente pelo diretor do foro da Seção de Palmas do Tocantins. Ocorre que muitos fatores estão em jogo neste desafio e há o objetivo de equilibra-los entre si. Trabalhar em Homme Oficce divide opiniões e argumentos entre a sociedade em geral, tendo pontuais desvantagens para o servidor público como por exemplo o isolamente do âmbiente de trabalho com os colegas, deixando de haver uma saudável interação entre eles e importantes vantagens como a melhor conciliação entre a vida familiar e profissional de quem goza do teletrabalho. Como foco, foi apresentado os aspectos práticos das decisões tomadas dentro dos JEFS de Palmas do Tocantins, especificamente com a efetivação de todas as portarias citadas no tópico 2.3.3. As medidas impostas de forma urgente garantiram a proteção da integralidade da saúde dos servidores e jurisdicionados e ao mesmo tempo, garantem que o serviço público continue a ser prestado.   CONCLUSÃO Diante do caso em tela, conforme ocorrem os fatos, é totalmente possível afirmar que a instituição do teletrabalho preventivo foi uma medida totalmente necessária e no ponto alto da crise da pandemia, é possível também aferir que se tornou a única opção a ser considerada em relação a não propagação do vírus da COVID-19. Infelizmente não há como precisar quando finalizará o contexto pandêmico e consequentemente o término do modo teletrabalho para quem aderiu de forma repentina. As medidas tomadas pelo poder judiciário seguem as normas e orientações das autoridades de Saúde do país. É razoável notar que os JEFs em questão buscam cumprir com os princípios norteadores do serviço público, sendo eles a base de toda prestação de serviço. Quando continuam a contribuir mesmo diante das dificuldades enfrentadas, pode-se perceber a busca em manter a qualidade, sem haver inércia por parte dos gestores no fornecimento desse trabalho. Conforme foi apresentado pelo site do TRF1 os ótimos resultados nas audiências que ocorrem de forma virtual contando com um bom percentual de acordos, e a agilidade na marcação das perícias e na finalização efetiva das atermações, dimuiram consideravelmente o acúmulo de processos em espera, que notoriamente apontam para resultados proveitosos e úteis à toda sociedade. É totalmente possível se notar o princípio da atualidade ao observar as adaptações nos andamentos desses processos ao tempo vivido, com maior uso e contato através da internet como principal ferramenta de trabalho e mais ainda perceptível o princípio da segurança, ao buscar preservar pela saúde de todos. Os desafios enfrentados são inúmeros e nada fáceis de serem resolvidos, o que gera ainda mais responsabilidade do Estado em proteger o cidadão. Há de se falar que o Estado é formado por seres humanos, na condição de servidores públicos e que passam todos por dificuldades de adaptação à essa nova realidade, sendo elas temporárias ou não, no âmbiente profissional, familiar e social, o que corrobora para a genuína necessidade de se unir forças afim de minimizar os danos enfrentados e superar com avanços significativos na vida de de cada cidadão .
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/a-eficacia-da-prestacao-do-servico-publico-no-juizado-especial-federal-de-palmas-do-estado-do-tocantins-atraves-do-teletrabalho/
O Impacto da Pandemia Causada Pela COVID-19 Nas Contratações Públicas No Brasil – Comentários à Lei nº 13.979/2020 Alterada Pela Lei nº 14.035/2020
O objetivo deste estudo foi analisar no âmbito das contratações públicas os impactos causados pela pandemia proveniente da COVID-19 no Brasil tecendo comentários à Lei nº 13.979/2020 alterada pela Lei nº 14.035/2020. Neste trabalho serão discutidas as legislações criadas e as consequentes alterações com o objetivo de regulamentar e atender as demandas de urgência na realização de contratações públicas para aquisição de insumos e serviços que atendam às necessidades da saúde durante a fase pandêmica vivenciada no país. Nesse sentido, as legislações acerca do assunto foram analisadas e concluiu-se que há possibilidade de celeridade na realização dos atos administrativos bem como necessidade de cautela por parte dos agentes públicos na realização dos seus atos, devendo sempre que necessário e conforme previsto em lei serem justificados para que, quando da fiscalização por parte dos órgãos de controle, não haja penalizações pela inobservância das legislações e os normativos criados sejam usados única e exclusivamente em benefício da população, atendendo o interesse público maior que é o direito à vida.
Direito Administrativo
Introdução A pandemia causada pelo COVID-19 trouxe inúmeros reflexos na saúde e na economia do país e de forma impactante nas contratações públicas já que frente a uma doença de fácil transmissão, sem ter conhecimento de método estabelecido de tratamento precoce e cura, os números de infectados desde a confirmação do primeiro caso no Brasil subiram de forma expressiva e consequentemente o número de mortes. A necessidade de aquisição de insumos e prestação de serviços de forma urgente foi imposta de maneira súbita e inesperada pelos gestores públicos, fazendo-se necessário a criação de legislação específica e própria, com regras que pudessem agilizar as contratações e atender o momento de emergência. É nesse contexto que o presente trabalho tem o objetivo de refletir sobre o impacto da pandemia nas contratações públicas, tecendo comentários a lei nº 13.979/2020 que logo após foi alterada pela lei nº 14.035/2020. Neste artigo também foi explanadaa participação das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações durante a pandemia, assunto de suma importância visto que durante esse momento os pequenos negócios estão mais frágeis e deve o poder público prestar assistência de proteção e fomento as ME e EPP podendo ser feito por intermédio das contratações públicas. Para alcance do objetivo proposto, foi utilizada como metodologia a pesquisa bibliográfica e análise da legislação aplicável, suas principais inovações e alterações, criadas a fim de garantir que o interesse público fosse atingindo bem como fossem respeitados os princípios que regem as contratações públicas em nosso país. Portanto a seguir serão descritos e discutidos temas relevantes sobre as contratações públicas, com ênfase nas principais mudanças trazidas e a forma como o órgão público deverá contratar durante a pandemia, orientando os agentes públicos na prática dos atos administrativos.   1 A decretação do estado de calamidade pública no Brasil causada pela pandemia proveniente da COVID-19 A descoberta de uma nova doença que assolaria a humanidade na atualidade ocorreu em dezembro de 2019, onde o coronavírus SARS-Cov-2 foi identificado pela primeira vez em seres humanos na cidade de Wuhan na China. O novo coronavírus, como ficou rapidamente conhecido por toda população mundial, é causador da COVID-19, uma doença que, quando contaminado, o paciente possa apresentar um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves com possível evolução à óbito. Os primeiros casos de contaminação ocorreram na China, aparecendoem seguidapor diversos outros países e rapidamente se espalhando por todo planeta. Uma doença nova, sem estudos ou comprovações de qualquer tratamento ou medicamento eficiente para a cura, gerou uma grande instabilidade mundial. Diante do cenário caótico que rapidamente se instalou no mundo com o rápido contágio e o aumento no número de mortes, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou a Pandemia do Covid-19, a infecção causada pelo coronavírus.[1]Essa declaração impactou, além das relações sociais, a economia global, inclusive no nosso país. Toda sociedade internacional vivenciou o isolamento social como medida de contenção da propagação do vírus. No Brasil o Decreto Legislativo nº 06/2020 reconheceu o estado e calamidade pública em nosso país em 20 de março de 2020, publicado no Diário Oficial da União.[2] Com a publicação do decreto ficou caracterizado que o Brasil precisaria gastar mais em saúde do que o previsto e aprovado na Lei Orçamentária Anual (LOA) para o ano. O Governo Federal ficou dispensado, neste momento, de cumprir a meta fiscal determinada para este ano entre despesas e receitas. [3] Diante do cenário assustador e após publicação do decreto, fizeram-se necessárias a adoção de diversas medidas no âmbito do Direito Administrativo para que fosse possível amenizar os danos causados pela pandemia a saúde e economia do Brasil. Normas foram elaboradas e publicadas para que os governos federais, estaduais e municipais pudessem ter maior agilidade no atendimento à população. “Na prática, para oferecer os meios necessários aos administrados, a Administração, entre outras ações, necessita contratar serviços e adquirir materiais que possibilitem o pronto enfrentamento à situação”. (BITTENCOURT, 2020). Dessa forma, veremos a seguir as normas publicadas para regulamentação das contratações públicas para combate a COVID-19 nesse período de pandemia.   2 As contratações públicas regidas pela Lei nº 13.979/2020 Uma das medidas adotadas pelo Presidente da República do Brasil, considerando o avanço da contaminação de uma doença que ainda não existem comprovações científicas sobre medicação ou tratamentos que levem a cura ou até mesmo que possam ser usados na prevenção, foi a publicação da Lei nº 13.979/2020 que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Referida Lei, ao tratar sobre contratações, classifica-se como uma norma geral de licitações e contratos públicos, em observância ao Artigo 22, XXVII, da Constituição Federal de 1988[4], portanto tal normativa se torna aplicável a todos os entes da Federação, podendo inclusive ser regulamentada por eles, desde que avaliem a real necessidade dessa regulamentação. A Lei nº 13.979/2020 trouxe inúmeras providências no combate a Pandemia, dentre elas e especialmente no âmbito das contratações públicas, criou uma nova opção de Dispensa de licitação. Além disso, logo após com a expedição da Medida Provisória nº 926/2020 que alterou a Lei nº 13.979/2020, também foram normatizadas regras especiais para outros procedimentos licitatórios e contratuais para o período da pandemia. Dentre as medidas trazidas, criou-se uma hipótese adicional de dispensa de licitação, bem como disciplinou, principalmente com a edição da Medida Provisória nº 926/2020, normas licitatórias e contratuais para o período de combate do coronavírus.   2.1 A Dispensa de Licitação criada pela Lei nº 13.979/2020 O artigo 4º da Lei nº 13.979/2020, trouxe a hipótese de dispensa de licitação, sendo esta específica para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.[5]Referida hipótese é excepcional, visto que se trata de uma dispensa que tem fundamento legal e requisitos baseados na situação de emergência vivenciada no país, não devendo ser confundida com a situação prevista no Artigo 24, inciso IV da Lei 8.666/93.[6]   2.1.1 A dispensa de Licitação para Registro de Preços de acordo com a Medida Provisória 951/2020 De acordo com a o Artigo 2º, do Decreto 7.892/2013, inciso I, entende-se por Sistema de Registro de Preços o conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras, tal procedimento se formaliza com a elaboração da Ata de Registro de Preços que terá sua validade não superior a 12 meses. A Medida Provisória 951/2020 que estabelece normas sobre compras públicas, sanções em matéria de licitação e certificação digital e dá outras providências, trouxe uma opção para dar agilidade nas contratações, considerando as inseguranças de estipulação dos quantitativos a serem adquiridos pela Administração Pública diante de um cenário de Pandemia, sendo que a opção de Registro de Preços também traz a possibilidade de atendimento simultâneo a diversos órgãos através da realização de um único procedimento. De acordo com CAMARÃO (2020), a MPV 951 acrescenta ao ordenamento jurídico pátrio “(i) hipótese de contratação mediante registro de preços a partir de dispensa de licitação; (ii) aplicação do Decreto 7.892/2013 nas contratações regidas pela Lei 13.979/2020 por todos os entes federativos; (iii) redução dos prazos para IRP; e (iv) equiparação automática as compras nacionais das licitações na modalidade de pregão eletrônico ou presencial fundadas no art. 4º – G da Lei 13.976/2020”. A Ata de Registro de Preços segundo o Decreto 7.892/2013 terá validade de até 12 meses, mas para a questão em comento, devemos observar que a Lei nº 13.979/2020 tem vigência condicionada ao seu artigo 8º, ou seja, enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019[7], devem os gestores estar atentos ao prazo para que seja realizado o seu cancelamento, caso seja necessário. A Medida Provisória 951/2020 em seu §5º acrescenta que, na hipótese de inexistência de regulamento específico, o ente federativo poderá aplicar o regulamento federal sobre registro de preços, bem como no § 6º foram estipulados os prazos para que outros órgãos e entidades manifestem interesse em participar do sistema de registro de preços nos termos do disposto no § 4º e no §5º.[8] “A vantagem do compartilhamento das demandas de todos os interessados se baseia no chamado ganho da economia de escala, com o qual se obtém resultados mais competitivos quanto aos custos dos produtos e serviços, sem olvidar a redução do número de licitações e, consequentemente, de todos os custos que envolvem a operacionalização dos seus procedimentos, resultando em celeridade, desburocratização e redução do rito administrativo aquisitivo.” (CAMARÃO, 2020). O § 4º da Medida Provisória trouxe a indicação de que as licitações realizadas através do SRP serão consideradas compras nacionais, nos termos do disposto no regulamento federal, ou seja, o órgão gerenciador conduz os procedimentos para registro de preços destinado à execução descentralizada de programa ou projeto federal, mediante prévia indicação da demanda pelos entes federados beneficiados.   2.2 O Pregão com base na Lei nº 13.979/2020 O pregão, uma das modalidades de licitação seja ele eletrônico ou presencial, foi regulamentado no Art. 4º G da Lei nº 13.979/2020[9]. Não sendo estipulada a obrigatoriedade do uso do Pregão Eletrônico, contudo deve ser observada a Instrução Normativa nº 206, de 18 de outubro de 2019 que estabelece os prazos para que órgãos e entidades da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, utilizem obrigatoriamente a modalidade de pregão, na forma eletrônica, ou a dispensa eletrônica, quando executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, tais como convênios e contratos de repasse, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns[10]. Nesse ínterim, a Controladoria Regional da União no Estado do Maranhão publicou Ofício Circular nº 83/2020/Maranhão-CGU, endereçado aos Prefeitos Municipais e Secretários Estaduais com recomendações relacionadas à execução de certames licitatórios durante a pandemia da Covid-19. Considerou-se que, com as medidas de prevenção e isolamento social, as licitações presenciais poderiam reduzir a competitividade da disputa bem como oferecer risco aos participantes e aos agentes de compras.[11] Ainda nesse sentido foi orientando aos gestores que a contratação de bens ou serviços comuns no âmbito das transferências voluntárias celebradas com a União, encontra obrigatoriedade do uso do Pregão Eletrônico desde outubro de 2019 para órgãos estaduais, e começou ter aplicabilidade para os municípios com 50.000 (cinquenta mil) habitantes ou mais desde 03/02/2020, e para municípios entre 15.000 (quinze mil) e 50.000 (cinquenta mil) habitantes e entidades da respectiva administração indireta a partir de 06 de abril de 2020 e a partir de 1° de junho de 2020, para os Municípios com menos de 15.000 (quinze mil) habitantes e entidades da respectiva administração indireta. Considerando ainda a orientação da Controladoria Regional da União no Estado do Maranhão, ficou aludido que quanto à realização de certames presenciais já agendados para objetos não urgentes, que os mesmos fossem revogados ou suspensos, adotando algumas diretrizes gerais que foram relacionadas no ofício. Quanto à realização dos certames presenciais durante a Pandemia, também foi expedida Orientação pelo Tribunal de Contas do estado de Minas Gerais, que vai de encontro ao mencionado no Ofício Circular nº 83/2020/ Maranhão-CGU[12]. A Lei nº 13.979/2020 trouxe a possibilidade da redução do prazo de publicidade do ato convocatório do Pregão para 4 (quatro) dias úteis, consideramos que o legislador, ao pensar em como dar agilidade às contratações públicas reduziu o prazo,criando circunstâncias para uma contratação mais rápida e eficaz, podendo assim vidas ser salvas. Diante disso todos os demais prazos foram reduzidos,de forma que se o prazo original for um número ímpar, arredonda-se para baixo. Assim, o prazo de impugnação dos editais passa a ser de um dia. Os prazos para apresentação das razões e contrarrazões dos recursos também serão de um dia. Os recursos terão apenas efeito devolutivo, não suspendendo a continuidade do procedimento licitatório. Segundo Martins, Almeida e Maciel (2020, p.33) “Com o intuito de dar maior celeridade nas contratações, nos Pregões com valores superiores a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea “c” da Lei 8.666/93, ou seja, 330 milhões fica dispensada a realização de audiência pública prevista no art. 39 da Lei 8.666/93. Neste caso, o legislador somente dispensa a realização de audiência pública para os Pregões decorrentes da Lei 13.979/2020.” A Lei 13.979/2020 trouxe a possibilidade do órgão que estiver realizando o procedimento licitatório com base na referida lei, dispensar no ato convocatório alguns documentos de habilitação, segundo artigo 4º F da lei supramencionada, “Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição.” (BRASIL, 2020).   2.2.1 Participação das empresas declaradas inidôneas ou impedidas de participar de licitação Diante de um cenário pandêmico, em que há falta de produtos, principalmente os insumos de saúde, diante do número diário crescente de mortes em cada estado brasileiro e ainda considerando que o resultado para aquisição dos produtos para saúde deverá ocorrer de forma rápida para que assim inúmeras vidas sejam salvas, o legislador através da MP 926/2020 determinou que inclusive as empresas declaradas inidôneas ou impedidas de participar de licitação e serem contratadas por qualquer órgão ou entidade, independentemente da esfera, poderiam participar das licitações e contratos que fossem oriundos da necessidade de aquisição de produtos ou serviços para combate a pandemia, com a ressalva de serem essas empresas comprovadamente as únicas fornecedoras do bem ou serviço a ser adquirido. Nesse sentido ainda de acordo com ALCÂNTARA e REIS (2020, pág.7). “Com o digno respeito, parece-nos que aqui dever-se-ia abrir exceção para todo e qualquer contrato, independentemente da condição de ser a única fornecedora ou prestadora do objeto pretendido, isto porque o poder de resposta que o Estado precisa não pode ficar preso a formalismos estéreis, ainda mais quando o bem jurídico tutelado é a vida, o que per si justifica o arrefecimento de algumas regras corriqueiras nas licitações no Brasil. Além disso, uma crítica para a prescrição normativa insculpida na Lei é que se o fornecedor é único e exclusivo do bem ou do serviço, por conseguinte, partindo do interesse público legítimo para a contratação, o Poder Público não tem opção: ou contrata ou fica sem e perece a saúde coletiva. Partindo para a situação prática, se a Administração se depara com uma necessidade a ser atendida e precisa encontrar um fornecedor ou prestador de serviço em um dia, caso só encontre apto a atender a demanda um particular que esteja enquadrado nas situações excludentes acima citadas, deve considerar que aquele é o único, pois não disporá de tempo para buscar alternativas. Percebam que a lei não estabeleceu os mecanismos de comprovação da exclusividade, tal qual o fez na situação de inexigibilidade da Lei 8.666/1993. De todo modo, cabe orientação no sentido de retratar no processo de contratação a busca realizada pela Administração.  Ante tais razões, não se vislumbra grande utilidade neste dispositivo inserido no parágrafo terceiro do artigo 4º da Lei nº 13.979/2020, apesar de ser um “salvo-conduto” normativo ao gestor público que anda amedrontado com os controles recebidos nos últimos anos e sua responsabilização”.   3 A participação das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações durante a Pandemia Na lei 8.666/93 que regula as contratações que utilizam recursos públicos podemos encontra dois pilares fundamentais.São eles a sustentabilidade e o desenvolvimento nacional, ou seja, além das questões de finalidade ambiental, econômica e social, o gestor ao realizar as contratações públicas de fornecimento ou prestação de serviço deverá utilizá-las também como um instrumento de fomento à economia do estado. Essas ações há tempos são realidade na administração pública, onde as compras públicas podem ser usadas como um meio da prática de políticas públicas. As microempresas e empresas de pequeno porte têm movimentado o país e representam cerca de 27% (vinte e sete por cento) do PIB[13], sendo assim sua representatividade no país é de suma importância para a economia. Apesar da grande representatividade as micro empresas e empresas de pequeno porte são mais vulneráveis quando impactadas por fatores como a pandemia, pois são empresas que não possuem muitos recursos de produtos, materiais e recursos humanos e financeiros que possa enfrentar um momento difícil como esse, quando está sendo necessário o distanciamento social e diversos setores da economia, incluindo os pequenos negócios, tiveram que baixar suas portas como medida de enfretamento a propagação do vírus. De acordo com SANTOS (2020), “Em outros termos, as ME têm menor potencialidade de sobrevida do que as empresas médias e grandes. Nesta perspectiva, as situações de crise econômica, seja de que natureza forem, tem impacto mais relevante entre as ME do que entre as empresas médias e grandes” A Constituição Federal de 1988 trouxe como dever ao estado dar tratamento diferenciado e favorecido para as pequenas empresas, dessa forma a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 expressamente previu esse fato ao tratar de contratações públicas em seu artigo 47, vejamos: “Art. 47. Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.”(BRASIL, 2020). Diante desse cenário, é importante que os gestores públicos do país, possam observar e se atentar ao disposto na legislação para que se possa buscar proteger os pequenos negócios. Nesse sentido o Tribunal de Contas do estado de Minas Gerais, expediu Ofício circular n. 01/PRES./2020 orientando a seus jurisdicionados no que diz respeito à preocupação com a economia regional, vejamos:“Além das questões prioritárias com a saúde da população, naturalmente há preocupação com os impactos socioeconômicos, bem como com a manutenção da economia e da renda local e regional. Em razão do isolamento social e das determinações de fechamento de estabelecimentos comerciais para contenção da disseminação do COVID-19, faz-se necessária política de fomento a esses empreendimentos, em especial às micro e pequenas empresas, ajudando-os a continuarem ativos e a sustentarem o vínculo laboral com seus empregados. Por essa razão, em consonância com a orientação da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – Atricon, constante do Ofício 43/2020, recomendo que seja observado o disposto no Capítulo V da Lei Complementar Nacional nº 123/2006, que estabelece tratamento diferenciado, nas aquisições públicas, para as microempresas e empresas de pequeno porte. Recomendo, também, que o tratamento diferenciado se estenda às hipóteses de dispensa de licitação previstas na recente Lei Nacional nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, assim como o próprio Tribunal vem procedendo”.[14]   4 Algumas das alterações na Lei nº 13.979/2020 trazidas pela Lei nº 14.035/2020 no âmbito das contratações públicas A princípio e ainda de acordo com o texto da legislação da Lei nº 14.035/2020, podemos verificar que em seu artigo 4º §2º[15] foi estipulado prazo determinado pelo legislador como sendo de 05 (cinco) dias para publicação de todas as aquisições ou contratações que tem por justificativa o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata a referida norma, prazo esse contado da realização do ato em site oficial específico na internet e ainda que deverão ser observados alguns requisitos a serem disponibilizados, como o nome do contratado, o número de sua inscrição na Secretaria da Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de aquisição ou contratação, além de outros tais como o ato que autoriza a contratação direta ou o extrato decorrente do contrato, a discriminação do bem adquirido ou do serviço contratado e o local de entrega ou de prestação, o valor global do contrato, as parcelas do objeto, os montantes pagos e o saldo disponível ou bloqueado, caso exista, as informações sobre eventuais aditivos contratuais, quantidade entregue em cada unidade da Federação durante a execução do contrato, nas contratações de bens e serviços. Já em uma primeira análise podemos perceber que diferentemente da Lei 13.979/2020 que previa que referida disponibilização das contratações ou aquisições deveria ser “imediatamente” disponibilizadas em sítio oficial, na redação imposta pela Lei nº 14.035/2020 foi fixado prazo, o que colaborou para que, ao realizar o ato, o gestor não tenha dúvidas de qual prazo deverá ser observado para que possa ser dada publicidade e transparência as aquisições ou contratações, bem como foram definidos expressamente todos os requisitos que deverão constar na publicação. Já no§ 3º do artigo 4º da Lei 14.035/2020[16], ao tratar da excepcionalidade de contratar fornecedora de bem ou prestadora de serviço, o que já foi amplamente discutido nesse artigo quando se tratou em item especifico no âmbito da Lei 13.979/2020, aqui nos cabe observar que de acordo com a nova lei fora incluído pelo legislador a sanção de “impedimento de licitar”, o que não constava na lei anterior. Nesse aspecto observamos que referida sanção está prevista no artigo 7º da Lei nº 10.50/2002 que regulamenta o pregão, deve ser ressaltado e observado pelo poder público que se trata de uma excepcionalidade e que caso ocorra à aquisição ou prestação de serviço desse fornecedor deverá sua contratação ser devidamente justificada no processo, portanto a possibilidade de contratação de empresa declarada inidônea que estava prevista no texto original foi retirada. Prosseguindo o §3º-A[17]trouxe a obrigatoriedade da prestação de garantia de até 10% do valor do contrato no caso de contratação de empresas impedidas ou suspensas do direito de licitar, o que deverá ser observado com atenção pela administração pública, pois a Lei nº 8.666/93 traz essa situação como faculdade, ou seja, poderá ser exigido ou não e a lei nº 14.035/2020 trouxe como obrigatoriedade. A avaliação pelo agente público do percentual a ser exigido faz-se necessário pois se exigido um valor muito alto de garantia pode ocorrer que não haja interesse de participação no certame por parte dos licitantes ou até mesmo que a licitação corra de forma restrita. O artigo 4º-E §3º[18]da Lei nº 14.035/2020 também merece ser discutido, principalmente por tratar da possibilidade da aquisição ou contratação de bens ou serviços com valores acima do estimado decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, situação essa que se apresenta durante um momento de pandemia mundial quando os preços do mercado se tornam voláteis, e o preço que se adquirir um produto em um dia no próximo já poderá estar com valor alterado.E com a administração pública não poderia ser diferente, os valore estimados de uma licitação, fixados em sua fase de pesquisa de mercado, quando do momento da contratação já poderão ter sofridos alterações tanto para cima quanto para baixo.O legislador, de forma racional, estipulou duas condições para que seja avaliada a proposta do melhor colocado bem como a fundamentação das aquisições ou contratações com preços elevados e os relacionou nos incisos I e II do artigo 4º-E §3º, vejamos: “I – negociação prévia com os demais fornecedores, segundo a ordem de classificação, para obtenção de condições mais vantajosas; e II – efetiva fundamentação, nos autos da contratação correspondente, da variação de preços praticados no mercado por motivo superveniente.”(BRASIL,2020). A Lei nº 13.979/2020 já havia trazido mudanças no sentido de ser possível a dispensa de alguns documentos de habilitação mediante justificativa quando houvesse restrição de fornecedores ou de prestadores de serviços de forma excepcional. A conversão da MP 962/2020 na Lei nº 14.035/2020 em seu art. 4º – F[19]e logo após a edição da Emenda Constitucional nº 106/20 que instituiu um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia, trouxe em seu parágrafo único do artigo 3º[20]autorização na seguinte forma: “Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal.” Diante disso e considerando que a MP 926/2020 foi editada anteriormente a EC 106, referida medida não contemplou a nova regra que, por algum motivo, também não foi introduzida na redação do art. 4º F da nova Lei nº 14.035/2020. Dessa forma devemos considerar que a flexibilização apresentada na legislação para a dispensa de documentos de habilitação poderá ser aplicada nas contratações de combate a pandemia da COVID-19, com as devidas justificativas, mesmo com empresas que estejam em situação de irregularidade previdenciária, com base no citado parágrafo único, do art. 3º, da EC 106. No que concerne a vigência e prorrogação dos contratos celebrados sobre a lei nº 14.035/2020, o artigo 4-H dispõe que terão prazo de duração de até 6 (seis) meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto vigorar o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, respeitados os prazos pactuados, portanto essa inclusão demonstra a possibilidade de prorrogação contratual desde que observado o prazo estipulado no Decreto legislativo retro mencionado. Diante de todo o exposto e depois de verificadas as diversas alterações trazidas pela Lei nº14.035/2020, diante de um momento pandêmico em que todos os dias são computadas novos números de mortes, qualquer ato a ser tomado pelo gestor deverá ser amplamente analisado para que sejam evitados excessos nas contratações e, acima de tudo, que a população não seja desamparada nesse momento difícil em que a atuação do poder público é fundamental.   Conclusão Nesse artigo buscou-se fazer a análise do impacto da pandemia no âmbito das contratações públicas através do estudo da Lei nº 13.979/2020 alterada pela Lei nº 14.035/2020, com ênfase em algumas de suas principais mudanças. Dentre elas a permissão de realização de dispensa de licitação desde que seja observado o prazo de encerramento da pandemia, inclusive podendo ser feita através do sistema de registro de preços. A possibilidade de realização de pregão com prazos reduzidos com o objetivo de dar celeridade ao processo, oportunidade em que fora discutido se haveria a obrigatoriedade do uso do pregão eletrônico, demonstrado através de diversos documentos orientações expedidas pelos órgãos de controle nesse sentido. A possibilidade da participação das empresas declaradas inidôneas ou impedidas de participar de licitação que logo após foi alterada pela lei nº 14.035/2020 em que o termo ‘empresa declarada inidônea’ foi retirado e substituído por‘impedimento de licitar’. Foi dado destaque a participação das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações durante a pandemia como prática de políticas públicas de fomento aos pequenos negócios nesse momento difícil. E por fim foram discutidas algumas das alterações na lei nº 13.979/2020 trazidas pela Lei nº 14.035/2020 como forma de aperfeiçoamento da legislação e para uma melhor atuação dos agentes administrativos ao trabalhar em sua aplicação. Diante de todo o exposto, com todas as inovações legislativas acerca das contratações públicas, o objetivo principal deste trabalho foi analisar como elas influenciaram para que todos os atores envolvidos pudessem atuar com maior agilidade no atendimento dos interesses da sociedade, principalmente na flexibilização de alguns pontos que “engessavam” as contratações públicas no país, não podendo deixar de serem observados pelo gestor público os casos em que será necessária a realização de justificativas e principalmente a transparência dos atos. Um momento difícil em que toda população se vê ameaçada por um vírus conhecido que já se conhece seu nome, mas se desconhece as ferramentas eficazes ao seu combate. O direito à vida anda lado a lado com todos os princípios norteadores das contratações públicas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-impacto-da-pandemia-causada-pela-covid-19-nas-contratacoes-publicas-no-brasil-comentarios-a-lei-no-13-979-2020-alterada-pela-lei-no-14-035-2020/
Uma análise do comportamento das decisões judiciais frente a requisição administrativa por respiradores durante a pandemia de COVID-19
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa e análise jurisprudencial sobre as decisões envolvendo conflitos advindos da requisição administrativa por respiradores pela rede pública de saúde, em razão da super demanda, ocasionada pela situação de pandemia do COVID-19, a qual afetou em grande número os estados brasileiros. Em um primeiro momento busca explicar os litígios, mostrando de que maneira eles vêm ocorrendo. Depois apresenta as decisões, observando a partir delas, quais têm sido suas tendências e fazendo uma crítica. Utiliza como metodologia, a busca por referências bibliográficas onde se publicam as sentenças, além da doutrina, como auxiliar na análise dela.
Direito Administrativo
Introdução Em dezembro de 2019, foi identificada uma nova doença nomeada de COVID-19, causada por um coronavírus, que é uma grande família de vírus comum em muitas espécies de animais, raramente infectando seres humanos. No entanto, o denominado SARS-CoV-2, foi identificado em Wuhan na China e se transmite entre as pessoas (OPAS, 2020). A doença pode apresentar quadros que variam de assintomáticos à graves, dos quais o afetado pode apresentar dificuldade para respirar e necessitar de suporte ventilatório (Id., 2020). Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou que o surto da doença (COVID-19) seria Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, que é o maior nível de alerta da Organização segundo o Regulamento Sanitário Internacional. Posteriormente, em março, a doença foi caracterizada pela Organização, como uma Pandemia, quando uma doença deixa de afetar apenas uma região e passa a atingir diferentes continentes (Id., 2020). No dia 26 de fevereiro de 2020, o Brasil registrou o primeiro caso da doença em um homem de 61 anos no estado de São Paulo e se tornou o primeiro país da América Latina a relatar a doença (AMORIM; MARINS, 2020). Por causar infecção nos pulmões e consequentemente, dificuldade para respirar em pacientes com estado grave, a oxigenação do sangue e a capacidade de eliminar gás carbônico, fica comprometida. Com isso, há necessidade de utilização de um aparelho que o ajude a manter um nível satisfatório de oxigênio para sua sobrevivência (OLIVEIRA, 2020). Existem dois tipos principais de ventiladores mecânicos, um por meio de cateter (tubos) ou máscara, conectado a uma máquina, que “empurra” o ar para dentro dos pulmões e deixa o ar sair na expiração, o qual faz com que muitos se recuperam. Mas caso não haja sucesso nessa técnica, se opta por um ventilador mecânico invasivo, onde o tubo é inserido pela boca até a traqueia, enquanto a pessoa é sedada para não se sentir desconfortável. Com isso os pulmões descansam e se recuperam (Id., 2020). Com o rápido avanço da doença, a demanda por esses equipamentos cresceu de forma exponencial, de maneira que, houve falta dele para muitos pacientes da rede pública. Diante disso, o poder público se viu diante de uma situação onde o instituto da requisição administrativa, seria necessário. A requisição administrativa é uma forma de intervenção do Estado na propriedade particular, prevista no artigo 5º, inciso XXV da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), in verbis: “(…) no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;” (BRASIL, 1988). Conforme define Hely Lopes Meireles (1998, p. 511):   “[…]é a utilização coativa de bens ou serviços particulares, pelo Poder Público, por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante e indenização ulterior, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias.” (MEIRELES,1998,p. 511)   Ainda conforme exemplifica Dirley da Cunha Júnior (2015, p. 421):   “Cuida-se de modalidade de intervenção na propriedade particular, fundada na urgência, por meio da qual o Estado faz uso de bens móveis e imóveis ou serviços prestados por particulares, em face de situações de iminente perigo público (como por exemplo, grave deficiência no atendimento à saúde pública; epidemias; calamidades públicas; inundações; catástrofes, etc).” (JÚNIOR, 2015, p. 421, grifo nosso)   De forma simplificada, em uma situação de extrema necessidade, em que haja urgência na utilização de algum bem do particular, o Estado pode solicitá-lo para ser usado, de maneira coatora, pagando pelo o devido posteriormente. Como no caso da pandemia, onde, não havendo respiradores suficientes na rede pública, é possível se solicitar de empresas particulares. A requisição em regra é uma forma de intervenção restritiva na propriedade, ou seja, o particular não perde a propriedade do bem (FILHO, 2014, p. 796). No caso de bens móveis e fungíveis, a coisa não poderia ser restituída ao dono, por isso se tornaria uma intervenção supressiva, ainda assim, não pode se confundir com a desapropriação, pois conforme explica Júnior (2015, p. 422), na desapropriação a indenização é feita antes, ao contrário da requisição, onde se indeniza depois, também em decorrência de seu caráter urgente, não depende de apreciação do judiciário para imissão na posse, sendo executada diretamente pela Administração Pública, ao contrário da desapropriação. A requisição tem como pressuposto essencial o caráter urgente, sem o qual o particular pode questioná-la judicialmente para invalidá-la (FILHO, 2014, p. 805). A prescrição para postular indenização se for o caso, consuma-se em cinco anos contados a partir do momento em que o uso do bem pelo Poder Público se inicia, conforme o parágrafo único do artigo 10 do Dec. Lei 3.365 (BRASIL, 1941). A Constituição coloca como competência da União legislar sobre requisição no artigo 22, inciso III (BRASIL, 1988), nada impede que a execução desse ato seja feita por demais entes federativos se presentes os pressupostos circunstanciais exigidos pela Constituição e pela lei. A Lei 8.080 de 1990, regula as condições para promover, proteger e recuperar a saúde e a organização e funcionamento de seus serviços. No artigo 15, inciso XIII, assegura:   “Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: (…)XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;” (BRASIL,1990, grifo nosso)   Em fevereiro de 2020 foi promulgada a Lei n° 13.979 dispondo sobre medidas a serem adotadas no enfrentamento a pandemia, a qual seu artigo 3°, inciso VII, diz que as autoridades podem requisitar bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, garantidas a elas, indenização posterior. No caso em questão podem o Ministério da saúde e gestores locais de saúde, agirem, em acordo ao § 7º, incisos I e III do referido artigo (BRASIL, 2020). Deve-se atentar ao fato de que a requisição administrativa, como forma de intervenção do Estado na propriedade privada, deve ser utilizada como último recurso, afim de alcançar o objetivo primordial da administração pública, que é o interesse coletivo. Pois ao mesmo tempo que a constituição defende o interesse social, também coloca como direito fundamental as garantias individuais, como a propriedade privada, como se verifica no seu art. 5°, inc. XXII (BRASIL, 1988). O objetivo desta pesquisa é investigar de que maneira o Poder Público na esfera federal, estadual e municipal tem feito a requisição de aparelhos tão importantes para combater a doença que se alastra na população, os litígios que tem surgido a partir disso e como os tribunais tem lidado com eles, através de uma busca por jurisprudências.   A respeito do tema, encontra-se os mais diversos litígios relativos a ele, seja entre o poder executivo Estadual e empresas que fornecem os respiradores, ou daquele com hospital particular e até mesmo entre entes federativos, União e Estado, por exemplo.   1.1. Concorrência entre a rede pública e privada O hospital particular São Francisco, em São Roque, no estado de São Paulo, entrou com pedido em sede de Mandado de Segurança, para reaver sete respiradores que foram requisitados pela prefeitura da cidade com base em um decreto municipal de calamidade pública (VIAPIANA, 2020). Segundo o hospital, os equipamentos foram retirados de maneira inadequada (BRASIL, TJ-SP, 2020, p. 84). Alegou o hospital que houve violação ao princípio da legalidade, pois o decreto não havia sido ainda publicado no Diário Oficial, na data da medida que foi executada. Tratando-se, portanto, de uma medida de caráter liminar. O hospital também relatou que suas atividades foram prejudicadas pela requisição. (Id, 2020, p. 82) Em casos como esse, fica exposta uma concorrência entre a saúde como um serviço público sendo prestado pelo Estado e pela iniciativa privada. Uma das questões a serem levadas em conta, é se o Estado pode ter preferência sobre o particular na falta de um equipamento essencial na rede pública, onde os mesmos estão em um número mais do que suficiente naquele. Ou ainda quando a requisição do Estado sobre o privado causaria um desfalque neste. A saúde, é um direito social e de todos, de acordo com o artigo 6° e 196, respectivamente, da CRFB/88, que também a coloca como um dever do Estado assegurá-la (BRASIL, 1988). Ferraz e Bejamin (2004, p. 84), dizem que a responsabilidade de oferecer a saúde, é do Estado, ainda que haja delegação a iniciativa privada e concorrência entre eles. No entanto, o papel do Estado nesse caso, é de dar continuidade ao serviço se houver impossibilidade de entidades privadas com ou sem fins lucrativos faze-los. Há de se levar em conta, que a destinação dada pelo ente particular é a mesma dada pelo público, a de atender ao interesse social. Por isso, é legítimo analisar na decisão, a razoabilidade da medida tomada, já que essa também deve reger a Administração Pública. Não se pode considerar justo, retirar de pacientes da rede privada que tiverem reivindicado primeiro em razão de necessidade os aparelhos, para passa-los aos da rede pública. Pois seria uma forma de ferir o princípio da isonomia, fazer uma acepção dos usuários de um mesmo serviço de natureza pública. Outro ponto tratado pelo hospital, foi de que estaria faltando o requisito essencial para requisição administrativa, a urgência (BRASIL, TJ-SP, 2020, p. 87). Carvalho Filho (2014, p. 806) coloca que o perigo público iminente é pressuposto do instituto ao qual o ato de requisição é vinculado. Mas esses requisitos são cabíveis apenas ao administrador avaliar e não ao Poder Judiciário. A este é legítimo que examine se há vício de legalidade, arbítrio do administrador na avaliação do perigo, relativo ao motivo ou objeto do ato, ou falta de congruência entre esses, o que permite invalidação na via judicial. Inclusive esse foi o posicionamento colocado pelo juíz na sentença sobre o caso. A respeito disso, ele afirmou:   “Obviamente que, em certos casos, a pretexto de exercer a discricionariedade, pode a Administração Pública disfarçar uma ilegalidade. Tal questão deve ser analisada pelo Poder Judiciário, principalmente no que concerne às causas, motivos e finalidades do ato administrativo, sempre sob a análise da razoabilidade e proporcionalidade da conduta adotada pelo Administrador” (BRASIL,TJ-SP, 2020, p. 86)   Considerou que não foi o caso em voga, pois como o magistrado entendeu, não há nada que possa ser considerado ilegalidade, nem mesmo sobre o aspecto da discricionaridade. O ato se deu antes da publicação da Lei em Diário Oficial para que fosse preservada sua efetividade. O juiz não citou a necessidade do hospital particular e um possível prejuízo aos pacientes desse pela medida.  A urgência, considerou notória, pois se trata de uma pandemia mundial e foi fundamentada sob a égide do artigo 374, I do Código de Processo Civil (CPC/15) (BRASIL, 2015).   1.1.1 Isonomia entre usuários da rede pública e particular Em um caso, onde se discutiu a igualdade entre pacientes da rede pública e privada, a União, em março de 2020, requisitou todos os aparelhos da empresa fornecedora Magnamed S/A, os disponíveis para entrega e os que seriam produzidos nos próximos 180 dias seguintes, entre os quais, vinte estavam sendo auferidos pelo hospital particular Albert Einsten em São Paulo. O qual então, entrou com pedido de tutela provisória, para que fossem excluídos os ventiladores por ele adquiridos e que suas futuras compras não fossem prejudicadas pela Lei 13.979/20 que autorizou as requisições. (BRASIL, TRF-3, 2020, p. 3) O pedido para ser excepcionado do referido ato administrativo, fundamentou-se pelo Hospital ter uma notória utilidade pública, atuando com parcerias e convênios de gestão de estruturas públicas de saúde, disponibilizando leitos de UTI ao SUS, realizando atividades que dependem de respiradores, que com a aquisição prejudicada, poderia não atender as demandas.(Id, 2020, p.2). Diante do deferimento parcial de seu pedido, entrou com agravo de instrumento, ao passo que a União também, requerendo os 20 respiradores que não poderia mais requisitar, sob argumento de que haveria risco de dano grave, pela essencialidade dos ventiladores e que a decisão estaria relativizando a requisição administrativa, abrindo assim brecha para outras demandas de mesma natureza, sobrepondo o interesse privado ao público, segundo ela, além de outros pontos. E teve sua tutela deferida (Id, 2020, p. 4). Foi então, quando o hospital particular, mediante agravo interno, informou que os ventiladores já estavam em uso e ainda frisou que os assistidos por ele, eram pacientes do Hospital M’Boi Mirim, da rede pública mantido em parceria com o Einsten, explicando que atua justamente para atender os mesmos pacientes a que se objetiva com a requisição, as pessoas carentes. Portanto não prejudicaria atividades do Poder Público. Além disso, não poderiam simplesmente desligar equipamentos em uso na UTI, para devolvê-los a Magnamed, pois isso ocasionaria a morte de pelo menos vinte pessoas. (Id, 2020, p. 5). O judiciário não apreciou a liminar, alegando, que, obviamente os ventiladores não deveriam ser desligados, fosse na rede pública ou privada, mas sim, novos aparelhos deveriam ser devolvidos a Magnamed (Id, 2020, p.5). Na ação, o Hospital particular citou que, vidas pagantes não tem importância maior ou menor do que aquelas que dependem do SUS. E que é com o dinheiro das que pagam, que o hospital consegue atuar na rede pública. (Id, 2020, p.5) O relator no caso, disse haver de desconsiderar a destinação dada aos respiradores pelo hospital à rede pública, primeiro por se ater ao princípio da impessoalidade. E segundo, porque não poderia excepcionalizar os respiradores já comprados, sob pena de comprometer o abastecimento que se pretende ao fazer as requisições administrativas. Ainda, não poderia determinar que se condicionasse esses pedidos do Estado a uma contraprestação preexistente (Id., 2020, p. 7). E não havia nos autos, prova de que os equipamentos iriam para a rede pública associada ao hospital (Id., 2020, p.8). O juiz também ressaltou o seu papel nesses casos, quando há utilização do Executivo, de seus instrumentos de organização e gerenciamento de saúde, o qual deve ser metódico, apenas intervindo em violações flagrantes às leis e à Constituição (Id., 2020, p.7). Ele acrescentou que não faria distinção em termos de valoração e hierarquização da vida:   “A rigor, como adiante esclarecido, não se fez nem se fará, através de decisão judicial no âmbito da demanda em exame, qualquer distinção em termos de valoração e hierarquização da importância da vida e, portanto, sem estabelecer distinção prévia sobre ser mais importante dotar o sistema público ou a rede privada de atendimento médico-hospitalar, já que a destinação, baseada em critérios de urgência e necessidade, envolve juízo administrativo afeto ao Poder Público, tendo em conta dados e fatores de avaliação médica sistêmica.” (BRASIL, TRF-3, 2020, p.9)   Citou ainda, que a insinuação da rede privada beirou a leviandade e má fé processual. E que na verdade, o que se levou em consideração, foram os elementos probatórios levando a crer que não havia saturação da rede privada e por isso os equipamentos, poderiam ser redirecionados para rede pública (BRASIL, JF-SP, 2020, p.10). Ou seja, o judiciário alegou estar analisando precipuamente, a disponibilidade desses equipamentos, observando que não faltariam dessa forma, aos pacientes da rede privada.   1.2.  Disputa entre entes federativos, por respiradores fornecidos pelo particular Aparelhos já adquiridos pelos Estados e Municípios com fornecedores privados, foram mais de uma vez requisitados pela União, gerando assim litígios a serem levados a juízo. O Estado do Ceará e o Município de Fortaleza, adquiriram, por meio de contratos com a empresa particular Intermed Equipamento Médico e Hospitalar Ltda., 94 respiradores pulmonares, sendo 20 para o Instituto Doutor José Frota (IFJ), uma autarquia pertencente ao Município de Fortaleza, 24 para Secretaria de Saúde dele e 50 a Secretaria de Saúde do Estado (SESA). Os quais não foram entregues, por intervenção do Ministério da Saúde (MS), que requisitou, por meio de Ofício, toda produção existente e a ser produzida, no período de 180 dias subsequentes ao recebimento do mesmo (BRASIL, JF-CE, 2020, s.p). No entanto, em posterior Ofício, o MS retificou o primeiro, na parte em que ele iria confiscar os equipamentos. Dessa forma a empresa não teria justificativa para não fornecer os respiradores.  Conforme o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Ceará (MPE-CE) argumentaram, a contratação foi anterior ao Ofício e o próprio MS veio a excepcionar depois, os aparelhos já destinados a esses entes para fins de requisição (Id., 2020, s.p.). O juiz, nesse caso concedeu uma tutela liminar em sede de Ação Civil Pública, para que fossem suspensos os efeitos das requisições administrativas. Para que estando na posse da empresa privada ou da União, fossem entregues ao Estado e Município requerentes, fixando também multa diária em caso de descumprimento (Id., 2020, s.p.). O Magistrado, fundamentou sua decisão com base em outras, advindas de conflitos da mesma natureza, em que há uma disputa da União requisitando respiradores já adquiridos com entidades privadas, por outros entes federativos. Um deles tratando-se do Município de Recife em Pernambuco, pedindo que a decisão indeferindo liminar para entrega de equipamentos, fosse suspensa e o magistrado decidiu favoravelmente ao município. Dentre os argumentos, a Prefeitura de Recife explicou que já havia montado toda uma estrutura para fornecer o tratamento adequado a seus pacientes, várias Unidades de Tratamento Intensivo (UTI’s), com eletrocardiogramas, régua de gases medicinais, bombas de infusão, cardioversores, entre outros. Faltando apenas os respiradores, sem os quais, segundo eles, o tratamento, em caso de a doença ser de média e alta gravidade, é ineficiente (BRASIL, TRF-5 b, 2020, p. 02). A União teria requisitado todos os respiradores da Magnamed Tecnologia Médica S/A FILIAL, dos quais o Município já teria adquirido para devida destinação pública (Id., 2020, p. 02) O ente em questão também justificou a necessidade dos equipamentos para a cidade com alto índice de idosos, que representam a parcela da população considerada grupo de risco com o acometimento da doença, que pode sofrer com uma elevada taxa de letalidade. Em contrapartida, a destinação dada pela União aos ventiladores pulmonares não teria sido revelada, questionando-se a real necessidade e urgência do ato administrativo em questão (Id., 2020, p. 02) Foi colocada em pauta, toda questão econômica envolvendo os gastos feitos em função do tratamento para pacientes com COVID-19, que não teriam eficácia diante da falta de respiradores e consequentemente representariam um prejuízo ao erário, além do dano irreparável, caso a saúde pública do ente entrasse em colapso(Id., 2020, p. 03). Um outro ponto a ser destacado como argumento, é o que diz respeito a autonomia dos entes federativos (Id., 2020, p. 03), positivado na CRFB/88, no art. 18 (BRASIL, 1988). Não existe hierarquia entre os entes federativos, eles são autônomos, independentes entre si e complementares. Permitir que a União possa requisitar aparelhos já adquiridos por outro ente federativo seria ferir o princípio, sobrepondo os interesses daquela sobre este. Ainda que se possa argumentar que o interesse público da União abranja um maior número de pessoas que os interesses de um Município, nesse caso em análise, este último justificou a necessidade de uma maneira mais específica, clara, demonstrando a urgência devida, diferentemente da União. Como já afirmado anteriormente, esse juízo sobre a urgência cabe apenas ao administrador, porém o judiciário pode apreciar a questão, analisando se há vício de legalidade e arbítrio do administrador. O que não foi também apreciado nesta ação. Nesse caso, a medida tomada contra a decisão, foi a suspensão de liminar e sentença, pois é cabível ao Poder Público, pedir ao presidente do Tribunal, quando existe como foi demonstrado, perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, segundo artigo 15 da Lei 12016/09 (BRASIL, 2009). O magistrado ressaltou na decisão que não fez juízo de mérito com relação a lide, mas sim político com relação aos possíveis danos aos valores a serem defendidos (BRASIL, TRF-5 b, 2020, p. 4). Ainda sobre o conflito federativo envolvendo a requisição de bens públicos estaduais e municipais, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Mandado de Segurança nº 25.295/DF, entendeu ser inadmissível ainda que pela União, esse ato. No precedente, o Decreto Presidencial 5392/05 havia declarado Estado de Calamidade Pública no Sistema Único de Saúde (SUS), autorizando por isso, requisição pelo Ministério da Saúde sobre bens, serviços e servidores afetos de hospitais municipais. O Ministro Relator Joaquim Barbosa, na época entendeu haver falta de motivação expressa e o Ministro Eros Britto, ainda disse que se tratava não de requisição, mas de intervenção federal no município apossando-se de bens, serviços, servidores e recursos públicos municipais, pela União, sem que estivesse em situação de estado de defesa e do estado de sítio previstos pela CRFB/88, nos artigos 136, II E 137. Considerou ainda, que houve desafetação do Município, de serviço destinado também a ele, pela Constituição, segundo artigo 196 (BRASIL, STF, 2005). O Ministro também explicou que a Constituição, apenas determinou que a requisição incidisse sobre bens particulares. Ao que o outro Ministro Cezar Peluzo, acrescentou que a requisição pressupõe que o bem objeto da intervenção, tenha uma destinação diversa da prevista constitucionalmente, de atender iminente perigo público (Id, 2005). Esse último entendimento, é interessante na medida em que pode ser utilizado como argumento para questionar também a requisição de equipamentos em hospitais particulares. Nesse caso, a requisição só seria válida, em se tratando de fornecedores desses equipamentos. Diante da decisão do juiz federal do Ceará, para que fossem entregues, liminarmente, os ventiladores pulmonares ao Estado e ao Município de Fortaleza, como foi citado anteriormente, a União, insatisfeita, ingressou com Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo da decisão atacada. Ela alegou, que emitiu ofício, por meio do Ministério da Saúde excepcionando os aparelhos já adquiridos por outros entes federativos, mas que os eles não foram entregues a esses entes pela empresa Intermed, pois não haviam sido os contratos finalizados (BRASIL, TRF-5 a, 2020, p.2). O juiz indeferiu o pedido, por considerar haver necessidade de produção de provas quanto ao alegado sobre a finalização ou não dos contratos, o que não seria possível naquele momento do processo. O juiz também não aceitou o pedido de efeito suspensivo, por entender não haver ali risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Como ele justificou, os objetivos de ambos são os mesmos, combate a crise provocada pelo coronavírus. Ainda reconheceu maior legitimidade na demanda do Estado e do Município, por estarem mais próximos dos seus habitantes, com destinações mais específicas, determinadas (Id, 2020, p.6) .Todos esses argumentos do magistrado, corroboram o que foi analisado e concluído, anteriormente nesse artigo. A respeito de todos os argumentos apresentados pela União, de que seria a mais adequada e eficiente para fazer a distribuição de ventiladores para os entes federados. De que o Ministério da Saúde seria o órgão mais capaz de analisar quais as regiões seriam prioritariamente mais necessitadas, cuja a capacidade de respiradores instalados seriam insuficientes ou estariam perto do limite. De que seria o único a poder agir como um regulador natural do Sistema Único de Saúde. Destarte, que sua medida, seria a melhor, centralizando aquisições e distribuição dos equipamentos. Não ferindo, segundo ela, a competência dos entes. Pois ela, sendo a mediadora desses aparelhos, os distribuiria igualmente, na medida das necessidades de cada localidade. Sendo assim, mitigaria o poder econômico de alguns, em detrimento de outros (Id, 2020, p.2). O juiz apenas refutou essas alegações dizendo que a Lei 13.979/20, no seu artigo 3°, inciso VII, invocado pela União, fala apenas da requisição de bens e serviços de entes privados. Portanto não há justificativa cabível para reivindicá-los, uma vez que foram adquiridos pelo Estado e Município, não pertencendo mais ao particular que o fabricou (Id, 2020, p.6). Além disso, embora o juiz não tenha comentado na sentença, o próprio SUS tem como característica ser descentralizado, conforme artigo 198, inc.  I, da CRFB/88, in verbis:   “Art.198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;” (BRASIL, 1988)   O Município de Santana de Parnaíba foi mais um, dos muitos afetados pela requisição da União quando já havia adquirido os equipamentos anteriormente. Ele utilizou o caput do artigo acima para questionar a medida tomada pelo ente federado. E diz ainda que:   “(…)a centralização da aquisição dos ventiladores pulmonares pela União, sem norma que a ampare e regule como se dará a distribuição dos equipamentos para os demais entes da Federação, deixa a população do município requerente em absoluto abandono, sem chance de recuperação para os pacientes em estágios mais graves, embora tenham sido realizados investimentos na aquisição.”(BRASIL, JF-SP,2020)   Esse argumento, leva a conclusão de que em todos esses casos parecidos, onde há requisição pela União, de equipamentos já adquiridos, são obstadas a finalidade de combate a pandemia por entes locais que fundamentam muito bem a necessidade dos respiradores e fazem até o investimento financeiro. Em contraponto a uma justificativa vaga, de que melhor distribuiria eles e baseando-se nisso, fazem requisições administrativas deliberadamente. Vale lembrar, que um dos princípios que regem a Administração Pública é o da motivação, segundo a Lei 9784/99 no caput do artigo 2°. E os atos administrativos devem ser obrigatoriamente motivados quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses (BRASIL, 1999, art. 50, inc. I), como são os casos apresentados. O princípio diz respeito a declaração expressa do motivo que ensejou o ato (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p. 161). O §1° do artigo 50 da Lei 9784/99 também diz que a motivação deve ser clara, explícita e congruente (BRASIL, 1999). Considerando que a União, quando requisita para si, deixa em falta outro ente federativo, seria exigível que ao menos indicasse em uma fundamentação plausível para que localidades está requisitando os ventiladores, quais são as reais necessidades delas e porque sua demanda seria mais urgente que a do outro. Na decisão envolvendo Santana de Parnaíba, o juiz defendeu que os equipamentos ainda não pertenciam ao Município embora a compra dos ventiladores estivesse com a despesa extratificada em nota de empenho, pois os direitos reais sobre bens imóveis só se dão a partir da tradição, segundo o artigo 1226 do Código Civil (BRASIL, 2002). Ele não considerou a requisição válida por outros motivos, relativos ao ato administrativo que apresentou vícios de competência, forma e motivo. Esse último, muito importante, pois já defendido como essencial nesse trabalho e que não tem se observado na maioria das requisições feitas. Sobre isso o juiz fundamentou:   “E, por fim, também entendo demonstrado o vício de motivação, uma vez que os ofícios fazem referência genérica à “necessidade de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de interesse nacional decorrente do Coronavírus (COVID-19)”, o que consiste na finalidade do ato – embora não mencione critérios de distribuição e a destinação dos aparelhos. Do ato não constou expressa motivação, assim entendida a razão fática pela qual foi adotada a medida extrema de obstar a venda e requisitar todos os ventiladores pulmonares disponíveis e os que serão produzidos nos próximos 180 (cento e oitenta) dias. Nesse tópico, o Supremo Tribunal Federal, tem precedente no qual declarou a nulidade de requisição de bens sem indicação de motivo (MS 25.295-2/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 20.4.2005)”. (BRASIL, JF-SP, 2020, p.9)   Essa decisão do STF, em sede de Mandado se Segurança, citada pelo juiz, foi anteriormente destrinchada nesse artigo.   1.3 A necessidade de esgotar outras medidas administrativas É importante o ente público verificar, que outras medidas poderiam ser tomadas para abastecer a rede pública de saúde, com os ventiladores. A própria Lei 13.979/20, por exemplo, que autoriza a requisição, também prevê a dispensa de licitação para bens e serviços destinados ao enfrentamento da pandemia. Inclusive, no caso aqui citado, em que o Ceará, adquiriu 50 ventiladores pulmonares por meio de sua Secretaria de Saúde, o fez através dessa medida (BRASIL, JF-CE, 2020). Barros Gomes e Marcelo Gomes (2020, p. 186) questionam em sua obra, a razoabilidade da requisição. Alexandrino e Paulo (2008, p. 204) dizem que o princípio da razoabilidade encontra aplicação, em especial, no controle de atos discricionários que resultem em restrição ou condicionamento a direitos dos administrados. Esse é o caso da requisição. Eles explicam:   “(…) se trata de controle de legalidade ou legitimidade, e não de controle de mérito, vale dizer, que não se avaliam conveniência e oportunidade administrativas do ato, o que implicaria, se fosse o caso, a sua revogação- mas sim sua validade. Sendo o ato ofensivo aos princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade, será declarada sua nulidade; o ato será anulado, e não revogado.” (ALEXANDRINO; PAULO,2020, p. 204, grifo do autor)   Eles acrescentam que o Poder Judiciário, ao ser provocado nessas situações, deve analisar adequação, necessidade e proporcionalidade. Sendo que a adequação corresponde ao ato ser efetivo para atingir a finalidade perseguida. E a necessidade é relativa a existência de algum outro meio menos gravoso e igualmente eficaz para se ter esses objetivos (ALEXANDRINO; PAULO,2008, p.205). A proporcionalidade é o requisito que proíbe os excessos, os meios utilizados pelo administrador, devem ser proporcionais ao fim por ele almejado. (Id, 2008, p. 206) Ora, em muitos casos, a requisição tem obstado o próprio meio perseguido, se mostrando inadequada, além de que a necessidade também não se faz presente, na medida em que há outros meios de se enfrentar a pandemia, adquirindo os ventiladores por meio da contratação direta por exemplo. E esses requisitos faltados, comprometem também o da proporcionalidade, justamente porque é uma medida muito mais drástica frente a uma alternativa mais apropriada. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), propôs ADPF, com pedido para que o SUS passasse a controlar e gerenciar todos os leitos, públicos ou privados. Requereu assim aos entes federativos, a requisição da totalidade de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas relativos à saúde (BRASIL, STF, 2020, p. 5). O juiz arguiu que a situação de perigo exigida pela lei para realizar a requisição, só poderia ser verificada por um administrador e ele decidir sobre isso feriria a separação de poderes. E ainda que a medida, caso fosse apreciada, seria uma imposição da requisição sem analisar antes a existência de outra medida cabível. Conforme transcrito abaixo:   “Por essa razão, vulneraria frontalmente o princípio da separação dos poderes a incursão do Judiciário numa seara de atuação, por todos os títulos, privativa do Executivo, substituindo-o na tomada de decisões de cunho político-administrativo, submetidas a critérios de conveniência e oportunidade, sobretudo tendo em conta a magnitude das providências pretendidas nesta ADPF, cujo escopo é nada mais nada menos do que a requisição compulsória e indiscriminada de todos os bens e serviços privados voltados à saúde, antes mesmo de esgotadas outras alternativas cogitáveis pelas autoridades federais, estaduais e municipais para enfrentar a pandemia.”(BRASIL, STF, 2020, p. 9, grifo nosso)   Ou seja, este também foi um caso em que o judiciário, em sua última instância, considerou necessário verificar outras formas de se combater a pandemia antes de se cogitar a requisição.   Conclusão No final do ano de 2019 e início de 2020, uma nova doença surgiu, com características altamente contagiosas e sendo, em muitos casos, mortal. Essa situação não tardou se tornar uma questão de saúde pública, tendo em vista a potencial sobrecarga de pacientes, tanto no sistema público como privado de saúde. As autoridades públicas passaram a ter como prioridade a defesa da saúde, com instalação de leitos de UTI e equipamentos necessários para o tratamento da doença. Entre eles, os respiradores pulmonares, essenciais para a recuperação de pacientes graves. Frente a pandemia, foi prevista uma grande demanda por ventiladores, a qual fez com que o Poder Público precisasse adquiri-los com urgência. Para isso a Lei, baseada no que já garante a Constituição, autorizou a requisição administrativa desses aparelhos. Esse é um instituto administrativo, que permite a retirada coativa de bens particulares pela administração pública com fim de atender a um interesse maior, coletivo e urgente. As autoridades, de fato fizeram uso desse recurso, de forma que, o particular, vendo seu bem requisitado, questionou a necessidade do ato e os abusos, ilegalidades e arbítrio envolvidos nele. Como no primeiro caso apresentado nesse artigo. Nele, observou-se que a autoridade judicial não teve dificuldade em considerar válida a requisição feita pelo Município ao particular. Tendo em vista que não poderia julgar se a medida foi necessária, cabendo apenas ao administrador fazer isso. A urgência se mostrou notória por se tratar de uma pandemia e também não houve ilegalidade. Contudo, o presente artigo trouxe a reflexão acerca da finalidade em comum, do público e do particular, em exercer um serviço social. Ainda que na rede privada não haja caráter universal, continua tendo um papel complementar e abrangente de parte da população, que também precisa da assistência. Ainda que com a requisição, esses pacientes da rede privada se desloquem para a pública, na falta dos equipamentos no particular, continuaria havendo respiradores sendo necessitados pela mesma quantidade de pessoas, continuando sobrecarregado o sistema de saúde como um todo, não resolvendo problema algum. A requisição, poderia ter efetividade, sobrando equipamentos na rede privada, caso contrário o que se tem é a valoração de pacientes públicos e privados, ou uma medida obsoleta. No segundo caso de requisição, o magistrado disse que a decisão buscou observar a disponibilidade dos aparelhos, para autenticar a requisição. Os casos mais complicados que foram levados a juízo e aqui verificados, envolveram requisição pela União, de aparelhos já adquiridos pela Administração Pública a partir de um outro ente federativo, por acrescentar ao litígio uma questão de conflito federativo. A tendência do judiciário nesse caso, foi de conceder os respiradores aos entes que o adquiriram primeiro, gerando inclusive precedentes utilizados nas justificativas das sentenças posteriores. O que se observou em todos esses casos, foi uma falta de justificativa da União para requisitar os aparelhos em detrimento de outro ente federativo, não especificando a aplicação deles e nem sua necessidade mais urgente. Houve o argumento de que melhor avaliaria e distribuiria os ventiladores, mas não foi juridicamente plausível frente a natureza descentralizada do SUS. Outro argumento contrário a requisição de equipamentos de saúde, foi apresentado em um precedente do STF, onde o ministro Cezar Peluzo defendeu que a requisição pressupõe destinação diversa de atender perigo público. Essa compreensão deslegitima até mesmo casos onde não há conflito federativo. A Intervenção Pública na propriedade particular é um recurso delicado, pois se trata de valores extremamente protegidos pela Constituição, que é a propriedade particular e o interesse público. A supremacia do interesse público a justifica, mas deve ser utilizada como última alternativa. Além disso, há uma busca em comum por atender esse interesse, mesmo da rede privada. O diálogo nesse caso é essencial, para verificar inclusive, a disponibilidade dos bens. Mas precipuamente, o Poder Público tem outras alternativas e não foi observado nenhuma motivação expressa, do porque as requisições estão sendo preferidas ao invés de uma outra medida, como a contratação direta por exemplo, ou se há impossibilidade de tomar outra iniciativa. Esse artigo deixa então, esse questionamento.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/uma-analise-do-comportamento-das-decisoes-judiciais-frente-a-requisicao-administrativa-por-respiradores-durante-a-pandemia-de-covid-19/
A importância dos Direitos Humanos, Direito Penal e o Poder de Polícia no Policiamento Ostensivo
Resumo: O presente artigo busca destacar a importância dos Direitos Humanos, Direito Penal e o poder de Polícia no desempenho do Policiamento Ostensivo realizado pela Policia Militar. Atividade essa que coloca o policial militar em contato direto com os cidadãos, nos mais variados tipos de ocorrência policial, seja de lesão corporal, estupro, sequestro, extorsão, reintegração de posse, homicídio, roubo, furto e outros tipos penais constante no código penal e legislação especial. Para tanto, adotou-se o método a pesquisa bibliográfica e qualitativa, também foram pesquisados artigos nos sítios da rede mundial de computadores para o levantamento sobre o tema, visando à importância dos Direitos Humanos junto com o Direito Penal e o Poder de Polícia, para que o policiamento ostensivo seja exercido com maestria, na preservação da ordem pública e promoção dos Direitos Humanos.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO  A constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada após um período delicado da história brasileira, o Regime Militar, época em que ocorreram evidentes violações dos Direitos Humanos. A constituição cidadã como ficou conhecida, tem como um dos seus princípios fundamentais em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, além de ter como um dos objetivos fundamentais em seu artigo 3º, inciso IV, a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Destacando no seu Título II, os direitos e garantias fundamentais, sem os quais o homem não se realiza e não pode ter uma vida digna.   Neste cenário, a Constituição Federal de 1988, concede poder para o Estado punir aqueles que violarem as normas que regulam as relações sociais entre as pessoas físicas e jurídicas, em seu artigo 144, declara que a segurança pública é dever do estado, direito e responsabilidade de todos, que é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e patrimônios, através da policial federal, policia rodoviária federal, policia ferroviária federal, policias civis, policias militares e corpos de bombeiros militares.   Entre estes órgãos do Estado, a Policia Militar tem um papel de suma importância para a preservação e a promoção da garantia dos direitos fundamentais.  Neste contexto, o policial militar deve ter uma formação de qualidade para interpretar as normas legais e aplicá-las visando à promoção dos direitos humanos, do bem comum e da paz social.   O conhecimento sobre os Direitos humanos, como direitos universais indivisíveis e interdependentes, reconhece a pessoa humana como titular de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Estes direitos são indispensáveis para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, e garante o respeito à dignidade da pessoa humana e limitação do poder estatal.   O conhecimento da Parte Geral e Parte Especial do Código Penal servem como arcabouço indispensável para o exercício de sua autoridade, capacitando-o na tomada da correta abordagem e atuação regular no cotidiano.  O conhecimento sobre o Poder de Policia, as suas fases e os seus atributos, irá nortear a atuação do policial militar nas ações preventivas ou repressivas sobre direitos individuais em prol da coletividade, visando o bem comum, e suas decisões devem estar cobertas pelo manto da legalidade.     Destaca-se que o Estado Brasileiro cria as normas e as leis que regulam as relações sociais entre as pessoas físicas e jurídicas, entre as quais, na hierarquia das leis encontra-se a Constituição Federal, com a qual todas as demais devem esta em harmonia.  Frisa-se, que na Constituição Federal de 1988, a Polícia Ostensiva é realizada com exclusividade pela Polícia Militar, que um dos órgãos policiais responsáveis pela a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, conforme o artigo 144, parágrafo 5º, da constituição federal de 1998.  As Polícias Militares no Brasil tem entre as suas competências: o policiamento ostensivo planejado pela autoridade competente, a atuação de maneira preventiva para a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos, a atuação de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, o atendimento à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, conforme o Decreto-lei nº 667, de 2 de julho de 1969, artigo 3º e artigo 4º.    Os Direitos Humanos São direitos ligados a todos os seres humanos, independente de raça, sexo, idade, idioma, etnia, nacionalidade, religião ou qualquer outra situação.   Conforme a Declaração Universal dos direitos humanos : “Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”  Destaca-se que essa solidificação dos direitos humanos e a sua universalização se intensificou após o término da segunda guerra mundial, após Assembleia Geral das Nações Unidas ocorrida no dia 10 de dezembro de 1948, com a declaração Universal dos Direitos Humanos, com os seus 30 artigos sobre os direitos e liberdades inalienáveis e indivisíveis. Entre os direitos contidos nessa declaração, está o direito à liberdade de expressão, de manifestação, o direito à educação inclusiva e de qualidade, o direito a gozar do mais alto nível possível de saúde e o direito à vida.    Os Direitos Humanos quando inseridos nas constituições dos países signatários, são denominados de direitos fundamentais.   Evidenciam-se no Título II da CF/88, os direitos e garantias fundamentais, sem os quais o homem não se realiza e não pode ter uma vida digna. Destacando que todos são iguais perante a lei, garantido a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, que ninguém é obrigado fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, que ninguém será submetido à tortura, ao tratamento desumano ou degradante, que são invioláveis a intimidade, a honra e a imagem das pessoas, que é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, além de garantir os direitos sociais, direito de nacionalidade e os direitos políticos. Estes direitos fundamentais que não se esgotam neste titulo, pois também estão espalhados ao longo da constituição e legislações complementares.    Segundo Balestreri (1988) o policial militar , é um agente de segurança pública e também um cidadão qualificado, em convívio diário mais próximo dos cidadãos, sendo um tipo de porta-voz das muitas autoridades das diferentes áreas do poder.    Conforme Balestreri (1988) o policial militar tem a permissão estatal para fazer o uso da força e de armas, dentro da lei. Que a sua atuação profissional poderá influenciar para a construção social ou para a ruína social. Que poderá causar o bem ou mal-estar social.    Portanto, Através do conhecimento dos Direitos Humanos nos cursos de formação dos soldados, cabos, sargentos e oficiais das Polícias Militares, serão afloradas importância desses profissionais de segurança pública na promoção dos Direitos Humanos durante a realização do policiamento ostensivo.     No exercício do policiamento ostensivo é importante o policial militar saber que a sua atuação profissional tem como objetivo os interesses sociais. É essencial que o policial militar tenha uma boa formação jurídica, para poder em nome do Estado, preservar à ordem pública e promover os direitos humanos.   Neste prisma também se destaca que é essencial que os policiais saibam o conceito de infrações penais contidas no código penal.  O artigo 1º da lei de introdução ao código penal (Decreto Lei nº 3.914 de 09 de dezembro de 1941) divide as infrações penais no Brasil em crime e contravenções. Estando a diferença entre elas apenas no campo da pena. Os autores dos crimes estariam sujeitos a pena de reclusão ou detenção, isolada, alternativa ou cumulativamente com multa. Já os infratores das contravenções penais estariam sujeitos a pena de prisão simples isoladamente ou cumulativamente com multa, ou multa isoladamente.     Relativo ao conceito de crime, Nucci (2013) conceitua-o como um fato típico (que está descrito em lei), antijurídico (contrário ao direito) e culpável (juízo de reprovação sobre a conduta de uma pessoa imputável, capaz de responder pela prática criminosa). Também é de grande importância para o policial, saber quem é o sujeito ativo e o sujeito passivo do crime no momento do atendimento das mais diversas ocorrências no policiamento ostensivo, para conduzir as partes envolvidas, quando assim for possível, para o distrito policial para as medidas cabíveis, pois em alguns crimes (exemplo crime vagos, onde o sujeito passivo é o Estado, a coletividade) não há como fazer esta condução.     Também é importante o conhecimento do sujeito passivo do crime, que segundo Nucci (2013) é o possuidor do bem jurídico lesionado pela conduta do autor, e o sujeito ativo da infração penal é a pessoa (pessoa física, ou pessoa jurídica no caso dos crimes ambientais) que pratica a ação descrita no tipo penal.     Salienta-se que no Brasil há a possibilidade de punir as pessoas jurídicas, no caso de crimes ambientais conforme o artigo 3º da lei 9605 de 1998, destacando-se em seu parágrafo único que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes.  Também de grande importância para o profissional de segurança pública, após o estudo do Direito Penal ter a consciência que todas as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não ultrapasse dois anos, são considerados como crimes de menor potencial ofensivo conforme o artigo 61 da lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Permitindo, assim, ao policial como se porta de forma inteligente no atendimento destas ocorrências, acalmando o autor de tais infrações penais, informando aos mesmos que serão conduzidos até a delegacia da área, onde será lavrado um Termo circunstanciado de ocorrência (TCO) e que na sequência após o assinar um termo de comparecimento em juízo, o mesmo será liberado pela autoridade policial. Desta forma o policial poderá contar com a colaboração do suspeito, na sua condução até a delegacia, sem que seja preciso o uso da força.  Da mesma forma as excludentes de ilicitudes são de grande importância para o desempenho das atividades desenvolvidas pelos policiais militares, devendo os mesmos ter o perfeito conhecimento destas excludentes, para atuarem respaldados por este manto legal quando as circunstancias assim exigirem. Elas estão relacionadas no artigo 23 do código penal, onde verificasse que não há crime quando o autor da infração penal pratica-a em legitima defesa, em estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito.   Ressalta-se que no Direito Penal estão definidos alguns crimes e as suas respectivas penas, nele é abordado o conceito de crime, as classificações dos crimes, a tipicidade, o caminho do crime, o local de crime, a imputabilidade, a culpabilidade, a relação de causalidade, os direitos dos presos e outras lições contidas na Parte Geral e na Parte Especial do Código Penal, conhecimento impar que o policial militar não deve dispensar.  Portanto, para o exercício de um policiamento ostensivo de excelência, estes nobres profissionais, devem ter uma formação jurídica de qualidade, para atuar de forma eficiente em nome da Administração Pública.    A administração pública seja na esfera federal, estadual ou municipal, tem como objetivo a satisfação do interesse público. Para que os agentes públicos atuem em seu nome, a lei confere aos mesmas prerrogativas ou deveres-poderes, que são instrumentos que se destinam a satisfazer os interesses públicos. Entre os poderes da Administração pública estão os seguintes poderes: poder vinculado, poder discricionário, poder normativo, poder hierárquico, poder disciplinar e poder de polícia.  Porquanto dos poderes supracitados será destacado o poder de policia, que tem como fundamento o princípio da predominância do interesse público sobre o do particular.   Neste sentido a Administração Pública, intervém de modo coativo sobre os direitos e liberdades das pessoas físicas e jurídicas, para promover o bem comum, exercendo assim, o seu poder de polícia.     Segundo Meirelles (2013) a Administração Pública possui uma posição de supremacia sobre os particulares. Quando interesses coletivos conflitares com os interesses particulares, a decisão será em favor do interesse social.     Conforme Meirelles (2013), o poder de polícia é a faculdade que possui a Administração Pública de condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades, direitos e garantias individuais em prol da coletividade ou do próprio estado. O Poder de Polícia é um dos poderes que possui a Administração Pública.     O conceito legal do poder de polícia encontra-se no artigo 78 do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro, de 1966:     “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.    Parágrafo único: Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente no limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”     O Estado Brasileiro através dos seus órgãos, entre os quais se encontram as Polícias Militares, as quais cabem à polícia ostensiva, a preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e patrimônio, conforme a constituição federal de 1998 em seu artigo 144, parágrafo 5, utiliza o poder de polícia para a consecução de seus objetivos, previstos na Lei e na Constituição. Abaixo abordaremos os atributos do poder de polícia: a discricionariedade, a coercibilidade e a autoexecutoriedade; relacionando-os com as abordagens que ocorre durante o exercício do policiamento ostensivo.     5.1 Discricionariedade Por este atributo a Administração Pública, representada pelo agente público, o policial militar, que esta realizando o policiamento ostensivo, diante do fato concreto, irá aferir e atuar segundo critérios de conveniência e oportunidade, escolhendo com certa liberdade, dentro do ordenamento jurídico, a melhor forma de restrição imposta ao exercício dos direitos individuais para o atendimento das mais diversas ocorrências policiais, inclusive quanto à sanção de polícia a ser aplicada.    Segundo  Barreto (2008), o atributo da discricionariedade confere ao administrador a faculdade de decisão sobre qual a medida mais ajustada à Administração, valorando o comportamento mais oportuno e conveniente à administração dos interesses coletivos.  Como exemplo podemos citar uma hipotética abordagem a um veiculo com dois ocupantes suspeitos de praticarem roubos, usando armas de fogo, contra transeuntes no centro comercial de uma região metropolitana:    Os policiais militares observando o critério da oportunidade e conveniência, escolheriam o melhor momento, o melhor local, para bordar o veículo cujas características coincidiram com as repassadas pelo CIOPS (Centro de Integrado de Operações de Segurança, que é a central responsável por repassar informações para as equipes de serviço) para a realização da abordagem aos suspeitos, que poderia ser em um lugar de pouca concentração de pessoas, com a finalidade de proteger terceiros no caso dos infratores efetuarem disparos contra a guarnição policial militar, ou tratando-se do período noturno o lugar mais bem iluminado, ou ainda poderiam considerar que o melhor momento poderia ser aquele, em que o cerco policial deixaria os suspeitos com poucas chances de reação.   Não devemos esquecer que na realização do policiamento ostensivo, há ações vinculadas do poder de polícia, neste exemplo, o dever do policial militar de prender os supostos acusados de roubo que se encontravam em flagrante delito, conforme o artigo 301 do Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, 3 de outubro, de 1941, abaixo:      “Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”     5.2 Autoexecutoriedade Pelo atributo da autoexecutoriedade a Administração Pública, representada pelo agente público, o policial militar, na realização da atividade de polícia ostensiva realizadas pelas policiais militares com exclusividade, executará os atos de polícia independentemente de prévia decisão judicial. Este atributo subsiste na previsão legal das ações policiais.     Segundo Filho (2018) o atributo da autoexecutoriedade é a prerrogativa que possui a Administração Pública, de sem prévia manifestação judicial, de executar automaticamente seus atos,  os quais devem  conter  seus pressupostos de legalidade.    No caso hipotético supracitado, os policiais militares não precisariam de mandado judicial para realizar a busca pessoal nos suspeitos da prática dos roubos, que se encontrariam em fundada suspeita conforme os artigos 240 e 244 do Código do Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, 3 de outubro, de 1941, abaixo:     “Art. 240.  A busca será domiciliar ou pessoal.          a) prender criminosos;          b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;          c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;          d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;           e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;          f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;          g) apreender pessoas vítimas de crimes;          h) colher qualquer elemento de convicção.           Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.”    Portanto, a abordagem aos suspeitos dos roubos e ao veículo para encontrar os supostos objetos das vítimas dos roubos, e a busca pessoal para encontrar as armas de fogo utilizadas pelos infratores da lei, estariam respaldadas por este atributo. Caso os suspeitos deste caso se sentisse prejudicados com a decisão dos policiais militares, poderiam procurar a justiça a fim de satisfazer a sua pretensão jurídica ou buscar a corregedoria da referida instituição para oferecerem a denúncia contra a guarnição.    5.3 Coercibilidade Pelo atributo da coercibilidade a Administração Pública, representada pelo agente público, o policial militar, durante o policiamento ostensivo, ao realizar uma abordagem em fundada suspeita em uma pessoa que esteja na posse de arma de uso proibido ou objetos que constituam corpo de delito, não precisa da concordância do indivíduo abordado, admitindo-se no caso concreto, se necessário, o uso progressivo da força para concretizar a abordagem ao suspeito.   No direito brasileiro podemos encontrar o respaldo para a utilização do uso da força pela Polícia Militar, no o Código de Processo Penal nos seguintes artigos:    “Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.  Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.”    Também há respaldo no Código Penal Brasileiro em seu artigo 23, que descreve não haver crime quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; e em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.  Relativo ao uso da força e o emprego de algemas no infrator da lei que resista à prisão pela polícia militar, à súmula vinculante número 11 do Supremo Tribunal Federal, reza o seguinte:    “Só e licito o uso de algemas em caso de resistência a prisão e de fundado receio de fuga ou de perigo a integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob  pena de  responsabilidade disciplinar, civil e  penal  do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”    Com relação ao uso da arma de fogo e força letal por parte da polícia militar, vale ressaltar que é uma medida extrema utilizada para a preservação da vida, onde o policial diante do caso concreto fará o(s) disparo(s) necessário(os) para cessar a injusta agressão, atual ou iminente , a direito seu ou de outrem, conforme o artigo 23 do Código Penal Brasileiro supracitado.  Entretanto, isso não que dizer que durante o policiamento ostensivo, os policiais militares ao realizarem uma abordagem a uma pessoa em fundada suspeita, podem utilizar de força desproporcional ou meios ilegais, pois se assim o fizessem, estariam os mesmo ferindo o princípio da proporcionalidade, configurando neste caso o excesso de poder, o que acarretaria à responsabilização civil, penal e administrativa destes policiais militares.    As fases do Poder de Polícia são: a norma de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sansão  de polícia,  que aqui serão relacionadas com a atividade do policiamento ostensivo.    6.1 Norma de polícia Nessa fase o Estado agindo preventivamente, impõe limitação às pessoas naturais ou jurídicas, estabelecendo limites aos direitos individuais. As limitações podem ser constitucional, legal ou regulamentar. Relativo aos policiais militares , eles estão sujeitos às normas impostas aos civis, e também as normas próprias da caserna, como: o Código Penal Militar, o Código do Processo Penal Militar, os Regulamentos Disciplinares e outros.    6.2 Consentimento de polícia Nessa fase o Estado possibilita ao particular o exercício de atividade de acordo com o interesse público. Exemplos: a expedição de alvará de funcionamento de um comércio, licença para dirigir veiculo e etc. Neste caso, um exemplo voltado para a Polícia Militar, seria autorização para o porte de arma concedida ao policial militar pelo comandante geral da sua instituição.    6.3 Fiscalização de polícia Nessa fase o Estado, através dos seus órgãos e agentes competentes, ira realizar verificação do cumprimento das normas e das condições estabelecidas na fase se permissão de polícia. Relativo à polícia ostensiva, o Estado age através da polícia militar, realizando o policiamento ostensivo visando à prevenção e repressão das infrações penais, além de participarem com os outros órgãos em operações visando uma fiscalização as normas legais. Outro exemplo são as operações desenvolvidas pelas Polícias Militares em parceria com os agentes do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), quando da fiscalização do funcionamento de madeireiras que funcionam ilegalmente, ou o apoio dado aos fiscais da DVISA (Departamento de Vigilância Sanitária) e aos militares do corpo de bombeiros, nas fiscalizações das casas noturnas e bares que funcionam de forma irregular.    6.4 Sanção de polícia Nessa fase o Estado aplica as penalidades àqueles que descumprirem as normas e as condições da fase de permissão de polícia. Aqui relativo à polícia ostensiva, o Estado age através da Polícia Militar, realizando a prisão do autor de uma infração penal. Um  exemplo hipotético seria no caso de um estupro, no qual o acusado infringir a ordem pública, constrangendo à vítima a conjunção carnal, utilizando da violência e o uso de uma faca tipo peixeira, com a qual a ameaçava enquanto a estuprava.  Nesta ocorrência a guarnição policial militar após ser abordada e obter dados da ocorrência da vítima do estupro, informaria as características do suposto infrator ao CIOPS (Centro de Integrado de Operações de Segurança) e realizaria as diligências para encontrá-lo.  Neste caso hipotético,  vamos considerar que a guarnição  o encontraria logo após em um matagal próximo a residência da vítima, com a faca que ele utilizou para realizar o crime. Neste contexto a guarnição efetuaria  a prisão do acusado e levá-lo-ia para a delegacia juntamente com a vítima  para as medidas cabíveis pela autoridade policial.      7. LIMITES DO PODER DE POLÍCIA  A Polícia Militar através dos seus agentes, os policiais militares,  representantes do Estado na preservação e manutenção da ordem pública, tem como limite do poder de polícia: a Lei e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Abaixo segue a abordagem do assunto relacionando-o com a atividade de policiamento ostensivo.   A imposição de sanções de polícia realizadas no policiamento ostensivo, tem limitações, pois, somente é possível aplicá-las se houver a obediência às leis, aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.   Sendo assim, não pode o policial militar sair abordando aleatoriamente qualquer pessoal, baseado na sua experiência de anos no radiopatrulhamento, baseado em preconceito de raça, cor, sexo, poder aquisitivo,  pois se assim agir estará cometendo um abuso de autoridade, pois a busca pessoal só poderá ocorrer em fundada suspeita como já fora abordado anteriormente.   Outro exemplo é a prisão para averiguação, que também é ilegal, uma vez  que a prisão de qualquer pessoa só poderá ocorrer em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.   Por esse motivo, na realização de uma prisão em flagrante delito ou por ordem judicial durante o policiamento ostensivo, deverá os policiais atentar para a proporcionalidade e para a razoabilidade, para utilizar a força necessária e suficiente para vencer a resistência do infrator, na medida considerada indispensável para a satisfação do interesse público, não se admite a truculência policial, a tortura, o tratamento desumano, ou nenhuma outra ação desproporcional.     CONCLUSÃO  O presente artigo científico buscou destacar a importância dos Direitos Humanos, Direito Penal e o Poder de Polícia no desempenho do Policiamento Ostensivo realizado  pela Policia Militar, visando à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e dos patrimônios, conforme a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 144, parágrafo 5º.   Destacando-se que o policiamento ostensivo é uma atividade de grande importância para a garantia dos direitos fundamentais. E neste prisma não podemos conceber um policial militar sem uma formação jurídica de qualidade para atuar em nome da Administração Pública. E que pela falta desses conhecimentos, venha o policial militar, realizar uma  abordagem ilegal, desnecessária, desproporcional, que violem os Direitos Humanos, manchando assim, os nomes de instituições centenárias, agindo de forma truculenta e desproporcional por desconhecimento do Direito Penal, Direitos Humanos e do Poder de policia.   Por essa razão, a Policia Militar  deve ter em seus quadros, profissionais devidamente qualificados, com uma formação jurídica de excelência, tendo na sua formação destaque para os temas supracitados, pois eles são conteúdos  fundamentais para uma Instituição Policial a serviço da cidadania, pois despertam as consciências desses profissionais de segurança pública, para o seu  papel social relevantíssimo no respeito à cidadania e a promoção dos Direitos Humanos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/a-importancia-dos-direitos-humanos-direito-penal-e-o-poder-de-policia-no-policiamento-ostensivo/