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brasil
Como o Dia da Independência apagou a memória da luta negra por independência e abolição
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 7 setembro de 2021. O soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga (1761-1799), o marceneiro e militar Lucas Dantas do Amorim Torres (1744-1799), e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira (1775-1799) e João de Deus Nascimento (1771-1799) são nomes praticamente esquecidos da historiografia nacional. Pois eles lideraram um movimento popular que pedia independência política quando aquele que se tornaria dom Pedro I (1798-1834) não passava de um recém-nascido. A Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios, foi um movimento emancipacionista popular que se iniciou em 12 de agosto de 1798, exatamente dois meses antes do nascimento de Pedro I. E terminou no fim de 1799 — em 8 de novembro daquele ano os quatro líderes acima mencionados foram executados em praça pública. Diferentemente da maneira como o processo de independência brasileira acabou sendo costurado, culminando no 7 de setembro de 1822, era uma articulação popular que, entre suas bandeiras, pedia o regime republicano e o fim da escravidão. Muitos dos participantes do movimento, inclusive Virgens e Veiga, Amorim Torres, Santos Lira e Deus Nascimento, eram negros. Fim do Matérias recomendadas Revoltas como esta ocorreram nas décadas que precederam a Independência brasileira e, cada vez mais, são exemplos recuperados por historiadores de como a historiografia oficial do país acabou ofuscando a participação do negro em episódios importantes. Ao mesmo tempo, suscitam a reflexão: se uma luta assim tivesse conseguido prosperar, a sociedade brasileira poderia ter sido organizada de forma completamente distinta, com abolição da escravidão quase um século antes e regime republicano sem passar pelos dois governos imperiais, conduzidos por descendentes da mesma casa portuguesa. "É interessante perceber o quanto a história do Brasil é contada do ponto de vista do colonizador e do branco. A independência foi um desses momentos que atendeu apenas a uma elite, não dando conta de garantir a liberdade para a maior parte da população brasileira, os negros e indígenas", comenta o pesquisador da história negra Guilherme Soares Dias, consultor em diversidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não aprendemos sobre esses fatos sob outra perspectiva e nem temos esses debates nas escolas. Esse era um momento efervescente da busca pela abolição com várias revoltas no Brasil e outros países conquistando essa liberdade do povo negro. A história ainda retrata apenas um lado e a gente ainda precisa buscar outras informações sobre esse período", completa ele. "Esse apagamento das lutas negras faz parte de um racismo estrutural que é resquício daquele momento em que o negro não era visto como humano e sim como coisa. A sua história, seus costumes, sua cultura, seus pensamentos não importavam, já que ele era animalizado. As pessoas precisam ter raiz." Dias afirma que a primeira coisa tirada pela escravidão foi a própria história da população negra. "Ainda hoje precisamos fazer essa busca e jogar luz para heróis, lutas e acontecimentos que foram importantes para as pessoas negras", diz. "Essa é a narrativa que a história do Brasil ainda não conta." Professora na Universidade Federal Fluminense e integrante da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros, a historiadora Ynaê Lopes dos Santos cita três como os principais movimentos que pediam a separação de Portugal antes do famoso 7 de setembro. Além da Revolta dos Búzios, também destaca a Inconfidência Mineira, de 1789, e a Revolução Pernambucana, de 1817. "Foram os mais expressivos. Mas sem sombras de dúvidas a Conjuração Baiana foi o com a maior participação efetiva da população negra, tanto a livre quanto a escravizada", ressalta. "E foi um movimento que pensava o processo de Independência correlatamente com o processo de abolição da escravidão, algo que não aparecia nos outros dois movimentos insurgentes." Santos cita, inclusive, que isso fez com que muitos negros que haviam aderido a essas revoltas tenham as abandonado em seguida, tão logo compreenderam que "era algo que não lhes dizia respeito". Para o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador do tema na Universidade Estadual de Campinas, é preciso olhar para vários processos de emancipação que não estavam diretamente ligados às elites. "E a Conjuração Baiana é um exemplo, que pensava também na libertação dos escravos, o que não era pensado pelas elites que dependiam do regime escravocrata", exemplifica. "Grande parte dos movimentos e revoltas do Brasil de então tinha a participação dos mulatos e negros, que eram o maior contingente populacional. Reivindicavam melhores condições de vida, igualdade de direitos", afirma o historiador Francisco Phelipe Cunha Paz, membro da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros e da Associação Brasileira de Estudos Africanos. Mas ele lembra que é importante "não cair na tentação" de homogeneizar os grupo - nem os negros, tampouco os não negros. "Eles eram atravessados por entendimentos, expectativas e laços diferentes, por vezes internamente antagônicos", ressalta. Paz conta que houve participação de negros, homens e mulheres, em revoltas no Pará, no Maranhão, no Piauí, além da Bahia. Neste caso mais emblemático, inclusive, ele ressalta que até mesmo a questão dos nomes — Conjuração Baiana, Revolta dos Alfaiates, Revolta dos Búzios — guarda uma disputa de narrativas. "Ao contrário dos outros nomes, a nomenclatura 'dos Búzios' faz ligação direta com as populações negras envolvidas no levante popular que foi um dos primeiros movimentos por independência e fim da escravidão", diz. "Faz justiça, assim, ao grande contingente de pessoas de cor por trás da sua existência." O jogo de búzios é muito presente em religiões tradicionais africanas. E os revoltosos desse episódio utilizavam essas conchas como pulseiras, como forma de identificação. "[A Revolta dos Búzios] foi formada basicamente por escravizados, livres e libertos, trabalhadores pobres e alguns membros da elite branca liberal", explica Paz. A recuperação dessa nomenclatura foi feita graças a uma articulação baiana de movimentos sociais negros. Para o historiador Paz, isso é simbólico do que deve ser a tarefa atual: "conseguir destacar as agendas das populações negras e os seus descontentamentos com o governo português e a sociedade escravista no Brasil". "Além de disputar as memórias públicas em torno do processo de Independência do Brasil, que não se reduz ao ato administrativo de sua proclamação oficial", acrescenta. "Pelo contrário, é, sem sombra de dúvidas, também produto das articulações políticas e sociais das populações negras." Reis ressalta ainda o fato de que essas revoltas que ocorreram costumam ser tratadas apenas como motins, como rebeliões contra o poder estabelecido, mas comumente não são vistas como lutas que tinham em seu cerne o ideal de emancipação, "de independência da nação". "E quando a Independência de fato ocorre, ela é uma Independência repressora, que acaba massacrando as revoltas que ocorrem depois, sob o argumento da manutenção do Estado nacional brasileiro", comenta. No imaginário popular, está dom Pedro levantando a espada, gritando heroico "independência ou morte", tal e qual no famoso quadro criado em 1888 por Pedro Américo (1843-1905). Longe de ser uma fotografia, retrata de forma pomposa e distante da realidade o que aconteceu em 7 de setembro de 1822. Mas foi a narrativa que venceu, sob o prisma do homem branco europeu — o mesmo colonizador. "O Brasil Imperial, proclamado independente no 7 de setembro de 1822, foi uma articulação 'de portas fechadas' entre escravocratas, comerciantes e a própria família real portuguesa, com uma promessa clara - a manutenção do tráfico transatlântico e da escravidão", define Paz. "O movimento da Independência ofuscou os outros movimentos que ocorriam na época, principalmente a questão abolicionista, porque acabou sendo um movimento de elite, uma elite preocupada em manter a autonomia que havia sido conquistada desde a chegada da corte ao Brasil em 1808", explica o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre personalidades que viveram no período, como o próprio Pedro I. A transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, nesse contexto de fuga das tropas napoleônicas no início do século 19, acabou sendo crucial para que ocorresse no Brasil uma história da independência tão diferente do que ocorreu em outros países latino-americanos — a começar, por não vir junto com um regime republicano. "O Brasil já tinha uma elite de funcionários públicos, funcionários do governo e latifundiários que não queriam perder as conquistas adquiridas com a chegada da corte portuguesa", completa Rezzutti. "A não ser no caso do Haiti, não há nenhum país da América Latina em que a Independência não tenha sido conquistada pela elite [branca]. Aqui no Brasil houve o agravante: tornou-se império porque acreditava-se que a elite brasileira não fosse tão esclarecida intelectualmente quanto o restante da elite latino-americana. Então se temia que o Brasil se fragmentasse em diversos países", explica o pesquisador. "A ideia de manter o regime monárquico foi para garantir a integridade do Estado nacional. Mas isso acabou tendo a consequência de que a parte hegemônica da elite pensava totalmente contra a abolição", prossegue ele. Essa acabou se tornando a narrativa preponderante, afinal, como lembra Rezzutti, "a história é escrita pelos vencedores, e a elite foi a vencedora da Independência". "Uma elite escravocrata, formada por latifundiários e burocratas que dependiam do trabalho escravo", afirma. A historiadora Ynaê Lopes dos Santos ressalta que é preciso diferenciar "o que foi o processo de independência do Brasil" e "a história que se contou sobre isso". "Temos um acesso muito limitado ao processo de Independência, que faz parte de um projeto nacional de contar a história como se fosse um fato que começa e termina no 7 de Setembro", pontua ela. "Na verdade, foi algo mais complexo, envolvendo uma série de interesses. A forma de contá-la tem o propósito de marcar a história do Brasil como uma história pouco conflituosa e pouco combativa." Para Santos, o ponto-chave nessa compreensão está em encarar a homogeneidade étnica e cultural daqueles que ocupavam os altos postos do poder nas primeiras décadas do século 19 — os deputados que representavam as capitanias brasileiras na Assembleia de Lisboa e, com a Independência, os que formam a Assembleia do Rio de Janeiro. "Esse alto escalão político brasileiro era formado majoritariamente por homens brancos escravocratas, formados na mesma universidade, de Coimbra, ensinados pelos mesmos professores", define ela. "Comungavam as mesmas experiências e visões de mundo." Por isso, ela explica, não existiu nesse momento da Independência um debate em relação à manutenção ou não da escravidão. "Foi uma questão silenciada. A manutenção da escravidão se deu pelo próprio silenciamento da existência da escravidão na carta constitucional de 1824", afirma a historiadora. Citando o historiador Luiz Felipe de Alencastro, ela repete que "o Brasil foi um país que nasceu apostando no futuro da escravidão". "Aposta esta que silenciava justamente o que era a jurisdição, colocando-a na salvaguarda da propriedade privada", explica. "Existia um acordo da classe política brasileira, em sua imensa maioria, para que fosse construído um país soberano alicerçado na manutenção da escravidão", complementa. "Porque havia a compreensão que a própria unidade nacional estava vinculada à manutenção da escravidão. A escravidão acabou sendo a instituição que ordenou o funcionamento da sociedade brasileira, não só economicamente, mas também política e socialmente." Outro aspecto lembrado pela professora são as tantas revoltas que ocorreram para consolidar a independência. E aí novamente é preciso olhar para a Bahia, que acabou revivendo os ideais da Revolta dos Búzios no início da década de 1820 — com a guerra da independência ocorrida, de fato, em 2 de julho de 1823. "Naquela província, vimos os contornos mais radicais da efetivação da Independência, com as pessoas expulsando as tropas portuguesas de seus territórios", diz Santos. "Um olhar um pouco mais crítico em relação à Independência do Brasil pressupõe pelo menos uma análise de duas escalas desse processo: aquele feito pela classe política, pela oligarquia político-econômica brasileira; de outro lado, o chão das províncias, as pessoas que realmente transformaram esse projeto de Independência em um fato real", explica a historiadora. "Nesse ponto, há uma presença muito forte de sujeitos que tiveram suas histórias silenciadas, homens e mulheres, negros, mestiços, pobres, etc." Mas a historiografia oficial acabou realçando apenas o primeiro grupo. E esse apagamento ocorreu não só dessas revoltas pós 7 de Setembro, como também dos movimentos que ocorriam antes. "As revoltas do Brasil colonial, muitas tinham objetivos separatistas, abolicionistas e republicanos. Isso acabou suprimido da história oficial brasileira", complementa a professora. Ao apagar a participação do negro, a história cria um arcabouço para a manutenção do racismo estrutural. "A leitura oficial do 7 de Setembro é calcada e estruturada pelo racismo. Isso faz parte de um projeto de nação que se constituiu que se reforçou ao longo dos anos, inclusive com o advento da República, já que boa parte do que é ensinado sobre a Independência foi gestado no período republicano", frisa a historiadora Santos. "A maneira como aprendemos a história da Independência do Brasil é mais um dos expoentes sintomas do racismos estrutural brasileiro, que silencia as inúmeras histórias e participações da população não branca na formação do país", acrescenta ela. "A invisibilidade é uma das marcas desse poder que nega e silencia os sujeitos históricos negros e indígenas", diz o historiador Paz. "Essa 'história escrita por mãos brancas', como sentencia a historiadora negra brasileira, Beatriz Nascimento, é produzida tanto no apagamento do negro na história do Brasil, quanto no descrédito das suas narrativas no presente." Para o historiador, o próprio movimento de independência do Haiti — guerra travada de 1791 a 1804 que acabou resultando na primeira república americana governada por pessoas de ascendência africana — deixava as elites brasileiras apreensivas que algo parecido pudesse ocorrer. "Acredito que as disputas pelos sentidos em torno do 'grito do Ipiranga' e a própria independência em si, da maneira que se deu, significa menos uma ruptura anticolonial e mais uma articulação antinegra, muito pelo medo dos rumores que desciam do Haiti", comenta ele. Para Reis, na consolidação do Estado nacional brasileiro houve uma intenção de "não lembrança", de "não significação" dos elementos de luta negra, indígena, de gênero e, "sobretudo, de classe". "Eles são apagados em nome da manutenção do poderio da elite local, que 'faz', enfim, a Independência e dão sentido a ela."
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0j3ppkk054o
brasil
Por que o Brasil continuou um só enquanto a América espanhola se dividiu em vários países?
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 7 de setembro de 2018 Em 7 de setembro de 1822, o Brasil ganhava sua independência de Portugal. Mas por que a América portuguesa se tornou um único país, enquanto a América espanhola se fragmentou em outros tantos? Não há apenas uma única razão, mas várias, segundo historiadores com quem a BBC News Brasil conversou. E, para quem busca respostas fáceis, um alerta. Não há unanimidade nas conclusões. Uma das causas tem a ver com a distância geográfica entre as cidades das antigas colônias e a forma como as duas possessões eram administradas por suas respectivas metrópoles. Fim do Matérias recomendadas Ainda que a colônia portuguesa tivesse dimensões continentais, a maior parte da população se concentrava em cidades costeiras, enquanto o interior permanecia praticamente inexplorado, lembra à BBC News Brasil o historiador mexicano Alfredo Ávila Rueda, da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). "É verdade que, hoje, o Brasil é um país enorme, com mais de 8 milhões de km². Mas, na prática, na época da independência, as principais cidades se concentravam no litoral. As distâncias entre as cidades eram, assim, menores do que na América Espanhola. O interior era praticamente território que não era controlado pela Coroa portuguesa", diz. Já a América Espanhola era formada por quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Peru, Rio da Prata e Nova Granada, com poucos vínculos - senão comerciais - entre si. Cada um deles respondia à Coroa e tinha vida própria. Ou seja, eram administrados localmente. Além disso, foram criadas capitanias que tinham governos independentes desses vice-reinados, como as da Venezuela, Guatemala, Chile e Quito, acrescenta Ávila Rueda. "A administração espanhola se deu em torno de duas 'sub-metrópoles': México e Peru. Isso não aconteceu no Brasil, onde a administração era muito mais centralizada", explica o historiador mexicano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra causa está relacionada à formação e à representatividade das elites nas duas colônias, na opinião do historiador brasileiro José Murilo de Carvalho. No Brasil, a elite era muito mais homogênea ideologicamente do que a espanhola, diz ele. Carvalho argumenta que isso se deveu à tradição burocrática portuguesa. Portugal nunca permitiu a criação de universidades em sua colônia. Escolas superiores só foram criadas após a chegada da corte, em 1808. Assim, os brasileiros que quisessem e pudessem ter formação universitária tinham que viajar a Portugal, sobretudo à cidade de Coimbra. "Diante de um pedido para se criar uma escola de Medicina em Minas Gerais, no século 18, a resposta da Corte foi: agora pedem uma faculdade de Medicina, daqui a pouco vão pedir uma faculdade de Direito e, em seguida, vão querer a independência", exemplifica o historiador brasileiro. Quando se formavam, esses ex-alunos voltavam ao Brasil e acabavam ocupando cargos importantes na administração da colônia. Ou seja, um desembargador em Pernambuco formado em Coimbra tinha grandes chances de conhecer um desembargador do Rio de Janeiro também diplomado na mesma universidade, ou de ter conhecidos em comum, o que, na opinião de Carvalho, favoreceu um sentimento de unidade na colônia. "Esses estudantes luso-brasileiros em Coimbra tinham organização própria. Envolveram-se no mesmo ensino que os portugueses e foram absorvidos pela burocracia da Corte, sendo enviados a todos os pontos do império português - do Brasil à África. Portugal tinha uma população muito pequena à época e não havia gente suficiente para administrar seu império. Acabou dependendo dos brasileiros treinados lá", diz. "Eles formaram grande parte da elite política brasileira até cerca de 1850, como ministros, conselheiros de Estado, deputados e senadores", acrescenta. Segundo Murilo de Carvalho, essa formação da elite brasileira em Portugal acabou por favorecer a obediência à figura real e a crença nas virtudes do poder centralizado. Entre 1772 e 1872, passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros. Por outro lado, na América Espanhola, durante esse mesmo período, 150 mil estudantes se formaram em universidades locais, diz Carvalho. Havia pelo menos 23 universidades na colônia, três delas apenas no México. Só a Universidade do México formou quase 40 mil estudantes. Dessa forma, argumenta o historiador, quando os movimentos de independência na América Espanhola começaram a ganhar força, no século 19, eles surgiram coincidentemente nos locais onde havia universidades. E praticamente todos esses locais com universidades acabaram dando origem a um país diferente. Ávila Rueda contesta, contudo, essa última hipótese. "Essas universidades eram, em sua maioria, reacionárias...aliadas à Coroa espanhola", diz. "A Universidade do México, por exemplo, era muito reacionária, a tal ponto que, em 1830 (após a independência do México), o governo mexicano decidiu fechá-la porque acreditava que não seria possível reformá-la", acrescenta. Neste sentido, o historiador mexicano diz acreditar que a livre circulação de impressos (jornais, livros e panfletos) na América espanhola, que não era permitida na América portuguesa (a proibição só foi revertida em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil), teve papel muito mais importante na construção de identidades regionais do que propriamente as universidades. "Já na América portuguesa, tudo o que era consumido vinha de Portugal, o que gerava esse vínculo muito forte com a metrópole", lembra. Mas fato inconteste era que, na América espanhola, os nascidos na colônia, os chamados criollos, a elite local (grandes proprietários de terras, arrendatários de minas, comerciantes e pecuaristas) eram desprezados em relação aos nascidos na Espanha, os Peninsulares. Até 1700, quando a Espanha era governada pela dinastia dos Habsburgo, as colônias tinham bastante autonomia. Mas tudo mudou com as reformas borbônicas feitas pelo rei espanhol Carlos 3º. Naquele momento, a Espanha precisava aumentar a extração de riqueza de suas colônias para financiar a manutenção de seu império e guerras nas quais estava envolvido. Com isso, a Coroa decidiu expandir os privilégios dos peninsulares - colonos nascidos na Espanha -, que passaram a ocupar os cargos administrativos anteriormente destinados aos criollos. Ao mesmo tempo, as reformas realizadas pela Igreja Católica reduziram os papéis e os privilégios do baixo clero, que também era formado em sua maioria por criollos. Outro motivo que explica a manutenção da unidade do Brasil, senão o mais importante, foi a fuga da família real portuguesa para sua então maior colônia, de acordo com os historiadores. Em 1808, com a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, o príncipe regente João fugiu para o Rio de Janeiro, transferindo não somente a corte, mas toda a burocracia do governo: arquivos, biblioteca real, tesouro público e cerca de 15 mil pessoas. O Rio de Janeiro virou, então, a sede político-administrativa do império. A presença do rei em território brasileiro serviu como fonte de legitimidade para que a colônia se mantivesse unida. "O rei era um herdeiro legítimo do poder. Temos dificuldade de entender a importância disso hoje, mas naquela época a figura de Dom João 6º como monarca tinha muita força", diz à BBC News Brasil o historiador americano Richard Graham, professor emérito da Universidade do Texas e considerado um dos maiores especialistas em história da América Latina nos Estados Unidos. Carvalho explica que a "transferência trouxe para o Brasil toda a burocracia portuguesa. Portugal passou a ser uma dependência. Desenvolveu-se, portanto, um foco de legitimidade política no país". "Se Dom João não tivesse vindo para o Brasil, o país teria se dividido em cinco ou seis países. Os lugares de maior desenvolvimento econômico, como Pernambuco e Rio de Janeiro, teriam conseguido sua independência", assinala. Na Espanha, contudo, essa fonte de legitimidade foi questionada após a invasão de Napoleão. Ele forçou o rei espanhol, Carlos 4º e seu filho, Fernando 7º, a abdicar do trono a favor de seu irmão, José Bonaparte (mais tarde José 1º da Espanha). Na colônia, a notícia caiu como uma bomba. Aqueles que viviam na América Espanhola já não sabiam mais a quem obedecer. Surgiram juntas administrativas, muitas das quais no começo governavam em nome de Fernando 7º, recusando-se a receber ordens de juntas semelhantes formadas na Espanha (após a invasão de Napoleão, o governo espanhol foi dividido em inúmeras juntas administrativas). Quando Napoleão foi derrotado, esses líderes locais já tinham experiência de autogoverno. Reconduzido ao trono em 1814, Fernando 7º não garantiu a autonomia deles e tentou usar a força para restabelecer a submissão das colônias. Esse fato aliado à política discriminatória por parte da Coroa Espanhola em relação aos nascidos nas Américas fez com que eles se rebelassem, inspirados pelos ideais iluministas espalhados pelas revoluções americana e francesa. Com o apoio de outras castas, eles travaram lutas sangrentas contra a Espanha por independência, entre 1809 a 1826. Por outro lado, quando Napoleão foi derrotado, Dom João 6º elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal. Também permaneceu no Rio de Janeiro até que as cortes exigissem seu retorno a Lisboa, em 1820, e aceitasse uma constituição liberal. Dom João 6º deixou seu filho, Pedro, como príncipe regente no Brasil, e em 1822, Pedro tornou o Brasil independente, coroando a si mesmo como Dom Pedro 1º. O Brasil ganhou então a independência como uma monarquia constitucional. Preocupações econômicas e sociais também contribuíram fortemente para assegurar a unidade do Brasil. Segundo Graham, fazendeiros e homens ricos das cidades acabaram aceitando uma autoridade central por dois motivos: a ameaça de desordem social e o apelo de uma monarquia legítima. Um possível desmembramento do Brasil em diferentes países poderia colocar em xeque o firme controle social desejado pelos proprietários de terras e escravocratas. Inicialmente, eles achavam que conseguiriam manter o respeito e a obediência, mas revoltas populares provaram o contrário, na prática. No Haiti, por exemplo, a independência significou o fim da escravidão. Embora o Brasil tenha conseguido sua independência de Portugal sem recorrer à luta militar generalizada, os líderes regionais procuravam maior liberdade em relação à capital, o Rio de Janeiro, diz Graham. Mas, com o tempo, eles perceberam que essa vontade de reivindicar um autogoverno regional ou a independência completa do governo centralizado poderia enfraquecer sua autoridade, não somente sobre os escravos, mas também sobre as classes inferiores em geral. Ou seja, temiam a desordem social. "É importante lembrar que o Brasil era um país de escravos. Eles compunham grande parte da população. Era muito perigoso que as classes dominantes começassem a brigar entre si e colocassem em risco sua legitimidade", destaca Graham. "Essa classe dominante temia que esses escravos pudessem aproveitar-se de suas divisões internas para se rebelar", acrescenta. Na América Espanhola, por outro lado, diz o historiador americano, "as elites (...) aprenderam que poderiam lidar muito bem com uma população irrequieta. Todos os países hispano-americanos tomaram medidas que objetivavam terminar com a escravidão, possivelmente para diminuir o perigo da revolta escrava. Mestiços (e alguns mulatos, como na Venezuela), tinham o comando de forças militares e eram frequentemente recompensados com posse de terras tomadas dos monarquistas", diz. Estatísticas sobre o comércio de escravos embasam tal hipótese. Entre 1500 e 1866, a América Espanhola recebeu 1,3 milhão de escravos trazidos da África. No mesmo período, desembarcaram no Brasil 4,9 milhões, segundo dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos - que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard. O levantamento foi possível porque os escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a qual incidia cobrança de impostos. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos. Mas por que as fronteiras dos países recém-independentes na América Espanhola não se mantiveram as mesmas das dos quatro vice-reinados? Ou seja, por que houve tanta fragmentação? Explica Ávila Rueda: "Na época colonial, o conceito de fronteira era distinto do dos Estados modernos. O que havia era um sistema de jurisdição, não de fronteiras. E as diferentes jurisdições às vezes se sobrepunham umas às outras". Ele cita o caso do vice-reinado de Nova Espanha (território que compreende parte dos Estados Unidos, México e América Central). "Em termos de governo, o vice-rei tinha controle sobre praticamente todo o território, salvo as regiões mais ao norte, que eram independentes neste sentido. Mas, a nível fiscal, o governo do México tinha controle sobre essas regiões. Já em relação a questões jurídicas, a gestão era totalmente diferente". "Assim, houve conflitos bélicos muito fortes para delimitar essas fronteiras no século 19, inclusive após a independência", acrescenta. Ávila Rueda lembra que, com a abdicação de Fernando 7º, ocorre um processo em que os territórios provinciais passam a lutar por "mais autonomia". "Julgamos o passado a partir do nosso ponto de vista atual. Achamos que o vice-reinado de Nova Espanha se manteve como um país unido, que é o México atual. Mas nos esquecemos que depois da independência, surgiu o império mexicano, que incluía a atual América Central. Posteriormente, com a dissolução do império mexicano, se estabeleceram a federação mexicana e a federação centro-americana, que mais tarde se desintegraria em outros países", diz. "Houve um processo de fragmentação na América Espanhola. Eventualmente, algumas dessas províncias formam confederações para ter força militar e se defender de outros inimigos. Ou são unidas à força, como fez Simón Bolívar", acrescenta. Graham concorda. "Se você vai se tornar independente da Espanha, por que continuaria a se submeter aos mandos e desmandos de Buenos Aires, por exemplo? A divisão por vice-reinos era burocrática. E as fronteiras atuais dos países da América Latina demoraram para ser consolidadas. Não era possível prevê-las antes de 1810, pois resultaram de disputas internas após a independência", explica. Mas é importante lembrar que também houve na América Espanhola planos de unificação, que não avançaram. Em 1822, Simón Bolívar e José de San Martín, duas das figuras mais importantes da descolonização da América Espanhola, reuniram-se na cidade de Guayaquil, no Equador, para discutir o futuro da América Espanhola. Enquanto Bolívar era partidário da unidade das ex-colônias (ele forçou a unificação da Colômbia e da Venezuela) e a formação de uma federação de repúblicas, San Martín defendia a restauração da monarquia, sob a forma de governos liderados por príncipes europeus. A ideia de Bolívar voltou a ser discutida no Congresso do Panamá, em 1826, mas acabou rejeitada. E se Fernando 7º tivesse feito o mesmo que D. João 6º e transferido a corte às Américas, o mapa da América Latina seria diferente do que é hoje? Em um artigo, o historiador americano William Spence Robertson, já falecido, cita a frase de um observador espanhol em 1821: "O México não aceitaria as leis que fossem sancionadas em Lima; nem Lima aceitaria as leis que fossem sancionadas no México". "A principal pergunta, portanto, é onde ele escolheria se estabelecer. Não acredito que o México permaneceria leal a um rei estabelecido em Lima e não em Madri", diz Graham. "Mas certamente (se Fernando 7º tivesse se transferido às Américas) haveria menos divisões do que, na verdade, ocorreu", acrescenta. Isso porque os reis oferecem legitimidade. Tanto é que, na Argentina, quando um congresso em 1816 declarou a independência das "Províncias Unidas", Juan Martin de Pueryrredón, nomeado diretor dessa entidade, tentou, nos três anos seguintes, em vão buscar alguém na Europa com vínculo real para se tornar rei das Províncias Unidades do Rio da Prata. "A própria mulher de Dom João, Dona Carlota Joaquina, tinha vontade de se tornar rainha do Prata", lembra Murilo de Carvalho. Já no México, quando as cortes espanholas se recusaram a reconhecer a independência mexicana e a permitir que um membro da realeza aceitasse o trono do império mexicano, Agustín Iturbide, um dos mentores da independência, forjou uma eleição ao fim da qual foi coroado imperador, como Agustín 1º. No Peru, também foi aventada a possibilidade de um príncipe espanhol liderar uma monarquia independente. Mas o processo de unificação territorial no Brasil tampouco foi totalmente pacífico. Houve movimentos de caráter emancipacionista em Minas Gerais (1789), na Bahia (1798), em Pernambuco (1817). No entanto, essas revoltas foram mais fomentadas por um sentimento de autonomia do que propriamente por um desejo de ruptura entre a colônia e a metrópole. Um exemplo emblemático disso foi a chamada Inconfidência Mineira, liderada por Tiradentes em Minas Gerais (1789). Não havia nessa conspiração antimetropolitana nenhum desejo de libertação de todo o território. Quando Dom Pedro 1º declarou a Independência do Brasil, em 1822, por exemplo, a maior parte das províncias do norte foram contra e permaneceram leais a Portugal, até defrontarem-se com uma força vinda do Rio de Janeiro. Ainda assim, como lembra Graham, "mesmos os grupos do sul que declaram sua aliança a D. Pedro 1º, em meados de 1822, não significavam o triunfo do nacionalismo. Ao contrário, eles simplesmente preferiam o domínio dele, com a promessa de autonomia local, ao domínio das cortes portuguesas, que ameaçava essa autonomia". Ávila Rueda acrescenta ainda que, "como na América portuguesa não houve uma guerra de independência e sim uma continuidade com a transferência da corte, o governo do Rio de Janeiro tinha mais força para suprimir essas rebeliões". "Em contrapartida, o governo do México não tinha força suficiente para evitar o desmembramento da América Central. Tampouco o governo de Buenos Aires em relação a Uruguai ou Paraguai", acrescenta. Segundo a historiadora brasileira Lilia Schwarcz, "a independência do Brasil foi uma solução de compromisso entre as elites, no sentido de primeiro evitar uma mudança estrutural na então colônia que se tornaria um país e evitar grandes conturbações sociais", diz. "Houve um ajuste entre as várias elites locais no sentido de preservar a escravidão, evitar o formato de uma revolução, inclusive sabendo do que havia ocorrido na América Espanhola e conseguir manter o país unificado", acrescenta. Graham concorda. "O governo central não foi imposto às pessoas influentes ou até mesmo "vendido" a eles. Eles (a elite brasileira) o escolheram", assinala. "Eles procuravam legitimidade porque, sem ela, sua autoridade local permanecia relativamente fraca. Eles desejavam fortalecer a hierarquia porque ela validaria a sua própria posição local predominante. Para alcançar esses objetivos, eles construíram um estado central, simbolizado no imperador. A monarquia tinha sua utilidade". "A presença do imperador foi fundamental. As elites pretendiam que o imperador fosse uma espécie de símbolo a unificar as diferentes províncias e que, de alguma maneira, ele fizesse uma passagem não tão convulsionada como no restante da América Espanhola. Sabemos que a história não foi bem assim, mas foi o que aconteceu no momento da independência", diz Schwarcz. Por fim, a opção por um governo central, além de afastar o espectro de uma anarquia social, também favorecia estender o poder dessas elites, uma vez que cabia a elas as indicações aos cargos públicos, como oficiais da Guarda Nacional, delegados de polícia e juízes. "Eles vieram a considerar o governo central como apropriado e útil para fins pessoais", diz Graham. Já no fim do século, com a unidade do Brasil já assegurada e a escravidão abolida, as elites já não precisavam mais "de um símbolo vivo do estado" para estabelecer sua legitimidade. O império acabou destronado pelo Exército, que proclamou a república quase sem disparar um único tiro. Com ilustrações de Cecilia Tombesi e Kako Abraham
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gjpmvkv5eo
brasil
19 países em 8 meses: por que Lula viaja tanto?
No lobby do hotel The Leonardo, em Johanesburgo, na África do Sul, a língua mais falada por ali na terceira semana de agosto era português e não inglês, um dos idiomas oficiais do país. A cena se repetiu praticamente de forma idêntica em todos os outros países que Lula visitou nos primeiros oito meses de seu terceiro governo. Nesse período, Lula viajou para 19 países. O número iguala o recorde também registrado pelo petista no primeiro ano de seu segundo mandato, em 2007 (veja dados abaixo). E agora, assim como naquela época, a quantidade de viagens feitas por Lula virou alvo de críticas tanto de integrantes da oposição quanto dentro do governo e levanta a seguinte questão: por que Lula tem viajado tanto? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a quantidade de viagens de Lula ao exterior nesses primeiros oito meses é resultado de uma soma de fatores que incluem: uma espécie de demanda reprimida em relação à atuação do Brasil na esfera internacional durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o perfil pessoal de Lula, que demonstraria mais interesse no assunto. Eles ponderam, no entanto, que se de um lado as viagens do presidente podem "abrir portas" e gerar oportunidades no exterior, por outro elas podem dar margem a críticas internas e externas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Levantamento feito com base na agenda pública de Lula mostra que, entre janeiro e o fim de agosto, ele visitou 19 países. Entre eles, estão nações como Argentina, Estados Unidos, China e países do continente africano como Angola e África do Sul. Com base em dados da Presidência da República, a BBC News Brasil verificou que esse é o maior número de países visitados por um presidente nos oito meses do seu primeiro ano de mandato desde a redemocratização do país, em 1985. Ainda de acordo com o levantamento, o número foi o mesmo registrado para o período no primeiro ano do segundo mandato, em 2007. Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, Lula visitou 13 países no período. Entre os presidentes que mais viajaram nos primeiros oito meses de seus primeiros anos de mandato estão Dilma Rousseff (PT), que presidiu o Brasil entre 2011 e 2016, e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que comandou o país entre 1995 e 2002. Nenhum dos dois, no entanto, atingiu as marcas de Lula. Entre janeiro e agosto de 1995, Fernando Henrique Cardoso viajou a nove países. No mesmo período de 1999, já em seu segundo mandato, o então presidente viajou para oito países. Dilma Rousseff, por sua vez, foi a menos destinos que Lula e Fernando Henrique Cardoso. Entre janeiro e agosto de 2011, ela viajou para seis países. Em 2015, ela foi a nove. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o volume de compromissos internacionais de Lula pode ser explicado por dois fatores principais: "Uma das razões para que ele (Lula) faça tantas viagens está relacionada à necessidade de recolocar o Brasil no mapa do mundo após quatro anos de uma política externa errática e com algumas questões problemáticas como a de Bolsonaro", diz Fernanda Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP. A política externa de Bolsonaro foi marcada por fatos como o fechamento do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, em 2019, um alinhamento político intenso com a administração do agora ex-presidente norte-americano Donald Trump e por polêmicas na relação do presidente com países como a França e a China. "Qualquer outra liderança sem ser Lula teria que ir nessa direção porque era uma necessidade do Brasil", afirma Magnotta. O diplomata Rubens Barbosa segue a mesma linha de Magnotta e diz que as viagens de Lula nos primeiros meses de seu mandato precisa ser colocada em contexto. "É preciso contextualizar e ver que Bolsonaro, por exemplo, fez o caminho inverso. Ele não viajou, não se inseriu internacionalmente. Vejo esse movimento de Lula como normal, especialmente nesse início de governo", afirmou. Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado apontam ainda que haveria uma espécie de "demanda reprimida" entre os países da comunidade internacional interessados em se aproximar do Brasil que não havia sido atendida nos últimos anos. Um dos dados que corroboraria essa tese é a quantidade de líderes internacionais com quem Lula se encontrou nos primeiros oito meses de seu novo mandato. Até agosto, Lula já teve reuniões bilaterais com 48 chefes de Estado ou de governo, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Segundo um levantamento feito pelo jornal O Globo publicado em maio, Bolsonaro se reuniu com 31 em seus quatro anos de governo. O outro ponto citado pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil para explicar a quantidade de viagens de Lula nos primeiros meses de seu novo governo é o que os estudiosos de política externa chamam de diplomacia presidencial. "A diplomacia presidencial é aquela marcada pela pretensão do líder em se envolver diretamente em negociações internacionais com outras lideranças sem utilizar, necessariamente, o intermédio de ministros e diplomatas", explica Fernanda Magnotta. Cientistas políticos e acadêmicos do campo das relações internacionais também ponderam que o exercício da diplomacia presidencial pode refletir de forma mais ou menos acentuada características ou interesses pessoais do governante. Dessa forma, líderes mais interessados em política externa tenderiam a ter uma atuação mais forte em fóruns multilaterais, enquanto outros, mais preocupados com questões domésticas, adotariam um perfil diferente. Os acadêmicos avaliam também que a diplomacia presidencial pode, em alguma medida, gerar descontinuidade de projetos ou mudanças abruptas de prioridade a cada mudança de governo, especialmente em países nos quais os poderes do governante são maiores, como normalmente acontece nos regimes presidenciais. "Isso (relações internacionais) é visto por líderes, e Lula é um deles, como uma forma de aumentar a visibilidade do país e do seu governo no cenário internacional para defender os interesses da nação com a máxima efetividade simbólica", diz Magnotta. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que Lula já havia demonstrado interesse em política externa nos seus dois primeiros mandatos (2003 a 2006 e 2007 a 2010). Por isso, o foco de Lula em uma agenda repleta de compromissos internacionais não chegou a surpreender os analistas ouvidos. "Lula já havia feito isso no passado. Essas viagens todas são uma decorrência da forma como o presidente vê qual é o papel que o país deve desempenhar. Ele está aproveitando a visibilidade internacional que tem", afirmou o diplomata Rubens Barbosa. Segundo Fernanda Magnotta, a intensidade das viagens de Lula também têm relação com a sua visão de mundo. "Lula parece acreditar que é do interesse do Brasil se colocar como um ator global e não apenas uma potência média ou regional. Um ator global interessado em rever a ordem internacional", diz a professora. "Há um esforço claro de querer ampliar a visibilidade e influência do Brasil sobretudo depois de 10 anos que inviabilizaram uma atuação do Brasil na arena internacional", disse Stuenkel. Com esse objetivo em mente, as viagens de Lula ao exterior seriam uma forma de atingir essa meta. Fernanda Magnotta aponta que a presença de Lula em tantos eventos internacionais pode representar algumas oportunidades ao Brasil. "A principal vantagem de uma agenda tão intensa é o aumento da visibilidade global. Quando temos um presidente ativo internacionalmente, isso pode atrair investimentos, oportunidades e aumentar as chances de haver articulações políticas com outros países", disse a professora. A quantidade de viagens de Lula, no entanto, passou a ser alvo de críticas de oposicionistas poucos meses após ele iniciar o seu mandato. Uma das críticas é de que Lula estaria supostamente mais interessado em temas internacionais como a guerra na Ucrânia (suas intervenções sobre o assunto geraram polêmica) do que em questões domésticas, como a dificuldade do governo de montar uma base parlamentar sólida ou a política econômica. "Um foco excessivo na política externa traz consigo alguns riscos. Muita gente vai dizer, por exemplo, que a agenda externa gera uma desatenção para as questões internas do país", explica Fernanda Magnotta. E Rubens Barbosa diz: "Até agora, o governo conseguiu aprovar seus projetos, mas se alguma reforma importante empacar, o presidente poderá ser alvo de críticas mais pesadas por conta dessa agenda internacional". Um dos problemas mais recorrentes do atual governo é sua sustentação parlamentar no Congresso Nacional. Apesar de o governo vir conseguindo aprovar a maior parte dos seus projetos como o novo arcabouço fiscal e a primeira parte da reforma tributária, analistas políticos avaliam que Lula ainda não tem uma base sólida e que depende de negociações pontuais para conseguir fazer avançar a sua agenda. Na tentativa de ampliar sua base, o governo vem promovendo mudanças no comando de ministérios. Nos últimos meses, o deputado federal Celso Sabino (União Brasil-PA) assumiu a pasta do Turismo após a saída de Daniela Carneiro. Há ainda a expectativa de uma reforma ministerial nos próximos dias, mas que vem sendo adiada e parte desse atraso vem sendo atribuído à agenda internacional de Lula nos últimos meses. O deputado federal Rogério Correia (PT-MG), um dos vice-líderes do governo na Câmara dos Deputados, admitiu à BBC News Brasil que houve, nos primeiros meses do governo, certa preocupação com relação a como as viagens de Lula poderiam afetar a capacidade de articulação política da atual administração. Ele diz que um ponto de atenção foi a tramitação da medida provisória que determinou a atual organização dos ministérios do governo Lula. Em maio, a tramitação da MP começou a preocupar o governo depois que membros do chamado Centrão, que lideravam esse processo, inseriram mudanças como a retirada de poderes dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Em meio ao impasse, os dias foram se passando sem que o governo conseguisse chegar a um acordo. O risco era que, se a MP não fosse votada e convertida em lei até os primeiros dias de junho, ela perderia validade e a estrutura dos ministérios do governo Lula teria que ser a mesma herdade do governo Bolsonaro. O problema é que em maio, enquanto as negociações no Congresso Nacional iam a todo vapor e o governo encontrava resistências, Lula cumpria uma intensa agenda internacional visitando o Reino Unido, Japão, Itália e Vaticano. Nos bastidores, até mesmo integrantes do governo reclamaram da dificuldade em alinhar os termos da negociação com o Centrão enquanto o presidente estava fora do país. A MP acabou sendo aprovada no último dia antes de perder a validade e com a perda de atribuições do MPI e do MMA. "Ali, a gente ficou um pouco preocupado", lembra o deputado. "O problema não eram as viagens, mas a qualidade do tempo que se dedicava à articulação. Mas isso já foi resolvido. Quando está em Brasília, o presidente tem se dedicado mais à articulação. E quando está fora, os temas domésticos também são repassados a ele diretamente", diz o parlamentar. Fernanda Magnotta diz que outro ponto de tensão quando um governo assume uma política externa tão movimentada é com relação à expectativa do seu resultado e o potencial de polarização política. "Na medida em que há um aumento desses compromissos, também aumentam as expectativas e, por consequência, as cobranças e as frustrações. O risco dessa diplomacia intensiva está ligado às entregas que ela será capaz de fazer e da possibilidade de uso político de tudo o que é decidido como elemento que incentive a polarização política que já existe no país", diz a professora. O senador e líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), critica, por exemplo, a condução da política externa de Lula. "Durante o governo Bolsonaro, nós fechamos o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e, agora, o acordo está parado. Além disso, o presidente Lula vem dando declarações equivocadas sobre a guerra na Ucrânia", diz Marinho. Integrantes do governo apontam que o ritmo de viagens de Lula nos próximos meses deverá diminuir. Após as idas à Índia para a reunião do G20, grupo das 20 maiores economias do mundo, Cuba e Estados Unidos (para a Assembleia Geral da ONU), Lula fará uma pausa para se submeter a uma cirurgia no quadril. Há meses, o presidente vem sofrendo com dores crônicas na região. A cirurgia está prevista para acontecer no final de setembro ou início de outubro e deverá lhe obrigar a ficar em recuperação por algumas semanas. A possível próxima viagem internacional de Lula em 2023 é a ida para a COP-28 (Conferência das Nações Unidas para o Clima), entre novembro e dezembro, nos Emirados Árabes Unidos.
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwx9qxgzz7o
brasil
Como reduzir limite de velocidade pode diminuir mortes no trânsito
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), prometeu diminuir o limite de velocidade para os carros em avenidas na orla das praias da cidade — 70 km/hora é o máximo permitido hoje. O anúncio de Paes ocorreu após o atropelamento do ator Kayky Brito, na madrugada do último sábado (2/9), na avenida Lúcia Costa, na Barra da Tijuca. Brito teve politraumatismo e traumatismo craniano. O artista segue internado em estado grave na UTI do Hospital Copa D’Or. Imagens de vigilância divulgadas neste domingo (3/9) mostram que o motorista do veículo tentou frear e desviar do ator, mas acabou o atingindo de frente. A polícia constatou que o condutor não havia ingerido bebidas alcoólicas. As investigações ainda devem apontar se o motorista, que trabalha com aplicativos de transportes, estava dirigindo acima da velocidade permitida na avenida, justamente 70 km/hora. Fim do Matérias recomendadas Em publicação nas redes sociais, Eduardo Paes, que está no penúltimo ano de seu terceiro mandato como prefeito do Rio, classificou como um “absurdo” o limite máximo de 70 km/hora em avenidas da orla da cidade. “O atropelamento do ator Kayky Brito mostra bem que a velocidade permitida em muitas vias da cidade é excessiva. Imaginar que nossa Orla - um lugar de contemplação, lazer e paz - tem velocidade máxima de 70 km é um absurdo”, escreveu Paes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O prefeito completou a publicação afirmando que vai pedir um estudo sobre o assunto: “Independentemente de responsabilidades no caso em questão, não é admissível manter isso. Já determinei que a CET-Rio (Companhia de Engenharia de Tráfego) me apresente ainda essa semana uma mudança no limite da Orla do Rio. E vamos avançar com essas mudanças em outras vias da cidade!” No X, antigo Twitter, alguns cariocas criticaram a medida, afirmando principalmente que a diminuição pode piorar os congestionamentos na cidade. “O trânsito no RJ tem milhares de outros problemas que poderiam ser resolvidos, mas tu quer mexer onde funciona”, escreveu um seguidor. “Se o trânsito da orla já é péssimo a 70, imagina se essa velocidade cair com radares, etc”, escreveu outro. Na verdade, a readequação dos limites de velocidade é uma demanda antiga de especialistas em mobilidade, cicloativistas e médicos que atuam com vítimas da violência do trânsito no Brasil. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade máxima permitida deve ser igual ou inferior a 50 km/h em vias urbanas. Segundo o DataSus, que compila dados do Sistema Único de Saúde, em 2021 morreram 33.813 mil pessoas em acidentes de trânsito, um crescimento de 3,5% em relação ao ano anterior. Segundo relatório da OMS, existem dois tipos de velocidade no trânsito: a excessiva e a inadequada. A velocidade excessiva ocorre quando o motorista está acima do limite permitido para a via. E infringir esse limite é considerado um “mau comportamento” no trânsito, passível de multa e penalidades mais severas, como perda da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). “A inadequada é quando o motorista obedece a velocidade, mas o próprio limite estipulado não é adequado para o contexto daquela via”, explica Dante Rosado, coordenador do programa de segurança viária da Vital Strategies (ONG internacional que promove a saúde pública). Para Rosado, 70 km/h na orla do Rio de Janeiro é um limite “que coloca em risco motoristas, pedestres e ciclistas que trafegam por essas movimentadas artérias da cidade.” “A orla do Rio de Janeiro não é um exemplo de boa prática. É um absurdo que vias com grande interação tenham um limite de 70 km. A velocidade é o maior fator de risco. Ou seja, quanto maior a velocidade, maior a chance de se envolver em um sinistro. E também maior a chance de danos e lesões graves”, diz. Nos últimos anos, especialistas em tráfego passaram a utilizar com mais frequência o termo “sinistro” para se referir a acidentes envolvendo veículos. “A palavra acidente dá a entender que é algo que não poderia ter sido evitado, que tinha de acontecer. Na verdade, a grande maioria poderia ser evitada, porque sempre envolve o erro humano: velocidade excessiva, abuso do álcool, atravessar fora da faixa de pedestre etc”, explica o médico Antonio Meira, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). Tanto Meira como Dante Rosado citam uma escala de velocidade, produzida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e utilizada internacionalmente, que é determinante em casos de atropelamento. Em um atropelamento a 60 km/h, a chance de sobrevivência da vítima é de apenas 2%, aponta o estudo. “Acima disso, é praticamente um milagre a pessoa sobreviver”, diz Meira. Se o carro estiver a 50 km/h, a chance de sobrevivência aumenta para 15%. A 30 km/h, a vítima tem 90% de chance de sobreviver, segundo a publicação. Dante Rosado explica outro fator: quando o motorista está a 70 km/h, o mesmo limite da via onde Kayky Brito foi atropelado, sua percepção da pista e tempo de reação é muito menor do que se estivesse em uma velocidade mais baixa. “Quanto maior a velocidade, menor a visão periférica do motorista sobre o que está acontecendo na via. E, mesmo que ele perceba, o tempo que ele tem para frear é muito menor. Quando se está a 50 km, é possível reduzir para 30 km rapidamente. Mas quando se está a 70 km;h, há pouco tempo para frear e chegar a 50 km;h, por exemplo, o que aumenta a chance de morte da vítima”, explica Rosado. “É uma questão óbvia: quanto maior a velocidade, maiores serão o impacto, o dano e as lesões”, diz. Diminuir os limites de velocidade é uma medida recomendada pela OMS e é considerada uma tendência mundial. No Brasil, há uma série de exemplos de cidades que conseguiram reduzir o número de mortes no trânsito com a diminuição da velocidade máxima permitida, embora o país como um todo ainda esteja em um patamar muito alto de acidentes com vítimas. A partir de 2010, a cidade de São Paulo passou a gradativamente diminuir a velocidade em muitas vias do município. Em casos de ruas com muito movimento de pedestres, o limite caiu para 30 km/h. Em vias arteriais, como a avenida Radial Leste, o limite caiu para 50 km/h. Segundo dados da prefeitura, 1.357 pessoas morreram no trânsito da cidade em 2010. Onze anos depois, em 2021, esse número diminuiu para 720, uma queda de 46%. Porém, há alguns anos, a redução da velocidade virou uma grande polêmica em São Paulo e influenciou uma eleição para prefeito. Em 2015, a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT) reduziu os limites do principal corredor expresso da metrópole, formado pelas marginais Pinheiros e Tietê. A velocidade passou de 90 km/h para 70 km/h nas pistas expressas, de 70 km/h para 60 km/h nas centrais; e de 60 km/h para 50 km/h nas pistas locais. A medida, que chegou a zerar mortes no trânsito nas marginais, foi duramente criticada por parte da população e setores da imprensa, que argumentaram que os congestionamentos iriam piorar, algo que nunca ficou provado. No ano seguinte, o principal adversário de Haddad na eleição para prefeito, o tucano João Doria, utilizou a redução para fazer campanha contra a gestão petista. Doria usou o slogan “Acelera São Paulo” em referência à diminuição, e prometeu reverter a medida se ganhasse a eleição. O tucano venceu no primeiro turno e cumpriu a promessa nos primeiros dias de mandato. Depois da velocidade voltar ao que era antes, o número de mortes nas vias também voltou a crescer. Já Fortaleza também é apontada como exemplo positivo da redução da velocidade, processo que vem acontecendo gradativamente nos últimos anos. Segundo a prefeitura, a quantidade de acidente com mortes diminuiu 70% nas vias onde o limite foi alterado. Um estudo da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) de Fortaleza, divulgado pelo jornal O Povo, apontou que a diminuição da velocidade máxima alterou em apenas 6 segundos o tempo médio de deslocamento dos veículos da cidade. Porém, um dos problemas apontados por especialistas e ativistas é que o próprio Código Brasileiro de Trânsito prevê que, para algumas vias e avenidas dentro de cidades, o limite pode ser superior a 60 km/h. Há alguns projetos de lei no Congresso para mudar essa regra, mas eles ainda tramitam sem previsão de votação. “O código fala que o poder público tem autonomia para determinar os limites. Então, muitos prefeitos preferem não mexer nisso. Há uma cultura da velocidade no Brasil, que é promovida pela indústria automotiva. Perceba como nos comerciais de carro, os veículos sempre aparecem em alta velocidade trafegando por vias urbanas ou estradas totalmente livres”, diz Rosado. Para Ana Carboni, da União de Ciclistas do Brasil (UCB), a mudança citada por Eduardo Paes deve ser comemorada. “É impressionante o número de pessoas que transitam pelas avenidas da orla. Essa mudança é urgente. A velocidade dos carros em uma cidade precisa ser compatível com a vida”, diz Carboni, que é de Niterói, mas por anos trabalhou e frequentou a orla do Rio de Janeiro. Segundo ela, não basta apenas mudar a velocidade, mas também “conscientizar as pessoas de que 33 mil mortes no trânsito todos os anos é algo inaceitável, e que diminuindo a velocidade elas não estão perdendo fluidez, e sim ganhando mais segurança para todos”. Para o médico Antonio Meira, da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), campanhas educativas, fiscalização e intervenções nas vias, como sinalização e iluminação, também são importantes. “Não é só diminuir a velocidade, e sim fazer a gestão da velocidade. Entender que ciclistas e pedestres são os mais vulneráveis no trânsito, mas que a segurança também é para os motoristas”, explica.
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd14g2nj912o
brasil
Os juízes que estão se demitindo para virar influenciadores, ter liberdade e ganhar mais dinheiro
A remuneração bem acima da média nacional e a estabilidade no emprego fazem com que muitos sonhem com a carreira de juiz de Direito no Brasil. Os concursos são disputados e exigem muitas vezes anos de dedicação para uma aprovação. Pode parecer improvável, então, que alguém abra mão da magistratura, mas é o que têm feito alguns juízes graças a novas oportunidades criadas pelas redes sociais. Há vários relatos na internet de quem decidiu deixar os tribunais para investir em seus perfis nas redes e se dedicar exclusivamente à carreira de influenciador. Também oferecem desde serviços de advocacia, mentorias para concursos a atividades que não têm a ver com o mundo jurídico. Fim do Matérias recomendadas Poucos acumulam tanta influência nas redes sociais quanto o ex-juiz Samer Agi, de 35 anos, que se demitiu do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em 2022. Ele tem hoje 2 milhões de seguidores no Instagram e 111 mil assinantes em seu canal no YouTube, onde fala de vários assuntos, de relacionamentos a finanças pessoais. Agi conta à BBC News Brasil que decidiu trocar de carreira porque queria mais "liberdade, tempo e possibilidade de crescimento". Além disso, com as redes sociais, "as ideias de uma pessoa são compartilhadas por milhares ou milhões de pessoas que se identificam com sua visão de mundo", diz ele. "Seu conhecimento pode ser disseminado não apenas a uma classe de 50 ou 100 pessoas, mas a um auditório online de 10 ou 20 mil." A popularização e multiplicação das redes criou essa chance para quem domina o saber jurídico de tentar uma nova profissão e até mesmo com a perspectiva de ganhar mais. "Sem as redes sociais, os juízes que saíram da magistratura nunca teriam feito isso", diz Agi. "A remuneração fora da magistratura tem que ser superior. Caso contrário, o sujeito continuaria juiz." Erik Navarro Wolkart foi juiz federal por 19 anos. Após pedir exoneração, ele fez uma transmissão ao vivo em meados de julho em que explicou por que deixou os tribunais. Ele contou que sua função limitava o que ele podia falar em público e, além disso, queria dar vazão à sua "postura empreendedora". O ex-juiz de 46 anos oferece para seus quase 90 mil seguidores no Instagram um curso em que ele promete ensinar como "acelerar a tramitação dos processos, multiplicar a taxa de efetividade dos pedidos e se destacar na advocacia contenciosa". Esse é um caminho comum para os ex-juízes, que oferecem cursos preparatórios para concursos para milhares de seguidores nas redes. Não falta demanda por esse tipo de serviço. O Brasil tem o maior número de advogados por habitante do mundo. Há um profissional da advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, há um para cada 253. Todos os anos, cerca de 120 mil pessoas fazem a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para exercer a advocacia. Jaylton Lopes Júnior, ex- juiz do TJDFT, vende aulas de Direito sucessório para seus 150 mil seguidores. Ele pediu demissão no início de agosto, depois de oito anos no cargo, para se dedicar à "docência, bem como à consultoria jurídica e à advocacia". Também em agosto, José André Neto anunciou para os seus 450 mil seguidores no Instagram que estava deixando o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) após 21 anos para trabalhar exclusivamente como professor, "sem amarras e sem restrição". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quem trabalha como juiz tem algumas restrições para tentar ganhar a vida como influenciador paralelamente. Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu magistrados de oferecerem serviços de coach e similares, voltados à preparação de candidatos para concursos públicos. O juiz Senivaldo dos Reis Júnior chegou a ser exonerado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por ter trabalhado como coach em 2020. À época, Reis Júnior estava no chamado estágio probatório, o que não oferece todas as garantias comuns a alguém já consolidado no cargo. Após a decisão, ele acionou o CNJ alegando que a pena de demissão era "irrazoável e desproporcional". Dois anos depois, o plenário do CNJ decidiu reintegrá-lo. O relator do caso disse que as atividades do juiz na internet, como vendas de material e apostilas, extrapolavam as funções da docência. Mas ele considerou que a demissão foi uma punição excessiva. O TJ-SP recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que manteve a decisão do CNJ. Reis Júnior foi procurado pela BBC News Brasil, mas não respondeu. Neste ano, a Corregedoria Nacional de Justiça, instância vinculada ao CNJ, determinou a suspensão dos perfis das redes sociais do juiz Navarro Wolkart, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). A Corregedoria disse que estava avaliando sua suposta atuação como coach nas redes. Seguindo o movimento do mercado, o juiz pediu exoneração do cargo. Na ocasião, ele afirmou que não seria coach ou mentor, e disse em seu Instagram que não tratava de casos pendentes. "Meu método aborda a prática processual pela ótica das neurociências", apontou. Wolkart não respondeu à tentativa de contato da BBC News Brasil. Os pedidos de exoneração de juízes já causam preocupação. Questionada sobre os pedidos de exoneração dos ex-juízes que apostam na carreira de influencers, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirmou à BBC News Brasil que há um processo de "perda de quadros" que foi "agravado nos últimos anos pela desvalorização da carreira". "Ao perceberem a possibilidade de maiores ganhos no setor privado, muitos profissionais deixam o cargo público com o intuito de obter melhores condições de vida para si e suas famílias – uma escolha difícil, que, infelizmente, tem sido muito frequente", disse a AMB em nota. "Se não houver uma reestruturação que promova a valorização por tempo na magistratura é provável que o cenário de evasão se acentue." De acordo com a instituição, há ainda "um grave quadro de insegurança" no meio. "Metade dos juízes no Brasil vive ou já viveu situação de ameaça à vida ou à integridade física, com abalos profundos na saúde do magistrado e de sua família." Juliana Oki, de 37 anos, destoa nas redes sociais da maioria dos outros juízes que pediram exoneração recentemente. Após nove anos no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5), ela decidiu deixar a magistratura para ser psicoterapeuta em tempo integral. Oki decidiu fazer isso mesmo sem ter muitos seguidores. Quase um mês depois, o número quase quadruplicou. "Criei o meu perfil no Instagram, como forma de compartilhar os conhecimentos que estava adquirindo na minha jornada de formação", disse à BBC News Brasil. "Me dei conta de que, embora fosse uma juíza comprometida e produtiva, eu não era feliz. Meu fazer estava descompassado com meu sentir." Ela diz que a maior dificuldade foi bancar a decisão de que faria "algo que soa reprovável a um primeiro olhar". "Nossa profissão é, na nossa sociedade, um aspecto identitário. Então, uma exoneração, ainda que planejada e desejada, é uma ruptura com uma parte de si –um luto, com perdas simbólicas e concretas." Oki vê com alguma naturalidade que profissionais busquem mais flexibilidade nas carreiras atualmente. Ela diz que ser juiz continua sendo valorizado socialmente, mas acredita que cada vez mais outros valores são levados em conta nas escolhas profissionais – como realização pessoal e estilo de vida que se deseja ter. "O ser humano tem potencias múltiplos. Está tudo bem redefinir objetivos, recalcular rotas."
2023-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3zyyvqpgxo
brasil
Eleição na Argentina: por que Javier Milei preocupa governo Lula
Quando perguntado a respeito da integração da Argentina ao Brics e sobre que relação uma eventual gestão sua teria com o atual governo socialista espanhol, Javier Milei, o candidato radical que lidera a corrida para as eleições presidenciais argentinas, respondeu com uma de suas frases conhecidas: “Os socialistas não são defensores da liberdade”. E se calou quando as repórteres brasileiras insistiram para que ele respondesse se fazia referência ao Brasil ou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi na semana passada, no mesmo dia em que o economista, que se autodefine como libertário, já tinha usado, diante de empresários e diplomatas estrangeiros, outra de suas formulações públicas típicas - que “não fará acordo com comunistas” e que sua política exterior será com Estados Unidos e Israel, mas que o empresariado é “livre” para comercializar com quem quiser. Logo após as eleições primárias argentinas o apontarem como favorito, em 13 de agosto, Milei, da Liberdade Avança (LLA), repetiu que o Mercosul “deve ser eliminado” e que, se eleito, não permitirá que a Argentina seja incorporada ao Brics ampliado – o país acaba de ser convidado ao grupo formado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul “graças ao apoio decisivo de Lula”, como disse o chanceler argentino Santiago Cafiero. Se não surpreendem, o conjunto das declarações do presidenciável argentino são avaliadas como “preocupantes” e como merecedoras de “atenção” por setores do governo brasileiro, em Brasília, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil em condição de anonimato. Empresários e analistas também ouvidos pela reportagem coincidiram que Milei tem potencial para se tornar uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso eleito, ainda que todos avaliem que uma ruptura total entre Brasil e Argentina é pouco provável, dada a enorme interdependência entre os vizinhos. Fim do Matérias recomendadas Na Casa Rosada, se cumprir o que tem falado, o candidato pode turbinar o mal-estar já instalado no Mercosul, em meio a uma longa e complicada renegociação do acordo comercial do bloco com a União Europeia. Pode ainda frustrar os planos do governo Lula de ter a Argentina como uma aliada do Brasil no Brics ampliado, já que os dois países seriam os únicos da América Latina na nova configuração do grupo. “Tudo é meio imprevisto, em caso de vitória dele”, disse uma alta fonte do governo em Brasília. “Ele é o que gera o maior grau de incerteza”, disse outro funcionário da administração Lula na capital brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Procurado pela reportagem, o ex-chanceler e assessor especial da Presidência, Celso Amorim, respondeu por escrito que a relação entre os dois países é um "patrimônio". “Obviamente não podemos comentar assuntos internos da Argentina, mas a preservação do Mercosul é uma preocupação legítima. É um patrimônio de mais de trinta anos e é parte do patrimônio de paz e prosperidade que criamos e que queremos fortalecer", disse Amorim. O influente assessor diplomático direto de Lula também comentou a questão do Brics. “Da mesma forma, saudamos o ingresso da Argentina nos Brics, um reconhecimento da importância geopolítica dessa grande nação, que fortalece o poder de negociação de nossa região como um todo”, escreveu Amorim. Três fontes diplomáticas de Brasília complementaram as declarações do ex-chanceler, convergindo ao dizer que hoje já é feita “uma ginástica” para que o Uruguai não deixe o Mercosul. “Imagine se a Argentina também quiser sair, será complicado”, disse uma delas. O Brasil exerce a presidência rotativa do bloco sul-americano em meio a tensões abertas com o governo uruguaio, de centro-direita. O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou defende abertamente a flexibilização do Mercosul e pressiona para ser autorizado a fazer acordos comerciais isolados com países como a China. Além da animosidade com Brics e Mercosul, Milei também retiraria fôlego de iniciativas que o governo Lula tenta retomar, como a Unasul, com os países da América do Sul, e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em entrevista recente à agência de notícias Bloomberg, perguntado se poderia se aproximar do presidente Lula, Milei respondeu que não. “Na verdade, eu acho que é preciso eliminar o Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica aos argentinos de bem. É um comércio administrado por Estados para favorecer a empresários que tiram vantagem (...). Onde o Estado se mete faz estragos”, disse Milei. Na mesma entrevista, Milei disse “que não fazemos pacto com comunistas” (em referência à China), mas que o país asiático pode ser sócio do setor privado. “Eu não promoveria a relação nem com China, nem com Cuba, nem com Venezuela, nem com Nicarágua e nem com a Coreia do Norte”. O Brasil e a China são os principais sócios comerciais da Argentina, enquanto Pequim é também um investidor direto de peso no país. Nos últimos dias, no entanto, enquanto o economista “mantém seu discurso radical”, como disse um empresário com negócios na Argentina ouvido pela reportagem, seus assessores tentam amenizar suas palavras à medida que aumentam suas chances de chegar à Casa Rosada. A economista Diana Mondino, apontada como provável ministra das Relações Exteriores em um eventual governo Milei, disse a interlocutores brasileiros que não se pretende sair do Mercosul, mas que ele seja reformulado e que a relação com o Brasil seria pragmática e entre as prioridades da suposta administração. “Na hora que ele sentar lá, na cadeira presidencial, caso seja eleito, verá que não poderá se desvencilhar do Brasil. O Brasil é o principal parceiro da Argentina. Ele não pode brigar com o Brasil, como tem sugerido”, disse um outro assessor de Lula, sob a condição do anonimato. Seja como for, o professor de Relações Internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, Juan Gabriel Tokatlian, disse à reportagem que caso Milei seja eleito e não confirme a adesão da Argentina ao Brics será “uma bofetada no presidente Lula”. “E é preciso lembrar que o Brasil foi, é e será o sócio estratégico da Argentina”, disse Tokatlian. Para ele, pelo menos num primeiro momento, os dois países poderiam viver uma reedição do que foi a relação “azeda” entre Bolsonaro e Alberto Fernández - mas na mão inversa e no campo ideológico e das declarações. As referências de Milei a ‘socialistas’ e ‘comunistas’ e ao suposto giro para privilegiar Estados Unidos e Israel na política externa levaram analistas argentinos a recordarem a estratégia do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Milei busca construir uma semelhança com Bolsonaro. Não que seja Bolsonaro, mas ele tenta construir essa semelhança”, disse o analista político argentino Raúl Timerman, do Grupo de Opinião Pública (GOP). Timerman e Tokatlian, da Universidade Torcuarto Di Tella, de Buenos Aires, observaram que é preciso “ficar atento também” ao papel que os setores de segurança pública, inteligência e Defesa (Forças Armadas) teriam em um eventual governo Milei – outra área em que ele poderia buscar ter associação com Bolsonaro, já que sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel, não repudia os militares que atuaram na ditadura, questiona as políticas de direitos humanos e condena “os grupos guerrilheiros armados” naquele período. “Pela primeira vez temos uma pessoa na chapa presidencial que é tolerante com as ditaduras e que tem uma visão ideologizada sobre os direitos humanos. A vice-presidente (de Milei) quer reforçar o papel das Forças Armadas no combate ao narcotráfico. É preciso estar atento, acompanhar isso”, disse Tokatlian. Uma fonte do governo Lula em Brasília aponta diferenças “abismais” entre o contexto brasileiro e o argentino e entre Bolsonaro e Milei. As diferenças não descartam, porém, que uma vitória de Milei seja um terremoto para o sistema político argentino. Daí que não só o impacto externo como também as consequências das medidas internas de um futuro governo Milei estão no horizonte de preocupação da administração brasileira, diz uma fonte. Milei, à frente de um pequeno e novo movimento, disputará o primeiro turno da eleição presidencial em 22 de outubro com o ministro da Economia e candidato Sergio Massa, da União pela Pátria (peronismo/kircherismo), de vertente de centro-esquerda, e com a ex-ministra de Segurança do governo Macri, Patricia Bullrich, da coalizão Juntos pela Mudança (Juntos por el Cambio), tradicional oposição ao peronismo e que integrou o governo Mauricio Macri. Outros candidatos estão na corrida à Casa Rosada, mas Milei, Bullrich e Massa são os que teriam mais chances de ser eleitos, de acordo com os resultados oficiais das primárias. As pesquisas mais recentes, realizadas após as primárias, apontam o crescimento de Milei, com cerca de 32% a 35% das intenções de voto, Massa com cerca de 25% a 26%, e Bullrich com 20,9% e 23%, nos levantamentos das consultorias políticas Analogías e da Opinaia. No entanto, como os levantamentos não previram a possibilidade de Milei como favorito nas primárias, existe cautela em torno das previsões. Os resultados oficiais das primárias deram Milei à frente, mas com pouca diferença para Massa e Bullrich. Nesta reta final de campanha, o governo Lula tem feito acenos ao governismo de Massa e rebate os questionamentos sobre suposta intervenção na política interna do vizinho. Na segunda-feira (28/8), em Brasília, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, receberam Massa para falar de acordos comerciais e investimentos brasileiros. Ato seguido, a imprensa argentina deu destaque a declarações atribuídas ao presidente brasileiro sobre Milei. “Está mais louquinho que Bolsonaro”, teria dito Lula, segundo o jornal Página 12, de Buenos Aires, citando assessores de Massa que o acompanharam na reunião com o presidente brasileiro. As supostas declarações de Lula ganharam destaque também nas emissoras de televisão local, como na América TV, por exemplo, e a foto de Massa com o presidente brasileiro ilustrou o comunicado à imprensa sobre a reunião distribuído pelo Ministério da Economia argentino. Uma fonte do governo brasileiro evitou confirmar as declarações de Lula. “Observe que o presidente Lula não fez declarações públicas (como as atribuídas a ele na Argentina). Ele pode ter suas preferências, mas o governo brasileiro terá relação com qualquer um dos candidatos que chegue a ser eleito”, disse o alto funcionário. Além da política externa, as possíveis medidas no âmbito interno em um eventual governo Milei também têm sido acompanhadas não só pela gestão Lula como por governos e políticos da região, além de empresários e analistas. Entre os planos já ventilados por Milei estão o fim do Banco Central (que seria “dinamitado”), a eliminação de programas sociais, mudanças radicais na legislação trabalhista e nas áreas de saúde e de educação públicas, que deixariam de ser custeadas pelo Estado. O economista propõe um ajuste ainda maior do que o que é hoje exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) à Argentina e nega que exista uma crise climática. “Não é que Milei seja de direita, ele é louco”, disse o ex-presidente José ‘Pepe’ Mujica, um referente para a esquerda da região, à imprensa uruguaia. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, também de esquerda, disse à imprensa colombiana que as declarações de Milei eram similares às de Hitler. Milei reagiu dizendo que “os socialistas não me surpreendem e são parte da decadência”. Os sinais de alerta não vem só à esquerda. A consultoria de risco global Eurasia Group escreveu aos clientes no mês passado: "Milei não tem um plano claro para atingir seus objetivos, e sua provável futura presidência vai ser altamente disruptiva". A Argentina é um país com ampla e forte estrutura sindical e de movimentos sociais e a preocupação, em relação aos efeitos internos, é sobre qual seria a reação caso os chamados direitos adquiridos sejam afetados pelo próximo governo. Perguntados se os planos internos de Milei geram inquietação, fontes do governo brasileiro disseram, sem entrar em detalhes: “É uma decisão dos argentinos, mas as declarações dele são preocupantes”. Um diretor executivo de uma empresa com negócios no Brasil e na Argentina e que está baseado em Buenos Aires disse que no meio empresarial existe preocupação sobre as “medidas radicais” de Milei. “Nós entendemos que, com a crise atual, o que as pessoas querem é esse discurso radical. E, em geral, os empresários ficam satisfeitos quando um político diz que a presença do Estado será mínima ou inexistente”, disse o empresário. “Mas Milei nos gera preocupação. O que ele planeja fazer, como a reforma trabalhista, precisa de apoio do Congresso. Hoje ele não tem esse apoio. E como ele faria diante da resistência dos sindicatos e movimentos sociais? E nosso temor é que as medidas econômicas que ele tente aplicar provoquem ainda mais inflação, ou hiperinflação”, seguiu. Segundo dados oficiais, nos últimos doze meses, entre julho do ano passado e julho deste ano, a inflação argentina foi de 113,4%. No âmbito empresarial, contou uma fonte da Bolsa de Comercio de Buenos Aires, a preferência seria por Bullrich, “que é pró-mercado, mas não radical como Milei”. Após as eleições primárias, a situação econômica ficou ainda mais turbulenta. O governo desvalorizou o peso em quase 20%, o dólar paralelo disparou e a expectativa é que a inflação de agosto possa chegar aos dois dígitos, de acordo com economistas. “Se Milei colocar em prática o que diz, como a reforma trabalhista e a privatização da saúde e da educação, haverá conflitos. E devemos notar que ele não contaria com votos do Congresso Nacional”, disse o analista Timerman. Neste caso, a preocupação, segue o analista, também é sobre como o setor de segurança poderia reagir diante dos possíveis protestos e manifestações – que costumam fazer parte da Argentina.
2023-09-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0j3llg1wlzo
brasil
Caso das joias: decisão sobre competência do STF pode anular provas contra Bolsonaro?
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros convocados decidiram ficar em silêncio durante seu depoimento à Polícia Federal na última quinta-feira (31/8), no âmbito da investigação da suposta venda ilegal de joias presenteadas à Presidência da República em missões oficiais. Foram ouvidas, ao todo, oito pessoas: o ex-presidente; a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid; o pai dele, o general da reserva Mauro César Lourena Cid; dois assessores do ex-presidente: Marcelo Câmara e Osmar Crivellati; Frederick Wassef, que declara ser advogado do ex-presidente; e Fabio Wajngarten, ex-chefe da Comunicação do governo. Além de Bolsonaro, Michelle, Wajngarten e Marcelo Câmara também não se pronunciaram durante o depoimento. A defesa do ex-presidente alegou que o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem competência para analisar o caso, que deveria ser transferido à Justiça Federal de Guarulhos, onde o primeiro kit de joias foi apreendido. Segundo os advogados, os peticionários não prestarão depoimento ou fornecerão declarações adicionais até que estejam diante de "um juiz natural competente". Fim do Matérias recomendadas A figura do "juiz natural" se refere ao magistrado da instância e da região na qual a defesa acredita que o caso deveria tramitar. As alegações apresentadas pela defesa do ex-presidente giram em torno da tese de que o Supremo não tem competência para conduzir um caso envolvendo uma autoridade que perdeu a prerrogativa de foro privilegiado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Bolsonaro perdeu seu foro privilegiado quando deixou a Presidência. Com isso, os processos criminais contra ele deveriam passar para a primeira instância judicial. No entanto, o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, alega que há conexão com outras investigações que tramitam na Corte e, por isso, o caso caberia ao STF. Em entrevista ao portal Metrópoles, o procurador-geral da República, Augusto Aras, avaliou que o Supremo deverá 'em algum momento' decidir sobre o foro do ex-presidente e a competência da própria Corte para julgar o caso das joias. O PGR sustentou que uma eventual decisão do STF em favor de lavar o processo para a primeira instância poderia, inclusive, resultar em anulação de provas. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a questão deve ser discutida nos próximos meses pelo plenário do STF. A ideia é que um dos integrantes da Corte peça uma questão de ordem em um julgamento que tenha a questão do foro como um ponto de divergência. A BBC News Brasil ouviu especialistas em Direito Penal para entender se os argumentos de ambas as partes têm validade, além de como essa discussão poderia impactar o caso e as provas já coletadas. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu reduzir o alcance do foro privilegiado de deputados e senadores somente para aqueles processos sobre crimes ocorridos durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo. O entendimento também se estendeu a outras autoridades, como ministros e o próprio presidente da República. Dessa forma, entendeu-se que só ficariam na Corte as ações criminais que envolvessem crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao cargo. Por esse entendimento, Bolsonaro não possui mais foro e, segundo alguns especialistas, por isso seu caso deveria ser remetido à primeira instância. Entretanto, não há um consenso entre os juristas da área sobre a questão. O próprio argumento dos advogados do ex-presidente sobre a competência do STF já foi apresentado à Justiça e refutado pela primeira instância. Moraes afirma que a Polícia Federal suspeita de uma atuação criminosa que envolveria não só o uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, como ataques virtuais a opositores, ao Poder Judiciário e ao processo eleitoral, tentativa de golpe de Estado e boicote à vacina durante a pandemia de covid-19. Tudo isso conectaria o inquérito das joias a outros casos já comandados pelo ministro no STF, como o das milícias digitais. Para Edson Knippel, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito do Mackenzie, o caso está sendo conduzido de maneira correta pelo Supremo. "Esse fato, relativo às joias, tem relação com outros fatos que são de apuração do STF. Se fosse um fato isolado teríamos possibilidade de pensar no deslocamento de competência, mas no contexto atual não", diz. De acordo com o especialista, há principalmente uma conexão entre os agentes envolvidos no caso e outros inquéritos. "Mas há também uma questão diplomática envolvida e autoridades estrangeiras." Já Davi Tangerino, professor de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), não vê conexões suficientes que justifiquem a permanência do caso no Supremo. "Esse caso não deveria ser conduzido pelo Supremo", afirmou à BBC News Brasil. "Não tem nenhuma autoridade com prerrogativa de foro no Supremo e, pelo menos por enquanto, não há uma conexão direta com o 8 de janeiro, que é o que justifica os inquéritos originários". Segundo o advogado, o simples fato dos "personagens" envolvidos em diferentes casos julgados pelo ministro Alexandre de Moraes serem os mesmos não é motivo suficiente para afirmar a conexão. "Existe conexão quando os elementos do crime em si estão conectados." Ambos os especialistas concordam, porém, que é improvável que o Supremo Federal decida em favor do encaminhamento do caso à primeira instância. Mas na eventualidade do STF decidir que o caso é, de fato, competência da primeira instância, os especialistas afirmam que há a possibilidade de anulação das provas. As evidências afetadas seriam aquelas produzidas a partir de decisão judicial, como, por exemplo, as que foram obtidas após autorização para quebra de sigilo. "Na hipótese de baixar para a primeira instância, caberá ao novo juiz validar ou não o que já foi produzido", diz Davi Tangerino. "Via de regra, as provas que não dependem de decisão judicial não ficam contaminadas porque mudou o foro." Ainda segundo o advogado, nessas circunstâncias o caso voltaria à Justiça Federal de Guarulhos, onde as joias sauditas recebidas pela comitiva do ex-presidente foram retidas no aeroporto. Edson Knippel, porém, lembra que a Justiça de Guarulhos já enviou a investigação ao STF. A transferência foi realizada a pedido do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo no início de agosto. "Ou seja, Guarulhos já declinou da competência", diz. De acordo com a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de "desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior". A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos com essas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, supostamente visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores. Entretanto, a PF ainda está na fase de investigações, sem notícias de indiciamentos no caso. Procurada pela reportagem com pedidos de informações, a polícia afirmou que "não se manifesta sobre investigações em andamento, nem sobre eventuais depoimentos". No centro da disputa está o entendimento de qual deveria ser o destino dos presentes dados por autoridades estrangeiras. Por lei, objetos recebidos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais. Uma exceção são itens considerados "personalíssimos", como roupas, perfumes e alimentos. A defesa de Bolsonaro tem sustentado que os presentes em questão eram, sim, personalíssimos. Enquanto isso, em março, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, se pronunciou sobre o caso, contrariando a versão da defesa. "De acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário." A BBC News Brasil pediu posicionamento, mas não teve retorno da defesa de Jair Bolsonaro e de Michelle Bolsonaro; o escritório que defende Mauro Cesar Barbosa Cid e Mauro Cesar Lourena Cid afirmou que não iria se posicionar. A reportagem não conseguiu contato com Frederick Wassef e Fabio Wajngarten.
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ql9wyxy5po
brasil
Quem é o brasileiro condenado à prisão perpétua que fugiu de presídio nos EUA
Uma intensa caçada está em andamento na Pensilvânia em busca de um detento que escapou apenas uma semana depois de ser condenado à prisão perpétua por assassinato. O brasileiro Danilo Cavalcante, de 34 anos, conseguiu escapar da Prisão do Condado de Chester, em West Chester, na manhã de quinta-feira (31/08). Uma semana atrás, ele havia sido condenado à prisão perpétua por matar sua ex-namorada, a maranhense Débora Evangelista Brandão, com 38 facadas. O crime ocorreu na cidade de Phoenixville, em abril de 2021. A vítima tinha 34 anos e foi assassinada na frente dos dois filhos pequenos, que tinham quatro e sete anos na época. Segundo as investigações, Danilo não aceitava o fim do relacionamento e, desde 2020, ameaçava a vítima. Ele foi preso menos de duas horas depois do assassinato. Fim do Matérias recomendadas O nome do brasileiro é divulgado como "Danelo" nos comunicados e posts nas redes sociais da polícia americana. Segundo a polícia americana, Cavalcante também é procurado por assassinato no Brasil. Informações do jornal O Globo apontam que o homem tem envolvimento em um assassinato ocorrido em 2017 no Tocantins. Ele é réu no caso do homicídio em que Valter Júnior Moreira dos Reis foi morto a tiros em uma praça em Figueirópolis. Em uma coletiva de imprensa na quinta-feira, o diretor interino da prisão, Howard Holland, não deu detalhes sobre como ocorreu a fuga, dizendo apenas que uma investigação está em curso. O brasileiro foi visto pela última vez caminhando ao longo de uma estrada no município de Pocopson, nas proximidades, cerca de uma hora depois de escapar da prisão. Os residentes em um raio de 9 quilômetros ao redor da prisão foram notificados sobre a fuga e alertados para terem extrema cautela. Dezenas de órgãos de segurança agora estão envolvidas na busca e utilizaram cães, drones e helicópteros para ajudar na sua localização. "Se você o avistar, não se aproxime dele", disse a procuradora do Condado de Chester, Deb Ryan. "Pedimos que entre imediatamente em contato com o '911' [número da polícia]. Ele é considerado extremamente perigoso." Em uma postagem no Facebook na semana passada, a Procuradoria do Condado de Chester informou que, antes de ser assassinada, a esposa havia "ameaçado entregá-lo à polícia" depois de descobrir que Cavalcante tinha um mandado de prisão aberto por homicídio no Brasil. As autoridades locais estão oferecendo uma recompensa de US$ 10 mil (aproximadamente R$ 52 mil) por informações que levem à sua prisão - a recompensa é composta por duas "cotas" de US$ 5 mil: uma oferecida pelo Condado e a segunda pelos US Marshalls.
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cer724zp2y0o
brasil
PIB cresce 0,9% no 2º tri: quais são os principais riscos para a economia nos próximos meses?
A economia brasileira perdeu força no segundo trimestre, com um crescimento de 0,9% em relação ao trimestre anterior, após alta de 1,8% de janeiro a março, informou nesta sexta-feira (1°/9) o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Apesar da desaceleração, o resultado surpreendeu positivamente: ficou acima das expectativas dos analistas, que era de uma alta de 0,3% na comparação trimestral. "A gente fica feliz que as projeções do início do ano, feitas pelo Ministério da Fazenda, que era um crescimento superior a 2%, estão sendo superadas, e o crescimento do PIB desse ano deve atingir a marca de 3%", disse Fernando Haddad, ministro da Fazenda. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também comentou o resultado, afirmando que o PIB do segundo trimestre foi uma "boa surpresa". O resultado positivo é explicado, segundo o IBGE, pelo bom desempenho da indústria (0,9%) e dos serviços (0,6%), pelo lado da oferta. Na ponta da demanda, investimentos (0,1%), consumo das famílias (0,9%) e consumo do governo (0,7%) também tiveram desempenho positivo. Fim do Matérias recomendadas A agropecuária, que tinha sido o destaque no trimestre anterior, teve um recuo de 0,9% na comparação com o período imediatamente anterior. O setor tinha registrado uma alta de mais de 20% de janeiro a março, na comparação trimestral, devido à sazonalidade da safra recorde de soja, cuja colheita se dá nos meses iniciais do ano. Na comparação com o segundo trimestre de 2022, a alta do PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços produzidos no país) foi de 3,4%, uma desaceleração em relação ao crescimento interanual de 4% registrado no primeiro trimestre. Após a surpresa positiva de serviços e da atividade industrial, o que esperar da economia brasileira nos próximos meses? Outras notícias negativas no front econômico – como a piora no cenário externo, particularmente na China e EUA; dúvidas sobre a sustentabilidade das contas públicas no Brasil; e a bolsa em queda, com dólar e juros futuros em alta – trazem a dúvida: o melhor momento da economia brasileiro ficou para trás, após um início de ano de boas notícias para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)? Entenda os principais riscos para a economia brasileira à frente e os motivos para otimismo, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil nas vésperas da divulgação do PIB do segundo trimestre. A expectativa do mercado é de uma alta de 2,3% para o PIB brasileiro este ano, desacelerando para avanço de 1,3% em 2024, segundo o boletim Focus do Banco Central divulgado antes do resultado do PIB do segundo trimestre. Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), é um pouco mais pessimista e estima um crescimento de 1,8% para a economia este ano e de 1% para o ano que vem. Para o terceiro e quarto trimestres de 2023, a economista vê o desempenho da atividade estável ou até ligeiramente negativo, nas comparações trimestrais. "Geralmente é assim, o agro contribui positivamente para o PIB no primeiro semestre e o segundo é sempre mais negativo, porque não tem mais a colheita da soja", observa Matos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A contribuição positivo do agro foi excepcional, completamente fora de qualquer projeção [em 2023] e isso acaba criando um problema para 2024, quando o PIB agro deve crescer pouco." Segundo a economista, isso deve acontecer devido ao próprio ciclo agropecuário. Num ano de supersafra como o atual, os produtores acabam vendendo os grãos a preços baixos e a reação natural no ano seguinte é que a área plantada não cresça tanto. Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, observa ainda que os últimos anos viram uma conjunção rara para a agropecuária brasileira, de preço das commodities, câmbio e produção em alta, em meio aos efeitos da pandemia, guerra da Ucrânia e incerteza fiscal no Brasil. Para Vale, é improvável que essa conjunção de fatores se repita à frente. "O câmbio deve se manter estável em torno de R$ 5; para os preços de commodities, [2024] é um ano frágil com a eleição americana, guerra [entre Rússia e Ucrânia] ainda presente e China com dificuldades de crescimento", cita, avaliando que a produção pode ainda ser a surpresa positiva, devido aos efeitos do El Niño no Sul do país, que se beneficia de maior volume de chuvas. O cenário internacional é o elemento de maior risco para o crescimento brasileiro à frente, avaliam os economistas, em meio ao crescimento da incerteza nos dois maiores parceiros comerciais do país: China e Estados Unidos. Juros altos são uma forma de "esfriar" a atividade econômica, ao elevar o custo do crédito para o consumo das famílias e investimento das empresas. Com rendimentos maiores, no entanto, os juros também acabam atraindo capital de outros mercados para os Estados Unidos. "O banco central americano sinalizou que pode ser que não suba mais juros, mas que também não vai baixar. Então o cenário de juros altos lá fora – e não se sabe quanto tempo isso vai durar – é ruim para emergentes em geral", diz Matos. Essa conjunção de fatores – uma China fraca e EUA com juros altos – afeta preços de commodities e os fluxos financeiros para o Brasil, podendo representar um freio para as perspectivas de crescimento. A aprovação do novo arcabouço fiscal, substituindo o antigo teto de gastos, retirou parte da incerteza sobre o equilíbrio das contas públicas nacionais. Segundo a ministra do Orçamento e Planejamento, Simone Tebet, o governo vai precisar de R$ 168 bilhões em receitas extras para cumprir esse objetivo. Mas economistas avaliam que é improvável que o governo cumpra sua meta e que o mais factível é um déficit na faixa de 0,7% a 0,9% do PIB para 2024. Isso forçaria o gasto público a crescer menos no ano seguinte, pela regra do arcabouço, ou obrigaria o governo a rever a regra, abalando sua credibilidade logo nos primeiros anos de vigência da norma. Essa incerteza é um dos fatores que pode inibir o crescimento à frente, dizem os analistas. "O cenário fiscal hoje ainda é o grande risco", diz Vale, da MB Associados. "Com um déficit esperado para esse ano de 1,3%, e para ano que vem de 0,7% [do PIB], começamos a ficar com dificuldade para saber se nos dois últimos anos de mandato, com toda a pressão de gastos tendo em vista a eleição de 2026, o governo vai conseguir entregar resultados robustos, sem a bonança das commodities dos últimos anos, que não vai se repetir nos próximos três anos." Silvia Matos, da FGV, observa que, por enquanto, o mercado está aceitando a perspectiva de um déficit maior do que o previsto pelo governo, mas que esse cenário pode mudar. "Se o governo não entregar superávit, isso faz com que os prêmios de risco [para financiar a dívida pública brasileira] fiquem mais altos e as curvas de juros não cedam como gostaríamos." Caso a percepção de risco fiscal aumente, isso pode afetar a taxa de câmbio e pressionar a inflação, limitando o espaço do Banco Central para reduzir a taxa básica de juros – o que impactaria o crescimento e a geração de empregos. Mas nem tudo é pessimismo nas perspectivas para a economia brasileira à frente. O Bradesco, por exemplo, lançou em agosto um estudo apontando que é possível que o crescimento potencial do país tenha aumentado – se isso for verdade, o PIB pode surpreender novamente no próximo ano, avaliam os economistas do banco. O PIB potencial é a capacidade de crescimento do país, uma variável não observável e que, portanto, precisa ser estimada pelos analistas. Após diversos resultados do PIB acima do esperado nos últimos anos, o banco foi investigar quais as possíveis razões para isso. As análises mostraram que o motivo não estava no comportamento do investimento, nem do consumo, mas sim, possivelmente, no mercado de trabalho. Antes, o Bradesco estimava que a taxa de desemprego de equilíbrio do país (aquela em que o nível de emprego não contribui para acelerar a inflação) era de 9%, mas agora o banco avalia que ela pode, na verdade, ser mais baixa, de 7,5%. Segundo Myriã Bast, economista do Bradesco responsável pelo estudo, isso talvez seja fruto da reforma trabalhista de 2017 e também de mudanças na dinâmica do trabalho no pós-pandemia, algo que vem sendo observado em outros países, e não só no Brasil. "Se tivermos um PIB potencial maior de fato, vamos conseguir no ano que vem uma desaceleração menor [da economia]", diz Bast. "Todo mundo prevê um PIB menor em 2024 do que em 2023, por alguns motivos: o agro que ajudou muito esse ano e não deve ter o mesmo desempenho ano que vem, e também a política de juros, que ficou elevado por muito tempo esse ano e ainda tira crescimento do ano que vem", enumera a economista. "Mas se nosso potencial é maior, especialmente por conta dessa taxa de desemprego de equilíbrio mais baixa, devemos ainda ver uma geração de empregos mais forte no ano que vem." Em julho, a taxa de desemprego do país caiu a 7,9%, menor nível para o período desde 2014, segundo o IBGE. O país tinha então 8,5 milhões de desempregados, 3,8% a menos do que um ano antes. Sergio Vale, da MB Associados, também avalia que o crescimento em 2024 pode surpreender. "No ano que vem, commodities não vão crescer na intensidade deste ano, mas a safra ainda deve ser bem positiva – e sem esquecer que a taxa de juros vai estar caindo, o que é outro sinal favorável", cita o economista.
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg38ql4849vo
brasil
Bolsonaro, Michelle silenciam em depoimentos: entenda o caso das joias que levou PF a convocar casal
Convocados a depor na Polícia Federal (PF) nesta quinta-feira, o ex-presidente Jair Bolsonaro e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro optaram por fazer uso do seu direito de ficar em silêncio, segundo nota da sua defesa conjunta. Além do casal, mais seis pessoas foram convocadas para prestar depoimentos simultâneos em meio às investigações sobre o recebimento e a destinação de joias e presentes dados por autoridades estrangeiras a Bolsonaro durante seu mandato. Também foram convocados o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lourena Cid; o advogado Frederick Wassef, que defendeu a família Bolsonaro em diversos casos; e o advogado Fabio Wajngarten, ex-chefe da comunicação do governo Bolsonaro; e de mais dois assessores do ex-presidente. Os ex-assessores da presidência Marcelo Câmara e Osmar Crivelatti também foram convocados. No entanto, a defesa de Bolsonaro e Michelle disse que ambos iriam fazer uso do seu direito de ficar em silêncio e, a partir de agora, não "prestarão depoimento" nem "fornecerão informações adicionais" até o caso mudar de instância - a defesa afirma que o caso deveria estar na primeira instância, e não no STF sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Fim do Matérias recomendadas Entretanto, o argumento dos advogados de que o STF não teria competência para o caso já havia sido apresentado à Justiça e refutado pela primeira instância. A defesa de Fabio Wajngarten disse que ele ficaria em silêncio e também pediu que o caso fosse tratado nas instâncias inferiores da Justiça. Outro ex-assessor de Bolsonaro, Marcelo Câmara, também optou por não falar no depoimento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Wassef, Mauro Cid e seu pai, o general Lourena, no entanto, prestaram depoimento. Em entrevista à Globo News, o ministro da Justiça Flávio Dino disse que a opção dos investigados pelo silêncio é "um direito" e que cabe à Justiça interpretar essa postura. Dino também afirmou que não tem detalhes sobre a investigação nem faz interferência. "Na medida em que tudo que é feito tem amparo na lei e em autorização judicial, fica evidente que não há nenhum caráter político", afirmou o ministro. "Pelo contrário, faço questão de frisar que a atitude da PF tem sido legal, marcada pela discrição e pela técnica. Agora, pessoas investigadas e contrariadas, claro que se consideram eventualmente injustiçadas. Mas tudo está feito de acordo com provas", disse. Em entrevista ao site Conjur na quarta-feira, o atual Procurador-Geral da República, Augusto Aras, havia dito que o Ministério Público não poderia entrar no "jogo da judicialização da política", mas sem citar diretamente o caso das joias. "A PGR arquivou apurações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro? Sim, arquivou 74. Por quê? Porque eram denúncias vazias, desprovidas de qualquer prova ou conteúdo técnico", disse ele Na quarta, Aras havia citado o caso específico das joias em uma entrevista ao portal Metropoles, dizendo que uma decisão do Supremo sobre o foro privilegiado de Bolsonaro poderia levar os casos em que ele estava envolvido para a 1ª instância e gerar anulação de provas. "Se existir foro, os atos praticados podem ser considerados válidos. Ou o Supremo pode dizer que não existe foro, os atos terem sido praticados, em tese, por um juiz incompetente, e nesse aspecto o STF poderia invalidar todos os atos praticados", disse Aras. Por enquanto não há nenhuma previsão de que haja mudança de instâncias no caso das joias. De acordo com a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de "desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior". A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos com essas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, supostamente visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores. Entretanto, a PF ainda está na fase de investigações, sem notícias de indiciamentos no caso. Procurada pela reportagem com pedidos de informações, a polícia afirmou que "não se manifesta sobre investigações em andamento, nem sobre eventuais depoimentos". No centro da disputa está o entendimento de qual deveria ser o destino dos presentes dados por autoridades estrangeiras. Por lei, objetos recebidos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais. Uma exceção são itens considerados "personalíssimos", como roupas, perfumes e alimentos. A defesa de Bolsonaro tem sustentado que os presentes em questão eram, sim, personalíssimos. Enquanto isso, em março, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, se pronunciou sobre o caso, contrariando a versão da defesa. "De acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário." A BBC News Brasil pediu posicionamento, mas não teve retorno da defesa de Jair Bolsonaro e de Michelle Bolsonaro; o escritório que defende Mauro Cesar Barbosa Cid e Mauro Cesar Lourena Cid afirmou que não iria se posicionar. A reportagem não conseguiu contato com Frederick Wassef e Fabio Wajngarten. Confira abaixo os principais acontecimentos no caso até o momento e saiba mais sobre os presentes e as joias que levaram à investigação. As suspeitas vieram à tona em março, a partir de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo. Entre outras informações, o jornal revelou que a Receita Federal reteve, em 2021, um estojo feminino com joias Chopard que teria sido enviado pelo governo da Arábia Saudita à primeira-dama Michelle Bolsonaro. No mesmo mês, a PF abriu um inquérito para apurar a movimentação das joias. O estojo estava na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, que havia voltado de uma viagem oficial à Arábia Saudita. O assessor não declarou os bens ao chegar ao Brasil. Depois desse caso, a polícia passou a investigar também a movimentação de um kit masculino da Chopard (incluindo caneta, anel, abotoaduras, rosário árabe e relógio); dois relógios (um da marca suíça Rolex, acompanhado por joias, e outro da marca suíça Patek Philippe) e duas esculturas folheadas a ouro (saiba mais sobre os itens a seguir). Em abril, Jair Bolsonaro e Mauro Cesar Barbosa Cid já haviam prestado depoimento à PF sobre as joias. Em 11 de agosto, em outra etapa da investigação, a PF conduziu a operação Lucas 12:2, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A operação atingiu integrantes do núcleo mais próximo de Bolsonaro — Mauro Cesar Barbosa Cid; Mauro Cesar Lourena Cid; Frederick Wassef e Osmar Crivelatti, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente do Exército — um mês depois de o ex-presidente ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ficar inelegível por oito anos. Apesar de ter o nome mencionado pela PF como integrante de uma suposta "organização criminosa", Bolsonaro não foi alvo da Lucas 12:2. Segundo a polícia, os crimes apurados na operação foram lavagem de dinheiro e peculato (desvio de bem público). No último dia 17, o portal G1 e a Folha de S.Paulo divulgaram que o ministro Alexandre de Moraes havia autorizado a quebra do sigilo fiscal e bancário do presidente e sua esposa, Michelle Bolsonaro, a pedido da PF. A polícia não confirma oficialmente a informação. Boa parte das evidências já coletadas pela PF se baseia em conversas por WhatsApp encontradas no celular de Mauro Cesar Barbosa Cid, cujo sigilo havia sido quebrado anteriormente. Os diálogos mostram os esforços dele, do pai e de outros envolvidos em transportar e vender nos Estados Unidos alguns dos itens que teriam sido recebidos pela família Bolsonaro. O tenente Cid, inclusive, realizou um outro depoimento à PF de cerca de 10 horas na segunda-feira (28/8). O conteúdo da conversa com os investigadores está em sigilo. Ele está preso desde maio por causa de uma outra investigação sobre um suposto esquema de fraudes nos cartões de vacinação contra a covid-19. Os presentes recebidos pela família Bolsonaro que se tornaram agora uma fonte de preocupação são os seguintes. Kit masculino da Chopard Em 2021, durante viagem do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, à Arábia Saudita, o governo Bolsonaro recebeu um kit com itens da marca suíça Chopard que incluía: uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio. O kit teria sido trazido pelo próprio ministro na sua bagagem pessoal sem ser declarado e permanecido guardado no cofre do prédio do ministério por mais de um ano. Segundo a investigação da PF, esse kit saiu do Brasil no mesmo voo oficial que levou Bolsonaro, sua família e seus assessores à Flórida, nos Estados Unidos, no dia 30 de dezembro de 2022, o penúltimo dia de seu mandato. Levadas a leilão pela Fortuna Auctions, em Nova York, nos Estados Unidos, com valor inicial de US$ 50 mil (R$ 248 mil, segundo cotação atual), as peças não foram arrematadas "por circunstâncias alheias à vontade dos investigados", disse a PF em relatório. Em março, o TCU determinou que Bolsonaro entregasse esse kit à Caixa Econômica Federal — os bens foram posteriormente "resgatados" na casa de leilão e devolvidos ao governo pela defesa do ex-presidente. Kit feminino da Chopard O conjunto Chopard formado por colar, anel, relógio e brincos de diamantes foi retido pela Receita Federal no aeroporto internacional de Guarulhos e seria um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Os itens foram encontrados na mochila de um assessor do então ministro de Bento Albuquerque que fazia parte da comitiva que viajou à Arábia Saudita. Pela lei, todo bem avaliado em mais de R$ 5 mil (US$ 1.000) deve ser declarado na chegada ao país. Como as joias não foram declaradas, as peças acabaram confiscadas. Reportagens mostraram que, a três dias do fim do mandato de Bolsonaro, seu então ajudante de ordens, Mauro Cid, assinou um ofício endereçado ao então secretário especial da Receita Federal Julio Soares solicitando a liberação das joias. Um emissário da Presidência foi enviado à Receita Federal em Guarulhos munido do ofício e solicitou a devolução das joias. Os fiscais, no entanto, alegaram que o ofício não era o documento adequado para a liberação e mantiveram o pacote retido. Esculturas folheadas a ouro Segundo a PF, Bolsonaro recebeu, em novembro de 2021, uma escultura de barco folheada a ouro em um seminário com empresários árabes e brasileiros no Bahrein. Uma segunda escultura, também folheada a ouro, mas em formato de palmeira, não teve a origem identificada. As duas peças recebidas por Bolsonaro como presentes oficiais também foram levadas no voo oficial para Orlando, antes de o ex-presidente concluir seu mandato. Dali, os itens foram encaminhados para lojas especializadas nos Estados americanos da Flórida, Nova York e Pensilvânia, "para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta". Segundo a PF, mensagens de Mauro Cid indicam que os objetos foram avaliados com valores baixos porque eram apenas "folheadas", e não de ouro maciço. Não há menção na investigação quanto ao valor das peças em reais. Relógio Patek Philippe O relógio da marca suíça Patek Philippe foi recebido possivelmente, segundo a PF, durante a mesma visita oficial de Bolsonaro ao Bahrein em novembro de 2021. Segundo a PF, o relógio Patek Philippe foi extraviado do acervo oficial "diretamente para a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro". A investigação aponta que fotos do item foram enviadas por Mauro Cid para um contato cadastrado em sua agenda como "Pr Bolsonaro Ago/21" em 16/11/21, ainda durante a viagem ao Bahrein. Cid também enviou ao mesmo contato outra foto, do certificado do relógio, indicando que a peça era original de uma loja daquele país, ainda conforme a PF. Kit masculino contendo relógio Rolex Em viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2019, Bolsonaro recebeu um kit com: anel, abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio da marca Rolex, de ouro branco com diamantes. Foi um presente do rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz Al-Saud, ao então presidente. Esse Rolex foi, segundo a PF, negociado junto com o relógio Patek Philippe por US$ 68 mil (R$ 346.983,60 na cotação da época). A PF não estimou o valor dos outros itens em seu relatório. Segundo os investigadores, esse kit também foi transportado no último voo oficial de Bolsonaro como presidente, em dezembro de 2022. Mas acabou desmembrado por seus assessores: o relógio foi vendido a uma empresa especializada, e as joias, entregues para venda em outra. Assim como o kit da Chopard, esse conjunto teve que ser "resgatado" por aliados de Bolsonaro após decisão do TCU, em março, que determinou que eles teriam que ser devolvidos ao Governo Federal. Segundo a PF, essa operação "resgate" dos itens que estavam nos EUA envolveu o advogado Frederick Wassef — mas, até pouco tempo atrás, ele negava ter participado de tratativas envolvendo as joias. Dois dias depois da operação Lucas 12:2, Wassef publicou uma nota afirmando: "Nunca vendi nenhuma joia, ofereci ou tive posse. Nunca participei de nenhuma tratativa, e nem auxiliei nenhuma venda, nem de forma direta ou indireta. Jamais participei ou ajudei de qualquer forma qualquer pessoa a realizar nenhuma negociação ou venda". Entretanto, poucos dias depois, em entrevista coletiva no dia 15, Wassef afirmou que havia, sim, comprado o relógio Rolex com recursos próprios e com o objetivo de devolver o item à União. De acordo com os investigadores, a recompra teria acontecido em uma loja localizada no complexo Seybold Jewelry Building na cidade de Miami, na Flórida. "Primeiramente o relógio Rolex DAY-DATE, vendido para a empresa Precision Watches, foi recuperado no dia 14/03/2023, pelo advogado Frederick Wassef, que retornou com o bem ao Brasil, na data de 29/03/2023. No dia 02/04/2023, Mauro Cid e Frederick Wassef se encontraram na cidade de São Paulo, momento em que a posse do relógio passou para Mauro Cid, que retornou para Brasília/DF na mesma data, entregando o bem para Osmar Crivelatti, assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro", diz a PF em seu relatório. Enquanto isso, Mauro Cid teria recuperado nos EUA o restante das joias que originalmente compunham o kit. Segundo a investigação, Cid chegou ao Brasil em 28 de março com as joias, e Wassef, no dia seguinte, com o Rolex. O kit foi remontado e entregue em uma agência da Caixa Econômica Federal, em Brasília, em 4 de abril de 2023. Não só Wassef, mas também Mauro Cid teve seu nome envolvido em um episódio de recuo nas versões. No dia 17, a revista Veja publicou que o tenente-coronel pretendia confessar que teria negociado a venda das joias a mando do ex-presidente. A intenção de confessar foi revelada à revista pelo advogado de Cid, Cezar Bitencourt. Entretanto, no dia seguinte, Bitencourt afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que a Veja teria errado ao colocar que ele estava falando especificamente das joias. Em seguida, a revista divulgou áudios da entrevista mostrando que o advogado dissera o que foi publicado. Ao canal GloboNews, o advogado acrescentou que Cid não faria uma confissão à Justiça, apenas apresentaria esclarecimentos a investigadores.
2023-08-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pd9exx611o
brasil
Os 'pais de pets' que tratam seus cães como filhos
Há 15 anos, quando se conheceram, a empresária Patrícia Camargo, de 38 anos, e o marido, o dentista Mateus Santana, também de 38 anos, pensavam em formar uma família considerada tradicional – casar e ter filhos. Entretanto, os dois casaram e o plano de ter crianças em casa começou a ser adiado. Com o passar dos anos, o casal conta que percebeu que incluir filhos no relacionamento se tratava muito mais de uma cobrança da sociedade do que de uma vontade real deles. As responsabilidades de criar e educar uma criança foram alguns dos fatores levados em consideração na hora de tomar a decisão. “A gente se sentia desconfortável com esse tipo de cobrança, mas não tínhamos parado para analisar se realmente queríamos filhos. Foi quando percebi que eu não tinha essa vontade dentro de mim e comecei a conversar com o Mateus sobre isso. E, com o tempo, fomos amadurecendo essa questão de não termos filhos até que tomamos essa decisão”, recorda a empresária. Na época da decisão, há pouco mais de 7 anos, Patrícia tinha uma loja voltada para gestantes e lactantes e convivia diariamente com a rotina de mães e futuras mamães. A escolha de não querer ter um bebê veio acompanhada de alguns julgamentos. “Nossas famílias e amigos entenderam a nossa vontade e pararam de nos cobrar um filho. Mas já ouvi que estou sendo egoísta, e tudo bem, isso é uma opinião da pessoa, mas não minha”, acrescenta. Fim do Matérias recomendadas Apaixonados por animais desde pequenos, Patrícia e Mateus decidiram, então, que teriam um animalzinho para deixar a casa mais alegre. Foi quando Armandinho chegou na vida do casal, há 9 anos. Dois anos depois, foi a vez de Nina entrar para a família. “Não é uma substituição, são escolhas. E eu trato eles como meus filhos, eu cuido, zelo e tenho responsabilidade por eles até o fim da vida”, diz Patrícia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Armandinho e Nina estão com o casal em todos os momentos. Viagens, idas a restaurantes e até mesmo em compras do dia a dia. Para isso, o casal sempre opta por frequentar lugares e estabelecimentos pet friendly - expressão em inglês adotada no Brasil para informar que um estabelecimento é “amigo dos animais domésticos”, ou seja, que cachorros e gatos são bem-vindos. “Sempre gostamos muito de viajar e, quando os cachorrinhos chegaram nas nossas vidas, eles entraram na nossa rotina. A gente só viaja para lugares que aceitam eles, não me lembro quando foi a última vez que viajamos sozinhos. Não conseguimos deixá-los e eles sempre estão com a gente, viajamos em família completa”, relata. Além das viagens com a família, os animais também são bastante mimados em casa. A dupla de quatro patas fica solta pela residência e pode dormir na cama com o casal ou escolher ficar na própria caminha. Além disso, roupinhas não faltam no guarda-roupa deles, que possuem dezenas de looks para o frio e calor. Todos os anos, Armandinho e Nina ganham festa de aniversário, e, claro, presentes em datas comemorativas como Natal. Os bichinhos também têm presença garantida nos ensaios fotográficos da família. “A gente trata com muito respeito, amor e carinho, afinal fomos nós que optamos por cuidar da vida deles, por isso buscamos fazer isso da melhor forma possível. A gente comemora o aniversário deles, para lembrar do privilégio que é estar mais um ano com eles. São membros da família de fato. Para a gente, é muito natural”, acrescenta Patrícia. Situação semelhante é vivida pela empreendedora Carolina de Arruda Botelho Mattar, de 37 anos. Casada há 9 anos, ela e o marido, Eduardo, decidiram não ter filhos humanos. A decisão foi tomada no início do relacionamento. “Desde o início do namoro, o Eduardo sempre disse que não queria ter filhos. Eu queria, mas com o tempo fui trabalhando a minha mente e entendi que não precisa ter filhos para ser feliz, que isso é muito mais uma imposição da sociedade”, diz Carol. A empreendedora conta que desde criança sonhou em ter cachorro, mas que seus pais nunca permitiram porque moravam em apartamento. O cenário mudou há pouco mais de seis anos com a chegada da Cacau e Dindin, dois Fox Paulistinha. “O fato de não ter filhos biológicos surpreende algumas pessoas porque ainda é uma questão cultural do Brasil, uma expectativa de família. Mas como sempre deixamos muito claro que nossa vontade era de ter filhos pets, nossos familiares e amigos nunca nos julgaram, mas algumas pessoas ficaram surpresas”, conta Carolina. Chamados de filhos pelo casal, os irmãos paulistinhas domem na cama da família, comemoram o aniversário com festinha e são bastante mimados. Eles possuem um adestrador que todos os dias os levam na praça para passear e brincar com outros cachorros. “Também tomamos cuidado de mantê-los em contato com o mundo biológico deles, por enriquecimento ambiental, como com comedouros interativos. Quando vamos para a fazenda, eles sempre vão junto, gostam de brincar na piscina e se divertem bastante correndo por tudo. Como são irmãos, costumamos fazer uma comemoração em família para que a gente possa celebrar a vida deles”, acrescenta a empreendedora. Essa população é de 85,2 milhões e registrou crescimento de 4,5% em relação a 2020. O país fica atrás apenas de Estados Unidos, com cerca de 150 milhões de animais de estimação e da China, com 141 milhões. O levantamento aponta ainda que entre os lares com cachorros como únicos animais de estimação, 21% são de casais sem filhos, 9% de pessoas morando sozinhas e 65% de casas com filhos. Outros 5% apresentam outras configurações. Das residências com gatos como únicos animais de estimação, 25% são de casais sem filhos, 17% de casas com pessoas morando sozinhas e 55% de casas com filhos. Outros 3% apresentam outras configurações. Para o sociólogo e psicanalista Wlaumir Souza, o fenômeno conhecido como pet parenting (ou parentalidade de animais) está se tornando cada vez mais comum devido à dedicação das mulheres à carreira profissional e à transformação no modelo familiar que a sociedade vem passando. “A mudança de filhos por pets está em consonância com o momento atual em que vivemos. Um filho demanda muito tempo e esforço, o que pode acarretar certas dificuldades no avanço profissional da mulher, haja vista que muitas delas saem do mercado de trabalho para cuidar dos filhos e depois esse retorno ainda é repleto de desafios. Muitas vezes elas não conseguem voltar a ele”, diz. Outros fatores que, para o sociólogo, têm feito muitos casais optarem por filhos pets ao invés de humanos está relacionado à questão econômica e insegurança de se criar um filho no mundo atual. “O Brasil vive uma crise econômica nos últimos oito anos de forma continuada e apesar de crises não serem novidade no país, a intensidade dela vem causando um certo receio nas famílias. A insegurança econômica acarreta um medo de trazer um ser ao mundo”, acrescenta. Já do ponto de vista psicológico, Souza diz que os animais não questionam e são fiéis aos seus donos e, consequentemente, são mais fáceis de conviver. O que também explicaria a preferência de muitas pessoas, segundo ele. “Um pet é submisso e atende às regras, mesmo no caso dos gatos, que são mais individualistas. Assim não há o que se preocupar com o destino e liberdade deles. A fidelidade canina, por exemplo, mostra porque o Brasil prefere o cão, totalmente submisso, uma regra clara do país desde a época da escravatura”, finaliza.
2023-08-30
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brasil
Depressão e ansiedade: o que acontece quando se para de repente de tomar os remédios?
Cerca de 10% da população mundial sofre com transtornos mentais, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Na América Latina, o Brasil lidera entre os países com mais gente que relata ter ansiedade e depressão, com quase 19 milhões de pessoas. Ao todo, 7% dos brasileiros dizem que sua saúde mental é precária ou muito ruim, segundo uma pesquisa do instituto Datafolha. O índice é maior entre mulheres (9%) e jovens entre 16 e 24 anos (13%). Nesse cenário, a procura por remédios psiquiátricos vem aumentando. Entre 2017 e 2021, a venda cresceu 58%, segundo dados do Conselho Federal da Farmácia. Fim do Matérias recomendadas Tão comum quanto usar esses remédios é parar de tomá-los de uma hora para a outra, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Muitas pessoas caem nesta cilada, muitas vezes, justamente porque os medicamentos estão fazendo seu efeito — a melhora pode criar a ilusão de que o problema está resolvido, segundo eles. Em outros casos, efeitos adversos do tratamento podem levar uma pessoa a interromper abruptamente o tratamento. Quem resolve parar de usar o remédio sem consultar o médico pode sofrer prejuízos imediatos e a longo prazo, afirmam os psiquiatras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um único dia sem tomar remédios como os usados no tratamento de depressão e ansiedade já pode alterar sinais químicos do cérebro e provocar sintomas como enjoo, cansaço, tontura e sensação de "cabeça aérea". A intensidade destes sintomas depende do corpo de cada pessoa, que os sente de forma mais ou menos intensa. Estes sinais dados pelo corpo podem passar depois de alguns dias. Embora sejam desagradáveis, eles não são o maior risco de parar de repente de tomar um remédio. “Há a possibilidade de que os sintomas originais retornem de forma intensa”, explica Vanessa Favaro, diretora do Serviço de Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP). Elson Asevedo, psiquiatra e diretor técnico do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da Universidade Federal de São Paulo (Caism/Unifesp), acrescenta outro efeito que ele costuma observar na prática. Pacientes que tiveram uma resposta boa inicialmente a um medicamento podem responder de forma mais lenta ou apresentar resistência ao retomar um tratamento que foi interrompido abruptamente. “Aumentar a dose ou trocar a medicação pode ser necessário em alguns casos, inclusive combinando múltiplos medicamentos diferentes”, diz Asevedo. O principal motivo que leva alguém a parar com um medicamento é o quadro que estava sendo tratado aparentemente se estabilizar. “Quando se experimenta a melhora da depressão e da ansiedade, é natural sentir que os medicamentos não são mais necessários, já que os sintomas parecem ter diminuído", explica Asevedo. "Porém, a armadilha aqui é que essa melhoria nos sintomas muitas vezes ocorre antes da melhoria física no cérebro.” O médico compara o cérebro a um computador, e a doença, a um programa instalado na máquina. O tratamento remove o programa, explica ele, mas, para que o cérebro se proteja contra futuras recaídas, é necessário um período considerável de uso da medicação para que o cérebro crie novos caminhos para funcionar sem a influência da depressão. "É recomendável que antidepressivos sejam usados por pelo menos 12 meses após a alta médica e pode chegar a até dois anos ou mesmo ser por tempo indeterminado, caso o paciente tenha tido dois ou mais episódios de depressão ao longo da vida", afirma Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Vanessa Favaro, do IPq-USP, diz que muitos pacientes não veem o tratamento como parte de uma busca contínua por saúde mental. “Compreender a abordagem de longo prazo pode ser desafiador para alguns pacientes, especialmente quando estão angustiados. A busca por alívio imediato é natural, mas nem todo sofrimento exige apenas alívio momentâneo", diz a médica. Outra razão bastante frequente para o abandono dos medicamentos são os efeitos indesejados sobre corpo. “É relativamente fácil tolerar os efeitos colaterais de um antibiótico que só precisaremos tomar por sete dias", diz Asevedo. "Mas, quando se trata de um quadro depressivo que exige um tratamento contínuo de um ano, é muito mais difícil lidar.” Entre os efeitos colaterais mais comuns dos medicamentos psiquiátricos, o médico cita: Asevedo diz que os profissionais de saúde devem ficar atentos a isso e fazer com que os pacientes se sintam à vontade para relatar qualquer queixa. Em casos assim, é importante discutir juntos as possibilidades. "Eles podem considerar alternativas, como trocar o medicamento ou até mesmo introduzir um antídoto para mitigar efeitos colaterais”, diz Asevedo. Os medicamentos usados no tratamento de transtornos mentais alteram os sinais elétricos transmitidos dentro do cérebro por meio de mudança na composição química do órgão. "O cérebro é um computador que, em vez de cabos, tem neurônios. Mas esses neurônios não se conectam diretamente. Há um pequeno espaço entre eles, onde se encontram os neurotransmissores", explica Asevedo. Os neurotransmissores são substâncias químicas que possibilitam a transmissão elétrica de um neurônio para outro. Um transtorno mental costuma ocorrer quanto essas substâncias químicas estão desreguladas. A depressão, por exemplo, é causada por um desequilíbrio de neutransmissores responsáveis pelo sentimento de prazer e bem-estar, apontam os especialistas. Os medicamentos atuam então regulando a produção de neurotransmissores e aumentando a transmissão de sinais elétricos entre as células cerebrais. É comum que uma pessoa que faz um tratamento psiquiátrico ache que estará fadada a usar esses medicamentos para sempre, diz Vanessa Favaro. "Na maioria das vezes, isso não ocorre. Os tratamentos frequentemente têm início, meio e fim”, afirma a médica. O final exige o que médicos costumam chamar popularmente de "desmame", um processo que pode levar meses ou até mesmo anos. "A retirada deve ser gradual para evitar mudanças abruptas no funcionamento cerebral", afirma Favaro. O primeiro passo, dizem os especialistas, é ter uma recomendação do médico que acompanha o paciente para fazer isso. “A gente precisa primeiro que os sintomas tenham melhorado totalmente e que tenha passado seis meses a um ano dessa melhora", diz Asevedo. "Antes disso, o cérebro ainda não se recuperou e, provavelmente, os sintomas vão voltar.” Aí então podem ser adotadas algumas estratégias, explica o psiquiatra, como passar a tomar o remédio em dias alternados ou reduzir progressivamente a dose. "É importante consultar um psiquiatra para avaliar o mais adequado para o seu tipo de medicação e quadro", conclui Favaro.
2023-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqv7ly8nx2qo
brasil
Os limites e riscos do aceno de governo Lula à Argentina
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu nesta segunda-feira (28/8) o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, no Palácio do Planalto. Além de homem forte do mandatário Alberto Fernández, Massa é o candidato governista nas eleições presidenciais marcadas para o fim de outubro. Na agenda do encontro, o ingresso argentino no Brics, a abertura do mercado brasileiro para produtos agrícolas do país vizinho e o financiamento de obras de infraestrutura e uma nova linha de créditos para o comércio bilateral. Mas com a proximidade do pleito, a reunião é vista por muitos como uma oportunidade de campanha para Massa e seu partido, que se beneficiam da relação próxima com o governo Lula. "Ter o apoio do Brasil e de Lula a seu programa político é muito importante para Sergio Massa. Ele sabe que ganha capital político internamente com isso", diz Karen Honório, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Fim do Matérias recomendadas Mas segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o encontro também pode incomodar e render críticas de membros da oposição de ambos os países, mas em especial do líder nas pesquisas argentinas, Javier Milei. Economista de direita radical, o deputado foi o mais votado nas primárias realizadas em 13 de agosto e lidera as pesquisas de opinião, com 38,5% das intenções de votos válidos. Sergio Massa vem na sequência, com 32,3%, seguido de Patricia Bullrich, com 25,3%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A maior preocupação, pelo lado brasileiro, é que os constantes acenos de Lula a Fernández e Massa possam prejudicar a relação no caso de um futuro governo Milei. Defensor da iniciativa privada e do livre mercado, o candidato rejeitou manter relações com os líderes de esquerda que comandam as principais economias da América Latina - entre eles, Lula. "Visitas desse tipo sempre serão usadas politicamente. Nessa caso podem provocar reações raivosas da oposição, especialmente de Milei e Bullrich", diz Javier Vadell, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Além disso, também há quem aponte limites nos benefícios que essa associação com o Brasil podem trazer para a Argentina, especialmente em um momento de crise econômica para ambas as nações. "A relação mais próxima com o Brasil tem favorecido muito a Argentina, mas logicamente que não resolve todos os problemas do país, que tem desafios enormes", diz Vadell. A Argentina passa por uma turbulência política, além de uma crise econômica, com inflação acima de 100% na cifra anualizada, falta de moeda forte e desvalorização do peso argentino. Diante de tudo isso, o Brasil tem sido o principal aliado do governo local para encontrar saídas para o momento de desequilíbrio. Só em 2023, Lula e Fernández já se encontraram 6 vezes. O presidente brasileiro também usou diversas ocasiões para fazer apelos públicos por ajuda ao país vizinho. Entre os projetos mais importantes para ambos os países está a entrada da Argentina no Brics, anunciada oficialmente na semana passada, durante a 15ª Cúpula do Brics, em Joanesburgo, na África do Sul. O país, segundo negociadores brasileiros, corria por fora entre as demais nações que disputavam uma vaga no bloco, mas contou com forte apoio de Lula e seu governo. Estão em curso também negociações sobre o financiamento de obras de infraestrutura na Argentina. Em seu encontro com Lula nesta segunda, Massa deve discutir justamente o lançamento de uma licitação para a construção de uma nova etapa do gasoduto Néstor Kirchner, no sul do país, e que terá financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Também está na agenda comum dos países a negociação de uma linha de crédito rotativa do Banco do Brasil para o financiamento do comércio bilateral na ordem de US$ 140 milhões. Segundo o próprio governo argentino, o objetivo é usar a linha de crédito para pagar a importação de peças de carros que servirão como insumos para as exportações ao mercado automobilístico brasileiro. As exportações brasileiras à Argentina são cruciais para a economia vizinha não parar, apesar da escassez de dólares no Banco Central argentino. Há ainda expectativa de que o governo Lula - e agora os demais aliados do Brics - possam interceder a favor da Argentina em suas renegociações de dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo argentino pagou no final de julho cerca de US$ 2,7 bilhões (R$ 12,8 bilhões) como parte de uma reestruturação do passivo que mantém com o Fundo. A parcela foi quitada com um empréstimo do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF, na sigla em espanhol) de US$ 1 bilhão (R$ 4,74 bilhões) e com yuans liberados por meio de uma operação de swap cambial com o Banco do Povo da China (PBoC). A medida fez parte da 5ª e da 6ª revisão do programa de empréstimo de US$ 44 bilhões, negociado em março do ano passado. Para especialistas consultados pela BBC News Brasil, a parceria estreita entre Argentina e Brasil - e mais especialmente entre os governos Lula e Fernández - pode dificultar as relações no futuro caso Milei seja eleito. Ainda assim, os analistas afirmam que o pragmatismo deve prevalecer, já que o contato entre as duas nações é muito importante para a economia e geopolítica de ambas. "Não necessariamente a relação vai ser maravilhosa - obviamente que com Massa haveria mais fluidez e diálogo. Mas passada a campanha e com o início do governo, o pragmatismo deve se impor", avalia Javier Vadell. Segundo o analista, em um caso como esse devemos ver um cenário muito semelhante ao que vigorou durante a maior parte do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, que apesar das diferenças e de uma retórica agressiva contra Fernández, manteve uma relação formal com o governo vizinho. Para Karen Honório, não há como nenhum dos lados se desviarem de uma parceria. "O Brasil tem um peso muito grande para a Argentina, especialmente diante das agendas comuns desenvolvidas nesse ano", diz. "Mas o Brasil também se beneficia dessa relação. E a relação com um país vizinho é para sempre, não tem como mudar de casa", completa Vadell. Ainda segundo a professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), o governo brasileiro tem se portado com cuidado para não ameaçar totalmente uma possível futura relação com Milei. "O governo brasileiro tem demonstrado cuidado para não declarar apoio enfático. Todos estão esperando o resultado da eleição", diz. Mas apesar de Sergio Massa fazer sua visita como ministro da Economia, segundo reportagem do jornal Valor Econômico, ao convidá-lo para vir ao Brasil, Lula disse que queria sua presença "como candidato". Especialistas afirmam que a atual situação argentina é complexa demais para ser resolvida apenas com os acenos brasileiros. Segundo analistas, além de barrar a inflação e combater a falta de divisas, um dos maiores desafios a longo prazo do país sul-americano está em renegociar a dívida com o FMI sem comprometer o crescimento interno. Uma seca histórica dificulta ainda mais a situação argentina, levando à menor produção de soja em 20 anos. Além disso, o Brasil não se encontra na situação econômica mais favorável para fazer promessas. "O contexto econômico atual, tanto do Brasil quanto da Argentina, é completamente diferente daquele do começo dos anos 2000, quando há um florescimento das relações durante os governos de Néstor Kirchner e Lula", diz Karen Honório. O limite na ajuda fornecida pelo Brasil foi admitido pelo próprio governo. Após um encontro com Fernández em maio, Lula lamentou não poder apoiar mais o argentino com empréstimos diretos. Em uma declaração que gerou polêmica em setores da imprensa argentina, o presidente brasileiro disse que Alberto Fernández "chegou aqui muito apreensivo, mas vai voltar mais tranquilo". "É verdade, sem dinheiro, mas com muita disposição política", disse. Argentino, o professor Javier Vadell afirma ainda que o apoio de países como os Estados Unidos seriam necessários para fazer grandes progressos na renegociação da dívida argentina com o FMI. "O Brasil e os demais integrantes dos Brics tem assentos e poder de voto no banco, o que ajuda a Argentina. Mas são os EUA quem têm poder de veto", diz. "Por isso Massa tem viajado tanto aos EUA e feito tanto esforço para negociar com os americanos."
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn37zl52vvpo
brasil
Pedaladas fiscais: o que TRF-1 decidiu no caso de Dilma?
O Partido dos Trabalhadores anunciou na segunda-feira (28/8) ter protocolado um projeto de lei para anular o impeachment de Dilma Rousseff. A medida foi tomada após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter afirmado no sábado (26/8) ser preciso "reparar" Dilma após o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) arquivar a ação de improbidade pelas "pedaladas fiscais". "A Justiça Federal em Brasília absolveu a companheira Dilma da acusação da pedalada, a Dilma foi absolvida, e eu agora vou discutir como que a gente vai fazer. Não dá para reparar os direitos políticos, porque se ela quiser voltar para ser presidente, eu quero terminar o meu mandato", disse Lula em entrevista coletiva concedida durante sua viagem a Angola. A defesa de Dilma afirmou que o arquivamento da semana passada é importante do ponto de vista jurídico e histórico. "Dilma Rousseff foi vítima de uma perseguição e teve a cassação do seu mandato em total desconformidade com a Constituição. Condená-la agora pelos mesmos fatos seria mais uma grande injustiça que se imporia contra uma mulher honesta e digna", diz a nota da defesa, assinada pelo ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Fim do Matérias recomendadas Os advogados dos outros acusados no processo também comemoraram a decisão, dizendo que ela "reconhece a ausência de dolo na atuação dos gestores públicos, chancelando, em linhas gerais, o recente posicionamento do Supremo". No entanto, tanto o entendimento de que Dilma teria sido "absolvida" quanto as falas de Lula foram duramente criticadas pelo deputado federal mineiro Aécio Neves (PSDB), que foi derrotado por Dilma nas eleições de 2014 e pediu a revisão do resultado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Neves disse que o presidente estaria impedindo "o Brasil de superar o antagonismo raivoso que se instalou na cena política nacional ao insistir em manter o país acorrentado a falsas narrativas do passado". Foi uma referência à defesa de petistas de que as supostas pedaladas fiscais teriam sido usadas como um pretexto de parlamentares da oposição para retirar Dilma do cargo. "Lula agora fala em reparar a ex-presidente Dilma pelo suposto 'golpe' do impeachment, ignorando decisões do Congresso Nacional e do STF [Supremo Tribunal Federal]", disse Neves em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. O deputado disse ainda que Lula deveria canalizar sua energia "para reparar o Brasil dos prejuízos que sua pupila causou ao país e aos brasileiros". "O presidente e o PT também não fazem bem ao país ao disseminar a fake news de que a ex-presidente foi recentemente absolvida dos crimes de responsabilidade", disse. Afinal, o que foi decidido pelo TRF-1 e o que isso significa de fato? A BBC News Brasil ouviu especialistas para esclarecer este e outros pontos. Na sexta-feira (25/8), o TRF-1 confirmou o arquivamento de um processo por improbidade administrativa pela acusação de uso de "pedaladas fiscais" por Dilma. "Pedaladas fiscais" é como ficaram conhecidas supostas manobras contábeis, na qual o Tesouro Nacional atrasa o repasse de verbas a bancos para apresentar um balanço melhor em um determinado ano. Ou seja, embora um gasto do governo já tenha ocorrido e sido pago pelo banco, ele entra nas contas públicas somente no ano seguinte. Na prática, é como se o governo usasse um "cheque especial": fizesse gastos com o caixa dos bancos e pagasse no mês seguinte, de acordo com a descrição do ex-ministro do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, atual ministro da Defesa. De acordo com o advogado Denis Pesserotti, especialista em Direito Financeiro, a diferença é que, quando comete pedaladas, o governo não paga juros ou correção por esse atraso, gerando prejuízo para os bancos públicos. "A pedalada fiscal é considerada irregular pelos órgãos de fiscalização porque é uma forma do governo esconder que está com as contas desequilibradas, que está fazendo despesas que não correspondem com as receitas", explica Pesserotti. No processo em questão, o Ministério Público Federal (MPF) acusava Dilma, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, o ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir Bendine, o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin e o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho de terem cometido improbidade administrativa ao fazer uso de "pedaladas". A ação havia sido arquivada por um tribunal de primeira instância em 2022, mas o Ministério Público Federal (MPF) entrou com um pedido de recurso - que foi rejeitado pelo TRF-1. A decisão foi unânime e manteve o arquivamento do processo. Marcelo Figueiredo, professor de Direito da Pontíficia Universidade Católica, explica que a improbidade administrativa é um ato ilegal cometido por funcionário público. Os atos que podem ser considerados improbidade são estabelecidos em lei. "Se comete improbidade quando há enriquecimento ilícito, violação dos princípios administrativos ou dano ao erário", diz Figueiredo. Para que alguém seja condenado por improbidade, é preciso provar dolo, ou seja, intenção de infringir a lei e causar dano. O relator do processo das supostas pedaladas de Dilma no TRF1, o ministro Saulo Bahia, afirmou que não havia causa para o seguimento de um processo. Segundo ele, não foi apontada "conduta ilícita", e os atos descritos não poderiam ser punidos pela lei de improbidade, porque o MPF não conseguiu provar dolo. Ainda segundo o voto do ministro, no caso de Dilma, durante seu mandato, os supostos atos de improbidade praticados no decorrer do mandato não podiam ser julgados na Justiça, somente responsabilizados pelo processo de impeachment, o que foi feito. As "pedaladas fiscais" foram o motivo oficial para o impedimento da petista em 2016, embora quase nenhum dos parlamentares que votaram pelo impedimento da presidente tenha mencionado pedaladas em seus votos. O processo de impeachment se seguiu a um momento de grande descontentamento do Congresso com o governo e baixa popularidade da presidente. Isso significa que não houve condenação na Justiça contra Dilma e outros agentes públicos porque entendeu-se que não havia os requisitos para o seguimento do processo. Com isso, o mérito da ação (a acusação do MPF de que Dilma praticou pedaladas fiscais e, portanto, improbidade administrativa) nunca chegou a ser julgado de fato. De acordo com Figueiredo, o TRF-1 simplesmente aplicou um precedente que já havia sido estabelecido pelo STF. Pesserotti diz que o arquivamento se trataria de uma "questão processual". "Com o impeachment ela foi responsabilizada por praticar pedaladas", afirma. O TRF-2 já havia arquivado outro processo - uma ação pública - contra Dilma também com a acusação de cometer pedaladas.
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn37z5v89d4o
brasil
Lula assina MP para taxar fundos dos 'super-ricos': entenda como funciona investimento usado por milionários
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou nesta segunda-feira (28/8) Medida Provisória (MP) para taxar os chamados fundos exclusivos. Em defesa da medida, Lula disse que se trata de algo "justo" e "sensato" e que "proporcionalmente, o mais pobre paga mais imposto de renda que o dono do banco". "Eu espero que o Congresso Nacional, de forma madura, ao invés de proteger os mais ricos, proteja os mais pobres, que é o que Brasil está precisando para ser uma sociedade mais democrática, uma sociedade mais igual, uma sociedade de classe média, que é tudo o que nós queremos", disse Lula na edição desta semana do "Conversa com o Presidente", programa realizado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e transmitido pelas redes sociais. Também conhecidos como "fundos dos super-ricos", eles exigem investimento mínimo de R$ 10 milhões e têm um custo de manutenção anual que pode chegar a R$ 150 mil, segundo assessores de investimento consultados pela BBC News Brasil. Com a medida, o governo espera conseguir R$ 24 bilhões entre 2023 e 2026, parte de um esforço de aumento da arrecadação, na tentativa de zerar um déficit (diferença entre receitas e despesas) estimado em mais de R$ 100 bilhões nas contas públicas em 2024. Fim do Matérias recomendadas A proposta, junto a duas outras já anunciadas – a taxação de investimentos nos exterior através de offshores e o fim do JCP (Juros Sobre Capital Próprio, uma modalidade de distribuição de lucros que permite às empresas pagarem menos impostos) –, antecipam pontos da segunda etapa da reforma tributária, que deve mexer com os impostos sobre renda e patrimônio. A taxação dos fundos exclusivos deve servir, segundo o plano do governo, como compensação para o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda para contribuintes que recebem até R$ 2.640 mensais, aprovada pelo Congresso e também sancionada por Lula nesta segunda-feira. "Estamos falando de 2,4 mil fundos que envolvem patrimônio de R$ 800 bilhões", disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista no fim de julho, sobre a taxação dos fundos exclusivos. "É uma legislação anacrônica, que não faz sentido nenhum. Não é tomar nada de ninguém, é cobrar rendimento deste fundo, como qualquer trabalhador paga imposto de renda." Segundo estimativas do Executivo, hoje 2,5 mil brasileiros contam com recursos aplicados em fundos exclusivos, que acumulam R$ 756,8 bilhões e respondem por 12,3% dos fundos no país. O governo também informou que encaminhou ao Congresso projeto de lei que prevê a tributação anual de rendimentos de capital aplicado no exterior (offshore), com alíquotas progressivas de 0% a 22,5% e expectativa de arrecadação de cerca de R$ 20 bilhões até 2026. "Os fundos abertos são como um clube em que todo mundo pode participar, basta comprar cotas desse clube e participar dos rendimentos que ele vai proporcionar", diz Michael Viriato, assessor na Casa do Investidor. "Já o fundo exclusivo é como se fosse um clube fechado, que pertence a uma única pessoa ou grupo familiar", exemplifica o especialista em investimentos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desenhados sob medida, dependendo do perfil de risco e dos objetivos de rendimento do investidor, esses fundos são muito usados por famílias ricas em processos sucessórios. Para um milionário transmitir uma herança, por exemplo, basta doar cotas do fundo para os herdeiros ainda em vida, evitando os custos e burocracias do processo de inventário. No fundo exclusivo, há algumas restrições quanto ao número de aportes e resgates que o investidor pode fazer e quanto à periodicidade dessas retiradas. Mas a grande vantagem desse tipo de fundo – antes da mudança agora proposta pelo governo – era a isenção do chamado "come-cotas", uma antecipação do Imposto de Renda cobrada semestralmente (normalmente em maio e novembro de cada ano) sobre os rendimentos, a uma alíquota de 15% para investimentos de curto prazo e 20% para os de longo prazo. Sem a incidência do come-cotas, o investidor podia obter até 30% a 40% de retornos a mais do que teria em fundos com a cobrança do imposto, estima Viriato. Isso porque o valor que seria descontado na forma de tributo seguia rendendo no fundo, ampliando os ganhos. Por exemplo, se uma pessoa investia R$ 10 milhões, com um rendimento de 12% ao ano, ela teria R$ 182 milhões após 30 anos num fundo com a cobrança de come-cotas, ou R$ 256 milhões num fundo isento, calculava o assessor financeiro. Nos fundos exclusivos, o Imposto de Renda era cobrado apenas no momento do resgate e de forma regressiva, o que significava que, quanto maior o tempo de aplicação, menor a tributação. A ideia do governo é igualar os fundos exclusivos aos demais fundos de investimentos. Com isso, os fundos dos "super-ricos" passarão a ter a cobrança periódica do come-cotas, de 15% a 20% sobre os rendimentos dos fundos. Havia uma dúvida no mercado financeiro se a cobrança de impostos se daria também sobre os estoques – rendimentos passados, acumulados desde a criação desses fundos. Uma fonte do governo havia antecipado no começo de agosto à BBC News Brasil que provavelmente os contribuintes teriam a opção de antecipar o pagamento do imposto sobre o estoque, a uma alíquota reduzida. Quem não quisesse, ficaria na sistemática antiga, pagando o imposto quando e se resgatar o investimento. Nesta segunda-feira, o Palácio do Planalto confirmou a alíquota inferior, de 10%, para quem optar por regularizar os valores ainda neste ano. Essa não é a primeira vez que o governo federal tenta tributar os fundos exclusivos. Em 2017, o ex-presidente Michel Temer chegou a editar uma medida provisória instituindo a cobrança a cada deis meses do IR sobre os fundos dos super ricos. Mas a MP sofreu resistência do Congresso e acabou perdendo a validade. A proposta também foi incluída pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, no projeto de reforma tributária enviado ao Congresso em 2021, mas não avançou. A MP apresentada nesta segunda-feira tem efeito de lei, passando a valer assim que editada. Mas, para que a medida se torne uma legislação permanente, precisará passar por aprovação do Congresso em até 120 dias. Especialistas veem com bons olhos a proposta de taxação dos fundos. "Essa medida deveria ter sido aprovada há anos, não faz o menor sentido essa brecha que foi criada", diz Viriato, da Casa dos Investidores. "Não é que eu seja a favor de tributar os mais ricos, é que foram criados dois veículos de investimentos similares [o fundo exclusivo e o fundo aberto] com impostos diferentes, não faz sentido algum", afirma o assessor de investimentos. "De fato existem distorções, então realmente é uma medida que visa tornar mais igualitária a tributação da renda, mas acredito que essa medida e outras que estão sendo apresentadas pelo governo [na tributação de renda], como o fim do JCP, vão enfrentar resistência significativa no Congresso", diz Yihao Lin, economista na gestora de recursos Genial Investimentos. O auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha "Tributar os Super-Ricos", acredita que será preciso vencer essa resistência para tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo – isto é, com ricos pagando mais impostos e pobres pagando menos. Ele defende que, além das medidas já anunciadas pelo governo de mudanças na tributação da renda, são necessários outros avanços, como a taxação de dividendos e a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), conforme previsto na Constituição. "Sem ampliar a tributação dos mais ricos, fica muito difícil para o Estado conseguir reduzir os tributos sobre os mais pobres", diz o auditor fiscal. "É preciso enfrentar a iniquidade do sistema tributário para conseguirmos resolver nossos problemas sociais históricos, enfrentar a desigualdade e promover o desenvolvimento econômico."
2023-08-28
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brasil
Milionários pagam menos imposto de renda que professores, médicos e policiais, mostra estudo
Contribuintes milionários pagam no Brasil alíquotas menores de imposto de renda do que profissionais de renda média e alta, mostra um levantamento inédito realizado pelo Sindifisco Nacional, sindicato que representa os auditores-fiscais da Receita Federal, a partir de dados do Imposto de Renda Pessoa Física de 2022 (ano calendário 2021). Segundo esses dados, contribuintes que declararam em 2021 ganhos totais acima de 160 salários mínimos (R$ 2,1 milhões no ano, ou R$ 176 mil por mês) pagaram, em média, uma alíquota efetiva de Imposto de Renda (IR) de menos de 5,5%. É uma taxa menor, por exemplo, do que pagaram professores de ensino fundamental (8,1%), enfermeiros (8,8%), bancários (8,6%) ou assistentes sociais (8,8%) — profissionais que, na média, declararam rendimentos totais (soma dos salários e outros rendimentos) abaixo de R$ 94 mil naquele ano (menos de R$ 8 mil ao mês). A alíquota efetiva dos milionários também foi menor do que a dos policiais militares (8,9%), cuja renda média total em 2021 ficou em R$ 105 mil (R$ 8.750 ao mês). Ou do que a de médicos (9,4%), que declararam em média renda total de R$ 415 mil (R$ 34,6 mil ao mês). A alíquota efetiva é o percentual da renda total que de fato foi consumida pelo IR. Segundo o Sindifisco, o principal motivo de os mais ricos terem uma alíquota menor é que uma parcela relevante de sua renda vem do recebimento de lucros e dividendos das suas empresas - renda que é isenta de imposto no Brasil desde 1996. Fim do Matérias recomendadas Já a classe média tem uma parcela maior de seus ganhos proveniente de salários, que, em geral, são tributados na fonte, com alíquotas progressivas que chegam a R$ 27,5% para ganhos mensais acima de R$ 4.664,69. Essas pessoas também têm parte de seu dinheiro isento de imposto, mas, em geral, é uma parcela da renda menor do que a dos milionários. O levantamento do Sindifisco mostra ainda que a alíquota efetiva paga pelos contribuintes de maior renda caiu por dois anos seguidos, entre 2019 e 2021: como houve crescimento do pagamento de lucro e dividendos nesse período, o topo da pirâmide ficou mais rico, ao mesmo tempo que pagou proporcionalmente menos IR. Os números da Receita Federal mostram que contribuintes brasileiros declararam terem recebido em 2021, no total, R$ 555,68 bilhões em lucros e dividendos, uma alta de quase 45% sobre o valor de 2020 (R$ 384,27 bilhões) e de 46,5% ante o de 2019 (R$ 379,26 bilhões). Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem Para o presidente do Sindifisco, auditor-fiscal Isac Falcão, esse aumento reflete a expectativa de que os dividendos voltem a ser taxados no país. A volta desse tributação pode ser incluída pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva em uma proposta de reforma do Imposto de Renda que o Ministério da Fazenda pretende enviar no fim deste ano para o Congresso. O assunto, porém, enfrenta resistência no Parlamento. Proposta semelhante enviada pelo governo de Jair Bolsonaro em 2021 não avançou. "As empresas estão retendo menos dividendos agora para não correr o risco de distribuírem quando já estiverem sendo tributados. Essa é uma das razões pelos quais eu digo que o tema está na agenda", acredita Falcão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por outro lado, o levantamento mostra que contribuintes pobres ou de renda intermediária (faixas que vão de um a 15 salários mínimos mensais) passaram a pagar uma alíquota efetiva média de imposto de renda maior entre 2019 e 2021. Segundo o Sindifisco, o fato de a tabela do Imposto de Renda estar há muitos anos sem ser atualizada pela inflação explica o aumento da alíquota efetiva para grupos de renda menor. Como os salários costumam ter algum reajuste anual para compensar a inflação, trabalhadores acabam subindo de faixa de contribuição e passam a pagar mais IR, mesmo que seu poder de compra não tenha necessariamente aumentado. Por exemplo, contribuintes que declararam em 2021 renda mensal entre 5 e 7 salários mínimos (R$ 5.500 a R$ 7.700 em valores daquele ano) pagaram alíquota efetiva média de 6% -- ou seja, mais que os milionários. Já dois anos antes, a taxa média para essa faixa de renda estava em 4,5%. Nesse contexto, Falcão defende que a taxação de lucros e dividendos seja usada para compensar uma redução do Imposto de Renda que incide sobre faixas de menor renda. A expectativa é que a reforma a ser enviada por Haddad ao Congresso tenha também algum aumento na faixa de renda que é isenta de IR. Lula prometeu na campanha ampliar essa isenção para até R$ 5 mil ao mês. No entanto, o próprio Haddad já disse que é um missão difícil de cumprir, pois pode custar dezenas de bilhões de reais em perda de arrecadação anual do governo. Hoje, o contribuinte brasileiro não paga IR sobre ganhos mensais de até R$ 2.112. O governo Lula criou uma dedução simplificada mensal no valor de R$ 528 que, na prática, eleva a isenção R$ 2.640 no caso de pessoas de menor renda. O mecanismo não beneficia contribuintes com ganhos mais altos porque não pode ser acumulado com outras deduções que já são usadas por esse grupo, como contribuição previdenciária, pensão alimentícia e dependentes. Os contribuintes que pagam mais IR são aqueles com renda mensal entre 10 e 40 salários mínimos (R$ 11 mil a R$ 44 mil em valores de 2021), cuja alíquota média efetiva fica acima de 10%. Nesse grupo, estão profissões com altos salários, como o topo da carreira pública. Nesses casos, o percentual da renda de fato consumido pelo IR é mais que o dobro que o pago por milionários, caso de juízes (13%), servidores do Banco Central (14,5%) ou auditores-fiscais (15,6%). São categorias que, embora não tenham rendas milionárias, recebem uma remuneração bem acima da maioria dos brasileiros. Os juízes, por exemplo, declararam em 2021 renda média total de R$ 729,6 mil (R$ 60,8 mil ao mês). Para o presidente do Sindifisco, auditor-fiscal Isac Falcão, as alíquotas efetivas cobradas sobre essas categorias com altos salários é justa. O problema, na sua visão, é os segmentos com rendas ainda mais altas pagarem alíquotas menores. Seu dispositivo não consegue visualizar essa mensagem Por outro lado, mostram os dados, há profissões com renda alta na comparação com a maioria da população brasileira que pagam alíquotas efetivas baixas, crítica Sérgio Gobetti, economista do Ipea especializado em tributação e finanças públicas. É o caso de advogados (5,2%), cuja renda média total declarada em 2021 foi de R$ 223 mil (R$ 18,6 mil ao mês). Ou dos decoradores (5,1%), que declararam em média R$ 215 mil de renda total naquele ano (R$ 17,9 mil ao mês). Em geral, são profissionais liberais, donos de suas próprias empresas, que pagam alíquotas menores sobre os lucros obtidos porque essas companhias se enquadram em regimes especiais de tributação, como o Simples e o sistema de lucro presumido. Contribuintes que se declararam ao Fisco como dirigentes, presidentes ou diretores de empresas, por exemplo, tiveram alíquota efetiva de apenas 4,14% em 2021, quando informaram renda total média de R$ 267,8 mil (R$ 22,3 mil ao mês). O Brasil é um dos poucos países do mundo que não taxa lucros e dividendos. Isso não quer dizer que o dinheiro que entra no bolso do acionista nunca foi tributado. Sobre o lucro das empresas incide, via de regra, dois impostos: o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), cujas alíquotas somam 34%. Opositores da taxação de dividendos dizem que essa alíquota de 34% é alta na comparação internacional. Segundo Sergio Gobetti, a tributação dos lucros de empresa em outros países realmente é menor, girando, em média, na faixa de 20% a 25%. Na prática, porém, as empresas brasileiras não pagam a taxa cheia, já que há benefícios e isenções que permitem reduzir o valor a ser cobrado pela Receita. "Diversos estudos mostram que, em média, companhias de capital aberto (com ações em Bolsa) pagam 24% de impostos sobre seus lucros, e não 34%", ressalta. Além disso, empresas com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões podem entrar no Simples, que tem alíquotas progressivas que variam de 4% a 33% e englobam 8 impostos, entre eles o IRPJ. Para Sérgio Gobetti, a volta da tributação dos dividendos deveria vir acompanhada de uma reforma ampla da taxação das empresas, que elimine as exceções que permitem a empresas pagar pouco sobre seus ganhos. Com isso, diz, seria possível reduzir a tributação de IRPJ/CSLL de 34% para 25% e criar uma outra alíquota a ser paga sobre lucros e dividendos, que poderia ser de 20% ou 25%. "E poderia haver uma faixa de isenção. Por exemplo, dividendos de até R$ 30 mil no ano não seriam taxados e valores acima disso pagariam", exemplifica. Por outro lado, outro argumento dos defensores do fim da taxação de lucros e dividendos no Brasil é que esse imposto tinha baixa eficiência tributária e gerava muitas disputas judiciais - ou seja, o Fisco tinha dificuldade de cobrar esse tributo adequadamente. Esse argumento foi defendido em um artigo por três ex-secretários da Receita Federal: Everardo Maciel (governo FHC), Jorge Rachid (governos Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer) e Marcos Cintra (governo Jair Bolsonaro). "Tomando por base o ano de 1995, a arrecadação do IRPJ, ainda que não apenas em razão daquela opção, cresceu, em termos reais, em todos os anos subsequentes — muitas vezes com percentuais superiores a 100%, ao passo que a participação desse imposto no PIB aumentou em praticamente todos os anos, chegando a exibir impressionante crescimento de 95%", argumentaram no artigo publicado no ano passado, no jornal Folha de S.Paulo. Gobetti, por sua vez, argumenta que a realidade de hoje é diferente da de 1995 devido à internacionalização cada vez maior da economia, o que dá mais liberdade para empresas escolherem onde investir no mundo. Na sua avaliação, esse é mais um fator a favor de uma reforma que reduza a tributação direta sobre as empresas e tribute os lucros distribuídos aos acionistas. "Tributar diretamente o lucro da empresa sem dúvida é mais simples, mas é incompatível com o mundo de hoje, onde todos os países reduziram significativamente as suas alíquotas sobre as empresas. Então, (o modelo atual brasileiro) não é só um problema pela falta de progressividade", destacou.
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66637710
brasil
Embaixadas e até empresas da Lava Jato: como Brasil tenta recuperar o prejuízo na África
No salão de conferências do luxuoso Hotel Intercontinental, em Luanda, capital de Angola, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursava para uma plateia repleta de políticos, empresários e diplomatas na noite de sexta-feira (25/8). Depois de repetir o slogan "O Brasil voltou" em diversos países, foi a vez de fazer algo parecido no continente africano. "A volta do Brasil ao continente africano não deveria ser uma volta porque nós nunca deveríamos ter saído do continente africano", disse Lula. A ida do presidente a Angola é interpretada dentro e fora do governo como a face mais visível do esforço da atual administração para "recuperar o prejuízo" dos últimos anos e aumentar as exportações brasileiras para o continente africano que estão no mesmo nível desde 2011. Além de Lula, esse movimento conta com o plano de abrir ou reabrir embaixadas no continente e por comitivas de empresas prospectando novos negócios na África. Entre elas, gigantes investigadas em casos de corrupção pela Operação Lava Jato. Fim do Matérias recomendadas "O Brasil está correndo atrás do espaço que perdeu nos últimos 10 anos", diz o professor de política e história africana do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Alexandre dos Santos. Segundo ele, a crise política que afetou o Brasil desde 2013, o escândalo da Lava Jato – que implicou empreiteiras que mantinham negócios com países africanos –, e a política internacional do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) fizeram com que o Brasil passasse por um momento de retração nas suas relações com o continente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Isso aconteceu, mais especificamente, nas duas administrações passadas. Tanto [Michel] Temer quanto [Jair] Bolsonaro relegaram o continente a uma área do planeta sem importância", afirma o professor. Durante o mandato de Bolsonaro, por exemplo, o governo fechou duas embaixadas no continente africano sob o argumento de redução de gastos. No vácuo supostamente deixado pelo Brasil, a China, principalmente, passou a ocupar o espaço em países como Angola e Moçambique. Outro país que também passou a ocupar espaços na região foi a Índia, especialmente na porção leste do continente. Dados da Agência Brasileira de Promoção à Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) mostram que, em 2003, o Brasil era o 16º principal exportador para a África enquanto a China ocupava a 7ª posição. Em 2022, a China tinha subido seis posições e se tornou o maior exportador para a África. O Brasil, no entanto, subiu apenas uma posição. Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) obtidos pela BBC News Brasil reforçam esse movimento. Em 2022, o Brasil exportou US$ 12,8 bilhões (cerca de R$ 62 bilhões) ao continente africano. O valor corresponde a um aumento de 35% em relação a 2021, mas, quando comparado ao que o país exportava em 2011 (US$ 12,2 bilhões), por exemplo, o montante praticamente não cresceu. "As exportações do Brasil cresceram muito nos últimos anos, mas quando a gente analisa a relação com a África, os números mostram que elas patinaram", disse a secretária de Comércio Exterior do MDIC, Tatiana Prazeres. Ela é uma das responsáveis por tentar alavancar o fluxo comercial do Brasil com o mundo. Ainda de acordo com o MDIC, a participação da África no total do que o Brasil exporta é de 3,82%. Ou seja: de cada US$ 100 que o Brasil vende para o exterior, apenas US$ 3,82 foram comprados por países africanos. Essa estaganação no volume de vendas brasileiras aconteceu ao mesmo tempo em que o continente se transformou em uma das regiões que mais crescem no planeta. Dados do Banco Africano de Desenvolvimento apontam que a expectativa é de que a África seja a segunda região com o maior crescimento econômico do mundo, atrás apenas da Ásia. A projeção é de que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB, soma de todas as riquezas geradas) do continente chegue a 4,3% em 2024. Ainda de acordo com o relatório, em torno de 22 países do continente deverão crescer acima de 5%. Para efeito de comparação, a expectativa é de que a economia brasileira cresça 2,1% em 2024, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Tatiana Prazeres diz que há uma combinação de fatores que ajuda a explicar a dificuldade do Brasil em ampliar suas relações comerciais com a África. Um deles é a diminuição da competitividade da economia brasileira em comparação com a chinesa. "O Brasil é menos competitivo em produtos industrializados do que era no passado. Outros países ocuparam o espaço que o Brasil tinha", afirma. Outro ponto mencionado por ela foi o impacto do fim da polêmica linha de financiamento de exportação de obras de infraestrutura mantida pelo governo brasileiro por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante anos. De acordo com o banco, entre 1998 e 2017, foram emprestados US$ 10,5 bilhões (R$ 51 bilhões) para financiar obras no exterior. Tatiana explica que, por meio dessa linha, empreiteiras brasileiras obtinham financiamento junto ao banco brasileiro para executarem obras de infraestrutura em países na África e América Latina. Para executar essas obras, no entanto, as empresas, muitas vezes, eram obrigadas a importar maquinário do Brasil, o que tinha impacto no volume e na qualidade das exportações brasileiras para o continente. Isso acontece porque esse tipo de produto tem maior valor agregado do que alimentos e commodities que hoje compõem a maior parte das exportações do país ao continente. A partir de 2014, no entanto, esse tipo de financiamento entrou na mira das investigações da Operação Lava Jato, que apurou um esquema de pagamento de vantagens indevidas a agentes políticos de diversos países em troca de contratos muitas vezes bilionários. Executivos de empreiteiras como a Odebrecht admitiram em acordos de colaboração premiada que pagaram propina a agentes políticos em troca de contratos internacionais em países na América Latina como Brasil, Peru e Argentina, e também da África como Angola e Moçambique. Segundo o acordo feito por executivos da Odebrecht junto ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, entre 2006 e 2013, a empresa pagou US$ 50 milhões em propinas a agentes políticos de Angola em troca de contratos. Em Moçambique, o valor pago em propinas, segundo os delatores da Odebrecht, foi de US$ 900 mil. Procurada pela BBC News Brasil, a Odebrecht afirmou que seus executivos estavam no Brasil mantendo reuniões bilaterais, mas não respondeu a questionamentos enviados. Lula foi alvo de três ações penais envolvendo supostas irregularidades envolvendo países africanos. Ele foi acusado de ter feito lobby para que uma empresa pertencente a um sobrinho fosse contratada em uma obra em Angola. Em outro caso, foi acusado de ter influenciado a mudança de linhas de financiamento do BNDES que favoreceram a Odebrecht. Em um terceiro processo, ele foi acusado de ter feito lobby para uma empresa que queria se estabelecer na Guiné Equatorial. Lula sempre negou ter praticado irregularidades. Em todos os casos, os processos contra o petista foram trancados pela Justiça Federal. Em meio à pressão política gerada pelas revelações feitas pela Lava Jato, o BNDES suspendeu a linha de financiamento de exportação de serviços em 2016. Tatiana Prazeres afirma que o fim do financiamento das exportações de serviços de engenharia brasileiros pode ter impactado a venda de bens manufaturados brasileiros para a África. "Em algum grau isso também afeta nossas exportações de bens, porque por muitas vezes, exportação de serviços está atrelada à exportação de bens", explica. Ela diz, no entanto, que o assunto depende de uma decisão política que cabe a instâncias superiores. Em seu discurso a empresários em Luanda, Lula prometeu que o Brasil voltará a fazer financiamentos em Angola, apesar das polêmicas dos anos anteriores. "Vamos voltar a fazer financiamento para os países africanos. Vamos voltar a fazer investimentos para Angola que é um bom pagador das coisas que o Brasil investiu aqui", disse Lula, sem mencionar a partir de quando isso poderia voltar a acontecer. O assunto foi discutido em uma reunião privada em Luanda entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e um grupo de empresários, incluindo executivos da Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Novonor, grupo que controla a Odebrecht Engenharia e Construção (OEC). Na reunião, os empresários disseram que estariam perdendo oportunidades de negócios no continente africano por conta da falta de linhas de financiamento de exportação de serviço. À BBC News Brasil, Haddad disse que pediu aos empresários para formalizarem suas demandas e para que também acionassem o Congresso Nacional. Segundo ele, os empresários afirmaram que eles estariam recorrendo a financiamentos de bancos estrangeiros e que esses contratos os obrigam a importar equipamentos dos países de onde partem os financiamentos e não do Brasil. “O ambiente no Brasil sobre isso é delicado e eles precisam explicar ao país e aos parlamentares o que de fato está afetando a vida deles para que esse debate seja pública e possa ser feito à luz do dia”, disse o ministro. “Tem empresa brasileira abrindo filial na Alemanha para ter acesso a linha de crédito e contratar os bens alemães para fazer serviços em Angola. Eu disse que é importante que eles, empresários, expliquem isso, porque pode dar a impressão de que é uma coisa ideológica e não pragmática”, acrescentou. Oficialmente, o BNDES vem afirmando que as operações de financiamento à exportação de serviços feitas pelo banco "estão sob análise de diversas autoridades legais". Membros do governo e do BNDES discutem mecanismos para a retomada desses financiamentos. A promessa de Lula acontece nove anos depois do início da Operação Lava Jato. E a lista de empresas convidadas a participar de um evento organizado para marcar a retomada da proximidade entre Brasil e Angola tem pelo menos cinco companhias que foram alvo da investigação. A lista previa a participação de executivos da JBS, Marfrig, Odebrecht Engenharia e Construção (OEC), Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão. As três últimas são empreiteiras cujos executivos fizeram acordos de colaboração premiada em que admitiram terem pago propina em troca de contratos. A JBS é uma empresa que atua no ramo de processamento de proteína animal e pertence ao grupo J&F, que foi liderado pelos empresários Joesley e Wesley Batista. Eles e outros executivos do grupo fizeram acordos de colaboração premiada no qual confessaram terem pago vantagens indevidas a políticos. A Marfrig também atua no segmento de frigoríficos. Em 2018, um dos executivos do grupo firmou um acordo de colaboração premiada no qual ele se comprometeu a pagar R$ 100 milhões às autoridades por ter tido acesso a financiamentos públicos após o pagamento de vantagens indevidas. A BBC News Brasil entrou em contato com todas as empresas citadas. Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão disseram que não iriam se manifestar. JBS e Marfrig não responderam a pedido de posicionamento. Tatiana Prazeres, do MDIC, afirma que o plano do Brasil para retomar espaços perdidos nos últimos anos vai incluir uma série de eventos empresarais em setores que vão do agronegócio à indústria de defesa. Além disso, o governo estuda firmar acordos com países africanos para facilitar investimentos de empresas brasileiras no continente. Diplomatas brasileiros com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado afirmam que o país deverá abrir mais embaixadas no continente africano nos próximos anos. Uma nova embaixada, possivelmente em Ruanda, será aberta. Outras duas representações que haviam sido fechadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro deverão ser reabertas. Elas ficariam na Libéria e em Serra Leoa.
2023-08-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c723kye0mldo
brasil
Soltura automática? O que pode acontecer com presos se STF liberar porte de drogas
O Supremo Tribunal Federal (STF) está próximo de aprovar a descriminalização do porte de drogas para consumo. Cinco ministros se posicionaram a favor da medida, sendo necessário mais um voto para que ela entre em vigor. A Corte também caminha para fixar parâmetros objetivos de quantidade de maconha para diferenciar quem seria usuário ou traficante, o que, na visão de defensores da medida, pode reduzir o que seriam prisões equivocadas por tráfico no país. Por enquanto, estão a favor da descriminalização do porte para consumo Gilmar Mendes (relator da ação), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a presidente da Corte, Rosa Weber. Eles argumentaram que o uso da maconha é uma questão de liberdade individual e deve ser combatido com campanhas de informação e atendimento focado na saúde dos usuários. “A criminalização da conduta de portar drogas para consumo pessoal é desproporcional”, argumentou Weber. Fim do Matérias recomendadas Votou contra a descriminalização o ministro Cristiano Zanin, recém-nomeado para a Corte pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, o que gerou revolta nas redes sociais de progressistas que apoiaram a eleição do petista. “A descriminação, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir com o agravamento deste problema de saúde", argumentou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O julgamento, iniciado em 2015, foi novamente suspenso nesta quinta-feira (24/8), após o ministro André Mendonça pedir vista (mais tempo para analisar o caso). Além dele, faltam votar Nunes marques, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. A ação não trata da venda de drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o resultado. O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas. Caso a descriminalização seja aprovada no STF, a pessoa que portar entorpecentes para consumo próprio não poderá mais ser submetida a outras punições atualmente em vigor, como prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a programa ou curso educativo, nem terá um registro na sua ficha criminal. Apesar disso, estudiosos do tema afirmam que esse julgamento pode ter o impacto de reduzir o número de pessoas presas no país, caso a decisão do STF permita libertar pessoas que estariam, ao seu ver, erroneamente encarceradas por tráfico de drogas. Para que isso ocorra, dizem, seria necessário que a Corte estabelecesse parâmetros objetivos para diferenciar qual a quantidade de drogas deve ser considerada voltada para consumo e qual deve ser enquadrada como tráfico. Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem o consumo da venda faz com que muitas pessoas detidas no país com pequenas quantidades de maconha ou cocaína, por exemplo, acabem presas pelo crime de tráfico. No entanto, há organizações que estão participando do processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por tráfico equivocadamente. Por enquanto, cinco ministros se manifestaram a favor da adoção desses parâmetros: Barroso, Moraes, Weber, Mendes e Zanin. A quantidade, porém, só será definida ao final do julgamento, caso haja maioria a favor da medida. Barroso e Weber, por exemplo, propuseram 100 gramas de maconha como um corte para diferenciar usuário e traficante. A quantidade segue parâmetros usados em outros países, como Espanha e Holanda. Já Moraes e Mendes sugeriram 60 gramas, enquanto Zanin defendeu apenas 25 gramas. Os ministros também discutem fixar uma quantidade máxima de pés de maconha para um usuário cultivar. Os ministros ressaltaram, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor, desde que outros elementos corroborem o crime de tráfico, como apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo. Fachin, quando votou em 2015, foi contra a adoção de critérios pelo STF, pois considerou que seria função do Congresso definir essa quantidade. Mas ele ainda pode revisar seu voto, como fez Mendes, que também havia ficado contra a fixação de parâmetros no início do julgamento. Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas. A quantidade de presos que seria eventualmente beneficiada por uma decisão neste julgamento dependerá de a maioria do STF concordar com a fixação de parâmetros que diferenciem consumo e tráfico e de quais seriam os parâmetros adotados. No entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC News Brasil. Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena. “Se o Supremo decidir que até determinada quantidade não é tráfico de drogas, o que vai acontecer é que, nos casos em que houver pequena quantidade (de droga apreendida), as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo”, afirma. “O efeito mais imediato é que pessoas com pequenas quantidades não seriam mais presas e processadas, se não estiverem presentes outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade (da venda de drogas), a balança (usada para pesar a droga vendida), o dinheiro, a arma, a munição”, acrescenta. Uma fixação de parâmetros nas condições propostas por Barroso é apoiada também pela associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF). A instituição não se posiciona a favor ou contra a descriminalização do porte para consumo, mas defende que, independentemente do que for decidido nesse ponto, o Supremo estabeleça parâmetros para diferenciar o usuário do traficante. Segundo Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que “o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base ‘as circunstâncias sociais e pessoais’, bem como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação’”. Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras e pobres. Já o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos. A organização, que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, foi uma das instituições aceitas pelo Supremo para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado). “Eu não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não”, afirmou Vieira, que conversou em maio com a BBC News Brasil. Estudos indicam, no entanto, que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 por Lula, contribuiu para o aumento do número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época. “A impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair (da prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso”, disse em entrevista à BBC News Brasil em maio. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase 28% da população carcerária no país está presa por crimes previstos na Lei de Drogas. No caso das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 659.351 pessoas detidas provisoriamente ou condenadas no primeiro semestres de 2022 (dado mais recente), 182.958 estavam presas por esse tipo de delito, 27,75% do total. Um estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra dos processos julgados na primeira instância judicial de todo o país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150 gramas. E apenas 11,1% levavam mais de dois quilos da droga. Uma análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína identificou que 62,3% dos processos se referem a 100 gramas ou menos, enquanto 6,8% dos casos tratavam de apreensões de mais de um quilo. Esse mesmo estudo estimou quantas pessoas condenadas por tráfico de maconha ou cocaína poderiam ter sua pena revista caso fossem fixadas quantidades máximas de porte para consumo dessas drogas. Foram analisados processos de 5.121 réus por tráfico de drogas julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre de 2019, uma amostra representativa do total de pessoas presas por esse crime no país. A conclusão do estudo do Ipea foi que se o parâmetro proposto por Barroso (25 gramas de maconha) fosse adotado, por exemplo, 27% dos condenados por tráfico de maconha poderiam ter sua pena revista. Se fosse adotada uma quantidade de 40 gramas de limite para consumo, 33% dos condenados poderiam ser impactados. Por outro lado, se o parâmetro fosse fixado em 100 gramas, quase metade (48% dos condenados) poderia ter a revisão de pena. Os cenários testados pelo Ipea levaram em conta três opções de parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que analisou pesquisas sobre uso de drogas no Brasil e experiências internacionais de fixação de quantidades para diferenciar tráfico e consumo. No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos poderiam ter sua pena revista caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para consumo. Se a quantidade limite fosse de 15 gramas, o percentual subiria para 37%. “Os cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal”, ressalta o estudo. As conclusões desse estudo, no entanto, não permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser soltos caso o STF adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são condenados a regime fechado ou semiaberto, explicou a BBC News Brasil a coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares. “Estamos fazendo um novo estudo para analisar especificamente qual seria o impacto no sistema prisional”, disse. Soares ressalta que um elemento que dificulta essas análises é a falta de padronização do registro das quantidades apreendidas nos processos criminais. Para identificar as quantidades apreendida com cada réu, a equipe do Ipea pesquisou diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério Pública e as sentenças dos juízes. Foi selecionada, então, “a melhor informação disponível” nesses vários documentos, em cada caso, para realizar o estudo. Por isso, uma das recomendações da pesquisa é “o estabelecimento de um protocolo nacional para padronização das informações de natureza e de quantidade de drogas nos processos criminais”. O STF está analisando um Recurso Extraordinário com repercussão geral (cuja decisão valerá para todos os casos semelhantes) que questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade. Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da droga, ele foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos na Constituição Federal. “Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar no início do julgamento. Já o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização. "O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social", sustentou.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnlyzz99xjxo
brasil
Expansão do Brics é 'sem critérios' e pode prejudicar Brasil, diz criador do termo
Criador do termo Bric (ainda sem a África do Sul), o economista britânico Jim O’Neill descreveu o anúncio de expansão do bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como "sem critério" e diz acreditar que o Brasil pode perder influência dentro do grupo. "Continuo sem saber o que os Brics pretendem alcançar, além de um simbolismo poderoso", disse O’Neill à BBC News Brasil. "Isso fica óbvio com a escolha do Irã, por exemplo. Diria que pode até tornar as coisas mais difíceis", complementou. Fim do Matérias recomendadas Os próprios países abraçaram o termo e começaram a realizar cúpulas em 2009. Depois, a África do Sul se juntou ao grupo, que passou a ser chamado Brics. Em entrevista coletiva concedida em Joanesburgo na noite desta quinta-feira, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou a minimizar o suposto teor ideológico do bloco apesar da presença, agora, de três países considerados hostis pelos Estados Unidos: Irã, Rússia e China. "São três países que não podem estar fora de qualquer agrupamento político que você queira fazer seja para discutir economia, seja pra discutir ciência e tecnologia, cultura. Essa gente tem que estar participando", disse Lula. Confira os principais trechos da entrevista de O’Neill concedida por telefone à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Como o senhor vê o anúncio de expansão do Brics, que agora contará com mais seis países (Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita)? Jim O’Neill - Ligeiramente engraçado. Essa foi a minha reação inicial. Não me parece que haja nenhum critério objetivo usado para determinar quais países seriam convidados a aderir. A impressão é que os países que pediram primeiro e se mostraram mais empolgados (à possibilidade de adesão) foram admitidos. Mas quais foram os critérios usados para esse convite? Como economista, não vejo nenhum relacionado ao tamanho da população ou da economia. Não há nenhum denominador comum entre esses seis países convidados a aderir ao grupo. Na verdade, existe a suspeita — que é também decepcionante — de que a prioridade principal foi achar países que se irritam com facilidade com o Ocidente. Não me parece particularmente sensata (a expansão). BBC News Brasil - O senhor disse recentemente não saber exatamente o que o Brics pretendem alcançar além de um “simbolismo poderoso”. O senhor tem alguma expectativa de que isso mude? O’Neill - Continuo sem saber o que os Brics pretendem alcançar, além de um simbolismo poderoso. Isso fica óbvio com a escolha do Irã, por exemplo. Diria que pode até tornar as coisas mais difíceis. A menos que estejamos prestes a descobrir na semana que vem que o Irã passará por amplas reformas. E, obviamente, dado que o Irã está tão afastado das finanças globais ocidentais, imagino que possam existir alguns problemas. Então isso apenas fortalece esse simbolismo e deixa alguém como eu um pouco surpreso. Realmente não entendo o que eles estão fazendo. BBC News Brasil - Sendo assim, o senhor acha que essa expansão poderia de alguma forma dificultar os esforços do bloco para atingir seus objetivos? O’Neill - Não era óbvio para mim, antes, o que eles estavam tentando alcançar. E agora é simplesmente ainda mais difícil. Fiquei um pouco surpreso que a Índia, em particular, tenha concordado (com a expansão). Será que a Índia vai realmente apoiar o Irã? E a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos vão realmente começar a se tornar amigos do Irã? É um tiro no escuro. BBC News Brasil - Brasil e Índia tinham resistido à proposta da China de expandir o bloco. O senhor acredita que o Brasil pode sair prejudicado? O’Neill - Compartilho dessa preocupação. Por definição, ao mais do que dobrar o número de membros do bloco, isso claramente diminuirá o papel individual de qualquer um deles, exceto a China. E se você colocar isso em um contexto latino-americano, em relação ao que falei anteriormente, por que raios a Argentina e não o México, além do fato de que a Argentina é publicamente mais "rabugenta" com o Ocidente? Me parece que eles estão se enfraquecendo como um grupo coletivo. E não sei ao certo por qual propósito, além de puro simbolismo. BBC News Brasil - Pensando daqui para frente, o que o senhor acha que deve ser o foco do bloco? O’Neill - Não tenho certeza. Realmente não tenho certeza porque é um grupo de países muito, muito estranho. Se o critério de escolha dos novos membros fosse o tamanho da economia, os países emergentes mais óbvios a serem incluídos seriam os Mint (México, Indonésia, Nigéria e Turquia). Por isso falo de simbolismo. Ao adicionar esses seis países ao bloco, os Brics não estão aumentando a sua parcela no PIB global do agronegócio, porque a maioria deles é muito pequeno, com exceção da Arábia Saudita.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ed7d1vee2o
brasil
Como Brasil se equilibra ante pressão chinesa no Brics
Nesta quinta-feira (24/8), foi confirmado oficialmente o processo de expansão do bloco. O presidente da África do Sul, anfitrião da 15ª cúpula do bloco, anunciou que Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia foram "convidados" a entrar no grupo como membros plenos a partir de 1º de janeiro de 2024. O termo "convite", segundo diplomatas, é uma formalidade técnica, uma vez que os países anunciados já haviam demonstrado interesse em entrar no bloco. O Brics é o grupo hoje formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Inicialmente, o bloco se uniu com base no fato de serem países com economias emergentes localizados no chamado Sul Global — termo usado para designar países em desenvolvimento localizados no hemisfério sul. Fim do Matérias recomendadas Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos últimos anos, a pressão feita pela China, com apoio da Rússia, pela expansão do grupo levantou dúvidas sobre se esse movimento teria como objetivo dar um caráter mais político ao bloco. As dúvidas levantadas por analistas surgem em um momento em que as relações de China e Rússia com os Estados Unidos e União Europeia passam por desgastes. A China é acusada pelos norte-americanos de práticas comerciais predatórias e de espionagem, o que o governo chinês nega. Nesse cenário, tanto o presidente Lula quanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vieram a público abordando os rumores de que o Brics caminhariam para ser um antagonista de outros grupos, como o G7, grupo dos sete países mais desenvolvidos do mundo. "A gente não quer ser contraponto ao G7. A gente não quer ser contraponto ao G20. A gente não quer ser contraponto aos Estados Unidos. A gente quer se organizar. A gente quer criar uma coisa que nunca teve, que nunca existiu”, disse Lula, durante em um programa de rádio na terça-feira (22/8). No mesmo programa, Lula voltou a abordar o assunto. "O Brics não significa tirar nada de ninguém. Significa uma organização de um polo forte, que congrega muita gente. Se entrar a Indonésia, com mais 200 milhões de habitantes, vamos ter mais da metade da população (do mundo) participando dessa organização. E isso é importante porque vai permitir que a gente tenha um certo equilíbrio nas discussões”, disse Lula, abordando a possibilidade de a Indonésia ingressar no bloco, o que não foi confirmado. Em entrevista coletiva concedida em Joanesburgo na noite desta quinta-feira, Lula voltou a minimizar o suposto teor ideológico do bloco apesar da presença, agora, de três países considerados hostis pelos Estados Unidos: Irã, Rússia e China. "São três países que não podem estar fora de qualquer agrupamento político que você queira fazer seja para discutir economia, seja pra discutir ciência e tecnologia, cultura. Essa gente tem que estar participando", disse Lula. Ao falar sobre o apoio do Brasil à entrada da Argentina, Lula disse, novamente, que os líderes dos Brics não levaram em consideração a ideologia política dos países para decidir pelo seu ingresso no bloco. A resposta foi em referência à possibilidade de que o país possa ser comandado nos próximos anos por um governo contrário ao ingresso no grupo. "Quando houver uma eleição e houver a disputa, o Brasil, enquanto estado, vai negociar com o estado argentino de quem seja o presidente [...] A gente não está colocando a questão ideológica dentro dos brics. A gente está colocando a importância geopolítica de cada Estado", afirmou o presidente. A Indonésia, que era apontada como uma das favoritas a entrar no bloco, entraria em um segundo momento, segundo avaliação de alguns negociadores. No mesmo dia, Fernando Haddad seguiu a mesma linha adotada por Lula. Ao falar para ministros e empresários reunidos em um fórum empresarial durante a Cúpula do Brics, Haddad disse que o bloco não deveria ser interpretado como um antagonista de outros blocos. "Acreditamos que os Brics têm uma grande contribuição a dar. Brasil, África do Sul, Índia, China e Rússia podem, cada um a partir da sua perspectiva, oferecer ao mundo uma visão que seja coerente com os seus propósitos. E que não signifique nenhum tipo de antagonismo a outros fóruns importantes dos quais nós mesmos participamos”, afirmou o ministro. Professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri-USP), Marília Souza Pimenta disse à BBC News Brasil que a reunião deste ano pode consolidar a liderança e a condução geopolítica do grupo pela China. "Esta reunião pode ser decisiva, pois pode consolidar sua expansão e, assim, a liderança absoluta da China no Bloco, como também a concretização do caráter mais geopolítico e ideológico do bloco", disse a professora à BBC News Brasil, antes do anúncio que confirmou o processo de expansão. Diplomatas e membros do governo brasileiro ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmam que a China não estaria fazendo nenhum movimento concreto para transformar o Brics em um bloco de oposição ao chamado Ocidente. Eles afirmam, no entanto, que o temor de que essa interpretação possa ser disseminada levou Lula e Haddad a se manifestarem sobre isso. Eles dizem que um Brics como bloco de oposição a potências como os Estados Unidos ou a Europa Ocidental não interessa ao Brasil. Segundo eles, apesar de o Brasil apoiar o fortalecimento do Brics e de o presidente Lula fazer críticas constantes a instituições como a ONU e o G7, a estratégia do país continuaria sendo a de manter boas relações com Europa e Estados Unidos. De acordo com eles, essa posição estaria em linha com a tradição diplomática do país. Nos últimos anos, um dos parceiros do Brasil na tentativa de conter a condução chinesa no Brics vinha sendo o governo da Índia. O país tem disputas territoriais com a China e é um importante parceiro político e econômico dos Estados Unidos na Ásia. Inicialmente, o Brasil e a Índia vinham apresentando resistência à expansão desejada por russos e chineses. Nos últimos dias, no entanto, os governos brasileiro e indiano passaram a dar demonstrações de que não vetaria a entrada de novos integrantes.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gw3eeqyg1o
brasil
O que se sabe sobre operação policial envolvendo filho 04 de Bolsonaro
Uma operação policial contra suspeitos de crimes de falsidade ideológica, associação criminosa, estelionato, crimes contra a ordem tributária e lavagem de dinheiro estaria cumprindo mandados de busca e apreensão em dois endereços que seriam de Jair Renan Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, na manhã desta quinta-feira (24/6), segundo a imprensa brasileira. Em nota, a polícia civil do Distrito Federal deu detalhes sobre a operação, batizada Operação Nexum, mas não citou os nomes dos alvos da empreitada. Segundo a TV Globo, a polícia civil do Distrito Federal cumpre mandados de busca e apreensão em dois imóveis ligados a Jair Renan, conhecido como "filho 04" do ex-presidente, em Brasília e em Balneário Camboriú (SC). A defesa de Jair Renan confirmou que houve mandado de busca e apreensão na residência de Jair Renan em Balneário Camboriú. E incluiu que foram apreendidos um aparelho celular, um HD e papéis com anotações particulares. Esclareceu, ainda, que não houve condução de Renan "para depoimento ou qualquer outra medida". Disse, ainda, que "Renan informou estar surpreso, mas absolutamente tranquilo com o ocorrido". Fim do Matérias recomendadas Em nota, a polícia civil do Distrito Federal disse que cumpriu no total dois mandados de prisão preventiva e cinco mandados de busca e apreensão. “O principal alvo da operação e mentor do esquema coleciona registros criminais por falsificação de documentos, estelionato, organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, uso de documento falso e disparo de arma de fogo e, no ano de 2023, já foi alvo de duas operações da PCDF”, informou a corporação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a TV Globo, este seria o instrutor de tiro e amigo de Jair Renan, Maciel Carvalho, que já havia sido preso em janeiro e foi alvo destas operações policiais neste ano. A BBC News Brasil ainda não confirmou as informações publicadas por veículos nacionais sobre Maciel Carvalho. As duas operações que deram origem aos mandados desta quinta-feira são: Ainda de acordo com nota enviada pela polícia civil, a nova investigação identificou "um esquema de fraudes com crimes de estelionato, falsificação de documentos, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, com o objetivo final de blindar o patrimônio dos envolvidos". A polícia diz que o grupo investigado teria criado um “testa de ferro” ou “laranja” para "ocultar o verdadeiro proprietário das empresas de fachada ou empresas “fantasmas”, utilizadas pelo alvo principal e seus comparsas". Participam da operação 35 policiais das polícias civis do Distrito Federal e do Estado de Santa Catarina.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9ejykmnk43o
brasil
Expansão do Brics: bloco anuncia 6 novos membros
O Brics, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, anunciou nesta quinta-feira (24/8) um processo de expansão do bloco. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia foram "convidados" a entrar no grupo como membros plenos a partir de 1º de janeiro de 2024, segundo o anúncio do presidente da África do Sul, anfitrião da 15ª cúpula do bloco, que acontece em Joanesburgo. O termo "convite", segundo diplomatas, é uma formalidade técnica, uma vez que os países anunciados já haviam demonstrado interesse em entrar no bloco. Ainda não há definição se o nome do bloco, formado pelas iniciais dos atuais cinco membros, irá mudar com a sua expansão. Fim do Matérias recomendadas Analistas avaliam que a iniciativa tem como objetivo diminuir o isolamento dos dois países em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As relações dos dois países com norte-americanos e europeus ocidentais estão desgastadas por eventos como a guerra na Ucrânia e acusações de espionagem supostamente praticada pelos chineses, que Pequim nega. O Brasil, por outro lado, insistia oficialmente para que, em vez de uma expansão acelerada do grupo, que o Brics adotasse critérios a partir dos quais fosse feita a avaliação dos pedidos de adesão. A posição, no entanto, foi mudando ao longo dos últimos dias. Nesta semana, antes do anúncio oficial, membros do governo falavam que um grupo entre três e seis países poderia ser incluído no Brics. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a defender, publicamente, a entrada de alguns dos países que acabaram de entrar para o bloco — entre eles, a Argentina e Emirados Árabes Unidos. O processo de expansão e escolha dos futuros novos membros dos Brics envolveu meses de negociação e reuniões demoradas durante a cúpula em Joanesburgo. Em princípio, Brasil e Índia não eram favoráveis ao aumento do grupo, que era liderado, principalmente, pela China e pela Rússia. Diante da pressão pela expansão, diplomatas e membros do governo brasileiro passaram a negociar com os demais países do bloco os termos nos quais essa adesão aconteceria. Os negociadores brasileiros passaram a tentar incluir na declaração final da cúpula uma menção à pretensão do país de reformular o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e virar um de seus membros permanentes (ainda que sem poder de veto), uma pauta histórica da diplomacia brasileira. O tema, no entanto, é particularmente sensível para os chineses, que são membros permanentes e não vinham demonstrando apoio à tentativa do Brasil de integrar o grupo hoje composto por chineses, Estados Unidos, Rússia, França e Reino Unido. Ao final, diplomatas brasileiros comemoraram a inclusão de uma menção à pretensão brasileira de ingressar no Conselho de Segurança da ONU na declaração final da cúpula. O texto, no entanto, não cita explicitamente a inclusão do Brasil como membro permanente. Ele diz o seguinte: "Apoiamos uma ampla reforma da ONU, incluindo o seu Conselho de Segurança com uma visão para torná-lo mais democrático, representativo, efetivo e eficiente e para incluir a representação de países em desenvolvimento entre os membros do conselho [...] e apoiamos as três legítimas aspirações de países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo Brasil, Índia e África do Sul, para desempenhar um papel maior em assuntos internacionais, nas Nações Unidas em particular, incluindo o seu Conselho de Segurança", diz um dos parágrafos da declaração. Diplomatas brasileiros ouvidos em caráter reservado afirmam que apesar de a menção ser aparentemente vaga, a inclusão da pretensão brasileira de integrar o conselho é vista como uma vitória diante da histórica resistência da China em relação ao assunto. A seguir, confira os perfis dos seis países anunciados: O Egito é um país de maioria muçulmana localizado no norte da África. Sua população está estimada em 110 milhões de habitantes. De acordo com o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do país era de US$ 3,6 mil em 2021, ano do dado mais recente. A título de comparação, a renda per capita brasileira é de US$ 8,92 mil (R$ 44,5 mil). De acordo com o Banco Mundial, a economia egípcia cresceu 5,8% em 2022. O país é comandado desde 2013 pelo coronel do Exército Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, que assumiu o poder após uma os militares tomarem o controle do país após uma série de manifestações ocorridas em países islâmicos que ficou conhecida como “Primavera Árabe”. O país é alvo de críticas de entidades que defendem os direitos humanos, como a Anistia Internacional. Em seu relatório mais recente, a entidade acusa o governo egípcio de desrespeitar os direitos de oposicionistas, promovendo prisões arbitrárias e julgamentos sumários que incluem a pena de morte. De acordo com a organização não-governamental Freedom House, que avalia o nível de liberdade de dezenas de países em todo o mundo, o Egito é considerado um país “não-livre”. Em uma escala que vai de 0 a 100, o país atinge 18 pontos. Nessa escala, 0 é indica o menor nível de liberdade e 100 o maior. A chegada do Egito como membro efetivo dos Brics acontece dois anos após o país ter sido aceito como integrante do “Banco do Brics”. Arábia Saudita era apontada como um dos países com mais chances de ingressar no Brics. O país tem 35 milhões de habitantes e uma renda per capita de US$ 23 mil (R$ 115 mil) por ano, segundo o Banco Mundial. A título de comparação, a renda per capita brasileira é de US$ 8,92 mil (R$ 44,5 mil). Dados oficiais apontam que a economia do país foi uma das que mais cresceu no mundo em 2022, com uma taxa de 7,3%. Ainda segundo o Banco Mundial, o crescimento foi fortemente ancorado nas receitas do petróleo, que tiveram alta ao longo do ano passado. A expectativa para este ano, no entanto, é de que o crescimento desacelere, também refletindo a queda nos preços do petróleo. O país tem o endosso da China e o fato de ser um dos países mais ricos em reservas de petróleo no mundo. O Brasil, oficialmente, não vetou a entrada de nenhum dos novos integrantes. De acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a Arábia Saudita tem reservas estimadas em 267 bilhões de barris de petróleo, atrás apenas da Venezuela, com 303 bilhões. A Arábia Saudita é um dos principais parceiros dos Estados Unidos no Oriente Médio. Nesse contexto, uma aproximação do bloco com um parceiro americano estratégico poderia ser vista como um contraponto à hegemonia de Washington na região. O país é comandado pela família Saud há décadas. Nos últimos anos, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman vem sendo apontado como o real líder do país. Ele vem sendo criticado internacionalmente por alegadas violações de direitos humanos e é apontado como um dos responsáveis pelo assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em 2018. Ainda no campo dos direitos humanos, o país é alvo de críticas de entidades como a organização não-governamental Anistia Internacional. Em 2022, a entidade acusou o país de promover julgamentos sumários de oposicionistas e de desrespeitar direitos fundamentais de mulheres. Segundo o relatório, na Arábia Saudita, as mulheres precisam de uma autorização expressa de um homem para se casarem. Em agosto deste ano, guardas de fronteira sauditas foram acusados de assassinato em massa de migrantes ao longo da fronteira com o Iêmen, segundo um relatório divulgado pela Human Rights Watch. Relatos de extensos assassinatos perpetrados pelas forças de segurança sauditas ao longo da fronteira norte vieram à tona pela primeira vez em outubro passado, quando especialistas da ONU comunicaram isso ao governo do país. O governo saudita afirmou que leva as acusações a sério, mas rejeitou a descrição da ONU de que os assassinatos foram sistemáticos ou de grande proporção. De acordo com a Freedom House, o país é considerado um país “não-livre”, com uma pontuação de 8 em uma escala que vai de 0 a 100. O país tem uma população estimada de 9,35 milhões de habitantes e fica no Oriente Médio. A renda per capita é de US$ 44,3 mil (R$ 220,7 mil) por ano e era apontado como um dos favoritos a ingressar no grupo. O presidente do país, Mohammed bin Zayed Al Nahyan, é um dos mais de 40 líderes de fora do Brics que foi convidado a participar do encontro com chefes do bloco e que confirmou sua ida a Joanesburgo. Assim como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos têm sua economia fortemente baseada nas receitas petrolíferas. A aproximação do país com o Brics começou há alguns anos. Em 2021, por exemplo, o país foi aceito como novo membro do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na senha em inglês), instituição criada pelo Brics em 2014 e que financia projetos nos países do bloco. Além dos cinco fundadores do bloco, o banco agora conta com a adesão dos Emirados Árabes, Bangladesh e Egito. O Uruguai também já pediu para fazer parte do banco. Negociadores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o país contava com o apoio da China. Segundo eles, o fato de o país já ser um membro do "banco do Brics" era um ponto favorável à candidatura do país. Segundo a Freedom House, o país árabe também é considerado “não-livre”, atingindo 18 pontos de 100 possíveis. Apesar da reticência do corpo diplomático brasileiro em relação à inclusão de novos membros no Brics, Lula defendeu o ingresso do país. "Obviamente eu não decido sozinho, precisa de todos os países decidindo isso", disse o presidente brasileiro em conversa com correspondentes estrangeiros. A Argentina é o único país da América Latina a ser admitido nessa rodada de novas adesões. O país tinha o apoio explícito do presidente Lula. A Argentina tem uma população estimada de 45 milhões de habitantes. O PIB per capita do país, segundo o Banco Mundial, é de US$ 10,6 mil. De acordo com a Freedom House, a Argentina é considerado um país “livre”. Com 85 pontos, o país tem a terceira maior pontuação na América do Sul. De acordo com o governo do país, a economia argentina cresceu 5,2% em 2022, o que coloca o país como um dos que mais cresceu na América do Sul. Apesar disso, a Argentina vive uma crise econômica há alguns anos com altas taxas de inflação. Em agosto deste ano, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec) anunciou que a inflação atingiu 113,4% no acumulado de 12 meses. O país é governado pelo peronista Alberto Fernández, de orientação política de centro-esquerda. A Argentina, segundo negociadores brasileiros, corria por fora entre os países que disputavam uma vaga no Brics. Um dos fatores que eram vistos como empecilho à adesão do país ao bloco era a incerteza sobre o futuro político da Argentina. O país terá eleições presidenciais em outubro deste ano e o atual presidente não disputa a reeleição. O Irã, localizado no Oriente Médio, tem aproximadamente 87 milhões de habitantes. A maioria da população é muçulmana da linha xiita. Segundo o Banco Mundial, a renda per capita do país é de US$ 4,9 mil. A economia do país é fortemente ancorada na renda petroleira. De acordo com o Banco Mundial, o PIB iraniano cresceu 2,7% em 2022 e a expectativa é de que ele cresça 2% neste ano. A desaceleração seria resultado da baixa nos preços do petróleo. O político mais poderoso do país é o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã. Ele é, ao mesmo tempo, líder político e religioso do país. Abaixo dele, está o presidente Ebrahim Raisi, eleito em agosto de 2021. De acordo com a organização não-governamental Freedom House, o Irã é considerado um país “não livre”. No ranking que vai de 0 a 100, o país tem nota 12. Relatório da Anistia Internacional alega que o governo vem violando direitos humanos no país. Um dos exemplos teria sido o uso de munição letal contra manifestantes que protestavam por mais liberdade no país em 2022. O país também é alvo de sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos por conta da política nuclear do país. O governo norte-americano alega que o Irã mantém um programa nuclear que pode ser usado para a fabricação de armas de destruição em massa, o que o governo iraniano nega. Negociadores brasileiros com quem a BBC News Brasil conversou nos últimos dias apontam que o país não era considerado um dos favoritos a obter acesso ao Brics, mas que sua candidatura não sofreria veto do Brasil. A Etiópia é o segundo país mais populoso do continente africano, com 120 milhões de habitantes, atrás apenas da Nigéria. A chegada da Etiópia ao grupo aconteceu, segundo diplomatas, por conta do apoio da África do Sul. O país será a segunda nação da África Sub-Sahariana a participar do bloco. Segundo relatório do Banco Mundial, o país tem uma das taxas de crescimento econômico mais aceleradas do continente africano. Entre 2021 e 2022, a economia do país cresceu 6,4%. Apesar disso, ainda segundo o Banco Mundial, o PIB per capita do país ainda é considerado baixo: US$ 920,08. É o menor valor entre os membros do Brics. De acordo com a Freedom House, a Etiópia também é considerada um país “não-livre”, com uma pontuação de 21 em uma escala que vai de 0 a 100.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gz5nzlny5o
brasil
Expansão do Brics: 'Você escolhe os países e depois define os critérios', diz Amorim
Ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim descartou a necessidade de critérios objetivos para escolher novos integrantes para o Brics. "Você escolhe os países e aí depois define os critérios", disse Amorim a jornalistas em Joanesburgo, na África do Sul, onde acontece a 15ª Cúpula do Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A declaração de Amorim vai na contramão do que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e membros da diplomacia brasileira vinham dizendo publicamente sobre o possível aumento no número de membros do grupo. Na terça-feira (22/8), por exemplo, Lula disse que seria necessário estabelecer regras para a adesão de novos integrantes. Fim do Matérias recomendadas "Temos que ter critério para manter o que reuniu o grupo em primeiro lugar: países em desenvolvimento de distintas regiões do mundo que não encontravam, nas instituições globais do pós-guerra, o espaço correspondente que seria proporcional ao tamanho de suas economias e populações. É essencial que os novos países membros estejam de acordo com esta questão para uma governança global mais representativa e equilibrada", disse Lula em entrevista concedida ao jornal sul-africano Sunday Times publicada no domingo (20/8). Na semana passada, integrantes do Ministério das Relações Exteriores disseram a jornalistas em Brasília que o Brasil negociava o estabelecimento de critérios específicos a partir dos quais os pedidos de adesão ao bloco seriam avaliadas. Entre esses critérios, estaria a necessidade de que os novos membros fossem favoráveis à reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, uma pauta histórica da diplomacia brasileira. "Nessa ampliação, é importante que se fortaleça o ímpeto reformista do Brics, inclusive em matéria de reforma do conselho de segurança", disse o secretário para as regiões da Ásia e Oceano Pacífico do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Saboia, em conversa com jornalistas na semana passada à qual a BBC News Brasil esteve presente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O movimento de expansão do Brics vem sendo liderado pela China e pela Rússia. Especialistas avaliam que a iniciativa é uma forma de os dois países evitarem o isolamento gerado pelo tensionamento das suas relações com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental. Os chineses são acusados pelos americanos de práticas comerciais predatórias e espionagem, o que o governo chinês nega. A Rússia vem sendo alvo de sanções impostas por países da Europa Ocidental e pelos Estados Unidos por conta da invasão russa à Ucrânia, iniciada em 2022. Inicialmente, o Brasil e a Índia vinham apresentando resistência à expansão desejada por russos e chineses, mas nos últimos dias, o governo Lula passou a dar demonstrações de que não vetaria a entrada de novos integrantes. Fontes ligadas às negociações para a expansão do grupo com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado nos últimos dois dias apontam a expectativa de que cinco países devem ser anunciados como novos membros do bloco: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Argentina e Irã. A Indonésia, que era apontada como uma das favoritas a entrar no bloco, entraria em um segundo momento, segundo esse entendimento. Os líderes do bloco terão mais reuniões sobre o assunto nesta quarta-feira (23/8), segundo dia da cúpula.
2023-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51r41y33v9o
brasil
Quais países despontam como favoritos para entrar no Brics?
O movimento é liderado pela China, que, segundo analistas, usa a influência de ser a segunda maior economia do mundo para ampliar o número de membros do grupo. Apesar de países como Brasil e Índia terem resistido a esse processo nos últimos anos, observadores avaliam que as chances de que a expansão seja finalmente anunciada é maior agora do que em anos anteriores — não só pela pressão chinesa, mas também pela adesão da Rússia à proposta. Ambos os países veriam no bloco uma alternativa para driblar um possível isolamento causado pela deterioração de suas relações com os Estados Unidos, apontam analistas. Dentro da diplomacia brasileira, o temor era o de que um aumento no número de membros diluiria a influência do país no grupo. Por isso, o Brasil vinha defendendo que, antes de anunciar novos membros, o bloco deveria estabelecer critérios para essa expansão. Fim do Matérias recomendadas Um membro do governo brasileiro ouvido em caráter reservado disse à BBC News Brasil que a pressão chinesa estaria acelerando esse processo. A decisão (por expandir ou não o bloco) deverá ser tomada durante uma reunião reservada entre os chefes de Estado do grupo marcada para a noite de terça-feira (no horário sul-africano), segundo fontes do governo brasileiro. Apenas os líderes e dois assessores de cada país participarão do encontro. Mas a decisão, caso seja tomada, só deverá ser tornada pública nos dias seguintes. Esta não seria a primeira ampliação do bloco. O Brics foi criado em 2006 e, inicialmente, não era formado pela África do Sul. O país se juntou ao grupo no primeiro movimento de expansão, em 2010. Atualmente, os países do Brics representam 40% da população mundial e 26% de toda a riqueza gerada no planeta, com um produto interno bruto de aproximadamente US$ 26 trilhões (R$ 130 trilhões). Segundo o Itamaraty, 22 países fizeram um pedido formal para aderir ao bloco. Entre eles, estão nações de diferentes continentes e regimes políticos como Arábia Saudita, Argentina e Argélia. Três despontam como favoritos para serem os mais novos integrantes do Brics, segundo negociadores e membros do governo brasileiro ouvidos pela BBC News Brasil, enquanto outros têm chances, mas correm por fora. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Negociadores apontam em caráter reservado que a Arábia Saudita é um dos que têm mais chances de entrar para o Brics entre todos os candidatos. O país tem 35 milhões de habitantes e uma renda per capita de US$ 23 mil (R$ 115 mil) por ano, segundo o Banco Mundial. A título de comparação, a renda per capita brasileira é de US$ 8,92 mil (R$ 44,5 mil). Dados oficiais apontam que a economia do país foi uma das que mais cresceu no mundo em 2022, com uma taxa de 7,3%. Ainda segundo o Banco Mundial, o crescimento foi fortemente ancorado nas receitas do petróleo, que tiveram alta ao longo do ano passado. A expectativa para este ano, no entanto, é de que o crescimento desacelere, também refletindo a queda nos preços do petróleo. A seu favor, o país tem o endosso da China e o fato de ser um dos países mais ricos em reservas de petróleo no mundo. De acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a Arábia Saudita tem reservas estimadas em 267 bilhões de barris de petróleo, atrás apenas da Venezuela, com 303 bilhões. Tanta riqueza no subsolo se traduz em dinheiro em caixa — e obter mais recursos financeiros é uma das principais preocupações de negociadores do bloco, especialmente os do Brasil, conforme apurou a BBC News Brasil. Os brasileiros tentam conciliar o movimento de expansão do Brics à ampliação do número de membros do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB na sigla em inglês), também conhecido como "Banco do Brics". O banco foi criado em 2015 e tem oito membros. Além dos cinco integrantes originais do bloco, fazem parte Bangladesh, Emirados Árabes Unidos e Egito. O banco financia projetos de infraestrutura e saúde em seus países membros e vem sendo apontado como uma forma de driblar supostos entraves impostos de instituições multilaterais tradicionais como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) a países em desenvolvimento. Nos últimos anos, porém, o banco vem sofrendo para obter novas fontes de recursos. Para além dos motivos econômicos, um ponto a favor da entrada da Arábia Saudita é o fator geopolítico. A Arábia Saudita é um dos principais parceiros dos Estados Unidos no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, China e Rússia estão com suas relações com os norte-americanos abaladas há alguns anos. Nesse contexto, uma aproximação com um parceiro americano estratégico poderia ser vista como um enfraquecimento da hegemonia de Washington na região. O país é comandado pela família Saud há décadas. Nos últimos anos, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman vem sendo apontado como o real líder do país. Ele é alvo de críticas da comunidade internacional por alegadas violações de direitos humanos e é apontado como um dos responsáveis pelo assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em 2018. Do lado brasileiro, não haveria resistência à entrada dos sauditas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aliás, chegou a defender a entrada do país no bloco em uma conversa com correspondentes estrangeiros no início de agosto. "Acho extremamente importante”, disse Lula, que, na mesma ocasião em que se mostrou favorável à entrada de mais um dos países tidos como "favoritos" a ingressar no bloco: os Emirados Árabes Unidos. O país tem uma população estimada de 9,35 milhões de habitantes e também fica no Oriente Médio. A renda per capital é de US$ 44,3 mil (R$ 220,7 mil) por ano. O presidente do país, Mohammed bin Zayed Al Nahyan, é um dos mais de 40 líderes de fora do Brics que foi convidado a participar do encontro com chefes do bloco e que confirmou sua ida a Joanesburgo. Assim como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos têm sua economia fortemente baseada nas receitas petrolíferas. A aproximação do país com o Brics começou há alguns anos. Em 2021, por exemplo, o país foi aceito como novo membro do "banco do Brics". Negociadores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o país contaria com o apoio da China e não teria o veto explícito de nenhum dos outros membros do grupo. Segundo eles, o fato de o país já ser um membro do "banco do Brics" é um ponto a favor, uma vez que isso representaria um ingresso extra de recursos na instituição. Apesar da reticência do corpo diplomático brasileiro em relação à inclusão de novos membros nos Brics, Lula defendeu o ingresso do país. "Obviamente eu não decido sozinho, precisa de todos os países decidindo isso", disse o presidente brasileiro na conversa com correspondentes estrangeiros. Outro país mencionado por negociadores brasileiros como um forte candidato ao Brics é a Indonésia. O país de maioria islâmica localizado no Sudeste Asiático é um dos mais populosos do mundo, com 273 milhões de habitantes e uma renda per capita de US$ 4,3 mil por ano (R$ 21,4 mil), segundo o Banco Mundial. Dados oficiais apontam que a economia indonésia vem crescendo a taxas aceleradas nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, a taxa estimada foi de aproximadamente 5,3%, segundo o Banco Mundial. Para 2023, a estimativa é de que a economia cresça 4,9%. O presidente Joko Widodo deverá participar do evento na condição de convidado. Ainda de acordo com membros do governo brasileiro ouvidos em caráter reservado, a Indonésia teria demonstrado menos interesse em participar do bloco que outros países (como a Arábia Saudita), mas sua eventual inclusão é vista como positiva, especialmente, pela China. Outros países que também demonstraram interesse em participar do Brics estariam, nas palavras dos negociadores brasileiros, "correndo por fora" na busca por um lugar no bloco. Um deles é o Irã, que, nos últimos meses, segundo os negociadores, teria feito uma forte campanha por isso. O país tem a seu favor o fato de manter boas relações com todos os países do bloco e ter aceito a mediação chinesa em um acordo que reestabeleceu as relações diplomáticas com a Arábia Saudita, tida como arquirrival iraniana por décadas. Por outro lado, apesar de os países terem voltado a se relacionar diplomaticamente, o histórico de animosidade entre eles é visto como um elemento que poderia, nas palavras de um negociador brasileiro, "incomodar" os sauditas, o que faz com que a candidatura iraniana seja vista com reservas. A Argentina é outro candidato que desperta atitudes semelhantes no bloco. O país comandado pelo presidente Alberto Fernández demonstrou seu interesse em fazer parte do Brics e contou até com o apoio do presidente Lula. Apesar disso, fatores econômicos e políticos fazem com que as chances argentinas sejam limitadas. No campo econômico, o país vive uma crise de inflação alta, falta de liquidez em dólares e aumento da pobreza. Nas prévias das eleições argentinas, o candidato de direita radical Javier Milei, oposição ao atual governo, foi o candidato mais votado, com 30% dos votos.
2023-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72ewlwxgg1o
brasil
Por que preço do azeite de oliva é recorde – e não deve cair
Num restaurante português na região central de São Paulo, o carro-chefe do cardápio é o bacalhau à lagareiro, servido com batatas, brócolis, ovo cozido, azeitonas e alho, e mergulhado em quase meio litro de azeite. Pelas contas do proprietário Vitor Manuel Ferreira Pires, de 54 anos e nascido em Miranda do Douro, na região portuguesa de Trás-os-Montes, a casa utiliza em seus pratos cerca de 200 litros de azeite de oliva por mês. Assim, o empresário tem sentido no dia-a-dia a alta global de preços do azeite. "Para nós, o azeite aumentou em torno de 30% nos últimos quatro ou cinco meses, estamos pagando cerca de R$ 150 por galão de três litros, portanto quase R$ 50 o litro", diz Pires, dono do restaurante O Mirandês. No varejo, os preços estão ainda mais salgados: consumidores relatam nas redes sociais encontrar o azeite em embalagens de 500 ml a R$ 30 ou até R$ 40 nos supermercados. Fim do Matérias recomendadas Segundo levantamento da empresa de inteligência de mercado Horus, a partir do acompanhamento de mais de 40 milhões de notas fiscais por mês, o preço médio do azeite virgem nos supermercados brasileiros estava em R$ 20 em julho de 2021, subindo a R$ 25 em igual mês de 2022 e a R$ 30 este ano. Trata-se de uma alta de 50% do preço médio do produto em dois anos, comparado a uma inflação acumulada de 15% neste período, segundo o IPCA do IBGE (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E aos amantes do azeite, uma má notícia: não há perspectiva de melhora nos preços do produto à frente. Com estoques globais nas mínimas históricas, projeções ruins para a próxima safra na Europa e a expectativa de avanço das mudanças climáticas, os preços altos devem ser o "novo normal", dizem analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Em agosto, o preço do azeite na região da Andaluzia, na Espanha – país responsável por mais de 40% da produção global do óleo – está em 8,20 euros (R$ 44,60) por quilo, mais do que o dobro (+116%) dos 3,80 euros por quilo de igual mês de 2022 e recorde histórico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na Itália, os preços do azeite estão em alta de 98% em relação ao ano passado e, na Grécia, o avanço é de 114%, segundo levantamento da empresa de inteligência de mercado e preços de commodities Mintec. Os três países, além de Portugual, produzem juntos 66% de todo o azeite do mundo, segundo dados do Conselho Oleícola Internacional (IOC, na sigla em inglês), organização que reúne os países produtores de azeitona e azeite de oliva. "Para explicar a alta nos preços do azeite é preciso voltar à safra passada", diz Kyle Holland, analista de óleos vegetais da Mintec, à BBC News Brasil. "Os principais países exportadores de azeite tiveram um período de crescimento [das azeitonas, os frutos das oliveiras] muito, muito seco. As árvores não tiveram umidade suficiente e muitas delas não produziram nenhum fruto", relata Holland. A Espanha, por exemplo, produz normalmente entre 1,3 e 1,5 milhão de toneladas métricas de azeite por ano, observa o analista – cada tonelada métrica equivale a 1.000 quilos. Mas, na safra 2022/2023, estima-se que o país tenha produzido apenas 610 mil toneladas do óleo, segundo Holland. A situação dos olivais da Espanha é tal que, em maio, o bispo Sebastián Chico Martínez, da cidade de Jaén, na Andaluzia, liderou uma procissão religiosa onde os fiéis clamaram aos céus por chuva – a província de Jaén tem mais de 60 milhões de oliveiras e produz 40% de todo o azeite espanhol. Uma procissão pedindo chuva não acontecia na região desde 1949, segundo a imprensa local. "Sem água, não há azeitona, e sem azeitona, a província sofre", disse o bispo à época, segundo o jornal espanhol El País. Com a fraca safra, os estoques de azeite na Espanha eram estimados pela Mintec em 205 mil toneladas em junho, um baixo patamar sem precedentes. "Não estamos falando apenas do azeite de alta qualidade, mas de todo o azeite que está nas mãos dos produtores. Então há uma preocupação de que, com o passar do ano e até que comece a próxima safra [em outubro], os estoques de azeite possam chegar a zero na Espanha", diz Holland. Tomy Rohde, um agricultor andaluz popular nas redes sociais, também expressou em junho seu temor de esgotamento dos estoques espanhóis de azeite nos próximos meses. "De setembro a outubro costuma haver meio milhão de toneladas de azeite na reserva, porque a Espanha, além de produzir quase metade do azeite do mundo, e da melhor qualidade que existe, também importa ao mesmo tempo que exporta", disse Rhode, em vídeo publicado nas redes. "O ritmo de saída mensal de azeite das cooperativas de prensa e envase é maior do que sabemos que temos de azeite produzido este ano", acrescentou. "Assim, acontece algo que nunca aconteceu na história: não sabemos se vamos chegar a setembro-outubro com azeite na Espanha. Veja a loucura que está acontecendo." Com os problemas climáticos nos principais países produtores da Europa, o mercado se voltou para produtores alternativos, como Tunísia, Turquia, Marrocos e Argélia. No entanto, diante da escassez global, a Turquia anunciou em agosto a proibição da exportação de azeite de oliva até novembro, quando começa a próxima colheita, com objetivo de controlar a alta de preços no mercado interno. "Isso aumentou a pressão sobre o mercado, tornando mais difícil agora obter o óleo dos países alternativos", diz Holland, da Mintec. Mas as perspectivas negativas para os preços do azeite não param por aí, alerta o analista. "O clima continua pouco favorável na Espanha e na maioria dos países europeus. Então a expectativa para a próxima safra espanhola – que vai de outubro até fevereiro – é de que ela seja novamente muito fraca, com alguns agentes do mercado falando em uma produção máxima de 700 mil toneladas métricas, novamente abaixo da média histórica." O Brasil é o segundo maior importador de azeite do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e à frente de Japão, Canadá, China e Austrália – os seis países e a União Europeia (um bloco de países) representam juntos quase 80% das importações globais do produto, segundo o Conselho Oleícola Internacional. Ainda conforme o organismo internacional, o país importava antes da crise atual pouco mais de 100 mil toneladas métricas de azeite por ano, ou cerca de 100 milhões de litros. A produção nacional de azeite deve chegar a pouco mais de 705 mil litros em 2023, segundo dados do Ibraoliva (Instituto Brasileiro de Olivicultura), entidade que reúne os produtores brasileiros de azeitonas e azeite de oliva. Assim, apesar de crescente, a produção nacional de azeite não chega a 1% do consumo local do produto, o que torna o mercado brasileiro bastante suscetível às variações de preços globais. "Até julho, foram importadas 39 mil toneladas de azeite de oliva extra virgem, isso representa menos 20% em relação a igual período do ano anterior", diz Rita Bassi, presidente da Oliva (Associação Brasileira de Produtores, Importadores e Comerciantes de Azeite de Oliveira), entidade que reúne as principais empresas do setor, como Gallo, Andorinha, Borges, Cocinero, Cargill, entre outras. "Além da importação menor, o preço médio de importação esse ano está 34% maior, então obviamente não tem como não ter um aumento de preço no produto", diz a executiva. "As empresas estão fazendo todos os esforços para não colocar no preço todo esse problema mundial. Elas estão segurando [reajustes], mas obviamente não dá para fazer isso na sua totalidade e durante muito tempo", acrescenta. Segundo a presidente da associação, uma das estratégias das empresas para se adaptarem ao cenário de preços mais altos tem sido oferecer aos consumidores embalagens menores, a preços mais acessíveis. Bassi alerta, porém, para um problema decorrente da alta de preços: o aumento da venda de azeites adulterados no país. "Quando há um cenário de escassez da oferta e aumento do preço da matéria-prima, aparecem os oportunistas e a fraude aumenta muito", afirma a executiva. "Portanto, recomendo aos consumidores: cuidado com a marca que você compra, evite marcas desconhecidas. Fique atento ao preço, pois milagres não existem. E tente aproveitar as promoções no varejo das marcas que você já conhece e confia." Enquanto o azeite fica cada vez mais caro, o oposto acontece com o óleo de soja, que registra queda de preços de 37% no acumulado de 12 meses até julho, segundo o IBGE. "Com a safra recorde, o preço do óleo de soja no mercado local vem baixando e puxando os demais [óleos vegetais] para baixo", diz Laura Pereira, especialista em óleo de girassol e azeite de oliva da Aboissa Commodity Brokers. "Temos milho, girassol e canola, que são produtos mais premium, e mesmo eles têm acompanhado a variação do óleo de soja", observa a analista. Segundo Pereira, essa combinação de fatores pode levar os brasileiros a reduzirem o consumo de azeite, que já é baixo na comparação internacional. Segundo o Conselho Oleícola Internacional, os brasileiros consomem 0,4 kg de azeite por pessoa por ano, comparado a 11,5 kg na Grécia, 10,6 kg na Espanha e 7,5 kg na Itália, os maiores consumidores de azeite per capita do mundo. "Essa variação tão grande [de preços do azeite e do óleo], num país de terceiro mundo com uma cultura de consumo de soja, vai fazer com que a gente segmente mais [o consumo de azeite] entre as classes sociais", diz Pereira. "Vamos ter mais gente consumindo óleo de soja", acredita a analista. "Mesmo para os óleos de milho, canola e girassol, já está havendo essa substituição. Se isso acontece com produtos que são mais próximos em preço [ao óleo de soja], imagina com o azeite de oliva, que hoje está passando dos R$ 30 na gôndola." O caso do azeite de oliva, afetado pela falta de chuvas nos dois últimos anos na Europa, ilustra uma preocupação global crescente: a do impacto das mudanças climáticas sobre os preços mundiais dos alimentos. Um estudo publicado em junho pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Instituto Potsdam de Pesquisa em Impacto Climático (PIK, na sigla em alemão) estimou que o aquecimento global pode aumentar a inflação mundial em até 1,18 ponto percentual ao ano até 2035 e o preço dos alimentos em até 3 pontos percentuais ao ano neste mesmo horizonte de tempo. "As mudanças climáticas futuras ampliarão a magnitude dos extremos de calor, ampliando também seus impactos potenciais sobre a inflação", alertam os autores do estudo. Kyle Holland, da Mintec, avalia que, para o azeite, a alta de preços é possivelmente um caminho sem volta. "As oliveiras resistem bem ao calor, mas nos períodos prolongados de seca, quando a irrigação se torna mais difícil, elas sofrem", diz Holland. "Muitos agentes avaliam que essa tendência vai continuar, então eles estão bastante preocupados que os preços não têm perspectiva de queda e que o nível atual de preços talvez seja um 'novo normal'." Vitor Manuel Ferreira Pires, o português dono de restaurante em São Paulo, está atualmente em Portugal e conta que já vê os efeitos da mudança climática na sua terra natal. "Eu nasci em Portugal, morei aqui até os 17 anos e, este ano, me deparei com um verão com 42°C, realmente uma coisa que eu nunca tinha visto na minha vida", diz o empresário. "Andei pelos campos, por olivais, por vinhas, e vi a situação aqui – realmente atrapalha em muito a produção daquilo que a gente sempre fez: o vinho, o azeite, a cortiça. Uma série de coisas que são típicas do país estão se esvaindo, por causa do próprio homem. Então isso realmente me preocupa muito."
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8ger2e22no
brasil
Equador: o resultado da votação histórica que impacta no futuro da exploração de petróleo na Amazônia
Os equatorianos foram às urnas no último domingo (20/8) para escolher um novo presidente, mas também para ganhar voz nas políticas ambientais de seu país, em meio a um pleito marcado por violência política. Além de escolher entre oito candidatos que concorrem à Presidência, elegendo Luisa González e Daniel Noboa para o segundo turno, os eleitores votaram sobre o futuro de uma polêmica operação de perfuração de petróleo na floresta amazônica. O plebiscito era sobre o destino do "Bloco 43", um grupo de campos de exploração de petróleo localizados no Parque Nacional Yasuni, uma das áreas ambientais mais ricas do mundo. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, 59% das pessoas responderam "Sim" para acabar com a exploração no Bloco 43. O Yasuni cobre mais de 1 milhão de hectares e abriga pelo menos 2 mil espécies de árvores e arbustos, 204 espécies de mamíferos, 610 espécies de pássaros, 121 espécies de répteis, 150 espécies de anfíbios e 250 espécies de peixes. Fim do Matérias recomendadas É também o lar de várias populações indígenas — incluindo pelo menos duas das últimas tribos "isoladas" do mundo — aqueles que voluntariamente recusaram a interação com o mundo exterior. A perfuração ocorre no 'Bloco 43' desde 2016. Isso ocorreu após a tentativa fracassada do presidente Rafael Correa de garantir um pacote de compensação global para manter o petróleo no solo. Segundo estimativas do governo, o 'Bloco 43' fornece 12% dos 466 mil barris de petróleo produzidos por dia pelo Equador. Um em cada quatro equatorianos vive na pobreza, segundo dados do Banco Mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E não foi a única consulta ambiental realizada naquele dia. Os cidadãos da cidde de Quito expressaram sua discordância com o avanço da exploração mineral em uma área de grande importância devido à sua biodiversidade: o Chocó Andino. Localizada a cerca de 40 quilômetros do centro da cidade, esta região é uma rica reserva ecológica e, ao mesmo tempo, contém depósitos minerais como ouro e cobre. Por essa razão, ao longo dos últimos anos, ativistas do coletivo "Quito sem mineração" têm impulsionado uma consulta popular com quatro questões para que os moradores da área pudessem indicar se concordavam em proibir a exploração mineral em âmbito artesanal, de pequena, média e grande escala. A resposta nesta consulta regional foi mais contundente: 67% dos eleitores se declararam a favor da proibição. “Conseguimos o maior consenso nacional. Ou seja, o que os políticos nos dividem, conseguimos unir na natureza", disse à BBC Mundo Pedro Bermeo, um dos líderes da iniciativa cidadã. “Não se trata de acabar com a exploração de petróleo. É uma mensagem de que as comunidades têm o direito de decidir o que acontece em seus ambientes. No caso, os indígenas", afirmou. O governo do atual presidente Guillermo Lasso, que desencadeou uma eleição antecipada em maio em uma tentativa de evitar processos de impeachment, diz que o fechamento das operações custará ao país US$ 1,2 bilhão (R$ 6 bilhões) por ano em receitas perdidas. Mas organizações ambientais e de direitos indígenas dizem ser um pequeno preço a pagar. Para a líder indígena Alicia Cahuiya, da tribo Waorani, um dos povos indígenas que vivem em Yasuni, a reserva natural desempenha um papel crucial no combate às mudanças climáticas, ajudando a capturar o dióxido de carbono (CO2) da atmosfera. "O Yasuni tem sido como uma mãe para o mundo... Precisamos levantar nossas vozes e mãos para que nossa mãe se recupere, para que não se machuque, não seja espancada", disse ela à agência de notícias AFP. Os cientistas também alertaram que a destruição da Amazônia, que se estende por oito países sul-americanos, inclusive o Brasil, está comprometendo sua capacidade de atuar como um "sumidouro de carbono", absorvendo mais carbono do que liberando. Luisa Gonzalez, a favorita na corrida presidencial, evitou tocar na polêmica durante a maior parte de sua campanha, mas quebrou o silêncio no início de agosto com uma declaração que deixou o campo anti-petróleo preocupado. "Por que você não pede aos países que mais poluem que depositem US$ 1,2 bilhão em um fundo para nós?", tuitou ela, antes de sugerir que aqueles que propuseram o plebiscito deveriam oferecer alternativas para gerar renda para o país. Embora a violência sofrida pelo país tenha atraído mais atenção durante a campanha eleitoral, o futuro dessas regiões ganhou importância dentro e fora do país. A mídia internacional lembrou que esta consulta foi a conclusão de uma iniciativa antiga. Em 2007, o então presidente Rafael Correa lançou uma proposta inédita para a época: não extrair cerca de 850 milhões de barris de petróleo em troca de uma compensação financeira. No entanto, seis anos depois, a iniciativa foi cancelada porque o dinheiro esperado não foi arrecadado. O governo então autorizou o início da exploração do campo. Contudo, naquele período, um grupo de ativistas deu início a um processo para permitir que os cidadãos decidissem sobre a viabilidade da exploração. Um esforço que demandou uma década. Com a vitória do "Sim", conforme anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral e confirmado pela Corte Constitucional ao aprovar a consulta em maio deste ano, o governo equatoriano não estará autorizado a celebrar mais contratos de exploração de petróleo nessa região. Ademais, o governo terá um prazo de um ano para proceder à remoção gradual e organizada das infraestruturas petrolíferas localizadas no parque nacional. "Para nós, ficou cristalino que a riqueza desse território transcende o aspecto material: reside em sua população e em sua biodiversidade", expressou Bermeo. Quanto ao Chocó Andino, a aprovação do "Sim" não possui efeitos retroativos. Ela simplesmente determina que o governo equatoriano não pode emitir novas licenças de mineração nessa região. "Essa é uma mensagem para o governo, indicando que desejamos progredir de maneira distinta: uma economia fundamentada na biodiversidade e não na exploração de recursos naturais", comunicou à BBC Mundo Inti Arcos, um dos líderes do movimento "Quito sem mineração".
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gw919zev7o
brasil
Expansão do Brics, moeda comum e guerra na Ucrânia: por que reunião na África do Sul pode ser decisiva
O bloco que representa 40% da população mundial e 26% de toda a riqueza gerada no planeta começa, na terça-feira (22/8), uma reunião que especialistas e diplomatas acreditam que pode ser decisiva e ter impactos na geopolítica mundial. A Cúpula do Brics — grupo que reúne Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul — será realizada em Joanesburgo e pode definir se o bloco irá se expandir, um movimento visto com preocupação dentro e fora do grupo. O evento vai até a quinta-feira (24/8). Esta será a primeira reunião presencial dos chefes de Estado do Brics desde a pandemia de covid-19, que começou em 2020. Todos os líderes irão à cúpula pessoalmente, exceto pelo presidente russo, Vladimir Putin, que participará de forma virtual. Ele é alvo de um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPP) por supostos crimes cometidos pela Rússia durante guerra com a Ucrânia e a África do Sul é um dos países que fazem parte do tribunal, o que poderia obrigá-la a prender Putin caso ele pisasse em território sul-africano. Esta será, também, a primeira cúpula do Brics à qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai participar após assumir seu terceiro mandato. Ele foi um dos fundadores do grupo, criado em 2006, ainda sem a África do Sul, que se juntou ao bloco em 2010. Fim do Matérias recomendadas Apesar de a expansão do Brics atrair a maior parte das atenções para a cúpula, a reunião também deverá ser marcada por outros temas como a possível criação de uma unidade monetária comum a ser usada entre os membros do grupo e, inevitavelmente, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Analistas e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a reunião pode ter efeitos importantes sobre a política e economia internacional tanto pela possível expansão do bloco quanto pela possível criação de uma alternativa ao uso do dólar em transações comerciais. A seguir, relembre o início do bloco e entenda os principais temas deste encontro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O termo "Brics" surgiu em 2001 e foi cunhado pelo economista inglês Jim O’Neil para designar um grupo de países inicialmente formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China em função das perspectivas de crescimento acentuado de suas economias. Em 2006, os quatro países começaram a se reunir de forma conjunta e, em 2011, a África do Sul passou a fazer parte formalmente do grupo. Atualmente, os países do Brics têm uma população somada de quase 3,26 bilhões de pessoas. O PIB do bloco supera os US$ 26 trilhões de dólares, fortemente ancorado na locomotiva chinesa, segunda maior economia do mundo, atrás somente dos Estados Unidos. Desde a consolidação do bloco, os cinco países realizam diversas reuniões multilaterais para debater temas econômicos e políticos. O grupo passou, então, a ser visto como um fórum multilateral alternativo àqueles considerados mais tradicionais como o G7 (grupo dos sete países mais desenvolvidos do mundo) e o G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo). Antes tratada como uma possibilidade distante, a expansão do Brics será um dos temas principais da reunião entre os líderes do bloco, especialmente da reunião reservada que está prevista para a noite de terça-feira (22/8). Fontes ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado apontam que há três cenários possíveis em relação ao tema. No primeiro, o bloco apresentaria apenas os critérios para o acesso de novos países ao grupo. O Brasil é um dos que apoia essa hipótese. No segundo cenário, o grupo apresentaria os nomes de novos membros. No terceiro, o bloco anuncia os critérios, seus novos integrantes e os nomes de outros países que poderiam aderir ao grupo na condição de parceiros, mas não como membros efetivos. A China vem sendo apontada como a principal interessada em ampliar o número de membros do bloco. Nos últimos anos, a ideia de expansão do Brics passou a ser defendida abertamente por lideranças chinesas. "A China propõe iniciar o processo de expansão do Brics, explorar um critério e procedimentos para a expansão e, gradualmente, formar um consenso", disse o ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, em maio de 2022. “A expansão do Brics está na agenda do encontro privado dos líderes”, confirmou o secretário para as regiões da Ásia e Oceano Pacífico do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Saboia, em conversa com jornalistas na semana passada à qual a BBC News Brasil esteve presente. O movimento chinês é visto por analistas como uma forma de aumentar a influência global do país em um momento em que suas relações com países como os Estados Unidos estão abaladas. Os norte-americanos acusam a China de espionagem e de práticas comerciais abusivas. O governo de Pequim rebate e acusa os Estados Unidos de protecionismo comercial e perseguição a empresas chinesas. O cálculo chinês apontaria que uma ampliação do Brics diminuiria as chances de o país ficar isolado caso as relações com os Estados Unidos piorem nos próximos anos e poderia servir de contraponto ao G7, formado pelos Estados Unidos e potências da Europa Ocidental como Reino Unido, França e Alemanha. Mas apesar da força com a qual a China tenta liderar a expansão do Brics, países do bloco vinham oferecendo alguma resistência nos últimos anos. Entre eles, estão o Brasil e a Índia. Nos bastidores, diplomatas brasileiros ouvidos em caráter reservado pontuam que a expansão do bloco não poderia ser feita apenas para atender aos interesses chineses. Um dos temores do Brasil seria o de que uma expansão acelerada do bloco poderia diminuir a influência do Brasil no Brics, grupo que ajudou a fundar e que é visto como estratégico no próprio plano brasileiro de manter e aumentar sua influência global nos próximos anos. “A entrada de novos países, a priori, tende a diminuir o poder relativo do Brasil no Bloco rumo à consolidação da liderança e influência chinesa sobre o Bloco”, disse à BBC News Brasil a professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri-USP), Marília Souza Pimenta. Segundo o Itamaraty, pelo menos 22 países já apresentaram interesse em se juntar ao Brics, incluindo nações de diferentes continentes como Argentina, Emirados Árabes Unidos, entre outros. Sobre movimentação chinesa e o lobby de países interessados em entrar no bloco, Brasil e Índia, que eram resistentes à ideia, passaram a defender que o grupo primeiro definisse critérios para a análise dos pedidos de adesão. Mais recentemente, porém, Lula chegou a defender a entrada de países como a Argentina, Venezuela, Arábia Saudita e Emirados Unidos no grupo. O professor de geopolítica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador visitante da Universidade Fudan, na China, Pablo Ibanez, avalia que o Brasil teve pouca margem de manobra diante da pressão chinesa pela expansão do bloco. “Pela forma como está conduzida e a velocidade de novos proponentes, parece não haver saída e o Brasil percebeu isso [...] são duas visões, uma da presidência, mais favorável, pois entende que fortaleceria o Sul Global, e outra do Itamaraty, mais reticente, pois necessariamente diluiria o grupo, aumentaria a proeminência chinesa e ainda carece de melhor estudo sobre as formas e os critérios de adesão”, disse Ibanez à BBC News Brasil. Na avaliação de Eduardo Saboia, um dos critérios de adesão que interessa ao Brasil é o possível apoio dos países que postulam entrar no Brics à reformulação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, uma pauta histórica da diplomacia brasileira. “Nessa ampliação, é importante que se fortaleça o ímpeto reformista do Brics, inclusive em matéria de reforma do conselho de segurança”, disse Saboia. Outro tema que será debatido pelos líderes do Brics será a criação de uma unidade monetária comum a ser usada pelos países do bloco em suas transações comerciais. A ideia seria a criação de uma unidade de referência comum, com a qual os países do bloco pudessem fazer suas transações comerciais sem depender do dólar como referência. A medida não extinguiria as moedas nacionais dos países do bloco. O objetivo seria criar uma alternativa para driblar a dependência internacional em relação ao dólar norte-americano, referência no comércio global. Dados do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, apontam que, entre 1999 e 2019, 96% das transações comerciais no continente americano foram feitas em dólar. Na região da Ásia e do Pacífico, esse percentual ficou em 74%. Na Europa, o euro predomina, com mais de 60% do volume. No resto do mundo, o dólar volta a dominar, com 79%. A redução da dependência em relação ao dólar é uma pauta defendida pelo governo chinês há alguns anos e ganhou o apoio de Lula, particularmente, após ele assumir seu terceiro mandato. Em visitas à Argentina e à China, Lula fez uma defesa direta da adoção de outras moedas no comércio internacional. “Toda noite, me pergunto por que é que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar. Por que é que nós não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que é que nós não temos o compromisso de inovar?", disse Lula em Xangai, na China, em abril. A Rússia, que virou alvo de sanções econômicas no último ano por conta da guerra com a Ucrânia, também tem interesse em depender menos do dólar para realizar seu comércio global. O terceiro ponto que deve ser pauta da reunião dos líderes do Brics neste ano é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A tendência é de que não haja novidades em relação à posição do grupo, justamente pela presença da Rússia no bloco. O conflito começou em fevereiro de 2022, quando a Rússia, liderada por Putin, invadiu o território ucraniano sob a alegação de que protegeria minorias étnicas russas sob suposta ameaça no país vizinho. Desde então, a guerra se arrasta por mais de um ano. A Ucrânia resiste à ofensiva russa com o apoio financeiro e militar de países como os Estados Unidos e da Europa Ocidental, como o Reino Unido, França e Alemanha. Considerando a sensibilidade do tema para os russos, a declaração final da cúpula no ano passado não trouxe condenação em relação à invasão russa. Houve apenas a defesa de que Rússia e Ucrânia mantivessem conversas sobre o assunto e que o tema fosse abordado em fóruns como a Assembleia Geral e no Conselho de Segurança da ONU. A expectativa é de que o tom adotado na declaração deste ano seja semelhante. O conflito fez com que países do Brics passassem a ser cobrados publicamente por seus posicionamentos em relação ao conflito em fóruns internacionais. Nesse aspecto, a posição do Brasil é diferente da dos demais membros do grupo. Um termômetro dessa diferença se deu em fevereiro deste ano. Naquele mês, os países-membros da Assembleia Geral da ONU votaram pela condenação da Rússia pela invasão à Ucrânia e pediram a retirada das tropas comandadas por Putin do território inimigo. Ao todo, 141 países votaram a favor, 32 se abstiveram e sete votaram contra a resolução. Entre os Brics, o Brasil foi o único que votou a favor da resolução. A Rússia, obviamente, votou contra. África do Sul, Índia e China se abstiveram. O embaixador Eduardo Saboia disse que a declaração final da cúpula, texto que ainda está sendo negociado pelos representantes dos cinco países, não deverá trazer surpresas sobre o assunto. “Com relação ao conflito, temos que diferenciar o que é discutido e o que ficará na declaração. Certamente, o que é conversado pelos líderes será muito mais rico do que o que ficará na declaração. Ela (a declaração) resguarda as posições dos países”, disse o diplomata. Para a professora Marília Pimenta, à medida em que os Brics cresçam, vai ficar mais difícil que o bloco evite o tema da guerra na Ucrânia. “O fórum dos Brics não me parece o local adequado para que (os líderes) emitam declarações sobre a guerra na Ucrânia, até pela abstenção na ONU por parte da China, Índia e África do Sul [...]Agora, à medida em que o Bloco ganha um caráter e um peso mais geopolítico, vai ficar difícil manter posições de dubiedade em nome do pragmatismo econômico”, disse a professora.
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4x10w2wj0o
brasil
Eleição no Equador: quem são a advogada esquerdista e o empresário de 35 anos que disputarão presidência no 2º turno
Os candidatos Luisa González e Daniel Noboa vão disputar o segundo turno das eleições para a presidência do Equador em 15 de outubro. González e Noboa foram os candidatos mais votados no domingo (20/8), segundo o resultado do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país. Com mais de 85% dos votos apurados, González, que era favorita nas pesquisas, liderou a disputa entre os oito candidatos, com 33% dos votos. Ela é herdeira política do ex-presidente esquerdista Rafael Correa (2007-2017), um dos principais aliados políticos do presidente Luís Inácio Lula da Silva na América do Sul. Em seguida vem Noboa, com 24%, a grande surpresa deste primeiro turno. Aos 35 anos, ele é filho do empresário e político Álvaro Noboa, que em 2006 perdeu no segundo turno para Correa. Os demais candidatos admitiram suas derrotas. Fim do Matérias recomendadas Para se eleger já no primeiro turno, os candidatos precisariam ter obtido mais de 50% dos votos válidos, ou 40% mais 10 pontos à frente do rival mais próximo. “Este Equador corajoso, este Equador com sentimento de pátria, mobilizou-se, quebrou o medo e votou numa mulher. É a primeira vez que uma mulher consegue um percentual tão alto no primeiro turno”, disse González, que almeja ser a primeira presidente do país. Noboa, por sua vez, distanciou-se de uma batalha correísmo versus anti-correísmo no segundo turno e negou planos de formar uma coligação contra o correísmo. “Não sou a favor da amarração, mas de um novo projeto”, disse. Alguns dos candidatos derrotados já manifestaram seu apoio a Noboa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os equatorianos votaram neste domingo para eleger um substituto para o atual presidente Guillermo Lasso e membros para uma nova Assembleia Nacional. O nome e a foto de Villavicencio apareciam nas cédulas de votação, que foram impressas antes de seu assassinato em 9 de agosto. Christian Zurita, candidato presidencial que o substituiu, foi o terceiro mais votado, com 16% dos votos. A aliança Gente Buena - Construye, que tinha Villavicencio como líder, foi o segundo movimento político mais votado para a Assembleia, atrás da Revolución Ciudadana, partido de Correa. Com relação às consultas populares sobre o futuro do Parque Nacional Yasuní e da região do Chocó Andino, a maioria dos equatorianos votou pela não-exploração dos recursos naturais dessas áreas do país com tanta biodiversidade. Cerca de 100 mil policiais e militares fizeram guarda nos locais de votação e nenhum ato de violência foi registrado. Em 17 de maio, Lasso, que não era candidato nesta eleição, assinou o decreto de dissolução da Assembleia, que por sua vez preparava-se para votar a possível destituição do então presidente. Por se tratar de uma eleição antecipada, o presidente e os deputados eleitos neste novo processo eleitoral permanecerão no cargo até 23 de maio de 2025, data final prevista para o governo Lasso. Mas, quem são González e Noboa, que disputarão a presidência em 15 de outubro? A advogada Luisa González, única mulher na disputa presidencial no Equador, tem 45 anos, é mestre em Economia Internacional e Desenvolvimento pela Universidade Complutense de Madri e teve diversas experiências em administração pública durante o governo do ex-presidente Correa. Ocupou os cargos de secretária nacional da Superintendência de Empresas, vice-cônsul do Equador em Madri e vice-ministra de gestão do turismo. “Meu principal assessor será Rafael Correa, claro”, disse ela durante a campanha, orgulhosa do legado econômico deixado pelo ex-presidente. Conta a seu favor o fato de o ex-presidente Correa se identificar como opositor de Lasso, o atual presidente, cuja taxa de aceitação é baixíssima. Ela também conta com a estrutura eleitoral do chamado correísmo e o núcleo duro de fiéis eleitores do movimento. Ao mesmo tempo, sua clara associação com Correa, que também sofre forte resistência de um setor da população, pode jogar contra ela. Seu último cargo público foi o de membro da assembleia do movimento UNES, que reunia movimentos e organizações relacionadas com o correísmo. González aspira ser a primeira mulher eleita presidente do Equador pelo Revolución Ciudadana, que se identifica com o que chama de socialismo do século 21. Caso atinja o objetivo, o seu triunfo marcaria também a volta do correísmo à presidência, movimento político que governou durante mais de uma década até 2017. Atualmente, Correa vive como asilado político na Bélgica. Ele foi condenado a oito anos de prisão no Equador pelo caso "Subornos 2012-2016", motivo pelo qual não pode regressar ao país. Durante sua gestão como deputada pela província de Manabí, González, que é mãe solteira, se opôs à legalização do aborto em caso de estupro. A prática foi descriminalizada pela Corte Constitucional em 2021 e gerou intenso debate no país. O plano de governo de González baseia-se em referências às conquistas do movimento Revolución Ciudadana de Correa quando ele estava no poder. Promete linha dura contra o crime e fortalecer forças armadas e sistemas de inteligência. Diz, ainda, que o Equador é um Estado falido e que as instituições de segurança não funcionam. No seu discurso, garantiu que se chegar à presidência, vai lutar contra a corrupção, sobretudo no sistema de saúde, vai conceder empréstimos às famílias endividadas e ao sector agrícola, além de subsidiar o preço dos combustíveis. Daniel Noboa é filho de dois políticos conhecidos no Equador: Alvaro Noboa, um dos homens mais ricos do país e candidato presidencial em várias ocasiões, e Anabella Azín, médica, deputada e legisladora da última constituinte de 2007 no Equador. Aos 35 anos, Noboa, empresário e ex-legislador, é formado em Ciências pela New York University e em Administração de Empresas. Seu último cargo público foi de deputado, quando também foi presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico e Produtivo, onde tramitam leis nas áreas tributária e de investimentos. É a primeira vez que concorre como candidato presidencial em uma eleição e o faz com a Alianza Acción Democrática Nacional (ADN), que inclui grupos como o PID (Pueblo, Igualdad y Democracia) e o Mover, que reunem ex-membros do correísta Alianza País, após a ruptura entre Correa e Lenin Moreno. Ele negou que represente a direita e garante que seu voto é de esquerda e centro-esquerda. Noboa propõe contas públicas ordenadas e responsabilidade fiscal. Ele afirma que acredita na livre iniciativa, mas ao mesmo tempo na responsabilidade social. Sua principal vantagem é que, no segundo turno, ele pode atrair votos de Zurita-Villavicencio, terceira maior força do primeiro turno e que se colocou em clara oposição ao correísmo, bem como de outros candidatos minoritários. Apresenta-se como um candidato jovem, novo no sistema político, que ambiciona superar rótulos de anos anteriores como correísmo e anticorreísmo e centrado em preocupações econômicas. Sua companheira de chapa e candidata à vice-presidência é Verónica Abad, fundadora da Rede de Mulheres Dirigentes e membro da Fundação Internacional El Sebrador, onde trabalha com mulheres e crianças vulneráveis ​​e famílias afetadas pela violência e pelas drogas. Noboa propõe a realização de um referendo para introduzir reformas à atual Constituição em temas ligados à justiça. Também propõe uma reforma policial para combater a insegurança e dar proteção aos juízes. Ele afirma que seu governo fará uma reforma tributária para que quem tem mais pague mais. Durante sua passagem como legislador em 2022, foi criticado por organizar e financiar uma viagem à Rússia junto com outros parlamentares, para estreitar os laços com aquele país em meio à guerra na Ucrânia.
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0dgzyv847mo
brasil
Vídeo, Brics: os obstáculos e as oportunidades para Lula ampliar influência do Brasil no mundoDuration, 7,40
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viaja para a África do Sul, onde participa da 15ª Cúpula dos Brics, grupo de países que ele ajudou a fundar e que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e o país anfitrião. O país será o 17º destino internacional de Lula em quase oito meses de governo. Nos bastidores, a visita é tida como mais uma etapa de um projeto ambicioso e construído a muitas mãos: ampliar a influência do Brasil na arena global. Entre as principais apostas do Brasil estão a redução da dependência global em relação ao dólar norte-americano; a liderança dos debates sobre mudanças climáticas; e mediar a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O repórter da BBC News Brasil em Brasília Leandro Prazeres explica os detalhes desse projeto para elevar a relevância internacional do país.
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-66569142
brasil
Walter Delgatti condenado: de hacker da 'Vaza Jato' a homem-bomba do governo Bolsonaro
O programador Walter Delgatti Neto, mais conhecido como "hacker da Vaza Jato", foi condenado a 20 anos de prisão, mais multa, pelo caso de invasão do Telegram de autoridades, em 2019. A decisão foi do juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara da Justiça Federal de Brasília. Delgatti foi condenado pelos seguintes crimes: invasão de dispositivo informático, organização criminosa, lavagem de dinheiro e interceptação de comunicações. Ele pode apelar da decisão. Outras seis pessoas também foram condenadas pelo juiz no mesmo caso. Fim do Matérias recomendadas Em depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas na semana passada, em Brasília, Delgatti, que está em prisão preventiva desde o início deste mês (ler mais abaixo), acusou a campanha de Bolsonaro de querer forjar uma invasão de uma urna eletrônica, a menos de um mês das eleições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O intuito seria minar a confiança no processo eleitoral e manipular a opinião pública. Também afirmou que o ex-presidente lhe pediu que assumisse a autoria de um suposto grampo contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Delgatti disse ainda que o ex-presidente lhe prometeu um indulto caso fosse preso pela ação contra as urnas eletrônicas. "Ele [Bolsonaro] me deu carta branca para fazer o que eu quisesse relacionado às urnas. Eu poderia, segundo ele, cometer um ilícito que seria anistiado, perdoado, indultado no caso", declarou Delgatti. Mas o hacker não apresentou nenhuma prova de suas acusações. Também não esclareceu por que os supostos planos que ele atribui a Bolsonaro não foram levados adiante — a Polícia Federal deve ouvi-lo novamente nesta sexta-feira (18/8). Na quinta-feira, Moraes atendeu a Polícia Federal (PF) e quebrou o sigilo bancário e fiscal do casal. Mas quem é Walter Delgatti Neto? Natural de Araraquara, no interior de São Paulo, Delgatti foi preso no início de agosto após uma operação que também mirou a deputada federal Carla Zambelli (PL), aliada de Bolsonaro. Não foi sua primeira prisão (ler mais abaixo). Delgatti e Zambelli são suspeitos de estarem por trás de uma trama contra Moraes, que resultou na invasão dos sistemas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e na inserção de documentos e alvarás de soltura falsos, dias antes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. O hacker diz que a invasão dos sistemas da Justiça foi um pedido de Zambelli. Ele alega que recebeu R$ 40 mil pela ação e apresentou provas "relacionadas a pagamentos que recebeu da deputada", informou o advogado de Delgatti, Ariovaldo Moreira. Mas, antes de ser acusado de atacar os sistemas eleitoral e judiciário supostamente a pedido de Zambelli, Delgatti já havia se tornado conhecido nacionalmente em 2019. Isso porque ele invadiu celulares de procuradores da Lava Jato e divulgou conversas entre eles e o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União Brasil), à época ministro da Justiça de Bolsonaro. A ação ficou conhecida como "Vaza Jato". Por causa disso, ganhou o apelido de "hacker da Vaza jato". Delgatti e Moro trocaram acusações durante a CPMI desta quinta-feira. Quando Moro acusou o hacker de ter uma "extensa" lista de antecedentes criminais, Delgatti disse que leu as conversas do ex-juiz e o chamou de "criminoso contumaz". Moro reagiu: "O bandido aqui... quem foi preso é o senhor". As conversas divulgadas por Delgatti serviram para o STF anular algumas condenações determinadas por Moro, como foi o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na prática, isso permitiu ao petista concorrer as eleições presidenciais do ano passado. A 'Vaza Jato' foi revelada em 2019 e culminou com a prisão de Delgatti e outros três suspeitos. Denunciado como mentor da suposta quadrilha, ele teve a prisão preventiva revogada em outubro de 2020 e passou a aguardar em liberdade o julgamento do processo que corria na Justiça Federal do Distrito Federal, com uso de tornozeleira eletrônica e sem acesso à internet. Mas acabou sendo preso novamente no fim de junho deste ano, por descumprir medidas judiciais, como não ter sido localizado em endereços indicados à Justiça — ele estava proibido de se mudar sem autorização. Também afirmou estar cuidando do site e das redes sociais de Zambelli. Além disso, fez compras on-line e usou um e-mail como chave PIX para arrecadar doações, mesmo estando barrado de usar a internet. Antes de sua primeira prisão, em 2019, Delgatti já tinha uma longa ficha de antecedentes criminais — era investigado ou acusado da prática de crimes em pelo menos 20 casos. Entre esses crimes estão: estelionato, furto qualificado, apropriação indébita e tráfico de drogas. Mas, quando foi preso em 2019, em meio ao escândalo da 'Vaza Jato', afirmou à polícia que era "investidor" e que tinha conta bancária na Suíça. Também já fingiu ser aluno de medicina da USP com uma carteirinha falsa "para enganar as meninas", em suas próprias palavras. Delgatti foi criado pela avó e não tinha contato com a mãe. Seu pai morreu de enfarto em 2018. Na juventude, era conhecido pelo apelido de "Vermelho", pelo cabelo e barba ruivos. Em nota, a defesa de Bolsonaro acusou Delgatti de "calúnia". "Considerando as informações prestadas publicamente pelo depoente Sr. Walter Delgatti Neto perante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito na presente data, a defesa do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro, informa que adotará as medidas judiciais cabíveis em face do depoente, que apresentou informações e alegações falsas, totalmente desprovidas de qualquer tipo de prova, inclusive cometendo, em tese, o crime de calúnia". Em suas redes sociais, o advogado do ex-presidente, Fabio Wajngarten, insistiu que o hacker "mente e mente e mente". "Um PRESIDENTE que SEMPRE jogou dentro das 4 linhas pediria para fraudar as eleições? Mente e mente e mente", escreveu ele no X, anteriormente conhecido como Twitter. Também por meio de sua defesa, Carla Zambelli negou as acusações. Segundo seu advogado, ela "somente se manifestará após integral conhecimento do conteúdo dos autos" e "novamente refuta e rechaça qualquer acusação de prática de condutas ilícitas e ou imorais pela parlamentar, inclusive, negando as aleivosias e teratologias mencionadas pelo senhor Walter Delgatti."
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv23ll7p2rxo
brasil
A semana mais infernal do ano para Bolsonaro em 5 novas crises
Na primeira investigação, a Polícia Federal apura um suposto "esquema", nas palavras do Supremo Tribunal Federal (STF), de venda ilegal de joias dadas como presentes ao governo brasileiro. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), estes presentes deveriam ser encaminhados ao acervo da União, e não negociados para enriquecimento pessoal do ex-presidente ou pessoas próximas. Na segunda investigação, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura os atos de 8 de janeiro a favor de Bolsonaro debateu nos últimos dias o suposto envolvimento direto do ex-presidente em propostas de acobertamento de crimes, sabotagem de urnas e do sistema eleitoral brasileiro. Ao longo desta semana, a situação jurídica de Bolsonaro se agravou, na avaliação de professores de Direito ouvidos pela reportagem, com novas operações judiciais, depoimentos e confissões de rivais e aliados próximos. Fim do Matérias recomendadas Para Flaviane Barros, professora de Direito Penal da PUC-Minas, "a situação do ex-presidente como investigado em termos de fatos penais teve mudança considerável" após as revelações desta semana. Na avaliação do professor de Direito Penal da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Davi Tangerino, "os elementos de prática de delito por ele (Jair Bolsonaro) vão se avolumando". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A quinta-feira (17/8), até agora, foi o dia mais duro contra Bolsonaro. O ex-presidente estaria prestes a ser apontado nominalmente como mandante e beneficiário da venda ilegal de jóias dadas de presente ao governo brasileiro, declarou Cezar Bittencourt, advogado do ex-ajudante de ordens e braço direito de Bolsonaro, Mauro Cid, na principal crise inaugurada nesta quinta. Segundo Bittencourt afirmou à revista Veja, o tenente-coronel Cid vai confessar ao Supremo Tribunal Federal que entregou a Bolsonaro centenas de milhares de reais conseguidos com a suposta venda ilegal de relógios nos Estados Unidos. O ex-presidente nega todas as acusações. À TV Band, após a publicação da reportagem da Veja, Bolsonaro descreveu a estratégia do advogado de Cid como "camicase", afirmou que não recebeu valores em espécie de Cid e que não pediu pra que bens fosses vendidos. Bolsonaro também disse que "Cid está preso há muito tempo e, por isso, é capaz de falar qualquer coisa pra sair da cadeia", segundo o jornalista Tulio Amansio. Na sexta-feira, o advogado recuou e negou ter afirmado à revista que o militar confessaria algo relativo às joias. A Veja, então, respondeu publicando os áudios da entrevista e mostrando que o advogado realmente disse o que foi originalmente publicado. À BBC News Brasil, criminalistas apontam entre os possíveis crimes de Bolsonaro no caso, se declarado culpado, peculato (pelo desvio das joias), lavagem de dinheiro (pela ocultação do proveito do crime) e descaminho (caso os bens sejam reconhedos como dele). As declarações desta quarta indicam mudança significativa na postura de Cid, preso desde maio e até então descrito como leal ao ex-presidente. Bittencourt, que assumiu a defesa de Cid há três dias, é o terceiro advogado do caso desde que ele foi preso, em maio, por supostas fraudes no cartão de vacinação de sua família, do ex-presidente Bolsonaro, e de pessoas ligadas a ele. As trocas recorrentes, avaliam advogados ouvidos em anonimato pela reportagem, sugerem "dificuldade" e "conflitos de interesse" na linha de defesa do tenente-coronel, cuja carreira militar em ascensão foi duramente interrompida. Na mesma quinta-feira, uma segunda crise estourou quando o hacker Walter Delgatti disse à CPI dos Atos Golpistas que Bolsonaro o contratou para fraudar urnas e o processo eleitoral, ofertou um indulto em caso de condenação por crimes e pediu que ele assumisse a autoria de suposto grampo contra o ministro Alexandre de Moraes. A defesa de Bolsonaro descreveu as falas de Delgatti como falsas e desprovidas de prova em nota enviada ao Jornal Nacional. O time do ex-presidente apontou que as declarações contêm, em tese, o crime de calúnia e que adotará as medidas judiciais cabíveis. No fim da mesma quinta-feira, dando início à terceira crise do dia, Alexandre de Moraes determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do ex-presidente e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, além de autorizar um pedido de cooperação internacional com autoridades do Estados Unidos. Pelo Instagram, a primeira-dama reagiu: "Pra que quebrar meu sigilo bancário e fiscal? Bastava me pedir! Quem não deve, não teme!" "Fica cada vez mais claro que essa perseguição política, cheia de malabarismo e inflamada pela mídia, tem como objetivo manchar o nome da minha família e tentar me fazer desistir. Não conseguirão! Estou em paz!", continuou. As duas investigações envolvem membros do núcleo íntimo do ex-presidente, caso da ex-primeira-dama e do ex-ajudante de ordens, mas também do ex-advogado Frederick Wassef, do amigo e colega nas turmas de cadetes da Academia Militar general Mauro Cesar Lourena Cid, dos ex-ministros Bento Albuquerque e Fabio Wajngarten, além da deputada e fiel escudeira Carla Zambelli. Todos negam ter cometido qualquer crime. "(A situação do ex-presidente) piorou bem", avalia o professor de direito penal Tangerino em entrevista à BBC News Brasil. "Mas não a ponto de ele ser preso preventivamente a curto prazo." Para o especialista, uma prisão preventiva "requereria algum fato contemporâneo", como coação contra testemunhas, destruição de provas ou fuga. "Sem um desses elementos, acho pouco provável", ele diz. A professora de direito da PUC-Minas concorda. "Entendo que seria necessário algum elemento ou atuação para impedir obtenção de provas, como a ameaça a coautores e a testemunhas, e destruição de provas documentais e digitais", ela explica. A semana já começou tensa para o ex-presidente por conta de uma série de episodios evolvendo seu ex-advogado, membro de seu círculo íntimo e auto-proclamado "anjo" da família Frederick Wassef. Na madrugada de domingo (13/8), frente a especulações sobre sua participação na suposta negociação ilegal de presentes de Estado, Wassef enviou nota à imprensa afirmando que "jamais soube da existência de joias ou quaisquer outros presentes recebidos". "Nunca vendi nenhuma joia, ofereci ou tive posse. Nunca participei de nenhuma tratativa, e nem auxiliei nenhuma venda, nem de forma direta ou indireta", prosseguiu No texto, o aliado do ex-presidente dizia ser vítima de "campanha de fake news e mentiras de todos os tipos, além de informações contraditórias e fora de contexto". "Jamais participei ou ajudei de qualquer forma qualquer pessoa a realizar nenhuma negociação ou venda", afirmou Wassef. Na terça-feira (15/8), no entanto, Wassef aprofundou a crise para o ex-presidente ao convocar a imprensa e assumir ter recomprado nos Estados Unidos um relógio Rolex que havia sido dado pelo governo da Arábia Saudita ao governo brasileiro. "Comprei o relógio, a decisão foi minha, usei meus recursos, eu tenho a origem lícita e legal dos meus recursos", afirmou. Na entrevista, ele afirmou que o objetivo da compra era "devolvê-lo à União, ao governo federal do Brasil, à Presidência da República, e isso inclusive por decisão do Tribunal de Contas da União". Segundo o advogado, o pedido de compra não partiu de Bolsonaro ou de Cid. Ele se recusou a informar para quem entregou o relógio. O Rolex foi dado de presente por autoridades da Arábia Saudita em 2019, durante visita do ex-presidente ao país. O relógio teria sido vendido ilegalmente pelo então ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, segundo a polícia. Depois que o Tribunal de Contas da União começou a suspeitar da venda ilícita de presentes, Wassef teria sido, segundo a investigação, escalado para viajar aos Estados Unidos para comprá-lo e trazê-lo de volta Após devolver a joia, membros do entorno de Bolsonaro teriam dado início a uma operação para resgatar o relógio vendido nos EUA. Segundo a PF, os investigados são suspeitos de usar a estrutura do governo "para desviar bens de alto valor patrimonial, entregues por autoridades estrangeiras em missões oficiais a representantes do Estado brasileiro, por meio da venda desses itens no exterior". Uma nova crise começaria na noite quarta-feira, dia seguinte às declarações dadas por Wassef à imprensa. Enquanto jantava em uma churrascaria, num shopping center de São Paulo, Wassef foi bordado por agentes do setor de inteligência da Polícia Federal encontraram Frederick Wassef Alvo de busca pessoal autorizada pela Justiça, o braço direito do ex-presidente Jair Bolsonaro teve 4 aparelhos de celular apreendidos e o carro revistado. Um dos celulares agora em poder da polícia seria usado, segundo o Jornal Nacional, exclusivamenete para conversas com Bolsonaro.
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4gj38w0j4o
brasil
A história de Philippson, a primeira colônia de judeus do Brasil
Medo e esperança eram os sentimentos comuns àqueles judeus que, oriundos de várias localidades do Leste Europeu, se reuniram na Bessarábia, na parte que hoje pertence à Romênia. Era começo de 1903 e, de acordo com alguns pesquisadores, ali estavam 148 pessoas, de 38 famílias diferentes. Menos de dois anos mais tarde eles formariam a Philippson, a primeira colônia judaica a funcionar no Brasil. O medo que eles nutriam era das políticas antissemitas do império russo, sobretudo depois da ascensão de Alexandre 3º (1845-1894), continuadas por seu filho Nicolau 2º (1868-1918). Naquela época, eram constantes os pogroms, ataques deliberados a casas, empresas e centros religiosos de judeus. E tal violência era incentivada pelo imperador russo, que pretendia ver toda a região convertida à Igreja Ortodoxa. A esperança era encontrar, do outro lado do Atlântico, uma terra acolhedora. Não apenas para ganharem dinheiro e voltar, como era o desejo de tantos imigrantes que queriam simplesmente “fazer a América”; os judeus queriam fazer de terras distantes - na América do Norte (Canadá e Estados Unidos) ou do Sul ( Argentina e Brasil) seu novo lar. Fim do Matérias recomendadas Eram russos, lituanos, estonianos, ucranianos, bielorrussos, moldavos e romenos, aqueles 148. Bancados por uma organização beneficente chamada Jewish Colonisation Association — mais conhecida pelas siglas JCA ou ICA —, eles tiveram um treinamento de cerca de um ano e meio visando a se preparem para a vida nova. Em geral acostumados a trabalhos no comércio, iriam ter de se tornar agricultores e pecuaristas. Em um novo local, um novo clima, com uma nova língua. Imigrar não é nada fácil. Naquele ano, a ICA comprou uma antiga propriedade rural no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul, a Fazenda do Pinhal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aquele espaço seria o novo lar dos imigrantes judeus. E ganharia o nome de Philippson para homenagear Franz Philippson (1851-1929), o então presidente da Compaigne Auxiliare de Chemins Du Fer au Brésil, que explorava as linhas de trem naquela região. Philippson era dirigente da ICA, organização criada em 1891 pelo barão Maurice de Hirsch, um judeu alemão filantropo que se dedicou a ajudar aqueles que eram vítimas ou corriam risco de opressão antissemita. A localização não foi obra do acaso. “Quando se buscavam terras para instalar a primeira colônia agrícola no Brasil, após inspeções de técnicos agrícolas, a ICA foi autorizada a comprar e colonizar terras no extremo sul do Brasil. Esta escolha veio a calhar com os interesses do banqueiro belga Philippson, que além de vice-presidente da ICA, era presidente da companhia de estradas de ferro que havia obtido a concessão do governo para a construção e administração de vias ferroviárias no Rio Grande do Sul”, pontua, em e-mail à BBC News Brasil, a socióloga Anita Brumer, professora aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O Rio Grande do Sul já contava com imigrantes e descendentes de imigrantes judeus, pelo menos desde o início do século 19. Conforme conta o escritor, ensaísta, poeta e advogado Marcos Iolovitch (1907-1984) em seu livro Numa Clara Manhã de Abril, publicado pela primeira vez em 1940, em 1900 havia 54 judeus no Estado. “É possível que este número fosse maior, pois os números referidos para a população judaica registrada no Brasil no final do século 19 contém algumas contradições”, escreveu ele. “Lembro que esta concessão previa a obrigação da empresa de assentar colonos ao longo da via férrea e a construir uma escola e um templo quando o estabelecimento colonial incluísse mais de 30 famílias, como forma de facilitar a integração social e econômica dessas famílias”, acrescenta Anita Brumer. A viagem da Bessarábia para o Brasil durou dois meses. Em carroças, eles foram de lá até Hamburgo, onde embarcaram em um vapor com destino ao Rio de Janeiro. Na então capital do Brasil trocaram de embarcação para um novo trecho de viagem marítima, agora com destino a Rio Grande, no litoral sul do Rio Grande do Sul. De Rio Grande a Santa Maria, foram de trem. No dia 18 de outubro de 1904, eles chegaram às terras que seriam seu novo lar. Nascia aquela que, oficialmente, era a primeira colônia judaica em terras brasileiras. “Philippson terminou em 1926 e os habitantes acabaram indo para a cidade”, conta à BBC News Brasil a historiadora Roberta Alexandr Sundfeld, diretora do Museu Judaico de São Paulo. Sua avó, Frida Alexandr (1906-1973), nasceu na colônia agrícola judaica e escreveu um livro de memórias, publicado pela primeira vez em edição restrita em 1967 e que, agora, foi reeditado e relançado sob o nome de Filipson: Memórias de Uma Menina na Primeira Colônia Judaica do Rio Grande do Sul (Chão Editora). Essa grafia aportuguesada do nome da comunidade foi a escolhida por Alexandr quando escreveu a obra. “O fim da colônia agrícola foi por causa de algumas razões. Em primeiro lugar porque os habitantes eram todos originalmente ligados ao comércio. Na Bessarábia eles não tinham terras, não sabiam plantar, tratar da terra. E as terras onde eles estavam não eram muito férteis. O outro motivo era que eles queriam que os filhos estudassem”, pontua Sundfeld. “Os judeus trazidos pela ICA — além de muitos que vieram por conta própria — dedicavam-se à agropecuária, embora a maioria deles fosse proveniente das cidades e não tivesse experiência prévia nesta atividade”, frisou Iolovitch, em seu livro —ucraniano, ele próprio viveu em uma colônia agrícola vizinha a Philippson, a Quatro Irmãos, fundada em 1912. “Este foi um importante fator — embora não o único — a explicar o insucesso das colônias judaicas.” Sobre o despreparo dessas pessoas para o manejo rural há uma curiosa passagem no livro Filipson, quando Frida Alexandr escreveu sobre o gado que seu pai e seu irmão mais velho foram buscar logo depois que eles se instalaram na nova casa, porque “tínhamos direito e estava à nossa disposição no pasto da Administração”. “Voltaram eles em companhia do peão do administrador, pois nunca tinham antes lidado com gado. Receavam aproximar-se dele. Intimidavam-nos os grandes cornos retorcidos”, descreveu. “O peão ensinou-lhes como tirar o leite. Umas vacas eram bem mansas, mas outras necessitavam de ser amarradas pelos chifres e pelo pé esquerdo a um tronco, do contrário não consentiriam a ordenha ou entornariam a vasilha do leite com um coice.” Ela escreveu que diante da “incapacidade” manifestada por seu pai e seu irmão “para esse tipo de serviço”, a tarefa acabou “entregue às duas mulheres da casa”. Revisitar esses relatos surpreendeu até mesmo a neta da autora, a historiadora Roberta Sundfeld. “As memórias mais antigas que eu tenho de minha avó são ligadas à comida, à torta de maçã, aos cheiros. Tive uma surpresa quando li o livro e vi o quanto eles eram religiosos, porque eu não imaginava. Mas me chamou muito a atenção também ver como o mundo mudou em 120 anos”, comenta ela. “Eu não imaginava que minha avó montava a cavalo em pelo, que ela fosse capaz de depenar um frango, que em Philippson não havia luz elétrica, que banho era no riacho. Tudo isso me impressionou bastante quando reli o livro agora nessa nova publicação”, diz. Iolovitch também relatou que a vida nas colônias “era muito difícil”, o transporte “pelas ferrovias existentes era caro”, e as condições de saneamento “e de acesso a médicos e escolas” eram precárias. Filho de imigrantes judeus da Bessarábia, o escritor Moacyr Scliar (1937-2011) assinou o prefácio de uma das edições do livro de Iolovitch. Em seu texto, ele ressaltou que “o empreendimento, contudo, não teve o êxito esperado”, referindo-se a Philippson. “Por numerosos fatores — a carência de recursos, a inexperiência dos emigrantes, a tradicional instabilidade política da América Latina […] arrefeceram o ânimo dos colonos e fizeram com que a maioria deles buscasse as cidades.” Com o término da colônia, os judeus se instalaram parte em Santa Maria, parte em Uruguaiana, parte em Porto Alegre — como foi o caso de Frida Alexandr. Ela viveria como dona de casa e voluntária em trabalhos sociais. Quando publicou seu livro, tornou-se a primeira e única mulher de Philippson a escrever sobre a experiência. No posfácio da obra recém-lançada, a pesquisadora Regina Zilberman, professora na UFRGS, destaca que Philippson “não foi a primeira colônia formada por europeus que emigraram para o Brasil, tendo sido antecedida, por exemplo, pela Colônia Cecília, que reuniu, no interior do Paraná, um grupo de pessoas originárias da Itália que comungava ideias anarquistas”. “Também não foi a que, pela primeira vez, resultou da aquisição de terras por um mecenas interessado em ver prosperar uma comunidade caracterizada por princípios comuns, já que, no caso da experiência paranaense, foi Giovanni Rossi (1856-1943), ideólogo do anarquismo, quem escolheu o lugar de instalação dos imigrantes, havendo comprado as terras ocupadas por seus seguidores”, acrescentou. “Não foi, enfim, a primeira colônia dentre as patrocinadas pela ICA estabelecida na América Latina, tendo sido precedida pelas experiências de Moises Ville e de Lucienville, na Argentina, na última década do século 19”, frisou a pesquisadora. Em sua contextualização, Zilberman posicionou a experiência agrícola judaica no Rio Grande do Sul como algo parte da “tendência que estimulava a transferência de famílias de um país a outro, e especialmente, de um continente a outro, este sendo sobretudo a América, na busca de um tipo de vida mais condizente com suas expectativas existenciais, filosóficas e, no caso dos judeus, étnicas e religiosas”. “Mas a colônia assentada no Rio Grande do Sul”, concluiu a pesquisadora, “foi pioneira sob outro aspecto: constituiu a primeira colônia judaica oficial do Brasil, implantada a partir de recursos captados no exterior, mas apoiada pelo governo estadual […].” Conforme ressalta a socióloga Brumer, todo movimento migratório precisa ser analisado sob dois prismas: os fatores de expulsão e os de atração. “Na Rússia, a situação dos judeus se deteriorou principalmente quando Alexandre 3º assumiu o governo, em 1881, revertendo reformas liberais que haviam sido introduzidas por seu pai. Com as novas medidas os judeus foram duramente afetados pela perda de garantias jurídicas, proibição de residência em áreas rurais, restrição do acesso a escolas secundárias e ao ensino superior e perda de posições liberais”, contextualiza ela. “Devido a isso, aumentou a pobreza entre os judeus e diminuíram suas perspectivas de sobrevivência. Paralelamente, ocorreram pogrons, isto é, assassinatos coletivos de judeus. Esses fatores certamente estavam por trás das intenções migratórias de grande parte da população afetada.” Os países europeus enfrentavam ainda uma questão decorrente do avanço das máquinas que extinguiam inúmeros trabalhos manuais. “Para enfrentar a crise, alguns governos e empresas começaram a estimular a emigração de seus concidadãos para regiões onde a modernização ainda não havia chegado”, complementa ela, lembrando que a ICA “juntou-se a esses empreendimentos”. A atração, por sua vez, vinha porque o Brasil precisava de mão de obra, principalmente após a abolição do regime escravista, em vigor até 1888. “O governo brasileiro criou normas que favoreciam a vinda de imigrantes de países europeus. A imigração de agricultores para o sul do país foi fortemente estimulada, como forma de garantir a integração desse território ao país e pelo interesse no aumento da produção e comercialização agrícola”, explica Brumer. As narrativas memorialísticas de Frida Alexandr, como bem observou Zilberman, acabam demonstrando como aqueles colonos estavam preocupados com a instalação de três pilares muito caros ao judaísmo — porque eles seriam necessários para que essas pessoas tivessem no Brasil uma vida compatível com seus valores. Logo no segundo capítulo, a autora descreveu como foi construído o templo. “O diretor da colônia […] convocou os colonos para uma reunião […]. Queria participar-lhes que em breve chegariam as últimas famílias de imigrantes, e que eles eram portadores de uma dádiva […]. Essa dádiva consistia numa Torá (os rolos sagrados que contém a cultura milenar dos judeus)”, relatou. “Pediu aos colonos que se apressassem na construção de um templo. Os colonos exultaram com a boa notícia e puseram-se logo a trabalhar no erguimento de uma sinagoga”, disse ela. No capítulo terceiro, Alexandr narrou como se deu a eleição do shoiched, aquele que seria responsável tanto pelo abate do gado e suprimento de carne kosher como também por praticar o ritual de circuncisão dos meninos recém-nascidos. Ele acabaria sendo praticamente um rabino. “[…] tinha também tomado a si a santificação dos casamentos, a incumbência de circuncidar os varões recém-nascidos, bem como, por força da lei, promulgar o divórcio dos casais reconhecidamente incompatibilizados”, escreveu Alexandr. O terceiro pilar fundamental foi a inauguração da escola, um espaço coletivo para as aulas, um professor contratado e a preocupação em ensinar, às crianças, a língua portuguesa. Frida Alexandr contou como foi marcante a chegada de Léon Back (1882-1965), um romeno que foi encarregado de lecionar português. A autora descreveu a casa do professor como um local em que havia “assoalhos de madeira”, o que significava “para nós, crianças nascidas nas colônias não afeitas a nenhum conforto, o máximo do luxo”. “[Ele] viera diretamente de uma universidade europeia para ensinar na escolinha rural de um minúsculo ponto perdido na imensidade deste país”, ressaltou Frida Alexandr. “A administração da ICA se empenhava para a que a colônia Philippson fosse bem-sucedida. Assim, procurou evitar alguns equívocos ocorridos nas colônias agrícolas da Argentina”, diz Brumer. A socióloga conta que Back “tinha formação em odontologia e havia estudado a língua alemã e o português”. “Para preparar-se para ir para a colônia, onde chegou em 1908, passou alguns meses em Portugal para aperfeiçoar-se na língua portuguesa”, afirma. A escola instalada em Philippson era mista e ali também estudavam filhos de trabalhadores da estrada de ferro — eles viviam nas proximidades da colônia.
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj79kpjlp59o
brasil
Brics: como Lula tenta ampliar influência do Brasil no mundo
Na segunda-feira (21/8), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) embarcou para a África do Sul, onde participa da 15ª Cúpula dos Brics, grupo de países que ele ajudou a fundar e que reúne Brasil, Índia, Rússia, China e o país anfitrião. O país o 17º destino internacional de Lula em quase oito meses de governo. Nos bastidores, a visita é tida como mais uma etapa de um projeto ambicioso e construído a muitas mãos: ampliar a influência do Brasil na arena global. Uma frase dita por Lula em dezembro de 2022, antes mesmo de assumir seu terceiro mandato, é vista como a principal síntese desse projeto. "Quero dizer que o Brasil está de volta", disse Lula no Egito, durante a 27ª Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP-27). Os pilares desse plano vêm sendo delineados em discursos e ações ao longo dos últimos meses, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Segundo eles, pautas tradicionais da diplomacia brasileira continuam relevantes como a reformulação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas e mudanças no sistema de governança global. Fim do Matérias recomendadas Eles apontam, no entanto, que outros temas mais recentes passaram a compor o plano do atual governo para ampliar a esfera de influência brasileira no mundo. Para atingir esse objetivo, as principais apostas do Brasil vêm sendo: reduzir a dependência global em relação ao dólar norte-americano; liderar os debates relativos às mudanças climáticas; e atuar como mediador da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e diplomatas que falaram em caráter reservado apontam que o cenário internacional oferece obstáculos e oportunidades para o Brasil. Entre os obstáculos estão, por exemplo, a complexidade da crise envolvendo russos e ucranianos. Já entre as oportunidades estão o fato de que, durante seu mandato, o Brasil terá a chance de presidir o Mercosul, os Brics e o G20, oferecendo múltiplas plataformas para que o país tente avançar sua agenda. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A aposta do atual governo brasileiro em aumentar a influência do país internacionalmente é, segundo os especialistas, resultado da combinação entre o perfil pessoal de Lula e da forma como integrantes do entorno do presidente vêem o mundo. "Há um esforço claro de querer ampliar a visibilidade e influência do Brasil sobretudo depois de 10 anos que inviabilizaram uma atuação do Brasil na arena internacional", disse o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel. "Os dois primeiros governos de Lula tiveram como característica essa maior inserção do Brasil no exterior. Isso é característico dele e de pessoas ligadas ao PT como o (ex-ministro das Relações Exteriores) Celso Amorim. Essa retomada iniciada agora é, sim, intencional", disse à BBC News Brasil a coordenadora do programa Brazilian Studies da Universidade de Oxford, no Reino Unido, Laura Waisbich. Segundo ela, esse grupo entende que haveria uma necessidade de alterar as normas da governança global que, no momento, não contemplam a maior parte dos países, entre eles o Brasil. "Essa visão de mundo entende que as regras de governança global estabelecidas depois da Segunda Guerra Mundial excluem países como o Brasil de papeis mais relevantes. Nesse sentido, há um esforço para que haja reformas em diferentes frentes e que o Brasil precisa fazer movimentos nesse sentido", complementa Laura Waisbich. Um dos pilares do plano do atual governo para ampliar sua influência internacional é militar pela redução da dependência global em relação ao dólar norte-americano nas transações comerciais. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o dólar se transformou na moeda mais utilizada no comércio global. Na prática, isso obriga que países e empresas comprem dólares para realizarem suas transações. Nos últimos anos, porém, países como a China, atual segunda maior economia do mundo, passaram a liderar um movimento para a utilização de outras moedas, entre elas, o yuan chinês. O tema passou a ser recorrente em discursos de Lula desde que assumiu seu novo mandato. "Toda noite, me pergunto por que é que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar. Por que é que nós não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que é que nós não temos o compromisso de inovar?", disse Lula em um discurso em Xangai, durante visita ao Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), também conhecido como "Banco dos Brics". A redução da dependência do dólar também foi abordada em outro discurso de Lula, dessa vez diante de outra audiência, na França, em um evento em junho convocado pelo presidente Emmanuel Macron. "Por que que a gente não pode fazer (comércio) nas nossas moedas? Não sei por que Brasil e China não podem fazer nas nossas moedas. Por que eu tenho que comprar dólar?", disse Lula na ocasião. Antes, em janeiro, quando visitou a Argentina, Lula também abordou o assunto e chegou a anunciar que os dois governos estudariam uma forma de realizar suas transações comerciais em uma espécie de moeda ou unidade monetária comum. Politicamente, o Brasil vem buscando alternativas para ajudar a Argentina a driblar a crise de liquidez pela qual o país passa. Empresários argentinos reclamam que não conseguem importar produtos de países como o Brasil porque não têm dólares em quantidade suficiente para fazerem os pagamentos pelas mercadorias. Para Laura Waisbich, os movimentos do governo brasileiro são resultado da percepção de que as instituições financeiras multilaterais criadas após a Segunda Guerra Mundial (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, por exemplo), não atendem aos anseios do chamado "sul global", termo usado para países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina. "A reforma do FMI ou do Banco Mundial não aconteceu e é por isso que têm ocorrido iniciativas como a criação de outros bancos de desenvolvimento, como o Banco dos Brics. São iniciativas complementares. A desdolarização do comércio global é uma das pautas do atual governo", disse a especialista à BBC News Brasil. Em linha com os discursos, o governo brasileiro vem tentando ampliar o alcance do banco dos Brics, atualmente comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT). O governo vem se mostrando favorável ao aumento de membros da instituição que, além de ter os cinco fundadores iniciais, já conta com Bangladesh, Egito e Emirados Árabes Unidos. Nos próximos meses é esperada a inclusão do Uruguai. Recentemente, o presidente brasileiro disse que pretende discutir maneiras de reduzir a dependência global em relação ao dólar na reunião de líderes dos Brics. Nesta semana, diplomatas brasileiros disseram a jornalistas que os líderes dos Brics vão debater sobre a eventual criação de uma unidade monetária comum para ser usada em transações comerciais dos países do bloco. "Um aspecto interessante desse movimento é que o NDB (banco dos Brics) já empresta dinheiro na moeda local dos seus países-membros. Isso reduz, ainda que em pequena escala, a dependência do dólar para financiamentos de projetos importantes", disse Laura. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, o plano brasileiro de "desdolarizar" a economia global tem raízes na forma como o atual governo vê o mundo. "Essa reivindicação pela desdolarização da economia internacional se baseia em uma leitura de um mundo multicêntrico e multipolar, mas também é resultado de frustrações passadas com tentativas de reformas do sistema financeiro internacional por dentro. Os países, agora, tentam essa reforma por fora", disse à BBC News Brasil. Outro tema que passou a fazer parte da plataforma de expansão da influência brasileira no mundo é a pauta climático-ambiental. Antes mesmo de assumir a presidência, em dezembro de 2022, Lula incorporou de vez o tema em seus discursos ao falar a chefes de Estado durante a 27ª Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP-27), no Egito. Lá, ele prometeu zerar o desmatamento na Amazônia até 2030 e disse que seu governo tentaria conciliar o crescimento econômico à sustentabilidade ambiental. Parte do projeto de ampliar a influência do Brasil no tema também passou pelo lançamento da candidatura de Belém, capital do Pará, para ser sede da COP-30, em 2025. Em Belém, aliás, se deu outro passo desse projeto. Há duas semanas, o governo brasileiro promoveu a Cúpula da Amazônia. O evento reuniu países da região amazônica além de representantes de países ricos em florestas tropicais fora da Amazônia como a República do Congo, República Democrática do Congo e Indonésia. Diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmam que o objetivo do país é se transformar em uma espécie de "porta-voz informal" dos países ricos em florestas em fóruns internacionais como as COPs. Em jogo estão recursos estimados em US$ 100 bilhões anuais prometidos pelos países ricos a nações em desenvolvimento como forma de mitigar os efeitos das mudanças climáticas, fenômeno causado, principalmente, pelas emissões de gases do efeito estufa produzidas por países desenvolvidos. A cúpula foi vista com uma espécie de primeiro ensaio para a COP-25 e Lula disse que esperava terminar o evento com uma posição única dos países em relação a temas como a preservação ambiental, o que não ocorreu. Havia a expectativa de que todos os países da região assumissem um compromisso de zerar o desmatamento na região até 2030, mas isso não aconteceu. O evento também ficou marcado pela ausência de um compromisso dos países em limitar a exploração de petróleo na região amazônica, uma pauta defendida pelo governo da Colômbia, mas que encontra resistências em países como o Brasil, Venezuela e Guiana. Apesar dos percalços durante a cúpula, a pauta ambiental é vista pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil como aquela com a maior chance de ampliar a influência do Brasil internacionalmente. Para Dawisson Lopes, o esforço do governo atual é transformar o Brasil em uma referência na área aproveitando a tradição do país na pauta ambiental. "Na questão ambiental, o Brasil é um ator incontornável. Essa estratégia (de potencializar a pauta ambiental) é resultado do entendimento de que o mundo vive uma grave crise ambiental e que o Brasil tem, sim, um papel importante a desempenhar na solução desse problema", disse. Para Laura Wisbich, há sinais evidentes de como o atual governo passou a usar a pauta ambiental para ampliar sua influência internacional. "O atual governo incorporou a pauta ambiental de uma forma muito mais forte do que os anteriores, inclusive, se considerarmos os dois primeiros governos de Lula", disse. Para Oliver Stuenkel, a pauta ambiental seria a melhor aposta do Brasil neste momento. "Acho que do ponto de vista de um possível retorno, o tema ambiental é aquele em que o país consegue, com maior facilidade, se viabilizar como um ator indispensável no sistema internacional", afirma. A terceira aposta citada pelos especialistas como parte do projeto do Brasil de ampliar sua influência global é a que, segundo eles, tem sido menos mencionada nos últimos meses: a mediação de um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia. Nos bastidores, o raciocínio é de que a influência internacional do Brasil aumentaria se o país conseguisse atuar de forma significativa em um eventual acordo de paz entre Ucrânia e Rússia. Os dois países estão em guerra desde fevereiro de 2022, quando militares russos invadiram o território ucraniano. Logo que assumiu a presidência, Lula passou a defender a criação de um clube de países não envolvidos com o conflito com o objetivo de intermediar o processo de paz. Mas ao mesmo tempo em que defendia a ideia, Lula deu declarações que causaram reações de países europeus e dos Estados Unidos. Em visita à China, em abril deste ano, Lula disse que era preciso que nações parassem de "incentivar" a guerra. "É preciso que os EUA parem de incentivar a guerra e comece a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz para que a gente poder convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando por enquanto aos dois", disse o presidente. Dias depois, ele deu a entender que a responsabilidade pelo conflito era tanto do presidente da Rússia, Vladimir Putin, quanto do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. "Putin não toma a iniciativa de parar. Zelensky não toma a iniciativa de parar. A Europa e os EUA continuam contribuindo para a continuação desta guerra", disse. As declarações causaram reações na União Europeia e nos Estados Unidos. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, criticou a fala de Lula na ocasião. "É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra", disse. Em meio às declarações e às reações, Lula enviou um de seus principais conselheiros em política externa, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim a encontros com Putin, Zelensky e com líderes de países como a Arábia Saudita, que tenta mediar um acordo de paz. Para Dawisson Lopes, o esforço brasileiro de atuar como pacificador na crise ucraniana segue a tradição diplomática do país. "Essa atuação é uma continuação de um processo no qual o Brasil reivindica as suas credenciais históricas de um país dado à mediação e facilitação da paz como forma de participar do sistema de segurança internacional", explica. "Isso é parte dessa visão de mundo brasileira de que países de porte médio, os chamados países emergentes como o Brasil, devem ter mais funções e mais papeis na governança global", diz o professor. Para o professor Oliver Stuenkel, a forma com a qual o Brasil abordou a guerra da Ucrânia faz com que um retorno em forma de influência seja difícil. "Quando o presidente (Lula) disse que os dois países tinham responsabilidade no conflito, isso dificultou a posição do Brasil numa eventual mediação. Além disso, as chances reais de um acordo, hoje, são muito pequenas. Nem Estados Unidos e nem a China vêem um cenário crível para o fim do conflito no curto prazo", disse. Na avaliação de Dawisson Lopes, as chances de sucesso do Brasil ao explorar essa frente são, de fato, mais limitadas. "Nesse aspecto, o jogo é mais difícil para o Brasil. Diferentemente da pauta ambiental, em relação ao conflito, há muitos outros atores habilitados e tentando se habilitar para mediar um acordo de paz. O cenário é mais congestionado para o Brasil", pontua. Laura Waisbich avalia que, para a maioria das pessoas, os ganhos de um país quando ele amplia sua influência internacional não são claros. Ela recorre a um exemplo para tentar explicar como esses ganhos podem se dar. "Durante muito tempo, o Brasil lutou para que a questão da fome e redução da miséria fosse um tema global. Nos anos 2000, esse assunto virou um tema importante na ONU, o que fez com que recursos fossem direcionados para isso. Ao final, esses recursos poderiam ter chegado ao Brasil após esse esforço", explicou. Oliver Stuenkel diz que por mais que o governo Lula esteja determinado a ampliar a influência internacional do Brasil, há limitações domésticas que podem afetar esse projeto. "O principal limite desses esforços é a estabilidade política interna. Se a situação interna piorar, isso colocaria um grande limite ao que o governo pode fazer lá fora. E a situação pode piorar se a economia não crescer ou se a relação com o Congresso não melhorar", explicou o professor. Laura Waisbich pondera que ainda é cedo para saber se o atual governo atingirá seus objetivos. "É importante saber que não há bola de cristal quando se faz análise de cenário. O governo está no início e as diretrizes da atuação internacional ainda estão sendo construídas. Nesse momento, não é possível dizer se o plano do governo vai obter o que deseja", disse.
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw9gjy219p2o
brasil
Bolsonaro e as joias: entenda em detalhes o caso que envolve ex-presidente e aliados
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno são foco de uma investigação da Polícia Federal (PF) que apura um suposto esquema de negociação ilegal de joias dadas por delegações estrangeiras à Presidência da República. Segundo a PF, os itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer o ex-presidente. A revista Veja publicou nesta quinta-feira (17/8) que o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e um dos principais envolvidos no caso, pretende confessar em breve que teria negociado a venda das joias a mando do ex-presidente. Cid está preso. A intenção de confessar foi revelada à revista pelo advogado de Cid, Cezar Bitencourt, que posteriormente confirmou também a informação ao jornal Folha de S. Paulo e à TV Globo. Pouco depois da publicação da Veja, o portal G1 e a Folha divulgaram que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a quebra do sigilo fiscal e bancário do presidente e sua esposa, Michelle Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas A Polícia Federal havia pedido a quebra de sigilo do casal em meio à investigação sobre as joias. Ainda segundo o portal G1, Moraes autorizou a cooperação da Polícia Federal com autoridades dos Estados Unidos, para que a quebra de sigilo de Bolsonaro também aconteça neste país. Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa do STF não confirmou que a quebra de sigilo foi autorizada por Moraes. O que se sabe até agora sobre este intricado caso? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na última sexta-feira (11/8), a PF deflagrou a Operação Lucas 12:2 — o nome foi uma alusão ao versículo bíblico que diz que "não há nada escondido que não venha a ser descoberto". Quatro pessoas foram alvo da operação, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF): Mauro Cesar Barbosa Cid; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lourena Cid; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente do Exército Osmar Crivelatti; e o advogado Frederick Wassef, que já defendeu Bolsonaro e familiares em processos judiciais. Apesar de ter o nome mencionado pela PF como integrante de uma suposta "organização criminosa", Bolsonaro não foi alvo da operação. Moraes disse haver "fortes indícios de desvios de bens de alto valor patrimonial" no caso das joias negociadas pelo entorno do ex-presidente. O ministro do STF é relator do inquérito que investiga a atuação de uma suposta milícia digital contra a democracia. Segundo a PF, os crimes apurados na operação foram lavagem de dinheiro e peculato (desvio de bem público). A operação atingiu integrantes do núcleo mais próximo de Bolsonaro um mês depois de ele ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ficar inelegível por oito anos. A investigação envolve os presentes de alto valor que Bolsonaro recebeu quando ainda era presidente da República (2019-2022). Por lei, tais objetos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais. Uma exceção são itens considerados "personalíssimos", como roupas, perfumes e alimentos. Mas, segundo os investigadores, esses presentes de alto valor foram incorporados ao patrimônio pessoal de Bolsonaro e negociados com fins de enriquecimento ilícito. Os objetos sobre os quais a investigação da PF se debruçou são, por enquanto: um kit da marca suíça Chopard, dois relógios (um da marca suíça Rolex, acompanhado por joias, e outro da marca suíça Patek Philippe) e duas esculturas douradas folheadas a ouro. No entanto, os investigadores não descartam que mais peças tenham sido apropriadas indevidamente por Bolsonaro. Abaixo, mais detalhes sobre cada um desses itens. Em outubro de 2021, durante uma viagem do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, à Arábia Saudita, o governo Bolsonaro recebeu um kit com itens da marca suíça Chopard que incluía: uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio. Esse kit teria sido trazido pelo próprio ministro na sua bagagem pessoal sem ser declarado e permanecido guardado no cofre do prédio do ministério por mais de um ano, até ser registrado e enviado ao acervo da Presidência da República. Segundo a investigação da PF, esse kit saiu do Brasil no mesmo voo oficial que levou Bolsonaro, sua família e seus assessores à Flórida, nos Estados Unidos, no dia 30 de dezembro de 2022, o penúltimo dia de seu mandato. Levadas a leilão pela Fortuna Auctions, uma casa de leilões sediada em Nova York, nos Estados Unidos, com valor inicial de US$ 50 mil (R$ 248 mil, segundo cotação atual) — mas com valor estimado entre US$ 120 mil (R$ 596 mil) e US$ 140 mil (R$ 695 mil) —, as peças não foram arrematadas "por circunstâncias alheias à vontade dos investigados", disse a PF em relatório. Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que Bolsonaro entregasse esse kit à Caixa Econômica Federal (CEF) — os bens foram posteriormente "resgatados" na casa de leilão e devolvidos ao governo pela defesa do ex-presidente. O relógio da marca suíça Patek Philippe foi recebido possivelmente, segundo a PF, durante visita oficial de Bolsonaro ao Bahrein, um pequeno país no Golfo Pérsico, em novembro de 2021. Pela investigação, esse item foi negociado junto com o Rolex que fazia parte de um dos presentes dados pelo governo da Arábia Saudita (ler mais abaixo). Segundo a PF, o relógio Patek Philippe foi extraviado do acervo oficial "diretamente para a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro". A investigação aponta que fotos do item foram enviadas por Mauro Cesar Barbosa Cid para um contato cadastrado em sua agenda como "Pr Bolsonaro Ago/21" em 16/11/21, ainda durante a viagem ao Bahrein. Cid também enviou ao mesmo contato outra foto, do certificado do relógio, indicando que a peça era original de uma loja daquele país, ainda conforme a PF. Segundo a PF, Bolsonaro recebeu, em novembro de 2021, uma escultura de barco folheada a ouro em um seminário com empresários árabes e brasileiros no Bahrein. A outra escultura, também folheada a ouro, mas em formato de palmeira, não teve a origem identificada. As duas peças recebidas por Bolsonaro como presentes oficiais também foram levadas no voo oficial para Orlando, antes de o ex-presidente concluir seu mandato. Dali, os itens foram encaminhados para lojas especializadas nos estados americanos da Flórida, Nova York e Pensilvânia, "para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta". Segundo a PF, mensagens de Mauro Cid indicam que os objetos foram avaliados com valores baixos porque eram apenas "folheadas", e não de ouro maciço. Não há menção na investigação quanto ao valor das peças em reais. Em viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2019, Bolsonaro recebeu um kit com: anel, abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio da marca Rolex, de ouro branco com diamantes. Foi um presente pessoal do rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz Al Saud, ao ex-presidente. Esse Rolex foi, segundo a PF, negociado junto com o relógio Patek Philippe por US$ 68 mil (R$ 346.983,60 na cotação da época). A PF não estimou o valor dos outros itens em seu relatório. Segundo os investigadores, esse kit também foi transportado no último voo oficial de Bolsonaro como presidente, em dezembro de 2022. Mas acabou desmembrado por seus assessores: o relógio foi vendido a uma empresa especializada, e as joias, entregues para venda em outra. Assim como o kit da Chopard, esse kit teve que ser "resgatado" por aliados de Bolsonaro após decisão do TCU, em março, que determinou que eles teriam que ser devolvidos ao governo federal. Segundo a PF, essa "operação de resgate" envolveu novamente Mauro Cid — e também Frederick Wassef, amigo de Bolsonaro e ex-advogado dele. A recompra teria acontecido em uma loja localizada no complexo Seybold Jewelry Building na cidade de Miami, na Flórida. "Primeiramente o relógio Rolex DAY-DATE, vendido para a empresa Precision Watches, foi recuperado no dia 14/03/2023, pelo advogado Frederick Wassef, que retornou com o bem ao Brasil, na data de 29/03/2023. No dia 02/04/2023, Mauro Cid e Frederick Wassef se encontraram na cidade de São Paulo, momento em que a posse do relógio passou para Mauro Cid, que retornou para Brasília/DF na mesma data, entregando o bem para Osmar Crivelatti, assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro", diz a PF em seu relatório. Segundo a investigação, Cid chegou ao Brasil em 28 de março com as joias, e Wassef, no dia seguinte, com o Rolex. O kit foi remontado e entregue em uma agência da Caixa Econômica Federal, em Brasília, em 4 de abril de 2023. A PF lembra que, no caso do relógio Patek Philippe, ele não havia sido registrado, portanto, não foi necessária a mesma "operação de resgate" para "recuperar o referido bem, pois, até o presente momento, o Estado brasileiro não tinha ciência de sua existência." Segundo a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de "desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior". A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores. Uma troca de mensagens em janeiro deste ano por Mauro Cid e Marcelo Câmara, assessor especial da Presidência da República, incluiu um áudio no qual Cid faz alusão a 25 mil dólares que pertenceriam a Bolsonaro. "Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em 'cash' aí. Meu pai estava querendo inclusive ir ai falar com o presidente. (...) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (...). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?", diz Cid. A investigação da PF mostrou também, a partir da análise de mensagens no WhatsApp, que Mauro Cid teve a ajuda do seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, para negociar os itens e repassar o dinheiro das vendas. Uma das evidências disso, segundo a PF, é reflexo dele em uma foto da caixa de uma das esculturas folheadas a ouro que não foi vendida. Lourena Cid é amigo pessoal de Bolsonaro. Os dois se formaram juntos na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Durante o governo Bolsonaro, Lourena Cid ocupou um cargo na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil). Também na última sexta-feira (11), uma investigação paralela sobre outras joias — também dadas pela Arábia Saudita — que corria na Justiça Federal paulista, foi enviada ao STF a pedido do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo. Essa investigação foi aberta em maio deste ano, após a apreensão de um conjunto formado por colar, anel, relógio e brincos de diamantes pela Receita Federal no aeroporto internacional de Guarulhos. As joias seriam presentes para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Os itens foram encontrados na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque. Como não foram declaradas, as peças acabaram confiscadas. Pela lei, todo bem avaliado em mais de R$ 5 mil (US$ 1.000) deve ser declarado na chegada ao país. Segundo o MPF, o caso sob investigação em São Paulo tem ligação com os fatos em análise no STF. Na sexta-feira passada (11), após a operação da PF, a defesa de Jair Bolsonaro afirmou em nota que o ex-presidente "jamais apropriou-se ou desviou quaisquer bens públicos" e que coloca sua movimentação bancária à disposição das autoridades. A defesa também afirmou que ele "voluntariamente" pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) em março deste ano a entrega de joias recebidas "até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito". A BBC News Brasil está buscando um novo posicionamento do ex-presidente. À Folha, o advogado criminalista Cezar Roberto Bittencourt, responsável pela defesa do tenente-coronel Mauro Cid, disse nesta quinta (17) que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro não se beneficiou do negócio. "Ele confessa que comprou as joias evidentemente a mando do presidente", disse Bittencourt à Folha, acrescentando que procurará Alexandre de Moraes na próxima segunda-feira para conversar sobre a confissão. A jornalistas, Wassef disse na terça (15) que sua viagem aos EUA teve "fins pessoais". Ele acrescentou que comprou o Rolex com dinheiro vivo, "do meu banco", e declarou a transação à Receita Federal. "Comprei o relógio, a decisão foi minha, usei meus recursos, eu tenho a origem lícita e legal dos meus recursos", afirmou. Na entrevista, ele disse ainda que o objetivo da compra era "devolvê-lo à União, ao governo federal do Brasil, à Presidência da República, e isso inclusive por decisão do Tribunal de Contas da União". Segundo o advogado, o pedido de compra não partiu de Bolsonaro ou de Cid. Ele se recusou a informar para quem entregou o relógio. "O governo do Brasil me deve R$ 300 mil", acrescentou Wassef, mostrando um recibo de compra de US$ 49 mil. Ele justificou o pagamento em dinheiro vivo para conseguir um "desconto". "Consegui US$ 11 mil dólares (de desconto). Se comprasse com cartão de crédito, pagaria no Brasil com 5% de IOF." A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Osmar Crivelatti.
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cer7jndk8ymo
brasil
Hacker diz à CPI que Bolsonaro pediu invasão de urnas; veja 3 pontos do depoimento
Conhecido como “hacker da Vaza Jato", o programador Walter Delgatti Neto afirmou que o então presidente Jair Bolsonaro pediu que ele invadisse as urnas eletrônicas em 2022 e ofereceu indulto caso o hacker fosse preso ou condenado. A declaração de Delgatti ocorreu durante seu depoimento à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos atos golpistas de 8 de janeiro nesta quinta-feira (17/8). Delgatti foi apelidado de “hacker da Vaza Jato” em 2019, após ter acesso a mensagens da Operação Lava Jato. Bolsonaro não havia se pronunciado sobre a fala de Delgatti até a publicação desta reportagem. A seguir, veja os principais pontos da fala de Delgatti, que continua nesta tarde. Fim do Matérias recomendadas Segundo Delgatti, a oferta de indulto do presidente aconteceu durante uma reunião no Palácio do Planalto em 2022, antes das eleições. A reunião teria sido intermediada pela deputada Carla Zambelli (PL-SP). De acordo com o depoimento de Delgatti, Bolsonaro perguntou se ele conseguiria invadir as urnas eletrônicas para “testar a lisura das eleições”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Apareceu a oportunidade da deputada Carla Zambelli, de um encontro com o Bolsonaro, que foi no ano de 2022, antes da campanha. Ele queria que eu autenticasse a lisura das eleições, das urnas. E por ser o presidente da República, eu acabei indo ao encontro”, disse o hacker, que afirmou que aceitou pois estava “desamparado” e “sem emprego”. Delgatti afirmou que cuidava das redes sociais da deputada Carla Zambelli e que ela teria oferecido um emprego na campanha de Bolsonaro. Questionado pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA) se recebeu alguma garantia de proteção do presidente pelo pedido de que cometesse um crime, o hacker disse que sim. “Sim, recebi. Inclusive, a ideia ali era que eu receberia um indulto do presidente. Ele havia concedido um indulto a um deputado federal. E como eu estava com o processo da (operação) Spoofing (da Polícia Federal) à época, e com as (medidas) cautelares que me proibiam de acessar a internet e trabalhar, eu visava a esse indulto. E foi oferecido no dia”, afirmou Delgatti. Ele disse ainda que o ex-presidente mandou o general Marcelo Câmara colocá-lo em contato com técnicos do Ministério da Defesa para obter ajuda na missão. Segundo Delgatti, Câmara teria hesitado, mas acabou cumprindo a ordem. Os servidores do ministério, disse, explicaram que ele não poderia inspecionar o código-fonte das urnas porque ele ficava somente no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Então os servidores do ministério iam ao TSE, "decoravam" parte do código e repassavam as informações a ele, que não teve acesso à íntegra do código-fonte. Delgatti disse que sabia que estava cometendo um crime, mas que obedeceu por medo e por ser uma ordem do presidente da República. Além disso, disse ele, o presidente ofereceu o indulto caso ele fosse preso ou condenado. "Ele (Bolsonaro) me deu carta branca para fazer o que eu quisesse relacionado às urnas. Então, eu poderia, segundo ele, cometer um ilícito, que seria anistiado, perdoado", afirmou. Segundo Delgatti, o contato dele com o ministério da Defesa não parou por aí: ele afirmou que "orientou" o relatório oficial do ministério entregue ao TSE em 2020. O relatório do órgão foi diferente de todas as outras entidades de fiscalização das urnas, que apontavam que as máquinas são seguras e confiáveis. Embora não tenha encontrado fraude, o ministério disse que era impossível garantir que haveria isenção nas eleições. "Tudo que eu repassei a eles consta no relatório que foi entregue ao TSE. Eu posso dizer hoje que, de forma integral, aquele relatório tem exatamente o que eu disse, não tem nada menos e nada mais", disse Delgatti. Delgatti disse também que o marqueteiro de Bolsonaro, Duda Lima, pediu que ele obtivesse um “código-fonte falso” para acusar as urnas eletrônicas de serem frágeis. O pedido teria sido feito durante uma reunião em que estavam presentes também Zambelli e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. Duda Lima soltou uma nota negando todas as afirmações. Segundo Delgatti, a ideia era que ele criasse um código-fonte falso que permitisse mostrar alguém apertando um voto e a urna registrando outro. "O código-fonte da urna, eu faria o meu, não o do TSE”, disse ele. "No dia 7 de setembro, (a ideia era) eles pegarem uma urna emprestada da OAB, acredito. E que eu colocasse um aplicativo meu lá e mostrasse à população que é possível apertar um voto e sair outro." Zambelli e Valdemar da Costa Neto ainda não se pronunciaram sobre o caso. Delgatti também disse à CPI que Bolsonaro afirmou que o governo já tinha conseguido grampear o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes e que o presidente pediu que o hacker assumisse a autoria do grampo. "E, segundo ele [Bolsonaro], eles haviam conseguido um grampo, que era tão esperado à época, do ministro Alexandre de Moraes. Que teria conversas comprometedoras do ministro, e ele precisava que eu assumisse a autoria desse grampo", afirmou Delgatti. Segundo o hacker, ele teria sido escolhido para evitar questionamentos da esquerda. Walter Delgatti Neto chamou a atenção pela primeira vez em 2019 por ter invadido celulares e divulgado mensagens atribuídas a integrantes da força tarefa da operação Lava Jato e ao ex-juiz Sergio Moro que mostravam irregularidades. "Lembrando que, à época, eu era o hacker da Lava Jato”, disse Delgatti. “Então, seria difícil a esquerda questionar essa autoria, porque lá atrás eu teria assumido a 'Vaza-Jato', que eu fui, e eles apoiaram. Então, a ideia seria um garoto da esquerda assumir esse grampo (contra Moraes)." A ação do hacker na Lava Jato rendeu também um bate-boca com Moro (que hoje é senador) durante a CPI. O senador citou processos criminais enfrentados por Delgatti, que respondeu dizendo que Moro é um criminoso e que ele soube disso lendo as mensagens que obteve após invadir celulares. "Li a parte privada e posso dizer que o senhor é um criminoso contumaz, cometeu diversas irregularidades e crimes", afirmou. Moro respondou afirmando que Delgatti é quem foi preso e que ele é um "bandido". O hacker então respondeu que Moro só não foi preso porque "apelou" para a prerrogativa de função (de ser julgado apenas pelo STF). O vice-presidente da CPI, Cid Gomes (PDT-CE) pediu que os dois se respeitassem para que a seção pudesse continuar.
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2k5dn07e4o
brasil
Quem é Frederick Wassef, 'anjo' dos Bolsonaro que comprou Rolex nos EUA e hospedou Queiroz
Na noite de quarta-feira (17/8), agentes do setor de inteligência da Polícia Federal encontraram Frederick Wassef jantando em uma churrascaria, num shopping center de São Paulo. Alvo de busca pessoal autorizada pela Justiça, o braço direito do ex-presidente Jair Bolsonaro, descrito como "anjo" por membros do entorno do ex-presidente, foi abordado, teve aparelhos de celular apreendidos — quatro, segundo o portal G1 — e o carro revistado. A PF deflagrou na última sexta-feira (11/8) uma operação contra pessoas próximas ao ex-presidente, incluindo militares e o advogado Wassef, sob suspeita de participação em um esquema de venda de presentes recebidos por Bolsonaro em compromissos oficiais. O dinheiro obtido ilegalmente com as vendas, segundo a PF, iria para Bolsonaro — que nega qualquer envolvimento. Fim do Matérias recomendadas Naquele dia, Wassef não foi localizado pela polícia, que cumpria mandados de busca e apreensão. A investigação mira supostos crimes de peculato e lavagem de capitais. Nascido em São Paulo, o criminalista Wassef foi advogado de Jair Bolsonaro e de seu filho, Flavio Bolsonaro. Amigo íntimo da família, é considerado um dos conselheiros mais influentes do ex-presidente em assuntos jurídicos — mais até que alguns ministros que despacharam no Palácio do Planalto em seu mandato. Era tratado por Queiroz e familiares de Bolsonaro como "anjo" — nome que usou em campanha para deputado federal nas últimas eleições. Em sua primeira publicação no Instagram, quando anunciou sua candidatura, Wassef escreveu: “O anjo chegou”. Também usou o termo em publicações de apoio à reeleição de Jair Bolsonaro — mais tarde derrotado por Lula. Com R$ 14 milhões em patrimônio declarado à época, Wassef teve apenas 3.628 e também não se elegeu. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tanto no caso da venda do relógio de centenas de milhares de reais, quanto no episódio em que o homem conhecido como "pivô das rachadinhas" foi encontrado em um imóvel de sua propriedade, Wassef deu declarações descritas como contraditórias. "Jamais soube da existência de joias ou quaisquer outros presentes recebidos. Nunca vendi nenhuma joia, ofereci ou tive posse. Nunca participei de nenhuma tratativa, e nem auxiliei nenhuma venda, nem de forma direta ou indireta", disse no domingo (13/8), em nota à imprensa de madrugada. "Jamais participei ou ajudei de qualquer forma qualquer pessoa a realizar nenhuma negociação ou venda", continuou. Na terça-feira (15/8), no entanto, Wassef convocou a imprensa e assumiu ter comprado o relógio Rolex para "cumprir decisão do Tribunal de Contas da União (TCU)”. Três anos atrás, em outubro de 2019, o advogado respondeu com ironia a uma pergunta sobre o paradeiro de Queiroz, que havia desaparecido e era procurado por investigadores. "Como é que vou saber (sobre o paradeiro de Queiroz)? Ele tem um CPF e eu tenho outro (...) Não sei onde está, não tenho informação", disse então Wassef ao jornal O Estado de S. Paulo. Em operação da PF em junho do ano seguinte, Queiroz foi encontrado escondido em uma casa no bairro Jardim dos Pinheiros, em Atibaia (SP), pertencente a Wassef. O Rolex foi dado de presente a Bolsonaro por autoridades da Arábia Saudita em 2019, durante visita do ex-presidente ao país. Em março deste ano, o TCU determinou que Bolsonaro entregasse um conjunto de joias suíças de ouro branco da marca de luxo Chopard, também presente do governo saudita. Após devolver a joia, membros do entorno de Bolsonaro teriam dado início a uma operação para resgatar o relógio vendido nos EUA. Wassef seria, segundo a investigação, o responsável escalado para viajar aos Estados Unidos para comprá-lo e trazê-lo. Antes de Wassef confirmar a compra à imprensa, a PF havia identificado uma viagem do advogado aos EUA, em 11 de março, além de uma série de conversas entre ele e Mauro Cid por WhatsApp. Além da residência de Wassef, a operação deflagrada ela PF cumpriu mandados de busca e apreensão nos endereços do general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, pai de Mauro Cid. Segundo a PF, os investigados são suspeitos de usar a estrutura do governo "para desviar bens de alto valor patrimonial, entregues por autoridades estrangeiras em missões oficiais a representantes do Estado brasileiro, por meio da venda desses itens no exterior". À GloboNews, o advogado criminalista Cezar Roberto Bittencourt, responsável pela defesa do tenente-coronel Mauro Cid, disse que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro é um “grande injustiçado” na investigação da PF. Ele disse que ajudantes militares como Cid cumprem “ordens ilegais e injustas” dos chefes por causa da “obediência hierárquica”. A jornalistas, nesta terça-feira, Wassef disse que sua viagem aos EUA teria "fins pessoais". Ele também disse, no entanto, que comprou o Rolex com dinheiro vivo, "do meu banco", e declarou a transação à Receita Federal. "Comprei o relógio, a decisão foi minha, usei meus recursos, eu tenho a origem lícita e legal dos meus recursos", afirmou. Na entrevista, ele afirmou que o objetivo da compra era "devolvê-lo à União, ao governo federal do Brasil, à Presidência da República, e isso inclusive por decisão do Tribunal de Contas da União". Segundo o advogado, o pedido de compra não partiu de Bolsonaro ou de Cid. Ele se recusou a informar para quem entregou o relógio. "O governo do Brasil me deve R$ 300 mil", disse também Wassef, mostrando um recibo de compra de US$ 49 mil. Ele justificou o pagamento em dinheiro vivo como forma de conseguir um "desconto". "Consegui US$ 11 mil dólares (de desconto). Se comprasse com cartão de crédito, pagaria no Brasil com 5% de IOF." O advogado se tornou amigo do presidente da República e de sua família ainda em 2014, e gosta de dizer que foi a primeira pessoa a dizer a Bolsonaro que ele deveria concorrer à Presidência da República, quando esta ainda era uma possibilidade distante para o então deputado federal. "Eu não só fui o primeiro a acreditar no Bolsonaro, como fui o primeiro a colocar na cabeça dele a ideia de concorrer à Presidência", disse ele à colunista Thaís Oyama, do UOL. "Eu tinha acesso à Lava Jato, sabia que iriam ser todos presos. Falei para ele: o senhor vai ficar sozinho e sem concorrência no mercado. Eu previ o futuro", comenta. Na época, Frederick Wassef era casado com a empresária Maria Cristina Boner Leo — ela se tornou amiga de Michelle Bolsonaro. Michelle e o ex-presidente passaram a frequentar a casa dos dois. Em 2015, Bolsonaro chegou a comprar um veículo SUV da marca Land Rover de uma das empresas de Cristina, por R$ 50 mil. A transação veio a público em reportagem da revista Veja. Maria Cristina era ré em um dos processos resultantes da Operação Caixa de Pandora, deflagrada pela Polícia Federal em novembro de 2009, e que resultou na queda do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (2007-2010). Em janeiro de 2020, o Ministério Público do DF pediu a condenação dela no caso, junto com Arruda e com a do ex-vice-governador Paulo Octávio, entre outras pessoas. "O conjunto probatório produzido nos autos [depoimentos de Durval Barbosa, laudos periciais de captação ambiental, vídeos, monitoramento de quantias] foi mais que suficiente para comprovar que a ré Maria Cristina Boner Leo ofereceu e efetivamente pagou vantagem indevida aos réus", disse o MP. Apesar de nunca ter tido cargo no governo federal, Wassef era frequentador assíduo do Palácio do Planalto e participava de solenidades importantes, como a posse de ministros. Costumava ser visto em "áreas vip" de eventos do governo Bolsonaro, ao lado de figuras importantes como a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e o então ministro Tarcísio de Freitas (Infraestrutura). Pela proximidade com o ex-presidente da República, Wassef era considerado quase um "ministro informal" ou "ministro sem pasta" dentro do governo , segundo assessores próximos. A visão dele teria sido levada em consideração em algumas das decisões mais importantes do governo — entre elas, a escolha de André Mendonça para o posto de Ministro da Justiça e Segurança Pública, após a saída do ex-juiz Sergio Moro do posto. Wassef, no entanto, negou em público que tenha participado dessa ou de outras escolhas. "O PR escolhe seus ministros sozinho. Esta história, lenda urbana, folclore de que os filhos de Bolsonaro escolhem os ministros não corresponde à história real. Quem toma a decisão é ele, quando forma sua convicção. Não tem isso de os filhos estarem intrometidos no governo", disse ele, na ocasião. Católico praticante, Wassef tem visões políticas próximas daquelas dos Bolsonaro. É a favor de mais rigor na intervenção policial, por exemplo, e se considera um inimigo da esquerda política. Com reportagem de André Shalders.
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx7400p53po
brasil
Como ficaria Brasil em ranking de gasolinas mais baratas do mundo após reajuste
Esta reportagem foi atualizada em 17 de agosto de 2023. O aumento do preço da gasolina anunciado pela Petrobras nesta semana pode fazer com que o país caia mais de dez posições no ranking das gasolinas mais baratas do mundo. Pelo ranking semanal elaborado pelo site Global Petrol Prices, o Brasil era o 47º país com a gasolina mais barata do mundo, com um preço médio para o consumidor de R$ 5,53 por litro. Com as mudanças em vigor desde quarta-feira (16/08), o Brasil cairia ao menos para 61º no ranking — considerando apenas a alteração do preço praticado no país com o aumento anunciado pelo governo federal brasileiro. Fim do Matérias recomendadas Em novo reajuste, a Petrobras anunciou nesta semana aumento de R$ 0,41 por litro na gasolina. O etanol sobe R$ 0,78. Segundo a Petrobras, apesar dos reajustes, os preços dos combustíveis tiveram redução média de R$ 0,15 por litro para a gasolina e de R$ 0,69 por litro para o diesel no acumulado em 2023. Todos estes preços se referem ao valor do combustível vendido para as distribuidoras de combustíveis. O impacto final no posto para o consumidor comum, segundo a Petrobras, pode variar em todo o país, dependendo de "outros fatores, como impostos, mistura de biocombustíveis e margens de lucro da distribuição e da revenda". Os postos têm liberdade para estipular os preços cobrados do consumidor final, o que significa que o impacto na bomba pode ser ainda maior. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Considerando apenas esta alteração, pelo ranking da Global Petrol Prices, o preço médio da gasolina passaria de R$ 5,53 por litro para ao menos R$ 5,94. A gasolina brasileira passaria a ser mais cara, em média, do que a de países como Austrália (equivalente a R$ 5,684), China (R$ 5,755) e África do Sul (R$ 5,847). No aumento anunciado em março desse ano, o Brasil ultrapassou as médias de países como Argentina e Estados Unidos. A lista é elaborada pelo site Global Petrol Prices, mantido por especialistas em preços de energia. Essa avaliação é feita apenas com base nos dados mais recentes publicados pela plataforma, que são referentes a segunda-feira (14/8). Esses dados podem mudar ao longo da semana em todos os países, o que pode influenciar na posição que o Brasil ocupará na lista. O ranking é afetado por diversos fatores — como mudanças no preço internacional do petróleo, alterações nas políticas energéticas e tributárias de cada país e variações cambiais. Os preços pagos por consumidores ao redor do mundo por um litro de gasolina variam bastante — desde R$ 0,021 na Venezuela (o país com a gasolina mais barata do mundo) a R$ 15,315 em Hong Kong. Entre seus vizinhos, o Brasil tem gasolina mais cara do que Venezuela, Bolívia, Equador, Colômbia, Suriname, Argentina e Guiana. A gasolina mais cara entre os vizinhos brasileiros é do Uruguai: R$ 9,194 — um nível semelhante ao de países como Reino Unido, Israel e Espanha.
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q9y1y6lr7o
brasil
101 crianças mortas a tiros no Rio desde 2007: 'Sei o que mãe da Eloah está vivendo'
Sempre que vê casos como o da menina Eloah da Silva Santos, morta na semana passada aos 5 anos por uma bala perdida durante uma operação policial, Vanessa Francisco Sales costuma falar: "Eu sei o que esta mãe está vivendo". Quase quatro anos atrás, foi ela, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte carioca, que viveu tragédia semelhante. Um tiro matou a filha dela, a pequena Ágatha Vitória Sales Félix, uma garotinha negra, de cabelo farto e sorriso largo, aos 8 anos. A explicação oficial foi que o disparo foi feito por um policial militar contra "suspeitos". O crime, cometido em setembro de 2019, até hoje não foi a julgamento — e Vanessa diz que vive um dia de cada vez. Fim do Matérias recomendadas Um dos desafios é enfrentar as recordações, que são inevitáveis. "A minha vida é uma lembrança", diz ela à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Minha filha se foi. Ela morava comigo, uma criança. Ali se passou tudo com ela, naquele local. Ninguém quer voltar, ninguém quer viver aquilo. Porque vai ter lembranças, tem lembranças, sempre existirão lembranças. Em todo momento... Neste momento, tenho lembranças. Então, assim, a minha vida serão lembranças." Enfrentar as recordações foi justamente um dos desafios de Vanessa. Ela mora na localidade conhecida como Alvorada, no Complexo do Alemão, no mesmo local onde Ágatha nasceu e viveu até os 8 anos. Voltou para lá, após um período de afastamento que se seguiu à morte da filha. "Fiquei oito meses sem voltar para a minha casa", conta. "Mas depois tive que voltar. Consegui continuar vivendo a minha vida aqui fora." Ágatha e Eloah são parte de uma estatística macabra. Desde 2007, 101 crianças e adolescentes, com idades de zero a 14 anos, foram assassinadas no Rio de Janeiro, segundo a ONG Rio de Paz. Foram baleadas em ações policiais, em confrontos das forças de segurança com criminosos e em disputas entre bandidos. Em 2023, já foram onze vítimas assassinadas nessa faixa etária no Estado, contra quatro em 2022. Eloah foi baleada e morta em casa, na Ilha do Governador, em 12 de agosto. Na noite de 20 de setembro de 2019, Ágatha Félix foi baleada nas costas quando voltava de um passeio em uma kombi de transporte coletivo na localidade da Fazendinha, no Alemão. O veículo estava parado para que passageiros descessem. Um PM atirou quando homens passaram em uma motocicleta. A Polícia Militar, na época, alegou que foi um revide contra criminosos que teriam disparado. Testemunhas, no entanto, negaram ter havido troca de tiros. Segundo investigações da Polícia Civil, o policial teria confundido uma barra de alumínio, levada pelo garupa, com um fuzil, e atirado contra o "traficante". Vanessa evita lembrar detalhes do dia da morte de Ágatha. "Se eu ficasse lembrando, não ia conseguir continuar vivendo como eu vivo hoje, tentando sobreviver à tragédia que foi, na minha vida, a ida da minha filha", afirma, ao comentar como se sente ao saber, pela imprensa e pelas redes sociais, de mortes de outras crianças baleadas. Um dos pontos que inquietam Vanessa é a repetição, em outros casos, de circunstâncias semelhantes àquelas que levaram Ágatha à morte. "Não que sejam todos da mesma forma, mas partindo da mesma situação, de um tiro, de alguém que deveria te proteger de uma situação", diz. "Eu sempre vou lembrar. Não tem como isso apagar da minha vida. Infelizmente, a cena se repete com o passar dos dias, com o passar do tempo. Infelizmente, está acontecendo. Enquanto não houver, enquanto não tiver políticas públicas inteligentes, isso não vai acabar.” Segundo ela, mães de outras vítimas de crimes semelhantes, com quem tem contato, não costumam falar muito dos novos episódios que resultam em mortes de crianças e adolescentes. "Porque cada um tem o seu caso, então, se a gente for juntar os casos.", explica. "A gente não fica falando porque já é uma coisa tão dolorosa. A gente tem momentos que vai comentar 'infelizmente, lamentável', mas a gente não fica falando. Porque mexe muito com a mãe, com a família naquele momento." Aos 36 anos, Vanessa não teve outros filhos — nem faz planos de tê-los, embora não descarte a possibilidade. Religiosa, afirma ter colocado Deus em primeiro lugar. "O que Ele desejar para mim, se for para ter mais três, trigêmeos", diz. "Mas eu não fico planejando, não consigo pensar à frente. Hoje, eu quero estar com minha saúde mental intacta, equilibrada, a minha saúde também física. Estou priorizando isso, a minha saúde espiritual, mental e física. E o meu casamento. Então, são as coisas que estou priorizando hoje. Isso inclusive acho que vai ter consequência numa vida boa, numa vida trabalhada, (...) superando a cada dia." "Hoje escolhi estar viva", afirma, com a voz em tom sereno. "Só por isso estou aqui falando com você." O fundador da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, diz que "nada do que vivemos é novo". Desde a fundação da organização, em 2007, os episódios violentos têm, segundo ele, um ciclo que passa pela indignação, silêncio e esquecimento. Esse é, na sua opinião, o destino, em poucos dias, do mais recente desses crimes: o assassinato de Eloah. Isso acontece, diz Costa, porque a sociedade se omite, já que "90% dessas mortes ocorrem dentro de comunidades pobres". E a sociedade, acusa ele, quer isso. "Não estou dizendo que a sociedade quer que as crianças morram", explica. "Mas que quer uma polícia truculenta, quer tiro, pancada e bomba." Costa afirma que os políticos sabem que, se prometerem em campanha eleitoral que vão "endurecer com os bandidos", conseguem muitos votos. São, inclusive, instruídos por profissionais de marketing a fazer esse tipo de promessa, ele diz. E a sociedade se mantém silente, encarando as mortes de crianças como "efeitos colaterais" de uma guerra à criminalidade, acusa. Ele também questiona qual país civilizado tem o histórico da polícia brasileira de envolvimento em episódios com mortes de crianças. "Não vejo como mudar isso sem muita pressão da sociedade, sem muita pressão dos meios de comunicação", afirma. Para ele, além de programas sociais, é preciso uma profunda reforma da polícia, o que é outro problema. "Ninguém encara a polícia, a reforma da polícia vai desagradar muita gente."
2023-08-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nrggeeg5yo
brasil
Rio Amazonas é o maior do mundo? Expedição para medir vai averiguar
Guerras, revoluções e outros movimentos políticos e econômicos alteraram significativamente a geografia nos últimos 30 anos. Mas como se o fato de nações inteiras desaparecerem dos mapas e outras ressurgirem ou nascerem não fosse suficiente, uma expedição agora ameaça tornar obsoletos os livros escolares em todo o mundo, pois tenta provar que o Amazonas é o rio mais longo do planeta. Em abril de 2024, um grupo liderado pelo documentarista e explorador brasileiro Yuri Sanada partirá para os recantos mais remotos dos Andes peruanos com o propósito de mapear e medir todo o curso do rio, a fim de comprovar que é este, e não o Nilo, como afirmam a maioria dos textos, o mais extenso do globo. De acordo com a Enciclopédia Britânica, o Serviço Geológico dos Estados Unidos e o Livro dos Recordes do Guinness, o Nilo tem uma extensão de 6.650 quilômetros, enquanto o Amazonas se aproxima com 6.400. No entanto, uma série de pesquisas e estudos realizados nos últimos quinze anos por instituições como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), assim como por alguns exploradores norte-americanos, têm colocado em dúvida esses dados. Fim do Matérias recomendadas "Vamos a provar que o Amazonas nasce no rio Mantaro, no Peru", declarou à BBC Mundo Sanada, líder da expedição batizada de "Amazonas, do gelo ao mar". Tradicionalmente, os rios Apurímac e Marañón, também no Peru, têm sido considerados os afluentes mais distantes do Amazonas. No entanto, uma pesquisa publicada em 2014 pelo explorador norte-americano James Contos confirmou que o Mantaro também é um tributário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Localizado no centro do país andino, a cerca de 4.000 metros acima do nível do mar, o Mantaro poderia acrescentar ao gigante sul-americano dezenas de quilômetros em comprimento, chegando a 6.800 quilômetros, o que tiraria o primeiro lugar no ranking de seu rival africano. "Embora já tenha sido comprovado que o Mantaro está conectado ao Amazonas, até agora ninguém fez uma medição completa em campo desde os Andes até o oceano deste rio", afirmou Sanada, que esteve em muitas partes do Amazonas, mas nunca o percorreu integralmente. "A cúpula do monte Everest foi alcançada por cerca de 4.500 pessoas, e 1.500 cruzaram o Atlântico a remo, mas apenas cerca de dez pessoas fizeram a jornada desde a nascente do rio até a sua foz", acrescentou para justificar a expedição, que estima ter uma duração de cerca de seis meses. Muitos dos estudos mais recentes sobre o comprimento do Amazonas têm se baseado em imagens de satélite e em percursos parciais de seu curso. Sanada explicou que a missão começará nas montanhas peruanas, onde um grupo liderado por ele percorrerá o rio Mantaro em canoas, enquanto outro grupo percorrerá o rio Apurímac a cavalo. Ambas as equipes se encontrarão mais tarde no rio Ene, também no Peru, e dali seguirão de barco até o Amazonas. Especialistas consultados pela BBC Mundo admitiram que nos últimos anos têm surgido dúvidas mais do que razoáveis sobre qual é o rio mais longo do planeta. "A polêmica sobre qual é o primeiro afluente do Amazonas nos Andes peruanos e qual é o primeiro afluente do Nilo na África existe há algum tempo, e acredito que esse debate sempre persistirá", afirmou Antonio De Lisio, geógrafo da Universidade Central da Venezuela (UCV) e professor do Centro de Estudos do Desenvolvimento dessa instituição acadêmica. Por sua vez, o geógrafo britânico Jeremy Anbleyth-Evans declarou que "o consenso internacional entre os especialistas e a literatura científica é que o Nilo é o mais longo, embora haja certamente dúvidas e um debate sobre isso". "O problema está em localizar a nascente", explicou De Lisio. O critério para definir a origem de um rio não é uniforme. "A principal discussão sobre qual dos dois rios é mais longo se baseia no debate sobre se o curso de um rio deve ser medido ao longo dos afluentes mais volumosos ou daqueles que são efetivamente mais extensos", explicou David Haro Monteagudo, professor de Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos da Universidade de Aberdeen, na Escócia. "Há alguma discussão sobre se afluentes com represas são válidos ou não, embora eu ache que isso não faça muito sentido, já que o Nilo tem a represa de Assuã bem no meio", acrescentou o professor. Por sua vez, De Lisio assegurou que o fato de um afluente não contribuir com água permanentemente não impede que seja considerado uma das nascentes. "O fato de um rio ser sazonal não implica que não seja afluente", acrescentou. No entanto, Haro também enfatizou que a origem não é a única questão controversa. "No caso do Amazonas, por exemplo, sua foz é tão ampla e repleta de ilhas que também é difícil determinar onde ela termina antes de se transformar no oceano Atlântico", observou. No entanto, a expedição não apenas buscará medir o Amazonas, com o propósito de determinar seu comprimento real, mas também perseguirá outros objetivos. "Essa disputa entre o Nilo e o Amazonas é interessante, mas o mais importante é o legado que vamos deixar para a população da Amazônia, não apenas do Brasil, mas também da Colômbia e do Peru", disse Sanada. "Iremos documentar com câmeras profissionais a biodiversidade da área e os danos que vêm sofrendo por causa do homem, devido a mineiros ilegais, traficantes de drogas e crime organizado que se instalaram lá... A ideia é fazer um documentário IMAX", afirmou Sanada. Uma missão que o explorador admitiu ser arriscada e, por isso, eles estão em conversações com líderes indígenas para garantir proteção durante sua jornada. "Não me preocupam as serpentes ou os jaguares, mas sim os seres humanos que estão lá", destacou. Organizações criminosas transformaram a Amazônia em uma área muito mais perigosa do que naturalmente já era. Entre 2016 e 2021, 58 líderes e moradores indígenas foram assassinados na região selvática compartilhada pelo Brasil, Colômbia, Equador e Peru, conforme revelado por uma investigação realizada por 11 organizações ambientalistas. Até o momento de 2023, quatro defensores dos povos indígenas foram assassinados somente no Brasil, de acordo com um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Além disso, não podemos esquecer que no ano passado o mundo ficou chocado com as notícias dos assassinatos do trabalhador da Fundação Nacional do Índio (Funai), Bruno Pereira, e do jornalista britânico Dom Phillips, que estavam produzindo um documentário sobre as ameaças que as comunidades amazônicas brasileiras enfrentam de fazendeiros e organizações criminosas. Um terceiro objetivo da expedição será testar barcos elétricos totalmente desenvolvidos no Brasil, que não só têm um custo muito mais baixo do que os fabricados na Alemanha, mas também são mais resistentes e fáceis de reparar do que os chineses. "Um motor elétrico custa cerca de US$ 5.000, mas nosso motor custará 500 dólares", afirmou o explorador brasileiro. Durante a expedição, serão utilizados três protótipos cuja construção está sendo finalizada pela Faculdade de Tecnologia de São Paulo. Embora no Brasil se considere comprovado que o Amazonas é o rio mais longo, e mesmo sendo essa informação ensinada às crianças nas escolas, se a expedição confirmar essa afirmação, isso não necessariamente encerrará o debate em âmbito internacional. Isso foi ressaltado pelos especialistas consultados pela BBC Mundo. "Não acredito que simplesmente medir o Amazonas seja suficiente; também seria necessário medir o Nilo, porque os egípcios provavelmente continuarão a afirmar que o rio deles é mais longo e dirão que sua nascente está além do que conhecemos hoje", afirmou De Lisio. Essa opinião é compartilhada por Jesús Rocamora Esquiva, membro da Junta de Governo do Colégio Oficial de Engenharia Geomática e Topografia da Espanha. "No caso do Nilo, também há espaço para dúvidas (sobre sua origem), uma vez que alguns especialistas argumentam que a rede hidrológica que alimenta o próprio lago Vitória, em Tansânia, deveria estar conectada ao rio Nilo, o que aumentaria seu comprimento total", explicou. Independentemente do resultado da expedição, o lugar de destaque que ambos os rios ocupam no mundo permanecerá inalterado. Dessa forma, o Amazonas, que serve como pilar de uma das regiões mais biodiversas do planeta e é responsável por capturar um terço das emissões de carbono globais, continuará sendo considerado o "pulmão do mundo". Por outro lado, no caso do Nilo, ninguém questionará que ele foi o motor impulsionador de civilizações como o antigo Egito dos faraós.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72x5q1xqdwo
brasil
Caso Larissa Manoela: 'Pais são administradores, não donos do dinheiro'
Crianças celebridade sempre existiram, mas com cada vez mais menores de idade ganhando fama nas redes sociais, ao produzir e monetizar conteúdo visualizado por milhões de pessoas, casos de desavenças familiares, como o da atriz Larissa Manoela, podem se tornar cada vez mais comuns, alertam advogados ouvidos pela BBC News Brasil. Em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, a atriz Larissa Manoela disse que os pais a deixavam no escuro sobre o gerenciamento do dinheiro que ganhou ao longo de sua carreira. Seus pais negaram as acusações. A BBC News Brasil entrou em contato com o advogado dos genitores da atriz mas não teve resposta até a publicação desta reportagem. Os advogados ouvidos pela BBC afirmam que a lei é clara quanto à gestão do dinheiro ganho por filhos menores de idade: os pais são "administradores", e não "donos" desse patrimônio até os filhos completarem a maioridade. E mais: eles têm a obrigação legal de zelar por esses recursos, sob pena de serem destituídos pela própria Justiça como gestores. Fim do Matérias recomendadas Se por um lado, os pais devem gerir os bens dos filhos, por outro, também são "usufrutuários" deles (podem usufruir deles), desde que não tomem nenhuma atitude que prejudiquem financeiramente os herdeiros. Descumprir tal regra — por exemplo, gastando o dinheiro dos filhos ao bel-prazer sob a justificativa de que estão agindo em prol do bem-estar da família — às vezes até por desconhecimento sobre o que diz a lei, aumentam as chances de problemas com a Justiça no futuro, acrescentam os especialistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É importante deixar claro que não é porque você é pai e administra a carreira do seu filho que compartilha deste patrimônio; esse patrimônio não é um patrimônio familiar, ele é um patrimônio individual gerado por aquela criança", explica Alessandro Fonseca, sócio de Gestão Patrimonial, Família e Sucessões do escritório de advocacia Mattos Filho. "Nada impede que o responsável legal eventualmente tenha algum tipo de participação ou remuneração, como um trabalho mesmo. Mas não deve existir confusão patrimonial. Este patrimônio não é um patrimônio que é da família indiscriminadamente. Ele é um patrimônio vinculado ao melhor interesse desse menor", acrescenta. "A legislação brasileira reconhece o direito à indenização por um dano efetivamente material se esse patrimônio foi administrado de uma maneira negligente, equivocada ou, no limite, até com desvio de finalidade". Sobre a eventual remuneração dos pais pelo trabalho prestado, Fonseca diz que tem que seguir o princípio da razoabilidade. "Ou seja, o que é razoável em termos de remuneração, com condições praticadas pelo mercado. Se houvesse um agente profissional, quanto que seria cobrado em termos de parâmetros de mercado, em condições pactuadas com terceiros? Esse é um parâmetro que deveria ser utilizado em todos os contratos", assinala. "A lei traz isso como uma obrigação para com os filhos menores. Isso é, inclusive, um pilar do que a gente chama de 'poder familiar'. Só que esse poder não é absoluto; não pode ser utilizado de uma forma que venha a prejudicar esse menor", diz. Haddad lembra que, se esse patrimônio não for gerido no melhor interesse da criança, a Justiça pode ser eventualmente acionada e intervir para dizer se está ocorrendo um "abuso desse poder familiar". "Se a Justiça considerar que isso (abuso de poder familiar) está ocorrendo, os pais podem ser destituídos dessa função (de administradores dos bens dos filhos) e o juiz pode apontar um curador para administrar o patrimônio desse menor", acrescenta. "É uma seara que quando a gente começa a discutir, é como se a gente abrisse uma caixa de Pandora, porque são muitas questões envolvidas". Os dois especialistas ressalvam, contudo, que no caso de Larissa Manoela, a situação fica mais complexa porque, conforme foi noticiado pela imprensa, os contratos estavam sendo feitos em nome da empresa criada pelos pais dela e que recebia os pagamentos pelos serviços prestados pela atriz quando ainda era menor de idade. "Há, na minha visão, um conflito de interesses, porque os pais se apropriaram por meio de uma relação societária de direito que é personalíssimo (direito de imagem do menor de idade). Como o sócio é responsável pela pessoa jurídica, tem o direito de apropriar os lucros gerados por essa pessoa jurídica que, teoricamente, de fato, são decorrentes da exploração desse direito de imagem", explica Fonseca. "Essa é uma relação, na minha visão, conflitante do ponto de vista jurídico. Tem algum equívoco em relação a isso? Do ponto de vista da forma, talvez nenhum. Mas sim do ponto de vista de essência, pois há uma apropriação e desvio da utilização desses recursos", acrescenta ele. Haddad defende ser fundamental que os pais — ou responsáveis legais — tenham "educação jurídica". "A administração não se confunde com propriedade, a propriedade é do menor. A administração é dos pais. Para evitar abusos do poder familiar, de que essa administração foi feita equivocadamente ou de uma forma que não preservou os interesses desse menor, o ideal é ter uma educação jurídica", diz. "E para isso os pais devem buscar assessoria de especialistas. O que eu mais vejo na minha profissão, hoje cada vez mais difundida, são pessoas com muito patrimônio, mas sem qualquer organização. Isso não é gasto; é investimento", acrescenta. Haddad cita uma decisão da Justiça de São Paulo que entendeu haver ocorrido abuso de poder familiar em um caso sobre como uma mãe administrou pensões pagas a seu filho antes de completar a maioridade — e autorizou uma prestação de contas sobre o uso desses recursos. "Se você não é devidamente assessorado, a conta vai chegar lá frente, com certeza", alerta. Fonseca faz ainda um alerta importante. Ele lembra ainda que, pela lei brasileira, quando uma pessoa faz 18 anos, "ela é absolutamente capaz, o que significa que, nos termos legais, ela tem condições de tomar as decisões por si mesma, sem depender de qualquer tipo de aprovação ou anuência dos seus responsáveis". "Esse é um aspecto importante, porque às vezes os pais podem não concordar, pela própria experiência, com a decisão que seus filhos tomem aos 18 anos, mas, do ponto de vista legal, existe uma limitação. Essa pessoa é responsabilizada pela lei. Portanto, tem autonomia patrimonial", diz. "Na minha visão, o principal é manter o vínculo emocional da instituição família para que a opinião dos pais possa ser uma opinião ouvida ou uma opinião relevante". "Mas se o filho quiser ser absolutamente titular de seu patrimônio e administrá-lo para o bem e para o mal, é um ônus que cabe exclusivamente a ele do ponto de vista legal". "Portanto, minha recomendação (para evitar problemas futuros) é tratar como se não fosse uma relação de pais e filhos, e sim como uma relação absolutamente profissional", conclui. Em entrevista ao Fantástico, da TV Globo, a atriz Larissa Manoela, hoje com 22 anos, disse que vivia sob o controle financeiro dos pais e que era mantida no escuro sobre o gerenciamento do seu dinheiro. Mesmo sendo milionária, ela afirmou não saber quanto ganhava e que precisava pedir autorização para fazer qualquer tipo de gasto. Ela afirmou que os pais tinham dito que ela era dona de 33% da empresa que geria o patrimônio fruto de seu trabalho, mas na realidade era dona de 2%. Disse também que teve dificuldades ao negociar com os pais a saída da sociedade. Os pais não deram entrevista ao programa. Mas em nota enviada à produção, o advogado de Gilberto e Silvana Elias dos Santos afirmouque Larissa Manoela "falta com a verdade" ao dizer que não sabia qual era o percentual dela em suas empresas e nada nunca lhe faltou. Em uma nota enviada ao UOL, a defesa dos pais afirmou que "o percentual de 33% é o que ela tem em outra empresa (...) na qual estão registrados os bens de mais valor da família" e que "assinou de próprio punho" um contrato que dizia que ela tinha 2% da outra empresa. "Todas as contas e despesas, sem exceção, eram pagas pelos pais", diz a defesa. Além disso, afirma, ela "sempre teve e utilizou seus cartões de crédito black e similares, com os quais sempre pôde comprar tudo o que desejou". Em uma carta enviada ao Fofocalizando, do SBT neste mês, os pais lamentaram o rompimento com a filha: "Por mais que tentem nos separar hoje com injúrias, difamações e até lançando histórias inverídicas na imprensa, sempre seremos seus pais e ela sempre será nossa filha. Lamentamos muito por terceiros tentarem criar um ambiente hostil em nossa relação".
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c805e41jgedo
brasil
Copacabana Palace, 100 anos: um século de luxo, prestígio e confusão
No dia 6 de novembro de 1997, ano do centenário da Academia Brasileira de Letras, Mario Vargas Llosa esteve no Rio de Janeiro para uma conferência na sede da ABL. À época, o escritor peruano ficou hospedado no Copacabana Palace, na Zona Sul da cidade. "Estou feliz por ter passado alguns dias neste belíssimo hotel, desta belíssima cidade, que é também, como demonstra este precioso livro, um pedaço da história de nosso tempo", escreveu. "Se estas paredes (tetos, cadeiras, camas) falassem, quantas coisas maravilhosas e terríveis contariam!" A importância do Copacabana Palace, que completa 100 anos neste domingo, pode ser mensurada pelo livro de ouro. Nele, constam assinaturas de alguns dos maiores astros do rock, estrelas de Hollywood e chefes de Estado do século 20. Se as paredes do "Copa" falassem, contariam que, nas dependências do hotel, Anita Ekberg já saiu no tapa com o marido, o ator inglês Anthony Steel, em 1957; que Joan Crawford foi proibida de se hospedar lá por causa de seus pets em 1960; que Brigitte Bardot concedeu uma coletiva só para se livrar da imprensa em 1964. Fim do Matérias recomendadas "Fica entendido que, a partir de agora, os senhores me deixarão em paz", avisou a atriz francesa. Ao longo dos últimos cem anos, o Copacabana Palace hospedou cerca de 3 milhões de pessoas – 85 mil delas só em 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A primeira “celebridade” a assinar o livro de ouro do hotel foi Santos Dumont, em 29 de dezembro de 1928. Sua estadia não foi das mais felizes. Logo no dia de sua chegada, o avião que sobrevoava o navio que trazia Santos Dumont de Paris para lhe dar as boas-vindas sofreu uma pane e caiu no mar. Do convés do Cap Ancona, ele assistiu à tragédia sem poder fazer nada. O “pai da aviação” até tentou ajudar no resgate de sobreviventes, mas de nada adiantou: todos os tripulantes morreram. Deprimido, passou quase um mês trancado em sua suíte. Três anos antes, em 21 de março de 1925, o físico alemão Albert Einstein compareceu a um almoço oferecido pelo empresário Assis Chateaubriand, o dono do Diários Associados, no terraço do Copacabana Palace. No dia seguinte, O Jornal, dirigido por Chatô, estampou a manchete: “O maior gênio que a humanidade produziu depois de Newton”. Curiosamente, o criador da Teoria da Relatividade não se hospedou no Copacabana Palace, na Avenida Atlântica, e sim, no Hotel Glória, na Rua do Russel, o primeiro cinco estrelas do Brasil. Os dois hotéis, a propósito, foram projetados pelo mesmo arquiteto: o francês Joseph Gire. O primeiro deles, o Copacabana Palace, foi inspirado nos famosos Negresco, em Nice, e Carlton, em Cannes, e inaugurado no dia 13 de agosto de 1923. Já o segundo, Hotel Glória, abriu suas portas no dia 15 de agosto de 1922. A ideia inicial era que o Copacabana Palace também ficasse pronto a tempo de receber os convidados do governo federal para as comemorações do Centenário da Independência, em 1922. Mas, as obras, que começaram em 1919, atrasaram… "O que mais me impressiona no trabalho do meu bisavô é a quantidade de obras que ele realizou em tão pouco tempo. Muitas de suas obras arquitetônicas foram tombadas e, hoje, figuram como cartões postais não só do Rio de Janeiro, mas também de São Paulo, Buenos Aires e Paris", orgulha-se o artista plástico Roberto Cabot, bisneto do arquiteto francês e autor de Joseph Gire – A Construção do Rio de Janeiro Moderno. Só no Rio de Janeiro, Gire deixou sua assinatura no Palácio Laranjeiras, a residência oficial do governador do estado, inaugurado em 1909; nos hotéis Glória, em 1922, e Copacabana Palace, em 1923, e no edifício A Noite, o primeiro arranha-céu da América Latina, em 1929, entre outros. A ideia de construir um palácio em frente ao mar em plena Copacabana partiu do então presidente da República, Epitácio Pessoa. O empresário Octávio Guinle, que pertencia a uma das famílias mais ricas do país, aceitou o desafio. Mas impôs uma condição: construir um cassino dentro do hotel. Condição aceita, começaram as primeiras importações: os móveis vieram da Suécia, os tapetes da Inglaterra, os lustres da Tchecoslováquia, os cristais e as porcelanas da França… Até o cimento usado na construção do hotel veio da Alemanha. “Ninguém esperava nada dele. Tanto que Octávio ficou com um ramo que não tinha a menor importância para a família: a hotelaria”, explica o historiador Clóvis Bulcão, autor de Os Guinle – A História de Uma Dinastia. "Ele se casou com uma arrivista, caiu num golpe e foi deserdado. No entanto, foi capaz de reinventar seu negócio. Transformou um hotel que tinha tudo para dar errado em um empreendimento de renome internacional”. No tão esperado dia da inauguração, apenas seis dos 230 apartamentos do Copacabana Palace estavam ocupados. Em compensação, havia mais de mil empregados – muitos deles, como o chef francês Auguste Escoffier, trazidos da Europa. Para azar de Octávio, uma lei federal restringiu os jogos de azar, ainda durante a construção do hotel, a estâncias hidrominerais. Pouco depois de sua inauguração, em 1924, as apostas foram proibidas no país. Três anos depois de assumir a Presidência, porém, Getúlio Vargas revogou a lei que proibia a jogatina. Diz-se que seu irmão, Benjamim Vargas, o “Bejo”, era um jogador compulsivo. A alegria dos apostadores, no entanto, durou pouco. Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra decretou o fechamento dos cassinos no Brasil. Uma curiosidade: a diária do Copacabana Palace, há exatos 100 anos, custava menos de U$ 10 e dava direito à pensão completa e transporte gratuito até o Centro. Um século depois, o preço médio das diárias varia de R$ 2,2 mil, a mais barata, a R$ 25 mil, a mais cara. Isso, sem contar as taxas. Todos os valores são “flutuantes”. O nome do empresário Octávio Guinle não é o único da família associado ao Copacabana Palace. Seu sobrinho, Jorge Eduardo Guinle, o Jorginho Guinle, também ganhou notoriedade. “Jorginho Guinle nunca foi dono do Copacabana Palace. O hotel pertencia ao tio dele, o Octávio. Jorginho gostava de dizer que era o dono para desfrutar de regalias no exterior. Quando viajava, gostava de se hospedar em hotéis cinco estrelas porque seus respectivos donos não cobravam nada dele”, afirma Clóvis Bulcão. O playboy mais famoso do Brasil se gabava por ter conquistado, entre outras beldades, Marilyn Monroe, Zsa Zsa Gabor e Jayne Mansfield. Quando publicou sua autobiografia, a atriz austríaca Hedy Lamarr criticou um tal “cafajeste sul-americano” por nunca ter dado a ela o quadro de US$ 600 mil que prometera. “Jorginho Guinle gostava de contar para todo mundo que o tal ‘cafajeste sul-americano’ era ele”, diverte-se o historiador. O primeiro grande escândalo do Copacabana Palace aconteceu em 1929: o presidente Washington Luís levou um tiro à queima-roupa. A autora do disparo foi sua própria amante, Yvonette Martin. Os dois costumavam se encontrar às escondidas em uma das suítes do hotel. Para abafar o caso, o Palácio do Catete, sede do governo na antiga capital, divulgou a versão de que o presidente da República teria sofrido uma crise de apendicite e estava sendo operado às pressas pelo médico Pedro Ernesto. Foi o primeiro escândalo do ‘Copa’. O primeiro de muitos. O mais famoso deles, talvez, aconteceu em 1942 por ocasião da visita de Orson Welles, então com 26 anos, ao Rio. Apesar da pouca idade, o cineasta americano já ostentava um Oscar em seu currículo: o de melhor roteiro, por Cidadão Kane, de 1941. Segundo o jornalista Ricardo Boechat, autor do livro Copacabana Palace – Um Hotel e Sua História, Orson Welles subiu morros, visitou gafieiras e tomou cachaça. Em um de seus porres, atirou os móveis do quarto na piscina do hotel depois de brigar com a namorada, a atriz Dolores del Rio, pelo telefone. Em outra ocasião, Welles telefonou, irritado, para a recepção. Motivo: faltou água bem no meio de seu banho. O maitre do Copa, o theco Fery Wünsch, providenciou dezenas de garrafas de água mineral e mandou entregá-las na suíte do cineasta. Minutos depois, ele estava de banho tomado. Dias depois, outra reclamação: os telefones estavam mudos. O maitre explicou que, por causa do temporal que castigava o Rio, entrou água na tubulação. “Quando quero tomar banho, falta água. Quando quero usar o telefone, sobra água. Afinal, qual de nós dois é o louco?”, indagou Welles que, apesar dos pesares, recomendou o hotel para a mulher, a atriz Rita Hayworth. Maitre do hotel por mais de 40 anos, Fery Wünsch colecionou histórias curiosas, divertidas e inusitadas. Muitas delas foram reunidas em seu livro de memórias, de 1983. Em 1959, a atriz e cantora alemã Marlene Dietrich foi convidada para se apresentar no Golden Room. Antes de subir ao palco da sala de espetáculos inaugurada em 1938, a estrela chamou o maitre em seu camarim e exigiu um balde de gelo com areia. Como usava um vestido apertado, que a impedia de ir até o banheiro, explicou que, em caso de necessidade, usaria o balde para fazer xixi. Pelo palco do Golden Room, aliás, passaram incontáveis atrações: de Edith Piaf a Charles Aznavour, de Ella Fitzgerald a Nat King Cole, de Amália Rodrigues a Ray Charles. Nenhuma outra, porém, foi tão marcante quanto a de Tony Bennett, em 1963. Contratado para fazer três shows na primeira casa de espetáculos da América Latina, deu de cara com a menor plateia de sua carreira: 17 pessoas. Refeito do susto inicial, afrouxou o laço da gravata, sentou-se em um degrau do palco e cantou todas as músicas que estavam previstas no roteiro. Tão badalados quanto os shows do Golden Room só mesmo os bailes do Copacabana Palace. O primeiro deles aconteceu já no Carnaval de 1924, apenas seis meses depois da inauguração do hotel. Em 1959, Jayne Mansfield quase ficou com os seios à mostra depois que a alça de seu vestido se soltou; em 1960, Kim Novak, a estrela de Um Corpo que Cai, saiu às ruas disfarçada de “mendiga” para pular o Carnaval. Em 1962, Rita Hayworth, a eterna Gilda, deu um “pulinho” em Madureira, subúrbio do Rio, para curtir o ensaio da Portela; em 1964, Kirk Douglas compareceu ao baile de gala usando o figurino de seu personagem em Spartacus e, em 1967, Gina Lollobrigida deu uma escapulida até o Baile dos Enxutos no Centro do Rio. A diva italiana foi recebida aos gritos de “Queremos ser Gina!”. “Ele tinha razão quando me descreveu as maravilhas que eu encontraria neste país”, declarou Rita Hayworth em 1962, referindo-se ao ex-marido, o cineasta Orson Welles, com quem foi casada de 1943 a 1947. Dois dos mais ilustres hóspedes do Copacabana Palace foram Walt Disney e Carmen Miranda. O “pai” do Mickey Mouse chegou ao Rio de Janeiro na tarde de 17 de agosto de 1941 para divulgar Fantasia, o terceiro longa-metragem de animação dos estúdios Disney. Durante um jantar, conheceu o cartunista brasileiro J. Carlos que o presenteou com o desenho de um papagaio abraçando o Pato Donald. Até hoje, não se sabe se a ilustração que Walt Disney ganhou de presente no Copacabana Palace chegou a servir de inspiração para o Zé Carioca. Se a estadia de Walt Disney durou apenas 23 dias, a de Carmen Miranda chegou a quatro meses. Ela e sua família fizeram o check-in no dia 3 de dezembro de 1954. Sua saúde estava tão abalada que a irmã, Aurora, não hesitou em chamar um médico. Entre outras recomendações, proibiu visitas. Uma das poucas vezes em que a irmã viu Carmen dar risada foi quando avistou, da janela do quarto, um hóspede perder o calção ao mergulhar na piscina do hotel. Carmen Miranda regressou aos EUA em 4 de abril de 1955. Morreu quatro meses depois, aos 46 anos. Entre as centenas de celebridades que se hospedaram no Copa, pelo menos duas foram expulsas por mau comportamento: a cantora americana Janis Joplin, em 1970, e o roqueiro inglês Rod Stewart, em 1977. A primeira por ter mergulhado nua na piscina e o segundo por ter jogado bola na suíte presidencial. O mais curioso é que, oito anos depois, a produção do Rock in Rio tentou hospedá-lo no hotel, mas não conseguiu. “Falta de quartos”, alegou a gerência. O jeito foi acomodar o "aprendiz de jogador de futebol" no Rio Palace, ali pertinho. Em janeiro de 1985, a produção do Rock in Rio reservou 40 quartos para hospedar, entre outros artistas, os integrantes de três das maiores bandas da primeira edição do festival: Queen, Iron Maiden e AC/DC. Quem também estava hospedada no hotel era a então primeira-dama Dulce Figueiredo. Toda vez que ela entrava ou saía, conta o jornalista Luiz Felipe Carneiro, autor de Rock in Rio – A História, os metaleiros que se amontoavam na portaria à espera de uma foto ou de um autógrafo de seus ídolos berravam: “Janis Joplin! Janis Joplin!”. “Um dos meus maiores perrengues foi o show do Lenny Kravitz, em 2005, na Praia de Copacabana. O palco é montado sempre em frente ao Copacabana Palace e, naquela ocasião, a multidão quase invadiu o hotel. Tivemos que reforçar a segurança”, recorda Andréa Natal, que, entre outras funções, exerceu o cargo de diretora geral de 2012 a 2020. “Às vezes, o hóspede que dá mais trabalho é o ‘não-celebridade’. Bebe um pouco mais e, depois, custa a dormir. Os Stones, por exemplo. Sempre se comportaram super bem”. Em 2006, numa das apresentações da banda na cidade, a atriz e modelo Patti Hansen, mulher do guitarrista Keith Richards, gostou tanto da cama que pediu para levar o colchão para casa. O hotel, é claro, atendeu à solicitação da hóspede. Em junho de 1992, o Rio voltou a sediar um evento internacional: a Rio-92. Só o Copacabana Palace acolheu delegações de 12 países, como China e Reino Unido. Um ano antes, em 1991, hospedou o príncipe Charles e a princesa Diana. Por volta das duas da madrugada, Lady Di pediu à gerência que acendesse as luzes da piscina para dar um mergulho. Suas braçadas foram flagradas por um paparazzo no Edifício Chopin, vizinho ao hotel. A piscina semiolímpica, construída em 1934 e ampliada em 1949, é apenas uma das atrações do Copa. O hotel, de 220 unidades, abriga também um teatro, o Copacabana Palace, com capacidade para 323 espectadores; uma quadra de tênis, três restaurantes – dois deles com estrela Michelin – e uma segunda piscina, apelidada de “black pool”, privativa dos hóspedes do sexto andar, o mais cobiçado do hotel. Além de hóspedes, o Copacabana Palace tem um morador ilustre: o cantor Jorge Ben. Desde 2018, o autor de "País Tropical" mora no hotel. Mudou-se para lá por conta de uma reforma em seu apartamento e nunca mais saiu. Em 1987, dez anos antes da visita de Vargas Llosa, Gore Vidal também se hospedou no Copacabana Palace. O escritor americano veio ao Rio para divulgar De Fato e De Ficção. “Velha, decadente, mas digna... Do jeito que eu gosto”, declarou, ao entrar em sua suíte. Dois anos depois, o Copacabana Palace, em crise financeira, deixou de pertencer à família Guinle. Foi vendido ao grupo Orient-Express, atual Belmond, por US$ 25 milhões. “O Copacabana Palace é um símbolo reconhecido internacionalmente na indústria hoteleira. Além de honrar seu legado, quero motivar as futuras gerações”, afirma o atual gerente geral, o português Ulisses Marreiros, que assumiu a função em janeiro de 2021 e comanda hoje uma equipe de mais de 500 funcionários. “Às vezes, me sinto como o maestro de uma orquestra. Outras, como o timoneiro de uma grande embarcação. Mais do que um trabalho, ser gerente de um hotel de luxo como o Copacabana Palace é quase um lifestyle.”
2023-08-14
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brasil
Nômades digitais e aluguel em dólar: por que moradores estão sendo expulsos de seus bairros na América Latina
Basta caminhar pelos bairros de Medellín, na Colômbia, para se deparar com dizeres nos muros: "Medellín não está à venda. Parem a gentrificação". O fenômeno é explicado pelo alto número de aluguéis de curta temporada, principalmente na plataforma Airbnb, e pela chegada em peso dos nômades digitais, segundo especialistas. E o cenário é comum em vários outros países da América Latina, onde moradores relatam o aumento no custo de vida. Segundo a plataforma AllTheRooms, que cataloga dados de habitações e aluguéis de temporada em todo mundo, houve um aumento expressivo de estadias na modalidade Airbnb na América Latina nos últimos anos. Na América do Sul, o Brasil aparece em primeiro lugar no número de diárias contratadas, seguido por Colômbia e Argentina. México, Costa Rica e Guatemala são outros países com taxas altas. Fim do Matérias recomendadas “A América Latina continua a desempenhar um papel significativo no mercado de aluguel de curto prazo, com forte crescimento ano a ano em todos os países da América Latina, tanto em receita quanto em oferta, em 2022 e até em 2023”, diz Joseph DiTomaso, CEO da plataforma. “Brasil e México continuam dominando o mercado, representando cerca de 72% da receita total de aluguel de curto prazo na América Latina”, acrescenta. Um estudo realizado pelo governo da cidade do México mostrou que o número de habitações temporárias na cidade, na categoria Airbnb, triplicou entre os anos de 2000 e 2020, passando de 22.122 a 71.780 unidades. A pesquisa mostrou ainda que a cidade do México expulsa anualmente 20 mil famílias de renda mais baixa por falta de opção de uma moradia acessível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mesmo com o fim da pandemia de covid-19, muitos estrangeiros continuam trabalhando remotamente ou investiram para valer no modo de vida nômade. Muitos deles são remunerados em moeda valorizada e procuram cidades mais baratas, com qualidade de vida para morar ou passar longas temporadas, de acordo com Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil, empresa especializada em imigração e líder na área de mobilidade internacional de pessoas físicas e empresas. “Falando de nomadismo digital na América Latina, nossa região é escolhida por muitos profissionais porque juntamos qualidade de vida a um custo atrativo para os mais bem colocados no mercado”, diz a especialista. Porém, isso afeta diretamente no aumento dos aluguéis para quem reside naquele lugar, aponta Isadora Guerreiro, coordenadora do Lab Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Esse processo, conhecido como gentrificação, se dá pela transformação da população local, que é substituída por outros perfis de renda mais alta, contribuindo para a supervalorização de um bairro ou cidade e, consequentemente, para a expulsão de antigos moradores. Segundo Guerreiro, esse movimento aprofunda a desigualdade urbana. "O que estamos vivendo na América Latina é que esses proprietários corporativos, que são empresas ou fundos de investimento internacional, passam a ser donos de unidades (...) e passam a definir (preços) baseado no setor internacional. (...) É totalmente descolado de quanto as pessoas podem pagar. Isso vai redefinindo o bairro", diz Guerreiro. Atrelado a isso, a América Latina também acompanha a onda de inflação global, intensificando o aumento dos aluguéis. Segundo dados do site de locação Quinto Andar, de maio de 2022 a maio de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 136% em Buenos Aires (Argentina); 13% na Cidade do México (México); 11% em São Paulo (Brasil), 11% em Quito (Equador), 11% na Cidade do Panamá (Panamá) e 6% em Lima (Peru). A gerente de comunicação brasileira Daniela De Caprio vive na cidade do México há três anos e meio. Ela se mudou para o país devido a uma oferta de trabalho. Mesmo o México tendo uma moeda desvalorizada frente ao real, segundo ela, alugar ou comprar um imóvel no país é muito caro. Desde que chegou ao país, De Caprio, de 33 anos, vem acompanhando o aumento nos preços dos aluguéis e mudou de bairro três vezes. Ela conta que, em alguns bairros, o aluguel de um apartamento pequeno sai por US$ 5 mil (R$ 24,5 mil). "Eu sabia que era caro, mas não tanto assim. Tem muitas empresas que vendem apartamentos já em dólar", diz. Maria Siqueira, dona da Imobiliária Ousía na Cidade do México, aponta que o aumento está ligado à chegada de nômades digitais e expatriados. Em outubro de 2022, o governo da Cidade do México anunciou uma parceria com o Airbnb e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para promover a cidade com um centro global para trabalhadores remotos e para se tornar a capital do turismo criativo. Segundo Vinicius Oike, economista do QuintoAndar, o fenômeno no México é até mais prevalente do que no restante da América Latina. "Esse processo é um fenômeno localizado, dentro de certos bairros e de certas cidades onde esse público se foca. Isso acontece até por questão geográfica de estar perto dos Estados Unidos, que adotou bastante o trabalho 100% remoto, mesmo depois da pandemia", diz o especialista. Siqueira confirma a dolarização nos aluguéis e aumento na procura dos imóveis por estrangeiros. "Para muitos proprietários, é conveniente cobrar em dólar. Eles aceitam a transferência já que tem muita burocracia para abrir uma conta. Às vezes, muitos vêm para cá temporariamente. O México é um dos países mais econômicos e tem uma boa qualidade de vida", diz. Siqueira acrescenta que muitos contratos são de um ano, mas acabam tendo flexibilidade caso a pessoa pague a multa e queira sair antes. No caso dos nômades digitais, ela diz que esse público não tem muitas exigências, são jovens e prolongam a estadia por mais tempo. "Alguns vêm para uma temporada e acabam ficando mais. Não querem gastar com um aluguel caro, querem viajar. Não importa se o edifício está caindo aos pedaços." Essa onda de trabalhadores remotos internacionais também foi sentida por pela brasileira Mayara Pinheiro, de 36 anos, consultora de operações em negócios na Cidade do México. Morando no local há dois anos e meio, ela diz que os preços de vários produtos e serviços começaram a mudar drasticamente. "Os 'gringos' estão se mudando para cá podendo pagar aluguéis que os locais, que ganham em moeda local, não podem. Daí, o aumento atinge não só os mexicanos, mas os latinos que já vivem aqui, como eu, que ganha em peso", opina. Ela conta que tem uma amiga mexicana que precisou deixar o apartamento atual e ir para um bairro mais distante, devido a um aumento de 20% no valor do aluguel. O problema também foi percebido pelo executivo de vendas de tecnologia Roberto Bucio, de 33 anos, que é mexicano e morou na capital a vida inteira. "Depois da pandemia houve várias mudanças. Algumas pessoas voltaram a morar com os pais ou saíram para cidades mais afastadas que ficam a uma hora de carro daqui. Os preços dos imóveis aumentaram muito", ressalta. Para ele, o modo de trabalho remoto, que começou em muitas empresas e segue até hoje, possibilitou a vinda dos nômades para o país. "Essa flexibilidade de não ir ao escritório tem uma conexão direta com o aumento do custo de vida na cidade nos últimos três anos." Considerada a cidade mais rica da Colômbia, Medellín vive um boom de estadias temporárias, muitas vezes cobradas em dólar. Segundo a plataforma AllTheRooms, entre 2020 e 2021, as estadias feitas por Airbnb cresceram 119% na cidade. Já em 2023, houve um crescimento de quase 40%, na comparação com o mesmo período do ano passado. Bairros como El Poblado e Laureles são os mais procurados por quem deseja ficar por mais tempo. Também são muito visados por turistas que visitam a cidade e buscam ficar perto do metrô, bares, cafés e restaurantes. Porém, a alta demanda por essas regiões já influencia no custo e estilo de vida dos moradores. A colombiana Diana Yanes, de 33 anos, vive em Medellín há 13 anos, e precisou sair do seu apartamento antigo devido ao aumento dos preços. A alternativa foi alugar apenas um quarto e dividir a casa com uma amiga. Ela diz que não conseguiria pagar por um imóvel se morasse sozinha. Mesmo sendo compartilhado, o espaço é simples e muito caro. Pelo fenômeno que ocorre na cidade, ela diz acreditar que a vinda de estrangeiros contribuiu para o aumento no valor dos aluguéis. "Os proprietários preferem alugar para estrangeiro para obter maior rentabilidade e não para pessoas locais que podem pagar um aluguel mensal mais baixo", diz. Marisol Pérez Hernández, de 43 anos, trabalha com uma pousada há quase três anos e ressalta que tudo mudou na cidade desde o aumento dos turistas estrangeiros e trabalhadores remotos. Embora tenha fortalecido a economia na região, principalmente no pós-pandemia, isso torna certos bairros proibitivos de morar, diz ela. "El Poblado, por exemplo, é impossível, são só turistas. Os aluguéis mensais são extremamente caros nessa região. Em Laureles, já está começando a chegar neste patamar." No bairro de Manila, que era conhecido por casas tradicionais, a realidade também mudou. Hoje, a região é completamente comercial, com cafés, albergues e pousadas. "Era um bairro velho e com população mais velha. Todos já saíram de lá. O turismo destruiu", diz Marisol. Ela também reforça que a cidade vive um movimento de construções de apartamentos destinados aos Airbnbs. "Todas as propriedades informam que será possível colocar o apartamento na plataforma. Querem investir nesse tipo de imóveis. Acho que não será possível ver o efeito agora, mas acredito que terá um efeito nocivo nos próximos dois anos", destaca. Hernández diz ainda que a inflação no país também está alta, provocando um aumento do preço de quase todos os serviços. O problema de estadias temporárias e preços cobrados em dólar já é uma realidade também na Argentina, principalmente na capital, Buenos Aires. É muito comum encontrar imóveis, principalmente na região metropolitana da cidade, com anúncios em moeda americana e não mais em pesos argentinos. Isso foi apontado também por um estudo realizado pelo Mercado Livre e pela Universidade San Andrés, que fica na capital. Segundo dados da pesquisa, 50% dos anúncios de aluguéis são feitos em dólar. O argentino Fernando Corraro, de 30 anos, confirma que observou essa mudança. "Já há lugares específicos na capital que o aluguel é pago em dólar", afirma. Por causa do aumento dos valores cobrados, ele diz que precisou mudar de bairro com os três filhos. Além da inflação que assola o país há anos, o local sofre com a baixa oferta de imóveis e também com o aumento do turismo internacional, principalmente de chilenos, uruguaios e brasileiros. Segundo o último relatório divulgado pelo Turismo da Argentina, o país recebeu somente em julho deste ano 622.445 visitantes não residentes. De acordo com a assessoria de imprensa, os dados são provisórios. Com a cotação do câmbio favorável, ficou muito mais fácil conhecer cidades argentinas sem gastar muito. A brasileira e advogada Ana Flavia Yarid, de 36 anos, foi uma das pessoas que aproveitou os preços baixos no país como nômade digital. Como ganha em real, sempre viaja para lugares mais baratos e onde a moeda brasileira tenha maior poder de compra. Segundo a brasileira, mesmo com o "efeito Airbnb", ainda é vantajoso viajar para a Argentina. Ela passou três meses explorando diversas cidades do território argentino. Ela constatou que algumas acomodações temporárias já estão sendo cobradas em dólar. Porém, para economizar, ela procura se hospedar em albergues e evita zonas muito turísticas. "É barato viajar dentro da própria Argentina. Peguei um ônibus leito de Buenos Aires para Mendoza e paguei R$ 170", diz. Ana Flavia passou por diversas cidades da América do Sul e ressalta que o país foi um dos melhores no quesito custo benefício, atrás apenas da cidade de Santa Marta, no litoral da Colômbia. Embora não exista um número oficial de quantos nômades digitais existem no mundo, a tendência é que eles cresçam ainda mais. Segundo dados do último relatório divulgado em 2022 pela empresa Fragmen, os nômades digitais já somam 35 milhões no mundo, podendo chegar a 1 bilhão em 2035. Outro estudo realizado pela MBO Partners, consultoria americana, mostrou que em 2022, ano em que a pesquisa foi realizada, 169 milhões de trabalhadores dos EUA se declararam nômades, um aumento de quase 9% em relação a 2021. A facilidade de visto e o bom custo benefício oferecido a alguns em muitos países possibilita a longa estadia em determinados lugares. No Brasil, por exemplo, a permanência de nômades já é regulamentada desde 2021 por uma resolução do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança. A política migratória permite que o nômade estrangeiro fique por até um ano no país, podendo renovar o visto por esse mesmo período de permanência e que a renda mínima seja igual ou superior a US$ 1.500, entre outros requisitos. “O Brasil especificamente é um dos países que exigem as menores rendas para conceder o visto de nômade digital”, diz Quintas. A Argentina também já disponibiliza esse tipo de visto para nômades digitais estrangeiros, que podem ficar no país por até 180 dias. O governo não pede valor mínimo de comprovação de renda mensal, apenas recibos de honorários, além de cobrar pelo trâmite, que pode ser em euro ou dólar. “A região (América Latina) aderiu rapidamente à tendência de lançar vistos e criar programas de incentivo para atrair trabalhadores nômades e aquecer a economia local com capital estrangeiro”, afirma Quintas. Nos países da Europa, os valores de visto para essa modalidade podem ser bem mais custosos, se comparado à América Latina. Na Espanha, para quem deseja ser nômade é necessário ter em conta bancária 25 mil euros para o solicitante principal e 9.441 euros para cada membro da família. Em Portugal, há uma exigência de comprovação de rendimentos de pelo menos quatro salários mínimos portugueses mensais. Muitos nômades procuram cidades mais econômicas no México, Colômbia, Brasil, Argentina e outros países para trabalhar e ainda aproveitar os pontos turísticos nas horas vagas. Segundo a empresa Nomad List, em seu ranking global com centenas de países e cidades, a cidade do México aparece na 12ª posição e Buenos Aires aparece na 13ª ficando atrás apenas de alguns locais da Ásia e Europa, na escolha dos melhores locais para ser nômade digital no mundo. Já a empresa americana Kayak, líder no segmento de viagens, disponibilizou no ano passado um estudo que mostra um ranking dos melhores lugares para trabalhar remotamente. A Costa Rica, localizada na América Central, apareceu na sétima posição e o Panamá ficou em oitavo lugar. No ranking da América do Sul, o Brasil apareceu em primeiro na lista e a Colômbia em quarto. A pesquisa também levou em consideração fatores como segurança, custo de vida, boa internet, clima e outros requisitos. Segundo a Nomad List, as melhores cidades para trabalhar remotamente e viver como nômade digital na América Latina, de acordo com a opinião e avaliação dos visitantes, são Buenos Aires, em primeiro lugar, seguida da Cidade do México e Medellín na terceira posição. O Rio de Janeiro aparece na 12ª posição e Florianópolis, na 13ª. A avaliação no site leva em consideração segurança, internet, preços dos aluguéis e outros itens. O canadense Connor Ondriska, de 27 anos, atua na área de marketing digital e trabalha de forma remota há oito anos. Atualmente, é pago em dólares americanos. Ele já passou longas temporadas na Cidade do México, Medellín e Barranquilla, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. E relata que viver nessas cidades saía mais barato do que morar em Toronto, no Canadá, por exemplo. Connor diz que, embora no passado o valor mensal de moradia em Medellín girasse em torno de 2 milhões a 3,5 milhões de pesos colombianos (R$ 2,5 mil a R$ 4 mil), hoje o custo de vida para ele, inclusive na Colômbia, está caro. Mesmo sabendo que ganha em uma moeda valorizada, ele ressalta que ainda há um deslumbre na interpretação de que todos os nômades estrangeiros, principalmente europeus, americanos e canadenses, são ricos. “Uma grande parte dessas pessoas não ganha muito e não poderia viver em seus países de origem. Eles vão para países mais baratos para que possam viver uma vida um pouco melhor enquanto viajam", opina. A fotógrafa americana Katie Medow, de 36 anos, vive como nômade há mais de sete anos e já passou por diversos países da América Latina. Vivendo um longo período no México, entre cidades litorâneas e a própria capital, ela conta que a média por mês de um aluguel dividindo com o ex-namorado era de US$ 500 dólares (R$ 2,45 mil), o que, para ela, é muito econômico. "Na Filadélfia, por exemplo, teria que desembolsar, no mínimo, 900 dólares. E tem até mais caros", conta. Katie também achou o custo de vida em Cartagena, na Colômbia, bem acessível. Seus próximos planos agora são ir para o Egito e o Sudeste Asiático. "Ganhar em dólar realmente traz benefícios. Nesses lugares da Ásia, assim como na América Latina, a hospedagem em hostels e Airbnbs são muito baratas, além do transporte", afirma. O cenário não é muito diferente para os europeus. A italiana Sylvia Santarsiero, de 25 anos, é nômade digital e viaja com o namorado nesse estilo de vida desde maio de 2021. Trabalhando como freelancer, ela tem flexibilidade de estar em qualquer lugar do mudo. Sylvia diz que viver em países da América Latina realmente sai muito barato, já que ela e o companheiro ganham em euro. "A cidade mais barata que já vivemos foi Medellín, na Colômbia. Como trabalhamos para empresas europeias, podemos ficar em áreas melhores", afirma. O poder de compra é tão grande que a italiana conta que antes vivia na Holanda e pagava aproximadamente 500 euros (R$ 2,7 mil) por mês em um quarto sem mobília em uma casa compartilhada. Agora, ela e o namorado pagam no máximo 600 euros (R$ 3,3 mil) por boas moradias na América Latina. "Isso é menos da metade do que pagaríamos por um pequeno apartamento na Europa", diz. Além da Colômbia, Buenos Aires, na Argentina, também foi uma das cidades que mais os beneficiou no quesito economia. "O que realmente me surpreendeu é que para a maioria dos meus amigos argentinos era 'caro' sair para jantar, enquanto para mim era mais barato do que comprar mantimentos para comer em casa na Europa", afirma. "Se não ganhássemos em euros/dólares, não poderíamos ter o estilo de vida que estamos vivendo agora. Eu pessoalmente encontraria um emprego que me fizesse ganhar mais ou eu reduziria alguns padrões de viagem que tenho", complementa a nômade digital. Agora, o casal voltou para a Europa, onde vai passar alguns meses e depois segue para a Ásia. Embora pareça uma dinâmica difícil de ser resolvida a curto prazo, há maneiras para tentar amenizar esse fenômeno em cidades da América Latina, diz Isadora Guerreiro, da FAU-USP. Ele aponta que uma forma de impedir esse avanço de Airbnbs, aluguéis em dólares e outras medidas é por meio da intervenção do poder público. Na prática, isso significaria, por exemplo, tornar os edifícios de moradia pública para aluguel e que o município possa ter aluguel social em áreas que são de sua propriedade. O Estado pode fazer isso em prédios privados que tenham obtido benefícios públicos na construção; ou em prédios de sua propriedade (que já sejam seus ou que ele adquira). "Porque, com isso, se ele (Estado) tem muitas unidades, acaba conseguindo controlar o valor do aluguel e manter pessoas que querem morar naquele lugar", diz Guerreiro. Isso pode gerar benefícios para os centros das grandes metrópoles latino-americanas, como renovar edifícios que estão vazios hoje. Mas a especialista ainda alerta para a melhor forma de fazer esse processo. É importante, segundo ela, que essas unidades de aluguel em edifícios antigos restaurados (conhecidos como retrofits) tenham, de alguma maneira, um controle da demanda pública ou de baixa renda, que seja organizado e articulado por movimentos sociais ou entidades sem fins lucrativos. Isso vale dizer que o Estado define o perfil das famílias atendidas, dando prioridade para a baixa renda, e define a lista final de beneficiários. "Porque o grande problema de fazer retrofit ligado a plataformas de investimento internacional é ir para público de mais média e alta renda", diz Guerreiro. "É interessante a dinâmica de aluguel, renovando empreendimentos que estão vazios, desde que tenha um controle público sobre a demanda para que eles possam ser utilizados pela população que mais precisa."
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0p1z80yelo
brasil
Como prisões da América Latina se tornaram centros de comando para as principais facções de tráfico de drogas
No Equador, as prisões são o epicentro de uma crise de segurança pública sem precedentes. No Brasil e na Venezuela, grupos criminosos nascidos atrás das grades estão se expandindo. Na América Central, governos tomam medidas extremas contra o poder exercido pelas facções nas prisões. Em toda a América Latina, penitenciárias criadas por países para melhorar a segurança de quem está fora delas tiveram o efeito contrário: tornaram-se centros de comando de importantes organizações criminosas. Em geral, essas facções que surgiram e são comandadas de dentro dos presídios têm como principal fonte de renda o tráfico de drogas. Mas especialistas acreditam que algumas se envolveram em outras formas de crime, desde extorsão até mineração ilegal. “A prisão não é como pensávamos”, diz Gustavo Fondevila, especialista do Centro de Pesquisa e Ensino Econômico (Cide), no México. “Esses presídios da região se tornaram motores da violência: você constrói um presídio em um lugar e o índice de criminalidade naquela área aumenta”, acrescenta Fondevila em entrevista à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas “É um Estado paralelo dentro das prisões." O desafio prisional para os países latino-americanos cresceu à medida que celas superlotavam nas últimas décadas, sem políticas efetivas para acompanhar essa tendência e ressocializar os presos. A população carcerária nas Américas, excluindo os Estados Unidos, mais do que dobrou desde 2000, de acordo com o World Prison Brief, um relatório global de dados prisionais publicado em 2021 pelo Institute for Crime and Justice Policy Research (ICPR, por sua sigla em inglês). Esse aumento no número de presos chegou a 200% na América do Sul, segundo o estudo, e a 77% na América Central. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Brasil, onde a população carcerária multiplicou por 3,5 desde o início deste século, um grupo surgido na década de 1990 dentro de um presídio paulista passou a ser considerado nas últimas décadas a maior organização criminosa do país e talvez da América do Sul: o Primeiro Comando da Capital (PCC). Inicialmente concebido como um sindicato de proteção aos presos, com estatuto próprio, o PCC se fortaleceu dentro dos presídios até que em 2006 mostrou sua capacidade de atuar nas ruas. Na época, uma série de ataques violentos banharam em sangue e paralisaram a maior cidade da América Latina. "O crime fortalece o crime" é um dos lemas do PCC. O grupo se expandiu quando as autoridades enviaram seus líderes para prisões em outros Estados brasileiros onde recrutou mais membros, até chegar a cerca de 30 mil integrantes dentro e fora das prisões, indicam estudos. Sob a liderança de Marcos Herbas Camacho, conhecido como Marcola, preso desde 1999, o PCC expandiu suas operações de tráfico de drogas controlando rotas internacionais do Paraguai, Bolívia e outros países da região. Paralelamente, a facção ampliou seus ganhos com outros crimes, como assaltos a bancos e venda de telefones roubados. Neste ano, um relatório da ONU citou relatos de infiltração de operações ilegais de mineração de ouro na Amazônia pelo PCC e Comando Vermelho, outra poderosa facção brasileira nascida em uma prisão do Rio de Janeiro. “Mesmo dentro da prisão, grupos como o PCC não interromperam completamente sua comunicação com o que está acontecendo nas ruas. Quando falamos de presos com maior poder e centralidade na organização, com certeza eles têm a possibilidade de manter a influência, os lucros e a organização do negócio”, diz Betina Barros, socióloga e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para a BBC Mundo. Na prática, o PCC é um caso emblemático do que está acontecendo numa escala menor em outras partes da região. Em vez de controlar o interior da prisão de Tocorón, no centro-norte da Venezuela, autoridades transferiram a responsabilidade para os próprios presos. Assim, junto a uma boate, um cassino e um zoológico, outra transnacional latino-americana do crime, o Tren de Aragua, surgiu em 2014 nessa penitenciária venezuelana. Além de narcotráfico, a quadrilha, que conta com cerca de 3.000 membros, é acusada de uma ampla gama de crimes: de extorsão e sequestro a tráfico de pessoas e pistolagem —além de garimpo ilegal como o PCC, com o qual estabeleceu laços segundo autoridades brasileiras. Figura mais visível do Tren de Aragua, Héctor Rusthenford "Niño" Guerrero, "está protegido dentro de Tocorón e controla toda a operação de lá", disse Ronna Rísquez, jornalista venezuelana e autora de um livro sobre a quadrilha, em entrevista em maio. A falta de controle dos presídios superlotados também ficou evidente no Equador, onde o governo declarou na semana passada estado de emergência. O sistema prisional do país foi palco de uma série de massacres com mais de 450 mortos desde o ano de 2020. Por trás da violência nas prisões equatorianas, os especialistas veem uma guerra de gangues que também se espalhou pelas ruas, palco de homicídios, tiroteios e ataques enquanto o país se tornava um centro regional de distribuição de drogas. “Eu diria que o Equador é um narcoestado governado de dentro das prisões pelo crime organizado”, disse Carla Álvarez, professora e pesquisadora de segurança. Sem chegar a esses extremos, outros países da região viram crescer o desafio do narcotráfico atrás das grades. Na Argentina, várias pessoas foram presas acusadas de transportar quilos de cocaína sob o comando de líderes presos do "Los Monos", uma quadrilha do narcotráfico da cidade de Rosário. Recentemente, revelaram que um ex-piloto de aviação que já forneceu drogas ao grupo dirigia uma rede ativa de distribuição de entorpecentes e lavagem de dinheiro a partir do presídio de Ezeiza. No México, onde traficantes como Joaquín “El Chapo” Guzmán mantinham seus gigantescos negócios ilícitos em prisões de segurança máxima, estima-se que milhões de telefonemas de extorsão sejam feitos a partir das prisões todos os anos. Alguns governantes latino-americanos admitiram abertamente que as facções dominam suas prisões. “Iniciamos atividades para que as prisões deixem de ser escolas do crime e quebrem o ciclo com as facções”, disse José Manuel Zelaya, secretário de Estado de Defesa Nacional de Honduras, semanas atrás. Além de planejar a construção de uma prisão para cerca de 2.000 líderes de facções em um arquipélago caribenho, o governo hondurenho adotou medidas extremas para combater o crime, como toque de recolher, estado de emergência em grande parte do país e a militarização de presídios superlotados após vários massacres . Essa estratégia de "mão forte" parece ser cópia da usada pelo presidente salvadorenho Nayib Bukele para reduzir o enorme poder que as facções tinham dentro e fora das prisões de seu país, incluindo a inauguração de uma megaprisão para supostos membros de gangues neste ano. Com a taxa de homicídios despencando em El Salvador, Bukele goza de grande popularidade em nível doméstico e é considerado por alguns políticos da região um exemplo a ser seguido. Mas alguns alertam que o país está pagando um preço muito alto para restaurar a segurança pública, com erosão das liberdades civis, abusos das forças de segurança e concentração de poder no presidente. Outros lembram que as apostas apenas para punir muitas vezes se tornam um bumerangue na América Latina. “Em contextos com muitas vítimas, as pessoas querem uma mão forte. Dá para entender perfeitamente: elas querem sair na rua sem medo”, diz Fondevila. “Mas a resposta de prender todo mundo por qualquer coisa na região deu muito errado e o efeito é paradoxal: colocamos pessoas na prisão para ficar tranquilo e essas pessoas voltam para a sociedade com crimes cada vez mais graves e complexos”.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03x57z15l6o
brasil
Thelma Krug: América Latina e Brasil estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança climática, diz ex-vice presidente do IPCC
Nos últimos três meses, o governo brasileiro dedicou tempo e investimentos para impulsionar a candidatura da pesquisadora Thelma Krug à presidência do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). Matemática de formação e vice-presidente do órgão entre 2015 e julho de 2023, Krug se reuniu com delegações de mais de dez países nas semanas que antecederam a votação para fortificar suas chances, que eram vistas como grandes. Em 26 de junho, porém, o cientista britânico Jim Skea foi eleito em plenário para o cargo, superando a candidatura da brasileira, da professora sul-africana Debra Roberts e do belga Jean-Pascal van Ypersele. Se eleita, a cientista que já foi pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e secretária dos ministérios do Meio Ambiente e da Ciência, Tecnologia e Inovação, teria sido a primeira mulher a presidir o IPCC. "O Brasil jamais teria apresentado a minha candidatura da forma como o fez, com todo o apoio que foi dado, se não tivesse confiança nos meus requisitos para o cargo de presidente. Então fica a pergunta: por que não?", afirmou Krug em entrevista à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas "Eu não perdi nada, mas o IPCC perdeu uma grande chance de ter uma mulher qualificada, que já era vice-presidente e que já estava na instituição há 21 anos consecutivos como presidente. E se isso tudo não foi suficiente dessa vez, tenho dúvidas se uma mulher ou um representante de um país em desenvolvimento conseguirá um dia chegar lá." O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente), tem como principal objetivo fornecer avaliações científicas regulares sobre a mudança do clima e propor opções de adaptação e mitigação para os formuladores de políticas públicas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além de vice-presidente do órgão, Thelma Krug participou da Força-Tarefa do IPCC sobre gases do efeito estufa por 13 anos. À BBC, a pesquisadora afirmou que o Brasil e toda a América Latina estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança do clima. "O Brasil é vulnerável por vários motivos: por conta das secas, das fortes precipitações, do aumento da temperatura média, das ondas de calor, dos ciclones tropicais", diz. "Mas boa parte da vulnerabilidade se deve a componentes externos, como a desigualdade social, a pobreza e o uso de recursos de maneira não sustentável, que agravam a mudança do clima." Segundo o próprio IPCC, eventos climáticos extremos já estão afetando a América Latina e estão projetados para aumentar. A lista inclui o aumento da temperatura e do nível do mar, a erosão costeira e o aumento da frequência de secas, que estão associadas a uma queda no abastecimento de água, assim como impactos na saúde humana, agricultura e pesca. Ainda segundo Krug, a meta global proposta pelo Acordo de Paris de frear o aquecimento global a 1,5ºC até 2100 está se tornando cada vez mais difícil de ser alcançada, "chegando no limite de ser impossível". "Se essas reduções não foram feitas rapidamente e de uma forma muito ambiciosa, logo chegaremos a uma situação em que mesmo a redução abaixo de 2°C poderá estar comprometida." Sobre Amazônia e a cúpula realizada em Belém nesta semana, Krug afirmou que o Brasil enfrenta um "problemaço" para cumprir a ambiciosa meta de desmatamento zero até 2030, após "o desmonte das agências de fiscalização e a multiplicação do crime organizado armado e garimpo ilegal" nos últimos quatro anos. "Eu acho que é [possível cumprir a meta], mas vai depender da intensificação extrema dessas ações de fiscalização em um curto espaço de tempo", disse. Leia a seguir os principais trechos da entrevista da matemática e pesquisadora à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza: BBC News Brasil - Em que ponto estamos, como mundo, da crise climática? Thelma Krug - Estamos em um momento bem preocupante. O último relatório do IPCC [de março de 2023] conseguiu recuperar vários dados paleoclimáticos que permitiram aos cientistas avaliarem que muitos dos eventos que temos observado nos últimos anos são sem precedentes. Em 2019, por exemplo, tivemos as maiores concentrações de dióxido de carbono em pelo menos 2 milhões de anos e de metano e óxido nitroso em 800 mil anos. A área de gelo no Mar Ártico também chegou em seu mínimo desde 1850 na década de 2011 a 2020 e a temperatura média global da superfície aumentou muito mais rapidamente nos últimos 50 anos do que em qualquer outro período dos últimos 2 mil anos. Múltiplas fontes independentes registraram o aumento de ondas de calor em todo o mundo e, ao mesmo tempo, observamos a elevação do nível do mar e a maior frequência e intensidade de extremos meteorológicos e climáticos, muitos dos quais atribuídos a influência humana. BBC News Brasil - Há tempo hábil para cumprir a meta de limitar alta de temperatura global a 1,5°C? Krug - Essa foi uma meta ambiciosa, que vai se tornando cada vez mais complicada de ser atingida. Um relatório especial do PICC de 2018 já indicava a necessidade de rápidas, profundas e sustentadas reduções de emissões de gases de efeito estufa para cumprir esse objetivo. Os pesquisadores praticamente concordaram que para chegar a 1,5° C teríamos que zerar as emissões e remoções de CO2 globalmente. Ou seja, vai se tornando cada vez mais desafiador, chegando no limite de ser impossível. Se essas reduções não foram feitas rapidamente e de uma forma muito ambiciosa logo chegaremos a uma situação em que mesmo a redução abaixo de 2°C poderá estar comprometida. BBC News Brasil - O que falta para atingir as metas globais e implementar medidas efetivas para reduzir drasticamente as emissões? Krug - A verdade é que, segundo o IPCC, já existem opções de mitigação que reduziriam pela metade as emissões de gás de efeito estufa relativas ao ano de 2019 até 2030. Ou seja, não estamos dependentes de novas tecnologias para cortar as emissões. O que existem são barreiras de diversas naturezas que dificultam a implementação. E para os países em desenvolvimento, que são a maioria, a maior barreira é a financeira. Falta investimento estrangeiro, iniciativas de transferência de tecnologia ou capacitação. Existem também barreiras de natureza institucional: falta de legislações, por exemplo, que poderiam incentivar parcerias público-privadas ou mudanças em processos industriais. Ou seja, falta visibilidade institucional sobre como tratar a questão da mudança climática. BBC News Brasil - Muitas vezes quando tratamos de temas como mudanças climáticas e meio ambiente, o público tem dificuldades de enxergar as consequências concretas de tudo isso. De que forma o dia a dia dos brasileiros já é impactado pelo aquecimento do globo? Pode dar exemplos? Krug - A maior consequência que temos já caracterizada - e que não é exclusiva do Brasil - é a projeção de que os eventos meteorológicos e climáticos, como secas e ciclones, vão ficar cada vez mais frequentes e mais intensos. Na região sul, por exemplo, já se constatou que o aumento de fortes precipitações está relacionado à ação humana. Na Amazônia, as secas mais frequentes registradas desde 2005 já saíram do padrão de variabilidade natural e começam a ser entendidas como influenciadas pela mudança do clima de natureza antrópica. Além disso, já foi identificado um aumento da temperatura média em todas as regiões do Brasil, causado pela ação humana. E se tem a digital humana significa que tende a aumentar ainda mais. BBC News Brasil - Falando especificamente sobre o Brasil, o quão vulnerável estamos às mudanças climáticas, segundo as últimas conclusões do IPCC? Krug - Não só o Brasil, como toda a América Latina, estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança do clima. O Brasil é vulnerável por vários motivos: por conta das secas, das fortes precipitações, do aumento da temperatura média, das ondas de calor, dos ciclones tropicais. Mas é um pacote né? Porque boa parte da vulnerabilidade se deve a componentes externos, como a desigualdade social, a pobreza e o uso de recursos de maneira não sustentável, que agravam a mudança do clima. A verdade é que o impacto nunca é igual para todos, pois as populações menos abastadas têm menor capacidade de adaptação e sofrem mais. Em algumas regiões do Brasil as famílias não têm sequer acesso à luz elétrica, imagine a um ventilador ou a um ar condicionado para aguentar as altas temperaturas que já estamos experimentando. Estamos diante de um portfólio de extremos que variam de lugar para lugar e, é claro, que serão tão mais graves quanto maior for o aquecimento global. BBC News Brasil - O quão perto a Floresta Amazônia está do “ponto de não retorno”, ou seja, do momento em que pode não se recuperar mais diante do desmatamento e das mudanças climáticas? Krug - A comunidade científica ainda precisa amadurecer mais nessa questão, pois não há um consenso científico sobre essa possibilidade ou o quanto de desmatamento será preciso para chegar lá. Mas independente de qualquer coisa deveríamos seguir o princípio da precaução. Até porque a contenção do desmatamento é a opção de mitigação da mudança climática que tem o maior potencial do ponto de vista técnico e econômico, segundo o IPCC. Classificamos como de alto potencial econômico aquelas ações que vão custar menos do que 100 dólares por tonelada de CO2 reduzido ou evitado - e muitas das ações florestais indicadas pelo IPCC custam menos do que 20 dólares. E as implicações do desmatamento não têm limites geográficos. Elas são tão importantes aqui no Brasil como na Colômbia, na Venezuela ou em qualquer outro dos oito países que compartilham a Floresta Amazônica. BBC News Brasil - O Brasil tem condições de cumprir a meta de desmatamento zero até 2030? Krug - Nós já conseguimos quase fazer isso no passado, entre 2004 e 2012, quando reduzimos o desmatamento em 83%. Mas a situação atual é mais complexa: tivemos nos últimos quatro anos um olhar muito complicado para a área ambiental, com o desmonte das agências de fiscalização e multiplicação do crime organizado armado e garimpo ilegal. É um problemaço. Reverter isso vai requerer uma ampliação da fiscalização, algo que custa muito dinheiro. Ou seja, o Brasil precisa de um reforço de recursos. O Fundo Amazônia contribuiu muito para a redução do desmatamento na Amazônia, mas paga por reduções - e para reduzir é preciso tomar ações que requerem dinheiro. Você me pergunta se é possível. Eu acho que é, mas vai depender da intensificação extrema dessas ações de fiscalização em um curto espaço de tempo. BBC News Brasil - O presidente Lula tem defendido que a Amazônia seja explorada de maneira compatível com o meio ambiente, sem aumentar o desmatamento, mas ao mesmo tempo sem ser um santuário que não gera renda aos moradores. Como a senhora avalia essa visão? É possível desenvolver sem desmatar? Krug - Eu concordo com o presidente Lula. Há potenciais que muitas vezes são pouco explorados para uma estratégia de desenvolvimento envolvendo os povos que vivem nas regiões ameaçadas. Não adianta criar um plano sem nem saber como ele vai impactar as populações locais - tanto positiva quanto negativamente. BBC News Brasil - Explorar petróleo na foz do Rio Amazonas e ampliar a exploração na própria floresta é viável? Krug - Eu consigo entender que muitos países, inclusive da nossa região, tem um grande potencial de exploração de combustíveis fósseis e que, por meio deles, poderiam gerar mais recursos para a saúde, educação e etc. Por outro lado, um dos pontos mais críticos do combate à mudança do clima é justamente a descarbonização. Os combustíveis fósseis representam 80% da contribuição para a mudança do clima. Então [investir em petróleo] é quase como andar na contramão da ciência. E explorar petróleo na Amazônia é algo bem difícil para mim. Tenho dificuldade de entender.. É uma discussão que mereceria mais aprofundamento. BBC News Brasil - O Pará sedia a cúpula da Amazônia, mas é regularmente o segundo Estado que mais desmata no país. Há sérios conflitos ali que ilustram o desafio do Brasil em relação ao meio ambiente. Em que medida o Brasil e o presidente Lula têm condições de tentar liderar uma agenda ambiental global quando existem problemas tão sérios em casa que parecem difíceis de resolver? Krug - Ele [Lula] já é um líder. Esses seis meses de governo deram a clara demonstração de um país que tem na ciência e na tratativa da mudança do clima temas prioritários. Conversando com líderes e representantes de diversos países nos últimos meses notei uma visão de um novo Brasil e de que o Lula tem, sim, a capacidade de liderar e retomar a liderança regional. A Cúpula da Amazônia é um exemplo disso, é uma demonstração de que o Brasil não está só pensando no Brasil, mas em toda a região e certamente. Isso já é um passo importante no estabelecimento dessa liderança que o Brasil perdeu nos últimos quatro anos. E, na minha opinião, hospedar a COP-30 em Belém é uma ótima forma de mostrar o que ainda temos de floresta. Mas, ao mesmo tempo, na minha opinião, a mensagem principal deve ser para mostrar o quanto essa floresta está vulnerável ao desmatamento e que se não houver um esforço paralelo à redução do desmatamento, junto com o esforço de descarbonização, as florestas e os ecossistemas naturais sendo muito vulneráveis à mudança do clima, tornam essa situação bem complicada. BBC News Brasil - A senhora foi candidata do Brasil à presidência do IPCC, mas o britânico Jim Skea foi o aprovado em plenário. Estas foram as primeiras eleições na história do IPCC com candidatas mulheres e, se fosse eleita, a senhora teria sido a primeira mulher a presidir o órgão. A senhora acredita que uma decisão em prol da maior diversidade de gênero na liderança poderia beneficiar mais o IPCC? Krug - Certamente. Se existe uma frustração é pelo fato dessa eleição não ter eleito uma mulher - e olha que éramos duas candidatas. A composição atual da diretoria do IPCC tem um presidente, três vice-presidentes e oito co-presidentes de grupos de trabalho e da força-tarefa. São 12 pessoas, das quais apenas três são mulheres. As Nações Unidas falam muito de paridade de gênero, mas o IPCC desde sua criação há 34 anos nunca teve uma mulher presidente, o máximo que se alcançou foi uma vice-presidente, com a minha eleição à Vice-presidência em 2015. Sempre tentamos também estabelecer um balanço de gênero e distribuição geográfica dos autores que contribuem para o IPCC, mas nem sempre fomos bem-sucedidos. No último ciclo tivemos 32% de autores mulheres e no anterior 25%. O Brasil jamais teria apresentado a minha candidatura da forma como o fez, com todo o apoio que foi dado, se não tivesse confiança nos meus requisitos para o cargo de presidente. Então fica a pergunta: por que não? Então eu acho que eu não perdi nada, mas o IPCC perdeu uma grande chance de ter uma mulher qualificada, que já era vice-presidente e que já estava na instituição há 21 anos consecutivos como presidente. E se isso tudo não foi suficiente dessa vez, tenho dúvidas se uma mulher ou um representante de um país em desenvolvimento conseguirá um dia chegar lá.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnly4e2dj97o
brasil
Joias de Bolsonaro: os argumentos da PF para operação que mirou assessores de ex-presidente
A Polícia Federal deflagrou nesta sexta-feira (11/8) uma operação nesta contra pessoas próximas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, entre elas militares, suspeitos de participarem de um esquema de venda ilegal de presentes recebidos por Bolsonaro durante compromissos oficiais. O dinheiro obtido com a venda, diz a PF, seria destinado a Bolsonaro. Segundo a PF, os crimes investigados nessa etapa da operação são peculato e lavagem de capitais. A operação foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e é um desdobramento das investigações sobre o destino de joias recebidas pelo ex-presidente enquanto estava no poder. Apesar de as investigações terem Bolsonaro como um dos alvos, a operação de hoje não teve nenhuma medida contra o ex-presidente. Quatro pessoas foram alvo da operação: o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, que está preso; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lorena Cid; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente do Exército Osmar Crivelatti; e o advogado Frederick Wassef, que já defendeu Bolsonaro e familiares em processos judiciais. A BBC News Brasil enviou perguntas ao advogado de Mauro Cid, Bernardo Fenelon. As perguntas foram endereçadas a Mauro Cid e seu pai, mas Fenelon não respondeu aos questionamentos. A reportagem também enviou questões ao advogado e ex-secretário de comunicação de Bolsonaro, Fabio Wajngarten. Ele não respondeu às perguntas. Fim do Matérias recomendadas A reportagem tentou contato com Frederick Wassef em dois números vinculados a ele. Nenhuma resposta foi enviada. A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Osmar Crivelatti. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com o relatório, o tenente-coronel Mauro Cid e Crivelatti teriam participado do grupo responsável pelo desvio, envio ao exterior e tentativa de venda dos itens. Seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, teria recebido as joias e encaminhado os produtos a locais de venda. Lourena Cid é amigo pessoal de Bolsonaro. Os dois se formaram juntos na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Durante o governo Bolsonaro, Lourena Cid ocupou um cargo na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil). Frederick Wassef, por sua vez, teria atuado no que a PF chamou de "operação de resgate" das joias desviadas após a publicação de reportagens sobre o caso, março de 2023. A operação atingiu integrantes do núcleo mais próximo de Bolsonaro um mês depois de ele ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ficar inelegível por oito anos. Mas quais são os argumentos da polícia federal que levaram à operação de hoje? Segundo trechos do relatório da Polícia Federal enviado ao STF, há indícios de que assessores de Bolsonaro teriam usado aviões da Força Aérea Brasilia (FAB) para retirar do Brasil presentes de alto valor e joias que foram dadas ao ex-presidente durante compromissos oficiais. A legislação brasileira determina que presentes oficiais precisam ser registrados junto ao governo para que seja feita uma análise sobre se eles devem ser incorporados ao patrimônio público ou se podem ser destinados a quem os recebeu. "Foi criada uma estrutura para desviar os bens de alto valor presenteados por autoridades estrangeiras ao ex-Presidente da República, para serem posteriormente evadidos do Brasil, por meio de aeronaves da Força Aérea brasileira e vendidos nos Estados Unidos", diz um trecho do relatório da PF. Ainda de acordo com a PF, a prática teria sido ilícita. "(Esses) fatos que, além de ilícitos criminais, demonstram total desprezo pelo patrimônio histórico brasileiro e desrespeito ao Estado estrangeiro, cujos presentes ofertados, em cerimônias diplomáticas, podem retratam aspectos de suas culturas e representa um gesto de cortesia e hospitalidade ao Brasil, representado naquele momento pelo Presidente da República", disse. As mensagens mostram que o médico de Bolsonaro, Marcelo Câmara, alertou Mauro Cid sobre a necessidade de comunicar a uma comissão do governo a intenção de vender os itens. "Só dá pena pq estamos falando de 120 mil dólares / Hahaaahaahah", teria respondido Mauro Cid. Segundo a PF, mensagens de texto trocadas entre os membros do grupo indicam que eles tinham ciência de que a venda dos itens era ilegal. "As mensagens evidenciam que, além da existência de um esquema de peculato para desviar ao acervo privado do ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, os presentes de alto valor recebidos de autoridades estrangeiras, para posterior venda e enriquecimento ilícito do ex-Presidente, Marcelo Câmara e Mauro Cid tinham plena ciência das restrições legais da venda dos bens no exterior", diz um trecho do relatório. A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Câmara. Ao todo, os investigadores conseguiram identificar quatro conjuntos de presentes e joias que teriam sido levados aos Estados Unidos pela equipe de Bolsonaro. O primeiro conjunto era formado por uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe ("masbaha") e um relógio recebido em nome Bolsonaro pelo ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, durante uma viagem à Arábia Saudita, em outubro de 2021. O segundo conjunto continha um anel, abotoaduras, um rosário islâmico (“masbaha”) e um relógio da marca Rolex em ouro branco que teria sido dado a Bolsonaro durante uma visita oficial à Arábia Saudita em outubro de 2019. O terceiro conjunto continha duas esculturas dadas de presente a Bolsonaro durante uma visita ao Barein, em novembro de 2021. O quarto conjunto, por sua vez, continha um relógio da marca Phelippe Patek que Bolsonaro teria recebido nessa mesma viagem Barein, De acordo com as investigações, os kits foram transportados do Brasil para os Estados em diversas ocasiões. Uma delas foi durante a visita oficial de Bolsonaro aos Estados Unidos, em junho de 2022, para participar da Cúpula das Américas. A outra foi durante a viagem da comitiva de Bolsonaro aos Estados Unidos, em dezembro de 2022, após a derrota do ex-presidente nas eleições. De acordo com a PF, as investigações mostram detalhes de como o grupo do qual Mauro Cid fazia parte teria tentado vender Segundo os investigadores, depois que os itens desviados chegavam aos Estados Unidos, o grupo começava a procurar compradores em potencial. Os itens foram, então, enviados a casas de leilão ou lojas especializadas no ramo em Nova York e Miami. No caso de um relógio da marca Rolex, segundo a PF, o item foi vendido por US$ 68 mil. A PF suspeita que o dinheiro da venda dos itens fosse direcionado a Bolsonaro. "Identificou-se, em acréscimo, que os valores obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-Presidente da República, por meio de pessoas interpostas sem utilizar o sistema bancário formal, com o objetivo de ocultar a origem localização e propriedade dos valores", diz um trecho da decisão de Alexandre de Moraes. Ainda segundo o relatório da PF, alguns itens supostamente desviados não foram vendidos porque não teriam sido avaliados como preciosos pelos estabelecimentos especializados. Foi o que teria ocorrido com um kit de joias dadas pelo governo da Arábia Saudita e que continha abotoaduras, um relógio e um rosário islâmico conhecido como "masbaha" e um anel. O material foi remetido a uma casa de leilões em Nova York, mas não foi vendido. "No dia 8 de fevereiro de 2023, o kit foi submetido a leilão, mas não foi arrematado, não sendo vendido por circunstâncias alheias à vontade dos investigado", diz um trecho do relatório. O terceiro argumento usado pela PF para justificar a operação desta sexta-feira foi a identificação do que eles chamaram de "operação de resgate" dos itens. Essa ação teria ocorrido depois que veículos de imprensa passaram a publicar reportagens sobre as tentativas de Mauro Cid e outros membros do governo de liberar um outro lote de presentes dados pelo governo saudita a Bolsonaro e que foi retido pela Receita Federal. Trocas de mensagens entre os integrantes do grupo mostram, diz a PF, que eles atuaram para recuperar peças vendidas e entregá-las às autoridades brasileiras como se nunca tivessem sido desviadas e vendidas no exterior. "Mais uma vez, há robustos elementos de prova no sentido que os bens extraviados, provavelmente com o uso do avião presidencial em 30/12/2022, foram objeto de verdadeira Operação resgate, com objetivo de esconder o fato de que haviam sido alienados", diz um trecho da decisão de Alexandre de Moraes. Segundo as investigações, Wassef teria sido o responsável por reaver um relógio da marca Rolex que havia sido vendido. Os outros itens que haviam sido vendidos ou aguardavam a venda, segundo o relatório da PF, foram recuperados por Mauro Cid. Depois disso, aponta a investigação, os itens foram trazidos de volta ao Brasil e entregues à Caixa Econômica Federal (CEF). A BBC News Brasil questionou o Exército Brasileiro sobre a atuação de seus oficiais, segundo as investigacões da PF. Em nota enviada à BBC News Brasil, o Exército Brasileiro disse que a instituição "vem acompanhando as diligências realizadas por determinação da Justiça e colaborando com as investigações em curso". "Por fim, cabe destacar que o Exército Brasileiro não compactua com eventuais desvios de conduta de quaisquer de seus integrantes", diz um trecho da nota.
2023-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz93lkl2d53o
brasil
PAC novo, promessa antiga: pacote de Lula tem 'relançamento' de obras inacabadas
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lançou nesta sexta-feira (11/8) o Novo PAC, a terceira edição do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), iniciativa que marcou seu segundo mandato e a gestão Dilma Rousseff, seja por alavancar os investimentos em infraestrutura e a geração de emprego no país, seja pelas denúncias de corrupção e os longos atrasos nas entregas das obras. O governo anunciou que pretende investir R$ 371 bilhões do Orçamento da União em quatro anos, mais do que os R$ 240 bilhões que estavam previstos inicialmente. O Novo PAC deve contar também com financiamento (empréstimos de bancos e fundos públicos) de R$ 362 bilhões e terá os números inflados por investimentos já planejados por estatais como a Petrobras, o que deve somar mais R$ 343 bilhões. A intenção é também atrair R$ 612 bilhões do setor privado, por meio de concessões e parcerias público-privadas (PPP). Se tudo isso se concretizar, o programa contará com R$ 1,7 trilhão no total. E a projeção do governo é gerar 2,5 milhões de postos de trabalho diretos e 1,5 milhão de indiretos. Fim do Matérias recomendadas O governo também ampliou a previsão de "eixos" do programa, de seis para nove: inclusão digital e conectividade; saúde; educação; infraestrutura social e inclusiva; cidades sustentáveis e resilientes; água para todos; transporte eficiente e sustentável; transição e segurança energética; e defesa. Na prática, segundo anunciou Lula anteriormente, isso significará investimentos em energia eólica e solar; internet em alta velocidade para escolas e postos de saúde; ferrovias, rodovias, hidrovias e portos; e melhoria das condições de habitação em favelas, por exemplo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo informações preliminares, a nova edição vai incluir mais uma vez obras prometidas nos PACs 1 e 2 que não saíram do papel ou ficaram incompletas, caso das ferrovias Transnordestina e Oeste-Leste, ou da pavimentação de estradas em Minas Gerais e Paraná. São empreendimentos anunciados no programa petista, mas que também já foram promessas de outros governos, sem virar realidade. Para especialistas em infraestrutura ouvidos pela BBC News Brasil, a rotina comum de obras com prazos e orçamentos estourados no Brasil reflete, principalmente, a precariedade do planejamento e dos estudos de execução desses empreendimentos. Isso, dizem, acaba gerando mais paralisações, seja porque os recursos terminam no meio do caminho, ou pela atuação de órgãos de controle, como tribunais de contas ou de fiscalização ambiental, que atuam diante das falhas dos empreendimentos. "Um projeto mal elaborado ou que não consegue antecipar todos os desafios da construção vai ter impactos na sua execução. Isso pode fazer, por exemplo, que o projeto demande uma quantidade de recursos maior, o que muitas vezes acaba inviabilizando de fato a construção", explica o economista Rafael Martins de Souza, pesquisador do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura (Ceri) da FGV, também avalia que o PAC teve um impacto modesto. Segundo monitoramento do Tribunal de Contas da União, de um total de 21 mil obras financiadas com recursos federais no país, mais de 8 mil estão paradas (cerca de 40% do total). A previsão de investimento total nesses empreendimentos paralisados é de R$ 32,2 bilhões, sendo que R$ 8,2 bilhões já foram gastos. No lançamento do programa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometeu melhorias na governança dos empreendimentos, sem detalhar medidas. Ele disse que o Novo PAC "vai permitir o aperfeiçoamento do ambiente regulatório e do licenciamento ambiental, o aprimoramento dos mecanismos de concessão e de PPPs, a melhora dos processos de compras públicas, o refinamento da gestão e do planejamento governamentais, além da expansão do crédito e de incentivos econômicos". Um exemplo de obra reciclada no Novo PAC é a ferrovia Transnordestina, anunciada em 2006 para ter cerca de 1.800 quilômetros de extensão, sendo 1,2 mil de trilhos novos e o restante de velhos trechos recuperados, conectando o interior do Piauí aos portos no Ceará (Pecém) e Pernambuco (Suape), para exportação de minério e grãos. A obra foi incluída já na primeira edição do PAC, lançado em 2007. Segundo balanço das duas primeiras edições do programa feito pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção em 2016, a obra deveria ter sido finalizada em 2012. Até hoje, porém, cerca de 60% do projeto foi concluído, segundo a CSN, que detém a concessão da Transnordestina. O orçamento inicial era de R$ 4,5 bilhões, mas já foram gastos R$ 9,1 bilhões até junho deste ano, segundo a CSN, sendo R$ 1,71 bilhão de recursos federais, R$ 3,47 bilhões de empréstimos públicos e R$ 3,95 bilhões da própria CSN. "Em Missão Velha (Ceará), eu fui há cinco anos, tinha máquina trabalhando lá, e aí começou a surgir problema com o projeto; depois, surgir problema com licitação; depois, surgir problema com supressão vegetal; depois surgir problema com o Ministério Público; depois, surgir problema na licitação, ou seja, é um verdadeiro inferno para você concluir um projeto dessa magnitude", se queixou. Em julho deste ano, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, anunciou a retomada do empreendimento: “Estamos buscando uma solução para concluir os dois trechos da ferrovia, seja pro Ceará, que se dará através da concessão, seja para Pernambuco, que nós retomaremos a obra, inicialmente com investimento de orçamento da União, enquanto se reestuda aquele trecho para eventual concessão ou a formação de um parceria público-privada”, afirmou em encontro com governadores do Nordeste. "Estamos projetando no PAC, para esse período, o maior investimento em ferrovias já registrado no Brasil num só período, através de investimentos com a iniciativa privada, para que a gente consiga reduzir o custo da produção", disse ainda na ocasião. Outra obra já anunciada para o Novo PAC é a conclusão da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), prevista para conectar trecho da Ferrovia Norte-Sul em Tocantins até o porto de Ilhéus, na Bahia, com cerca de 1,5 mil quilômetros. Esse empreendimento também já integrou o programa e deveria ter sido concluído em 2015. O Novo PAC vai incluir também a promessa de pavimentar rodovias que já deveriam estar asfaltadas, segundo os investimentos previstos nos primeiros PACs. Nesta edição do programa, o governo solicitou aos governos estaduais que informem suas prioridades. No caso de Minas Gerais, um dos pedidos é para que seja priorizada a pavimentação e implantação do trecho da BR-367 que atende municípios como Salto da Divisa, Almenara, Virgem da Lapa e Berilo. A obra foi confirmada no anúncio do Novo PAC. A conclusão do asfaltamento da rodovia, que liga o Vale do Jequitinhonha a Belo Horizonte e ao Sul da Bahia, é cobrado há décadas pela população mineira. O então presidente Jair Bolsonaro também anunciou e não entregou a obra. A previsão no final de 2020 era investir R$ 157 milhões e entregar a obra em 2022. Poucos meses depois, porém, o valor foi vetado do Orçamento pelo próprio Bolsonaro. Outra obra que o governo de Minas quer incluir no Novo PAC é a barragem de Berizal, que fazia parte do PAC 1. Uma nota divulgada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) em 2021 resumia a novela desse empreendimento: "As obras da barragem Berizal foram iniciadas em 1997 no rio Pardo, no trecho entre os municípios de Taiobeiras e Berizal. Em 2 de julho de 2002, o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais embargou as obras, sob alegativa de que o DNOCS deixou de requerer o licenciamento estadual". "Em 2004, o TCU colocou a obra na lista negra das que ficariam impedidas de receber verbas públicas federais por falta desse licenciamento. Em 2008 e 2009, o empreendimento perdeu os recursos destinados a ele. Nesse período, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluiu a barragem Berizal, nas obras que seriam executadas com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)", continuou a nota. Já entre os pedidos do governo do Paraná para o Novo PAC está a conclusão da pavimentação da Estrada Boiadeira (BR-487), obra que também foi confirmada. O primeiro, porém, foi concluído apenas em 2023, e o segundo é o que deve voltar ao programa. A BBC News Brasil questionou o DNIT sobre o que ocasionou os atrasos na pavimentação da BR-367 (MG) e BR-487 (PR), bem como o valor investido nesses trechos não concluídos. Após a publicação da reportagem, recebeu posicionamento apenas sobre a obra do Paraná. O órgão disse que o atraso na pavimentação da Estrada Boaideira se deu por "restrição orçamentária-financeira do Governo Federal". O lote entregue em 2023 consumiu R$ 66,8 milhões da União e outros R$ 239,3 milhões seriam bancados pela Itaipu Binacional. O lote incluído no Novo PAC ainda não teve investimentos, segundo o DNIT. Já o Palácio do Planalto e a Casa Civil foram questionados sobre como respondem às críticas às edições anteriores do PAC e como pretendem evitar que os longos atrasos se repitam, mas não houve resposta. Também não houve esclarecimento sobre as informações de que o governo prevê até R$ 1 trilhão de investimentos públicos e privados em quatro anos. “Essas e outras informações serão detalhadas na ocasião do lançamento do Novo PAC e nos dias subsequentes”, respondeu a Casa Civil. Mesmo obras do PAC que foram entregues também foram marcadas por atrasos, orçamentos estourados e denúncias de corrupção, caso da usina de Belo Monte, refinarias da Petrobras e estádios da Copa do Mundo. Para o economista Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B e com uma década de atuação no Banco Mundial, as duas primeiras edições do programa não fugiram à tradição brasileira de ineficiência e má execução das obras. Sua consultoria realizou um balanço do programa em 2016, a pedido da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, e concluiu que a contribuição em termos de melhoria na quantidade e qualidade dos serviços foi limitada, em áreas como transportes, saneamento e geração de energia. Na visão de Frischtak, um problema dos dois PACs foi o grande foco do governo no impacto mais imediato, de geração de empregos e movimentação da economia devido aos insumos e serviços contratados, e a pouca atenção com o produto final que seria entregue e teria de fato um efeito social e econômico de longo prazo, como melhora de logística ou do saneamento básico de determinada região. "Os PACs 1 e 2 não foram bem sucedidos. Na verdade, foram programas muito problemáticos", critica. Para que o Novo PAC não repita os erros do passado, diz o economista, é preciso ter uma melhor governança. Algo básico, defende, seria priorizar os empreendimentos segundo a taxa de retorno social, um cálculo que prevê o impacto de fato do projeto para a população. No entanto, esse parâmetro ainda é pouco usado no país, lamenta. O economista Rafael Martins de Souza, pesquisador do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura (Ceri) da FGV, também defende um foco maior na eficiência e na entrega final da nova edição do PAC. "Quando a gente fala em infraestrutura, a gente tem muita preocupação no Brasil em tratar do volume de investimentos e dos impactos de curtíssimo prazo desses investimentos em renda e trabalho. Mas o importante é pensar que esses esforços de investimentos em infraestrutura têm um objetivo final que é ampliar a quantidade e a qualidade do serviço de infraestrutura”, conclui.
2023-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyd5zd6jnndo
brasil
Zema repete discurso de separatistas paulistas de 1932, diz historiadora americana
Uma vaca gorda que definha enquanto é puxada e sugada por 19 crianças. A imagem, uma alegoria elaborada em 1932 por separatistas paulistas que fizeram parte da Revolução Constitucionalista, representa São Paulo como a vaca e as 19 crianças como os demais Estados da recém-instituída República Federativa do Brasil. "Então Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não, você vai cair naquela história, do produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. Daqui a pouco as que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento", afirmou Zema, no contexto da discussão da reforma tributária e da distribuição dos fundos federais. Para a historiadora americana Barbara Weinstein, professora da New York University e especialista em História do Brasil, os claros paralelos entre a ilustração de 1932 e as opiniões de Zema, em 2023, não são mera coincidência. Weinstein argumenta que a Revolução Constitucionalista marca a consolidação de uma identidade paulista — e que se estende a porções do Sudeste e do Sul do Brasil — baseada na branquitude, na masculinidade e no desenvolvimentismo. E marca oposição aos demais Estados brasileiros — vistos nessa interpretação como vagões vazios a serem puxados pela “locomotiva paulista”. Fim do Matérias recomendadas Em sua obra A Cor da Modernidade (Edusp), Weinstein mostra como o auge da economia cafeeira — e o início da industrialização de São Paulo — coincide com a política de branqueamento da população, com o estímulo a migração europeia, e gera condições para que São Paulo pleiteie para si mais recursos de impostos. “Este raciocínio de Romeu Zema é óbvio, uma coisa muito conhecida, insistindo que o cidadão do Nordeste não deve ter tantos direitos quanto o cidadão do Sul, já que o cidadão do Sul supostamente sustenta o Nordeste. Mas o governo nacional existe justamente para poder lidar com esse tipo de desigualdade, negar isso é de certa forma perder qualquer noção da importância da nação”, afirma Weinstein. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Weinstein, concedida à BBC News Brasil via videochamada, e editada por concisão e clareza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Há alguns dias, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, disse que os Estados do Sul e Sudeste deveriam se unir para reclamar politicamente mais peso que o Nordeste e comparou o Brasil a um fazendeiro que dá mais cuidados às vacas que produzem menos leite (em referência ao Nordeste) do que às que mais produzem (Sul e Sudeste). À luz dos seus estudos sobre formação da identidade paulista, como interpreta a fala do governador? Barbara Weinstein - O momento que ele lançou esta ideia do Nordeste ser um empecilho, um impedimento ao progresso do Brasil, é justamente o início da nova gestão Lula. Não é uma grande surpresa que este tipo de fala de repente surja, e certamente Zema não é o único a pensar que o Nordeste é a parte que menos contribui para a grandeza do país. E num momento em que a política social do governo federal tem como prioridade lidar com o problema do desenvolvimento desigual no Brasil e a maior pobreza no Nordeste do que no Sul do país, depois de 4 anos do governo (Jair) Bolsonaro, que não tinha qualquer preocupação com isso, políticos do Sul e Sudeste aproveitam a situação para fazer estas manifestações de que não faz sentido injetar dinheiro no Nordeste porque é o Sudeste a locomotiva do país. E politicamente esse discurso funciona e tem um longo histórico, data do finzinho do século 19, da Primeira República. Depois de 1889, nota-se uma insistência tanto de Minas quanto de São Paulo em se retratar como locomotiva do país. Esta palavra ‘locomotiva’ não surge imediatamente, mas, com o tempo, se torna uma expressão comum até no Nordeste, onde pessoas dizem que São Paulo é a locomotiva do país. Mas Minas tem uma parte que todo mundo reconhece como Nordeste (a região do Vale do Jequitinhonha), com todas as características e os problemas que o Nordeste tem. Minas não é São Paulo, embora tenha a parte sul do Estado bastante identificada com os paulistas, então é um pouco irônico que essa afirmação tenha partido de Zema, que nem reconhece essa característica sobre seu próprio Estado. BBC News Brasil - Em seu livro 'A cor da modernidade', a senhora estuda a construção de uma identidade paulista que é branca, masculina e desenvolvimentista, em contraposição a outras regiões do País. Essa identidade pode ser extrapolada também ao restante do Sudeste e do Sul do país? Barbara Weinstein - Tranquilamente podemos estender essa identidade ao resto do Sul do país. Mesmo durante a Revolução Constitucionalista de 1932, o Estado do Paraná foi um aliado de São Paulo e muitos paranaenses vieram ao Estado combater o governo getulista ao lado dos paulistas. Há inclusive um episódio em que os paulistas se encontram com um batalhão de gaúchos e a conversa deles é na linha de que ‘somos irmãos e devemos estar unidos contra o governo de Getúlio, que é um governo do Nordeste’. E São Paulo, na verdade, esperava que o Rio Grande do Sul e Minas Gerais se juntassem (à Revolução Constitucionalista) contra o Governo Vargas, o que acabou não acontecendo. Mas a ideia é que haveria uma aliança natural entre eles. BBC News Brasil - Essa ideia continua animando as elites políticas e econômicas dessas regiões? Weinstein - Acho muito difícil essa ideia não continuar porque por muitos anos os contrastes entre o Sul/Sudeste e o Nordeste do país eram tão gritantes que o governo federal toma a decisão de canalizar impostos para melhorar a situação do Nordeste. Mas para parte dos políticos sulistas e sudestinos é muito mais fácil levar em conta apenas os interesses de seus Estados e assumir a posição de que ‘o Nordeste não tem jeito’ ou de que ‘é uma perda de dinheiro’ gastar para tentar melhorar a situação ali. Esse contraste hoje, no entanto, já não é mais tão gritante quanto era ao longo do século 20. De certa forma, houve momentos na história quando essa questão se torna um tema quente na política brasileira, mas, em geral, não é esse discurso que está alimentando a desigualdade no Brasil. É uma justificativa para a desigualdade. Na maioria do tempo, o aprofundamento da desigualdade acontece mesmo que sem qualquer justificativa política. Esse assunto só aparece quando Sul/Sudeste sentem que precisam insistir que merecem mais recursos do que os demais, é um discurso que tenta naturalizar uma situação econômica desigual. BBC News Brasil - Como essa identidade paulista/sulista se define e como ela é construída? Weinstein - Primeiro, temos que levar em conta que São Paulo surgiu como o Estado líder do Brasil justamente no momento em que, no mundo ocidental, havia uma ideologia do chamado racismo científico. E São Paulo se torna o mais rico do Brasil nesse contexto, não porque fosse uma economia super moderna e industrializada, mas por causa da exportação de café, que é uma economia muito parecida com a do açúcar no Nordeste no período colonial. Mas é um período de muitas possibilidades, especialmente quando o Brasil deixa de ser um Império, um governo mais centralizado, e passa a ser uma República Federativa. Então, São Paulo percebe que poderia guardar seus impostos para as suas próprias necessidades. São Paulo queria e usava os recursos para subvencionar os migrantes da Europa que tomavam o lugar dos ex-escravos e houve todo um raciocínio de que esse deveria ser o projeto: desenvolver o Estado por meio da economia do café e ir expandindo pra outras atividades econômicas, intensificando a industrialização. Então era um momento perfeito para criar uma identidade de São Paulo como uma locomotiva e o resto do Brasil no segundo plano. Este momento histórico foi muito importante para entender como São Paulo se tornou o Estado mais poderoso, as várias condições: o auge da economia do café, a transição para uma república federativa, e o Estado visto como aquele que mais merece a renda nacional. BBC News Brasil - A declaração de Zema ocorre no momento em que se discute a reforma tributária e a distribuição de recursos da União para os Estados. Weinstein - Justamente. E, historicamente, quais eram as justificativas para que a renda de São Paulo não fosse dividida? Uma justificativa era que São Paulo não era só o Estado produtor do café e indutor da industrialização, mas que São Paulo tinha uma população mais apta a obter o crescimento econômico, porque São Paulo era mais branco que outros Estados. Em termos estatísticos, isso era bastante discutível, porque havia uma população grande de ex-escravos e descendentes de africanos na região. Mas com a migração europeia havia todo esse discurso de que São Paulo estava chegando a um perfil populacional de um Estado moderno e progressista que podia se juntar às demais regiões do mundo ocidental. Então a branquitude virou uma explicação para entender porque São Paulo se tornou um Estado líder do Brasil. E este momento do Governo Lula é um momento perfeito para renovar o discurso do Nordeste como caso perdido e o Sudeste e o Sul como as regiões que contam no Brasil. BBC News Brasil - A manutenção das desigualdades regionais é fundamental para que essa mentalidade e essa identidade permaneçam vivas? Weinstein - Para uma certa tendência política dos Estados do Sul e Sudeste, há uma necessidade de reproduzir esse discurso para manter uma posição decisiva no uso da renda federal e das despesas do governo. E há algo a ver com a própria identidade das pessoas, especialmente da classe média do Sul e do Sudeste que quer pensar ‘eu estou na classe média porque eu trabalho, eu estudo, etc, eu sou uma pessoa moderna, esforçada’ e isso, obviamente, não é uma característica só do Brasil. Em qualquer lugar, as pessoas que sobem um pouco na vida criam um discurso de que elas merecem esses privilégios, esses padrões de vida porque trabalham e estudam enquanto os pobres não querem trabalhar nem estudar. Em geral, os estados que contribuem mais para o governo federal acham que têm mais direitos do que os Estados pobres, que ‘nós que sustentamos o Nordeste devemos ter mais peso no governo que eles, que dependem de nós’. Então este raciocínio de Romeu Zema é óbvio, uma coisa muito conhecida, insistindo que o cidadão do Nordeste não deve ter tantos direitos quanto o cidadão do Sul/Sudeste, já que o cidadão do Sul/Sudeste supostamente sustenta o Nordeste. Mas o governo nacional existe justamente para poder lidar com esse tipo de desigualdades, negar isso é de certa forma perder qualquer noção da importância da nação. Um dado curioso é que nos Estados Unidos, os Estados mais ricos são também os mais democratas, que costumam votar por mais distribuição de renda, o que é contraintuitivo e o oposto do que têm ocorrido no Brasil. BBC News Brasil - A partir da eleição presidencial de 2006, começamos a ver uma divisão política mais clara entre Nordeste e Sul/Sudeste, com o Nordeste votando mais à esquerda e o Sul e Sudeste mais à direita. Você acha que essa diferença tem incentivado releituras dessa perspectiva histórica de suposta superioridade sudestina/sulista? Weinstein - Isso é muito interessante. Apresentei um trabalho justamente sobre o ressentimento regional eleitoral. E você olha para o mapa eleitoral do Brasil, nas duas eleições de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a maioria dos Estados, com raras exceções, deu a vitória a ele. Mesma coisa com o Lula em 2002, o único Estado que não deu a ele a maioria naquele ano foi Alagoas, um Estado nordestino. Já em 2006, começa o padrão que vai se manter até hoje, uma divisão entre os Estados do Nordeste e o Sul e o Oeste. Então agora Lula ganha as eleições, mas não consegue a maioria em vários Estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Isso já estava claro nas eleições de Dilma (Rousseff) também, que a força do PT estava localizada no Nordeste, e o PSDB ganhava no Sul e Sudeste. Não é que isto seja uma divisão natural, já que não existia nas primeiras eleições do período democrático recente. Mas acontece quando Lula deixa claro que uma grande preocupação do seu governo vai ser aumentar o apoio aos pobres do Nordeste. E aí se vê que o maior apoio dos nordestinos a Lula produzia o efeito contrário no Sul/ Sudeste e se espalham aquelas mensagens nas redes sociais: ‘faça um favor a um paulista e mate um nordestino’, uma coisa muito violenta, brutal. Isso foi obviamente uma reação extrema, mas eu acho que houve um consenso entre certas camadas da sociedade brasileira de que Lula privilegiará as necessidades do Nordeste em detrimento do Sul e do Sudeste. BBC News Brasil - A senhora mencionou as reações em redes sociais e mais uma vez vimos surgir manifestações separatistas no estilo 'O Sul é o meu país' ou 'Muro já' depois das declarações de Zema. Como interpreta isso? Weinstein - Houve uma facção do movimento de 1932 que era separatista mesmo, mas era uma minoria entre as lideranças de 32 em São Paulo. Porém, essa pequena minoria tinha muita influência no discurso. Muitas das imagens que os separatistas criaram acabaram adotadas pelos líderes. O cartão postal dos separatistas de São Paulo era essa imagem da vaca que estava emagrecendo porque os bebezinhos, que eram os outros Estados, estavam mamando na vaca paulista. BBC News Brasil - É uma imagem bem próxima à usada pelo governador Zema. Weinstein - Não há nada de novidade no discurso dele. A essa altura do século 21, a gente gostaria de imaginar que seria impossível publicamente um governador de um Estado do Brasil dizer algo assim. Isso é que é triste, não que seja novo, mas que ele pudesse articular essa imagem ainda hoje. Ao fazer isso, como governador de Minas, ele está insistindo na identidade sulista de Minas, como uma extensão de São Paulo — ignorando a parte nordestina do seu Estado. E também creio que ele esteja pensando em uma futura candidatura presidencial, em garantir o apoio do Sul e do Sudeste a seu nome. BBC News Brasil - De que maneira as mulheres se encaixam neste discurso político? Weinstein - Eu não quero exagerar, mas a ideia de uma mulher que é uma boa cidadã, boa mãe de família, vem muito das imagens da classe média brasileira. Por exemplo, pegue o Bolsa Família — muito previsível que o pessoal no Sul vá dizer que as mulheres nordestinas vão ficar grávidas só para receber mais benefícios, em contraste com a imagem da mulher de classe média, disciplinada, boa mãe de família do Sul/Sudeste do país. De certa forma, isso vira um discurso que tem a ver com ideologia de gênero. Quem é a mulher que merece respeito e quem é a mulher que não merece respeito? Não quero exagerar a conexão entre o discurso anti-nordestino e o discurso sobre a mulher, mas existe dentro desse discurso uma noção do Nordeste como uma sociedade problemática e dentro deste problema existe a mulher nordestina, que é aquela que não sabe se controlar, não sabe limitar o tamanho da família, não sabe educar os filhos, fazer a família progredir. BBC News Brasil - Na entrevista que deu ao Estado de S. Paulo, o governador Zema também disse que os Estados do Sul e do Sudeste nunca tiveram peso político equivalente a sua importância econômica. É um erro histórico factual. Mas há um senso de injustiça neste discurso? Weinstein - Primeiro, é um absurdo. Especialmente durante a Primeira República, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul foram os três estados que realmente controlavam o governo. Ponto. E durante o governo Vargas, de 1930 a 1945, apesar de Vargas ter vários projetos para incorporar o Nordeste na economia do país, a preocupação com a industrialização e o fato de São Paulo estar bem posicionado para ser o centro industrial do país, a política do Vargas acabou beneficiando mais São Paulo que os outros Estados da União. Então esta ideia do Sul/Sudeste não ter um peso político igual ao seu papel na economia, pode ser verdade, mas a democracia não funciona com base na produção econômica. A democracia se baseia na ideia de uma pessoa, um voto, não importa a renda. Então esse é um discurso profundamente anti-democrático, dizer que o Estado deve ter mais poder simplesmente por ser mais rico que o outro.
2023-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmrxgmk9x4o
brasil
Fernando Villavicencio: as críticas a Lula e Bolsonaro de candidato assassinado no Equador
Villavicencio, no entanto, se mostrava crítico aos dois. Conhecido no Equador principalmente por seu trabalho como jornalista investigativo, Villavicencio foi líder sindical da Federação dos Trabalhadores Petroleiros (Fetrapec) no fim dos anos 1990. Como deputado, desde 2021, dizia que sua principal bandeira era a luta contra a corrupção — Villavicencio definia o Equador como um "narcoestado", propunha restaurar a segurança com as forças armadas e a polícia nas ruas e combater duramente o que chamava de "máfia política" no país. Seu principal adversário político era Rafael Correa, ex-presidente do Equador e aliado de Luiz Inácio Lula da Silva, sobre quem Villavicencio compartilhou uma série de textos sobre corrupção na Petrobras. Fim do Matérias recomendadas Mas Villavicencio também compartilhava conteúdo crítico contra o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro — desde reportagem que falava sobre "potencial genocídio" promovido pelo brasileiro durante a pandemia até denúncias de corrupção contra os filhos do ex-presidente. Petróleo foi um dos temas mais discutidos por Villavicencio em seus 59 anos de vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ex-candidato nasceu em 11 de outubro de 1963 na província de Chimborazo, no centro-sul do Equador. Segundo o perfil publicado no site de sua campanha, foi dirigente sindical da Federação dos Petroleiros (Fetrapec) em 1999. Sua biografia de campanha diz que, desde adolescente, ele esteve ligado a organizações sociais indígenas e de trabalhadores. Villavicencio cresceu no meio rural, onde aprendeu a “cultivar e respeitar a terra e a conviver com os mais humildes”. Em 2021, tomou posse como deputado eleito pela Alianza Honestidad, uma frente política formada, entre outros partidos, pelo Partido Socialista Equatoriano. À frente da Frente Parlamentar Anticorrupção, apresentou uma série de denúncias que deram origem a investigações sobre suposta corrupção no setor petroleiro durante as presidências de Rafael Correa, Lenín Moreno e Guillermo Lasso. O principal escândalo político divulgado sob sua gestão como deputado foi o chamado caso "Petrochina", que denunciava uma dívida que o Equador teria adquirido com a China durante o governo de Rafael Correa e que Villavicencio classificou como esquema de corrupção. Nos últimos anos, Villavicencio compartilhou uma série de tuítes positivos sobre a operação Lava Jato. Em 31 de outubro do ano passado, data em que a eleição de Lula como presidente foi confirmada, Villavicencio escreveu: "O retorno dos ladrões da lava jato". Em 2019, criticou Bolsonaro quando o Brasil não compartilhou informações de delações premiadas da Odebrecht com a procuradoria equatoriana. Villavicencio citou Bolsonaro em 11 tuítes desde 2018 — dez deles tinham teor crítico. Às vésperas da eleição que elegeu Bolsonaro, Villavicencio respondeu ao tuíte de um professor equatoriano que afirmava que torcia pelo então candidato Fernando Haddad, já que a "outra opção" (Bolsonaro) seria "aterrorizante". "Não podemos curar a raiva com mais mordidas do mesmo cão", disse Villavicencio. "Bolsonaro é produto da traição do PT, da maior corrupção da história. Por Deus.... E não compartilho nada com Bolsonaro." Em dezembro do mesmo ano, compartilhou reportagem sobre investigações contra Flavio Bolsonaro, filho do ex-presidente, e seu ex-motorista e assessor Fabrício Queiroz. O texto abordava uma investigação ligada à operação Lava Jato que apontava, segundo um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, movimentações financeiras de mais de R$ 1,2 milhão consideradas suspeitas por Queiroz. A investigação mais tarde desembocaria no caso das "rachadinhas". Desde 2019, Villavicencio citou Lula 9 vezes em seu perfil no Twitter — todas elas em tom crítico. Em janeiro de 2019, compartilhou reportagem sobre delação do "ex-ministro de Lula da Silva" Antonio Palocci, que havia relatado repassar propina paga pela Odebrecht em dinheiro para o atual presidente. Em diversos tuítes, Villavicencio pressionava autoridades para ter acesso ao conteúdo de uma suposta reunião entre Rafael Correa, Lula e Marcelo Odebrecht em 2006. Em sua menção mais recente ao brasileiro, em novembro de 2022, disse que Lula e Odebrecht ganhava com a falta de cooperação entre executivos da construtora e autoridades peruanas. A apenas 10 dias das eleições presidenciais antecipadas no Equador, Fernando Villavicencio foi morto a tiros após encerrar um evento de campanha na capital do país, Quito. Os disparos aconteceram por volta das 18h20, horário local, enquanto ele entrava em um veículo, ainda cercado por seguranças. Em 4 de agosto, sua campanha informou à imprensa que Villavicencio continuaria viajando pelo país, apesar das ameaças de morte que "continua recebendo de grupos criminosos". Pelo Twitter, após a confirmação do assassinato, o presidente equatoriano, Guillermo Lasso, disse que "o crime organizado foi muito longe, mas todo o peso da lei recairá sobre eles”. Lasso declarou estado de emergência nacional por 60 dias. A irmã de Villavicencio, Patricia Villavicencio, culpou o atual governo pela violência que acabou com a vida do político. "Eles não queriam que a corrupção fosse investigada. Eu amaldiçoo este governo. Não fizeram nada para protegê-lo. É uma conspiração", disse à mídia local.
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm17zp484jo
brasil
Vídeo, Cúpula da Amazônia: como 'palco' ambiental de Lula virou alvo de críticas de ambientalistasDuration, 7,17
A Cúpula da Amazônia, convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou ao final na quarta-feira (9/8). Ela vinha sendo tratada como um palco para projetar ao mundo liderança do presidente brasileiro na área ambiental. Apesar de o governo brasileiro ter conseguido reunir líderes dos oito países da região, o evento terminou sendo alvo de poucos elogios e muitas críticas de ambientalistas e movimentos sociais. Os países conseguiram certo consenso em alguns assuntos, mas não chegaram a acordos em torno de dois pontos considerados cruciais: uma meta comum de desmatamento zero para os países da Amazônia e o fim da exploração de petróleo na Amazônia. Neste vídeo, o correspondente da BBC News Brasil Leandro Prazeres, enviado a Belém para cobrir a cúpula, explica em três pontos como o evento criado para ampliar a influência de Lula na área ambiental acabou alvo de críticas de ambientalistas.
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66449140
brasil
Silvinei Vasques: quem é o ex-diretor da PRF preso em investigação sobre interferência nas eleições
Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), foi preso preventivamente na manhã desta quarta-feira (9/8), em investigação sobre interferência no segundo turno das eleições de 2022. A prisão, realizada pela Polícia Federal (PF), ocorreu em Florianópolis (SC). Na véspera, Vasques declarou voto em Bolsonaro no Instagram. A postagem foi posteriormente apagada. Na ocasião, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, determinou a suspensão imediata das blitze, sob pena de prisão de Vasques. Fim do Matérias recomendadas Caso descumprisse a ordem, Vasques podia ser afastado e até preso em flagrante por crime de desobediência, além de ser multado em R$ 100 mil por hora. Pelo menos 560 abordagens de fiscalização a coletivos fazendo transporte público de eleitores foram relatadas. O número de manifestações constou em controle interno da PRF. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Natural de Ivaiporã, no Paraná, Vasques foi nomeado diretor-geral da PRF em abril de 2021 pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres. Ele substituiu Eduardo Aggio. Vasques, graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, é formado em Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e pela Escola Superior de Administração e Gerência da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc). Especialista em Gestão Organizacional pelo Centro Universitário de Maringá (Cesumar), Vasques também é mestre em Administração pela Universidade Uniatlantico, na Espanha, e doutorando em Direito pela Universidade Católica de Santa Fé, na Argentina. Silvinei Vasques, que entrou na PRF em 1995 aos 20 anos, se aposentou no ano passado, aos 47 anos. Ele pôde se aposentar pela regra antiga, que permitia deixar a corporação após 20 anos de contribuição independentemente da idade. Depois da Reforma da Previdência, a regra mudou para 25 anos de contribuição e idade mínima de 55 anos. Durante sua carreira, ele exerceu atividades de gerência e comando em diversas áreas, inclusive como superintendente em Santa Catarina e coordenador-geral de operações na capital federal. Também foi secretário municipal de Segurança Pública e de Transportes no município de São José entre 2007 e 2008. Antes de se tornar chefe da PRF, foi superintendente da corporação no Rio de Janeiro.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq52xx78yqyo
brasil
PL das Fake News: disputa entre artistas, jornais e plataformas pode acabar com gratuidade das redes sociais e encarecer streaming?
Por falta de acordo, a Câmara dos Deputados desistiu de votar na quarta-feira (9/8) um projeto de lei (PL 2370/2019) que obriga empresas digitais a remunerar artistas e empresas jornalísticas por conteúdos distribuídos em suas plataformas. Caso o texto seja aprovado, deverá ser submetido ao Senado. Ele acabou não sendo votado no primeiro semestre após forte reação de grandes empresas, como Google (dona do YouTube) e Meta (dona de Facebook, WhatsApp e Instagram), e de setores da sociedade que viam o risco de censura caso o PL das Fake News fosse aprovado. A ideia de remunerar conteúdo jornalístico e artístico, porém, também enfrenta resistências, o que acabou levando também ao adiamento da votação do PL 2370. Caso seja aprovada no Congresso, a mudança impactaria redes sociais, ferramentas de busca, sites de compartilhamento de vídeos e aplicativos de streaming, como Netflix e Globoplay. Fim do Matérias recomendadas O setor resiste à criação de novos custos e diz que a forma como a remuneração está sendo proposta pode inviabilizar a oferta de serviços gratuitos como ocorre hoje ou encarecer os que já funcionam por meio de assinaturas pagas. Já os que propõem a cobrança sobre as plataformas dizem que isso representaria uma fração pequena dos altos valores movimentados pelas empresas. E defendem a importância desse financiamento para a qualidade da produção artística e jornalística do país. A reivindicação dos dois setores reflete mudanças trazidas pelo meio digital em seus mercados. De um lado, jornais perderam muita receita devido à migração de uma fatia relevante da publicidade para as plataformas. De outro, artistas do audiovisual, por exemplo, como roteiristas, diretores e intérpretes, passaram a produzir cada vez mais para plataformas de streaming, em que filmes e séries ficam indefinidamente disponíveis para usuários assistirem individualmente, sem que haja uma participação desses profissionais pela exploração comercial da obra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O modelo difere do tradicional, em que havia pagamento de direitos autorais quando um filme ou novela era reexibido na televisão, por exemplo. A versão final do PL 2370 que iria à votação ainda não havia sido divulgada até a atualização desta reportagem, na noite de quarta-feira. Representantes da classe artística passaram a terça em encontros com deputados negociando o texto e buscando apoio para a aprovação da matéria. O projeto de lei em discussão é de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e está sendo relatado pelo deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), aliado próximo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Embora seja desejo de Lira pautar o projeto, o presidente busca uma versão que reduza resistências, antes de confirmar a votação. De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, a Rede Globo, que tem forte influência nesse debate, estaria contra a atual versão da proposta por discordar da forma como a remuneração dos direitos autorais de artistas está colocada, embora defenda a remuneração do conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais. Segundo a BBC News Brasil apurou, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que representa a Globo e outras TVs, quer um texto que dê mais espaço a negociações individuais com os artistas e que não possibilite a cobrança sobre obras anteriores à nova lei. Já entidades que representam artistas, como a Gedar (roteiristas), dizem que a regulamentação proposta pelas empresas de televisão inviabilizaria a negociação coletiva defendida pelos profissionais no PL 2370. “A gestão individual continuará sendo possível na nossa proposta, mas ela tem problemas, devido ao desequilíbrio econômico das partes contratantes”, argumenta a advogada Paula Vergueiro, que representa a Gedar. Procurada pela BBC News Brasil, a Abert não se manifestou. Já a Rede Globo encaminhou uma nota, mas não detalhou seu posicionamento. “A Globo acompanha a posição da Abert e das entidades que representam o setor de radiodifusão nas discussões sobre a PL, tanto sobre a remuneração dos direitos autorais como do conteúdo jornalístico distribuído por plataformas digitais”, disse a emissora. “E reforça a sua defesa incondicional da liberdade de expressão e da responsabilidade que ela carrega, além de atuar firmemente no combate à desinformação”, acrescentou. Hoje, o usuário no Brasil, assim como em outros países, tem acesso a serviços gratuitos em redes sociais, buscadores e plataformas de vídeo, por exemplo. Por outro lado, são expostos a conteúdo publicitário, que geram receitas para essas companhias. A Câmara Brasileira da Economia Digital – que tem entre seus associados grandes empresas do setor, como Google, Meta, TikTok, Twitter e Amazon – apontou em nota enviada à reportagem “impactos prováveis” do PL 2370. Segundo a instituição, a proposta “inviabiliza a oferta gratuita de conteúdo (fotos, vídeos e textos) nas plataformas, ignorando a natureza da comunicação social online, onde as pessoas compartilham ideias, experiências e informações de forma espontânea e não necessariamente com o objetivo de lucro”. A Câmara Brasileira da Economia Digital diz também que o PL 2370 “cria um modelo de arrecadação por direitos conexos dentro do streaming, sem levar em consideração contratos e arcabouços internacionais de direitos autorais já em vigor, além de trazer complexos processos de interpretação e de implementação das regras propostas”. Por fim, argumenta que a proposta também “inviabiliza a presença de conteúdos jornalísticos nas plataformas, aumentando o poder de grupos de mídia tradicionais e estabelecidos e reduzindo o espaço de negociação do jornalismo independente e de nicho e, em última instância, a variedade de conteúdo disponível online”. Procurados, os grupos Google e Meta não se manifestaram sobre o PL 2370, cujo texto ainda está em negociação. Em abril, quando houve tentativa de votar o PL das Fake News (PL 2630/2020), as duas empresas disseram que a proposta impactaria o custo dos seus serviços. “Na sua forma atual, a legislação (proposta no PL 2630/2020) tornaria difícil que empresas de tecnologia como a nossa continuem a oferecer o tipo de serviços gratuitos usados por milhões de pessoas e negócios no Brasil”, alegou a Meta na ocasião. Já o Google disse, naquele momento, que as novas regras sobre direitos autorais previstas no PL das Fake News impediriam usuários de conceder à empresa uma licença de direito autoral ao hospedar seu vídeo no YouTube, por exemplo, etapa obrigatória para que o conteúdo possa ser armazenado e compartilhado na plataforma. “O PL 2630 proíbe esses tipos de licenças de duas maneiras. Uma é exigindo que todas as licenças de direitos autorais para as plataformas sejam concedidas por entidades de gestão coletiva desses direitos, o que significa que criadores e titulares de direitos não podem mais decidir por si mesmos como desejam licenciar ou distribuir os seus trabalhos”, criticou o Google em abril. “A outra forma é obrigando que todas as licenças de direitos autorais sejam pagas. Nesse sentido, as plataformas não poderiam mais oferecer serviços gratuitos de hospedagem ou compartilhamento de conteúdo sem pagar aos criadores que desejam usar seus produtos. Isso significa que poderá deixar de ser viável financeiramente para as plataformas oferecer serviços gratuitos”, disse ainda a empresa. Entidades que representam a classe artística e os jornais rebatem esses argumentos. No setor de audiovisual, a reivindicação por novas regras de direitos autorais têm sido liderada por três associações que representam os interesses dos roteiristas (Gedar), dos diretores (DBCA) e atores (Interartis). As três foram habilitadas pelo Ministério da Cultura a atuar em negociações coletivas para remuneração dos profissionais e buscam a aprovação da nova legislação para poder atuar na cobrança e distribuição dos valores. A advogada Paula Vergueiro, que representa a Gedar, diz que as intenções do setor são “modestas”. Os valores, porém, ainda não estão definidos e dependeriam da negociação entre os ambos os lados. Como isso funcionaria, ainda dependeria de uma regulamentação posterior à eventual aprovação do PL. "Ninguém quer dar uma facada a ponto de inviabilizar o próprio sistema audiovisual. A questão é que se for para pagar qualquer coisa, um real que seja, a reação (das empresas) já é enorme”, disse à reportagem. Segundo a advogada, o argumento de que as novas regras para direitos autorais impediria usuários das plataformas de postar conteúdo e firmar licenças individuais é uma “fake news grave”. A possibilidade de gestão coletiva prevista no PL 2370, ressalta Vergueiro, atinge apenas a classe artística e não será obrigatória mesmo para esses profissionais. “Eles queriam colocar medo nas pessoas físicas que usam essas redes sociais dizendo que elas iam de repente ficar impedidas de mandar fotos, de postar vídeos, ou que teriam que pagar para as redes sociais. Nada disso é verdade. A gestão coletiva dos criadores do audiovisual não tem essa função”, afirma. O advogado Victor Drummond, presidente executivo da Interartis, que hoje representa três mil atores, também refuta esse argumento. “Quase todas as versões do projeto de lei (que está em negociação) previam a possibilidade dos youtubers ou influenciadores terem as relações diretas com as plataformas. Então, a Interartis não vai cobrar nada para o Felipe Neto”, disse. Ele também nega que a proposta da classe artística vai impactar os custos para os usuários das plataformas de streaming. “Eles dizem que isso vai onerar o usuário, que vão repassar (para o preço das assinaturas). Que nada, estamos falando de algo residual (no faturamento do setor)”, crítica. As entidades argumentam ainda que a reivindicação dos artistas brasileiros segue modelos de remuneração coletiva já previstos em outros países, como Argentina, Chile, França, Portugal e Itália. Já nos Estados Unidos, roteiristas e atores de Hollywood estão em greve. Uma das reivindicações é o aumento das remunerações pagas por plataformas de streaming. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) também refuta as críticas de que a proposta de remuneração do setor vai inviabilizar serviços gratuitos no meio digital. Segundo o presidente da instituição, Marcelo Rech, discursos semelhantes foram usados em outros países, como a Austrália, sem que as “ameaças” se concretizassem. Naquele país, há mais de dois anos uma lei instituiu a remuneração dos meios de comunicação, por meio de acordos com as plataformas. “As plataformas têm usado no mundo inteiro argumentos similares, muito na linha de um blefe”, critica Rech. “Na Austrália, eles também ameaçaram deixar o país, e hoje há uma convivência completamente pacificada. Cerca de 200 milhões de dólares australianos (R$ 640 milhões) estão sendo repassados por ano à imprensa australiana com grande benefício a veículos de todos os tamanhos, que voltaram a contratar”, disse ainda. No Canadá, porém, Google e Meta têm oferecido resistência contra a implementação de uma lei que estabelece acordos para a remuneração do conteúdo jornalístico baseado nos cliques em links de notícia indicados em buscadores ou em redes sociais. As duas empresas anunciaram que vão deixar de exibir links jornalísticos quando a nova legislação entrar em vigor, no final deste ano. Questionado sobre o risco de isso ocorrer no Brasil, Marcelo Rech diz que a proposta brasileira não é usar o acesso a links como critério de cobrança. A intenção, explica, é que a remuneração seja fixada em acordos a partir de critérios como: volume de conteúdo produzido, audiência alcançada e números de profissionais formalmente contratados. Segundo Rech, um modelo similar ao australiano poderia gerar receitas para financiar cerca de 40% dos custos editoriais de empresas de jornalismo. “A lógica da proposta de lei brasileira é que a atividade jornalística é uma atividade de combate à desinformação. Uma atividade que faz a limpeza da poluição social que é produzida por um efeito secundário das atividades das plataformas”, argumenta. “Quem tem a técnica e a capacidade para fazer a limpeza dessa poluição é o jornalismo profissional. Nada mais justo que os poluidores paguem uma parte dessa limpeza”, reforça.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2pljv9jxwo
brasil
Amazônia: em palco criado por Lula, líderes cobram países ricos, mas não chegam a acordo sobre petróleo e desmatamento
Convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Cúpula da Amazônia chegou ao fim do seu primeiro dia nesta terça-feira (8/8) marcada pela dificuldade dos países em encontrar consensos sobre pontos considerados chave em relação à preservação do bioma e ao combate às mudanças climáticas. Havia a expectativa de que os países chegassem a uma meta comum de desmatamento zero até 2030, mas o acordo não veio. A exploração de petróleo na Amazônia também foi um dos focos de divergência ao longo das reuniões desta terça-feira. A Cúpula da Amazônia foi organizada pelo governo brasileiro a pedido do presidente Lula. Ela reúne chefes-de-Estado e líderes dos oito países da região na capital paraense até a quarta-feira (9/8). O evento vinha sendo tratado como uma espécie de ensaio para a diplomacia brasileira para a 28º Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP-28), que será realizada no final do ano, nos Emirados Árabes Unidos. Ao final desta terça-feira, uma declaração conjunta acordada por todos os países foi divulgada. Fim do Matérias recomendadas O documento tem mais de 100 parágrafos e não trouxe a esperada meta comum de desmatamento zero na Amazônia até 2030. A meta foi assumida por Lula no início do ano. No programa Conversa com o Presidente, da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), Lula disse que gostaria de sair da cúpula com uma política "unificada" sobre meio ambiente durante a COP-28. "A ideia básica é a gente sair daqui preparado para, de forma unificada, todos os países que têm floresta terem uma posição comum nos Emirados Árabes durante a COP28 e mudar a discussão”, disse Lula. O termo "desmatamento" aparece 13 vezes no documento, mas a meta de que todos o países aderissem à taxa zero até 2030 não aparece. No lugar desse compromisso, os países prometeram estabelecer uma "Aliança de Combate ao Desmatamento entre os Estados Partes" que contempla metas nacionais menos ambiciosas que a de desmatamento zero até 2030. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Estabelecer a Aliança Amazônica de Combate ao Desmatamento entre os Estados Partes, com o objetivo de promover a cooperação regional no combate ao desmatamento e de evitar que a Amazônia atinja o ponto de não retorno, reconhecendo e promovendo o cumprimento das metas nacionais, inclusive as de desmatamento zero", diz um trecho da declaração. Funcionários do governo brasileiro envolvidos na negociação do texto da declaração que falaram à BBC News Brasil sob a condição de anonimato avaliaram que a meta comum de desmatamento zero até 2030 sofreu resistência de países da região, em especial da Bolívia, comandada pelo presidente Luiz Alberto Arce. Segundo esses funcionários, o país teria encontrado dificuldades em aceitar o estabelecimento de uma meta concreta em torno do assunto. O secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, Márcio Astrini, explica que a falta de consenso em torno dessa meta é resultado de diferenças políticas e econômicas entre os países da região. Segundo ele, a falta dessa meta gera frustração entre os ambientalistas. "A meta de desmatamento zero colocaria esse documento em outro nível, mas isso não aconteceu. A explicação para isso é que países vivem momentos políticos diferentes. O Brasil é um grande produtor global de commodities e assumir uma meta como essa tem impacto nos negócios do país lá fora. Com outros países, as pressões são diferentes", disse Astrini à BBC News Brasil. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, minimizou a ausência da meta comum. "Isso não vai separar a região. Houve entendimento sobre essa questão de desmatamento", afirmou Vieira em resposta a pergunta feita pela BBC News Brasil. Um ponto que também gerou relativa divergência foi o trecho em que os países da região cobram países ricos a repassarem recursos nações em desenvolvimento lidarem com adaptação e mitigação às mudanças climáticas. O documento diz que os países amazônicos concordam em "exortar os países desenvolvidos a cumprirem seus compromissos de fornecer e mobilizar recursos, incluindo a meta de mobilizar US$ 100 bilhões por ano em financiamento climático para apoiar as necessidades dos países em desenvolvimento". O compromisso de repassar recursos a países em desenvolvimento é frequentemente cobrada pelo presidente Lula em seus discursos. Apesar disso, o presidente colombiano, Gustavo Petro, criticou o foco do grupo nesse tipo de cobrança. "Pedir que nos deem dinheiro não é suficiente. Essa é uma maneira retórica do Norte dizer que está fazendo algo. Se nós valorizarmos [a Amazônia], ela vale muito mais. Não é com presente do Norte que vamos fazer isso", disse Petro. Outro que criticou a atuação de atores estrangeiros na Amazônia foi o presidente da Bolívia, Luiz Alberto Arce. Segundo ele, enquanto os Estados Unidos tentariam influenciar a região por meios militares, a Europa tentaria fazê-lo por meio de organizações não-governamentais. Petro, no entanto, não ofereceu nenhuma evidência disso. "Alguns querem controlar a Amazônia por meios militares ou através de ongs, enquanto outros, através somente das ongs. Não aceitamos formas encobertas de dominar a Amazônia", disse Arce. Apesar da tentativa do governo brasileiro em focar a declaração primordialmente no aspecto florestal, a exploração de petróleo na Amazônia acabou incluída no documento final da cúpula. O texto da declaração final faz apenas uma menção sobre o tema. Nele, os países dizem concordar que vão "iniciar um diálogo entre os Estados Partes sobre a sustentabilidade de setores tais como mineração e hidrocarbonetos na Região Amazônica, no marco da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e de suas políticas nacionais soberanas". Nos dias que antecederam a cúpula, movimentos sociais reunidos na capital paraense fizeram manifestações pedindo o fim da exploração de petróleo na Amazônia e a redução global da utilização de combustíveis fósseis. Elas são apontadas como principais responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa que causam as mudanças climáticas. O tema é delicado para países ricos em reservas de petróleo como o Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname e Equador. Do outro lado, praticamente isolada, ficou a Colômbia. Em seu discurso durante a cúpula, Petro voltou a criticar a exploração de petróleo, mantendo a posição do governo que, no início do ano, prometeu não liberar novas licenças de exploração de petróleo no país. Petro chamou as apostas em novas fontes de combustíveis fósseis de "negacionismo'. "[Os governos de] direita têm um fácil escape, que é o negacionismo. Negam a ciência. Para os progressistas, é muito difícil. Gera então outro tipo de negacionismo: falar em transições", disse Petro durante sua fala. O ministro Mauro Viera evitou criticar a declaração do presidente colombiano. "Com relação à posição do presidente Petro, não há divergência. O Brasil, desde os anos 1970, começou uma transição (energética) e tenho certeza de que a descarbonização será alvo de um documento no futuro", disse o chanceler. "A posição é convergente (com a da Colômbia) e cada país terá que seguir no ritmo e passo que estiver ao seu alcance. Há muitos países no mundo que detém uma matriz energética dependente de carvão e combustíveis fósseis", disse Vieira. Em julho, durante encontro com Lula na Colômbia, Petro chegou a questionar se os países da região iriam permitir a exploração de petróleo na Amazônia. Lula não respondeu, na ocasião. Para Márcio Astrini, apesar da declaração considerada tímida sobre o petróleo, o assunto não deverá sair da agenda. "Não era esperado que petróleo entrasse (no texto da declaração) [...] Essa pressão vai continuar e essa demanda veio pra ficar em cima da mesa dos governos da região. Pode não ter saído nessa declaração, mas está longe de ser um tema morto", afirmou. Para a coordenadora de projetos do Instituto ClimaInfo, Carolina Marçal, o documento final da Cúpula da Amazônia foi pouco ambicioso. "O foco em mecanismos de redução do desmatamento foi uma escolha cômoda. É um tema que está em pauta há muitas décadas e sobre o qual pouca gente discorda. O que nós precisávamos é que os governantes fossem mais ambiciosos em seus compromissos ambientais", afirmou à BBC News Brasil. Márcio Astrini, do Observatório do Clima, também relata uma sensação de frustração. "É frustrante que em pleno ano de 2023 os países da Amazônia não deixem claro que não há lugar mais para desmatamento [...] países como o Brasil já entenderam isso e tem posicionamento claro de desmatamento zero, mas a frustração fica por conta de que nem todos os oito países que assinaram a declaração têm o mesmo entendimento", disse. A Cúpula da Amazônia continuará nesta quarta-feira (9/8) com a participação de países de fora da região Amazônica. Foram convidados representantes da República Democrática do Congo, da República do Congo e Indonésia. Eles foram incluídos no evento por serem ricos em florestas tropicais. Alemanha e Noruega também participarão do evento por serem doadores regulares do Fundo Amazônia, criado pelo Brasil em 2008 para financiar mecanismos de combate ao desmatamento e preservação da Amazônia.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx0wv428ypqo
brasil
Por que cientistas defendem livros didáticos em papel
Dá para abrir mão de livros físicos e estudar só nas telas? Como isso afeta o desempenho dos alunos em idade escolar - e a sua capacidade de leitura? Essa discussão foi alimentada pelo anúncio, agora parcialmente revertido, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, de que alunos da rede pública nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio contariam apenas com livros didáticos digitais, e não mais em papel. O Ministério Público Estadual abriu uma apuração do caso (mais detalhes abaixo na reportagem), e o governador Tarcísio de Freitas acabou afirmando que tanto livros didáticos impressos quanto digitais serão ofertados. Diferentes acadêmicos e entidades debatem o quanto do material didático deve ou não migrar ao ambiente digital, mas evidências científicas sugerem que o papel ainda é o meio mais eficiente para ensinar a habilidade de leitura aprofundada e crítica - particularmente em países com tantas desigualdades como o Brasil. Ao mesmo tempo, há pesquisadores que lamentam que questões igualmente importantes - como a qualidade dos livros - têm sido ofuscadas pela mera oposição entre papel e digital. Fim do Matérias recomendadas Tudo isso a BBC News Brasil conta a seguir. Alguns dados importantes nessa discussão vêm do Pisa, o principal exame internacional a comparar o aprendizado em vários países. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esses 49 pontos equivalem a mais ou menos 10% da pontuação média total dos países na prova de leitura do Pisa. Além disso, estudantes com o hábito de ler em papel também costumavam demonstrar mais prazer com a leitura do que aqueles que liam textos digitais. "Os resultados do Pisa confirmam que o acesso a capital cultural, como livros, é um forte preditor do desempenho dos estudantes", aponta a OCDE. A leitura digital tem vantagens importantes, como poder rapidamente buscar fontes de informação e checar dados. Mas uma preocupação dos cientistas é de que, nas telas, nossa leitura seja mais superficial do que no papel - ou seja, de que "passamos os olhos", em vez de ler de verdade. "As pesquisas dos últimos dez anos mostram que, se você medir a compreensão - o quantas pessoas se lembram do que leem -, ela é quase sempre melhor no texto impresso, especialmente para textos longos", diz à BBC News Brasil a pesquisadora Naomi S. Baron, professora emérita de Linguística da American University em Washington (EUA). O texto impresso convida a uma leitura mais lenta e concentrada do que o texto em tela, que geralmente é ditado pelo ritmo das redes sociais e do multitasking, agrega Baron. "Muito do que fazemos no mundo digital é veloz: olhar para um post no Facebook, uma foto no Instagram, os resultados de jogos de futebol, e daí seguir adiante. Com o texto impresso, presumindo que você não vai estar checando o seu telefone, você tende a focar mais." A experiência sensorial do texto impresso - de manusear e voltar ou avançar páginas manualmente - também parece favorecer a concentração, segundo Baron. Nas suas pesquisas com jovens em idade escolar, diz ela, "eles nos dizem que, se estão lendo uma história de ficção, conseguem ser muito mais absorvidos pela leitura (em papel) e se identificar com personagens". Ponto semelhante já foi levantado pela neurocientista americana Maryanne Wolf, cujas pesquisas sugerem que a leitura superficial poderia prejudicar a capacidade humana de entender argumentos complexos, de fazer análises críticas e até de criar empatia por pontos de vista diferentes. "É isso o que me preocupa nos mais jovens: eles estão desenvolvendo uma impaciência cognitiva que não favorece (a leitura crítica)", disse na época Wolf, que é pesquisadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro no Mundo Digital - Os desafios da leitura na nossa era. "Deixamos de estar profundamente engajados no que estamos lendo, o que torna menos provável que sejamos transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos de outra pessoa." No âmbito da educação pública, um caso que tem sido observado por especialistas é o da Suécia, que a partir de 2015 investiu na digitalização de seus materiais didáticos a partir da pré-escola, mas agora avalia ter ido "longe demais". "Agora, estamos fazendo o oposto: lançando nosso maior investimento em livros didáticos. (...) Sabemos pelas pesquisas que há um entendimento mais profundo da leitura em livros em comparação com a leitura na tela", declarou. Mas há questões importantes que se perdem quando o debate meramente coloca os dois meios de leitura em campos opostos, em vez de identificar qual o melhor contexto para cada um, diz à BBC News Brasil a professora Natalia Kucirkova, que pesquisa o tema na Universidade de Stavanger, na Noruega. "É uma pena que por tanto tempo se persista nessa dicotomia de 'impresso versus digital', porque, na verdade, as tecnologias já estão integradas nas experiências do dia a dia", argumenta Kucirkova. Ela defende que o foco seja direcionado à qualidade dos livros (impressos ou digitais) e como cada meio pode proporcionar uma experiência de aprendizado e de engajamento diferente. Ela também defende livros digitais que não sejam meras cópias em PDF de seus pares impressos, mas sim agreguem personagens que interajam ou sejam controlados pelo jovem leitor. O desafio, aí, é garantir que essa experiência interativa engaje a criança, em vez de distraí-la da leitura, explica a pesquisadora. Mas, se esse obstáculo for superado, livros do tipo têm potencial de favorecer a leitura em contextos novos. Além disso, Kucirkova diz que crianças que demonstram menos interesse pela leitura - os quais ela chama de "leitores relutantes" - também podem ter a chance de encontrar prazer nas histórias digitais. Mas como esse debate se insere no Brasil, que ainda não equalizou o acesso nem à educação, nem à tecnologia? Foi um retrocesso ao mesmo índice que o Brasil tinha 20 anos antes, no início dos anos 2000. "A pandemia nos mostrou que temos uma enorme desigualdade de acesso à internet de banda larga e a equipamentos. Então causa estranhamento uma política pública sem que haja condições para que ela possa ser implementada", diz à BBC News Brasil Anna Helena Altenfelder, da organização educacional Cenpec, em referência ao projeto proposto pelo governo de São Paulo para 2024. O governo paulista quer usar apenas material didático próprio - em vez de livros do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), do Ministério da Educação - e migrar todo esse material para o ambiente digital, para alunos a partir do 6° ano. O Ministério Público estadual abriu um inquérito civil para investigar um "potencial prejuízo à continuidade do processo educacional" e "eventual desperdício de recursos públicos", já que os livros do PNLD foram adquiridos pelo governo federal - e produzir material próprio poderia implicar, em tese, em gastos adicionais ao Estado. A Secretaria de Educação paulista afirmou à Folha de S. Paulo que pretende usar material próprio para manter a "coerência pedagógica" com o currículo escolar estadual. Depois da repercussão do caso, o governador Tarcísio de Freitas afirmou que houve falhas de comunicação da decisão e agregou: "nós vamos encadernar (os livros didáticos) e entregar impresso, encadernado" para os alunos que assim quiserem. Mesmo assim, Altenfelder acha que persistem dúvidas sobre a eficácia do projeto na rede estadual paulista. "Muitas salas de aula têm 40 alunos e televisões de 32 polegadas. Como os alunos vão enxergar (a exposição do material digital)? E o grande desafio é pensar na qualidade desse material, porque eles (São Paulo) estão abrindo mão de livros didáticos do PNLD, que são produzidos a partir de um edital, cuidadosamente elaborado em um programa federal que tem mais de 30 anos e que tem qualidade." E um dos motivos é justamente a dificuldade de acesso: apesar de 91% dos países terem usados plataformas de ensino digital durante o fechamento das escolas por causa da covid-19, essas plataformas só alcançaram 25% dos alunos globais. "A atenção excessiva à tecnologia geralmente tem um alto custo. Recursos despendidos em tecnologia, em vez de em sala de aula, professores e livros didáticos para crianças em países de renda baixa a média-baixa, que não têm acesso a esses recursos, provavelmente colocarão o mundo em uma posição ainda mais distante de alcançar o objetivo mundial de educação (inclusiva, igualitária e de qualidade)", aponta o relatório da Unesco. Mesmo assim, o relatório destaca a importância da tecnologia em um mundo cada vez mais digital: "As crianças podem aprender (sem a tecnologia). No entanto, a educação delas dificilmente será tão relevante sem a tecnologia". Para Altenfelder, a chave é encontrar formas de combinar as experiências analógicas e digitais, a depender das habilidades que precisem ser ensinadas. "Sem dúvida nenhuma é papel da escola desenvolver as competências digitais de que os alunos precisam. (...) O grande problema é ser exclusivamente digital e perdermos as habilidades de leitura do impresso, que possibilitam uma reflexão maior", diz ela. Para Naomi Baron, da American University, um ponto crucial é treinar as crianças a se concentrarem, reduzirem o ritmo e de fato submergirem na leitura. Feito isso, elas serão capaz de migrar do papel ao digital (e vice-versa) com menos prejuízos. "Precisamos ensinar tanto crianças quanto adultos a baixar os olhos, acalmar a mente e a focar em uma quantidade de parágrafos que tenha coerência, (...) a voltar no texto, a reler - o que é parte de construir um aprendizado", ela diz. "Muitas pessoas me perguntam: 'será que não lemos mais palavras digitalmente do que leríamos em papel?' Eu respondo que provavelmente nós temos contato com mais palavras, mas será que estamos pausando o suficiente para entendê-las e recordar delas? Acho que estamos fazendo isso menos, porque o meio digital está sempre nos forçando a avançar, a sermos mais rápidos, a rolar a página."
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq52xyr0l92o
brasil
O que Anderson Torres disse em depoimento na CPMI de 8 de janeiro
O ex-ministro Anderson Torres prestou depoimento na terça-feira (8/8) na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga a invasão dos prédios dos Três Poderes em Brasília em 8 de janeiro. Ex-delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Torres era Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal (DF) e estava na Flórida (EUA) quando os ataques ocorreram. Após a decretação de sua prisão preventiva, ele disse lamentar "profundamente” que fossem “levantadas hipóteses absurdas de qualquer conivência minha com as barbáries que assistimos". Fim do Matérias recomendadas Embora seja investigado em um processo criminal envolvendo os atos golpistas, na CPMI de 8 de janeiro está sendo ouvido como testemunha, não como investigado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na sexta-feira (4/8), sua defesa pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que Torres tenha garantido o direito constitucional de não responder perguntas que o incriminam. Em processos criminais, normalmente não há a necessidade de fazer um pedido preventivo à Justiça para ter esse direito garantido, explica o criminalista Raul Abramo. Quem é investigado tem a obrigação de comparecer para prestar depoimento, mas pode escolher ficar em silêncio. Já testemunhas têm a obrigação de colaborar e o dever de dizer a verdade, explica o criminalista Yuri Carneiro Coelho, sob o risco de terem que responder por falso testemunho. No entanto, até mesmo as testemunhas têm o direito de não responder determinadas perguntas caso a resposta possa incriminá-las. “A proibição da Constituição de que se coerça alguém a se autoincriminar vale inclusive para testemunhas”, explica Raul Abramo. A situação de uma investigação em CPMI, no entanto, faz com que a defesa dos depoentes acabe tomando medidas preventivas, explica Carneiro, que é professor de Direito Penal da Faculdade Nobre e do MeuCurso. “A defesa faz isso por medo de que os parlamentares ultrapassem os limites e façam coisas como dar voz de prisão, por exemplo”, diz Carneiro. Para Abramo, a questão da CPMI é delicada, porque haveria também um objetivo político, não apenas de produção de provas para processos. "Como estava pegando mal publicamente o fato de que muitos investigados estavam se mantendo em silêncio, passou a haver uma pressão pública muito grande para que eles falassem”, explica Abramo. “As defesas então começaram a pedir habeas corpus preventivos para garantir o direito de seus clientes.” Embora a princípio uma pessoa investigada tenha o direito de não responder perguntas, o STF tem dado decisões que permitem que, nas CPIs, os investigados fiquem em silêncio apenas em casos em que possa haver possibilidade de autoincriminação. No pedido da defesa de Torres, consta também a demanda de que ele seja considerado investigado e não testemunha. O ministro Alexandre de Moraes atendeu parcialmente ao pedido da defesa. Torres continua sendo ouvido como testemunhas, mas tem o direito de ficar em silêncio para não se incriminar. Apesar da petição feita à Justiça, Anderson Torres está respondendo às perguntas dos senadores. A defesa do ex-ministro disse à BBC News Brasil que o principal objetivo do pedido ao STF é, na verdade, evitar que Torres desrespeite as regras determinadas pela própria Justiça para o cumprimento das medidas alternativas à prisão. “Foi pedido um salvo conduto, já que normalmente ele precisa estar em casa após às 22h e está proibido de falar com certos senadores que inevitavelmente estarão na CPMI”, diz o escritório Peres e Novacki, que faz a defesa do ex-ministro. Abramo afirma que seria muito difícil um juiz decretar descumprimento das medidas cautelares pelo comparecimento de um réu a uma CPMI (que é obrigatório). Mesmo assim, afirma, é prudente que a defesa peça autorização da Justiça para evitar que existam no futuro argumentos de descumprimento por parte da acusação. Diante dos senadores, Torres enfrenta uma série de perguntas sobre seu segundo período de atuação como Secretário de Segurança Pública (SSP) do DF. Ele já havia sido secretário entre 2019 e 2021, quando se tornou ministro da Justiça, e voltou para o cargo após o fim do governo Bolsonaro. Foi sob sua gestão que prédios dos Três Poderes foram invadidos e depredados em 8 janeiro. Torres enfrenta um processo criminal justamente sob a acusação de que a polícia do DF não teria agido para evitar as invasões. Na CPMI, embora ele seja apenas testemunha no momento, o seu depoimento é um dos mais aguardados: foi pedido em 17 requerimentos diferentes. Foram autores de pedidos para ouvi-lo desde senadores do governo — como Eliziane Gama (PSD-MA), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Rogério Carvalho (PT-SE) — a bolsonaristas como Marcos do Val (Podemos-ES) e Eduardo Girão (Novo-CE). Apesar de responder, Torres não fez até agora nenhuma grande revelação. Torres foi questionado sobre a minuta do golpe encontrada em sua casa após uma busca e apreensão da Polícia Federal. Embora o documento dificilmente sirva de prova contra Torres em um processo criminal, como explicou a advogada constitucionalista Vera Chemin à BBC em janeiro, ele é "inconstitucional e reprovável do ponto de vista da ética e da moralidade da administração pública”. O ex-ministro disse em seu depoimento que o documento é uma "aberração jurídica" e que não sabe a autoria da minuta que estava em sua casa. “Vários documentos vinham de diversas fontes para que fossem submetidos ao ministro. Em razão da sobrecarga de trabalho, eu normalmente levava a pasta de documentos para casa", afirmou. "Os documentos importantes eram despachados e retornavam ao ministério, sendo os demais descartados. Um desses documentos deixados para descarte foi o texto chamado de ‘minuta do golpe’.” Torres também disse que nunca questinou o resultado das eleições. Torres disse ainda que "não tinha nenhuma informação" sobre possibilidade de violência durante os atos marcados para 8 de janeiro e que "estava de férias com a família" nos EUA. Ele disse que só viajou após "aprovar um protocolo de segurança" para a esplanada que proibia os manifestantes de portarem objetos que pudessem ser usados para a violência. Ele afirmou que houve "falha" no cumprimento do protocolo. Segundo o governo federal, a possibilidade de violência por parte de bolsonaristas radicais em Brasília é algo que já deveria estar no radar do governador Ibaneis Rocha e de seu secretário de segurança. Isso porque haveria precedentes tanto em acampamentos bolsonaristas montados em frente a quarteis pelo Brasil quanto no próprio DF. Em 12 de dezembro, manifestantes tentaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília. Eliziane Gama afirmou que Torres também deve ser questionado sobre o episódio. Havia um plano de contenção no DF para evitar um golpe? Por que ele não foi compartilhado com o governo federal que assumia? Segundo falas recentes da senadora Eliziane Gama, outro assunto sobre o qual Torres será questionado são as operações de segurança realizadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) no Nordeste às vésperas da eleição presidencial de 2022, quando Torres era ministro da Justiça e Segurança Pública. O depoimento do ex-ministro segue ao longo da tarde e deve terminar às 20h.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3wx958zywo
brasil
Os animais silvestres eletrocutados em fiação elétrica no Rio de Janeiro
Atenção: a reportagem contém imagem que pode ser considerada sensível para alguns leitores. Os macacos-prego Marcelinho e Marcelinha perderam os braços e estão condenados a viver para sempre em cativeiro. Em comum, foram eletrocutados e por muito pouco não perderam a vida. Mas eles não são os únicos — na verdade, a realidade de animais silvestres que vivem na cidade do Rio de Janeiro é bem mais cruel. Desde julho de 2022, o Instituto Vida Livre, ONG que trabalha na reabilitação e soltura de animais em situação de risco na capital fluminense, recebeu 35 animais silvestres eletrocutados na rede elétrica da Light, empresa privada de geração, distribuição, comercialização e soluções de energia elétrica no Rio de Janeiro. Entre os animais, estão macacos-prego, preguiças e cuícas, todas espécies ameaçadas, catalogadas na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Fim do Matérias recomendadas Elas vivem na Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do Brasil e um dos dez mais do mundo e que possui uma lei própria de proteção (Lei 11.428), mas até hoje não dispõe de qualquer política de prevenção de acidentes ou para o socorro dos animais eletrocutados. Desses 35 atendimentos, segundo o Instituto Vida Livre: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os casos geraram comoção nas redes sociais e foram postados e compartilhados por diversas instituições, celebridades e formadores de opinião. Em entrevista à BBC News Brasil, o diretor do Instituto Vida Livre, Roched Seba, disse que "em todas as situações" tentou comunicar e solicitar o socorro da Light, mas "sem sucesso". A Light tem uma concessão há 118 anos no Rio de Janeiro, distribuindo energia dentro da Mata Atlântica, mas, segundo Seba, do Instituto Vida Livre, não se responsabiliza pelo socorro e tratamento de animais eletrocutados. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que zela pela prevenção do "risco de eletrocussão de animais silvestres" e mencionou medidas como "planos cíclicos de poda de árvores, o que afasta os animais da rede elétrica" (veja mais detalhes abaixo). O socorro, quando é possível, é prestado gratuitamente por instituições como o Instituto Vida Livre e órgãos públicos. "A Light também não tem um levantamento sobre as áreas de maior risco de acidentes com esses animais, com o objetivo de preveni-los. Mas o que mais me choca é que ela não se responsabiliza pelo tratamento desses animais. Todo o custo do tratamento que oferecemos sai do nosso bolso; vem de doações", diz Seba. Os casos estão sendo investigados agora pelo Ministério Público Federal, depois de serem denunciados à polícia e ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Também mobilizaram a Câmara dos Deputados, onde tramita o PL 564/2023, de autoria do deputado federal Marcelo Queiroz (PP-RJ), que institui a Política de Prevenção de Acidentes Elétricos em Animais Silvestres para responsabilizar as concessionárias pela manutenção dos fios e tratamento dos animais. Uma audiência pública para discutir a pauta está marcada para ocorrer em Brasília no dia 14 de setembro, segundo Queiroz. Questionada sobre as alegações, a Light não informou sobre se faz levantamento das áreas de risco. Disse que zela "pela preservação do meio ambiente" e pela prevenção do "risco de eletrocussão de animais silvestres". "Para isso, a companhia realiza planos cíclicos de poda de árvores, o que afasta os animais da rede elétrica. Anualmente são podadas mais de 60 mil árvores na cidade do Rio e 150 mil árvores na sua área de concessão. Também são implementados, estrategicamente, protetores e mantas para minimizar o contato direto com pontos energizados da rede", informou a empresa em comunicado enviado à BBC News Brasil. "Em pontos mais sensíveis, onde há maior incidência de animais silvestres, os condutores de média tensão possuem revestimento, ou seja, estão protegidos quanto ao contato direto com o condutor energizado e os circuitos são inspecionados anualmente a fim de levantar fragilidades e possíveis defeitos", acrescentou a Light. A Secretaria do Meio Ambiente e Clima do Rio de Janeiro informou, também via comunicado, que "esses animais utilizam a rede elétrica para se locomover, uma vez que a cidade cresceu ao redor de áreas de floresta urbana. A Patrulha Ambiental se responsabiliza pelo resgate de animais feridos nesses casos". E acrescenta recomendações para prevenção: "fechar as lixeiras, guardar as comidas dos animais domésticos ao anoitecer, principalmente nos casos de animais de hábitos noturnos". "Reforçamos a complexidade dessas situações, visto que esses animais (em muitas das vezes) descem para essas áreas urbanizadas atrás de comida. O que reforça nosso compromisso com a disseminação de Educação Ambiental para a população", acrescenta.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqq4xd9dy4ko
brasil
Cacique Raoni: 'Pedi a Lula para não repetir os erros do passado'
Uma fila se formou entre as mesas de um restaurante na área central de Belém e não era para chegar à comida. A fila seguia em direção à cadeira onde o cacique Raoni Metuktire aguardava pacientemente por um prato de peixe pedido havia quase meia hora. Um a um, em duplas, trios, os frequentadores matavam sua fome de foto. Raoni não negou um retrato. A cada pedido, ele fazia sinal de positivo com o polegar direito e sorria em silêncio. Aos 93 anos, Raoni parecia acostumado ao assédio digno de popstar. Raoni foi a Belém para participar das reuniões que antecederam a Cúpula da Amazônia, evento que começa nesta terça-feira (8/8) e que vai reunir presidentes e líderes de todos os países da região amazônica, além de outras nações convidadas. Fim do Matérias recomendadas Ao longo de sua história, Raoni já se manifestou contra madeireiros, grileiros e garimpeiros. Agora, sua atenção está voltada para o que considera ser um novo perigo dos povos indígenas: a exploração de petróleo na Amazônia. "Vou pedir para o Lula não explorar o petróleo na Amazônia", disse Raoni em entrevista exclusiva à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O pedido será feito em meio a um momento delicado para o governo Lula. O petista convocou a Cúpula da Amazônia com o objetivo de obter uma posição conjunta dos líderes da região em torno de temas como a preservação ambiental. A ideia é que esses países cheguem unidos nas negociações da 28ª Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP-28), prevista para dezembro deste ano. O tema ganhou destaque em maio deste ano, quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou uma licença ambiental para a Petrobras perfurar um poço exploratório em um bloco localizado na bacia sedimentar da Foz do Rio Amazonas, na costa do Amapá. O órgão alegou que o plano de segurança apresentado pela estatal não era suficiente para que o poço fosse liberado. Lula, até agora, não se posicionou de forma enfática sobre o assunto. Questionado sobre o assunto em maio, ele disse achar "difícil" que a exploração de petróleo na bacia da Foz do Rio Amazonas prejudique a Amazônia. "Se explorar esse petróleo [da foz do Amazonas] tiver problema para a Amazônia, certamente não será explorado, mas eu acho difícil, porque é a 530 quilômetros da Amazônia", disse o presidente. A ambiguidade da posição brasileira sobre o tema chamou ainda mais atenção depois que, em julho, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, defendeu publicamente o fim da exploração de petróleo na Amazônia. Membros do governo dizem que a área pode ser um novo "pré-sal" do Brasil e que o país não poderia abrir mão desse tipo de riqueza. Mas o argumento econômico não convence Raoni. Há expectativa de que ele se encontre com Lula nos próximos dias, durante a cúpula, e ele promete que vai falar com o presidente sobre o assunto. "Eu não vou apoiar o Lula nisso. Eu vou falar pra ele não fazer isso na Foz do Rio Amazonas. Vai estragar o peixe e o rio e isso não é bom", disse Raoni. Na entrevista, o cacique elogia o que considera como avanços na política indigenista do atual governo, e diz que os indígenas já teriam "perdoado" os governos do PT pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Comunidades indígenas afirmam que a usina afetou o regime de pesca e causou danos à vida da população local. "Você fez muita coisa ruim e isso não pode acontecer com o atual governo", disse Raoni. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Em uma carta assinada por entidades indígenas, vocês dizem que a única forma de combater as mudanças climáticas é escutar os povos indígenas. O que precisa ser escutado? Raoni Metuktire - Vou falar com os governos para manterem a floresta em pé. Eu já venho falando isso faz tempo, tanto para o governo brasileiro, quanto para fora. Até hoje, continuo falando. Se desmatar toda a mata, vai ficar muito quente. O clima vai ficar diferente e é um perigo para todos. BBC News Brasil - O senhor é respeitado no mundo todo. Países ricos prometeram bilhões de dólares para combater as mudanças climáticas, mas esse dinheiro ainda não começou a fluir. Qual o seu recado para os países ricos que prometeram dinheiro para combater as mudanças climáticas? Raoni - Hoje, os governos e as associações ambientais estão reunidas para discutir num fórum como esse. Vou falar a eles para pedirmos juntos aos países ricos para mandar dinheiro para a gente manter a floresta em pé. Vamos trabalhar apenas com projetos sustentáveis. É isso que estou querendo. Eu já tinha falado há muito tempo, venho trabalhando e venho pedindo, mas como esse evento é muito importante, vou aproveitar para pedir de novo. É bom os países ricos ajudarem os países em desenvolvimento para trabalharmos em projetos sustentáveis. Não queremos madeireiros, não queremos garimpeiros. BBC News Brasil - Nesta terça-feira, o senhor deve se encontrar com o presidente Lula. Parte dos países e da comunidade internacional não querem a exploração de petróleo na Amazônia. O que o senhor vai dizer ao presidente Lula sobre petróleo na Amazônia? Raoni - Eu não vou apoiar o Lula nisso. Eu vou falar para ele não fazer isso na Foz do Rio Amazonas. Vai estragar o peixe e o rio e isso não é bom. BBC News Brasil - Em uma frase, o que o senhor falará ao presidente Lula sobre petróleo? Raoni - Vou pedir para o Lula não explorar o petróleo na Amazônia. Se for (explorar) próximo a algum território, se ele quiser fazer isso, tem que fazer em algum outro lugar. Vou ter que falar isso para ele. BBC News Brasil - Por que o senhor é contra a extração de petróleo na Amazônia? Raoni - Se o governo quiser mexer com isso, meu medo é que quando a empresa for mexer nisso, que haja transformação no subsolo, problemas com a água. Meu medo é que se continuarem fazendo isso, eles possam causar danos ao ser humano. BBC News Brasil - O senhor entrou de mãos dadas com o presidente Lula na posse. Isso deu a impressão de que os povos indígenas apoiam o presidente. Mas o senhor é uma liderança do movimento indígena. Tem como ser líder indígena e fazer críticas ao presidente Lula? Raoni - Sim. Depois que a gente subiu a rampa, eu falei para ele: "Como já subi a rampa com você, quero te dizer pra você respeitar os indígenas, para receber as lideranças e, toda vez que for fazer alguma coisa, você tem que consultar a liderança indígena. Você tem que esquecer as coisas do passado. Você fez muita coisa ruim e isso não pode acontecer com o atual governo que você vai governar. Se você errar alguma coisa, vou chegar a você e falar". Aí ele falou para mim que, assim que ele errar alguma coisa, posso ir orientar e dar conselhos, pois ele iria me ouvir. BBC News Brasil - O senhor falou de erros do passado. Os povos do Xingu culpam os governos de Lula e da ex-presidente Dilma pela usina hidrelétrica de Belo Monte. Belo Monte foi o pior erro? Raoni - Ele (Lula) falou que isso é coisa do passado e que dessa vez ele iria apoiar os indígenas do Brasil. Foi isso que combinamos. BBC News Brasil - Mas os povos indígenas já perdoaram os governos do PT pelos danos causados por Belo Monte? O senhor perdoou Lula e Dilma por Belo Monte? Raoni - Sim, já perdoamos, mas eu falei para ele para não continuar com os erros do passado. Além de conversar com ele sobre esses trabalhos, eu fui lá na Europa pedir para as autoridades de fora para dar apoio para demarcar as terras indígenas. Isso foi falado ao presidente Lula. BBC News Brasil - O atual governo prometeu fazer a demarcação de várias terras e retirar invasores de terras indígenas. Como está a velocidade do governo para demarcar terras indígenas e retirar invasores? Raoni - Como eles prometeram durante a campanha, o governo está cumprindo sua palavra e está fazendo novas demarcações e retirando invasores. Eu estou gostando. BBC News Brasil - Há alguns meses, o congresso pressionou e retirou poderes do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério dos Povos Indígenas. Dá para confiar num governo que cedeu nesses pontos ao Congresso? Raoni - Fiquei sabendo da situação dos ministérios. Eu queria trazer o presidente Lula para minha aldeia para falar sobre isso, (para falar) para ele ser forte, mas ele ficou no hospital e por isso ele não foi. Amanhã (terça-feira), eu vou falar com ele e ele tem que ser forte e enfrentar esse grupo pelo bem do povo indígena. BBC News Brasil - Nesta segunda-feira, um indígena da etnia tembé foi atingido por um tiro, no Pará. Por que os indígenas são alvo de tanta violência na Amazônia? Raoni - Há muito tempo, o filho de um branco foi pego pelos indígenas e foi maltratado. Aí, ele conseguiu escapar e falou para os brancos que era preciso acabar com os indígenas. [Nota da redação: após traduzir a primeira parte da fala do cacique, o tradutor informa que parte da resposta de Raoni foi dada em formato de lenda] Uma vez, fui a São Paulo com os irmãos Villas-Boas e eles me mostraram uma estátua e disseram que era para derrubá-la. [Nota da redação: a reportagem perguntou ao tradutor sobre a qual estátua Raoni se referia. Ele disse que, "provavelmente", era a estátua de um bandeirante, termo usado para designar pessoas que, no período colonial, foram responsáveis pela captura de indígenas com a intenção de escravizá-los] Era a estátua de alguém que odiava os indígenas. Uma das coisas que eu vou falar amanhã é que eles aloquem recursos urgentes para serem retirados os garimpeiros e madeireiros que praticam coisas ruins contra os indígenas. Temos que proteger os territórios dos madeireiros e dos garimpeiros. Vou cobrar os presidentes amanhã. [Nota da redação: Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Boas foram sertanistas brasileiros responsáveis pelo contato com diversas etnias indígenas no século 20 e foram considerados militantes importantes na defesa dos direitos indígenas no país]. BBC News Brasil - O senhor disse que fará críticas ao governo Lula quando necessário. Como o senhor analisa a política do ex-presidente Jair Bolsonaro? Raoni - Bolsonaro não pensa muito bem. Ele critica vocês, brancos, nós indígenas, praticamente falando que precisa fazer guerra para diminuir a quantidade de pessoas. Não gostei de Bolsonaro e ele não é uma boa pessoa. BBC News Brasil - Cientistas afirmam que a Amazônia está perto do ponto de não-retorno, um ponto a partir do qual seria impossível recuperá-la e que ela pode acabar. O senhor está otimista ou pessimista? O mundo vai conseguir evitar o ponto de não-retorno? Raoni - Muitas autoridades estrangeiras estão prometendo compromissos para frear esse problema. Muitas pessoas e muitas lideranças estão pensando como eu, e acredito que vamos conseguir. Mas tem muita gente que critica nós, indígenas, as lideranças. Se essas pessoas forem mais fortes do que nós, a gente vai ter problema para todo mundo.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5n3j0004po
brasil
Como vai funcionar contratação de médicos brasileiros por Portugal com casa e salário de R$ 15 mil
Portugal quer contratar médicos brasileiros com salário equivalente a R$ 15 mil por mês, além de vale-refeição e moradia paga, para suprir a escassez de profissionais em regiões onde há maior demanda por serviços de saúde. Isso ocorre em um contexto de aumento do número de imigrantes no país e aposentadoria de médicos, o que vem colocando pressão sobre o sistema de saúde público, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), similar ao SUS brasileiro. Só de brasileiros, o número de imigrantes em situação regular no país mais do que dobrou desde 2016 — são quase 300 mil (ou 30% de todos os estrangeiros), segundo os dados oficiais mais recentes. Os detalhes sobre como vai funcionar a contratação de médicos estrangeiros ainda estão sendo acertados, uma vez que os modelos de contratação relativos ao recrutamento ainda "estão sendo desenvolvidos", informou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde português, em nota enviada à BBC News Brasil. Sabe-se, porém, que as contratações serão de "natureza transitória" — três anos — "para facilitar o acesso regular das populações a cuidados médicos", enquanto médicos de família estão sendo formados, segundo a ACSS. Fim do Matérias recomendadas "Estão sendo testadas as condições que poderão vir a ser oferecidas e que constam da súmula criada pela ACSS e que está ainda a ser trabalhada", informou o órgão no comunicado. "A remuneração oferecida tem como referência a prestação de serviços médicos em atendimento em Cuidados de Saúde Primários, para um horário semanal de 40 horas." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os médicos contratados vão trabalhar em centros de saúde nas regiões de Lisboa, Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. O salário mensal é de 2.863 euros (R$ 15 mil brutos, ou cerca de R$ 9 mil líquidos), além de vale-refeição diário de seis euros (R$ 32). A moradia também está incluída no pacote de benefícios. Os médicos contratados vão ter "um período de integração com apoio de um médico do serviço". Mas devem obedecer aos seguintes requisitos: ter "o reconhecimento de qualificações estrangeiras" em Portugal e, "preferencialmente, um mínimo de cinco anos de experiência como médico". Interessados devem enviar canditatura ao e-mail: recrutamento.medicos@acss.min-saude.pt. A revalidação do diploma, no entanto, segue sendo um dos maiores entraves a médicos estrangeiros que queiram atuar em Portugal e pode frustrar planos de brasileiros que queiram emigrar. Isso porque, para poderem exercer a profissão no país, esses profissionais precisam realizar várias provas numa das oito faculdades de medicina portuguesas, um processo considerado longo e complicado. Diante disso, o governo português aprovou no início de julho um regime excepcional para o reconhecimento automático dos diplomas. O objetivo é agilizar o recrutamento de estrangeiros para reforçar o SNS. Dirigentes sindicais ouvidos pela imprensa portuguesa criticaram a decisão do governo de contratar médicos estrangeiros. Nos últimos meses, profissionais de saúde do país vêm realizando greves cobrando melhores condições de trabalho e salários. "Vamos reivindicar moradias para os jovens especialistas na próxima reunião com os representantes do Ministério da Saúde", afirmou ao jornal Público Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). Ele destacou que os médicos portugueses não têm direito à moradia e em Lisboa, isso representa "mais 1 mil (R$ ) por mês". "Infelizmente, o governo, em vez de fazer a sua obrigação, que é atrair médicos portugueses para o SNS, pretende contratar profissionais estrangeiros que, naturalmente, serão médicos assistentes dos governantes e dos seus familiares e assessores", acrescentou. Já a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, descreveu as medidas como "uma falta de respeito pelos profissionais formados em Portugal". "É com estranheza que vemos este tipo de anúncio. Não há falta de médicos em Portugal, há falta de médicos no SNS. Temos cerca de 60 mil médicos inscritos na Ordem dos Médicos, mas só 31 mil estão no SNS. Isso só revela o desespero do Ministério da Saúde, que não consegue contratar para o SNS. Mas há soluções: o governo tem que investir nas condições de trabalho e na melhoria dos salários dos médicos que se formam em Portugal", disse ela ao Público. O ministro da Saúde de Portugal, Manuel Pizarro, afirmou que, por enquanto, não há "nenhuma decisão sobre os contingentes de médicos estrangeiros". Ele adiantou, no entanto, que o número deve girar entre "200 a 300 profissionais" e que eles serão recrutados em "vários países da América Latina". Segundo ele, Portugal "não pode" buscar médicos em países onde há falta desses profissionais. Por isso, o recrutamento, disse ele, deve ocorrer em "Cuba, Colômbia e mais alguns da América Latina". No passado, Portugal contratou médicos em países como Uruguai, Cuba, Costa Rica e Colômbia.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czkpj5mkmg0o
brasil
'Muro já': separatistas aplaudem falas de Zema sobre frente Sul-Sudeste
A criação de uma frente política em defesa do "protagonismo" de Estados do Sul e do Sudeste, recém-anunciada pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), tem sido defendida por grupos que pregam uma separação definitiva entre Sul e Norte do Brasil. Em entrevista do jornal O Estado de S. Paulo no domingo (06/08), o governador mineiro anunciou o novo Cossud (Consórcio Sul-Sudeste) e comparou o país a um produtor rural que dá "tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito". As primeiras seriam Estados do Norte e Nordeste, enquanto as últimas seriam Estados do Sul e Sudeste. As falas, que tiveram forte reação em Brasilia, também rendem debate intenso nas redes sociais. Pelo Twitter, um mapa do Brasil com as palavras "muro já" separando Estados ao Sul e ao Norte junto à frase "força Zema, apoiamos você" foi curtido e compartilhado quase 10 mil vezes. Fim do Matérias recomendadas “Já passou da hora de pensarmos na possibilidade de independência dos Estados do Sul e Sudeste. Chega de pagar a conta de Estados que não querem nada a não ser sugar até a última gota de sangue de quem trabalha e produz", reagiu o perfil de um grupo separatista paulista no Facebook, junto a um link para a entrevista do governador de Minas Gerais. A Constituição brasileira não permite a independência de Estados da Federação. Questionado pela reportagem sobre o apoio de movimentos separatistas às falas do Zema, o governo de Minas Gerais encaminhou link para um tuite em que o governador afirma que "a união do Sul e Sudeste jamais será pra diminuir outras regiões" (veja mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra versão do mapa do Brasil, excluindo totalmente estados acima de Minas Gerais, circula em grupos no Telegram com hashtags separatistas defendendo a independência do Sul do país. Nas mesmas redes, separatistas compartilham junto à fala de Zema a defesa do que chamam de "Brasil do Sul" ou "Confederação Sul-Sudeste" – uma proposta de divisão política definitiva no país. "A bandeira deles é uma das nossas há 31 anos", diz à BBC News Brasil Nãna Freitas, presidente do Movimento O Sul é o Meu País, que desde 1992 defende a separação definitiva de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná do resto do Brasil. "Mas sabemos que um passo precisa ser dado de cada vez", continua Freitas. "Não estamos aqui pra buscar uma secessão à força. Isso nunca fez parte de nossa caminhada. Agimos de maneira democrática e consultiva a população, aderindo simpatizantes da ideia. Existimos e resistimos ano após ano por trabalharmos dentro do que a Constituição Federal nos permite." Segundo o primeiro artigo da Constituição Federal, a República Federativa do Brasil é "formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal". O pacto federativo é cláusula pétrea da Constituição - ou seja, não pode ser alterado a não ser que uma nova Carta Magna seja promulgada. Ao Estadão, Zema disse que governadores do Sul e do Sudeste estão se organizando em busca de "protagonismo" político e econômico no Congresso Nacional. Segundo o governador de Minas, a criação formal do Cossud (Consórcio Sul-Sudeste) tem como objetivo defender a região do que ele define como tratamento privilegiado às demais regiões do país. "Está sendo criado um fundo para o Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Agora, e o Sul e o Sudeste não têm pobreza? Aqui todo mundo vive bem, ninguém tem desemprego, não tem comunidade... Tem, sim", disse o mineiro ao jornal. "Nós também precisamos de ações sociais. Então Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não você vai cair naquela história, do produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. Daqui a pouco as que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma." Na entrevista ao jornal paulista, Zema disse ainda que Sul e Sudeste representam "56% dos brasileiros" e "70% da economia do pais", mas agem de maneira desarticulada no Congresso. "Estados muito menores em termos de economia e população se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília." "Nós (…), que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos", afirmou. As falas geraram uma onda de críticas de autoridades em todo o espectro político. À direita, o deputado federal e ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves (PSDB) disse que "infelizmente, o governador Zema, talvez por não ter se expressado da forma adequada, acabou por criar mais problemas que as soluções que busca". "Sempre precisamos e muitas vezes contamos com alianças com outras regiões, em especial o Nordeste brasileiro. Minas nunca foi antagônica às regiões mais pobres do país, até porque fazemos parte delas, muito menos imaginou liderar esse antagonismo", continuou Neves. Ex-ministro do Turismo de Jair Bolsonaro, Gilson Machado (PL-PE) disse "repudiar veementemente qualquer fala que sequer ventile a separação de nosso País". "O Nordeste não é peso para ninguém,o Nordeste é rico", afirmou, endossado pelo ex-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação Social) de Bolsonaro, Fabio Wajngarten. "Parabéns, Gilson. O Brasil é nordestino", escreveu o bolsonarista. Até o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB-ES), que também faz parte do Cossud, se colocou. "Sobre a entrevista do Governador Zema (MG) para o jornal Estado de SP, é importante deixar claro que é sua opinião pessoal. O ES participa do Cossud para que ele seja um instrumento de colaboração para o desenvolvimento do Brasil e um canal de diálogo com as demais regiões", disse. À esquerda, o ministro da Justiça Flavio Dino classificou Zema como "traidor da Constituição é traidor da pátria". "Absurdo que a extrema-direita esteja fomentando divisões regionais", disse. Para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede-AC), a importância de um Estado não pode ser definida pelo "peso populacional". "Sem a Amazônia, não tem como ter agricultura, não tem como ter indústria, não tem como o Brasil sequer ter vida no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, porque a ciência diz que seria um deserto igual o deserto do Atacama ou do Saara", disse Silva em suas redes sociais. "Portanto, não é uma questão de quantidade em termos de peso populacional, é uma questão de trabalharmos com o princípio da justiça ambiental e do PIB dos serviços ecossistêmicos que são gerados por essa região”, continuou a ministra. Em nota assinada pelo governador da Paraíba, João Azevedo (PSB), o Consórcio Nordeste afirmou que Zema cria "um movimento de tensionamento com o Norte e o Nordeste". "Negando qualquer tipo de lampejo separatista, o Consórcio Nordeste imediatamente anuncia em seu slogan que é uma expressão de 'O Brasil que cresce unido'. Enquanto Norte e Nordeste apostam no fortalecimento do projeto de um Brasil democrático, inclusivo e, portanto, de união e reconstrução, a referida entrevista parece aprofundar a lógica de um país subalterno, dividido e desigual." Até a publicação desta reportagem, a única autoridade de peso a apoiar publicamente as falas de Zema foi o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB-RS). "Seremos todos mais fortes quanto mais formos um só Brasil. Não acredito que o governador Zema tenha dito nada diferente disso. Se disse, não me representa", escreveu em suas redes sociais. Leite disse ainda em vídeo: "A gente nunca achou até hoje que os estados do Norte e do Nordeste haviam se unido contra os demais estados do país. Pelo contrário, a união desses estados em torno da pauta que é de interesse comum deles serviu de inspiração para que a gente possa, finalmente, fazer o mesmo. Não tem nada a ver com frente de Estados contra Estados ou região contra região". Após as criticas, Zema voltou ao tema em suas redes sociais. "A união do Sul e Sudeste jamais será pra diminuir outras regiões. Não é ser contra ninguém, e sim a favor de somar esforços. Diálogo e gestão são fundamentais pro país ter mais oportunidades. A distorção dos fatos provoca divisão, mas a força do Brasil tá no trabalho em união."
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8yv1rq8vxo
brasil
O que explica alta de quase 90% na população indígena registrada pelo Censo 2022
Os indígenas no Brasil são hoje mais de 1,69 milhão de pessoas, segundo dados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados nesta segunda (7/8). Esse total representa 0,83% do total da população brasileira. Os números mostram um grande aumento em relação aos dados do último Censo, em 2010, quando a população indígena era de 896,9 mil e representava 0,47% do total da população. O crescimento de 88,8% na população indígena registrada é em parte explicado por uma mudança na metodologia do IBGE. Em 2022, o Censo encontrou mais terras indígenas do que em 2010 e passou a fazer uma pergunta a mais para as pessoas entrevistadas em certas localidades. A identificação de indígenas no Censo normalmente acontece quando alguém responde “indígena” à pergunta “qual é sua cor?”. No entanto, o IBGE notou que muitas pessoas com ascendência indígena respondiam que sua cor é “parda”. Por isso, em 2022, os recenseadores passaram a fazer a pergunta “você se considera indígena?” à lista de perguntas em locais que não são oficialmente terras indígenas, mas onde se sabe que há presença de povos originários. Isso fez com que o Censo captasse muito mais pessoas que se consideram indígenas, segundo o IBGE. Fim do Matérias recomendadas “Essa diferença acontece porque as pessoas olham muito para a cor da pele quando essa pergunta (qual é sua cor?) é feita. Mas quando você faz a pergunta a mais (se a pessoa se considera indígena), isso abre para uma série de outros critérios de etnia que a pergunta sobre cor não responde”, afirma Tiago Moreira, pesquisador do ISA (Instituto Socioambiental), uma das organizações da sociedade civil convidadas pelo IBGE a acompanhar a elaboração do Censo. Ou seja, muitas pessoas reconhecem sua ancestralidade indígena muito mais através de sua herança cultural do que através da cor da pele. “A pergunta remete à ascendência indígena, diferente da pergunta sobre a cor, que existe em um contexto mais restrito. Muitas vezes as pessoas são descendentes, até militam no movimento indígena, mas respondem pardo para a cor da pele”, afirma Moreira. Segundo Moreira, a pergunta “qual é sua cor” gera confusão e não é muito boa para captar a etnia das pessoas, mas ela é mantida por um motivo importante — a possibilidade de fazer comparação histórica precisa com censos anteriores, que já a usavam. Mudanças limitam a possibilidade de comparação de um ano com o outro — a inclusão da pergunta sobre os indígenas em 2022 também limita a comparação com 2010 devido ao aumento na detecção da população indígenas gerado pela mudança de metodologia. No entanto, o acréscimo da pergunta, sozinho, não explica a magnitude do aumento da população indígena, segundo os especialistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para entender detalhadamente esse aumento, diz Moreira, são necessários os dados sobre natalidade e mortalidade indígena — que ainda não foram divulgados pelo IBGE. No entanto, ao menos parte desse aumento pode ser atribuído a um grande movimento de recuperação da identidade indígena, que tem se fortalecido nos últimos anos. “A gente tem um movimento antigo de recuperação dessa identidade, dos descendentes dos povos originários voltarem a se reconhecer, a prestar atenção nessa identidade, nessa ancestralidade”, diz Moreira. “O movimento indígena cresceu muito, tem inovado nas estratégias de mobilização. Nenhum outro movimento social no Brasil é tão capilar, consegue ter uma mobilização tão grande na base social.” O pesquisador afirma que o movimento conseguiu manter sua força apesar das dificuldades enfrentadas por essa população nos quatro anos de governo Bolsonaro, abertamente contrário à pauta dos povos originários. “Apesar dos quatro anos de ataque aos direitos, a atuação do movimento indígena teve o efeito de produzir segurança para que a população recupere essa identidade”, diz Moreira. Outros elementos que podem explicar esse aumento só ficarão claros com os dados de natalidade e mortalidade, explica o especialista. “A população indígena é o grupo social que mais cresce, que tem fecundidade alta. E isso está refletido nesse dado (de aumento da população)”, diz ele. No entanto, dentro das terras indígenas, essa população parece estar crescendo menos do que crescia antes — algo que precisa ser confirmado pelos próximos dados divulgados pelo IBGE. Isso, segundo Moreira, pode ser resultado dos efeitos devastadores da covid dentro das terras indígenas. Segundo estudos epidemiológicos feitos pela Fiocruz, os indígenas foram um dos grupos mais vulneráveis durante a pandemia. “Com a divulgação dos dados completos do Censo é que vamos entender melhor os efeitos demográficos da covid tanto na população indígena quanto na população geral”, afirma Tiago Moreira. Ainda não há um calendário fechado para a divulgação dos próximos dados do Censo 2022, que começaram a ser divulgados no final de julho. O Censo foi feito com atraso por causa da pandemia e de cortes orçamentários. A última edição da pesquisa censitária do IBGE havia sido feita em 2010 e, pela lei, ela não poderia demorar mais de 10 anos para ser feita — ou seja, deveria ter ocorrido em 2020. Mas a nova edição só foi realizada entre 1º de agosto de 2022 e 28 de maio de 2023 (fase de coleta e apuração de dados). Os dados do Censo 2022 divulgados nesta segunda trouxeram outras informações importantes sobre a população indígena. A terra indígena com maior número de pessoas indígenas hoje é a Terra Indígena Yanomami (AM/RR), com 27 mil pessoas, o equivalente a 4,36% do total de indígenas em terras indígenas no país. O segundo maior número é na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), com 26.176 habitantes indígenas. No entanto, o Censo mostrou que a maior parte dos indígenas do Brasil — cerca de 63% — vive hoje fora dos territórios indígenas oficialmente limitados. Isso mostra que o atendimento específico aos indígenas não pode ficar restrito aos territórios delimitados, segundo Moreira. "São dados muito importantes para planejamento de políticas públicas, para se ampliar o atendimento especial que leve em consideração as línguas, os valores e as necessidades de cada povo", diz o pesquisador. Outro dado que chama atenção é que, embora cinco estados (AM, BA, MS, PE, RR) concentrem 61,43% da população indígenas (veja gráfico acima), o IBGE registrou presença indígena na maioria dos municípios do Brasil — em 4.480 dos 5.568 municípios do país. O município com maior número de pessoas indígenas em 2022 foi Manaus (AM), com 71,7 mil pessoas. Já a maior proporção ficou em cidades como Uiramutã (RR), onde 96,6% dos habitantes são indígenas; Santa Isabel do Rio Negro (AM), com 96,2%, e São Gabriel da Cachoeira, com 93,17%.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pw10g6w4xo
brasil
Como meio ambiente virou aposta de Lula para aumentar influência global do Brasil
A Cúpula da Amazônia convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começa na terça-feira (8/08) e vai reunir presidentes de países da região amazônica e líderes da África, Indonésia e Europa. O encontro, porém, parece estar longe de ser apenas um evento na agenda presidencial. Divergências e contradições à parte, quando Lula começar a receber os chefes de Estado em Belém, capital do Pará, o presidente não estará apenas participando de uma reunião meramente protocolar, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Para eles, Lula estará executando mais uma etapa dentro de uma estratégia definida: fazer da pauta ambiental uma das principais apostas diplomáticas do presidente em seu terceiro mandato. O objetivo, segundo especialistas e diplomatas, é fazer com que o Brasil atue como uma espécie de representante informal dos países ricos em florestas tropicais do mundo em fóruns internacionais e, assim, ampliar sua influência global. Fim do Matérias recomendadas A Cúpula da Amazônia vai reunir presidentes de pelo menos seis presidentes da região Amazônica e políticos da República Democrática do Congo, da República do Congo, Indonésia, Alemanha, Noruega, França e São Vicente e Granadinas. O foco da reunião deverá ser obter uma posição coordenada desses países em fóruns e negociações internacionais relacionadas à questão ambiental. Cientistas alertam que, para impedir os efeitos mais drásticos das mudanças climáticas, é fundamental parar ou diminuir o desmatamento das florestas tropicais como a Amazônica. As florestas são consideradas importantes para a manutenção do clima no planeta e, ao serem desmatadas, liberam toneladas de CO2 na atmosfera, agravando ainda mais o processo de mudança climática. As primeiras indicações de que Lula apostaria alto na pauta ambiental como parte da sua diplomacia presidencial, no entanto, começaram antes mesmo de ele assumir o comando do país pela terceira vez. "Estou hoje aqui para dizer que o Brasil está pronto para se juntar novamente aos esforços para a construção de um planeta mais saudável [...] Por esse motivo, quero aproveitar esta Conferência para anunciar que o combate à mudança climática terá o mais alto perfil na estrutura do meu governo", disse Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dias depois, em dezembro, Lula fez mais um movimento: confirmou Marina Silva (Rede Sustentabilidade) como ministra do Meio Ambiente de seu governo, reeditando uma parceria que existiu durante os dois primeiros mandatos de Lula. As apostas continuaram em janeiro deste ano, já como presidente empossado. Lula lançou a candidatura de Belém como sede da COP30, que será realizada em 2025. A ONU, organizadora da conferência, ainda não anunciou se aceitou o pedido feito pelo Brasil. "É importante que os chefes de Estado e as pessoas que de fato valorizam o meio ambiente venham para falar da Amazônia conhecendo a Amazônia”, disse Lula em um discurso em junho, durante a Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, organizada pelo governo francês, em Paris. Além desses movimentos, Lula incorporou o tema ambiental em seus discursos durante a maior parte de suas agendas internacionais. Em diversas oportunidades, ele defendeu que países ricos devem repassar recursos para países em desenvolvimento como forma de financiar iniciativas para impedir o desmatamento e lidar com as consequências das mudanças climáticas. "Iremos fazer a COP30 em um estado da Amazônia, para que todos vocês tenham a oportunidade de conhecerem de perto o ecossistema da Amazônia [...] e responsabilizar os países ricos para financiar os países em desenvolvimento que têm reservas florestais — porque não foi o povo africano que poluiu o mundo; não é o povo latino-americano que poluiu o mundo", disse Lula em outro evento em Paris, em junho deste ano. Ao mesmo tempo em que se movimentava em torno do assunto, parte da comunidade internacional passou a prometer mais recursos. Alemanha e Noruega, principais doadores do Fundo Amazônia, anunciaram que fariam novos aportes. Em abril, foi a vez dos Estados Unidos prometerem uma doação de US$ 500 milhões ao fundo, o equivalente a aproximadamente R$ 2,5 bilhões. União Europeia e Reino Unido também se comprometeram a fazer doações para o combate ao desmatamento da Amazônia que totalizam em torno de mais R$ 607 milhões. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a aposta de Lula na pauta ambiental como forma de alavancar a influência do país no mundo e se tornar um porta-voz de países ricos em florestas tropicais é resultado tanto de uma espécie de "cálculo" quanto de oportunidade. "Existe uma posição natural guardada para o Brasil neste cenário, pois temos 65% da Amazônia. A novidade deste novo governo Lula é que houve um entendimento de que a pauta ambiental é aquela na qual o Brasil consegue falar mais alto", afirmou o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, Márcio Astrini. "Apesar de o governo ter interesses em várias agendas, como a intenção de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e, mais recentemente, uma tentativa de interlocução na guerra da Ucrânia, o presidente Lula sabe que a questão do meio ambiente e clima é a pauta que realmente o alavanca no cenário internacional", complementou Astrini. Historicamente, Lula defende uma expansão no número de assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Hoje os assentos permanentes são ocupados pelos Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China. O petista defende que mais países possam fazer parte do grupo, inclusive o Brasil. A proposta, no entanto, encontra resistência e nunca foi adotada. Lula também defende a criação de uma espécie de "clube da paz" formado por países não envolvidos no conflito para mediar conversas sobre o fim da guerra. A proposta não foi bem recebida por países como os Estados Unidos, principal fornecedor de armas aos ucranianos. A diretora-executiva da Plataforma Cipó, Maiara Folly, avalia que a aposta de Lula na pauta ambiental é resultado de uma espécie de "vocação" do Brasil nesta área. "A liderança brasileira nessa área é natural porque o Brasil é o país mais biodiverso do mundo. Isso só não nos dá o cacife necessário para liderar. A nova política externa está fazendo um grande esforço para colocar o país como líder nessa área", afirmou. A diretora do Departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Maria Angélica Ikeda, afirmou que a cúpula desta semana é um exemplo de como o Brasil pretende atuar na área ambiental. "Só o fato de o presidente (Lula) ter convocado a Cúpula da Amazônia antes mesmo de ter tomado posse demonstra a importância que ele atribui à conservação e uso da biodiversidade. Isso tudo mostra que o Brasil está interessado em se engajar com os demais países nos fóruns que tratam desses assuntos. A cúpula é a melhor mostra disso", afirmou a diplomata à BBC News Brasil. Maiara Folly diz que uma das estratégias do novo mandato de Lula para colocar o país como líder nessa área é a tentativa de "unificar" as posições de países ricos em biodiversidade não apenas da América do Sul, mas da África e da Ásia. Isso explicaria, segundo Folly, o convite feito pelo Brasil à República Democrática do Congo, República do Congo e Indonésia à cúpula em Belém. "Há um reconhecimento de que esse é um problema não só da região Amazônica, mas global", disse Folly. Sem se colocar oficialmente como "porta-voz" dos países ricos em florestas tropicais, Lula disse esperar que a cúpula em Belém consiga unificar posições de conjunto de países. "Esse encontro é importante porque vai balizar a discussão que será levada à COP-28, no final do ano, nos Emirados Árabes (Unidos)”, disse Lula em uma entrevista na semana passada. "O que queremos é dizer ao mundo o que vamos fazer com as nossas florestas e o que o mundo tem que fazer para nos ajudar, porque prometeram US$ 100 bilhões em 2009 e até hoje não saiu", criticou o presidente, referindo-se ao compromisso assumido (e até agora não cumprido) por países desenvolvidos de financiar mecanismos para diminuir o desmatamento e mitigar efeitos das mudanças climáticas em países em desenvolvimento. Para Márcio Astrini, um dos principais lastros da aposta que Lula faz na pauta ambiental internacionalmente pode ser, ao mesmo tempo, o seu limite: os resultados do Brasil no combate ao desmatamento na Amazônia e outros biomas como o Cerrado. "O principal fator se chama resultado. Não adianta o presidente fazer discurso sobre preservação do meio ambiente e o desmatamento no Brasil aumentar ou o Congresso Nacional aprovar leis que são claramente contra a preservação ambiental", disse. Pelo menos em relação à Amazônia, o governo tem comemorado uma redução nas taxas de desmatamento. Em julho, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou uma redução de 34% nos alertas de desmatamento na Amazônia no primeiro semestre deste ano na comparação com o primeiro semestre de 2022. O governo divulgou que houve uma queda de 7,4% nos alertas de desmatamento na Amazônia no período que vai de agosto de 2022 a julho de 2023. A área de floresta derrubada no período que engloba o último semestre do governo Bolsonaro e o primeiro de Lula foi de 7,9 mil quilômetros quadrados, a menor desde o intervalo entre 2018 e 2019. No Cerrado, porém, houve aumento de 16,5% nos alertas de desmatamento do bioma entre agosto de 2022 e julho de 2023. Astrini diz que os resultados domésticos do Brasil e a possibilidade de unificar os países ricos em biodiversidade poderão aumentar o cacife do país nas negociações internacionais pelos recursos que os países ricos prometeram às nações em desenvolvimento. "Uma coisa é você cobrar dinheiro sem dizer o que vai fazer com ele. Outra coisa é cobrar e dizer que sabe o que fazer e como vai usá-lo", afirmou o secretário-executivo do Observatório do Clima. Maiara Folly aponta outra possível limitação da estratégia brasileira: a manutenção da aposta do Brasil em combustíveis fósseis. Essa fonte de energia é vista como uma das principais responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa que causam as mudanças climáticas. A Petrobras, estatal controlada pelo governo, tem planos para explorar uma nova fronteira exploratória de petróleo na área conhecida como Margem Equatorial, que vai do litoral do Amapá à costa do Rio Grande do Norte. A área é classificada por membros do governo como o "novo pré-sal". Em maio, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou um pedido de licenciamento ambiental feito pela empresa para perfurar um poço na costa do Amapá, na bacia sedimentar da Foz do Rio Amazonas. O órgão alegou falhas no projeto enviado e falta de garantias de segurança em caso de vazamento de óleo. A Petrobras defende que o projeto era adequado e recorreu da decisão. A exploração de novas fontes de petróleo pelos países da região ganhou destaque em janeiro, quando o governo da Colômbia anunciou que não daria mais autorizações para exploração de novas frentes de petróleo. Em julho, durante uma reunião na cidade colombiana de Letícia, Petro discursou, ao lado de Lula, e indagou se os países da região iriam continuar explorando petróleo na Amazônia. O Brasil não sinaliza disposição de impedir a exploração de combustíveis fósseis na região. "Vamos permitir a exploração de petróleo na Amazônia? Vamos entregar blocos para exploração? Isso é gerar riqueza?", indagou Petro ao lado de Lula, que não respondeu. Na Cúpula da Amazônia, há a expectativa de que o assunto volte a ser debatido pelos presidentes e ministros envolvidos. Mayara Folly diz não acreditar que haverá consenso sobre o tema em Belém. "Não chegaremos a um consenso em Belém, mas temos que começar a dar passos nessa direção porque o planeta exige que a gente faça isso", afirmou.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1wv2nx729po
brasil
Como 'sopa ostentação' de barbatana de tubarão impulsiona pesca ilegal no Brasil
Entre os anos 960 a 1279, o território que hoje se conhece como China foi comandado pela Dinastia Song. O período é conhecido por especialistas como um dos mais importantes da China imperial, com profusão nas artes e organização das forças militares. Mas um dos legados atribuídos à Dinastia Song, que chegou ao fim há mais de 700 anos, parece estar afetando o Brasil atualmente. Foi durante essa dinastia, segundo estudiosos, que a sopa de barbatana de tubarão se popularizou como um prato que simboliza riqueza, prestígio e sofisticação. E o apreço por essa iguaria ainda hoje colocou o Brasil na rota do comércio internacional de barbatanas de tubarão. Em junho, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fez uma apreensão de 28,7 mil toneladas de barbatanas de tubarão. Segundo o órgão, esta foi a maior apreensão do tipo já registrada no mundo. Fim do Matérias recomendadas O Ibama disse, em nota, que as barbatanas seriam exportadas, ilegalmente, para a Ásia. A estimativa do Ibama é de que, para produzir essa quantidade de barbatanas, foi preciso matar pelo menos 10 mil tubarões. Desse total, 4,4 mil seriam tubarões-azuis e 5,6 mil da espécie anequim, também conhecido como mako. Este último entrou na lista nacional de animais ameaçados de extinção em abril deste ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A apreensão acendeu de vez o alerta sobre uma questão que vem intrigando pesquisadores, órgãos de fiscalização e ambientalistas: afinal, qual é papel do Brasil na cadeia que faz com que barbatanas de tubarão obtidas no país vão parar nas cobiçadas sopas do mercado chinês? Um levantamento feito pela BBC News Brasil com base em dados do ComexStat, sistema do governo brasileiro sobre exportação e importação, aponta que entre 2003 e 2020, o Brasil exportou 1.228 toneladas de barbatanas de tubarão. Desse total, 82% foi para Hong Kong (uma região especial administrativa da China) e 11% para a China continental. A quantidade exportada legalmente pelo Brasil é pequena se comparada ao total de barbatanas de tubarão que chegou aos três principais mercados asiáticos (Hong Kong, Taiwan e Singapura) no mesmo período, de acordo com um estudo do Fundo Internacional pelo Bem-Estar Animal (IFAW na sigla em inglês) divulgado em 2022. Segundo o documento, entre 2003 e 2020, esses três mercados importaram 188 mil toneladas de barbatana de tubarão. A Espanha é o principal fornecedor do produto, apontou o estudo, com 51 mil toneladas exportadas. Apesar disso, a apreensão de barbatanas de tubarão no Brasil realizada em junho deste ano chamou atenção, segundo especialistas, por dois motivos principais. O primeiro foi o seu volume. As 28,7 toneladas são quase o dobro do que o Brasil exportou oficialmente em 2022, quando o país enviou 17 toneladas, 16,5 das quais (96%) para Hong Kong. O segundo motivo são os indícios levantados pelo Ibama de que empresários da pesca brasileira estariam contrariando a legislação e focando sua atuação em espécies cuja pesca em escala industrial é proibida. Inicialmente destinada aos imperadores chineses, a sopa de barbatana virou, ao longo de séculos, símbolo de riqueza, status social e prestígio na cultura do país e de outros países asiáticos, como Singapura e Taiwan. Quando preparada, a barbatana se desmancha na água, deixando suas fibras moles, como se fosse uma espécie de macarrão fino. Estudiosos dizem que a sopa, que tem valor nutricional baixo, continuou a ser vista como um símbolo de opulência na China até o início da Revolução Comunista no país, em 1949. A partir de então, o apreço pela iguaria passou a ser publicamente mal-visto em uma sociedade que vivia uma crise política, econômica e onde a maioria da população vivia na pobreza. Com o rápido crescimento da economia chinesa nas décadas seguintes, a sopa voltou a ser apreciada de forma aberta e desejada pelas classes média e alta do país. Conforme o apetite chinês pela sopa foi crescendo, a reação da comunidade internacional ao comércio de barbatanas também aumentou. A pressão foi tanta que, em 2012, o governo chinês anunciou que não serviria mais esse tipo de sopa nos banquetes oficiais. A presidente da Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil, explica que o valor da sopa se dá pelo status social que esse prato confere na cultura chinesa. A Sea Shepherd é uma organização não-governamental que combate crimes ambientais nos oceanos. "As populações da China e de outros países asiáticos começaram a querer ter esse status que, antes, era disponível para poucas pessoas. E com isso, começamos a ver o consumo dessa sopa se espalhar", disse. Nathalie Gil diz que o preço do quilo da barbatana de tubarão no mercado internacional pode chegar a US$ 15 mil (cerca de R$ 70 mil). Atualmente, é comum encontrar a sopa em restaurantes refinados das principais cidades chinesas com preços que podem chegar a US$ 100 dólares, o equivalente a aproximadamente R$ 475. Também é comum que a sopa seja servida em recepções como casamentos, festas de aniversário e durante as celebrações do Ano Novo chinês. Dados da Fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que, por ano, o comércio global de barbatanas de tubarão movimente entre US$ 400 milhões e US$ 500 milhões. Esse mercado é alvo de críticas internacionais por conta da pressão que exerce sobre os estoques pesqueiros de tubarão ao redor do mundo. Um estudo publicado pela revista científica Nature em 2021 apontou que, desde 1970, as populações de tubarões e raias caíram 71% em todo o mundo em função de um aumento de 18 vezes na pressão pesqueira sobre essas espécies. Em geral, há duas formas de obter as barbatanas de tubarão. A primeira é por meio da pesca convencional do tubarão. O animal é capturado e abatido, sua carne é processada, e as barbatanas e nadadeiras são destinadas a mercados como o asiático. A segunda é chamada de finning, que consiste em capturar o tubarão, cortar suas barbatanas e nadadeiras e jogar o resto do corpo do animal no mar. O termo finning é derivado da palavra fin, que em inglês significa barbatana. Essa prática é condenada internacionalmente e proibida em diversos países, inclusive no Brasil. "Infelizmente, o animal é jogado moribundo no mar, agonizando e morre lentamente", diz Gil. Apesar de o finning ser proibido no Brasil, a pesca de tubarões é permitida no país, mas sob uma série de restrições. Atualmente, apenas animais capturados como produto de pesca incidental podem ser vendidos no país. Isso acontece quando um barco autorizado a pescar atum, por exemplo, acaba capturando um tubarão. Se esse animal não for uma espécie ameaçada de extinção, ele pode ser levado ao porto, processado e comercializado normalmente. Se estiver ameaçado, tem de ser solto ou descartado (se estiver morto) e registrado junto às autoridades responsáveis. Agentes do Ibama, no entanto, afirmam que empresas de pesca industrial estariam burlando o sistema de controle e que isso teria sido um dos principais motivos para a apreensão de barbatanas realizada em junho deste ano. A operação se concentrou em Itajaí, no litoral de Santa Catarina, e em Guarulhos, em São Paulo, onde uma carga de quase uma tonelada foi encontrada prestes a ser embarcada para o exterior. "A gente encontrou uma grande quantidade de irregularidades cometidas em toda cadeia", diz o agente do Ibama Leandro Aranha, um dos responsáveis pela operação, "que vão desde o direcionamento de pesca do tubarão, sendo que ele só poderia ser capturado de forma incidental e inevitável, ao não uso de medidas mitigadoras para evitar que aves marinhas fossem afetadas pela pesca." Aranha explica que o direcionamento da pesca ocorre quando, em vez de capturar a espécie-alvo da sua licença, o pescador busca capturar outro tipo de animal. Um relatório do Ibama sobre a operação mostra como os barcos autuados pelo órgão teriam tentado burlar a fiscalização. Os agentes compararam os dados de satélite do sistema do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), que monitora os barcos autorizados a pescar, com as informações dos diários de bordo das embarcações. De acordo com o relatório, os dados de satélite não correspondiam aos registros dos mapas de bordo, o que indica uma possível fraude, segundo eles. Ainda de acordo com o documento, uma das evidências de que a pesca de tubarão foi direcionada é que os barcos envolvidos na operação registraram ter capturado muito mais tubarões do que as espécies para as quais eles tinham licença de pescar. "A análise destes documentos permite verificar que havia um claro direcionamento da pesca para tubarões [...] pelos responsáveis pelas embarcações fiscalizadas, enquanto estes traziam pouquíssimas quantidades justamente das espécies alvo licenciadas pelo Poder Público", diz um trecho do relatório. Procurada pela BBC News Brasil, a Kowalsky Pescados, indústria pesqueira de Santa Catarina que armazenava a maior parte da carga apreendida pelo Ibama, negou a prática de qualquer irregularidade e disse que o material retido foi resultado de "270 compras efetuadas desde 2021". A empresa acrescentou que o material foi entregue por diversas embarcações diferentes, inclusive pertencentes à própria empresa, e rebateu as alegações do Ibama de que os barcos que lhe forneceram barbatanas teriam praticado pesca direcionada. "A empresa não direciona a pesca para tubarões e, sim, aproveita um importante recurso pesqueiro com alto valor no mercado, tanto nacional, como de exportação, otimizando suas operações", disse a Kowalsky em nota à BBC News Brasil. De acordo com a empresa, não seria possível apontar que houve direcionamento da pesca porque todo o planejamento se dá em função das áreas de ocorrência de atuns, conforme consta na autorização dada à atividade. A empresa disse ainda que não há como evitar as áreas de ocorrência de tubarão. "As áreas de ocorrência de atuns e afins e tubarões são as mesmas, não há como 'escolher' uma área onde haja só tubarões. As licenças para a pesca de atuns e afins preveem a captura da fauna acompanhante", afirmou. À BBC News Brasil, o Ibama disse, por meio de nota, que as multas foram "devidamente fundamentadas". "A análise do mérito, bem como o contraditório apresentado pelo autuado deve ser procedido no processo administrativo do Auto de Infração. Afirma-se, no entanto, que os Autos de Infração foram lavrados após longo período de análise, envolvendo equipe multisetorial e que foram devidamente fundamentados por robustos elementos de prova", disse o órgão. Gil, da Sea Shepherd Brasil, diz que a apreensão de barbatanas feita pelo Ibama mostra como os tubarões estão vulneráveis no país. "O Brasil tem um papel em dois lados desse comércio. De um lado, ele recebe carcaças da pesca de tubarão capturadas pelo mundo todo porque o Brasil é o maior consumidor desse tipo de carne no mundo. Do outro lado, a gente faz a pesca no Brasil e exporta as nadadeiras, ganhando dinheiro com as nadadeiras e redistribuindo as carcaças para o brasileiro consumir", explica. De acordo com Gil, 40% dos tubarões estudados já estão em extinção. Para o professor e doutor em Biologia Fernando Fernandes Mendonça, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pesca indiscriminada de tubarões representa um risco não apenas aos tubarões, mas à toda a fauna marinha. "O risco de extinção para o grupo de elasmobrânquios (do qual os tubarões fazem parte) é ainda mais latente porque muitas espécies de tubarões têm uma taxa de reprodução lenta e baixas taxas de crescimento populacional, tornando-as especialmente vulneráveis à exploração pesqueira intensa", diz o professor. "Um efeito cascata drástico (da redução das populações de tubarão) é bastante provável, considerando que os tubarões ocupam posições importantes no topo da cadeia alimentar marinha. Eles regulam o equilíbrio populacional de suas presas e influenciam indiretamente toda a estrutura do ecossistema marinho", explicou. O agente Leandro Aranha, do Ibama, aponta outra preocupação: o tamanho do comércio "invisível" de barbatanas de tubarão, que, segundo ele, se desenvolve de duas formas. A primeira é na compra informal de barbatanas feita por barcos estrangeiros ao longo de toda a costa do Brasil. Pescadores profissionais ou artesanais brasileiros, cientes do valor das barbatanas, capturam os animais e revendem esse material mesmo sem ter autorização. A segunda seria burlar o sistema de informação que regula as exportações no Brasil. Os produtos exportados ou importados pelo Brasil são classificados de acordo com uma espécie de código conhecido como NCM (nomenclatura comum do Mercosul). Barbatanas de tubarão têm um código específico. Aranha conta que há indícios de que um volume ainda desconhecido desse produto foi exportado sem ter sido declarado corretamente às autoridades. "Nessa apreensão que fizemos em Guarulhos, verificamos que 1,1 tonelada de barbatana estava saindo do Brasil exportada como peixe congelado", diz o fiscal. Fernando Mendonça, da Unifesp, diz ser "muito provável" que uma quantidade muito grande de barbatanas esteja saindo do país pode meio do mercado ilegal, sem estar devidamente registrada pelas autoridades. "Esta apreensão maciça chama a atenção para a possibilidade de outros casos semelhantes e levanta questões sobre a eficácia das inspeções em impedir que grandes quantidades de barbatanas sejam exportadas", diz o professor. Nathalie Gil, da Sea Shepherd Brasil, defende que uma forma de reduzir a pressão sobre as populações de tubarão na costa brasileira é a proibição, pelo governo, da comercialização das barbatanas. "A partir do momento em que se proíbe a exportação de barbatanas, isso gera um desinteresse no Brasil pela matança de tubarão por conta desse produto", diz a especialista. Procurado pela BBC News Brasil, o Ibama disse que estuda medidas sobre a tema. "Diversas medidas são necessárias para uma melhor gestão da conservação de tubarões e raias. Atualmente, as principais normas vigentes tratam da proibição ao finning e à pesca direcionada à captura de tubarões. O Ibama vem estudando e discutindo com o Departamento de Gestão Compartilhada da Atividade Pesqueira do MMA (Ministério do Meio Ambiente) propostas com esse fim", disse o órgão por meio de nota. O órgão disse ainda que "vem reforçando a fiscalização da atividade pesqueira, incluindo ações voltadas à proteção de tubarões".
2023-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51ddveyvvmo
brasil
Como exploração de petróleo na Amazônia divide países às vésperas de cúpula convocada por Lula
A Cúpula da Amazônia que será realizada em Belém na semana que vem (a partir do dia 8) deverá ser marcada não apenas pelas prováveis convergências sobre a necessidade de preservação da Amazônia, mas por divergências e uma contradição: o que fazer com as enormes reservas de petróleo já descobertas nos países da região? De um lado, há um grupo formado por países como Venezuela e Brasil, que têm significativas reservas de petróleo e que não dão demonstrações de que pretendem deixar de explorar os recursos no curto e no médio prazo. A esse "clube" se somam dois recém-chegados, Suriname e Guiana. Nesses países foram descobertas reservas de bilhões de barris de petróleo nos últimos oito anos e que geraram expectativa sobre um futuro ancorado nos petrodólares. Do outro lado está a voz dissonante da Colômbia que anunciou o fim da liberação de novas licenças para explorar petróleo no início deste ano como uma forma de mover sua economia na direção da chamada transição energética - a passagem de uma matriz energética focada na queima de combustíveis fósseis para uma baseada em fontes renováveis. Especialistas consultados pela BBC News Brasil avaliam que a cúpula poderá ser marcada por uma visível contradição: ao mesmo tempo em que países da região como o Brasil se colocam como protagonistas na luta contra a mudança climática, eles mantêm projetos que preveem a abertura de novos poços de petróleo, inclusive em áreas sensíveis como a região amazônica. Fim do Matérias recomendadas A Cúpula da Amazônia vai reunir em Belém líderes dos oito países que compõem a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (Otca), fundada em 1978: Brasil, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela, Guiana e Suriname. O evento foi convocado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Dos oito países da Otca, todos os presidentes confirmaram presença, exceto Guillermo Lasso, do Equador, e Chan Santokhi, do Suriname. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além deles, também foram convidados líderes de outros países ricos em florestas tropicais como a Indonésia, República do Congo, República Democrática do Congo, França (que tem a Guiana Francesa) e países que tradicionalmente doam recursos para a preservação da Amazônia como a Alemanha e Noruega. O evento é visto internamente como parte dos esforços do Brasil de se cacifar como uma espécie de líder informal da região e dos países ricos em florestas tropicais em fóruns e negociações internacionais como a Assembleia Geral da ONU e a Conferência das ONU para o Clima (COP28), que será realizada nos Emirados Árabes Unidos. Segundo o governo brasileiro, as autoridades emiráticas confirmaram a ida do presidente da COP28, Sultan Ahmed al-Jaber, à Cúpula da Amazônia. Em julho, Lula disse em entrevista que o foco da cúpula seria unificar a região em torno do destino das florestas tropicais que eles compartilham. "O que queremos é dizer ao mundo o que vamos fazer com as nossas florestas e o que o mundo tem que fazer para nos ajudar, porque prometeram US$ 100 bilhões de dólares em 2009 e até hoje não saiu”, disse Lula em relação à promessa de países desenvolvidos para financiar o combate ao desmatamento. Em um evento sobre o clima em Paris, em junho deste ano, Lula prometeu que o Brasil atingiria a meta de desmatamento zero até 2030. Em conversa com jornalistas da qual a BBC News Brasil participou nesta semana, diplomatas brasileiros afirmaram que há a possibilidade de que, ao fim da cúpula, os países divulguem um comunicado se comprometendo com uma meta comum para redução do desmatamento na Amazônia. O esforço é considerado importante pela comunidade científica para limitar os efeitos das mudanças climáticas. Outros pontos de convergência seriam a criação de mecanismos para combater o crime organizado na região e fomentar a produção de conhecimento científico sobre a Amazônia. Apesar disso, especialistas apontam para o que dizem ser a principal contradição da cúpula: o futuro da exploração de petróleo pelos países da região. Esse paradoxo existe, segundo eles, porque, apesar da necessidade inequívoca de preservar as florestas, há consenso na comunidade científica internacional de que a forma mais urgente para diminuir a velocidade do aquecimento global é reduzir as emissões geradas pela queima de combustíveis fósseis. O aquecimento global é causado a partir da emissão de gases do efeito estufa gerada por atividades humanas como o desmatamento e a queima de combustíveis fósseis, entre eles o petróleo. Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) indicam que 74% das emissões de gases do efeito estufa foram geradas pelo setor de energia em 2021, ano da estatística mais recente. Ainda de acordo com a agência, pouco mais da metade disso foi gerada por combustíveis como petróleo e gás natural. Diante desse peso, cientistas defendem a redução drástica na exploração desse tipo de combustível. O último relatório do Painel Internacional para Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês) disse que se o mundo quiser limitar o aumento da temperatura do planeta a 2ºC ou menos, será necessário deixar de queimar "enormes quantidades" de combustíveis fósseis, o que geraria impacto significativo nesse tipo de indústria. Na outra ponta, a agricultura e as mudanças no uso do solo (desmatamento) respondem por apenas 14,9% das emissões globais de gases do efeito estufa. "No desastre climático que nós observamos, não deveria haver exploração de petróleo em nenhum lugar do mundo", disse à BBC News Brasil o climatologista Carlos Nobre, um dos autores do quarto relatório do IPCC, de 2007, que foi premiado com o Nobel da Paz. Segundo ele, a mensagem dos relatórios do IPCC sobre a necessidade de reduzir as emissões por queima de combustíveis fósseis deve ser ouvida por todos os países. "Essa é uma mensagem para todo o planeta. Vale não só para os países desenvolvidos, mas para os da América do Sul, também", afirmou. Para especialistas, o foco dado por países como o Brasil na necessidade de preservar a Floresta Amazônica se justifica, em parte, na medida em que a principal fonte de emissões de gases do efeito estufa do Brasil vêm do desmatamento. Dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), mantido pela organização não-governamental Observatório do Clima, mostram que, em 2021, 49% das emissões brasileiras vieram do desmatamento, enquanto 17% foram oriundas do setor de energia. A manutenção das florestas tropicais, além disso, é considerada primordial para o equilíbrio do clima do planeta porque elas funcionam como estoques de carbono. Ao mesmo tempo em que absorvem carbono ao crescer, as árvores podem emitir todo esse carbono se queimadas ou desmatadas, contribuindo para o aquecimento global. No entanto, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil alertam que, do ponto de vista global, não faria sentido apenas preservar a Amazônia, de um lado, e continuar explorando novas fontes de combustíveis fósseis do outro. "Isso seria pior do que enxugar gelo. É como ligar o aquecedor dentro da geladeira", disse Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas da organização não-governamental WWF Brasil. No Brasil, por exemplo, o governo brasileiro, que controla a Petrobras, mantém seus planos de explorar novas fontes de petróleo na área conhecida como Margem Equatorial, que compreende a região que vai da costa do Amapá ao litoral do Rio Grande do Norte. A região vem sendo chamada de "novo pré-sal" por integrantes do governo Lula como o ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira. Segundo o ministro, o Brasil não poderia abrir mão dessa fonte de recursos. Em maio deste ano, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) rejeitou um pedido de licença ambiental para a perfuração de um poço de pesquisa para checar a existência ou não de petróleo em uma área localizada na bacia sedimentar da Foz do Rio Amazonas. O Ibama alegou que o plano de segurança para eventuais vazamentos apresentado pela Petrobras não era suficiente para mitigar os riscos da atividade no local. A estatal recorreu da decisão. Mas a posição do Brasil de explorar novas fronteiras exploratórias de petróleo não acontece de forma isolada. Guiana e Suriname, que também participarão da Cúpula, vivem a expectativa de um verdadeiro boom gerado pela exploração de petróleo. A Guiana, por exemplo, historicamente registrou alguns dos piores índices socioeconômicos da América do Sul. A partir de 2015, no entanto, petroleiras privadas descobriram reservas estimadas em 11 bilhões de barris de petróleo na costa do país. A descoberta atraiu empresas do mundo todo e gerou a esperança de melhoria de vida em um dos países mais pobres do hemisfério sul. Dados do Banco Mundial agora estimam que as rendas do petróleo deverão gerar um crescimento acima de dois dígitos na economia guianense. Um cenário parecido é esperado no vizinho Suriname, também um dos mais pobres da América do Sul e onde também foram encontradas novas reservas de petróleo. Isso sem falar na Venezuela. Segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opec), o país é dono das maiores reservas conhecidas de petróleo no mundo, com 303 bilhões de barris. Em meio a uma grave crise econômica e política, o país continua apostando suas fichas na economia petroleira para contornar a situação. Na contramão desses países, a Colômbia, comandada pelo presidente Gustavo Petro, surpreendeu a comunidade internacional no início deste ano ao anunciar que deixaria de liberar novas licenças para exploração de petróleo no país. Em julho, durante uma reunião preparatória para a Cúpula da Amazônia, na cidade colombiana de Letícia, Petro chegou a indagar aos participantes do encontro, entre eles Lula, o que os países da região fariam com as reservas de petróleo na Amazônia. "Vamos permitir a exploração de petróleo na Amazônia? Vamos entregar blocos para exploração? Isso é gerar riqueza?", indagou Petro ao lado de Lula, que não respondeu. A Colômbia formalizou, durante o encontro, a proposta de que os países da região parassem novos projetos de exploração de petróleo na Amazônia. A expectativa é de que Petro volte a tocar no assunto durante a reunião entre os chefes de estado presentes à cúpula, o que pode gerar constrangimento entre os presentes, uma vez que o assunto parece longe de um consenso. Nesta semana, a diretora do departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Internacionais, Maria Angélica Ikeda, disse que o tema do petróleo é um dos que está ainda sendo discutido pelos países antes da divulgação do comunicado conjunto, o que deverá ocorrer após a cúpula. "A gente ainda está na negociação. Não tratamos só da questão do petróleo [...] o que posso dizer é que isso está sendo discutido", disse a diplomata. É nesse contexto de apetite renovado por novas fontes de combustíveis fósseis na região que especialistas em meio ambiente alertam em direção à Cúpula da Amazônia. "Falar em proteção da Amazônia e transição energética ao mesmo tempo em que segue com planos de expansão para a exploração petróleo, inclusive, no bioma amazônico, é uma clara contradição", afirmou diretor para a América Latina da organização não-governamental 350.org, Ilan Zugman à BBC News Brasil. A ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, também aponta nessa direção. Ela reforça que a realidade de emissões do Brasil é diferente da média global e, especialmente, dos países desenvolvidos, onde setores como energia e indústria são preponderantes. Por isso, segundo ela, faz sentido que o foco do Brasil esteja no combate ao desmatamento. Ela pontua, no entanto, que não é possível ignorar os impactos da exploração de novas fontes de petróleo. "Essa exploração importa porque não adianta a gente vender esse petróleo para outros países e dizer que ele vai ser queimado em outro local. Ele vai ser queimado e os gases serão emitidos de toda forma e isso vai nos afetar como um todo", disse Suely à BBC News Brasil. A BBC News Brasil enviou perguntas às assessorias de imprensa do Palácio do Planalto, do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do Ministério de Minas e Energia (MME). O Palácio do Planalto não respondeu. O MRE enviou uma nota em que diz que o Brasil vem "cumprindo seus compromissos voluntários de redução de emissões por meio de sua Contribuição Nacional Determinada (NDC) sob o Acordo de Paris da UNFCCC", sigla para Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. A nota defende o foco do Brasil no combate ao desmatamento da Amazônia. "Ao contrário das demais grandes economias, o desmatamento responde pela maior parte das emissões brasileiras, tendo sido o principal responsável pelo aumento de emissões registrado em 2021. Ao comprometer-se com a redução do desmatamento, o governo brasileiro busca reduzir significativamente sua principal fonte de emissões de gases de efeito estufa, contribuindo, portanto, com o esforço global de combate à mudança do clima", disse outro trecho da nota. O MME enviou uma nota defendendo a busca por novas "fronteiras exploratórias". "O MME entende ser necessário o desenvolvimento de novas fronteiras exploratórias, de forma sustentável. A medida é importante para a manutenção das reservas, da segurança energética, da produção de petróleo e gás natural e a economia nacional, uma vez que petróleo é e continuará a ser uma das principais forças motrizes das economias globais por um período considerável", disse um trecho da nota.
2023-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmr4r1pkvxo
brasil
O que são os fundos dos 'super-ricos' que governo Lula quer taxar
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que pretende enviar ao Congresso, ainda neste mês de agosto, um projeto para taxar fundos exclusivos. Também conhecidos como "fundos dos super-ricos", eles exigem investimento mínimo de R$ 10 milhões e têm um custo de manutenção anual que pode chegar a R$ 150 mil, segundo assessores de investimento consultados pela BBC News Brasil. Com a medida, o governo espera gerar cerca de R$ 10 bilhões em receitas, parte de um esforço de aumento da arrecadação, na tentativa de zerar um déficit (diferença entre receitas e despesas) estimado em mais de R$ 100 bilhões nas contas públicas em 2024. A proposta, junto a duas outras já anunciadas – a taxação de investimentos nos exterior através de offshores e o fim do JCP (Juros Sobre Capital Próprio, uma modalidade de distribuição de lucros que permite às empresas pagarem menos impostos) –, antecipam pontos da segunda etapa da reforma tributária, que deve mexer com os impostos sobre renda e patrimônio. "Estamos falando de 2,4 mil fundos que envolvem patrimônio de R$ 800 bilhões", disse Haddad, durante entrevista no fim de julho, sobre a taxação dos fundos exclusivos. Fim do Matérias recomendadas "É uma legislação anacrônica, que não faz sentido nenhum. Não é tomar nada de ninguém, é cobrar rendimento deste fundo, como qualquer trabalhador paga imposto de renda." Os números citados por Haddad podem, no entanto, estar superestimados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Levantamento feito pela empresa de serviços financeiros TradeMap, a pedido da BBC News Brasil, chega a um total de 1,6 mil fundos exclusivos com um único cotista no Brasil, com patrimônio de R$ 245 bilhões. A própria TradeMap havia divulgado em meados de julho um levantamento em que contava 2,5 mil fundos exclusivos, com patrimônio de R$ 756 bilhões – valores próximos aos citados por Haddad e que tiveram ampla repercussão na imprensa. Mas o autor do levantamento, Einar Rivero, avaliou posteriormente que os números estavam inflados, por incluírem fundos exclusivos geridos por fundos previdenciários. Esses veículos de investimento, apesar de terem um só cotista, atendem planos de aposentadoria de milhares de pessoas – estariam, portanto, fora do objetivo do governo de taxar os "super-ricos". Para Rivero, o universo menor de fundos pode dificultar o objetivo do governo de arrecadar os R$ 10 bilhões esperados. Mas outros economistas avaliam que o objetivo é factível, embora o efeito para a arrecadação possa ser pontual e não recorrente. (Veja mais detalhes abaixo) "Os fundos abertos são como um clube em que todo mundo pode participar, basta comprar cotas desse clube e participar dos rendimentos que ele vai proporcionar", diz Michael Viriato, assessor na Casa do Investidor. "Já o fundo exclusivo é como se fosse um clube fechado, que pertence a uma única pessoa ou grupo familiar", exemplifica o especialista em investimentos. Desenhados sob medida, dependendo do perfil de risco e dos objetivos de rendimento do investidor, esses fundos são muito usados por famílias ricas em processos sucessórios. Para um milionário transmitir uma herança, por exemplo, basta doar cotas do fundo para os herdeiros ainda em vida, evitando os custos e burocracias do processo de inventário. No fundo exclusivo, há algumas restrições quanto ao número de aportes e resgates que o investidor pode fazer e quanto à periodicidade dessas retiradas. Mas a grande vantagem desse tipo de fundo – antes da mudança agora proposta por Haddad – era a isenção do chamado "come-cotas", uma antecipação do Imposto de Renda cobrada semestralmente (normalmente em maio e novembro de cada ano) sobre os rendimentos, a uma alíquota de 15% para investimentos de curto prazo e 20% para os de longo prazo. Sem a incidência do come-cotas, o investidor pode obter até 30% a 40% de retornos a mais do que teria em fundos com a cobrança do imposto, estima Viriato. Isso porque o valor que seria descontado na forma de tributo segue rendendo no fundo, ampliando os ganhos. Por exemplo, se uma pessoa investir R$ 10 milhões, com um rendimento de 12% ao ano, ela teria R$ 182 milhões após 30 anos num fundo com a cobrança de come-cotas, ou R$ 256 milhões num fundo isento, calcula o assessor financeiro. Nos fundos exclusivos, o Imposto de Renda é cobrado apenas no momento do resgate e de forma regressiva, o que significa que, quanto maior o tempo de aplicação, menor a tributação. A ideia do governo é igualar os fundos exclusivos aos demais fundos de investimentos. Com isso, os fundos dos "super-ricos" passarão a ter a cobrança periódica do come-cotas. Havia uma dúvida no mercado financeiro se a cobrança de impostos se dará também sobre os estoques – rendimentos passados, acumulados desde a criação desses fundos. Uma fonte do governo disse à BBC News Brasil que provavelmente o modelo adotado será semelhante ao da Medida Provisória 1171/23, que tratou da tributação de investimentos no exterior ("offshore"). Por esse modelo, os contribuintes teriam a opção de antecipar o pagamento do imposto sobre o estoque, a uma alíquota reduzida. Quem não quiser, fica na sistemática antiga, pagando o imposto quando e se resgatar o investimento. Essa não é a primeira vez que o governo federal cogita tributar os fundos exclusivos. Em 2017, o ex-presidente Michel Temer chegou a editar uma medida provisória instituindo a cobrança a cada deis meses do IR sobre os fundos dos super ricos. Mas a MP sofreu resistência do Congresso e acabou perdendo a validade. A proposta também foi incluída pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, no projeto de reforma tributária enviado ao Congresso em 2021, mas não avançou. Num exercício matemático simples, Einar Rivero, da TradeMap, avalia que o governo pode ter dificuldade de chegar aos R$ 10 bilhões de arrecadação pretendidos apenas com a incidência do come-cotas. Considerando os quase R$ 250 bilhões de patrimônio nos fundos exclusivos que não pertencem a fundos de previdência, se esses fundos tiverem um rendimento de 10% ao ano (o que não é certo), daria cerca de R$ 25 bilhões de rendimentos. Levando em conta a alíquota de 20% da incidência do come-cotas sobre rendimentos de longo prazo, isso daria uma arrecadação anual de cerca de R$ 5 bilhões, calcula. Mas Rivero destaca que isso é apenas um exercício, já que ainda não se sabe como será efetivamente o modelo de tributação que será apresentado pelo governo, nem qual o universo de fundos que serão objetivamente afetados pela mudança. Michael Viriato, da Casa do Investidor, observa que a mudança na tributação pode levar muitos investidores a buscarem escapar do imposto, transformando seus fundos exclusivos em fundos previdenciários ou fundos de ação, que são isentos de come-cotas. Isso reduziria a base de arrecadação do governo com a tributação dos fundos dos "super-ricos" à frente. Já Yihao Lin, economista na gestora de recursos Genial Investimentos, acredita que os R$ 10 bilhões de arrecadação são factíveis, considerando a possibilidade de tributação dos estoques. "Víamos com ceticismo estimativas mais altas – o governo chegou a falar em uma arrecadação potencial de R$ 17 bilhões com a instituição desse tributo sobre os fundos exclusivos –, mas a estimativa de R$ 10 bilhões é próxima do que foi previsto pelo governo Temer", lembra Lin. Ele observa, porém, que esse efeito da tributação sobre os estoques seria pontual, com a arrecadação proveniente da incidência semestral do come-cotas sendo pouco significativa. Assim, a tributação dos fundos dos super ricos pode ajudar a reduzir o déficit em 2024 – estimado pela Genial em 1,2% do PIB (Produto Interno Bruto) ou R$ 120 bilhões –, mas o problema do equilíbrio fiscal nos anos seguintes permanece. "Nos próximos anos, o governo vai ter que correr atrás de receitas para conseguir sanar os déficits, e a taxação dos fundos exclusivos é parte desse trabalho de formiguinha", diz Lin. Ele observa, porém, que um equilíbrio fiscal sustentável dependerá de o governo conseguir fontes de arrecadação permanentes – o que é difícil, pois dependeria de maior crescimento ou de um aumento da carga tributária num país onde os impostos já são bastante elevados. Ou então seria necessário reduzir o volume de gastos, o que não parece estar nos planos do governo petista, eleito com a promessa de retomada de políticas públicas em diversas frentes. Se discordam quanto ao potencial de arrecadação da mudança na tributação dos fundos dos "super-ricos", os especialistas consultados concordam quanto à justiça da medida. "Essa medida deveria ter sido aprovada há anos, não faz o menor sentido essa brecha que foi criada", diz Viriato, da Casa dos Investidores. "Não é que eu seja a favor de tributar os mais ricos, é que foram criados dois veículos de investimentos similares [o fundo exclusivo e o fundo aberto] com impostos diferentes, não faz sentido algum", afirma o assessor de investimentos. "De fato existem distorções, então realmente é uma medida que visa tornar mais igualitária a tributação da renda, mas acredito que essa medida e outras que estão sendo pensadas pelo governo [na tributação de renda], como o fim do JCP, vão enfrentar resistência significativa no Congresso", diz Lin, da Genial Investimentos. O auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha "Tributar os Super-Ricos", acredita que será preciso vencer essa resistência para tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo – isto é, com ricos pagando mais impostos e pobres pagando menos. Ele defende que, além das medidas já anunciadas pelo governo de mudanças na tributação da renda, são necessários outros avanços, como o aumento da faixa de isenção do IR para rendas de até R$ 5 mil (uma promessa de campanha de Lula), a taxação de lucros e dividendos e a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), conforme previsto na Constituição. "Sem ampliar a tributação dos mais ricos, fica muito difícil para o Estado conseguir reduzir os tributos sobre os mais pobres", diz o auditor fiscal. "É preciso enfrentar a iniquidade do sistema tributário para conseguirmos resolver nossos problemas sociais históricos, enfrentar a desigualdade e promover o desenvolvimento econômico."
2023-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14zvnpwnr0o
brasil
Celso Sabino: o que levou Lula a dar ministério a ex-aliado de Bolsonaro
O deputado federal Celso Sabino (União-PA) tomou posse no fim da manhã desta quinta-feira (3/8) como o novo ministro do Turismo. Ele assume oficialmente a função com a promessa de mais apoio ao governo no Congresso Nacional. A nomeação de Sabino já havia sido publicada no Diário Oficial em 14 de julho e ele já ocupava a função de ministro há mais de duas semanas. Ex-aliado de Bolsonaro, Sabino é o nome indicado por seu partido para substituir a atual ministra, a deputada federal Daniela Carneiro (União-RJ), que deseja trocar a sigla pelo Republicanos, que não integra a base de Lula. O objetivo da troca é aumentar o apoio do União Brasil ao governo, principalmente na Câmara dos Deputados, onde a bancada tem dado apoio inconstante em votações de interesse do governo. O União Brasil é um dos maiores partidos do Congresso, com 61 deputados e 9 senadores. Fim do Matérias recomendadas Políticos ligados ao União Brasil controlam três ministérios, mas Carneiro era vista como uma escolha pessoal de Lula. As outras duas indicações são atribuídas ao senador Davi Alcolumbre (União-AP), que não tem influência relevante sobre deputados do partido. Uma delas é a do deputado federal Juscelino Filho (União-MA), que comanda o Ministério das Comunicações. A outra, no Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, é Waldez Góes, ex-governador do Amapá que está licenciado do PDT — ou seja, não integra o União Brasil. A expectativa é que a substituição de Carneiro por Sabino melhore o apoio entre os deputados porque a indicação do deputado tem apoio de dois nomes de peso na Câmara: o líder do partido na Casa, Elmar Nascimento (União-BA), e o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O próprio Nascimento chegou a ser cotado para ministro quando Lula estava montando sua equipe após ser eleito, mas seu nome foi barrado pelo PT da Bahia, pesando contra ele justamente seu passado bolsonarista. A BBC News Brasil está em busca de um posicionamento de Daniela Carneiro — que, geralmente ativa nas redes sociais, ainda não publicou nada sobre a mudança. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma, a esperada nomeação de Sabino segue “uma lógica de sobrevivência do governo, do ponto de vista pragmático”. Na sua visão, o fato de a proximidade com Bolsonaro não parecer mais razão de veto para comandar um ministério mostra que o “espaço de manobra” do governo encolheu. (Veja abaixo o histórico de Sabino) “Caso a indicação se confirme, isso mostra que talvez o espaço de manobra do governo para dizer não (a indicações partidárias) nesse momento, nessa conjuntura, é menor do que era no início de janeiro”, analisa. O apetite do União Brasil por cargos não se limita ao comando do ministério do Turismo. Nesta semana, Elmar Nascimento disse a jornalistas que a sigla deseja “o ministério completo, com todas as posições, porque é um ministério pequeno”. Estaria no foco, portanto, também a chefia da Embratur, empresa pública de fomento ao turismo que hoje é presidida por Marcelo Freixo (PT-RJ). Deputada federal mais votada do Rio de Janeiro na última eleição, Carneiro ganhou o ministério após ela e seu marido, o prefeito de Belford Roxo, Wagner Carneiro, conhecido como Waguinho, terem apoiado Lula no segundo turno da eleição de 2022 contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Waguinho trocou o União Brasil pelo Republicanos em abril, e a expectativa é que Carneiro siga pelo mesmo caminho. O apoio dos dois a Lula foi considerado importante, porque veio de lideranças políticas conservadoras, de uma região com forte eleitorado evangélico, grupo em que Lula teve dificuldades na disputa eleitoral. No entanto, como Carneiro solicitou autorização da Justiça Eleitoral para trocar o União Brasil pelo Republicanos, que não integra a base de Lula, o presidente resolveu atender a nova indicação do partido. “Seria um erro muito grande tirar a mulher mais votada do Rio, evangélica, para botar um deputado bolsonarista, o Celso Sabino, que foi contra o Lula”, Waguinho chegou a dizer ao jornal O Globo. Já Sabino foi líder da maioria na Câmara durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), quando o presidente construiu uma ampla base em parceria com Arthur Lira, por meio da liberação de verbas federais para parlamentares investirem em suas bases por meio das chamadas emendas de relator. Essas emendas ficaram conhecidas como Orçamento Secreto, devido à falta de transparência na destinação e aplicação dos recursos, e declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo informações do jornal O Globo, Sabino esteve entre os 30 parlamentares federais que mais indicaram recursos do Orçamento Secreto em 2022, com R$ 54,1 milhões — R$ 9 milhões a mais que o indicado por Daniela Carneiro. Apesar da proximidade com o governo anterior, Sabino disse no ano passado ao jornal O Estado de S.Paulo não ser bolsonarista, mas “a favor do Brasil”. Na ocasião, ele estava no PSDB e sofreu uma tentativa de expulsão do partido, após assumir a liderança da maioria na Câmara. “Não tenho nenhum cargo ou pleito no governo federal. A (liderança) da maioria não significa alinhamento com o governo”, disse Sabino ao Estadão. No PSDB, o futuro ministro do Turismo era aliado próximo do deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e foi autor do relatório que rejeitou a expulsão do antigo presidenciável da legenda, após denúncias de corrupção pela Operação Lava Jato. No seu passado tucano, o deputado também criticou em 2016 a decisão da então presidente Dilma Rousseff de nomear Lula como ministro da Casa Civil, quando estava perto de ser afastada por um processo de impeachment. O petista acabou não assumindo o cargo, após decisão do ministro do STF Gilmar Mendes, que considerou a nomeação uma tentativa de conceder foro privilegiado ao atual presidente. “A chefa do Executivo nacional aceitou a manobra do seu partido para garantir o foro privilegiado ao homem que poderia ser preso por crimes como lavagem de dinheiro para não citar outros. Assim caminha a atual conjuntura política brasileira”, disse Sabino no Facebook, em post que foi apagado após reportagem do jornal O Estado de S.Paulo. Mais que um bolsonarista, Sabino é um “político de conveniência”, avalia o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “Ele foi um aliado importante (de Bolsonaro), mas é um agente político de conveniência. Então, acompanha qualquer governo que lhe dê acesso (a cargos e verbas), que lhe faça concessões”, ressalta. “Ele é vinculado ao Centrão (grupo de partidos mais fisiológicos), atua sob a liderança do Elmar Nascimento e do Lira, e vai cumprir as tarefas desse grupo, assim como cumpriu lá atrás sendo líder da maioria no governo Bolsonaro.” O apoio do União Brasil em pautas do Palácio do Planalto tem oscilado. A bancada não deu um voto sequer a favor do governo, por exemplo, quando a Câmara derrubou trechos de um decreto de Lula com regra para o setor de saneamento. Já na votação do marco fiscal, que estabelece novas regras para o gasto público, a bancada do partido deu a maioria dos seus votos (50) para a aprovação. O líder do governo na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT-CE), afirmou que a expectativa é de que a troca de Daniela Carneiro por Celso Sabino possa, finalmente, fazer com que o União Brasil dê um apoio mais consistente ao governo. "Meu papel é arrumar os votos. Por isso, a reconstrução das bancadas precisa acontecer, e ela pode garantir isso", disse Guimarães à BBC News Brasil. O parlamentar também elogiou o ministro e tentou minimizar o histórico de proximidade entre Sabino e Bolsonaro. "O momento é outro. Não vamos ficar olhando para trás pelo retrovisor", afirmou. "É uma pessoa com quem me dou muito bem. É um moço de bom trato, comprometido com a política. Se Lula o indicar, estamos aqui para colaborar." Para Queiroz, do Diap, a proximidade de Sabino com Elmar Nascimento e Arthur Lira deve garantir mais votos do partido ao governo. "Acho que o governo só dá (o ministério a Sabino) se tiver um compromisso dos dois caciques nesse processo. Eles têm controle pleno da bancada”, avalia. O presidente nacional do União Brasil, deputado federal Luciano Bivar (PE), porém, se esquivou de garantir votos para o governo ao ser questionado se a ida de Celso Sabino ao Ministério do Turismo resolveria a falta de apoio dentro da legenda. "Isso não é um assunto discutido pela presidência do partido. Isso é um assunto que cabe à Presidência da República", disse à BBC News Brasil. Segundo Bivar, as origens do seu partido explicam a dificuldade da legenda em entregar a quantidade de votos desejada pelo governo. "Nosso partido nasceu da fusão do extinto Democratas e do extinto PL. Somos essencialmente liberais. Se há alguma discordância com relação à postura do governo, isso é normal", disse ainda. Entre parlamentares petistas, há expectativa de que a troca no ministério garanta cerca de 40 votos ao governo na Câmara. Os demais são vistos como caso perdido para o Planalto devido à forte oposição que fazem ao PT, caso dos deputados Kim Kataguiri (SP), Rosangela Moro (SP) e Mendonça Filho (PE).
2023-08-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n4q8q2q29o
brasil
'Deep tech': o que é tecnologia profunda e por que Brasil está em 2º em ranking latino
Tudo começou como uma pequena startup na Costa Rica dedicada a inovar na área de implantes mamários. Mas hoje a Establishment Labs é uma empresa listada na Bolsa de Valores de Nova York Nasdaq com uma avaliação de mercado de US$ 1,8 bilhão. Usando inteligência artificial, a chilena NotCo está substituindo alimentos de origem animal por alternativas à base de plantas, enquanto a empresa argentina Bioceres se dedica a revolucionar a forma como os alimentos são cultivados. Na área de tecnologia espacial, a empresa argentina Satellogic cria constelações de satélites de alta resolução e baixo custo para observar a Terra. O que essas empresas têm em comum? Elas fizeram descobertas científicas ou criaram inovações tecnológicas consideradas verdadeiramente disruptivas. Ao contrário de outras empresas que desenvolvem aplicativos para smartphones ou inovações para um produto ou modelo de negócios, essas startups fazem inovação tecnológica pura, conhecida como deep tech ou tecnologia profunda. Fim do Matérias recomendadas “Estamos vendo uma explosão de inovação de Big Tech na América Latina”, diz Ignacio Peña, autor do estudo Deep Tech: a nova onda, do BID Lab. “É algo inédito em sua magnitude”, disse o pesquisador à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "A tecnologia permite que você faça coisas que não eram possíveis antes, como diagnosticar câncer com uma gota de sangue." A biotecnologia responde por mais de 60% da inovação de tecnologia profunda na região, seguida pela inteligência artificial, com 11%. Existem outros setores emergentes com menos desenvolvimento, como nanotecnologia, tecnologias limpas, tecnologia espacial, mobilidade avançada ou robótica. Algo interessante que aconteceu nos últimos anos, explica Peña, é que os custos de algumas dessas inovações caíram, abrindo caminho para que elas se disseminem. A maioria das startups de deep tech na região está na Argentina, Brasil e Chile, países que representam 80% do total latino americano. Por valor de mercado, a liderança é ocupada pelos mesmos três países mais a Costa Rica. A Argentina tem o maior número de startups de deep tech na região (103 startups, 30% do total, principalmente em estágios iniciais de desenvolvimento). Foi o berço da Auth0, empresa de cibersegurança vendida em 2021 por US$ 6,5 bilhões , que alcançou o maior valor da história entre as startups de deep tech da região. No país sul-americano, duas em cada três empresas se dedicam à biotecnologia, enquanto a empresa Satellogic lidera o emergente setor de tecnologia espacial. Uma das políticas que tem impactado positivamente no desenvolvimento da tecnologia profunda no país está relacionada à Lei do Empreendedorismo de 2017 e ao grande número de fundos de capital de risco que têm investido em empresas nascentes. Com 101 startups emergentes, o Brasil ocupa o segundo lugar na região em desenvolvimento de deep tech, quase no mesmo nível da Argentina. Embora o número não seja tão surpreendente em relação ao tamanho do país, as startups brasileiras têm alcançado um alto valor de mercado. De fato, 37 empresas valem mais de US$ 10 milhões e o setor de biotecnologia representa mais da metade das empresas. O Brasil tem grande potencial de crescimento, tendo em vista que concentra quase 80% dos pesquisadores da região, mais da metade das patentes e 40% do total de investimentos de capital de risco da América Latina. As startups chilenas que desenvolvem tecnologia profunda acumulam o maior valor de mercado de toda a região, apesar de sua economia ser menor que a do Brasil e da Argentina. Juntas, as chilenas estão avaliadas em cerca de US$ 2 bilhões, um quarto do valor total dessas empresas em toda a região. O Chile tem 3,4 startups por milhão de habitantes, sinal de que o setor conquistou uma boa posição em nível regional. A NotCo, empresa que utiliza tecnologia artificial para desenvolver seus alimentos, é a mais bem-sucedida do país no setor de Deep Tech. Embora mais da metade das empresas estejam no setor de biotecnologia, a inteligência artificial lidera a tecnologia avançada do país em termos de valor, principalmente devido ao rápido crescimento da NotCo. Já a Costa Rica aparece no mapa da deep tech devido ao sucesso da startup mais valiosa da região: a Establishment Labs, que concentra 97% do valor de mercado do setor naquele país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Duas das maiores economias da região, México e Colômbia, estão atrasadas no desenvolvimento de startups de deep tech, com uma das menores concentrações desse tipo de empresa na América Latina. É surpreendente que o México, com um grande setor de manufatura e capital de risco, mal tenha 0,2 startups de tecnologia profunda por milhão de habitantes. Assim como o México, a Colômbia também tem apenas 0,2 startups por milhão de habitantes, com apenas nove empresas dedicadas à tecnologia profunda. Na América Latina, as estimativas indicam que a biotecnologia continuará liderando o setor de deep tech devido ao vínculo direto da região com a agricultura e a produção de alimentos, sua biodiversidade e um número significativo de profissionais dedicados a esse campo. E embora ainda haja um longo caminho a percorrer, "há uma grande oportunidade de crescimento", diz Marcelo Cabrol, chefe de Escalabilidade, Conhecimento e Impacto do BID Lab. "Isso não é ficção científica. A tecnologia profunda vai melhorar a vida da maioria da população.”
2023-08-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy9q1l7w90jo
brasil
Juros em queda: quando efeito chega no crédito para o consumidor?
O Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central reduziu nesta quarta-feira (2/8) a Selic, taxa básica de juros da economia brasileira, em 0,50 ponto percentual (p.p.), de 13,75% ao ano, para 13,25%. O corte é o primeiro desde agosto de 2020 e ocorre após meses de trocas de farpas entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o nível dos juros no Brasil e seus efeitos sobre a atividade econômica do país. A redução neste início de agosto veio acima da expectativa da maioria dos agentes do mercado financeiro, que era de um corte de 0,25 p.p. Mas nas últimas semanas cresceu a aposta na baixa de 0,50 p.p., após sinais de perda de fôlego da economia e de a inflação ter perdido força ao longo dos últimos meses, de mais de 12% no acumulado de 12 meses até abril de 2022, para 3,16% em junho deste ano, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A taxa básica de juros é o principal instrumento usado pelo Banco Central para controlar a inflação, ao influenciar o nível de todas as demais taxas praticadas no mercado. Fim do Matérias recomendadas Quando os juros sobem, fica mais caro para famílias e empresas emprestarem dinheiro para consumir e investir. Quando os juros caem, como agora, é esperado efeito contrário. A expectativa dos analistas é de que a Selic seja reduzida gradualmente ao longo dos próximos meses, chegando a 12% ao fim deste ano, 9,25% em dezembro de 2024 e 8,75% em 2025 e 8,5% em 2026, segundo expectativas colhidas pelo boletim Focus do Banco Central. Mas como esse queda dos juros deve afetar as principais modalidades de crédito usadas pelos consumidores brasileiros, como cartão de crédito, cheque especial e empréstimos pessoais? O financiamento habitacional pode ficar mais barato? E por que, mesmo após dois anos de quedas esperados à frente, a Selic não deve ir muito abaixo dos 10%, mantendo o nível de juros do país elevado? Ouvimos cinco especialistas e trazemos todas essas informações. A Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade) calcula o efeito do corte de 0,50 p.p. na Selic sobre as principais modalidades de crédito usadas pelos brasileiros: compras parceladas no varejo, cartão de crédito, cheque especial, CDC (Crédito Direto ao Consumidor) para compra de veículos e empréstimo pessoal em bancos e financeiras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O impacto imediato é muito pequeno", resume Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor executivo de Estudos e Pesquisas Econômicas da Anefac. Segundo Oliveira, isso ocorre porque existe uma diferença de magnitude muito grande entre a Selic e as taxas de juros cobradas aos consumidores. Quando a Selic estava em 13,75% ao ano, a taxa média de juros nas operações de crédito mais comuns estava em 126,2% ao ano em julho, segundo a Anefac. Agora, com a Selic indo a 13,25%, a expectativa é de que essa taxa média recue para 125,2%, uma variação quase insignificante, observa o especialista. O economista explica que as taxas de juros praticadas no mercado são compostas por cinco grupos de custos: "O simples fato de que o Banco Central baixou a Selic não significa que as taxas de juros vão cair imediatamente", observa Oliveira, diante dos diversos itens que compõem os juros de mercado. O risco de crédito é um dos fatores que deve segurar a queda dos juros de mercado neste momento, considera o diretor da Anefac. No crédito corporativo, ele cita as entradas em recuperação judicial de grandes empresas como Americanas, Grupo Petrópolis e Oi (que recorreu à proteção contra credores pela segunda vez em sete anos) como fatores que impactaram o balanço dos bancos e aumentaram o volume de provisões para inadimplência – o que se reflete nas taxas de juros e na oferta de crédito. Além disso, o elevado endividamento e inadimplência das famílias também mantém a percepção de risco elevada para pessoas físicas, embora esses indicadores devam melhorar nos próximos meses, com os efeitos do programa Desenrola, de negociações de dívida. Rachel de Sá, chefe de economia da gestora de recursos Rico Investimentos, lembra ainda que, no Brasil, estudos mostram que os efeitos de variações da Selic levam entre três e seis meses para serem sentidos no mercado de crédito. "É até relativamente rápido, comparado a outros países, mas tem uma demora", diz Sá. "Não é porque o juro caiu agora que amanhã você vai pedir um financiamento imobiliário e ele vai estar mais barato, é um processo que leva alguns meses, assim como a elevação do juros também demorou para ser sentida", acrescenta. Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV (Fundação Getulio Vargas), observa que as taxas que devem responder mais à queda de juros são as com garantias mais fortes, como o crédito imobiliário e para compra de veículos. Mas ela também acredita que esse efeito não é imediato e que deverá ser mais perceptível para os consumidores quando a Selic voltar ao patamar de um dígito (isto é, abaixo dos 10%) e com o passar dos meses, se mantida a trajetória de queda gradual da taxa básica de juros. "Se viermos num ritmo de reduções sucessivas da taxa, isso começa a sinalizar para o mercado e para os bancos que o ambiente [de negócios] está mais estável, que a trajetória de queda veio para ficar, o que possibilita pensar em empréstimos de prazos mais longos, a níveis [de juros] menores." Para quem está pensando em comprar a casa própria, o custo do financiamento é uma questão fundamental. Isso porque a compra de um imóvel é um gasto que compromete geralmente de 20% a 30% da renda mensal de uma família, por um período longo, de 20 a 25 anos. "O crédito imobiliário é aquele que está mais intimamente ligado à variação da Selic, de todos os créditos", afirma Alberto Ajzental, coordenador do curso de Negócios Imobiliários da FGV. O professor explica que esse é um crédito que tem uma garantia real forte (em geral, o próprio imóvel), o que faz com que essa seja a modalidade de crédito com menor spread – diferença entre o que o banco paga de juros a um investidor e o que ele cobra de juros em um empréstimo. "Por ter o menor spread, o crédito imobiliário é o mais sensível à variação da Selic", diz Ajzental. O professor da FGV observa, porém, que essa relação não é linear. Por exemplo, enquanto a Selic foi de uma mínima de 2% ao ano durante a pandemia, para 13,75% até julho deste ano, a taxa média do financiamento imobiliário variou nesse período entre uma faixa de 7% a 12% ao ano. Ou seja, a variação dos juros do crédito imobiliário é menos ampla do que a da Selic, a uma razão de 1 para 2. Isto é, o juros do crédito imobiliário variam 1 ponto a cada 2 pontos de variação da Selic. "Com a Selic indo de 13,75% a 12% no final do ano, se a expectativa do boletim Focus do Banco Central se confirmar, será uma queda de 1,75 ponto em quatro reuniões do Copom", diz Ajzental. "Então podemos estimar que o crédito imobiliário pode cair entre 0,75 e 1 ponto, acompanhando os quase 2 pontos de queda da Selic até o final do ano", calcula o especialista. Ele reforça, porém, que esse efeito não é imediato, podendo levar até três meses para os juros do crédito imobiliário caírem em função de cortes na Selic anteriores. Mas então é melhor esperar os juros caírem para financiar um imóvel? Não necessariamente, diz o professor da FGV. "A compra de um imóvel não pode ser feita com uma visão imediatista, se a família achar uma boa oportunidade, deve comprar sim, porque há uma carta na manga que é a portabilidade", diz Ajzental. Ele faz referência à opção criada em 2013 pelo Banco Central, que permite ao consumidor levar uma dívida de um banco para outro, negociando taxas de juros menores para pagamento. "Mesmo que você compre com uma taxa um pouco mais alta agora, passados um ou dois anos, você pode pedir a portabilidade e negociar uma taxa melhor com outro banco. Se estamos falando de uma dívida de 20 a 25 anos, os um ou dois anos que você pagou mais caro serão diluídos", afirma. O professor cita ainda outros dois motivos para não esperar, caso surja uma boa oportunidade de compra de um imóvel. O primeiro é que, com a queda da Selic e a melhora esperada na atividade econômica, deve aumentar também a demanda por imóveis, o que pode levar a uma alta de preços das propriedades. O segundo fator é a disponibilidade de recursos na poupança. Atualmente mais de 50% da captação de recursos para o crédito imobiliário vem da poupança, cuja rentabilidade também está ligada à Selic, explica o professor da FGV. Quem investe em poupança é remunerado a 0,5% mais a variação da TR (Taxa Referencial, um outro indexador de contratos financeiros), quando a Selic está acima de 8,5%; e a 70% da Selic quando a taxa básica de juros está abaixo de 8,5% ao ano. Então quedas maiores da Selic podem retirar recursos da poupança, devido à perda de rentabilidade e maior atratividade de investimentos de renda variável. Isso pode diminuir a oferta de crédito imobiliário, pressionando as taxas. Todos os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil são unânimes na visão de que a Selic não deve voltar nos próximos anos ao patamar de 2% visto durante a pandemia – a não ser que ocorra uma catástrofe econômica que exija um forte estímulo monetário. Pela expectativa atual do mercado, se tudo seguir como esperado, a taxa básica de juros chegaria pouco abaixo dos 9%, e isso somente em 2025. Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, explica que são vários os fatores para os juros no Brasil serem mais altos do que em outros países. Historicamente, um dos motivos para isso é a questão fiscal. "O Brasil tem um perfil fiscal muito ruim, uma dívida pública muito elevada e um déficit [nas contas públicas] muito elevado, especialmente nos últimos dez anos", diz Vale. "Isso significa um prêmio de risco mais elevado e que o mercado acaba cobrando uma taxa de juros maior [para financiar a dívida pública] por conta dessa percepção de risco. Assim, para o governo emitir títulos, precisa oferecer uma taxa maior, para o mercado aceitar." Rachel de Sá, da Rico Investimentos, cita ainda a elevada indexação da economia, que é o fato de muitos contratos serem reajustados pela inflação passada – como aluguéis, salários, etc. Isso gera uma persistência da inflação, o que exige juros mais altos para controlá-la. A economista observa ainda a baixa competitividade no setor bancário (o que tem melhorado nos últimos anos, com a proliferação dos bancos digitais e fintechs) e a grande oferta de juros subsidiados no Brasil – através do BNDES, por exemplo – como fatores que contribuem para que os juros por aqui sejam mais altos. Ainda entre os fatores históricos, Vale cita a dificuldade dos credores de resgatar garantias no Brasil, o que torna os empréstimos mais arriscados e a chance de inadimplência maior, fazendo com que as taxas médias de juros de mercado sejam mais elevadas, para compensar esses riscos. Mas, além desses fatores estruturais, há motivos para o Banco Central ser cauteloso no momento atual, reduzindo as taxas de juros de forma lenta e gradual, avaliam os economistas. "A primeira 'pernada' do processo desinflacionário já aconteceu, vemos os preços dos alimentos caindo e os preços de bens industrializados com inflação bem mais baixa, após um período de muito desequilíbrio na economia global com a pandemia", diz Rachel de Sá, da Rico. "O problema agora é a inflação de serviços, então o Banco Central deve ser muito cauteloso, porque há riscos também no mundo", acrescenta a economista. Entre esses riscos que devem impedir uma queda mais rápida dos juros no Brasil, ela cita os juros em alta nos EUA, inflação ainda pressionada na Europa, riscos climáticos do El Niño e a situação geopolítica na região do Mar Negro, que pode pressionar o preço dos grãos. Internamente, embora a situação fiscal tenha melhorado com a aprovação do novo arcabouço fiscal, diz a economista, ainda restam muitas incertezas sobre as receitas necessárias para zerar o déficit das contas públicas nos próximos anos, como prometido pelo governo. Todos esses fatores devem limitar uma queda mais acentuada dos juros por aqui. Ainda assim, o início da queda dos juros é uma boa notícia para a economia, acredita Vale. "Dado que a queda [dos juros] vai ser lenta, o maior ganho talvez seja no front político, porque toda essa tensão entre Banco Central e governo é muito prejudicial", diz o economista. "Mas crescimento de longo prazo, sustentável, não é feito com política fiscal, nem com política monetária. Elas não servem para isso. O que serve para isso é fazer reformas que aumentem a produtividade e, consequentemente, aumentem o crescimento."
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84qqng34j9o
brasil
16 mortos em 6 dias: o que aconteceu na operação policial no Guarujá
Uma grande operação — feita após a morte de um policial por um atirador que seria ligado ao tráfico de drogas — deixou ao menos 16 mortos no Guarujá, cidade do litoral de São Paulo. A operação no fim de semana envolveu 600 agentes das polícias Civil e Militar de São Paulo no bairro Vila Zilda. Nesta quarta-feira (2/8), a polícia prendeu um homem apontado como o último suspeito da morte do policial que ainda estava à solta. O governo federal criticou a ação policial, mas o Estado de São Paulo defende a operação, que ainda está em andamento. A BBC News Brasil preparou uma linha do tempo dos acontecimentos que ajuda a entender o estopim e o desenrolar da onda de violência na região. Fim do Matérias recomendadas O policial das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) Patrick Bastos Reis foi atingido por um tiro no peito. Ele chegou a ser atendido no Pronto Atendimento da Rodoviária (PAM), mas não resistiu. Outro policial também foi baleado e ficou ferido. Os tiros foram disparados a uma distância de 50 metros — o que levou a polícia a chamar o atirador de "sniper". Reis foi morto quando patrulhava o bairro Vila Zilda por volta das 22h. Na mesma noite, a polícia do Guarujá deu início à operação Escudo, cujo objetivo era capturar os criminosos responsáveis pela morte do policial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cerca de 600 policiais foram enviados para reforçar o policiamento nos bairros Vila Júlia e Vila Zilda. Equipes especializadas das polícias Militar e Civil foram acionadas. O Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, foi até o Guarujá para acompanhar a operação. "Vamos para cima até pegar todos, sem exceção", disse ele. Os documentos apontam que as mortes na região após o assassinato do policial começaram por volta das 19h de sexta-feira. Desde então, moradores de comunidades locais acusam policiais de agressões, ameaças e tortura. Os parentes de pessoas mortas na operação afirmam que inocentes foram retirados de casa e executados. A Ouvidorias da Polícia do Estado de São Paulo recebe as denúncias e encaminha os relatos às Corregedorias. A Secretaria de Segurança Pública nega que tenham havido excessos na operação. O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, convocou a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos para acompanhar o caso. As ações se concentraram em pontos de vendas de drogas em bairros longe das praias da cidade. Segundo a SSP de São Paulo, três homens morreram no sábado ao reagirem a abordagens policiais em diferentes locais. A Ouvidoria da Polícia de São Paulo informou que estava recebendo notificações e denúncias de moradores da região. Em 42 horas de operação sete pessoas foram mortas na Baixada Santista. Foram feitos disparos de fuzil e pistolas na região. No domingo (30), o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou nas redes sociais que o autor do disparo que matou Reis havia sido capturado na zona sul da capital paulista. Erickson David da Silva se entregou à polícia na zona sul de São Paulo. Segundo o UOL, ele tem três passagens por roubo e uma por formação de quadrilha. Ainda conforme o UOL, o homem chegou a ficar preso no Centro de Detenção Provisória de São Vicente, na Baixada Santista. Ele também passou pelo Centro de Progressão Penitenciária de Mongaguá, de regime semiaberto, e em 16 de fevereiro de 2016 recebeu o benefício de prisão albergue domiciliar. Segundo o ouvidor Claudio Aparecido da Silva, moradores do Guarujá relataram que policiais torturaram e mataram um homem e prometeram matar ao menos 60 pessoas em comunidades. Na segunda, o número de mortes na operação subiu para 10. O governador Tarcísio Freitas avaliou que não houve excesso da força policial. Ainda na segunda, o suspeito de atirar e matar o soldado da Rota passou por audiência de custódia no Fórum de Santos, no litoral de São Paulo e teve a prisão temporária mantida por 30 dias. Na terça-feira (1/8), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que subiu para 14 o número de mortos na operação policial. Ele classificou os confrontos entre criminosos e policiais como um "efeito colateral". Uma comissão formada pela Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) foi ao Guarujá para apurar se houve excessos por parte dos policiais. O grupo irá ouvir familiares das vítimas e, eventualmente, outras pessoas que possam ter sido alvo de arbitrariedades praticadas pelos policiais. Nesta quarta-feira, o número de mortos na operação subiu para 16, confirmou o governo de São Paulo. No mesmo dia, um suspeito de participar da morte do PM foi preso após se entregar à polícia. O homem de 20 anos, identificado como Kauã Jazon da Silva é irmão do suspeito de atirar no policial. De acordo com o G1, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou que Kauã tinha a função de ficar posicionado na comunidade Vila Júlia, no Guarujá, armado e com um comunicador, pronto para avisar os comparsas sobre a chegada de viaturas policiais ao local. Ainda conforme o G1, o delegado titular do DP Sede da cidade, Antonio Sucupira Neto, a investigação sobre a morte do PM da Rota foi encerrada após a prisão de Kauã. A Polícia Civil deteve Erickson, suspeito de atirar, e também um suspeito identificado apenas como "Mazzaropi", por envolvimento no caso. Após um desencontro inicial sobre números, foram confirmadas 16 mortes e 58 prisões até o momento. A SSP de São Paulo informou que, dos 58 presos, 38 foram em flagrante e outros 20 eram procurados da Justiça. Quatro adolescentes foram apreendidos também por tráfico de drogas. O governo diz que quatro suspeitos da morte do policial foram identificados e dois deles estão presos. Um dos presos é considerado suspeito de ter matado o policial da rota. A polícia não divulgou o nome dos mortos, mas a imprensa local noticiou entrevistas com parentes, na qual alguns denunciaram ações ilegais da polícia. A operação ainda está em andamento e tem previsão de continuar até o final de agosto. A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo disse que moradores relataram a tortura e a morte de uma pessoa por policiais. A Ouvidoria disse que vai pedir as imagens das câmeras dos policiais que estiveram envolvidos na operação. O governo federal criticou a ação da polícia estadual. "Chama atenção o fato de você ter um terrível crime contra um policial, um crime realmente que merece a repulsa, sendo usado inclusive uma pistola de 9 milímetros. E houve uma reação imediata que não parece nesse momento ser proporcional em relação ao crime que foi cometido", disse o ministro da Justiça, Flavio Dino. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, defendeu a operação policial. "Não houve excesso. Houve uma atuação profissional, que resultou em prisões. E nós vamos continuar com a operação", disse o governador. "Nós vamos investigar, nós vamos prender, nós vamos apresentar à Justiça, nós vamos levar ao banco dos réus. Foi isso exatamente que foi feito neste final de semana. Eu estou extremamente satisfeito com a ação da polícia, extremamente triste com o que aconteceu porque nada vai trazer um pai de família de volta."
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2x54ynjzx4o
brasil
Por que Brasil seguirá sendo campeão mundial 'disparado' de juros altos
Há grande expectativa entre os agentes econômicos brasileiros que o Brasil comece nesta quarta-feira (2/8) um ciclo de corte na sua taxa básica de juros — que está em 13,75% desde agosto de 2022. Em março de 2021, o Brasil foi um dos primeiros países entre as grandes economias mundiais a aumentar suas taxas de juros — que passaram de 2% a 13,75% em um período de 18 meses. Na época, o movimento foi elogiado por diversos economistas, pois os juros são o principal instrumento para enfrentar aquele que acabou virando o maior problema da economia global depois da pandemia de covid: a disparada da inflação. No entanto, mesmo dando início ao movimento de baixa, o Brasil segue liderando com folga o ranking de juros reais mais altos no mundo — o que desperta preocupação entre governantes, empresários e trabalhadores. Fim do Matérias recomendadas O Brasil ainda aparece com folga como campeão no ranking das economias com o maior juro real do mundo. O juro real é o juro "puro" que sobra após o desconto do efeito da alta dos preços. A inflação usada nesse cálculo é a prevista para os próximos meses, e não a inflação passada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um exemplo simples: a previsão para os próximos 12 meses é de que a inflação brasileira gire em torno de 4%. A taxa Selic — que baliza os juros no Brasil — está em 13,75%. Ou seja, o juro real que os brasileiros pagam é, teoricamente, próximo de 9% a 10%. Na prática, os brasileiros pagam juro praticado pelo mercado, que é mais elevado que a taxa básica. Há países com taxas básicas de juros muito maiores do que o Brasil, mas nenhum deles pratica juros reais maiores do que a nossa economia. É o caso da Argentina, cuja taxa básica é de 97% — sete vezes maior do que a do Brasil. Mas como a inflação lá nos últimos 12 meses foi de 116% e a previsão é de que ela siga em alta ao longo do próximo ano, na prática, o juro efetivamente pago pelos argentinos — o juro real — é muito inferior ao do Brasil (e negativo). Para quem empresta dinheiro no Brasil, juro alto é bom negócio. Um investidor que aplica seu dinheiro hoje pela taxa básica da economia tem um ganho real em média 10% acima da inflação. Mas isso também significa que os brasileiros que pegam empréstimos precisam pagar muito mais caro do que no resto do mundo. O Brasil tem os maiores juros reais entre 40 grandes economias, segundo ranking do site Moneyou de junho. Antes da decisão do Copom de quarta-feira, o juro real brasileiro era de 7,54% — acima de México (5,94%), Colômbia (5,16%) e Chile (4,89%). Nos EUA e na China, os juros reais estão abaixo de 2%, e em grande parte da Europa eles são negativos. Neste momento, o Brasil está com uma inflação anual abaixo de países como Alemanha, Reino Unido e França (algo raro nas últimas décadas) — mas sua taxa básica de juros é maior do que a de todos esses países somadas. Por que — mesmo se antecipando a vários países ao cortar suas taxas — o Brasil segue com juros tão altos? A queda da inflação ajuda a baixar os juros, mas existe um limite de até onde eles podem cair. Esse limite é conhecido como juro neutro ou juro de equilíbrio — que é o patamar onde a economia estaria crescendo com seu maior potencial, sem excesso de inflação. Economistas estimam que o juro de equilíbrio do Brasil é próximo de 4,5%. Ou seja, mesmo que o Brasil não tivesse nenhuma inflação em um período de um ano (algo inédito no país), os juros nunca cairiam para baixo desse patamar. Esse juro neutro do Brasil é maior do que de quase todas as grandes economias — mesmo as emergentes. "Comparando o Brasil com outras economias emergentes — como Chile, Colômbia, México, Peru e África do Sul — todos esses países têm juros reais de equilíbrio na faixa de 2 a 3%. E, no Brasil, esse juro real de equilíbrio é quase o dobro", disse à BBC News Brasil o economista Braulio Borges, da LCA Consultores, e pesquisador do IBRE-FGV. Os economistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o juro neutro brasileiro é alto devido ao alto endividamento público brasileiro. O problema é que o governo toma muitos empréstimos (emitindo títulos de dívida pública) para pagar suas muitas despesas. "A dívida líquida do setor público brasileiro é o critério mais acompanhado pelas agências de classificação de risco. A dívida líquida brasileira fechou o ano passado em 57% do PIB e nesse ano deve chegar perto de 61%", diz Borges. Esse alto endividamento fez com que o Brasil perdesse em 2015 o chamado "grau de investimento" — uma classificação dada por agências internacionais de risco. Elas avaliam a capacidade que os governos têm de pagar suas dívidas baseado no tamanho e na estrutura dessa dívida e nas receitas do país. Em países onde os riscos de não pagamento são maiores, os juros sobem, para refletir esse aumento no risco. Afinal, os juros também servem como um "prêmio" ao risco: quanto maior o risco de calote, maior é o retorno que o credor espera por seu empréstimo. Outros países emergentes — como Chile, México e Colômbia — ainda possuem o grau de investimento (chamado por muitos economistas de "selo de bom pagador"), e por isso seus juros são mais baixos do que o brasileiro. Historicamente, houve momentos em que o endividamento brasileiro caiu — como logo depois de algumas reformas aprovadas no Congresso, por exemplo — e isso ajuda a derrubar o juro neutro brasileiro. "O juro neutro é sempre uma estimativa, e no Brasil essa estimativa caiu para perto de 3% logo depois que foi aprovada a reforma da Previdência. Ali nós tínhamos o teto de gastos — que controlava a trajetória de dívida — e a reforma da Previdência, o que dava mais credibilidade internacional", disse Myria Bast, economista do Bradesco, à BBC News Brasil. Mas não é só o juro neutro que faz do Brasil um país mais caro do que os demais. O Brasil é campeão de outro ranking mundial — um que é particularmente dolorido para trabalhadores e empresários que precisam de crédito no dia-a-dia. Trata-se do "spread bancário" — a diferença entre os juros que os bancos pagam e o que eles cobram de seus clientes. Os bancos tomam dinheiro emprestado pagando juros próximos da Selic, em torno de 13%. No entanto, ao emprestar dinheiro — para pessoas que querem comprar casas e carros ou empresários que querem investir em seus negócios — os bancos cobram juros exorbitantes — acima de 30% ou 40%. Um ranking do Banco Mundial de 2020 mostra que o Brasil fica apenas atrás de Madagascar entre os países com maior spread bancário do mundo. No Brasil, as pessoas estão pagando juros de 26 pontos percentuais a mais do que a taxa básica da economia. A média dos países emergentes é de apenas 6 pontos percentuais de diferença. Borges, da LCA Consultores, diz que esse spread bancário exagerado é uma "excrescência" da economia brasileira. Economistas dizem que há diversos fatores para o spread bancário ser tão alto, como a concentração do mercado bancário e a ausência de reformas microeconômicas. Segundo Borges, um dos motivos dos altos juros bancários no Brasil é que, em situações de calote, os bancos brasileiros, em geral, conseguem recuperar muito pouco do valor que foi emprestado, em comparação com o resto do mundo. Por isso, o risco de se emprestar dinheiro no Brasil é maior, o que é refletido na taxa de juro maior, segundo esse argumento. Os juros altos têm provocado um debate intenso na sociedade brasileira. O instrumento é usado para conter a inflação alta — algo que traz problemas sérios para a população, que vê seu poder de compra ser corroído pela alta dos preços gerais. Os salários geralmente não conseguem acompanhar essa disparada, e todos ficam relativamente mais pobres. Em 2021 e 2022, a inflação acumulada nos dois anos foi de mais de 15% no Brasil. Mas empresários, governantes e a população em geral reclamam que uma dosagem exagerada de juro traz problemas tão ou mais sérios do que a inflação. Os empréstimos ficam caros demais, as famílias e as empresas se endividam mais, e o consumo e o investimento caem. A taxa de juros é definida pelo Conselho de Política Monetária do Banco Central, que desde 2021 tem autonomia em relação ao governo federal. Neste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem atacado o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que mesmo diante de sinais de arrefecimento da inflação, vinha defendendo a manutenção da taxa Selic em um patamar alto. Lula afirmou que não existe explicação para uma taxa de juros que considera alta demais, que ela tem impedido o crescimento e afirmando que a taxa é "parcialmente responsável" pelo desemprego no país. E o Banco Central defende que a taxa precisa ser mantida neste patamar senão a inflação sairia do controle. "O juro alto tem esse custo financeiro para as empresas, para as famílias e para quem está com alguma dívida. O governo acaba refletindo estas angústias", diz Myria Bast, do Bradesco. "Esse desconforto é sentido por vários agentes econômicos. E isso é assim em vários outros países do mundo, que também têm sofrido, porque estamos em um dos patamares de juros mais elevados em muitos anos", diz. "Ninguém gosta do remédio de juros altos. Mas, no final, ele é necessário para evitar essa consequência pior para todas as famílias que é uma inflação mais elevada." Braulio Borges, da LCA Consultores, lembra que o Brasil já conseguiu baixar muito os juros no começo deste século — que na época estavam em um patamar alto porque o país tinha alto endividamento externo. Na época, o Brasil se tornou credor internacional, em vez de devedor, e aumentou o tamanho de suas reservas — revertendo o cenário adverso e baixando os juros. Em comparação, a Argentina hoje tem juros e inflação estratosféricos por conta desses problemas de contas externas, que o Brasil resolveu há duas décadas. Para baixar ainda mais os juros, acredita Borges, o Brasil precisa se comprometer com o combate ao endividamento público e precisa seguir com reformas microeconômicas, como o marco legal das garantias de empréstimos (um projeto de lei que está tramitando e que pode reduzir o custo de crédito no Brasil). Mesmo com os juros básicos em queda, por conta da desaceleração da inflação, economistas lembram que ainda há riscos no horizonte. Myria Bast, do Bradesco, lembra que no resto do mundo, muitos países ainda não encerraram seus ciclos de aumento de juros. Alguns — como Estados Unidos e Reino Unido — seguem subindo suas taxas, porque as previsões de inflação não estão caindo. Desde o fim da pandemia e o começo da guerra na Ucrânia, o mundo vem enfrentando a maior onda inflacionária de décadas. Segundo Bast, se a inflação mundial não desacelerar e lá fora os juros não começarem a cair, dificilmente o Brasil conseguirá baixar muito as suas taxas neste ciclo de baixa.
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pwgd2z5k8o
brasil
O que é a Selic e como ela afeta o seu bolso?
O Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) define nesta quarta-feira (02/08) a taxa básica de juros da economia brasileira, a Selic, atualmente a 13,75%. A expectativa é que a autoridade monetária inicie o ciclo de redução dos juros; a queda esperada pelo mercado deve girar entre 0,25 a 0,50 ponto percentual. André Perfeito, ex-economista-chefe da Necton Investimentos, assinala que o que está em jogo "não é o curto prazo, mas os vértices mais longos". Para isso, será preciso atentar "não para o corte em si, mas na comunicação desse corte (pelo BC)", acrescenta. "Se o BC iniciar o ciclo com 25 pode indicar que o ajuste será mais longo que o mercado espera uma vez que a velocidade é menor. Se começar com 50 pode indicar que será "um tiro mais curto"". Perfeito prevê uma queda de 0,5 ponto percentual, mas ressalva que "duas coisas conspiram para distúrbios na parte longa da curva e com isso um corte menor seja mais provável. Os pontos são: uma defasagem relevante da gasolina (R$ 5,59) e os juros longos já caíram de maneira substancial". Mas como os juros nos afetam? O que eles significam na prática para o bolso das pessoas? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A taxa Selic (sigla para Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) serve como referência para todas as taxas de juros do mercado brasileiro e é definida pelo Copom, grupo composto pelo presidente e diretores do Banco Central. Eles se reúnem para definir a trajetória da Selic. A Selic é o principal instrumento de política monetária usado pelo Banco Central para controlar a inflação. Quando a taxa sobe, os juros cobrados em financiamentos, empréstimos e no cartão ficam mais altos e isso desencoraja o consumo — o que, por sua vez, estimula uma queda na inflação. Por outro lado, se a inflação está baixa e o BC reduz os juros, isso barateia os empréstimos e incentiva o consumo. Para definir o que fazer com a Selic, o BC avalia as condições da inflação, da atividade econômica, das contas públicas e o cenário externo — sempre com o objetivo de manter a inflação dentro da meta. O instrumento é usado por todos os governos e autoridades monetárias. O Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, define os juros básicos da economia americana. O Banco Central Europeu faz o mesmo com os juros nos países que compõem a zona do euro. Nos últimos anos, o mundo tem experimentado um aumento da inflação, ainda que esse ritmo de alta tenha desacelerado recentemente — como reflexo de desequilíbrios na cadeia de produção combinados com um aumento do consumo devido à pandemia de covid-19. A inflação bateu recorde de mais de quatro décadas em países europeus, EUA e Reino Unido. Tudo tem ficado mais caro. Por isso, esses países também estão vendo os juros subirem. No Brasil, o mais recente ciclo de alta começou em 17 de março de 2021. Desde então, a Selic subiu 12 vezes consecutivamente, de 2% para 13,75%, patamar atingido em agosto do ano passado. Desde então, permanece inalterada. É o nível mais alto desde 2016, quando a taxa começou o ano em 14%. O objetivo do Copom é fazer a inflação brasileira ficar dentro da meta, que também é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O regime de metas de inflação, o câmbio flutuante e a meta fiscal compõem o chamado "tripé macroeconômico", anunciado em 1999 como a nova estrutura da política econômica brasileira. Isso depois de o Brasil ter superado, com o Plano Real (1994), um período traumático de hiperinflação, durante o qual os preços chegavam a aumentar 80% em um único mês. No modelo atual, o CMN determina em junho a meta para a inflação de três anos à frente. A ideia é que uma inflação previsível, estável e baixa possa ajudar a economia a crescer mais, reduzindo as incertezas. Para 2022, a meta para o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo, usado oficialmente pelo governo) é de 3,5%. Para o ano que vem, a meta é de 3,25%. O mercado, no entanto, não acredita que o governo vá conseguir cumprir essas metas. O mais recente Boletim Focus (sondagem semanal do BC com agentes de mercado) mostra que o mercado acredita que o Brasil encerrará 2023 e 2024 com inflações anuais de 4,84% e 3,89% respectivamente — ambos índices acima da meta oficial. Se não houvesse aumento nos juros, as pessoas estariam expostas à inflação alta, o que provocaria uma queda nos padrões de vida de todos. Os preços de bens e serviços subiriam, e os salários das pessoas não acompanhariam essa alta. Juros elevados têm dois efeitos claros no cotidiano das pessoas: Sobre empréstimos, juros altos afetam principalmente pessoas que tomam financiamentos para comprar casa ou carro — e também consumidores que têm dívidas com cartão de crédito. Para se ter uma ideia, atualmente, os juros do crédito rotativo (quando o consumidor não faz o pagamento total da fatura até o vencimento), a linha de crédito mais cara do mercado, estão a 437,3% em junho ao ano, segundo o BC — em maio, eles haviam atingido o maior patamar em seis anos (455,1%). Isso significa dizer que uma pessoa que tenha deixado de pagar R$ 1.000 há um ano, hoje teria uma dívida de R$ 5.373. O mesmo acontece com empresas: juros altos não incentivam tomada de empréstimos para realizar investimentos. Se há menos investimentos, geram-se menos emprego e, consequentemente, renda. E governos também sofrem: juros elevados prejudicam as finanças públicas, já que os países também tomam empréstimos ao emitir títulos de dívida (uma das formas como governos se financiam — a outra é arrecadação de impostos). Juros mais altos acabam sendo vantajosos para quem tem dinheiro para emprestar e investir. Mas é preciso tomar cuidado. Os investimentos e poupanças precisam ter taxa de retorno superior à inflação para que haja um ganho real. Foi o caso dos investimentos de renda fixa no ano passado, inclusive da popular caderneta de poupança. Em 2022, a poupança rendeu 7,90%, porcentual maior do que a inflação acumulada (5,79%), o que significa dizer que houve rentabilidade real (ou seja, acima da inflação) para quem investiu dinheiro nessa modalidade de investimento de renda fixa no período. Há, entretanto, outros investimentos que oferecem retornos maiores, como os títulos do governo federal. Por outro lado, para quem não tem dinheiro guardado, a vida fica bem mais difícil, e o fosso entre ricos e pobres tende a aumentar. Por isso, quando os juros estão elevados, a desigualdade inevitavelmente sobe. Em entrevista recente à BBC News Brasil, Fábio Terra, professor de Economia da UFABC (Universidade Federal do ABC), disse que qualquer que seja a decisão do Copom, ela "sempre afeta a vida das pessoas". "Os juros afetarão as pessoas por dois caminhos: primeiro, direto, tornando mais caro o crédito ao consumo e segundo, indireto, pois como a economia esfria com juros elevados, as pessoas têm menor oferta de emprego, tem chance de demissão, a criação de renda desacelera e autônomos vendem menos, empresas investem menos e o estoque de riqueza da sociedade não cresce como poderia crescer se os juros fossem menores", resume. "Por fim, há ainda uma piora na distribuição de renda, pois as pessoas mais ricas conseguem poupar e ganham os juros Selic, aumentando a riqueza que possuem enquanto que os mais pobres não conseguem poupar e nem investir para ganhar com a Selic. A distribuição pessoal da renda piora, assim", acrescenta. Sendo assim, juros mais elevados são prejudiciais para os mais humildes, "pois encarecem o crédito e arrefecem a economia, ao mesmo tempo em que piora a distribuição de renda", conclui Terra.
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx85w0qq3djo
brasil
Menos investimento e proibição: os desafios enfrentados pela seleção feminina de futebol fora de campo
"As coisas não acontecem de um dia para o outro." Com essa frase, a maior artilheira de todos os tempos do futebol brasileiro, masculino ou feminino, se despediu das Copas do Mundo, após a eliminação da Seleção na fase de grupos na Austrália nesta quarta-feira (2/8). Marta representou o Brasil em seis Mundiais e conquistou seis vezes o prêmio de melhor jogadora da Fifa. Mas apesar de acumular recordes em seu currículo, nunca conquistou um título. Desde a primeira edição oficial da Copa feminina, em 1991, a melhor posição conquistada pelo Brasil foi o segundo lugar em 2007. A realidade contrasta diretamente com os resultados obtidos pela Seleção masculina, que é considerada a mais bem-sucedida da história do futebol mundial, com cinco títulos em Copas do Mundo. Fim do Matérias recomendadas Para especialistas consultadas pela BBC News Brasil, a diferença no desempenho e na confiança incitada pelas suas equipes pode ser explicada principalmente pela discrepância no investimento e pelos anos em que as mulheres foram impedidas de jogar no país. De acordo com historiadores, a principal razão para a desigualdade é a profissionalização tardia da modalidade no Brasil, após quase quatro décadas de proibição entre 1941 e 1979. O veto foi instaurado pelo governo de Getúlio Vargas, sob o pretexto de que o futebol era um esporte violento demais para as mulheres, que poderia afetar suas funções orgânicas e capacidade de serem mães. O decreto 3.199, que estabelecia "as bases de organização dos desportos em todo o país”, afirmava em seu artigo 54 que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O documento não mencionava sanções, dando margem para que cada delegacia impusesse as suas. Não há registros, no entanto, de mulheres presas por violar a ordem. Geralmente, elas eram detidas e liberadas logo após prestar depoimento. Ainda assim, segundo Júlia Barreira, professora do curso de Educação Física da Unicamp, o período de proibição afetou profundamente o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil. "As meninas e mulheres desafiaram o decreto, ocuparam os campos de várzea e se organizaram em espaços periféricos para continuar praticando a modalidade, mas perderam totalmente as competições e organizações esportivas que as apoiavam", diz. "Passamos quase quatro décadas sem competições oficiais para que elas praticassem e se desenvolvessem, estrutura para apoiá-las ou formação de treinadores e treinadoras com qualificação para trabalhar especificamente com esse grupo." Mesmo com o fim da proibição em 1979, o futebol feminino só foi devidamente regulamentado em 1983. "Ao mesmo tempo em que o futebol feminino está proibido, o masculino tem um progresso e ascensão e conquista seu tricampeonato", diz a historiadora Aira Bonfim, especializada em futebol feminino. "Olhar para tudo isso nos ajuda a entender todos os paradigmas. Mesmo após a proibição, muito se falava sobre o futebol feminino não ser interessante para o Brasil ou não ter tradição." "É uma grande mentira que não temos tradição, porque a história do esporte não está só associada à oficialidade. Mas é inegável que a proibição limitou o desenvolvimento da modalidade." Segundo as especialistas consultadas pela BBC News Brasil, o período de veto também ajudou a construir parte do estigma social associado ao futebol feminino, já que boa parte da identidade nacional associada ao esporte também foi construída nessa época, deixando as mulheres de fora. Para Nathália Pessanha, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), outro fator crucial para analisar a situação de forma correta é o apoio recebido pelas equipes. "A situação melhorou muito de 2019 para cá, o futebol feminino passou por um boom com a transmissão de Campeonato Brasileiro na televisão aberta, patrocínios nas camisas, investimento em seleções de base e, claro, com a criação de uma camisa própria para a Seleção - já que antes elas jogavam com uma versão masculina, com cinco estrelas no escudo", diz. Mas nada disso se compara ao investimento recebido pelo futebol masculino. Em 2022, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) destinou aproximadamente R$ 200 milhões à seleção masculina principal. Outros R$ 70 milhões foram divididos entre o time feminino e sete seleções de base, segundo dados divulgados pelo próprio órgão. A CBF é responsável pelos custos relativos à comissão técnica, delegações, passagens, alimentação, hospedagens e demais itens necessários à operação e desenvolvimento das equipes, nas competições e amistosos de preparação, realizados ao longo do ano. Além disso, segundo Pessanha, os salários e comissões significativamente mais baixos recebidos pelas atletas mulheres também podem impactar a realidade atual, ainda que não sejam definitivos para um bom desempenho. "Não dá para comparar investimento, não dá para comparar marketing e não dá para comparar salário", diz. "E o salário impacta diretamente na condição que aquela atleta vai entrar em campo, na condição de vida que aquela pessoa vai dar para sua família, porque querendo ou não o futebol no Brasil é um elemento de crescimento social." "E aí tem gente que fala 'mas o Neymar é muito mais famoso do que a Marta'. A Marta ganhou seis títulos de melhor jogadora do mundo", completa. A CBF anunciou em 2020 a igualdade de salários entre homens e mulheres na Seleção - isto é, enquanto estão convocados eles recebem o mesmo valor diário para treinar e representar o Brasil nos jogos. No entanto, em parte dos campeonatos, como a Copa do Mundo, os valores seguem bem diferentes: ao anunciar a igualdade de salários em 2020, a CBF informou que as premiações serão proporcionais ao repasse da Fifa para cada modalidade. Nas ligas nacionais e equipes privadas, a realidade também é de desigualdade. Marta joga atualmente na liga americana pelo Orlando Pride e recebe anualmente um salário de US$ 400 mil. Em comparação, a jogadora ganha por ano menos de 1% que Neymar, atacante do Paris Saint-Germain que ganha US$ 50 milhões por temporada, de acordo com a revista Forbes. Marta é, inclusive, uma das maiores ativistas pela igualdade de salários e investimentos no futebol atualmente. Na última Copa, ela dispensou patrocínios e entrou em campo usando uma chuteira com o símbolo da igualdade nas cores azul e rosa, criado pela campanha 'GoEqual'. "A Marta atleta se sente realizada. Mas o maior sonho mesmo é sentir que a nossa modalidade está caminhando para frente", afirmou a jogadora em uma entrevista à CBF em 2018. "Que o futebol feminino não é só uma promessa. É uma realidade. Que as meninas possam mesmo sonhar em ser atletas, seguir uma carreira, viver do futebol. Sentar depois no futuro, na minha casa, no sofá e ver o futebol feminino na TV como algo normal, constante", defendeu. "Existe uma ideia muito forte de que as mulheres têm que se provar, tem que gerar renda para que os patrocínios e salários cresçam. Mas aí entramos em um ciclo sem fim, por que como as mulheres podem provar que geram renda se não tem patrocínio ou transmissão?", questiona Pessanha. A especialista afirma ainda que a existência de ligas nacionais bem consolidadas, com times de base, é essencial para o desenvolvimento de um esporte. Mas no Brasil atualmente os progressos nesse setor ainda acontecem muito lentamente. "Ter boas seleções de base e campeonatos estruturados são elementos essenciais para formar e revelar novas jogadoras, que no futuro vão renovar a atual Seleção", diz. "Fora que um campeonato bem estruturado ajuda a vender o esporte dentro do país. Quanto mais times competindo em alto rendimento, mais torcedores começam a acompanhar." Desde 2019, os clubes masculinos da Série A do Campeonato Brasileiro e da Libertadores são obrigados a ter elencos femininos. O Brasileirão feminino também conta com três séries desde 2022, e mais quatro campeonatos de futebol feminino foram lançados no ano passado. "Progredimos muito nesse setor, mas ainda temos muito a avançar", diz Pessanha. Quando se trata do futebol nacional, outro parâmetro importante é o interesse dos patrocinadores pelas equipes, segundo a pesquisadora. Quando estreou, em fevereiro de 2023, a atual edição do Campeonato Brasileiro feminino contava com um apoio externo de patrocinadores recorde, mas que não chega nem perto dos valores da mesma competição para homens. No total, somando as 16 equipes, são 80 patrocínios presentes no campeonato de mulheres, contra 134 na série A do Brasileirão masculino. Mas segundo Nathalia Pessanha, é importante também celebrar as conquistas, apesar das adversidades. "Se analisarmos o panorama de 10 anos atrás, vemos o quanto progredimos e o quanto a Seleção Feminina tem conquistado", diz. Além de ter ganhado seis vezes a Copa América de Futebol e três Pan-americanos, a brasileira é considerada uma das melhores seleções de futebol feminino do mundo e sempre está bem posicionada no ranking da FIFA. Em 2011, o Brasil ainda encerrou a primeira fase da Copa do Mundo de Futebol Feminino na Alemanha com 100% de aproveitamento e a melhor campanha dentre as 8 seleções que se classificaram para a segunda fase: 3 vitórias em 3 jogos, 7 gols marcados e nenhum sofrido "Se a sociedade entender que a igualdade é necessária, o desenvolvimento pode acontecer também por meio da pressão social, seja sobre as entidades esportivas ou sobre as empresas e campanhas de marketing." Antes do jogo desta quarta, em uma entrevista coletiva, Marta também ressaltou a importância do legado. "Sabe o que é legal? Eu não tinha uma ídola no futebol feminino. Vocês (imprensa) não mostravam o futebol feminino. Como eu ia entender que eu poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência? Hoje a gente sai na rua e os pais falam. 'Minha filha quer ser igual a você'. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido isso sem superar os obstáculos. É uma persistência contínua."
2023-08-02
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brasil
O casal que sofre com vídeo de gravidez que viralizou: 'Não sabem o que vivemos'
Emerson Rosa, de 32 anos, quis fazer uma surpresa para a esposa após comprar um carro. Desde que ele começou a namorar com Kerileine Fernanda, de 33 anos, eles sonhavam em ter um automóvel. A gravidez de Kery, como ela é chamada, pareceu o momento ideal para realizar o sonho. A surpresa aconteceu em maio do ano passado. Emerson registrou o momento em que contou sobre o carro para a companheira. No vídeo, ela sai de casa com um capacete na mão. “Ué, cadê a nossa moto?”, pergunta ao marido. Ele, então, entrega uma chave para ela. Kery logo percebe que era a chave de um carro e corre em direção a um veículo estacionado próximo a ela. Fim do Matérias recomendadas “É o nosso primeiro carro”, diz emocionada ao abrir a porta do automóvel. O vídeo viralizou, teve milhões de visualizações e rendeu ao casal diversos comentários de pessoas emocionadas os parabenizando. “Hoje em dia, ver aquele vídeo é muito doloroso”, disse Emerson em outra postagem no TikTok publicada um ano depois. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Muitas pessoas assistem àquele vídeo e passam para o próximo (de outro perfil no TikTok), não veem a nossa realidade atual”, afirmou. Ivy, a filha do casal, tem paralisia cerebral. Hoje com 11 meses, a bebê faz poucos movimentos, passa os dias na cama e sobrevive com a ajuda de aparelhos. A condição dela foi causada por uma lesão cerebral que sofreu por causa de complicações enquanto estava internada para tratar um episódio de infecção urinária. “Os médicos quando olham o exame dela falam que a lesão cerebral foi gravíssima, praticamente irreversível. Só descartam a morte cerebral porque ela tem alguns leves movimentos. E ela não tem prognóstico de melhora”, explica Emerson. Os dias são difíceis para os pais da criança, que se desdobram com a ajuda de cuidadores para dar as melhores condições de vida possíveis para Ivy. Mas os comentários positivos continuam a chegar — e se multiplicaram em maio, quando completou um ano que o vídeo viralizou. Naquele momento, Ivy estava em estado grave em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), uma das muitas internações que se tornaram rotina em pouco tempo de vida. “Os comentários são todos baseados naquele momento de maior alegria, não são baseados na nossa vida. Ler aqueles comentários e saber o que vivemos hoje é muito duro”, desabafou Emerson no TikTok. A chegada de Ivy não foi planejada, mas ocorreu em um bom período, diz o casal, porque eles estavam em um momento financeiro positivo. Kery trabalhava como vendedora. Emerson cantava em bares e casas noturnas da região de Santa Bárbara d'Oeste, no interior de São Paulo, onde moram. Eles contam que a descoberta da gravidez causou alegria. O casal já fazia vídeos para a internet, mas as publicações não tinham muitas visualizações. Nesse período, os dois viviam uma boa fase financeira e começaram a falar com frequência sobre o desejo de comprar um carro. “A Kery sabia que eu já estava olhando um veículo, mas não falei quando consegui fechar o negócio”, conta Emerson. O vídeo da surpresa alcançou mais de 10 milhões de visualizações só no TikTok em poucos dias – atualmente já são mais de 12,5 milhões. Isso sem contar a repercussão em outras plataformas. Eles chegaram até a participar de um programa de televisão para falar sobre aquele momento. O casal decidiu aproveitar o sucesso nas redes para investir mais nas produções de vídeos e, desde então, compartilhou várias situações da rotina. Os pais de Ivy contam que ela não tinha problemas de saúde até os dois meses de vida. Ela precisou ser internada nessa época para tratar uma infecção urinária que não parecia ser nada muito sério. Mas o quadro se agravou. Os pais contam que ela teve três paradas cardiorrespiratórias em cerca de 40 dias e, em uma delas, teve uma lesão cerebral, que quase a matou e deixou uma grave sequela. Para cuidar da filha com paralisia cerebral, Kery e Emerson tiveram que mudar completamente suas vidas. Kery parou de trabalhar, e Emerson trocou os palcos pelo trabalho de motorista de aplicativo com o carro que compraram no ano passado. “Comecei a fazer corridas por aplicativos porque o horário é mais flexível e assim posso ter mais disponibilidade para cuidar da Ivy”, explica Emerson. Ivy recebe todos os cuidados médicos de que precisa em casa, pagos pelo plano de saúde. Seus pais contam ainda com o apoio financeiro de familiares mais próximos. “A gente paga o plano de saúde dela e eu tento conseguir, como motorista, o básico para alimentação e aluguel. E, para outros custos, como medicamentos e outras contas da casa, recebemos ajuda de parentes”, explica Emerson. “Chegamos também a fazer rifas para conseguir dinheiro”, acrescenta Kery. O casal continua ativo nas redes sociais. Nelas divulgam a história da filha e até chegam a ganhar algum dinheiro – pouco, dizem – com os vídeos publicados no TikTok. Eles afirmam que não se arrependem de ter compartilhado o vídeo da surpresa no ano passado. Mas ficam tristes ao relembrar aquele momento de alegria quando outros perfis nas redes sociais compartilham novamente aquele registro, o que vem inevitavelmente acompanhado por novas felicitações feitas por pessoas que desconhecem as dificuldades que enfrentam no período atual. “Ainda dói qualquer coisa que faz lembrar de como era antes de tudo acontecer, antes de ela ficar mal. É horrível ver comentários naquele vídeo do carro”, diz Emerson, que é o principal responsável pelos vídeos compartilhados sobre a família nas redes sociais. Kery diz que encara um pouco melhor os comentários positivos que ainda recebem. “Eu não tenho como me afundar nisso, preciso encarar de frente e entender o agora para ser forte e cuidar dela. Mas claro que dói, dói muito”, diz. Em meio às dificuldades, o casal se apega na esperança de que algum tratamento possa ajudar a filha a melhorar. “Os médicos dizem que a lesão dela é praticamente irreversível. Mas existem tratamentos em desenvolvimento, que têm chances muito baixas de dar resultado, mas podem ser algumas possibilidades para o futuro, como um tratamento com célula tronco”, comenta Emerson. Esses tratamentos para casos de paralisia cerebral como o da garota ainda estão em fase de estudos. Para amenizar os problemas, Emerson e Kery tentam aliviar a rotina. Uma forma de fazer isso é comemorar os “mesversários” da filha. A última comemoração teve o seriado Chaves como tema, com direito a fantasia para Ivy. Eles dizem que é uma forma de descontrair, ainda que a filha não responda aos estímulos. Em meio aos cuidados intensivos com Ivy, Kery diz que ela e o marido estão aprendendo a lidar com a nova fase da vida, apesar dos diversos momentos delicados. “Hoje eu vi umas crianças brincando na rua quando eu saí de casa. E isso machuca, sabe? Eu penso: será que vou viver isso um dia com a minha filha?”, diz Kery.
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxl051pj57o
brasil
Brasil pode ter milhares de superdotados que não sabem de seu alto QI
Em uma manhã de sábado nublada, no fim de junho, o universitário Rafael Rocha foi até o Parque Tecnológico São José dos Campos, no interior de São Paulo, por conta de uma antiga desconfiança sua: a de que é superdotado. Ele diz que se alfabetizou bem mais cedo do que o esperado e que sempre teve muita facilidade na escola. “Sempre soube fazer [a forma dos] os números, e eles [na escola] fazem você repetir várias vezes. Nem me lembro quando comecei a aprender a escrever, porque já sabia com 5 anos”, conta Rafael, que tem 21 anos e estuda Ciência de Dados. Ele foi uma das três pessoas que foram naquele sábado fazer um teste de QI com duração de apenas seis minutos, aplicado pela organização Mensa Brasil, cujo formato é mantido em segredo. A Mensa Brasil é o braço local da Mensa Internacional, uma organização fundada em 1946 no Reino Unido para reunir superdotados. Fim do Matérias recomendadas Para ser aprovado e se associar à Mensa, é preciso fazer mais de 130 pontos no teste de QI — a média no Brasil é de pouco mais de 83 pontos, segundo os cientistas Richard Lynn e David Becker, no livro The Intelligence of Nations (A Inteligência das Nações, em tradução livre), de 2019. Outro candidato, Rafael Moreira, de 35 anos, foi parar naquela prova um pouco por acaso. O profissional de tecnologia está investigando se tem transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e, durante uma avaliação neuropsicológica, um dos testes constatou que ele tinha alto QI. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim, surgiu a possibilidade de que sua falta de concentração em diversas atividades seja consequência não do TDAH, mas de uma superdotação. "A avaliação neuropsicológica nem era sobre QI. O objetivo era para tratamento psicológico. Aí saiu [o resultado]. Achei estranho, vi o valor e achei alto", diz Moreira, que resolveu fazer mais um teste, dessa vez aplicado pela Mensa. Os resultados dos testes realizados naquele sábado seriam comunicados aos candidatos dentro de duas semanas. Não existe uma definição consolidada para o que são pessoas superdotadas, mas esse termo se popularizou para identificar quem tem uma inteligência muito acima da média. Alguns especialistas argumentam que o raciocínio lógico, que é medido pelos testes de QI, não deve ser a única e pode não ser a melhor medida para identificar pessoas muito inteligentes. Por isso, alguns optam pelo termo “altas habilidades”, usado para apontar quem é fora da curva em mais áreas, como artes, comunicação e esportes. As estimativas de quantas pessoas são superdotadas também variam bastante. A Mensa trabalha com a estimativa de que 2% da população mundial tem alto QI (com resultado igual ou maior que 130 pontos no teste). Com este percentual, considerando que o Brasil tem 203 milhões de pessoas, segundo o último Censo Demográfico, haveria cerca de 4 milhões de brasileiros “superinteligentes” — termo que a Mensa prefere usar. Mas até agora, a organização identificou apenas 2,6 mil deles e, por isso, diz que o Brasil é uma “potência intelectual adormecida”. Enquanto isso, o Censo Escolar do ano passado apontou que há 26.815 alunos identificados com altas habilidades ou superdotação nas escolas do país — o equivalente a 0,5% de todos os estudantes da educação básica. Na China, calcula-se que 1 a 3% dos estudantes são superdotados. Nos Estados Unidos, entre 1% e 11% dos alunos recebem algum tipo de assistência por superdotação, a depender do Estado. Já o México informa que 3% dos menores de idade têm QI alto. Levando em conta estes percentuais, haveria entre 470 mil e 4,7 milhões de estudantes superdotados no Brasil — e isso apenas nas escolas, sem contar quem não está nelas. É frequente na imprensa, em publicações governamentais e até em artigos científicos a menção ao que seria uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que cerca de 5% da população de todo o mundo teria superdotação. Mas a OMS disse à BBC News Brasil que não reconhece esse dado e que não tem estimativas sobre o percentual de superdotados. A OCDE alerta que varia bastante, de país para país, os percentuais, os métodos de cálculo e a definição do que é a superdotação. Diferente da Mensa, a Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (Apahsd) vai além do teste de QI e recorre também a avaliações com especialistas que analisam se uma pessoa tem alta habilidade em suas áreas — como Biologia, Matemática, Artes Plásticas, entre outras. “O teste de QI não mede a área cultural, artística, musical, interpessoal... Ele avalia a área cognitiva. É mais um instrumento. Não é o único nem o definitivo”, diz a pedagoga Ada Cristina Toscanini, presidente da Apahsd e pós-graduada em administração escolar, educação especial e arte terapia. “Há muito mais [necessário] para ser um bom jogador de basquete do que ser alto, e há muito mais para ser um bom pensador do que ter um alto QI.” A psicóloga Regina Helena Campos, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre e doutora em Educação, está entre os que dizem que o QI não é uma medida absoluta da inteligência. “O que ele [o teste] faz é apenas avaliar uma determinada característica em relação ao grupo. É uma medida em relação ao grupo, não é uma medida absoluta. A gente não tem uma medida absoluta do que é ser inteligente”, aponta Campos, presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff. Ela reconhece que os estudos da inteligência na Psicologia são um campo antigo, fértil e consolidado de pesquisa, mas diz que há aspectos da inteligência difíceis de serem quantificados. “Existe uma inteligência que é de grupo: quando você participa de uma atividade coletiva, de uma instituição de pesquisa, por exemplo, você troca informação e isso alimenta o outro”, diz a psicóloga. Carlos Eduardo Fonseca, vice-presidente da Mensa Brasil, defende que os testes de QI são um critério objetivo para selecionar associados, são adotados em diversos países que têm boas práticas de educação e são referendados cientificamente pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) no Brasil. Fonseca afirma que os testes de QI não exigem formação avançada, por exemplo em Cálculo ou Estatística. Pelo contrário: muitas vezes eles usam apenas imagens, não demandando nem a alfabetização, em alguns casos. A superdotação não é uma condição médica e nem um transtorno de neurodesenvolvimento e, sim, uma característica individual. A pedagoga Ada Cristina Toscanini, da Apahsd, explica que os cientistas ainda estudam a origem da superdotação, mas acredita-se que ela pode ser explicada em parte por fatores genéticos e em parte por fatores ambientais, como hábitos, criação e cultura. “Em escolas públicas, já ouvi professoras perguntando: você acha que vai achar superdotados aqui? E encontramos. A alta habilidade não escolhe raça, não escolhe família abastada, não escolhe nada.” Theo e Nicolle chamaram a atenção em suas escolas, e seus pais receberam da equipe pedagógica a orientação para fazer consulta com neuropsicólogos. A alta habilidade foi confirmada nos dois casos. Fonseca, da Mensa Brasil, diz que, quanto mais cedo a superdotação for detectada, melhor, porque estas pessoas podem ser logo acompanhadas de forma apropriada. Em caso de desconfiança de que uma criança ou adulto tenha superdotação, ele indica procurar psicólogos especializados ou neuropsicólogos, ou ainda a rede municipal de educação — segundo ele, a principal porta de entrada para a educação especial. No início de julho, ela, agora com 4 anos, tornou-se apresentadora do quadro “Pequenos Gênios”, do programa Domingão com Huck, na TV Globo. No quadro, crianças com altas habilidades, distribuídas em oito equipes, competem em desafios de Matemática, memória e raciocínio. A equipe vencedora ganhará um prêmio em dinheiro que pode chegar a R$ 50 mil. “Entendemos que o diagnóstico de altas habilidades pode ser benéfico em muitos casos, mas até este momento não sentimos que seja necessário para o caso da Alice”, diz a mãe de Alice, Morgana Secco, à BBC News Brasil. "Ter uma possível confirmação de altas habilidades não mudaria a nossa condução na educação dela e acarretaria um rótulo que pode ser pesado de carregar. Talvez quando ela entrar na escola e se sentirmos necessidade, procuraremos especialistas, mas por enquanto seguiremos assim." Toscanini avalia que, no Brasil, a busca por superdotados está chegando “muito tarde” e, muitas vezes, a superdotação é confundida com hiperatividade, déficit de atenção, distúrbio desafiador opositor e autismo Por outro lado, a psicóloga Regina Helena Campos avalia que a falta de identificação se deve em parte a problemas mais urgentes da educação no Brasil. "O problema, para a gente, é incluir todo mundo [primeiro]", diz. Os profissionais formados em psicologia são os únicos autorizados a fazer testes de inteligência no país. Tanto a Mensa quanto a Aspadh cobram pelos testes para detectar altas habilidades e por atividades de acompanhamento posteriores, após a detecção — por exemplo, encontros para estimular tais habilidades ou orientações sobre como lidar com a escola e os colegas. A inscrição no teste da Mensa custa R$ 98, e os membros pagam R$ 133 de anuidade. A Apahsd não divulgou os valores cobrados e diz que oferece isenções para crianças de baixa renda. Os testes da Mensa são apenas para maiores de 17 anos. Para crianças e adolescentes mais novos, a família deve realizar à parte testes com um psicológo e depois apresentar os resultados à organização. Fonseca afirma que o acompanhamento e os encontros organizados pela Mensa buscam acolher apropriadamente pessoas identificadas com alto QI e alerta que é preciso cuidado, no caso das crianças, com a pressão. “Pessoas com alto QI têm normalmente uma pressão grande por resultados, os pais enchem de expectativas”, alerta Fonseca, que foi identificado com um alto QI aos 35 anos. “Muita família que chega nesse universo da superdotação e do alto QI fica um pouco deslumbrada. A gente tem que ter cuidado com esse perfil. Vá ensinar o seu filho, dê muito conteúdo para ele, para estimular o potencial dele, mas fique atento às questões da criança, aos limites [da sobrecarga].” A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) inclui alunos com “altas habilidades ou superdotação” — sem definir ou diferenciar os dois termos — no grupo daqueles que têm direito à educação especial, assim como alunos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento. Nas escolas públicas e privadas, não é preciso fazer um teste de QI ou ser avaliado por especialistas para confirmar a superdotação e receber assistência especial — como a complementação de atividades e a aceleração no progresso das séries. A equipe pedagógica pode apontar as altas habilidades por conta própria, explica a psicóloga Cristina Delou, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), uma organização nacional sem fins lucrativos dedicada à defesa dos direitos dos superdotados. “Quando a escola tem consciência que o aluno tem competências acima da classe onde está e que ele está sofrendo, porque não tem desafio ali, a escola faz o movimento da aceleração de estudos. Mas não é toda escola que faz isso”, diz Delou. Uma alteração na LDB de 2015 previu a criação de um “cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdotação matriculados na educação básica e na educação superior”. Até hoje, o cadastro não saiu do papel. A BBC News Brasil procurou o Ministério da Educação para saber se há planos e prazos para implementar o cadastro nacional, mas a pasta não respondeu essa questão. O órgão afirmou apenas que, “no tocante às pessoas com altas habilidades/superdotação, esse Ministério torna público o seu compromisso em romper com a invisibilidade histórica, desse público, nas políticas de educação.” Carlos Eduardo Fonseca, da Mensa Brasil, diz que as políticas públicas para identificar superdotados estão defasadas. “Onde está o erro? Na minha opinião, começa na identificação. Não tem investigação, não tem estímulo a um pai, uma mãe, uma escola entender qual o volume da população de superdotados ali dentro de um município, dentro do Estado e do país", afirma Fonseca. Ele diz que outro exemplo disso é que faltam nas universidades programas para indivíduos com QI alto. “A gente não tem nada otimizado para eles. Nunca ouvi falar de ninguém que acelerou os estudos numa universidade. A educação brasileira não está preocupada em identificar as pessoas com alto QI.” Rafael Rocha diz que sofreu muito bullying na escola por ter uma inteligência acima da média. Isso é bastante comum, explicam especialistas, com pessoas que são superdotadas mas não foram identificadas como tais, porque há um desencaixe em relação à turma que pode gerar conflitos e estranhamento. “No começo, eu era rejeitado pelas outras crianças. Depois, eu me enturmei, e depois fui rejeitado de novo. Minha inteligência ficou travada por muitos anos por conta de bullying na infância”, diz Rocha. Das três pessoas que fizeram o teste de QI da Mensa, ele foi o único aprovado. Rocha diz que espera que, como membro da Mensa, algumas portas se abram, por exemplo, bolsas de estudos no exterior — onde ele diz que sempre quis morar, principalmente nos Estados Unidos ou na Europa: "É o meu sonho." Já Rafael Moreira não passou no teste e diz que ainda está pensando se vai tentar de novo. "Não fiquei chateado, levei de boa", diz Moreira. "As métricas sobre inteligência são um assunto novo para mim, mas eu acredito que é um indicativo de predisposição e não um fator qualitativo para comparar as pessoas.”
2023-07-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxwgr13dj2no
brasil
Onda de calor: Brasil pode sofrer com verão extremo como o Hemisfério Norte?
É provável que, enquanto você lê esta reportagem, quem está em países como Espanha, França, Alemanha, Polônia e Itália esteja procurando como aliviar o calor intenso. O momento atual é, em parte, explicado pela geografia: em latitudes médias e altas, um quadro chamado de anticiclone tende a se formar. Ele faz com que a circulação atmosférica — diferença de aquecimento entre as regiões equatoriais e polares — crie áreas de alta pressão, comprimindo e elevando a temperatura do ar. Essas áreas de alta pressão contribuem para o tempo seco e estável, que pode elevar as temperaturas e, consequentemente, a ondas de calor. Fim do Matérias recomendadas "Esse fenômeno também impede a formação de nuvens, fazendo com que os raios solares cheguem muito fortes. O calor faz com que o solo perca a umidade rapidamente, deixando todo o ambiente seco e quente", explica o climatologista Carlos Nobre, ex-presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Nobre aponta que este é um processo natural do verão no Hemisfério Norte — mas as mudanças climáticas têm feito com que essas ondas de calor se tornem mais frequentes e fortes. André Turbay, mestre e doutor em Gestão Urbana, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenador do ClimateLabs — programa da União Europeia para mitigação da crise climática, explica que o fenômeno vai além da Europa. "Também tivemos isso em outras áreas do Hemisfério Norte. Foi registrado um pico de 52,2ºC na China [no município de Sanbao, em Xinjiang] e de 51ºC nos Estados Unidos [em Corpus Christ, Texas]", diz Turbay. E no Brasil? Devemos nos preparar para um verão mais quente do que o normal e um calor tão intenso quanto o visto agora em outras partes do mundo? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que, apesar de o país não ter as mesmas características geográficas do Hemisfério Norte, não está a salvo de ondas de calor cada vez mais fortes e recordes de temperatura. No entanto, Nobre explica que esse tipo de fenômeno pode ter um impacto um pouco diferente aqui do que nas regiões mais ao norte do planeta justamente porque o calor é mais comum. "Uma diferença importante é que, pelas características tropicais do país, as populações estão um pouco mais acostumadas com temperaturas altas — principalmente os moradores de regiões semiáridas no Nordeste", aponta o climatologista. "As ondas de calor são sentidas de forma diferente do que na Europa." No Brasil, onde o clima favorece as temperaturas mais altas, as mudanças climáticas, que impactam o mundo todo e a degradação de diferentes biomas podem levar a verões cada vez mais quentes, diz Turbay. "A gente observa pelos dados de séries históricas que temos o aumento da temperatura no território brasileiro também, principalmente em áreas que já são reconhecidas como de calor intenso, como o Centro-Oeste", afirma o professor da PUCPR. O recorde de calor registrado no Brasil foi justamente na região citada por Turbay. Em novembro de 2020, os termômetros chegaram a 44,8ºC em Nova Maringá, no centro-norte de Mato Grosso, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia. O mesmo ano teve outras cidades com recordes de temperaturas: em 30 de setembro, Cuiabá (MT) alcançou 44ºC, e, em 1º de outubro, Água Clara (MS) chegou a 44,4ºC. "Coberturas verdes dando lugar a grandes áreas voltadas para a agricultura, a redução das áreas florestais na Amazônia e o ambiente do Cerrado, que já tem características de seca… Tudo isso contribui para a tendência da potencialização de eventos climáticos extremos", avalia Turbay. De abril a setembro, o Centro-Oeste, Sudeste e parte do Norte e Nordeste brasileiro experimentam uma temporada com pouca chuva. É durante o fim dessa estação seca que historicamente ocorrem os períodos de maior aquecimento nessas regiões. No sul do Brasil, por outro lado, os picos de calor acontecem durante o verão, quando a chuva é mais irregular e os dias, mais longos. “Em geral, durante o segundo semestre, ou seja, no final da primavera e verão, é esperado que a temperatura fique acima da média em grande parte do centro-sul do Brasil”, aponta Estael Sias, meteorologista do Metsul. "No entanto, no Sul, o El Niño pode trazer mais dias de chuva, o que tende a reduzir os períodos de calor mais persistentes para esta região — mas não exclui essa possibilidade, especialmente considerando o aquecimento global dos oceanos, que pode também contribuir para esses eventos extremos." A especialista aponta que os eventos extremos, como os observados na Europa, no entanto, têm o potencial de ocorrer em momentos diferentes do ano, sendo mais prováveis no Centro-Oeste entre setembro e novembro, e no Sul do Brasil durante o período de verão climático, que abrange dezembro a fevereiro. “Ainda é cedo para estipular temperaturas, mas modelos europeus preveem que podemos ter 2 ou 3 graus acima da média.” As temperaturas do planeta vêm se elevando nas últimas décadas. Especialistas apontam que esse fenômeno, conhecido como aquecimento global, é causado pelo acúmulo crescente de dióxido de carbono e outros gases causadores do efeito estufa na atmosfera, graças à queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento. Quanto maior a quantidade de dióxido de carbono e outros gases na atmosfera, pior o impacto para a vida na Terra. Esses gases são responsáveis por absorver a radiação solar refletida pela superfície do planeta, o que faz com que o calor fique retido na atmosfera. Assim, o mundo fica cada vez mais quente, acelerando mudanças climáticas e aumentando o risco de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor intensas vistas agora no Hemisfério Norte, além de incêndios naturais, monções e enchentes. Com as temperaturas aumentando em toda a Terra, há, segundo os especialistas, duas palavras de ordem: mitigação e adaptação. A mitigação envolve medidas a longo prazo para proteger o planeta. O objetivo do acordo é reduzir as emissões muito rapidamente, diminuindo-as em 50% até 2030, e alcançar emissões líquidas zeradas dos gases de efeito estufa antes da metade do século, seguido pela remoção significativa de dióxido de carbono da atmosfera na segunda metade do século. "No entanto, não estamos caminhando nessa direção, pois as emissões em 2022 foram as mais altas registradas desde o final do século 18, com a evolução industrial, principalmente crescendo muito nos últimos 50 a 60 anos em todo o mundo", avalia Nobre. "Portanto, a situação do clima é extremamente arriscada, mesmo que tenhamos sucesso total no acordo de Paris [acordo prévio que foi aperfeiçoado na COP26]", avalia Nobre. Já a adaptação, aponta Turbay, busca proteger a população mais vulnerável aos eventos climáticos extremos. "É o cenário que temos na América Latina, com uma população maior [em relação à Europa] em situação de vulnerabilidade", diz o professor. "Temos populações sofrendo por conta da seca, de deslizamentos de terra, chuvas… Além das próprias ondas de calor que devem se potencializar nos próximos verões. Por isso eu digo que é impossível dissociar o lado social do ambiental." Para que o país possa se proteger para os riscos dos eventos meteorológicos extremos, na avaliação do professor, além das mudanças globais, o Brasil requer uma política nacional forte e unificada. "A partir disso é que geramos políticas públicas mais locais com eficiência, para Estados e municípios."
2023-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0dkr9epnwdo
brasil
Três razões para o aumento de investimento externo na América Latina – e por que Brasil lidera o ranking
Em 2022, na contramão do que ocorreu no resto do mundo, o investimento estrangeiro direto na América Latina e no Caribe cresceu e atingiu um recorde histórico: US$ 224,579 bilhões (R$ 1,06 trilhão), 55,2% a mais que no ano anterior, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O montante surpreende também porque vai contra o chamado "flight to quality", um fenômeno que ocorre, por exemplo, quando o banco central americano aumenta as taxas de juros e os fluxos de capitais saem da América Latina e de outros países emergentes e "voam para destinos mais seguros", como os EUA. Ou seja, de países com risco para outros com menos. Mas, desta vez, os economistas foram surpreendidos por uma entrada inusitada de recursos nas principais economias latino-americanas, contrariando a tendência mundial. O peso desses fluxos no PIB regional também aumentou, chegando a 4%, ainda segundo a Cepal. O Brasil foi o país que mais se beneficiou, com 41% do total de investimentos estrangeiros que vieram para a América Latina, seguido por México, Colômbia e Chile. A Argentina também foi contemplada, apesar de sua economia ser uma das mais vulneráveis ​​do continente. Entenda, a seguir, os motivos de tudo isso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os US$ 224,579 bilhões que entraram na América Latina e no Caribe em 2022 equivalem ao PIB do Peru, a sexta maior economia da região. Para Jimena Blanco, analista-chefe de risco global da consultoria estratégica Verisk Maplecroft, a volatilidade global gerada pela invasão russa da Ucrânia beneficiou a América Latina em geral. "A região está distante do conflito – tanto geograficamente quanto diplomaticamente – e, ao mesmo tempo, oferece alternativas para cadeias de abastecimento que foram interrompidas ou quebradas como resultado da guerra." A analista destaca os investimentos no setor de energia e na indústria agroalimentar, tanto na produção de grãos quanto de fertilizantes. "Chile, Colômbia e Argentina são três das economias regionais que também se beneficiaram da corrida entre o Oriente e o Ocidente para garantir sua segurança energética, tanto agora como no futuro", diz Blanco. "Os recursos de petróleo e gás, a mineração (especialmente para a transição energética) e o potencial de geração de energia por meio de fontes renováveis ​​levaram ao aumento dos fluxos nos três casos", acrescenta. Nesse ponto, ele concorda com Marco Llinás, diretor da divisão de desenvolvimento produtivo e empresarial da Cepal, que destaca o papel da energia limpa e seu poder de atração de investimentos estrangeiros. "A transição energética representa uma grande oportunidade para a América Latina em termos de desenvolvimento produtivo", afirma. No final de 2021 e início de 2022, a América Latina teve uma normalização da atividade econômica após a fase mais aguda da pandemia de covid-19. Economistas têm repetido que muitos países da região se anteciparam à alta de juros nos Estados Unidos e chegaram a esse momento com suas economias em boas condições para enfrentar o choque que ela sempre acarreta. O aperto das condições financeiras na primeira economia do mundo provoca, normalmente, uma valorização do dólar e uma depreciação das moedas locais dos países de onde sai o capital. Mas "desta vez esse fenômeno não foi tão intenso como em outras ocasiões, porque antes de o Fed começar a aumentar as taxas de juros, os bancos centrais da América Latina já começaram a fazê-lo para controlar a inflação", explicou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Juan Carlos Martinez Lázaro, economista e professor da IE Business School de Madri. "E até hoje eles mantêm taxas de juros notavelmente mais altas que as do Fed, o que em países como Brasil e México desacelera a saída de capitais e mantém o real e, principalmente, o peso mexicano forte em relação ao dólar." "Além disso, o mercado prevê que o Fed poderia começar a baixar as taxas de juros no próximo ano, por isso muitos países da região mantêm sua atratividade para atrair investimentos estrangeiros, já que as expectativas de negócios neles permanecem intactas", acrescenta Martinez Lázaro. Os setores que mantêm sua atratividade estão relacionados aos serviços -especialmente o financeiro - que manteve sua liderança. "Também vale mencionar que foram reativadas as entradas nos setores relacionados a recursos naturais e manufaturados", disse o especialista da Cepal. Por várias razões, os lucros de muitas empresas estrangeiras não saíram da América Latina, em uma tendência observada em 2022 para "maximizar o capital". As subsidiárias de grandes empresas estrangeiras sediadas na região retinham os lucros em vez de repassá-los à matriz. "O choque da economia durante o pior momento da pandemia em 2020 fez com que muitas empresas retivessem seus lucros naquele ano, que foram investidos posteriormente em 2021, mas em maior proporção em 2022", diz Blanco. Algumas vantagens dessa prática são que se paga menos impostos sobre os lucros gerados e, ao mesmo tempo, se permite o acesso ao crédito de forma mais eficaz às subsidiárias que, de outra forma, teriam de acessá-lo a um preço consideravelmente mais elevado no mercado. O exemplo mais claro dessa prática é a Argentina. Devido a restrições de capital, as subsidiárias no país reinvestem os lucros em vez de repassá-los para a controladora. "Neste contexto, não é surpreendente que os EUA e a UE continuem sendo a fonte do maior investimento estrangeiro direto na América Latina e no Caribe. Mas também há um impacto das tensões geopolíticas e dos planos de estímulo de Washington para incentivar o 'nearshoring' na região", acrescenta o analista da Verisk Maplecroft. Com "nearshoring", o especialista se refere à transferência de parte da produção que é feita na China para a América Latina. "Na verdade, tanto o México quanto a Colômbia se beneficiaram dessa tendência, embora em proporções diferentes." "No primeiro caso, o USMCA (acordo comercial entre México, Estados Unidos e Canadá) e os elos das cadeias de valor integradas na sub-região desempenham um papel muito importante. No caso da Colômbia, o primeiro governo de esquerda do país não gerou uma ruptura dos fortes laços comerciais entre os setores privados de ambos os países." Brasil Marco Llinás, diretor da divisão de desenvolvimento produtivo e empresarial da Cepal acredita que "devemos tomar nota do crescimento extraordinário que ocorreu em particular no investimento estrangeiro direto no Brasil, que representa 41% do total de investimento estrangeiro direto na região" . O Brasil teve um aumento de 97% em sua receita de investimento estrangeiro direto, que foi principalmente para o setor de serviços, seguido por manufatura e recursos naturais. México Na indústria automotiva mexicana, foi importante o anúncio da Tesla de que construirá uma megafábrica em Nuevo León. O movimento confirma a liderança do país como maior fabricante de veículos elétricos das Américas, atraindo até US$ 5 bilhões. "Sempre insisto que a chegada desse investimento não foi repentina. Em Nuevo León está sendo trabalhada uma iniciativa de cluster no setor automotivo, que hoje é inclusive uma referência mundial. Há um trabalho articulado entre os setores público, privado e acadêmico, trabalhando para melhorar a produtividade e a competitividade desse setor", diz Llinás. Chile e Colômbia Nos casos do Chile e da Colômbia, Jimena Blanco acredita que os processos eleitorais no final de 2021 e início de 2022 também afetaram negativamente os fluxos de investimento estrangeiro direto em 2021. "Resolvidas as disputas eleitorais, os investidores têm maior clareza sobre as políticas a serem implementadas por cada governo, o que facilita a tomada de decisões e permite a retomada dos fluxos", destaca. Argentina "No caso da Argentina, a volatilidade inerente a uma crise econômica sustentada significa que os ativos argentinos estão com um preço muito baixo para investidores dispostos a enfrentar o alto risco macroeconômico do país", acrescenta a analista. O investimento estrangeiro cresceu muito em 2022 devido aos empréstimos entre empresas e ao reinvestimento dos lucros, devido a rígidos controles tributários que colocam muitos obstáculos à saída de capitais. Este investimento destinou-se fundamentalmente ao setor do lítio, hidrocarbonetos não convencionais e ao setor das tecnologias de informação. Este fechamento extraordinário de 2022 não parece que se repetirá este ano, mas a Cepal acredita que existem oportunidades muito novas para a América Latina em uma era de reconfiguração das cadeias globais de valor e relocalização geográfica da produção. Tudo como consequência de uma globalização em mudança.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5129nd8448o
brasil
Como Brasil se tornou 'berçário' de espiões russos
Victor Ferreira, José Assis, Daniel Campos. Em princípio, nomes absolutamente comuns no Brasil e que dificilmente chamariam atenção. Nos últimos meses, porém, eles passaram a fazer parte de uma investigação sobre espionagem internacional envolvendo polícias e serviços de inteligência de diferentes países, incluindo o Brasil. O russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, que usava o nome Victor Muller Ferreira, foi preso no Brasil em 2022. Desde então, os Estados Unidos - país onde o espião já morou sob a identidade brasileira falsa - e a Rússia pediram sua extradição. Em 17 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou a decisão de extraditá-lo para a Rússia, mas o espião continuará no Brasil enquanto a investigação ainda está em curso - algo previsto por lei no país. “Esclareço que o parecer técnico do Ministério da Justiça, acerca de dois pedidos de extradição, está embasado em Tratados e na Lei 13.445/2017. No momento, o citado cidadão permanecerá preso no Brasil”, informou o ministro da Justiça Flávio Dino em uma publicação nas redes sociais. Fim do Matérias recomendadas Casos como o de Cherkasov levantam uma pergunta: como os serviços de inteligência da Rússia teriam transformado o Brasil em uma espécie de "berçário" de espiões? De acordo com a polícia, a fachada promovida por uma identidade brasileira falsa e uma vida paralela no Brasil seria ideal para que esses agentes circulassem por espaços de poder não só no país, mas em todo mundo, sem despertar desconfiança nos serviços de inteligência da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo. Durante três meses, a BBC News Brasil conversou com investigadores, agentes de inteligência e oficiais de cartórios de diferentes Estados para explicar como e por que o Brasil foi escolhido pela Rússia como o ponto de partida de alguns dos agentes que fariam parte da elite da espionagem russa. Procurada, a Polícia Federal não se pronunciou sobre o caso. A BBC News Brasil enviou questionamentos à embaixada e ao consulado-geral da Rússia no Brasil, mas nenhuma resposta foi enviada. Desde que os casos começaram a ser revelados, o governo russo não se manifestou sobre o assunto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pelo menos três casos de supostos espiões russos sob identidades brasileiras foram detectados nos últimos meses. Até o momento, ainda não há evidências de que eles teriam espionado instituições ou autoridades brasileiras. Tanto os documentos produzidos pelo FBI, a polícia federal americana, quanto pela Polícia Federal brasileira aos quais a BBC News Brasil teve acesso apontam que eles usaram o país e suas identidades brasileiras como ponto de partida para suas atuações em países como os Estados Unidos, Irlanda e Noruega. O primeiro suposto espião "brasileiro" a vir à tona foi Sergey Vladimirovich Cherkasov, que usava a identidade brasileira de Victor Muller Ferreira. Em abril de 2022, ele foi detido em Amsterdã quando tentava entrar no país e mandado de volta ao Brasil. Ele havia sido aprovado em um programa de estágio no Tribunal Penal Internacional, em Haia. A corte é responsável pelo julgamento de crimes de guerra. Neste ano, ela emitiu uma ordem de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, por atos cometidos durante a invasão russa à Ucrânia. As investigações conduzidas por holandeses, americanos e brasileiros apontam que Cherkasov era um agente do GRU, um dos serviços de inteligência das Forças Armadas russas. Ele foi condenado a 15 anos de prisão no Brasil por uso de documento falso. No processo, ele admite ter se passado por brasileiro, mas nega ser um espião. Em uma audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), ele se recusou a responder quando foi perguntado sobre o tema. Contra Cherkasov pesa ainda um inquérito por lavagem de dinheiro. Poucos meses depois, em novembro, foi a vez de outro "brasileiro", José de Assis Giammaria, ser preso em Tromsø, na Noruega. As autoridades do países afirmam que ele se chama, na verdade, Mikhail Mikushin, e seria um coronel russo que fingia ser brasileiro e atuava como pesquisador na Universidade do Ártico da Noruega, país com quem a Rússia faz fronteira. O terceiro caso surgiu em 2023 depois que uma brasileira reportou o desaparecimento de seu namorado, o também "brasileiro" Gerhard Daniel Campos. Autoridades gregas, no entanto, alegam que Campos, na realidade, seria um espião russo cujo verdadeiro sobrenome é Shmyrev e que adotava uma identidade e personalidade brasileiras. Cherkasov, Mikhail Mikushin e Shmyrev são suspeitos de pertencer a um exemplo clássico de agente secreto infiltrado amplamente adotado pela Rússia desde que o país ainda fazia parte da União Soviética e celebrizado pela teledramaturgia, como no seriado The Americans. Nestas condições, os agentes não apenas mudam de nome: adotam nova nacionalidade, profissão, personalidade, hobbies e interesses e até mesmo criam laços familiares e de amizades ao longo de anos ou mesmo décadas. É comum que eles formem casais durante o treinamento. O processo de trabalhar no exterior por décadas sob disfarce pode causar imensa tensão e, portanto, ter um parceiro que conhece seu trabalho costuma ser visto como uma vantagem. Centenas de diplomatas russos foram expulsos desde a invasão da Ucrânia, muitos considerados espiões. As redes de espionagem foram atingidas. Inicialmente, isso parecia se concentrar principalmente nos espiões da GRU (como Cherkasov), mas nos últimos meses, os do SVR também parecem ter sido expostos. O que levou a isso não está claro. Mas pode significar que pode haver vários comprometimentos da inteligência russa em Moscou, seja na forma de países ocidentais penetrando em suas redes de comunicação ou de um agente humano. Nos casos detectados no Brasil, as investigações até o momento apontam como os supostos espiões teriam tentado se manter acima de qualquer suspeita. Cherkasov, por exemplo, chegou a fazer aulas de forró enquanto morou em São Paulo, de acordo com as investigações brasileiras. Além disso, segundo o FBI, Cherkasov chegou a pedir permissão aos seus superiores para se casar com uma mulher que não tinha treinamento como oficial de inteligência. "Eu disse que se eu não me casar neste ano, nós estaremos com certeza acabados. A mulher não pode suportar mais", teria afirmado Cherkasov em uma conversa encontrada pelos investigadores. Ainda de acordo com o FBI, o fato de que seria preciso Cherkasov pedir permissão para casar mostraria o nível de controle que seus superiores teriam sobre sua vida pessoal. Shmyrev, por sua vez, teria mantido um relacionamento com uma brasileira até pouco antes de desaparecer, em janeiro deste ano, segundo relatos publicados por veiculos como o jornal britânico The Guardian e confirmados pela BBC News Brasil com uma fonte brasileira que acompanha as investigações sobre o caso. No Rio de Janeiro, segundo os investigadores, ele seria conhecido por ter uma empresa de impressão em 3D que teria realizado serviços para órgãos públicos como os comandos do Exército, da Marinha e para o Ministério da Cultura. Segundo esses relatos, apesar do relacionamento com sua namorada brasileira, ele seria casado com outra suposta espiã russa chamada Irina Romanova, que viveria na Grécia sob o nome falso de Maria Tsalla e que também teria mantido um relacionamento amoroso no país. Ela também desapareceu, e as suspeitas são de que os dois teriam fugido juntos. O parceiro de "Maria" em Atenas aparentemente foi informado por ela que ela estava saindo por uma mensagem de texto. Acredita-se que Irina tenha sido chamada de volta pelo SVR por medo de ter sido identificada. Acredita-se que as autoridades gregas a estejam observando ou investigando. Ela partiu deixando sua loja e seu gato para trás o que pode indicar a pressa com que se desligou. Nos últimos anos, oficiais de inteligência acreditam que a GRU se tornou mais ativa - e agressiva. A GRU é suspeita de ter enviado uma equipe de agentes sob identidade falsa para matar Sergei Skripal em 2018, em Salisbury, no Reino Unido. A Rússia, no entanto, nega seu envolvimento neste caso. O principal trabalho dos agentes, no entanto, é coletar informações e realizar atividades de apoio às Forças Armadas da Rússia. Normalmente, quando são pegos, o governo russo trabalha para levá-los de volta à Rússia por meio de algum tipo de acordo - geralmente uma troca de espiões. Foi o que aconteceu com um grupo de russos presos nos EUA em 2010, que foram trocados por agentes detidos em prisões russas por espionagem. Quando Cherkasov e Mikushin foram descobertos, ainda em 2022, uma pergunta começou a intrigar investigadores do Brasil e dos Estados Unidos: por que a Rússia escolheu o Brasil como “berçário” de alguns dos seus espiões? Integrantes da comunidade de inteligência brasileira, investigadores e pessoas que conhecem o sistema de registro cartorial no Brasil pontuam três principais motivos: No caso de Cherkasov, sua certidão teria sido expedida em abril de 1989 em um cartório do Rio de Janeiro. Foi a partir dessa certidão, segundo as investigações, que teria conseguido obter carteira de identidade, carteira nacional de habilitação, passaporte e até o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). No caso de Mikushin, sua certidão de nascimento foi emitida em um cartório da cidade de Padre Bernardo, no interior de Goiás, município com pouco mais de 35 mil habitantes. Com o documento em mãos, ele teria conseguido se passar por um estudante universitário brasileiro e concluído a graduação e o mestrado em duas universidades canadenses diferentes antes de partir para sua última missão: atuar junto a um grupo de pesquisadores noruegueses que estudam ameaças e guerras híbridas. "Quando soubemos do caso, nós fomos aos livros do cartório e verificamos que a certidão é original e que ela está na ordem exata de emissão. Não conseguimos descobrir como é que ela foi parar nas mãos dessa pessoa e como ele conseguiu, depois, todos os outros documentos", disse à BBC News Brasil a oficial do cartório de registro civil de Padre Bernardo, Eloália Nunes Ferreira. Um integrante da comunidade de inteligência brasileiro disse à reportagem em caráter reservado que as certidões usadas pelos dois supostos espiões identificados até agora são, de fato, materialmente verdadeiras. Isso quer dizer que elas não foram forjadas, rasuradas ou submetidas a algum tipo de adulteração. Segundo essa fonte, isso indicaria que essas certidões foram, efetivamente, emitidas pelos cartórios ou tabelionatos brasileiros, mas ainda não se sabe exatamente como os russos conseguiram obtê-las. Para o presidente da Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), Gustavo Fiscarelli, teria sido relativamente fácil para os supostos espiões russos obterem documentos no sistema de documentação brasileiro. Primeiro porque até 2015, os cartórios do país não eram integrados - portanto, um não podia checar a base de dados do outro e buscar repetições de registros, inconsistências de nomes ou fraudes deliberadas. “Os registros (cartórios) não se comunicavam. Eles funcionavam como se fossem ilhas, sem. Não havia uma comunicação e uma centralidade das informações”, explica Fiscarelli. Segundo porque até 2017 as certidões de nascimento brasileiras eram muito facilmente forjadas, não contavam sequer com marca d’água ou outros mecanismos de segurança. A terceira fragilidade, segundo Fiscarelli, é o fato de que, no Brasil, é possível que adultos obtenham certidões de nascimento tardias, emitidas sem a chamada Declaração de Nascido Vivo, expedida pelos hospitais sempre que um bebê nasce na unidade de saúde. Para que esse tipo de certidão de nascimento seja emitido, basta que a pessoa vá ao cartório, preencha alguns formulários e apresente duas testemunhas. Fiscarelli diz que o registro tardio foi criado pensando nos brasileiros e brasileiras que, por questões sociais ou geográficas, não tiveram acesso ao registro civil quando de seu nascimento. Um recurso de cidadania, no entanto, pode ter se convertido em um dispositivo facilitador de crimes. “Pode ser que ele (espião) tenha tido ou não algum conluio com algum cartório e tenha obtido a certidão e, com ela, fez o resto da sua documentação. Ou ele fez o registro de forma tardia em fraude e a partir deste ele conseguiu uma certidão lícita e, a partir dali, fez todo o resto dos seus documentos”, diz Fiscarelli. Documentos encontrados em pendrives que pertenceriam a Cherkasov apontam como ele teria se aproximado da ex-funcionária de um cartório e como ela o teria ajudado a autenticar supostas cópias de documentos mesmo sem a apresentação dos originais - o que é irregular. Nos relatórios deixados por Cherkasov aos seus superiores, ele afirma ter dado um colar de US$ 400 para a ex-funcionária, diz um relatório da Polícia Federal. “Quando eu não tinha meu RG, ela conseguiu liberar a partir de uma foto e forneceu uma nota especial de autorização. Com essa autorização, eu consegui iniciar o processo de cidadania, obter uma nova carteira de habilitação e novas certidões de nascimento mesmo sem ter uma carteira de identidade”, diz um trecho de um dos relatórios deixados por Cherkasov, segundo a PF, em um pendrive localizado em uma área de mata em Cotia, na região metropolitana de São Paulo. Ainda segundo a PF, os relatórios conteriam informações sobre as atividades desempenhadas por Cherkasov no Brasil e fora do país e seriam recolhidos por seus "controladores", integrantes da rede de espionagem russa que daria suporte a ele no país. Outro fator que torna o sistema ainda mais vulnerável é não haver conexão entre as bases de dados dos cartórios e os registros biométricos mantidas pelos governo federal ou estaduais, como as do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou da Polícia Federal. O compartilhamento dessas bases entre cartórios e governo chegou a ser discutido durante a tramitação de uma medida provisória que criou o Serviço Eletrônico de Registros Públicos (Serp). O texto aprovado em lei, porém, prevê apenas a possibilidade de intersecção dessas bases. "Nós não conseguimos colocar o termo 'dever' na lei. Para ter acesso (às bases biométricas), eu preciso fazer termos individuais de cooperação com os órgãos estatais e, via de regra, eles não têm muito interesse em franquear esse acesso", explica Fiscarelli. Os outros dois fatores que teriam feito a Rússia escolher o Brasil como um dos seus “berçários” de espiões são o histórico de não envolvimento do Brasil em conflitos internacionais e o fato de que a população miscigenada do país faz com que seja relativamente fácil que um russo branco possa se passar por brasileiro. Nas últimas décadas, a diplomacia brasileira vem sendo marcada por uma tentativa de se manter distante de conflitos entre as grandes potências mundiais. Em 2022, por exemplo, quando a Rússia retomou sua invasão sobre o território ucraniano, o Brasil condenou a ação militar russa em votações na Organização das Nações Unidas (ONU), mas evitou se aproximar do conflito com o envio de armas à Ucrânia como outros países, especialmente os Estados Unidos e nações europeias, vêm fazendo. Mais recentemente, parte da comunidade internacional passou a questionar a posição brasileira depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações que foram interpretadas como favoráveis à Rússia. Em visita à China, Lula chegou a dizer que os Estados Unidos e a União Europeia estariam "incentivando" a guerra na Ucrânia ao enviar armas e outros suprimentos ao governo ucraniano. Nesta semana, porém, Lula mudou o tom de suas declarações e, durante uma viagem a Portugal, Lula disse que nunca "igualou" a Rússia com a Ucrânia e que o Brasil entende que o país governado por Vladimir Putin "errou". “Além de ser factível que alguém com um biotipo russo seja brasileiro, um passaporte brasileiro chama bem menos atenção dos serviços de inteligência do que um passaporte de uma pessoa de um país não alinhado, como por exemplo, à Rússia”, disse uma fonte familiarizada com o caso. O surgimento dos três casos de supostos espiões russos atuando sob identidades brasileiras movimentou as engrenagens da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência desde o ano passado. Com o auxílio do FBI, a Polícia Federal vem tentando descobrir mais detalhes sobre a atuação dos supostos espiões russos no Brasil. A cooperação jurídica internacional sobre o caso começou quando Cherkasov foi preso, em 2022. Desde então, a Rússia também se movimentou para que Cherkasov retornasse ao seu país. Em agosto de 2022, o governo russo pediu, formalmente, a extradição de Cherkasov alegando que ele seria, na verdade, um traficante de drogas procurado pelas autoridades do país. Ouvido no processo de extradição, Cherkasov levantou suspeitas entre as autoridades brasileiras afirmando que gostaria, sim, de se entregar aos russos apesar de sua pena como traficante de drogas na Rússia ser teoricamente mais longa que a pena dada pela Justiça brasileira por uso de documentos falsos. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos também formalizou uma acusação contra Cherkasov por atuar como agente estrangeiro em solo americano e fraudes financeiras e para emissão de vistos e, em seguida, pediu a extradição do russo. O processo de extradição de Cherkasov está sob a relatoria do ministro do STF Luiz Edson Fachin, que já autorizou a entrega de Cherkasov aos russos, mas somente após o fim das investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre sua atuação no Brasil. A PF também abriu um inquérito para apurar a situação do terceiro suposto espião russo que atuava sob o nome de Gerhard Daniel Campos. Fontes ligadas às investigações avaliam que o caso colocou as autoridades brasileiras diante de duas três questões ainda sem resposta: "Ninguém sabe quantos existiam, o que eles faziam e nem por quanto tempo eles atuavam por aqui", disse uma fonte da comunidade de inteligência do Brasil ouvida pela BBC News Brasil sob a condição de anonimato. Procurada, a Polícia Federal não se pronunciou sobre o caso. A BBC News Brasil também enviou questionados à embaixada e ao consulado-geral da Rússia no Brasil, mas nenhuma resposta foi enviada. Desde os que casos envolvendo supostos espiões com identidades brasileiras surgiram, o governo russo não fez nenhum pronunciamento sobre o episódio.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckk43wg6n31o
brasil
Como prostitutas foram confinadas à força no bairro do Bom Retiro em São Paulo
Eram duas ruas estreitas, que corriam paralelas, cheias de homens. Das portas e janelas das casas geminadas, através de venezianas, mulheres vestidas com quimonos coloridos esboçavam acenos e gestos lascivos aos passantes. "Os seus estranhos movimentos faziam-nos rir. De vez em quando deixavam entrever um pedaço de seio nu: 'Vem cá, benzinho, vem cá!", conta o escritor Eliezer Levin na obra Bom Retiro. Policiais, médicos, ambulantes, mascates, funcionários públicos, comerciantes do bairro, trabalhadores da indústria de confecções e de pequenas oficinas, além de "desocupados, bandidos e muitos ébrios" buscavam prazer e diversão nas ruas Itaboca e Aimorés. Foi ali, entre 1940 e 1953, que funcionou a zona de meretrício do Bom Retiro – a única instalada por decreto do Governo de São Paulo e que lá ficou por 13 anos. Fim do Matérias recomendadas "Essa medida trará inúmeros benefícios: não só para facilitar o policiamento, como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade públicas", argumentava à época Ademar de Barros, interventor do Estado de São Paulo, nomeado pelo então presidente Getulio Vargas. Com a prostituição confinada nas duas ruas, em uma tentativa de livrar as demais regiões do Centro de São Paulo da prática, a zona cresceu sem controle. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um levantamento de 1948, parte de estudo sobre o problema da sífilis na capital paulista, apontou que havia ali cerca de 150 casas de meretrício e mais de 1 mil prostitutas. "A maioria delas era de mulheres empobrecidas e migrantes brasileiras", relata o historiador Enio Rechtman, autor da tese de mestrado Itaboca, rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da zona de meretrício (1940 a 1953). "O centro da cidade na época era frequentado pela elite paulistana que não queria conviver com esses 'tipos perigosos'", completa o pesquisador, que ministra em agosto o curso "Bom Retiro 1938 – 1953: Meretrício confinado no bairro e imigrantes à procura de um lugar seguro", na Unibes Cultural. A zona do meretrício do Bom Retiro funcionou a poucas quadras de onde, oito décadas depois, o atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cogitou realocar a Cracolândia – área que reúne centenas de consumidores de crack no Centro da capital paulista e se tornou uma crise complexa, que abarca da saúde e situação social dos dependentes, a questões de segurança e impacto para o mercado imobiliário. Sob uma enxurrada de críticas e até protesto no bairro, o governo estadual voltou atrás na proposta, informando que "novas possibilidades para solucionar o problema da Cracolândia estão sendo estudadas e serão divulgadas em breve". Conheça a história da zona do meretrício "oficial" do Bom Retiro e de como sua memória foi apagada deliberadamente pelo poder público paulistano. Naquele final de década de 1930, o Brasil vivia sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, que durou de 1937 a 1945. À época, Vargas ainda flertava com o fascismo – o Brasil só romperia com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em 1942 – e nomeou Ademar de Barros como interventor para o Estado de São Paulo. "Getúlio Vargas e Ademar de Barros nutriam ideais eugenistas [teoria baseada na genética de que seria possível criar uma 'raça humana superior'] e higienistas", diz Rechtman, lembrando que este período foi marcado por reformas urbanas nos centros de várias capitais brasileiras. "Acontece que, após 1937, apesar do golpe do Estado Novo e instauração da ditadura getulista que impôs repressão e controle severo sobre costumes, a prostituição alastrava-se pelo centro da cidade [de São Paulo]", observa Edison Loureiro no artigo O passado triste do Bom Retiro. Na capital, a prostituição, que no início do século 20 se concentrava nas ruas Líbero Badaró e São João, no Centro da cidade, espalhou-se com o alargamento dessas vias e, em 1930, tomava a Rua Amador Bueno (atual Rua do Boticário), Ipiranga (ainda não alargada) e Timbiras, lembra o pesquisador. Como interventor em São Paulo, Ademar de Barros inaugurou a estação de trem atualmente chamada de Estação Júlio Prestes. "Ele queria fazer bonito naquela região, mas, no entorno dali, havia muita atividade de prostituição", lembra Rechtman. As "pensões alegres" ou "casas de diversões noturnas" também incomodavam na região da Rua dos Timbiras, em um momento em que, na Avenida São João, começava a se formar a Cinelândia Paulista, local de lazer familiar, com cinemas, cafés, confeitarias e salões de dança. "Quando São Paulo começa a se urbanizar, é o momento em que a preocupação com a prostituição cresce", observa Margareth Rago, autora de Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930. "A prostituição existia em outras épocas, mas não era um problema. Vira um problema para as elites quando se entende que ela seria uma má influência para as mulheres ricas e castas. E isso passa para a classe trabalhadora – também os operários vão olhar para suas esposas e dizer que 'mulher que é mulher é rainha do lar', vendo a prostituição como uma ameaça." Ademar de Barros, que era médico de formação e chegou a estudar na Alemanha e na França nos anos 1920, se inspirou então no chamado regulamentarismo francês para propor o confinamento da zona do meretrício em uma região específica da cidade. O regulamentarismo foi criado na França no início do século 19, explica Rago. "A ideia era que o Estado tinha que interferir no espaço urbano para definir onde deveriam ficar os marginais, os loucos, as prostitutas e as 'pessoas normais'. Então há uma questão de poder, de interferir no território", observa a historiadora. "Em relação à prostituição, os regulamentaristas defendem que o Estado deve dizer onde os bordéis devem ser construídos, que tamanho eles devem ter, quantas pessoas podem estar lá. Então o Estado deveria ter um controle absoluto das 'casas de tolerância'." Rago vê pontos de contato entre a iniciativa de Ademar de Barros e a ideia, já abandonada, de levar a Cracolândia para o Bom Retiro. "Em ambos os episódios parece haver um objetivo de se agradar certos setores da sociedade, higienizando uma região e jogando um problema para outra mais afastada", diz a historiadora. Procurado, o Governo de São Paulo afirma que "ampliou as ações de assistência e saúde aos dependentes químicos, além de ter intensificado as atividades de policiamento no centro da capital". Em relação ao Complexo Prates, local no Bom Retiro cogitado para a realocação da Cracolândia, o governo afirma que "a proposta está sendo revista após novas avaliações". No final de 1939, Ademar de Barros também escolheu o Bom Retiro para levar adiante seu plano de confinar as prostitutas em uma zona restrita – mais especificamente, as ruas Aimorés e Itaboca. Rechtman explica a motivação geográfica para a escolha de Ademar. "Havia o muro da estação de trem, que separava o Bom Retiro dos Campos Elíseos, um bairro de classe média alta no período, onde ficava o palácio do governo", diz o pesquisador. Ele lembra que, à época, o Bom Retiro era uma espécie de "periferia do Centro", em um momento em que São Paulo ainda era uma cidade pequena. "Aquela região era perfeita para fazer um confinamento, porque, fechando duas ruas, era possível fechar um quarteirão inteiro e controlar o fluxo de entrada e saída de pessoas." E assim foi feito, com a instalação de cancelas com guardas nos acessos às ruas, diz Rechtman. "Controlava-se o movimento através da delegacia de costumes, que mantinha acompanhamento médico e fazia a profilaxia dos frequentadores através de delegacia, posto médico e farmácias locais", conta o pesquisador. Alguns historiadores destacam, porém, uma fala atribuída a Ademar de Barros para justificar a escolha do local: "É produto vosso, fica para vocês", teria dito o interventor. É que o Bom Retiro, tradicional bairro de imigração judaica, tinha fama por abrigar uma onda tardia de imigração de "polacas", como ficaram conhecidas as mulheres judias traficadas do leste europeu para serem exploradas sexualmente nas Américas, explica Rechtman. Desde o final do século 19, as polacas saíram da Europa e chegaram em cidades como Nova York, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador, no final da década de 1920, houve um movimento de expulsão de cafetões de Buenos Aires, o que acabou levando algumas dessas mulheres a vir para São Paulo. Mais velhas e agora sozinhas, algumas acabaram se tornando elas mesmas cafetinas e donas de pensões no bairro. "Esse é um passado que nenhuma comunidade quer lembrar", diz Rechtman, que é ele mesmo de família judaica, nascido e criado no Bom Retiro. Ele observa, porém, que não se deve confundir a prostituição das polacas do final do século 19 e início do século 20, com a da zona de baixo meretrício do Bom Retiro nos anos 1940. Não só são momentos históricos distintos, como demografias diferentes – uma de mulheres europeias emigradas, outra em sua maioria de brasileiras de baixa renda, destaca o pesquisador. "Se a expansão da prostituição para os lados da Rua dos Timbiras foi lenta, a ocupação das duas ruas do Bom Retiro foi de supetão, forçada e violenta", relata o pesquisador Edison Loureiro. Ele resgata um episódio que revela a transferência forçada de mulheres ao local. "O Anhanguera Futebol Clube, um time de várzea, resolveu uma noite comemorar a vitória do campeonato na Rua Itaboca e conta seu memorialista da surpresa que [todos] tiveram quando, no meio da farra e fogos de artifício, já madrugada, chegaram os camburões com mulheres e as despejaram pelas ruas. Talvez mais de cinquenta." Segundo o pesquisador, os camburões da polícia simplesmente invadiam as pensões declaradas "irregulares" e, sem aviso prévio, embarcavam todos para a zona confinada. Uma vez transferidas ao novo local, as prostitutas não ficavam presas ali, mas muitas moravam nas pensões onde trabalhavam. "A Itaboca era para os menos favorecidos e a Aimorés, para os remediados", relata Rechtman. Durante o dia, a região tinha o movimento de ruas comuns, onde circulavam "leiteiros, padeiros, verdureiros, catadores de papel e vendedores dos mais variados", segundo depoimento de Nuno Santana, colhido pelo pesquisador Guido Fonseca, autor de História da prostituição em São Paulo. "Ao entardecer, no entanto, as mulheres iam [se] postando junto às portas e janelas como em mostruários, à espera do desfile de homens que aumentava com a chegada da noite." O que o interventor de São Paulo planejou como uma solução para o problema da prostituição nas ruas da cidade só mudou o problema de lugar. Com o passar dos anos e aumento da concentração de bares, bordéis e profissionais do sexo, também cresceu o descontentamento local com a zona de meretrício. No seu mestrado, Rechtman recupera uma carta de leitor publicada em 8 de março de 1946 no jornal O Estado de S. Paulo. Exaltado, o senhor Valdomiro Borges Couto, autor da carta, citava diversas escolas próximas à zona, ao argumentar em favor da repressão ao local. "Imagine Senhor Redator, que os alunos dessas escolas transitam diariamente por esta Zona, viajando de bonde ou ônibus em promiscuidade com homens e mulheres da pior espécie", bradou o leitor. "Par disso inúmeros 'bars' se abriram como satélites do 'bas fond' e as orgias e as brigas se sucedem diuturnamente, com assassinatos, roubos, ferimentos, etc. Não se compreende como a Polícia não tome medidas drásticas (...)". Respondendo ao clamor popular, em junho de 1953, o então prefeito Jânio Quadros suspendeu todos os alvarás dos bares nas ruas Itaboca, Ribeiro de Lima, José Paulino e Aimorés. A desocupação final veio em 30 de dezembro, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez anunciou uma ordem para extinção da zona de meretrício, às vésperas do Quarto Centenário de São Paulo, que seria comemorado em 1954 com grande pompa e circunstância. A desocupação, no entanto, não foi pacífica. No dia seguinte à ordem do governador, a polícia cercou o local, onde ainda trabalhavam pouco mais de 600 mulheres. "Logo as mulheres começam a sair à rua e protestar, algumas gritando e rasgando as roupas. Outras atiram móveis e utensílios pelas janelas”, relata Loureiro. “Na confusão generalizada uma prostituta chamada Antônia, moradora da Rua Aimorés, tem um colapso e morre no local. A notícia se espalha causando mais revolta." Furando o cerco policial, um grupo de prostitutas invadiu o comércio da Rua José Paulino e três delas foram gravemente feridas por um comerciante armado com uma barra de ferro. A confusão só acabou com a chegada do Batalhão de Choque e dos Bombeiros, que atacaram a multidão com jatos d'água e cassetetes. Com o fim da zona no Bom Retiro, a prostituição migrou para o bairro dos Campos Elíseos, em pensões nas Alamedas Cleveland, Glete e Nothman, dando início ao período da chamada "boca do lixo" como principal centro de baixo meretrício da cidade de São Paulo. Para além de acabar fisicamente com a zona de meretrício do Bom Retiro, o poder público paulistano se esforçou em apagar também a memória do local. Em 1957, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei mudando o nome da Rua Itaboca para Rua Professor Cesare Lombroso. Ao propor a mudança, o vereador autor do projeto argumentava que a Rua Itaboca era um local de "triste memória". A historiadora Margareth Rago observa a ironia na escolha do novo nome. Cesare Lombroso (1835-1909), um médico e criminologista italiano, acreditava haver características físicas específicas que tornavam determinadas pessoas propensas à criminalidade. Ele foi autor de livros como O homem criminoso (1871) e A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal (1893, em coautoria com Guglielmo Ferrero). "Para Lombroso e Ferrero, a prostituição não seria resultado de condição social, mas de distúrbios biológicos que poderiam ser identificados por traços como tamanho do queixo, posição dos olhos, construção das orelhas. A prostituta, mais do que o homem criminoso, era, nesta visão, uma degenerada", resume a sinopse brasileira da obra de Lombroso e Ferrero. Ao relacionar criminalidade e características físicas, a obra de Lombroso é muito criticada por ter dado um verniz científico a preconceitos, estereótipos e discriminação contra minorias. No entanto, observa Rago, a escolha do nome é tratada com tanta naturalidade, que existe hoje, onde um dia foi a antiga Rua Itaboca, um shopping center chamado Lombroso Fashion Mall. *Com a colaboração de Caroline Souza e da equipe de Jornalismo Visual da BBC.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c809r452n4yo
brasil
Pesquisadores buscam vestígios de um dos últimos 'navios negreiros' a atracar no Brasil
No final de 1852, dois anos depois de ser publicada a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico de escravizados ao Brasil, o capitão americano Nathaniel Gordon aportou na região de Angra dos Reis e fez desembarcarem rapidamente cerca de 500 pessoas africanas. Atento a rumores de que ele estaria sendo procurado pelo crime então chamado de "tráfico negreiro", decidiu atear fogo à própria embarcação. Disfarçado com roupas femininas, Gordon conseguiu fugir e voltar aos Estados Unidos. O barco, um brigue — pequeno navio de dois mastros, mais ágil — chamado Camargo, afundou na costa brasileira, levando junto provas materiais daqueles derradeiros anos da escravidão. O Camargo foi um dos últimos navios a conseguir transportar, clandestinamente, pessoas escravizadas ao país. Fim do Matérias recomendadas "Há pouquíssimas notícias de outros depois dele, e o Camargo é o último do qual temos evidências concretas", afirma à BBC News Brasil a historiadora Martha Abreu, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Era uma história praticamente desconhecida até décadas atrás. Mas graças a trabalhos liderados por acadêmicos como Abreu, o quebra-cabeças desse navio importante para a história brasileira vem sendo montado. E as peças vêm de três fontes. Primeiramente, os registros documentais. O caso Camargo acabou repercutindo na imprensa imperial da época e rendeu discussões até mesmo entre os políticos brasileiros. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Trata-se de um acontecimento importante e simbólico, que repercutiu bastante na mídia nacional, foi discutido na Câmara dos Deputados. Havia uma insinuação de que estava acontecendo uma permissividade de autoridades locais a esses desembarques após a lei Eusébio de Queirós", contextualiza à BBC News Brasil o arqueólogo e historiador Luis Felipe Santos, presidente do Instituto AfrOrigens. "Tem uma documentação escrita da polícia, de ministérios do império, de autoridades. Há reclamações do desembarque, alegando que o governo permitiu, que não houve uma perseguição correta [dos criminosos]. O caso gerou notícia", acrescenta a historiadora Abreu. A outra evidência são depoimentos colhidos na década de 2000 dos moradores do Quilombo Santa Rita do Bracuí, formado por descendentes de escravizados na região de Angra — atualmente, cerca de 130 famílias moram ali. "Estávamos fazendo pesquisa sobre as memórias da escravidão e visitamos uma série de quilombos", conta Abreu. "Sabíamos que o do Bracuí era importante. Quando entrevistamos os mais velhos, identificamos que havia na memória oral a narrativa de um barco que tinha sido afundado propositadamente muito tempo atrás." A historiadora ressalta que "eles não sabiam o nome" da embarcação, mas contavam que era uma história de um capitão que tinha afundado o navio "porque a polícia estava atrás dele". “E muitos africanos morreram, muitos se salvaram”, acrescenta ela. O terceiro ponto que faltava eram os vestígios materiais do tal naufrágio. E é essa a história que começa a ser desvendada pelos pesquisadores. Para a ciência brasileira, é um projeto ousado. A busca efetiva dos restos do brigue Camargo começou a ser desenhada há cerca de 15 anos. De lá para cá, esforços foram somados. A empreitada une o projeto Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil, da UFF; o Arquivo Nacional; o Slave Wrecks Project, uma rede internacional coordenada pelo Smithsonian Institution National Museum of African American History and Culture em conjunto com a George Washington University; o Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da Universidade Federal de Sergipe; e o Instituto AfrOrigens, que tem no projeto Camargo sua iniciativa pioneira. Depois de um mapeamento da região onde mais provavelmente o naufrágio ocorreu, a equipe realizou três mergulhos para esquadrinhar a área, próxima à foz do rio Bracuí, em Angra dos Reis. O primeiro mergulho ocorreu em novembro de 2022. Outro, em dezembro. O mais recente foi agora em julho. São expedições ainda preliminares, em que os arqueólogos submarinos utilizaram equipamentos como sonares para buscar vestígios de qualquer coisa que possa vir a ser um resto de navio afundado. "Fizemos levantamentos, usando tecnologias para a realização de imagens sonográficas subaquáticas que nos ajudaram no mapeamento dos locais com maior potencial de localização dos restos do navio", explica o arqueólogo Santos. "Na fase em que nos encontramos já desenvolvemos o levantamento e agora estamos processando os dados." Ele conta que duas áreas já delimitadas indicam "anomalias", ou seja, evidências do que podem ser os restos da embarcação. Mergulhos arqueológicos estão previstos para ocorrer, a partir de outubro, para confirmar isso — e documentar o estado em que o provável Camargo se encontra. "Vamos visualizar detalhes dessas estruturas para verificar se são de uma embarcação de meados do século 19. São assinaturas técnicas de tecnologias náuticas, de artefatos associados a contextos do naufrágio, isso que vai nos remeter ao mesmo tipo de embarcação que era o Camargo ou às pessoas que estavam a bordo do Camargo, sejam elas parte da tripulação, sejam os escravizados vindo de forma forçada", conta o arqueólogo. A historiadora Abreu vislumbra uma grande descoberta. "A gente já sabe que o Camargo afundou ali e os motivos que o levaram a afundar. Agora é achar a materialidade do Camargo, trazer seus vestígios à tona", comenta ela. "Isso é muito importante. É como se fosse uma prova, uma evidência material do crime. E a partir dali você pode criar um local de memória." Se o paradeiro do Camargo ainda era incerto, a participação dos Estados Unidos no tráfico de escravizados já tinha amplo conhecimento dentre os pesquisadores do tema. Sobretudo depois da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, traficantes americanos passaram a fazer o comércio clandestino em portos improvisados ao longo da costa brasileira, em uma triangulação entre América do Norte, África e América do Sul. Mas essa rota não começou apenas depois da proibição do comércio de escravizados. Estudos indicam que pelo menos 430 navios americanos realizaram mais de 500 viagens para vender africanos entre 1815 e 1850, na maioria para o Brasil e para Cuba. Historicamente, acredita-se que a última embarcação dos Estados Unidos a trazer africanos para o Brasil foi Mary E. Smith, navio que deixou Boston em 1855 com destino ao Espírito Santo, com 400 negros a bordo. Abordado por um vapor brasileiro, o navio foi escoltado até Salvador. Mais de 70 escravizados já estavam mortos, devido às péssimas condições sanitárias. Em 15 dias, pelo menos outros 100 também morreram. Os tripulantes do Mary E. Smith foram condenados a três anos de prisão porém, depois de apelarem ao consulado americano, receberam o perdão oficial do próprio imperador Dom Pedro II (1825-1891). Mas voltemos ao brigue Camargo. O traficante de escravos Nathaniel Gordon, em uma ação pirata, roubou o navio em 1851 na região da Califórnia. De lá, partiu para Moçambique, onde conseguiu forçar cerca de 500 negros a embarcarem. Seu destino era o Brasil, onde ele faria dinheiro fácil vendendo os homens aos fazendeiros do café. Tudo indica que ele já conhecia a rede de portos onde era possível transferir os africanos de forma clandestina. E seu destino foi justamente o Bracuí. Ali havia a propriedade da família Breves, da qual dois irmãos eram envolvidos na já ilegal receptação dos escravizados. "Era uma fazenda de recepção, um local de engorda", explica Abreu. Como os africanos costumavam chegar muito debilitados depois da precária viagem, era comum que eles passassem por um período de boa alimentação a fim de recuperar massa e força física, em um processo conhecido como "de engorda". "O Bracuí era um porto de chegada e negócios com o tráfico ilegal", sintetiza a pesquisadora. O desembarque era feito às pressas, principalmente porque tinha de ser realizado às escondidas. "Muitas pessoas, principalmente nas últimas décadas [de escravidão] morriam não somente por conta da travessia oceânica, mas no processo de desembarque, abrupto e rápido", pontua Santos. "Às vezes, de uma carga de 500 pessoas, 200 morriam no desembarque. Foi um capitalismo cruel que gerou milhares de mortes e, por muito tempo, esse crime foi camuflado." No caso do Camargo, registros documentais indicam que foi tudo bem orquestrado. Tão logo o brigue se aproximou da costa, diversas canoas foram ao encontro do barco e os africanos foram levados para a fazenda dos Breves. De lá, depois da tal "engorda", os escravizados eram levados para fazendas produtoras de café. Segundo Abreu, no caso dos trazidos pelo brigue Camargo, o destino foram as plantações da região de Bananal. O incêndio realizado por Gordon em seguida visava a eliminar os vestígios e conseguir fugir. Era uma prática que parecia valer a pena, já que a embarcação era roubada. Além disso, um escravizado adquirido na África pelo equivalente a 40 dólares costumava chegar ao Brasil valendo de 400 a 1200 dólares. Um lucro muito alto. A imprensa do império não deixou passar batido o caso. Em dezembro de 1852, o jornal Diário do Rio de Janeiro noticiou que um navio americano havia trazido escravizados a Bracuí. Uma tropa de cerca de 400 soldados chegou a ser enviada para patrulhar a região. As investigações levaram três meses mas apenas 38 africanos acabaram encontrados e resgatados. Gordon conseguiu escapar e retornar aos Estados Unidos, onde seguiu traficando escravizados. Sua criminosa carreira internacional, contudo, foi interrompida graças a um julgamento. Em 21 de fevereiro de 1862, condenado pela lei americana por envolvimento no comércio de escravizados, ele foi executado por enforcamento na cidade de Nova York. Para os pesquisadores, reconstituir o que foi o brigue Camargo é conseguir entender melhor três pontas do outrora chamado "tráfico negreiro": da venda, em Moçambique, à chegada, ao Brasil — passando pelo intermediário, americano. "É uma história que não pode ser esquecida, uma história que comprova a exploração e o abuso que foi o tráfico de africanos ao Brasil e como tudo isso gerou tanta riqueza", salienta Abreu. "Uma história que não pode ficar escondida." "O Camargo não foi um caso isolado de desembarque clandestino de africanos, mas estamos prestes a recuperar as provas materiais dos crimes que aconteceram naquela época", enfatiza Santos. "Nossa pesquisa vai identificar as provas do crime contra a humanidade [que foi a escravidão], a partir da materialidade localizada nos espaços aquáticos, dando visibilidade a toda uma estrutura de organização do tráfico escravagista que por muito tempo foi desconsiderado pela pesquisa acadêmica."
2023-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cndkrkw9pyjo
brasil
Caso Marielle: o que acontece após delação que levou a nova prisão de suspeito
O ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa foi transferido nesta terça-feira (25/07) para um presídio federal em Brasília, um dia depois de ter sido preso em uma ação conjunta da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ). A prisão do homem, conhecido como Suel, ocorreu após uma delação premiada de um dos investigados - Elcio Queiroz - no caso Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro (RJ) assassinada em 2018. Maxwell teria participado do planejamento do crime e de ações posteriores para esconder evidências, como o desmanche do carro utilizado no assassinato. Suel foi preso na primeira fase da operação Élpis, que teve como objetivo investigar os trágicos homicídios de Marielle e do motorista Anderson Gomes, bem como a tentativa de homicídio da assessora Fernanda Chaves. O ex-bombeiro já tinha sido preso em 2020 sob a acusação de obstruir investigações, sendo condenado no ano seguinte. Entretanto, até a nova prisão em meio à operação Élpis, ele cumpria a pena anterior em regime aberto. Fim do Matérias recomendadas Em sua delação, Queiroz apontou para uma outra pessoa envolvida no crime, além de Suel e Ronnie Lessa (preso preventivamente desde 2019 pela suspeita de ligação ao caso). Trata-se de Edimilson "Macalé", policial militar assassinado em novembro de 2021 na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ). O delator afirmou que foi Macalé quem apresentou a "missão" a Ronnie e quem ficou com a função de fazer a "contenção" e vigilância da ação para executar Marielle. Ronnie, por sua vez, foi apontado como o autor dos disparos que mataram a vereadora. Em um trecho da delação, disponibilizada pelo site Poder360, Queiroz afirmou: "[...] o EDIMILSON MACALÉ esteve presente em todas; inclusive foi através do EDIMILSON que trouxe... vamos dizer, esse trabalho pra eles; essa missão pra eles foi através do MACALÉ, que chegou até o RONNIE." De acordo com o blog da jornalista Natuza Nery no portal G1, há atualmente condições favoráveis para que um acordo de delação seja firmado com Ronnie Lessa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na operação desta segunda-feira, foram cumpridos um mandado de prisão preventiva e sete mandados de busca e apreensão na cidade do Rio e na região metropolitana. A operação põe novamente em evidência o peso político que o caso voltou a ganhar desde o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As investigações sobre o caso Marielle foram tratadas como uma das prioridades do Ministério da Justiça, comandado por Flávio Dino. O ministro afirmou que novas informações serão divulgadas nas próximas semanas. "Temos, hoje, a confirmação de passos dados anteriormente. Aspectos sobre os quais pairavam dúvidas estão esclarecidos, porque há convergência entre a narrativa do Elcio e outros aspectos que já estavam com a polícia. Ele narra a dinâmica, narra a participação dele e do Ronnie Lessa e aponta o Maxwell e outros como copartícipes", afirmou Dino em entrevista coletiva na segunda-feira, onde apontou que há elementos para que a investigação chegue a um novo patamar, "a identificação dos mandantes". O ministro acrescentou que "não restam dúvidas" quanto ao envolvimento de outras pessoas nos assassinatos de Marielle e Anderson e que as investigações têm revelado a conexão entre as milícias e o crime organizado do Rio com as mortes. Após a operação, Andrei Rodrigues, diretor-geral da Polícia Federal, disse em entrevista coletiva que o alvo da operação atuava na vigilância e no monitoramento de Marielle, além de ter apoiado logisticamente as pessoas apontadas como envolvidas diretamente na execução da parlamentar, Ronnie Lessa e Elcio Queiroz, com intenção de acobertá-los. "O que posso adiantar é que essa pessoa [Maxwell] participou de ações de acompanhamento e vigilância da vereadora e também do apoio logístico, com integração com os demais atores dessa cadeia criminosa percorrida. Então ele teve um papel importante nesse contexto, antes, durante e depois do caso, com a questão do carro. Para utilizar uma expressão popular, o carro foi 'picado', então houve a participação dele na ocultação desse carro", explicou Rodrigues. Anielle Franco, irmã de Marielle e atual ministra da Igualdade Racial, disse em seu perfil do Twitter que tem confiança nas investigações. "Falei agora por telefone com o ministro Flávio Dino e com o diretor-geral da Polícia Federal sobre as novidades do caso Marielle e Anderson. Reafirmo minha confiança na condução da investigação pela PF e repito a pergunta que faço há cinco anos: quem mandou matar Marielle e por quê?" Até agora, duas pessoas foram formalmente acusadas pelos homicídios da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Elcio Queiroz foram presos preventivamente em março de 2019 e aguardam julgamento pelo Tribunal do Júri, mas a data da sessão ainda não foi agendada. Lessa é suspeito de ter feito os disparos e Queiroz, de ter dirigido o carro usado na emboscada. Ambos negam as acusações. Lessa foi expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro no início do ano por "aludidas condutas" que "caracterizam desapreço ao serviço policial", segundo um boletim interno da PM. Além da prisão pela morte de Marielle, Lessa enfrentou em 2022 uma condenação por ocultação e comércio ilegal de armas - depois de 117 peças de fuzis terem sido apreendidas na casa de um amigo dele. A demora em realizar o julgamento de Lessa e Queiroz foi atribuída pelo juiz Gustavo Kalil - ao negar o pedido de liberdade dos suspeitos e renovar sua prisão preventiva em setembro do ano passado - aos sucessivos recursos apresentados pela defesa. Ao longo dos inquéritos, foram também levantadas suspeitas sobre o ex-vereador Cristiano Girão, ex-chefe de uma milícia que age na zona oeste do Rio. Ele foi preso em julho de 2021, acusado pelo MP-RJ de ser o mandante de um duplo homicídio que teria sido executado em 2014 por Ronnie Lessa, segundo o MP-RJ. Sua defesa nega o envolvimento no crime. Outro suspeito é Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou que Brazão “arquitetou o homicídio” e o denunciou à Justiça por supostamente obstruir as investigações do caso. O processo corre em sigilo. Girão e Brazão negam envolvimento na morte da vereadora. Maxwell Simões Corrêa é ex-sargento dos bombeiros e foi preso por atrapalhar investigações e por ter contribuído para acobertar criminosos envolvidos no crime. As investigações do MP do Rio e da PF apontam que, em 13 de março de 2019, um dia depois das prisões dos ex-policiais Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz, Maxwell teria ajudado a ocultar armas de fogo de uso restrito, além de objetos pessoais de Ronnie que estavam em um apartamento utilizado pelo ex-policial no bairro da Pechincha, no Rio de Janeiro. Na época, conforme noticiado pela Agência Brasil, Simone Sibilio, promotora do MP-RJ que respondia pela investigação do caso no órgão, afirmou que Corrêa foi proprietário do carro utilizado para ocultar um arsenal de armas de Ronnie Lessa, acusado de ter efetuado os disparos. "Ele [Maxwell Correa] responde pelo crime de obstrução da justiça. É por isso que ele foi investigado, denunciado e preso. Ele participou da ocultação de várias armas, que foram lançadas ao mar. Se a arma usada no crime estava lá, nós não sabemos afirmar. Mas o fato é que ele participou do crime de obstrução da justiça. Há várias provas no processo que está sob sigilo", afirmou Simone naquele momento. Em 2020, Maxwell foi preso sob acusação de tentar obstruir as apurações, e em 2021, condenado. Em nota oficial sobre a operação na época, a PF e o MP afirmaram que "a obstrução de Justiça praticada pelo denunciado, junto aos outros quatro denunciados, prejudicou de maneira considerável as investigações em curso e a ação penal". "A arma de fogo utilizada nos crimes ainda não foi localizada em razão das condutas criminosas perpetradas pelos cinco denunciados, cabendo ressaltar que Maxwell ostentava vínculo de amizade com os acusados dos crimes e com os denunciados Josinaldo Lucas Freitas e José Márcio Mantovano", ressaltou a nota. *Com reportagem de Rafael Barifouse
2023-07-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgked74xe3o
brasil
País do beach tennis? Por que número de praticantes quase triplicou no Brasil
Rio de Janeiro, João Pessoa, Natal, Maceió, Vitória e sua vizinha Vila Velha. Também Balneário Camboriú e Guarujá, além de Marechal Deodoro e Aquiraz. Essas são algumas das cidades brasileiras que sediaram ou vão sediar algum torneio do circuito internacional de beach tennis neste ano. São cidades turísticas e litorâneas que já mostram que o Brasil está entre os países onde esse esporte é mais popular. Agora, o que escancara que o Brasil virou o país do beach tennis são as cidades-sede do circuito da Federação Internacional de Tênis (ITF, na sigla em inglês) espalhadas de norte a sul do país, em todas as regiões brasileiras. Há capitais que não passam nem perto do mar, como São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Teresina e Palmas, e até a mais distante do litoral, Cuiabá. Fim do Matérias recomendadas E muitas outras cidades do interior do país, como Ribeirão Preto, Vinhedo e Sorocaba (SP) ou Maringá, Londrina e Foz do Iguaçu (PR) — e também em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, Goiás e Rio Grande do Norte. O beach tennis é praticado no Brasil inteiro, em cada vez mais lugares, e por um número crescente de pessoas. A Confederação Brasileira de Tênis (CBT) estima que o número de praticantes tenha quase triplicado nos últimos três anos, de 400 mil em 2021 para 1,1 milhão em 2023. A ilustradora Daphne Lambros, de 49 anos, começou a jogar em 2019 em Curitiba e não parou mais. “Sempre gostei de praia, adoro colocar o pé na areia, mesmo morando em Curitiba. Aqui, sempre tivemos que fazer atividades em espaços fechados, por causa do frio e da chuva. Mas o beach tennis tem um astral praiano. Ao pisar na areia, mesmo sendo uma quadra coberta, eu já me sinto na praia, é muito bom”, diz. O Brasil também tem vários atletas entre a elite do esporte e se prepara para sediar a terceira Copa do Mundo de beach tennis consecutiva. Rafael Westrupp, presidente da CBT, diz que mais de 65% dos torneios internacionais da modalidade hoje acontecem nas areias brasileiras e que isso acaba sendo uma vantagem para os atletas daqui. “Os brasileiros competem no país, ganham em dólar e gastam em reais”, resume Westrupp. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma vila italiana do século 3, em Enna, na Sicília, exibe afrescos com meninas em trajes semelhantes a biquínis jogando uma bola parecida com a de tênis em uma quadra. Elas usam só uma mão e parecem dar tapas na bola, como se os braços fossem raquetes. Essa seria a pré-história do beach tennis, segundo a Federação Italiana de Tênis (ITF). O esporte já não está mais moda no país que teria sido seu berço e que é a maior potência em competições. Segundo a ITF, o beach tennis surgiu nas praias italianas nos anos 1970, quando praticantes de tênis aproveitaram redes de vôlei instaladas na areia e começaram a bater uma bolinha. Logo surgiram os primeiros torneios e regras. Nos anos 1990, os atletas se profissionalizaram. Mas o esporte ainda estava confinado ao Mediterrâneo europeu. Ele cruzou o oceano só no século 21. Atualmente, é praticado em cerca de 50 países, Brasil entre eles. De acordo com a CBT, a prática chegou aqui pelo Rio de Janeiro, em 2008. Dois anos depois, Florianópolis sediou o primeiro torneio no país. Mas, ao longo de toda a década passada, o beach tennis foi um nicho muito específico. Aí veio a pandemia de covid-19, e a sua popularidade explodiu no Brasil. Nos tempos mais agudos de confinamento, muita gente procurou novas atividades, e o temor do contágio direcionou essa busca para práticas mais seguras contra a covid-19. “Por ser um esporte ao ar livre, com turmas, em geral, de no máximo seis pessoas, o beach tennis ganhou força no fim da pandemia”, diz Jassy Ribeiro, psicóloga do esporte da Federação Cearense de Tênis e Beach Tennis (FCTBT). “Além disso, ter os pés na areia, o céu e o vento, sem dúvida traz uma sensação de liberdade, de conexão com a natureza.” Para a psicóloga do esporte Gabriella Finatti, o contexto pandêmico pode ter dado o pontapé inicial, mas o que sustenta sua popularidade hoje é que ele cria “grupos de pertencimento”. “Os praticantes se unem para jogar, mas também para socializar. Além disso, o fato de a modalidade ser relativamente nova despertou a curiosidade das pessoas, permitindo que todos possam aprender do zero quase que ao mesmo tempo em todos os cantos do país. É um jogo relativamente fácil, com poucos elementos técnicos complexos”, explica. Rafael Westrupp, da CBT, diz que o número de praticantes vinha crescendo desde 2013, mas a pandemia fez isso explodir. “Houve um apelo exponencial em termos de número de praticantes, instalações esportivas e número de torneios internacionais oficiais realizados em território nacional”, explica. Ou seja, segundo ele, além da curiosidade e da demanda das pessoas, o beach tennis tem crescido no país também graças aos incentivos oficiais. Em 2022, foram 59 eventos, cada um com dois ou três torneios. Neste ano, são 62. O Brasil sediou a Copa do Mundo em 2021 e 2022, e em 2023 será sede novamente, em novembro. As prefeituras têm investido na criação de espaços: se antes reservar uma área para esportes de areia significava apenas vôlei e futevôlei, hoje as divisões são diferentes. A Secretaria de Esporte de Florianópolis informa que “grande parte” dos projetos para futuros espaços públicos, como praças e parques, contará com quadras de areia. Atualmente, a capital catarinense tem mais de 30 quadras desse tipo administradas pela prefeitura. O Rio de Janeiro regularizou as atividades em espaços públicos em 2021, mas, no ano passado, o beach tennis virou a ponta mais visível de uma disputa pelas praias. O aumento do espaço ocupado por quadras esportivas na orla gerou uma onda de descontentamento que foi parar no Ministério Público. Entidades como a organização não governamental Grupo Ação Ecológica alegam que a orla é uma área de proteção ambiental e que está havendo uma descaracterização da paisagem, um bem protegido por lei. A polêmica é mais uma evidência da popularização do esporte. Entre todas as atividades físicas e esportivas licenciadas, o beach tennis é a mais comum na capital fluminense, com 80 espaços regularizados. A Secretaria Municipal de Esportes defende que cada evento realizado na cidade, como a Copa do Mundo, atrai turistas e movimenta a economia. O Brasil já ganhou quatro Copas da modalidade, uma a menos do que a Itália, a maior vencedora, e conta atualmente com três atletas no top 10 masculino no mundo e outras três no top 10 feminino. O sucesso dos profissionais também tem impulsionado a competitividade entre amadores. “Mesmo em praticantes por lazer, existe um desejo grande de querer evoluir dentro do esporte, seja por objetivo pessoal ou para participar de mais competições”, diz a psicóloga Gabriella Finatti. Jassy Ribeiro, da federação cearense, também vê muitos amadores levando o esporte bem a sério. “Há atletas amadores que têm equipe multidisciplinar, com técnico, preparador físico, nutricionista, psicólogo do esporte. Eles têm investido na preparação com o desejo de estar cada vez mais completos para as competições.” Para encarar o esporte desse jeito, é preciso estar bem psicologicamente. “Uma grande parte dos atletas que atendo me procurou para aprender a lidar com a frustração. Muitos deles sentiam raiva descontrolada na hora do erro, outros se exigiam demais, colocando sobre si uma cobrança excessiva”, explica Ribeiro. Entre os estimados 1,1 milhão de praticantes, porém, é claro que muita gente está nessa mais pela saúde, bem-estar e diversão. “A areia traz uma percepção sensorial diferenciada ao nosso corpo, estimulando diferentes habilidades físicas e psicomotoras”, explica Finatti. “A pessoa desenvolve mais resistência física, tônus muscular e coordenação motora sem perceber, simplesmente estando focada na bola.” Daphne Lambros pratica o esporte na Vita Beach Sports, em Curitiba, escola de Marcela Vita, tricampeã mundial com a seleção brasileira. Mesmo no inverno, houve um aumento de 6% de alunos em relação a maio, segundo a academia. O número de professores quase dobrou desde 2019. Daphne conta que nunca foi muito de praticar esportes. Chegou a nadar e a fazer pilates, mas o beach tennis foi a feliz descoberta. “Às vezes era frustrante no começo, como aprender a andar de bicicleta. Mas logo vi os resultados, fiz amizades, isso me motivou. Era o momento em que eu deixava de ser uma trabalhadora, de ser uma mãe. Lá, sou apenas uma mulher se divertindo com as amigas e com as novas amigas que fiz no esporte.” Westrupp, da CBT, acredita que há espaço para mais popularização. Cerca de 7% da população brasileira joga futebol regularmente, o que dá por volta de 14 milhões de praticantes. O vôlei, o segundo esporte coletivo mais popular do país, corresponde a 0,3%, ou 610 mil pessoas. O tênis tradicional é praticado por 380 mil brasileiros. A pesquisa foi publicada no fim de 2019. O beach tennis não aparece nem entre as 15 atividades mais comuns. Mas se o levantamento levasse em consideração os números mais atuais da CBT, o beach tennis estaria no top 10. Até onde o esporte consegue crescer depende, necessariamente, das condições socioeconômicas do país. O beach tennis pode até não ser uma prática tão elitizada como o tênis, mas tem suas limitações. Se não tiver uma quadra pública perto de casa, o praticante precisa pagar pelo uso. Ainda há os gastos com as aulas e o material. Há raquetes que saem por menos de R$ 100, enquanto outras passam dos R$ 2 mil. Cada bola costuma sair por R$ 10 a R$ 20 cada. Daphne Lambros reconhece que o esporte tem um certo impacto em seu orçamento mensal. Mas não pensa em parar. “Para mim, vale o investimento. Não é pelas competições, estou pela energia, pelo estado de espírito. Torço para que vire esporte olímpico”, diz.
2023-07-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25gdz825eeo
brasil
Boric: 'Temos que ser ainda mais exigentes com governos de esquerda'
O presidente sobe as escadas em ritmo acelerado, um tanto acalorado, seguido por seus colaboradores mais próximos que conversam com ele, lhe entregam documentos e até tentam pentear suas madeixas rebeldes. São cinco e meia da tarde de terça-feira, 18 de julho. Foi uma semana intensa para Boric: depois de visitar a Espanha - e se encontrar lá com o rei Felipe 6°, o presidente Pedro Sánchez e empresários -, ele viajou para Bruxelas, onde participou da cúpula de líderes da União Europeia (UE) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em seguida, seguiu para a Suíça e para a França, onde realizou importantes reuniões com autoridades locais. Fim do Matérias recomendadas Em meio a essa agenda lotada, o dirigente chileno concedeu duas entrevistas à BBC, uma à repórter Fernanda Paulo, da BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol), que está publicada abaixo, e outra ao programa HardTalk, que será transmitido em inglês pela rede internacional do canal britânico. É importante ressaltar que a conversa com Boric aconteceu antes das desavenças entre ele e o presidente Lula, que discordam sobre os rumos da guerra na Ucrânia. O chileno pressionou a Celac a dar uma posição sobre o conflito, o que fez Lula chamá-lo de "jovem apressado". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC - Presidente, o senhor deixou o Chile em um momento muito difícil para o senhor e sua coalizão com o escândalo do Caso dos Acordos e as investigações de corrupção que afetam suas próprias fileiras. Você diria que este é o momento mais complexo da sua gestão? Gabriel Boric - É um momento complexo, sem dúvida. Mas a verdade é que não me sinto numa posição diferente daqueles que buscam o controle disso. Fico profundamente indignado com o fato de haver quem, independentemente do partido político ao qual esteja filiado ou do setor do qual se sinta parte, acredite que o Estado é um lugar de onde pode aproveitar, ainda mais no que diz respeito aos recursos de quem mais precisa. Portanto, a minha visão, e é o que transmiti a todo o governo como instrução, é que aqui tens de saber absolutamente tudo, ninguém está protegido, por mais próximo que esteja do partido. Se há pessoas que cometem crimes, que são confirmados pela Justiça, ou agem de forma contrária à ética e à moral que temos defendido, certamente terão que responder perante o povo. A diferença é que aqui não vamos fazer nenhum tipo de camaradagem ou perdão ou tentar amenizar a situação. BBC - No plano internacional, sua figura foi destacada pelas críticas explícitas que fez aos governos da Nicarágua, Venezuela, Cuba... Custou-lhe ser uma voz solitária nesses assuntos na América Latina? Boric - Não me sinto uma voz solitária quando me encontro com o ex-vice-presidente da Nicarágua Sandinista, Sergio Ramírez, quando converso com Gioconda Belli (escritora nicaraguense), com José Luis Rodríguez Zapatero (ex-primeiro-ministro da Espanha) e com outros líderes da esquerda latino-americana. Acho que temos muito mais coincidências do que diferenças. E nisso minha posição é relativamente simples: tem que ter o mesmo padrão de avaliação tanto contra governos do mesmo signo quanto contra governos de outro signo. Eu diria até que temos que ser mais exigentes com nós mesmos. E se há alguém que se incomoda com isso, bem, sinto muito, mas me parece que faz parte da coerência necessária construir um projeto de esquerda e uma alternativa de esquerda não só no Chile, mas no mundo. BBC - Essa "outra" esquerda, não vive um bom momento no mundo. Vê-se na Grécia, onde só conseguiu governar durante 4 anos, ou com Pedro Sánchez na Espanha, o que, se acreditarmos nas sondagens, é bastante complicado. Que esperança resta para a nova esquerda no mundo? Boric - A política é de ciclos longos. Certa vez, perguntaram a um político chinês o que ele achava da Revolução Francesa e ele respondeu algo como "É muito cedo para dizer". Acho que avaliar as flutuações políticas com base nas mudanças eleitorais a cada quatro anos é um tanto míope. As mudanças são mais tectônicas, mais estruturais. Dito isso, é verdade que a alternativa de esquerda, que também é referência para nosso setor político há muito tempo, como Syriza ou Podemos, não está no melhor momento em termos eleitorais. O que me convenci - e este passeio também me ajudou a ver isso - é que a união entre esquerda e centro-esquerda é necessária para poder defender a democracia e enfrentar a ascensão de grupos de ultradireita que estão fazendo sentido para importantes setores da população, que não necessariamente compartilham seus valores, mas estão preocupados ou assustados com as incertezas que o novo mundo em que vivemos traz. E aí temos que ser mais autocríticos, entregar melhores propostas, dar soluções mais rápidas e atender emergências. Tivemos que mudar a agenda e administrar nossas prioridades de maneira diferente porque a segurança é uma preocupação fundamental para os chilenos hoje. Não podemos ignorar isso. Se não pudermos responder a isso, é claro que eles não acreditarão em nós. BBC - A ideia de pensar que pode acabar passando a faixa presidencial para a extrema direita de José Antonio Kast te tira o sono? Boric - Preocupa-me a continuidade das instituições democráticas e o bem-estar do povo chileno. E, nesse sentido, acredito que as propostas da ultradireita em nosso país não são boas para os chilenos e, portanto, espero que possamos ter continuidade. Mas ainda é muito cedo para pensar nos resultados das eleições presidenciais. Faltam dois anos e meio, e estou confiante que o fruto do trabalho que temos vindo a desenvolver vai convencer as pessoas que esta tem sido uma boa alternativa. E se não, respeitarei a vontade democrática do povo, que é o que corresponde em uma democracia. BBC - Continuando no campo dos sonhos... Com o que você sonha quando seu governo acabar? Em termos pessoais, pergunto. Boric - Em termos pessoais… Adoraria ir a Magalhães, passar mais tempo no estreito, viver um dia num farol. Mas em termos mais coletivos, o que me comove é que quando acabar o governo possamos ter melhorado um pouco a confiança interpessoal em nosso país, para que as pessoas não fiquem desconfiando das outras o tempo todo. Que possamos nos ver e nos reconhecer como iguais e que colaborando somos melhores que competindo. E por sua vez, que as instituições, não só do Estado mas também da sociedade civil, são mais valorizadas pelos cidadãos. Isso, para além de políticas públicas pontuais, seria uma importante conquista de um governo que se considera progressista. BBC - Gostaria de repetir o prato, concorrer de novo, quando possível? Boric - Não é algo que está na minha cabeça. Eu não tinha planejado esta situação. Há pessoas que às vezes acreditam que nasceram com a estrela para fazer tal coisa. Não me sinto parte desse grupo. E obviamente vou acabar muito jovem, se tudo correr bem, aos 39 anos, mas não estou a pensar no que vou fazer a seguir em termos políticos. Colaborar com o meu partido, com o Chile, mas não no sentido de querer voltar a ser presidente, não é algo que eu esteja pensando. BBC - Talvez o maior desafio diplomático internacional no momento seja a guerra na Ucrânia. A maioria dos líderes latino-americanos, liderados, por exemplo, pelo presidente Lula no Brasil, pediu um cessar-fogo imediato. Mas parece que você está tomando uma posição diferente... Boric - Em primeiro lugar, reconheço a liderança de Lula. Ele é um líder forte com muita experiência, ele tem um grande histórico. Tenho admiração por ele. BBC - Mas você não concorda com ele... Boric - Concordo com ele que temos que falar de paz e não ficar só falando de guerra. Minha posição, ou a posição do Chile, é que não importa o que você pensa da Ucrânia ou o que você pensa de Volodymyr Zelensky. Não importa quais são suas opiniões sobre o Sr. Putin ou sobre a Rússia. A guerra não é culpa de ambas as partes. A Rússia invadiu um país livre e quer tomar parte de seu território. E isso viola o direito internacional. E devemos defender o direito internacional porque agora é a Ucrânia, mas amanhã pode ser nós, pode ser qualquer um. BBC - Há preocupação na União Europeia de que a China, e talvez também a Rússia, estejam fazendo investimentos significativos - e amigos - na América Latina, enquanto o Ocidente está perdendo terreno. Você acha que isso é verdade? Se for verdade. Isso não é uma suposição. Isso te preocupa? Você diz que seu principal princípio político é a defesa dos direitos humanos e da democracia... Boric - Acredito que todos os países devem concordar em defender os direitos humanos, porque esse é um avanço civilizatório que não devemos negar. BBC - E você acha que a China ou a Rússia estão em uma posição mais forte para defender os direitos humanos? Boric - Creio que não. E acho que nem os Estados Unidos nem alguns países latino-americanos, meu próprio país em algum momento. Há muitos países que violaram os direitos humanos. Mas a questão é que devemos defender a qualquer momento e em qualquer governo a importância da universalidade dos direitos humanos. Acredito firmemente que a democracia é a melhor maneira de resolver nossos problemas. Mas não acho que devemos, como o Ocidente, impor a democracia a países que têm outras culturas. Isso é algo que cada país e cada povo deve discutir e resolver por si. BBC - Preocupado com a extensão da influência da China? Boric - Quando você fala com os chineses, eles não falam sobre a diferença entre sua cultura e a americana. Eles falam sobre o que podem fazer para ter mais investimento, como podem ajudar nisso ou naquilo. E é claro que você não precisa ser ingênuo sobre isso, mas a China está tendo uma posição mais forte. E acho que é porque eles estão fazendo seu trabalho melhor. Os Estados Unidos têm uma dívida pesada com a América Latina há muitos anos. BBC - Você está se referindo a dívida histórica negativa? Boric - Sim. E não acho que seja culpa do Sr. Biden. Os Estados Unidos devem reconhecer que erraram em sua relação com a América Latina ao promover golpes militares. E acho que é por isso que esta cúpula é tão importante, porque acredito firmemente que na América Latina não devemos depender dos Estados Unidos ou da China. Devemos ser independentes. BBC - E como ser independente em um mundo cada vez mais polarizado? Boric - Bem, com países que pensam da mesma forma e compartilham valores. E compartilhamos valores com a Europa.
2023-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c843gdylp4eo
brasil
Copa do Mundo Feminina: 4 recordes em que as mulheres superam os homens
Embora tenham surgido há relativamente pouco tempo — a primeira foi realizada em 1991 na China — as copas do mundo de futebol feminino se tornaram um evento global. E através dos torneios, muitas futebolistas alcançaram recordes que entraram para a história do esporte. O domínio dos Estados Unidos (com quatro títulos mundiais), o desempenho forte das seleções asiáticas (o Japão foi campeão e vice; a China foi vice em 1999) e a eficácia europeia (liderada pelos países nórdicos e pelo Reino Unido), tornaram-se aspectos marcantes deste torneio. As comparações com o mundial masculino são inevitáveis, e em muitos aspectos o torneio feminino tem sido tão ou até mais épico que o masculino. Craques como Marta, Nadine Angerer ou Formiga superaram os recordes de jogadores masculinos. A seguir, confira quatro recordes das mulheres em Copas do mundo de futebol. Fim do Matérias recomendadas A brasileira Marta Vieira Silva é uma lenda do futebol. Por vários motivos: ela foi eleita por seis anos a melhor jogadora do planeta pela Fifa, é a artilheira da seleção e já participou de cinco Copas do Mundo. Mas talvez seu maior feito é que marcou 17 gols em Copas do Mundo, um recorde que nenhum outro jogador de futebol — homem ou mulher — alcançou. Alagoana de Dois Riachos, Marta supera jogadores como o alemão Miroslav Klose, que marcou 16 gols nas quatro Copas do Mundo que disputou. Quando o assunto é futebol brasileiro, ela também supera Ronaldo, que conseguiu fazer 15 gols nas quatro Copas do Mundo em que entrou em campo. Outra marca de Marta é a de ter sido a primeira futebolista a marcar em cinco Mundiais diferentes — recorde que foi igualado por Cristiano Ronaldo no Mundial do Catar, em 2022. Marta é parte da seleção que participará da Copa do Mundo na Austrália e Nova Zelândia, onde poderá ampliar ainda mais esse recorde. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Talvez o nome Miraildes Maciel Mota não diga muito... mas o apelido Formiga é reconhecido internacionalmente. A brasileira de 45 anos ainda joga pelo São Paulo. Ela conquistou vários recordes: é a jogadora mais velha a marcar em uma Copa do Mundo (tinha 37 anos quando o fez) e a mais velha a participar de uma Copa do Mundo (41 anos na França 2019). Mas Formiga detém outro recorde incrível: disputou sete Copas do Mundo, o que nenhum jogador do planeta conseguiu até agora. Esteve na Suécia 1995, EUA 1999 e 2003, China 2007, Alemanha 2011, Canadá 2015 e França 2019. Atrás dela estão a alemã Birgit Prinz e a americana Kristine Lilly, com cinco Copas cada. No entanto, a americana Lilly é recordista em número de partidas disputadas em Copa do Mundo: ela jogou um total de 30 partidas, contra 27 de Formiga e 25 do alemão Lothar Matthäus. No torneio masculino, Lionel Messi, Cristiano Ronaldo, Lothar Matthäus, Antonio Carbajal, Rafa Márquez e Andrés Guardado fizeram cinco participações em Copas do Mundo. Embora Formiga não tenha sido convocada para a Copa da Austrália e da Nova Zelândia, seu recorde provavelmente vai demorar para ser batido. Na manhã de 11 de junho de 2019, as jogadoras da seleção tailandesa estavam ansiosas: elas iriam disputar sua segunda Copa do Mundo da história e o primeiro rival nessa nova aventura era o todo-poderoso Estados Unidos. O que as tailandesas talvez não imaginassem era o resultado final: derrota por 13 a 0. Foi a maior vitória da história do torneio. E também o maior saldo de gols em todas as Copas do Mundo. Marcaram gols: Alex Morgan cinco vezes, Samantha Mewis e Rosel Lavelle duas vezes cada, e Megan Rapinoe, Lindsey Horan, Mallory Pugh e Carli Lloyd. Essa vitória já superou outro recorde das mulheres: o 11 a 0 que a Alemanha aplicou na Argentina na Copa do Mundo de 2007 na China. Entre os homens, os recordes são 10 a 1 da Hungria em El Salvador na Copa do Mundo de 1982 na Espanha e o 9 a 0 que a Iugoslávia aplicou no Zaire (atual República Democrática do Congo) na Alemanha em 1974. Ouve-se muito no futebol que a melhor defesa é um bom ataque. Mas defesas sólidas, que não tomam gols, também são parte importante do jogo. Na história dos campeonatos mundiais masculinos, nenhuma seleção que se sagrou campeã conseguiu ficar sem sofrer gols ao longo da competição. Os melhores números nesse quesito são os da França em 1998, da Itália em 2006 e da Espanha em 2010 — cujas seleções sofreram apenas dois gols nas Copas que acabaram vencendo. No entanto, entre as mulheres há uma seleção que se sagrou campeã mundial de futebol sem sofrer um único gol: a Alemanha, na China 2007. Isso teve muito a ver com a goleira do time, Nadine Angerer, que curiosamente conquistou a posição graças a uma lesão da goleira titular, poucos dias antes do início do torneio. Angerer conseguiu evitar que a invencibilidade da Alemanha fosse quebrada e ainda defendeu um pênalti de Marta na final, que determinou a vitória das alemãs.
2023-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c881kmjp99ro
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Copa do Mundo feminina: quais as chances do Brasil ser campeão, segundo estatísticas
O fato de um mesmo país ser citado por diferentes especialistas e estatísticas como favorito para vencer a Copa do Mundo não faz jus à expectativa gerada pelo Mundial Feminino a ser disputado na Nova Zelândia e na Austrália. Isso porque o torneio é tido como um dos mais disputados da história. É fato que os Estados Unidos conquistaram quatro títulos nas oito edições que disputou, que venceram os dois últimos mundiais e que partem como o principal candidato a erguer o troféu na final deste ano, marcada para 20 de agosto. No entanto, no final de 2022, a seleção do país sofreu três derrotas consecutivas frente a três seleções europeias (Inglaterra, Espanha e Alemanha) e isso deu esperança aos seus rivais para quebrarem a hegemonia americana no Mundial. "No ano passado, foi disputada a Eurocopa mais equilibrada da história e esta Copa do Mundo será da mesma maneira", disse Willie Kirk, técnico do time feminino do Leicester, da primeira divisão do futebol inglês. A BBC News Mundo, junto com a BBC Sport, consultou vários especialistas, ex-jogadores e estatísticas para saber qual é a seleção favorita para ganhar a Copa do Mundo, além de saber quais são as chances das seleções latino-americanas. Fim do Matérias recomendadas Com base nos números e projeções da empresa de análise de dados Gracenote, os Estados Unidos aparecem como o candidato com mais chances de defender com sucesso seu título mundial. A metodologia é baseada na classificação estabelecida pela Fifa para prever os resultados de cada partida, com cerca de um milhão de simulações de todo o torneio. "É difícil ver além dos Estados Unidos", admite a atacante da Irlanda do Norte Simone Magill. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Elas têm uma trajetória de sucesso e o histórico fala por si. A mentalidade delas faz uma grande diferença e são uma máquina de vencer. É difícil ver isso mudando nesta temporada", acrescentou. Mas uma das lendas do futebol inglês, Kelly Smith, considera que "elas tiveram alguns contratempos recentemente em termos de resultados e não têm os mesmos grandes nomes na escalação". A jornalista venezuelana da ESPN Deportes Geraldine Carrasquero concorda que a renovação do elenco pode ser um fator decisivo. "É impressionante, mas tem 14 novas jogadoras que nunca estiveram na Copa do Mundo e temos que ver como elas respondem", disse ele. Segundo o Gracenote, a seleção norte-americana tem 18% de chances de conquistar o pentacampeonato mundial, mas isso mostra que o favoritismo está longe de ser avassalador. Alemanha e Suécia aparecem como seus principais rivais, com 11% de chance, embora as nórdicas apareçam do mesmo lado da tabela dos EUA e teriam que enfrentar as americanas nas semifinais. Em seguida, vem a França com 9%, logo à frente da campeã europeia Inglaterra, que, junto com a Espanha e a anfitriã Austrália, têm 8% de chance. O melhor time latino-americano da lista é o Brasil, vice-campeão mundial em 2007, com 7%. Apesar de estar com o oitavo melhor percentual nas estatísticas, o otimismo no Brasil é bastante moderado. “É um time que está passando por uma mudança geracional”, disse Renata Mendonça, co-fundadora do site especializado em esportes femininos Dibradoras e comentarista da SportTV, da Rede Globo. "Se chegar às semifinais será um sucesso, mas tudo indica que terminará em segundo lugar do seu grupo e nas oitavas-de-final terá de enfrentar a Alemanha. Não vai ser nada fácil", explicou Mendonça. Aliás, o Gracenote dá 41% de chance às brasileiras em um possível duelo contra a seleção alemã. "Por que não? Elas têm Marta e muitas jogadoras jovens que estão indo bem na Europa e no campeonato dos Estados Unidos", respondeu Geraldine Carrasquero quando perguntada se o Brasil poderia vencer a Copa do Mundo. "Com (a técnica) Pia Sundhage no comando, elas podem surpreender. Elas já mostraram na Finalíssima contra a Inglaterra que estavam bastante equilibradas e empataram fisicamente", acrescentou. A verdade é que, com a presença da técnica sueca no banco, há muita expectativa sobre o que o Brasil pode fazer na Copa do Mundo. "Estou ansiosa para ver como elas jogam", reconheceu a americana Kristine Kelly, que detém o recorde de partidas disputadas em uma Copa do Mundo. "Sempre acreditei que, se tivessem uma formação e treinamento melhores, seriam uma equipe realmente temível", alertou. A América Latina terá seu maior número de representantes em uma Copa do Mundo, graças ao aumento do total de equipes participantes — de 24 para 32. Mas também devido ao progressivo desenvolvimento do futebol feminino em alguns países da região. Argentina, Colômbia e Costa Rica já sabem o que é jogar uma Copa do Mundo, enquanto Haiti e Panamá farão sua estreia no torneio. Todas com objetivos muito diversos, mas nem por isso menos ambiciosos. "Minha expectativa para as seleções sul-americanas é que consigam derrubar seus respectivos tetos de vidro", disse Carrasquero. No caso da Argentina, por exemplo, seria vencer seu primeiro jogo. "A seleção está em um processo que começou há dois anos com a chegada de Germán Portanova como técnico", explicou Angela Lerena, comentarista do TNT Sport e da TV Pública. "A Argentina tinha uma atitude mais defensiva, sabendo que era inferior à maioria das seleções que estão na Copa do Mundo." "Mas agora disseram que não, que vão jogar como a Argentina joga, tentar jogar no campo rival, pressionar alto, ter um protagonismo e atacar com muita gente", acrescentou. Para Lerena, o mais importante é que elas busquem uma identidade futebolística além do resultado. "Gosto da ideia de que o futuro está sendo construído. Se uma vitória for conquistada nesta Copa do Mundo, é isso, a história foi feita", concluiu. A Colômbia, por sua vez, terá a difícil tarefa de tentar igualar o que conquistou na Copa do Mundo no Canadá, oito anos atrás, quando surpreendentemente venceu a França e se classificou para as oitavas de final, quando perdeu para os Estados Unidos. "Acho que pode passar para a próxima fase", disse uma confiante Carrasquero, da ESPN Deportes. "Para isso, vai depender do que ela sabe fazer com a bola e de suas habilidosas jogadoras como Linda Caicedo, Catalina Usme, Mayra Ramírez e Leicy Santos." Quanto às representantes da América Central e do Caribe, Carrasquero acredita que elas se beneficiam por jogar em uma confederação "onde estão duas das melhores seleções do mundo, Canadá, campeão olímpico, e Estados Unidos, campeão mundial". "Isso faz com que o resto tenha que subir de nível porque senão elas resolvem com muita facilidade. Um dos exemplos é que Panamá e Haiti estão lá pela primeira vez e a Costa Rica se mantém." As estatísticas de Gracenote dão a times latino-americanos menos de 1% de chances de se tornarem campeãs, mas, por enquanto, não se trata de lutar pelo título, mas sim de alcançar seus próprios marcos. *Com entrevistas de Laura García e BBC Sport.
2023-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp97remzpwno
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Santos Dumont, 150 anos: as aventuras (e desventuras) do 'pai da aviação'
Quando criança, a brincadeira favorita de Alberto Santos Dumont era “Passarinho voa?”. Numa roda de amigos, alguém pergunta: “Passarinho voa?”, e todos respondem: “Sim!”. E o jogo continua: “Abelha voa?”, “Galinha voa?”, e assim por diante. Lá pelas tantas, para confundir, alguém indaga: “Cachorro voa?”. Se alguém erra a resposta, paga uma prenda. Certo dia, ao ouvir “Homem voa?”, Santos Dumont cravou: “Sim!”, para espanto de todos. Logo, sob protestos e vaias, quiseram que ele oferecesse a palma da mão em sacrifício para levar uns tapas dos amigos. Diante da zombaria do grupo, provocou: “Nunca leram Júlio Verne?”, quis saber o leitor precoce de clássicos da literatura universal, como Cinco Semanas num Balão, Viagem ao Centro da Terra e Vinte Mil Léguas Submarinas. Fim do Matérias recomendadas Quando completou 18 anos, o futuro “pai da aviação” trocou São Paulo por Paris. Na capital francesa, sonhava voar como os pássaros. Para realizar seu sonho, estudou, entre outras disciplinas, física, eletricidade e mecânica, e construiu, em pouco mais de dez anos, 22 máquinas voadoras, como balões, dirigíveis e aeroplanos. Em 1898, ele deu asas à primeira de suas invenções: Brasil, um balão inflado a hidrogênio, feito de seda japonesa e com seis metros de diâmetro. No dia 4 de julho de 1898, até ganhou altitude, mas não voou. Motivo: falta de vento. Seu segundo balão, batizado de América, já podia transportar alguns passageiros. Ganhou o primeiro lugar em uma competição do Aeroclube da França. Ao contrário do modelo anterior, permaneceu no ar por quase 24 horas. “Até a virada do século 20, o balonismo era o único meio de transporte aéreo que existia. O problema é que, dentro de um balão, você só controla a altitude”, explica o cineasta Fernando Acquarone, diretor da minissérie Santos Dumont, da HBO. “Foi o primeiro homem a conseguir voar em qualquer direção, sem ficar à mercê dos ventos. Aos 28 anos, ele conseguiu realizar um dos desejos mais antigos da humanidade”. Ainda em 1898, Santos Dumont construiu seu primeiro dirigível – modelo que, como o nome já diz, pode ser dirigido ou controlado. Caiu no segundo voo. Não desistiu e deu vida ao dirigível nº 2. Caiu na primeira tentativa. No ano seguinte, criou o de nº 3. A cada novo invento, dava um número diferente. E realizava pequenos ajustes. À época, cansado de encher o balão de hidrogênio toda vez que precisava testar seu dirigível, criou o primeiro hangar – mais do que um galpão para abrigar suas geringonças infladas, o local funcionava como oficina mecânica. Com o dirigível de nº 5, chegou a contornar a Torre Eiffel, mas, no dia 8 de agosto de 1901, se chocou contra o Hotel Trocadero e ficou dependurado em seu cesto de vime a 20 metros de altura. Foi salvo pelos bombeiros. Com o dirigível de nº 6, tentou atravessar o Mediterrâneo, mas não conseguiu. Por pouco, não morreu afogado. “Ao longo de sua carreira, Santos Dumont sofreu incontáveis acidentes. O importante é que ele sabia como cair. Tinha uma agilidade incrível e quase não se machucava. Na pior das hipóteses, ficava atordoado e nada mais”, afirma o físico Henrique Lins de Barros, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e autor de Santos Dumont – O Homem Voa! (Contraponto). No dia 19 de outubro de 1901, realizou sua primeira façanha: decolou de Saint Cloud, nos arredores de Paris, deu a volta na Torre Eiffel (ou seja, contra e a favor do vento) e retornou ao ponto de partida em menos de 30 minutos. Conquistou o Prêmio Deutsch e recebeu 100 mil francos. Como não precisava do dinheiro – era filho de um rico fazendeiro conhecido como “Rei do Café” –, doou o prêmio aos mecânicos de sua oficina e aos pobres de Paris. Recebeu telegrama de congratulações de outro gênio inventivo: o norte-americano Thomas Edison (1847-1931). “Bandeirante dos ares!”, elogiou o “pai” da lâmpada elétrica. E de Pedro, um amigo de infância: “Você se lembra, caro Alberto, do tempo em que brincávamos de “Passarinho voa?”. Você tinha razão em levantar o dedo, pois acaba de demonstrá-lo voando por cima da torre Eiffel”. Quando não estava em seu hangar construindo novas aeronaves ou consertando as antigas, Santos Dumont gostava de se aventurar em voos noturnos, descer no meio de uma corrida de cavalos ou, então, deixar uma mulher, Aída de Acosta (1884-1962), pilotar, sozinha, seu dirigível. Reza a lenda que a socialite de origem cubana era uma paixão platônica do piloto brasileiro, que nunca se casou ou teve filhos. “Santos Dumont tirava onda”, brinca o cineasta Estevão Ciavatta, de Mais Leve Que o Ar – A Infância de Alberto Santos Dumont (Matrix). “Em 1903, durante o aniversário da Queda da Bastilha, sobrevoou um desfile militar em plena Champs-Élysées. Se Paris era a capital do mundo, Santos Dumont era o homem mais famoso do mundo”. Naquele ano, criou o dirigível de nº 9, que ganhou o apelido de Baladeuse. Seu volante foi construído com roda de bicicleta. Pequeno e fácil de manobrar, Santos Dumont usava o primeiro carro aéreo do mundo para passear. “Santos Dumont tinha mesa reservada em qualquer restaurante de Paris. Amarrava o balão a uma árvore, descia por uma escada de corda e, terminado o jantar, voltava para casa. A cidade parava para vê-lo passar. Era um playboy sui generis”, define o jornalista e escritor Márcio Souza, autor de O Brasileiro Voador (Record). Os inventos seguintes, de nº 10, 11 e 12, podem ser considerados protótipos de ônibus-voador (com capacidade para dez passageiros), hidroavião e helicóptero, respectivamente. O de nº 13, construído em 1905, foi destruído durante uma tempestade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre uma invenção e outra, Santos Dumont escreveu, em francês, o primeiro volume de sua autobiografia, Dans L’air (1904) – lançado no Brasil sob o título de Os Meus Balões (1938). Quatorze anos depois, publicou o segundo volume, O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos (1918). Segundo ocupante da cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Letras (ABL), Santos Dumont foi eleito imortal em 4 de junho de 1931, para ocupar o lugar de Graça Aranha, mas não chegou a tomar posse. Do outro lado do Atlântico, os irmãos Wilbur (1867-1912) e Orville Wright (1871-1948) também quebravam a cabeça para construir uma aeronave mais pesada que o ar. No dia 17 de dezembro de 1903, os dois levantaram voo, a bordo do aeroplano Flyer, na praia de Kitty Hawk, na Carolina do Norte. “Quando os Wright convocaram a imprensa para provar que o aparelho deles voava, só conseguiram levantar voo com ajuda de uma catapulta”, observa o jornalista Fernando Jorge, de As Lutas, a Glória e o Martírio de Santos Dumont (Harper Collins). “É como se colocasse uma pedra em um bodoque, puxasse o elástico e a jogasse longe”. Em 1906, Santos Dumont voltou a escrever seu nome na história da aviação ao criar o 14-Bis. Ao contrário dos modelos anteriores, o mais recente não era um dirigível, mas um aeroplano do tipo “canard” (“pato”, em francês), que tem o leme na parte da frente e as asas maiores na parte de trás. Para construir a aeronave, em pouco mais de um mês, usou papel de seda, hastes de bambu, pedaços de madeira e algumas peças de metal, como um motor de lancha. O 14-Bis tinha 10 metros de comprimento, 4,81 de altura e 11,5 de envergadura. E pesava 240 quilos. Os franceses apelidaram-no de “Oiseau de proie” (“Ave de rapina”). Com sua mais nova invenção, Santos Dumont fez dois voos memoráveis: no dia 23 de outubro, quando, a três metros do chão, percorreu 60 metros em sete segundos, e no dia 12 de novembro, quando, a seis metros de altura, percorreu uma distância três vezes maior, de 220 metros, ambos no Campo de Bagatelle, em Paris. Entre os milhares de curiosos que assistiram ao voo do dia 12, membros da Federação Aeronáutica Internacional (FAI). É, portanto, o primeiro voo registrado e reconhecido da história da aviação. Santos Dumont não parou ali. Até 1909, construiu mais oito modelos. Aos quatro últimos, deu o nome de Demoiselle (“donzela”), o primeiro ultraleve da história. O sucessor do 14-Bis chegou a alcançar a velocidade de 96 quilômetros por hora. No dia 8 de abril de 1909, percorreu 2,5 mil metros a 20 metros de altura. Santos Dumont não patenteou suas invenções. Colocou à disposição de quem quisesse reproduzi-las. Por essa razão, Demoiselle é considerada a primeira aeronave a ser fabricada em série. Foram construídos mais de 40 exemplares. Em 1910, por recomendação médica, se aposentou como piloto. Desconfia-se que sofria de esclerose múltipla. Em 1918, escolheu a cidade de Petrópolis, na serra fluminense, como residência de verão. Construiu, em apenas três meses, uma casa apelidada de “Encantada”. Alguns dos móveis da casa, projetada pelo arquiteto Eduardo Pederneiras, foram pensados para exercer múltiplas funções. A mesa, por exemplo. Durante o dia, era escrivaninha. À noite, virava uma cama. Os degraus das escadas são recortados no formato de raquete para facilitar a subida e evitar quedas. No banheiro, outra de suas incontáveis invenções: o chuveiro de água quente. A mais famosa delas, com exceção do 14-Bis, é o relógio de pulso. Segundo biógrafos, teria pedido a um amigo, o joalheiro Louis Cartier (1875-1942), que fizesse um. Criou, então, um quadrado com pulseira de couro. Com o relógio de bolso, Santos Dumont não conseguia pilotar e cronometrar o tempo de voo ao mesmo tempo. Cartier, aliás, não era o único amigo famoso de Santos Dumont. Volta e meia, o piloto brasileiro saía para jantar no Maxim’s, seu restaurante favorito, com a princesa Isabel (1846-1921), que assinou a Lei Áurea, ou com o engenheiro Gustave Eiffel (1832-1923), que projetou a Torre Eiffel. “São, ao todo, mais de 200 itens, entre cartas, moedas e livros, boa parte deles doados por familiares e historiadores. Mas, a maior atração da casa é, sem dúvida, o chapéu”, garante Cláudio Gomide, gerente do Museu Casa de Santos Dumont, em Petrópolis, que reabre ao público no próximo dia 20 e recebe uma média de 10 mil visitas por mês. Segundo os biógrafos de Santos Dumont, ele era baixinho – algo em torno de 1,52 metro de altura – e pesava 50 quilos. Para disfarçar sua baixa estatura, usava um chapéu panamá, terno de gola alta e sapatos de sola grossa. Tanto a fazenda Cabangu, na pequena Palmira (MG), onde nasceu, em 20 de julho de 1873, quanto a Encantada, sua residência de verão em Petrópolis, viraram museus. Hoje, sua cidade natal se chama Santos Dumont. Sobre a polêmica envolvendo a “paternidade” da aviação, Santos Dumont escreveu, em O Homem Mecânico: “Os partidários dos irmãos Wright afirmam que foram eles que voaram na América do Norte de 1903 a 1908. Esses voos pareciam ter ocorrido perto de Dayton, num campo ao longo de uma linha de bonde”. Escrito em 1929, o manuscrito O Homem Mecânico só foi descoberto 75 anos depois por um sobrinho-neto. “Não posso deixar de ficar profundamente estupefato por essa reivindicação ridícula”, prossegue Santos Dumont. “É inexplicável que os irmãos Wright pudessem ter realizado inúmeros voos durante três anos e meio sem terem sido observados por um único jornalista da perspicaz imprensa norte-americana que tivesse se dado o trabalho de assisti-los e de produzir a melhor reportagem da época”, conclui. Na opinião do jornalista Paul Hoffman, autor de Asas da Loucura (Record), a reivindicação não é assim tão ridícula. “Existe um amplo consenso entre os pesquisadores, exceto por alguns poucos brasileiros, de que os Irmãos Wright inventaram o primeiro avião a motor controlável e bem-sucedido do mundo. Embora houvesse testemunhas de seus primeiros voos em 1903, eles não estavam atrás de publicidade e, a princípio, voaram na obscuridade”. “Santos Dumont só conseguiu voar três anos depois e, quando conseguiu, o fez de maneira chamativa e em busca de publicidade. Por essa razão, atraiu legiões de fãs e ganhou as manchetes dos jornais”. Autor de Conexão Wright – Santos Dumont: A Verdadeira História da Invenção do Avião (Record), Salvador Nogueira propõe um meio-termo. “O avião não tem um único pai. Foi uma invenção coletiva”, defende o jornalista. “Se você olhar para os primeiros Flyers ou para o 14-Bis, eram máquinas bem diferentes do que hoje reconhecemos como avião. Foi uma combinação de inovações produzidas por aqueles pioneiros que deu à luz o avião moderno”. No dia 23 de julho de 1932, Santos Dumont foi encontrado morto, enforcado com duas gravatas, no banheiro de seu quarto no Hotel de La Plage, no Guarujá (SP). Até hoje, não se sabe ao certo o que teria levado o “pai da aviação” a cometer suicídio. Uma das hipóteses é a de que ele teria entrado em depressão ao ver seu principal invento usado como máquina de guerra na Revolução Constitucionalista de 1932. “Nunca pensei que fosse causar derramamento de sangue entre irmãos”, teria dito ao ascensorista do hotel, Olympio Peres Munhoz, minutos antes de sair do elevador. “O que eu fiz?”. Por mais de 20 anos, acreditou-se que Santos Dumont teria morrido de um “colapso cardíaco”, como atestava sua certidão de óbito. Seu coração foi guardado em um pequeno cofre de ouro e no formato de esfera celeste no Museu Aeroespacial, no Campo dos Afonsos, e seu corpo sepultado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, ambos no Rio de Janeiro. Uma curiosidade: foi o próprio Santos Dumont quem mandou erguer o jazigo, ornamentado pela estátua em bronze de Ícaro, ao lado dos pais, Henrique e Francisca. “Ficou muito bonito”, escreveu ao sobrinho Alberto, em 19 de outubro de 1923. “Não podia ser mais a meu gosto”. Entre outras homenagens, Santos Dumont virou nome de rua, praça e aeroporto. Em 1973, no centenário de seu nascimento, a União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês) deu o nome do inventor brasileiro a uma cratera lunar de 8,8 km de diâmetro, que fica próxima ao local de pouso da missão Apollo 15.
2023-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25gz1912qro
brasil
Funcionários públicos no home office: indefinição do governo Lula angustia servidores
No auge da pandemia, enfrentando uma depressão, Paula* decidiu voltar para seu Estado natal para ficar perto da família, continuando a realizar seu trabalho no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) à distância, como milhões de brasileiros naquele momento. Passado o pior momento da crise sanitária, ela teve a possibilidade de continuar em trabalho remoto integral, seguindo as regras do Programa de Gestão implementado pelo órgão em 2021. Entre os fatores que a fizeram querer continuar em teletrabalho, ela cita uma redução do custo de vida, ao trocar o Rio de Janeiro pela cidade de seus pais; um espaço de trabalho mais confortável, ao investir em equipamentos e mobiliário melhor do que dispunha no escritório; e um ganho de produtividade, após o IBGE criar um sistema de comunicação interno eficiente, que, segundo ela, possibilitou uma melhor integração entre funcionários de diferentes áreas do instituto de pesquisa. "A pandemia impulsionou uma transformação digital dentro do órgão, que não teria acontecido se não fosse o trabalho remoto", acredita a servidora, que pediu para ter seu nome preservado. "Acredito que o teletrabalho é um caminho sem volta, inclusive porque [uma reversão dessa política] poderia acelerar aposentadorias", diz a funcionária. Fim do Matérias recomendadas A questão é sensível no IBGE, pois o instituto perdeu mais de 40% de seus servidores efetivos nos últimos 12 anos devido a fatores como falta de concursos e baixos salários, e cerca de 24% dos efetivos restantes estavam aptos a se aposentar, segundo informações da Assigbe, sindicato dos trabalhadores do instituto. Dos atuais 3.922 servidores do IBGE, 26% estão em trabalho remoto integral e 21% em trabalho remoto parcial (comparecendo duas ou três vezes por semana ao escritório), enquanto 53% estão no presencial, segundo dados de junho do Programa de Gestão do instituto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A servidora do IBGE é uma de milhares de funcionários públicos federais brasileiros que aderiram ao teletrabalho durante a pandemia e atualmente vivem sob incerteza. Isso porque o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) revogou em janeiro uma norma editada em dezembro pela gestão Jair Bolsonaro (PL) sobre teletrabalho na administração federal. Desde então, o governo vem adiando seguidamente a publicação de uma nova regra, situação que gera insegurança para trabalhadores atuais e para quem pretende prestar concurso público, dizem sindicalistas de entidades representantes do funcionalismo ouvidos pela BBC News Brasil. Com salários achatados por sete anos sem reajustes – cujas perdas não foram plenamente repostas pela correção de 9% sancionada por Lula em abril –, os sindicatos também temem que eventual endurecimento das regras possa levar à saída de servidores, especialmente em áreas sensíveis, como tecnologia da informação (TI). Afirmam ainda que a falta de regras claras impede órgãos públicos de tomar decisões que poderiam reduzir custos para o governo federal, como devolver prédios alugados ociosos. Procurado, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), liderado pela economista Esther Dweck, informou em nota que a regulamentação do teletrabalho "tem sido prorrogada em decorrência da necessidade de reflexão por parte dos dirigentes do ministério quanto aos aspectos do Programa de Gestão e Desempenho (PGD)". "O PGD envolve a mudança de cultura organizacional de uma forma de gestão baseada no controle da presença física do servidor para o controle sobre suas entregas e resultados. Toda mudança de cultura requer reflexão e debates", acrescentou a pasta, que não informou a parcela atual geral de servidores em teletrabalho (leia mais detalhes da resposta abaixo). Como no restante da economia brasileira, o teletrabalho foi implementado às pressas na administração pública federal, em meio à pandemia de covid-19. Segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do então Ministério da Economia, o trabalho remoto dos servidores federais durante a pandemia gerou economia de R$ 1,4 bilhão aos cofres públicos de março de 2020 a junho de 2021. O valor considera gastos como diárias (valores pagos a servidores para despesas durante viagens a trabalho); passagens e locomoção; energia elétrica; água e esgoto; e cópias e reprodução de documentos. Em maio do ano seguinte, o governo Bolsonaro publicou um decreto regulamentando o teletrabalho e o controle de produtividade no Executivo Federal (Decreto 11.072/2022). Esse decreto estabeleceu as bases do chamado Programa de Gestão e Desempenho (PGD) para órgãos da administração direta – como secretarias e ministérios –, autarquias e fundações da administração federal. Empresas públicas e de economia mista não estão incluídas, mas têm autonomia para estabelecer programas semelhantes, segundo o Ministério da Gestão. Ao fim do ano passado, já com Bolsonaro derrotado nas urnas, o governo publicou uma norma (Instrução Normativa 89/2022) com mudanças no Programa de Gestão, como um limite de 20% de servidores em teletrabalho integral por órgão e permanência máxima de até 3 anos na modalidade. As limitações geraram crítica generalizada entre os sindicatos do funcionalismo, que argumentavam que a mudança estava sendo imposta sem debate com os órgãos envolvidos e os servidores. Com Lula empossado, o novo governo revogou logo em janeiro a regra que havia sido apresentada em dezembro pela gestão Bolsonaro, dando um prazo de 90 dias para publicação de nova norma. "Passaram-se os 90 dias, o governo disse que precisaria de mais 30. Passaram-se os 30, o governo pediu mais 30. Passaram-se os outros 30 e o governo pediu mais 45 dias para normatizar a questão", lembra Bruno Perez, coordenador na Assibge. Agora, o novo prazo para publicação da normativa é 27 de julho. Mas o Ministério da Gestão não respondeu se a data será mantida ou se poderá ser necessário novo adiamento. "Não sabemos até que ponto vão ser mantidas ou ampliadas as modalidades de teletrabalho, isso impõe uma dificuldade de planejamento para a administração pública e para os próprios servidores", avalia Perez. "Entendemos que [a regulamentação] é uma questão bastante complexa, então é normal que tenha uma certa demora, mas seria importante que os servidores fossem consultados, o que não aconteceu até o momento", afirma. Questionado sobre a crítica, o Ministério da Gestão afirma que "há diversos canais de comunicação com os servidores, como grupos de WhatsApp, FAQ [sessões de perguntas frequentes] e e-mail, disponíveis no site do PGD para atendimento de todos os servidores interessados em contribuir com as reflexões sobre o tema" e que "tem realizado reuniões com alguns servidores para discutir aspectos do programa". Othon Pereira Neves, secretário-geral do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (Sindsep-DF), diz compreender a dificuldade do governo para apresentar a nova regulação e observa que a questão do teletrabalho é polêmica mesmo entre os próprios servidores. "Tem gente radicalmente contra e outros favoráveis", diz Neves, que observa haver um certo viés geracional nessa divisão. "Os mais antigos não querem nem saber [de teletrabalho], acham que tem que ser tudo presencial, enquanto os novos preferem ficar em casa, porque as novas gerações já nasceram com as novas tecnologias. Então a regulamentação vai precisar buscar um equilíbrio", afirma. Ele observa, porém, que faltam ao governo estatísticas centralizadas sobre a situação atual do teletrabalho na administração federal para auxiliar nesse processo de regulamentação. Questionado sobre qual é a parcela atual de servidores em teletrabalho, perfil desses servidores e se há estudos sobre a produtividade do trabalho na modalidade, o Ministério da Gestão respondeu: "Sobre as informações consolidadas, investe-se atualmente em ações de monitoramento, porém ainda não é possível apresentar todos os dados solicitados." Wagner Dias, diretor do Sinagências, entidade que representa os servidores das agências nacionais de regulação, avalia que o teletrabalho veio para ficar e defende que a nova norma contemple também medidas para garantir o bem-estar dos servidores em trabalho remoto. "O teletrabalho foi uma experiência exitosa, que levou a administração pública a uma economia de recursos, mas essas despesas passaram a ser arcadas pelo servidor, então é preciso que isso seja observado, para que esse servidor seja ressarcido pelo uso de seus recursos particulares para desempenhar suas funções", defende Dias. Segundo o Ministério da Gestão, estima-se que a economia com servidores em teletrabalho "varia de R$ 800 a R$ 1.200 por mês, por servidor, conforme o órgão". A BBC News Brasil também questionou a pasta sobre as críticas de trabalhadores de que a falta da nova normativa criaria insegurança para trabalhadores atuais e para quem está prestando concurso. A reportagem mencionou ainda o temor de que possa haver perda de quadros em áreas críticas como TI, caso haja um endurecimento das regras com relação ao teletrabalho, mas o ministério não respondeu a esses questionamentos. O imbróglio com relação ao teletrabalho no funcionalismo não se resume, no entanto, à falta de uma nova regulamentação. Em fevereiro, o trabalho remoto em estatais como a Petrobras foi motivo de troca de farpas entre o atual presidente da petroleira, Jean Paul Prates, e o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que tem defendido a volta ao presencial, como parte de esforço para revitalização do centro do Rio. O embate aconteceu após Paes compartilhar reportagem na qual o presidente da Petrobras dizia que iria apoiar o Rio na recuperação de sua região central. O conflito revela outro aspecto do impasse: o impacto da mudança sobre a dinâmica das cidades. O debate não é exclusivo do Brasil. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a prefeita de Washington (EUA), Muriel Bowser, em discurso em janeiro, ao tomar posse para seu terceiro mandato, alertou o governo Joe Biden de que o trabalho remoto estaria "matando a capital dos EUA". "Com boa parte do funcionalismo público ainda trabalhando de maneira remota, as regiões centrais da capital americana nunca se recuperaram do choque da covid-19 e permanecem esvaziadas. Com isso, bares e restaurantes fecharam, cafés reduziram o horário de funcionamento e a prefeitura se preocupa com a capacidade de arrecadação", relata a reportagem. Com preocupações similares, Paes insiste na volta ao trabalho presencial pleno em estatais como Petrobras, BNDES e Furnas desde o governo Bolsonaro. Questionada, a Petrobras afirma que oferece a possibilidade do trabalho híbrido, com até três dias de trabalho remoto, para empregados que atuam no regime administrativo. Segundo a empresa, atualmente cerca de 25 mil pessoas estão aptas a aderir ao modelo híbrido, mediante aprovação gerencial, e 21,9 mil empregados já aderiram – a empresa somava 44,8 mil funcionários em 2022, de acordo com um relatório do governo. A estatal também aprovou recentemente a possibilidade de teletrabalho por cinco dias na semana para empregados com deficiência. Ainda conforme a petroleira, do total de empregados que aderiu ao trabalho híbrido, 15,4 mil estão lotados no Estado do Rio de Janeiro. Segundo a empresa, os empregados da Petrobras estão espalhados por diversos prédios na cidade do Rio, sendo um deles no centro do município. "Entendemos que o modelo híbrido de trabalho é bastante adequado à realidade de quem atua no regime administrativo na Petrobras, possibilitando capturar o melhor dos dois mundos: atividades que se beneficiam das interações entre as pessoas no trabalho presencial e atividades que requerem tempo de foco no trabalho remoto", disse a estatal em nota. "Neste momento, a empresa não avalia o retorno ao trabalho 100% presencial para empregados do regime administrativo", completou a petroleira Procurada, a Prefeitura do Rio não respondeu a pedido de comentário. Apesar do problema do esvaziamento dos centros urbanos, pesquisas mostram que também há impactos considerados bastante positivos do trabalho remoto do funcionalismo para as cidades – principalmente, com relação à melhoria das condições de tráfego urbano. Um estudo publicado em 2016 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), por exemplo, estimou que cada 10% do total de servidores brasileiros que passam para o teletrabalho representam redução de até 0,5% nos deslocamentos realizados por ano em todo o país e de 0,6% nas emissões de gás carbônico por automóveis e motos decorrentes dessas viagens. *Nome alterado a pedido da entrevistada.
2023-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn02v9jn8ylo
brasil
Brasil prepara 'ofensiva ambiental' por dinheiro e soberania para Amazônia
O governo brasileiro quer assumir protagonismo nas discussões ambientais — e quer usar sua influência para exigir contrapartidas financeiras internacionais. Em 8 e 9 de agosto, o Brasil vai realizar uma cúpula de países da região amazônica em Belém (PA) — cujo objetivo é formular uma posição conjunta para apresentar na COP 28. A França participará do encontro por possuir floresta amazônica na Guiana Francesa. República do Congo, República Democrática do Congo e Indonésia foram convidados por também possuírem grandes florestas tropicais. Fim do Matérias recomendadas Um dos pontos principais da posição brasileira é reafirmar a soberania do Brasil e dos demais países amazônicos — ou seja, que as decisões sobre a floresta sejam tomadas livremente pelos governos locais, sem precisarem se submeter a pressões internacionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dos pontos que Lula quer deixar claro para a comunidade internacional é que o Brasil não aceita que a Amazônia seja tratada como um “santuário”, ou seja, que não haja nenhum tipo de atividade econômica e que a floresta seja tratada como se fosse uma grande reserva ambiental. Lula ressaltou que a Amazônia é uma região com mais de 50 milhões de pessoas — e mais de 20 milhões de brasileiros — e que a floresta é vital para a vida de indígenas, ribeirinhos, extrativistas e estudiosos. “É importante que as pessoas levem a sério que a Amazônia é um território soberano do Brasil, no caso dos 4 milhões de quilômetros quadrados que o Brasil tem responsabilidade”, disse Lula. “Mas o Brasil não quer transformar Amazônia no santuário da humanidade. Nós queremos transformar num centro de desenvolvimento, queremos compartilhar a exploração científica com o mundo que quer participar. Porque nós achamos que é possível extrair do ecossistema da Amazônia e da riqueza da biodiversidade.” Isso não significa incentivar atividades como desmatamento e agropecuária, segundo o discurso do presidente. “No Brasil, está ficando cada vez mais claro que não se precisa derrubar uma única árvore para plantar mais soja.” Lula também cobra um compromisso que ele aponta ter sido assumido por potências internacionais em 2009, de US$ 100 bilhões para ajudar na preservação da floresta. Em Bruxelas, Lula fez repetidas referências a essa promessa e disse que o assunto voltará à mesa na cúpula de Belém e na COP. O presidente também tentou retomar doações de países europeus ao Fundo da Amazônia — que foram interrompidas durante o governo de Jair Bolsonaro. Mas ele saiu da Europa sem conseguir um compromisso da Dinamarca — que apenas prometeu que tem a “intenção” de contribuir. Lula defende que o Brasil tem dois argumentos que dão autoridade moral ao país na questão ambiental. Primeiro, é o fato de o governo assumir de forma unilateral e voluntária o compromisso de acabar com o desmatamento da Amazônia até 2030. Em segundo lugar, ele argumenta que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta. “O Brasil é um país que tem um potencial excepcional, nós temos 87% da nossa energia elétrica renovável, contra o mundo, que só tem 28%. Nós temos, de toda a matriz energética envolvendo combustível, 50% totalmente renovável contra 15% do resto do mundo”, disse o presidente, acrescentando que “pouca gente tem autoridade moral para falar em transição ecológica”. O presidente também defendeu que proteção ao meio ambiente e mudanças climáticas sejam incluídos como disciplinas no currículo escolar, para que as novas gerações sejam conscientizadas desde cedo.
2023-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c88vj72n965o
brasil
'Pix tipo exportação': pagamento instantâneo se populariza na Argentina com real valorizado
Ao lado de caixas de alfajores e garrafas de vinho, um aviso ajuda a captar a atenção dos turistas brasileiros no centro da cidade argentina de Puerto Iguazú: "Aceitamos Pix". Mas este não é o único estabelecimento a aceitar o pagamento instantâneo que se popularizou no Brasil. No município, que faz fronteira com a cidade paranaense de Foz do Iguaçu, vários comerciantes vêm aceitando o Pix de olho no poder de compra dos brasileiros e do real, enquanto o peso argentino perde valor dia a dia com uma inflação que galopa a mais de 100% ao ano. "Não podemos correr o risco de perder clientes brasileiros", diz à BBC uma vendedora argentina que não quis se identificar e explicou que aderiu ao Pix mesmo tendo que pedir ajuda a um amigo com conta no Brasil para receber o dinheiro. Em outros locais da cidade, comerciantes contaram que usavam o Pix por meio de contas de familiares e que até fizeram sócios brasileiros. Fim do Matérias recomendadas Agora, o que começou como um "jeitinho" na fronteira encontrou um caminho oficial. Desde junho, o Pix já pode ser usado em lojas em todo o território nacional argentino, especialmente em pontos turísticos, por iniciativa de uma plataforma de pagamentos digitais argentina privada que, de certa maneira, se antecipou ao plano oficial do Banco Central de exportar a tecnologia de pagamentos instantâneos para os vizinhos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A iniciativa foi encabeçada pela empresa KamiPay, cujos criadores, que trabalham com parceiros no Brasil, viram na afluência de brasileiros na Argentina (são o terceiro maior grupo de turistas, depois de uruguaios e chilenos, ou 15% do total de visitantes) e na "complexidade" cambial da economia local uma oportunidade de negócios. "Ninguém anda mais com maços de dinheiro, e no Brasil vimos como é comum o uso do Pix, da carteira digital", diz à BBC News Brasil Nicolas Enrique Bourbon, cofundador da KamiPay, que negocia para expandir seu "Pix tipo exportação" também para Uruguai e México. Pela plataforma, o pagamento é feito em real por meio de leitura de QR Code, como no Brasil, e o uso da tecnologia blockchain agiliza as operações para que o comércio argentino receba na hora o pagamento. "O turista brasileiro que chega aqui, com um emaranhado de cotações, fica até confuso", acrescenta Bourbon. A Argentina possui, atualmente, pelo menos cinco cotações do dólar mais conhecidas. Na imprensa local, especula-se que elas possam chegar a 15. O Banco Central da República Argentina informa que existe apenas uma cotação, a do dólar oficial. No entanto, diariamente, os portais de notícias informam as demais cotações, como a do dólar blue (paralelo), a mais popular para uso local, a do MEP, definido pelo mercado financeiro, e a do turismo, por exemplo. Na sexta-feira (14/7), o dólar oficial era cotado a 277 pesos, o chamado dólar blue, a quase 520 pesos, e o chamado MEP, a 498 pesos. No câmbio que tem como referência o dólar blue (paralelo), o valor do real era cotado a cerca de 100 pesos. Se o turista brasileiro usar seu cartão de crédito para efetuar pagamentos, pagará um valor que tem como cotação de referência o dólar MEP, menos vantajosa que o “blue”, geralmente acrescida de impostos (Imposto de Operações Financeiras, o IOF) e a taxa do serviço cambial do banco, o chamado spread — algo que pode tornar o dinheiro vivo a escolha preferida. O Banco Central da República da Argentina mostrou, sem citar diretamente o Pix, que reconhece o sistema levado ao país pela iniciativa privada. Em um comunicado recente, informou que os "turistas poderão pagar com carteiras eletrônicas a um tipo de câmbio que terá como referência os dólares financeiros". Os comerciantes entrevistados pela BBC News Brasil veem o Pix como uma alternativa positiva pela rápida transferência de dinheiro para suas contas e como uma forma de não perder para a inflação. No mês de junho, a inflação argentina subiu 6%. Nos primeiros cinco meses do ano, o índice oficial acumulou alta de 50,7%. Em 12 meses, entre maio de 2022 e maio de 2023, a inflação chegou a 115,6%. Mariana Dappiano, empresária argentina do ramo de moda, conta que decidiu aderir ao Pix colocando, inclusive, um adesivo que sinaliza a disponibilidade da forma de pagamento na vitrine da sua loja no bairro de Palermo. "Entendemos que para o turista é muito estressante vir às compras com muitos pesos. O Pix é algo novo aqui, nos ofereceram e aceitamos imediatamente para agregar uma experiência amigável para o consumidor brasileiro", diz Dappiano, que tem negócios em vários países. Segundo a comerciante, um cliente já usou o Pix para compras, mas, com as férias de inverno e a expectativa de incremento do turismo brasileiro, ela acredita que a forma de pagamento terá mais adeptos. "É algo muito novo ainda, mas com potencial de crescimento, sem dúvida." De Mendoza, um dos polos produtores de vinho e destino usual de turistas brasileiros, representantes do setor de vinhos entrevistados pela BBC News Brasil dizem desconhecer a existência do Pix, mas confirmam a popularidade do real. "O que vemos aqui são brasileiros com reais ou dólares, trocando no paralelo, e saindo com uma pilha de pesos para pagar os consumos", conta um assessor de imprensa do setor vitivinícola de Mendoza. Em locais turísticos da cidade de Buenos Aires, como em pequenos mercados do bairro da Recoleta e bares de San Telmo e Palermo, é possível pagar a conta com reais, recebendo o troco em pesos. Nas vitrines de lojas do centro da cidade também passou a ser comum a informação sobre a cotação do real, um sinal de que mais comerciantes estão aceitando a moeda brasileira. "Nós entendemos que é, muitas vezes, mais prático para o turista brasileiro pagar em real. Por isso, aceitamos", diz o vendedor Jorge Salas, do bar La Chopperia, em Palermo. A atual crise da economia da Argentina inclui, além da desvalorização do peso e da inflação, a escassez de divisas (em dólares) nas reservas do Banco Central — afetadas, principalmente, pela seca histórica que drenou os dólares gerados pelas exportações do setor agropecuário do país. Por isso, no país que aprendeu a pensar em dólar por causa da crise econômica crônica, a moeda americana é ainda dominante, mas há outros experimentos em curso. Além da maior aceitação do real, há a chegada da moeda chinesa, o yuan, o que faz o movimento ganhar ares de disputa geopolítica. Desde a semana passada, o Banco Central argentino autorizou que sejam abertas contas bancárias na moeda da China logo depois que o governo assinou em Pequim um acordo que permitiu à Argentina receber US$ 10 bilhões (R$ 48 bilhões) para reforçar as reservas do país. O arranjo com o Brasil, no entanto, está em negociações, segundo fontes do governo argentino.
2023-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qd6y0eed2o
brasil
Vídeo, Desenrola: Vantagens e alertas ao renegociar dívidas pelo programa do governoDuration, 5,33
Começou a vigorar o Desenrola Brasil, programa de renegociação de dívidas do governo federal, que almeja beneficiar 70 milhões de brasileiros hoje com nome sujo. Por enquanto dividido em duas fases, o programa começa para quem ganha até R$ 20 mil e também para um grupo de 1,5 milhão de brasileiros que têm dívidas de até R$ 100. Mas, embora o programa "limpe" o nome dos consumidores participantes e os ajude a obter crédito, ele não significa o perdão de nenhuma dívida. Caberá a consumidores negociarem com os bancos se haverá descontos ou parcelamento das quantias. Na segunda fase, em setembro, o programa vai atingir quem ganha até dois salários mínimos e tem dívida de até R$ 5 mil, inclusive com outras instituições (como empresas de energia, de telefonia etc). E vale a pena renegociar as dívidas com o Desenrola? Quais os alertas aos quais consumidores devem estar atentos? É o que explica neste vídeo nossa repórter Laís Alegretti. Confira.
2023-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66232083
brasil
Quanto o SUS gasta a mais por detecção tardia de câncer
O Sistema Único de Saúde (SUS) gastou mais de R$ 3,8 bilhões no tratamento do câncer em 2022 — e, segundo pesquisadores, parte significativa desse dinheiro poderia ser economizada se os tumores tivessem sido diagnosticados em fases precoces, quando o tratamento é mais efetivo e mais barato. Esses são alguns dos achados de uma recente pesquisa do Observatório de Oncologia, que faz parte do grupo da sociedade civil Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), a partir de dados do ano passado disponíveis no DataSUS. A análise revelou, por exemplo, que uma única sessão de quimioterapia contra o câncer de mama de estadiamento 1 (o mais precoce) custa R$ 134,17 aos cofres públicos. Já na fase 4 da doença (a mais avançada), essa mesma modalidade de tratamento fica R$ 809,56 — um valor seis vezes mais alto. O tratamento tende a ficar mais caro, segundo especialistas, por envolver drogas específicas, desenvolvidas para combater tumores avançados. Essas opções terapêuticas costumam ter um preço mais elevado. Além disso, o paciente em estágio avançado pode necessitar de sessões extras de tratamento e um acompanhamento mais próximo. Veja abaixo mais detalhes sobre o chamado estadiamento (ou estágio) — termo usado para apontar o grau de disseminação do câncer. Fim do Matérias recomendadas Ainda segundo as estatísticas disponíveis, uma parcela considerável dos tumores é detectada tardiamente. No câncer de mama, 57% dos casos são flagrados em estadiamentos 1 e 2, ante 43% que já evoluíram para 3 e 4. Já no caso do pulmão, 88% dos pacientes só descobrem a enfermidade quando ela está mais grave, nos estadiamentos 3 e 4. Os pesquisadores calcularam essas estimativas de possível economia por estágio e tipo de câncer — mas apontam que não é possível determinar com precisão uma economia total devido à falta de dados mais detalhados na área de oncologia, como a gravidade de todos (ou da maioria) dos tumores diagnosticados no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), são esperados 704 mil casos novos e 235 mil mortes por essa doença no Brasil a cada ano. Isso faz com que os tumores sejam a terceira principal causa de óbitos no país, atrás apenas do infarto e do acidente vascular cerebral (AVC). De acordo com o levantamento do Observatório de Oncologia, dos 3,8 bilhões gastos apenas com o tratamento do câncer no SUS, 77% desse valor (R$ 3 bilhões) vai para o tratamento ambulatorial, que envolve sessões de quimioterapia e radioterapia, por exemplo. As somas restantes são utilizadas para cirurgias (R$ 519 milhões, ou 13% do total) e internações (R$ 374 milhões, ou 10%). Ao dividir esse custo total pelo número de intervenções realizadas no ano passado, os pesquisadores descobriram que cada procedimento ambulatorial em oncologia custa, em média, R$ 758,93, enquanto uma internação sai R$ 1.082,22 e uma cirurgia representa R$ 3.406,07. A epidemiologista Ana Beatriz Almeida, uma das autoras do trabalho, destaca que esses valores se referem exclusivamente ao tratamento — incluindo gastos com remédios, insumos e equipamentos. "O câncer não envolve apenas as terapias. Existem outros gastos do ponto de vista da saúde pública, como as campanhas de prevenção e os exames de diagnóstico, que não entraram nessa conta", esclarece. Os responsáveis pelo levantamento também mostram uma preocupação com os efeitos da pandemia de covid-19 nesse orçamento. Afinal, durante o período que o coronavírus circulou com muita intensidade, nos anos de 2020 e 2021, boa parte da população não saiu de casa e deixou de fazer os exames capazes de detectar o câncer em estágios precoces. "Estamos falando de um sistema que já tem recursos limitados, então qualquer nova sobrecarga orçamentária representa um alerta", diz Nina Melo, coordenadora do Observatório de Oncologia. "E queremos justamente que os pacientes sejam diagnosticados de forma precoce. Isso representa um desfecho clínico melhor, mais qualidade de vida e, claro, uma redução de custos ao SUS", complementa ela. As diferenças ficam ainda mais visíveis quando esses valores são divididos segundo o tipo de câncer e o estágio em que eles são diagnosticados. Para fazer esses cálculos, os especialistas selecionaram quatro tumores frequentes na população: os de mama, próstata, colorretal e pulmão. Esse grupo de doenças consome uma fatia considerável do orçamento das terapias oncológicas na rede pública: juntos, os problemas tumorais que afetam alguma dessas quatro partes do corpo representam 57% dos gastos totais com quimioterapia, 54% da radioterapia, 25% das internações e 31% das cirurgias. No gráfico a seguir, você confere os valores totais usados no SUS com o tratamento desses cânceres, divididos em três modalidades terapêuticas e os gastos com internação. A quimioterapia representa a principal fatia em todos tipos: Mas e os custos individuais de cada tratamento? Para responder a essa questão, o Observatório de Oncologia estimou o preço de uma única sessão de quimioterapia de acordo com o estadiamento da doença. Para resumir, um tumor de estadiamento 1 é aquele que foi flagrado bem no início e ainda não comprometeu tecidos linfáticos próximos; o 2 se espalhou um pouco mais em seu local de origem; o 3 está avançado localmente, mas não afetou outros órgãos; e o 4 foi diagnosticado com metástase (quando a doença já aparece em lugares que vão além de sua posição original). E os números obtidos pelos pesquisadores revelam diferenças importantes, como é possível ver no gráfico abaixo. Além da diferença de seis vezes no preço da químio contra o câncer de mama, o custo desse tratamento tem uma distância de quase R$ 150 nos tumores de próstata de fase 1 ou 4 e de mais de R$ 300 nos colorretais. "Nós já esperávamos que houvesse um aumento de preços em estadiamentos mais avançados, mas a diferença dos valores foi muito além do que imaginávamos", diz Melo. "Quando a doença é descoberta em estadiamento avançado, os protocolos terapêuticos incluem medicamentos de alto custo na maior parte dos casos", explica a médica Catherine Moura, CEO da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), que não está entre as autoras principais da pesquisa. "E isso tudo tem um preço", complementa. Vale reforçar que esses valores apresentados anteriormente se referem apenas a uma única sessão de químio. Geralmente, os pacientes precisam fazer diversos ciclos dessa terapia, com intervalos de algumas semanas entre eles. Ou seja, se esses valores forem multiplicados pelo número de quimioterapias realizadas e a quantidade de pacientes que recebe o diagnóstico de câncer todos os anos, a economia com o tratamento poderia chegar à casa dos milhões de reais se mais tumores fossem diagnosticados em estágios precoces, acreditam os pesquisadores. E aqui surge uma grande dificuldade para completar essa análise: a falta de registros nacionais mais detalhados sobre a gravidade do câncer no momento da detecção. A reportagem da BBC News Brasil pediu que o Observatório de Oncologia levantasse quantos casos da doença são diagnosticados no Brasil de acordo com o estadiamento. As estatísticas encontradas pelos pesquisadores mostraram um cenário bastante nebuloso. Uma grande proporção de tumores notificados tem o estadiamento classificado como "ignorado". "Isso é muito prejudicial para a epidemiologia do câncer, e leva a limitações nas análises que poderíamos fazer", lamenta Almeida. É possível conferir esses números no gráfico abaixo: Vale dizer que essas estatísticas em específico vêm apenas de hospitais de referência em oncologia que realizam esse trabalho de transmitir os dados para os bancos públicos, e não representam toda a realidade do diagnóstico e do tratamento do câncer no país. Se excluirmos a alta proporção de tumores com estadiamento ignorado e levarmos em conta apenas aqueles que receberam a classificação de gravidade adequada, é possível ter uma ideia de como o diagnóstico da doença ocorre muitas vezes numa fase tardia, em especial quando ela acomete o pulmão e a região colorretal: Segundo os pesquisadores, isso permite ter uma ideia — mesmo que vaga — de como a detecção precoce dos tumores representaria uma economia aos cofres públicos (sem contar, claro, nas maiores chances de sobrevida relacionadas a um tratamento realizado quando a doença ainda não evoluiu). Almeida lembra que os impactos financeiros do câncer vão muito além do preço de um remédio ou de outro. "Não podemos nos esquecer dos custos indiretos. Um paciente muitas vezes deixa de trabalhar, além das mortes prematuras também representarem um prejuízo à economia", destaca a autora da pesquisa. Moura, da Abrale, entende que é preciso focar cada vez mais em campanhas de prevenção e detecção precoce do câncer. "Todo esse investimento é efetivo", acredita ela. "É importante que a população de todo o país esteja consciente sobre os diferentes tipos de câncer, os mais prevalentes e como minimizar os fatores de risco para eles." "E somente com campanhas de conscientização, feitas por meio de diferentes canais, para que o alcance seja igualitário, conseguiremos alcançar esse resultado", conclui ela.
2023-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c805w8lj4k7o
brasil
Deus na Constituição e religião na escola: a intrincada história da separação entre Igreja e Estado no Brasil
Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo. Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que "pertence ao Senhor Jesus" e outros que-tais. Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas? Oficialmente, o Brasil se tornou um Estado laico com a Proclamação da República, em 1889. Era a tendência, naquele período de positivismo e ideais de constituição de um Estado moderno. Mas é preciso retroceder no tempo para entender essa relação e, principalmente, como já havia um desgaste entre o império brasileiro e a cúpula da Igreja ao longo do século 19. Professor na Universidade Federal do Maranhão, o historiador Ítalo Domingos Santirocchi explica que essa relação íntima entre fé e poder, no caso brasileiro, é uma herança portuguesa. "Era o direito do padroado, que dava ao rei português o direito de administrar parte da Igreja", explica ele à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Segundo suas pesquisas, essa relação foi sistematizada a partir de uma gama de documentos emitidos por coroa e Igreja Católica em duas fases. Primeiramente, de 1420 a 1551. Em seguida, de 1486 a 1511. Santirocchi identificou que havia idas e vindas entre petições pró e contra tais direitos. Era um momento delicado, aquele. Ao mesmo tempo que havia um contexto de expansão marítima, o que resultaria em um imperialismo para o Estado e um potencial aumento de clientela para a Igreja, a Europa vivia um cenário em que diversas monarquias desafiavam a hegemonia da Igreja Católica, inclusive patrocinando a fundação de igrejas nacionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Historaidores como Santirocchi entendem, portanto, que isso acabou fazendo com que a cúpula católica visse como um bom negócio conceder poderes eclesiásticos para as coroas abertas a isso — no caso, Espanha e Portugal. Além de manter esses povos dentro do catolicismo, ainda havia a possibilidade de chegar a novos fiéis. Na prática, a coroa mandava e desmandava. Criava dioceses e paróquias, nomeava bispos. O papa apenas precisava ratificar. Em troca: o governo precisava construir e manter as igrejas, bancar a côngrua — o salário dos religiosos —, construir e financiar o funcionamento de seminários e até mesmo investir em trabalhos missionários. A Igreja Católica também contribuía justificando e legitimando o movimento expansionista, é claro. Em artigo acadêmico de 2010, o jurista Rulian Emmerick, atualmente professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, comentou que "o projeto de colonização das novas terras pelo Estado português teria grandes dificuldades de ser implementado sem o apoio da Igreja Católica enquanto instituição legitimadora do poder e responsável pela coesão social e pela unidade nacional". Emmerick lembra que "em boa parte da história da sociedade brasileira (...) o direito do Estado confundia-se com o direito divino, isto é, o direito ditado pela Igreja Católica". "Desta forma, as instituições Igreja e Estado confundiam-se enquanto instituições legitimadoras do poder e normatizadoras dos corpos e das mentes. Ambas tinham pretensões de regular os princípios organizadores da incipiente sociedade brasileira e conquistar a consciência dos sujeitos, bem como deter o monopólio do capital simbólico no imaginário social", pontua o jurista, em seu artigo. Emmerick analisa as contrapartidas previstas pelo regime do padroado e resume que enquanto "os reis de Portugal detinham o direito de criar cargos eclesiásticos, nomear seus titulares, arrecadar o dízimo nos cultos e autorizar a publicação das atas pontifícias", a Igreja se beneficiava porque a coroa facilitava "a difusão da religião católica nas novas terras" e se responsabilizava "pela construção de igrejas, mosteiros etc". No Brasil Colônia essa relação foi automática, porque Brasil era parte de Portugal. Com a independência, em 1822, houve uma jogada que pode ser lida até mesmo como um movimento de dom Pedro 1º (1798-1834), o primeiro imperador, para deixar claro que quem dava as cartas era ele - e não a Igreja. Na carta, a religião católica é mencionada quatro vezes. O artigo 5º do primeiro título, que define a organização social do império, crava: "A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo". O texto constitucional ainda prevê o texto que deve ser lido como juramento durante a nomeação de um novo imperador: "Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do império; observar, e fazer observar a constituição política da nação brasileira, e mais leis do império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber". Santirocchi contextualiza que "após a independência, os direitos que eram concessões papais foram estabelecidos pela constituição". E o documento instituído ainda delegava ao imperador o direito de "conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas". Mas o papa não se deu por vencido. Em 1827 — ok, a distância e a comunicação da época faziam com que ações e reações levassem mais tempo —, o papa Leão 12 (1760-1829) mandou publicar a bula Praeclara Portugalia, concedendo esses direitos ao rei. "Só que [pela constituição] todo e qualquer documento papal tinha de ser aprovado e receber o beneplácito do imperador. E esse documento não recebeu o beneplácito", nota Santirocchi. "Mas, para a Igreja, era ela quem havia conferido esse direito ao imperador. Para o imperador, era um direito constitucional." Mais tarde, as rusgas só aumentariam. Conforme lembra o historiador, em 1858, "o Brasil e a Santa Sé não chegaram a um acordo para celebrarem uma concordata". "Os bispos queriam liberdade para se comunicar com o papa, administrar e organizar as dioceses", ressalta ele, lembrando que, até a década de 1870, eram somente 12 as dioceses no Brasil, com uma delas tendo o status de arquidiocese, Salvador. Na contenda, "o Estado queria controlar o aparato religioso", acrescenta Santirocchi, "como instrumento legitimador do sistema". E seguir tratando "o clero como funcionário público". "Tudo isso diminuindo cada vez mais os repasses financeiros para a Igreja". "A partir dos anos 1870 vários grupos passaram a pressionar para a separação [entre governo e religião]", afirma o historiador. "Os republicanos, os liberais mais radicais e até mesmo alguns católicos, padres e bispos, pois acreditavam que era melhor uma igreja livre, sem apoio financeiro do Estado." Ele recorda que esse desgaste se intensificou ainda mais depois da chamada "questão religiosa" ocorrida entre 1872 e 1875, quando dois bispos foram presos porque, entre o papa e o imperador, preferiram obedecer ao papa. "Eles decidiram punir as irmandades religiosas que tinham maçons em sua diretoria", explica Santirocchi. "Embora tenha ocorrido de forma institucionalmente abrupta, no sentido da transformação constitucional [no pós-proclamação da República], eu diria que a mudança foi sendo feita de forma gradual, ainda no período da monarquia", diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. Missiato recorda que dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil, "começou a estabelecer algumas políticas no sentido de afastar o poder da Igreja, principalmente nas décadas de 1870 e 1880". São sete artigos. A lei proibia que a autoridade federal ou dos Estados criasse "leis, regulamentos ou atos administrativos estabelecendo alguma religião" e determinava que todos os "habitantes do país" tivessem tratamento sem diferenças. A liberdade de culto também foi instituída e ficou determinada que todas as igrejas e confissões religiosas seriam reconhecidas como "personalidade jurídica". Mas o governo federal também precisou ceder. Ficou acertado, na lei, que o Estado precisava seguir pagando a côngrua e, por um ano, subvencionaria os seminários. Santirocchi conta que a lei resultou de uma hábil negociação entre o jurista Rui Barbosa (1849-1923), então Ministro da Fazenda, e um dos protagonistas — do lado católico — da "questão religiosa", o bispo Antônio de Macedo Costa (1830-1891). Naquele mesmo ano de 1890, Costa se tornaria arcebispo de Salvador. "Ele estava cotado para se tornar o primeiro cardeal da América Latina, se não tivesse morrido meses depois". "Com o fim do padroado, o Estado deixa de ter o direito justificado de interferir na Igreja. E também não paga mais à Igreja. A Igreja passa a ter de se virar e se autofinanciar", acrescenta Santirocchi. E talvez a Igreja Católica estivesse muito acomodada em uma zona de conforto, sob o sustento do governo federal. Prova disso é que a separação institucional, em vez de prejudicar o catolicismo, fez com que a religião crescesse no Brasil, fora das amarras do controle governamental. "Depois da separação a Igreja católica cresceu vertiginosamente. Muitas paróquias, dioceses e arquidioceses foram criadas, muitas ordens religiosas vieram para o Brasil", analisa Santirocchi. "O mesmo aconteceu com as religiões protestantes e evangélicas: cresceram, aumentaram a variedade de denominações, nasceram as primeiras igrejas evangélicas brasileiras já no início do século 20." Mas essa separação não foi automática. Primeiro porque era natural uma certa resistência de alguns setores da Igreja e, por outro lado, a complacência de alguns setores da administração pública. Em segundo lugar, o emaranhado entre Igreja e Estado era tão extenso que, realmente, ficava complicado identificar todos os pontos de contato e ingerências da noite para o dia. Em 2017, quando estava pesquisando em diversos documentos e arquivos públicos em busca de informações para meu livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil (Editora Planeta, 2021), deparei-me com uma história bastante inusitada envolvendo o governo brasileiro e o santo português. Desde os tempos coloniais, Santo Antônio vinha sendo nomeado militar - com as mais diversas patentes - em muitas localidades do território brasileiro. Era uma cargo simbólico, obviamente, mas que previa remuneração equivalente ao salário militar compatível com o cargo - dinheiro este que era pago a algum convento ou paróquia. Durante o período em que a corte portuguesa transferiu-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, o então príncipe regente João 6º (1767-1826) publicou um decreto fazendo do santo sargento-mor de todo o exército luso-brasileiro. No documento, o monarca confessou "particular devoção" ao santo e frisou que fazia isto como gratidão pela intercessão do mesmo "em prol da monarquia portuguesa, duramente hostilizada" por Napoleão Bonaparte (1769-1821). Os procuradores do santo eram os frades franciscanos do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro - ou seja, era essa a instituição que ficava com os salários do "militar". O santo acabaria sendo promovido, três anos mais tarde, a tenente-coronel de infantaria. A trajetória militar de Santo Antônio no Brasil chegaria ao fim com a proclamação da República. Ao fazer um pente-fino nas contas estatais, o delegado fiscal do Tesouro Nacional, Antônio de Pádua Mamede, impugnou a inclusão do nome de Santo Antônio nas folhas de pagamento. O argumento era profundamente republicano. "Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo (...) concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes, sob o fundamento de haver o dito Santo Antônio influído para salvar a monarquia portuguesa da grande crise que então atravessava", considerou ele. O processo levou cinco anos para ser aprovado. Em mais um capricho do deus das coincidências, o documento que extinguiu o salário do santo foi assinado por um ministro da fazenda de nome Francisco Antônio de Sales (1863-1933). O ato foi registrado na folha 21 do livro 486 da então diretoria de contabilidade da guerra. Mesmo sem salário, contudo, ainda não havia sido publicado nenhum ato que extinguisse as patentes do santo. Seguia, portanto, o incansável Antônio um eterno integrante do Exército Brasileiro. Até que, em 1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) cobrou de seu ministro da guerra, Fernando Setembrino de Carvalho (1861-1947) que resolvesse a questão. "O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva", escreveu Bernardes. Solucionado o caso. Santo Antônio que desfrute do descanso merecido. No dia a dia da população, a separação entre Igreja e Estado resultou em algumas mudanças. De um lado, a liberdade de culto, inclusive em espaços públicos - com exceção para os espíritas e os de religiões africanas, "que ainda terão de lutar", conforme lembra Santirocchi. De outro, uma questão de ordem burocrática. Antes monopólio das paróquias, os registros de nascimento, casamento e óbitos passaram a ser incumbência do estado. Inclusive com a instituição do casamento civil. E a seguinte criação de cemitérios públicos. Mas, conforme recorda o historiador Victor Missiato, nem só de crucifixos em repartições públicas sobrevive a religiosidade dentro do aparato estatal. "É um processo gradual e relativo", pondera ele. Um exemplo está na educação. Em 1931, em sua primeira passagem pela presidência do país, Getúlio Vargas (1882-1954) promoveu a volta do ensino religioso nas escolas - tornando "facultativo" o que havia sido abolido; na prática, reativando-o. Ensino religioso que, no dia a dia daquele contexto, beneficiava exclusivamente a Igreja Católica. "Nos anos 1920, a Igreja Católica se reaproximou dois políticos. Essa reconciliação ficou mais evidente depois da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder e, alguns meses depois, publicou o decreto que tornava o ensino religioso facultativa nas escolas públicas", afirmou o historiador Angelo Antonio Greco, em sua tese de doutorado defendida em 2017 na Universidade de São Paulo. Segundo Greco, o ensino religioso "foi instrumento de fortalecimento católico, reconquistando espaços perdidos na República Velha". "O decreto de Vargas foi feito claramente em benefício dos católicos e, anos depois, foi incorporado na Constituição de 1934", afirma o pesquisador. "O ensino religioso era considerado como obra principal pelos católicos e houve grande organização na arquidiocese de São Paulo, com fiscais e delegadas fazendo relatórios do seu andamento nas escolas", relata o historiador, destacando que "houve a inserção do ensino católico num ambiente laico", em escolas públicas, "com alunos de outras confissões religiosas". E Deus está mesmo nos detalhes. Victor Missiato lembra que mesmo a Constituição atual, de 1988, parece não se esquecer das relações intrincadas entre religião e Estado. O preâmbulo do texto diz que o mesmo está sendo publicado "sob a proteção de Deus". "A laicidade brasileira é uma laicidade republicana, mas ela tem aspectos morais que, na longa duração, a gente pode dizer que estão ligados a uma visão cristã de sociedade. No Brasil, essa separação entre Igreja e Estado não ocorre de forma nitidamente delimitada", diz. Ele recorda que diversas legislações civis demoraram a perder o lastro religioso, como no caso da lei do divórcio — instituída apenas em 1977. Outro exemplo é o casamento homoafetivo, reconhecido no Brasil apenas em 2013. "Não é uma linha reta. A cultura republicana vai sendo instituída com o tempo, de forma gradual, afastando os temas religiosos dos temas do Estado. Mas até hoje ainda temos muitas relações com a religião, por exemplo no Congresso, onde muitas decisões ainda são pautadas pela religião."
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1z547xjdwo
brasil
Os aliados internacionais de Lula que podem deixar o poder em breve
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciou nesta semana sua 14ª viagem internacional em seis meses de governo. O destino da vez é Bruxelas, onde ele participa de um encontro da União Europeia (UE) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que contará com dezenas de chefes de Estado das duas regiões. Na margem do encontro, na terça-feira (18/7), Lula participará de um encontro com líderes progressistas de Europa e América Latina, organizado pelo Partido Socialista Europeu. O convite a Lula para participar do encontro UE-Celac partiu do presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, do Partido Socialista Obreiro Espanhol (PSOL). A Espanha preside atualmente a União Europeia. Desde que o governo iniciou esforços diplomáticos internacionais sob o slogan informal de “o Brasil voltou” — para marcar oposição ao governo de Jair Bolsonaro, que segundo analistas priorizava pouco a política externa —, Lula tem buscado a aproximação com dois líderes internacionais que em breve poderão estar fora do poder: Pedro Sánchez, na Espanha, e Alberto Fernandez, na Argentina. Fim do Matérias recomendadas A Espanha assumiu no mês passado a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. E isso acontece em um momento em que União Europeia e Mercosul podem estar próximos dos ajustes finais de um acordo de livre comércio que vem sendo discutido desde 1999. O Brasil preside — até dezembro — o Mercosul, também de forma rotativa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O jornal espanhol El País destacou a afinidade ideológica entre os dois líderes. “Pedro Sánchez está quase tão eufórico quanto Lula pela vitória do histórico dirigente sindicalista brasileiro e a derrota do ultradireitista Jair Bolsonaro”, disse o jornal. Na ocasião, Sánchez falou que a coincidência das presidências brasileira no Mercosul e espanhola na UE era uma “excelente oportunidade” para que houvesse avanços concretos nos acordos comerciais. O governo brasileiro havia inicialmente dito que o vice-presidente Geraldo Alckmin iria para a cúpula UE-Celac em Bruxelas. No entanto, após uma conversa telefônica com Sánchez, Lula anunciou que iria pessoalmente ao encontro. O único ponto de discórdia mais evidente entre Lula e Sánchez é a questão da Ucrânia. Na coletiva de imprensa que deram juntos, Lula disse que é inútil debater “quem está certo, quem está errado”. Já Sánchez afirmou, ao lado do brasileiro, que “nesta guerra existe um agressor e uma vítima de um ataque” — acrescentando que o agressor é a Rússia. Apesar da aproximação com Sánchez, especialistas indicam que pode haver incerteza sobre a aproximação entre União Europeia e Mercosul — justamente por causa da Espanha. “As eleições antecipadas na Espanha em 23 de julho correm o risco de afetar a eficácia de Madri em conduzir acordos durante sua presidência do Conselho da UE”, analisa o grupo de consultoria Eurasia Group. Em maio, Sánchez antecipou eleições espanholas de dezembro, que agora serão realizadas no próximo fim de semana. Segundo analistas políticos, o objetivo do líder socialista é “neutralizar uma mudança no ciclo político que favorece a direita”. A direita conquistou diversas vitórias em eleições municipais realizadas em maio, despertando temores na esquerda de uma grande virada ideológica no país. Sánchez disputa a reeleição, mas o líder em algumas pesquisas é o direitista Alberto Núñez Feijóo, do Partido Popular. O crescimento do partido ultra-direitista Vox — e o discurso conservador de Feijóo para conquistar esses eleitores — tem despertado temores entre a esquerda espanhola. Apesar de poder haver uma virada política neste mês na Espanha, com eleição de um líder sem proximidade ideológica com Lula, especialistas dizem que não está claro se isso teria um efeito imediato nas negociações entre União Europeia e Mercosul. Por ora, os maiores opositores das negociações são França e Irlanda. Outro líder internacional com quem Lula tem grande afinidade — e também vital nas relações União Europeia e Mercosul — é o presidente da Argentina, Alberto Fernández. O líder argentino anunciou que não concorrerá à reeleição em outubro deste ano. Seu mandato acabará no dia 10 de dezembro. Faltando três meses para a eleição, o futuro político da Argentina está em aberto. Quatro candidatos aparecem hoje nas pesquisas de opinião: Sergio Massa (ministro da Economia apoiado por Fernández), Patricia Bulrich (oposicionista ligada ao ex-presidente Maurício Macri), Javier Milei (da extrema-direita) e Horacio Larreta (prefeito de Buenos Aires, também ligado a Macri). Desses candidatos, a maior afinidade ideológica de Lula é com Massa. Em Bruxelas, nesta semana, a Celac volta a realizar uma cúpula com a União Europeia após um intervalo de oito anos. Os temas centrais da cúpula são: mudança do clima e transição justa e sustentável; transição digital inclusiva e justa; segurança cidadã, coesão social e combate ao crime transnacional; e comércio e desenvolvimento sustentável e recuperação pós-pandemia. A guerra na Ucrânia pode vir a constar na declaração final da cúpula, mas não existe consenso entre as partes sobre uma posição conjunta. Lula chegou à Bruxelas no domingo (16/7) e tem seus primeiros compromissos nesta segunda-feira (17/7). Ele teve reunião com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e tem prevista participação em um fórum empresarial União Europeia-América Latina. Ao longo da segunda-feira, ele participa da cúpula UE-Celac e tem encontros com líderes de Barbados (premiê Mia Mottley), Bélgica (premiê Alexander de Croo), do Parlamento Europeu (Roberta Metsola), e com o rei da Bélgica, Philippe — além de um jantar de gala à noite. Na terça-feira (18/7), Lula terá o encontro de líderes progressistas com chefes de Estado de Argentina, Chile, Colômbia, Portugal, República Dominicana, Alemanha, Dinamarca e Espanha — segundo o Itamaraty. O encontro é organizado pelo ex-premiê sueco Stefan Löfven, que preside o Partido Socialista Europeu. No mesmo dia, ele participa de sessão plenária da cúpula e tem encontros bilaterais com líderes de Suécia (premiê Ulf Kristersson) e Dinamarca (premiê Mette Frederiksen). Ele deve embarcar de volta para o Brasil no final da terça-feira ou manhã de quarta-feira. O Itamaraty disse que não espera avanços significativos no acordo Mercosul-União Europeia esta semana, já que a cúpula servirá para tratar de temas mais amplos que tocam toda a América Latina e Caribe. Atualmente, os países-membros do Mercosul estão discutindo uma sugestão de resposta elaborada pelo Brasil à mais recente proposta europeia. Somente depois de consenso no Mercosul — que deve acontecer fora do prazo da cúpula — é que as negociações com a Europa devem evoluir. União Europeia e Mercosul fecharam um acordo comercial em junho de 2019. No entanto, esse acordo ainda não foi aprovado por cada um dos países membros. Com o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia vem sinalizando que vai dar prioridade a fechar acordos comerciais com outras partes do mundo — como parte de sua estratégia de busca de parceiros alternativos à Rússia. Mas as negociações para um acordo final que seja aprovado por todos é difícil, sobretudo por resistência de países como França e Irlanda, que temem perdas de seus produtores domésticos com aberturas no setor de agricultura. Europeus têm levantado preocupações ambientais com os países do Mercosul. Já Lula disse neste mês que o bloco sul-americano não abrirá mão do controle de compras governamentais, que é uma forma de estimular empresas nacionais, protegendo-as de concorrência do exterior.
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8y7r4713ro
brasil
Por que há montanhas de milho ao relento no interior do Brasil
As imagens feitas com um drone impressionam: uma montanha dourada se ergue ao lado de um conjunto de silos gigantescos para armazenagem de grãos. Ao lado da pilha, um caminhão graneleiro parece um caminhãozinho de brinquedo e um homem de capacete torna-se um pontinho quase imperceptível. A montanha de milho ao relento, registrada na Cooavil (Cooperativa Agropecuária Terra Viva) em Sorriso, no Mato Grosso, é uma de muitas que se acumulam pelo interior do Brasil, em meio à colheita da maior safra do grão da história do país. Segundo a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), em dados divulgados na quinta-feira (13/7), o Brasil deve produzir 128 milhões de toneladas de milho, somando as três safras do ciclo 2022/2023 — num crescimento de 13% em relação ao ciclo anterior, que já havia sido recorde. A safra gigante tem ajudado a reduzir a inflação no país ao baratear a ração animal e o custo de produção das carnes, que já acumulam queda de preços de quase 6% no ano, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Fim do Matérias recomendadas A safra também tem contribuído para um PIB (Produto Interno Bruto) maior do que o esperado este ano e para superávits recordes na balança comercial brasileira, com o país a caminho de desbancar os Estados Unidos como maior exportador de milho do mundo. Mas a safra recorde de milho, logo após uma safra também recorde de soja, além dos preços em baixa de ambos os grãos, resultaram em armazéns lotados e toneladas de milho armazenadas ao ar livre, expostas a temperaturas elevadas, à possibilidade de chuvas e a ataques de insetos e roedores. O problema já aconteceu em anos anteriores, mas em 2023 está mais grave, de acordo com representantes do agronegócio ouvidos pela BBC News Brasil. Segundo a Câmara Setorial de Armazenagem de Grãos da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (CSEAG-Abimaq), o déficit de armazenagem de grãos no Brasil cresceu de 83 milhões de toneladas em 2022 para 118 milhões de toneladas este ano — também um recorde. A foto citada no início do texto foi cedida à BBC News Brasil pela própria Cooavil. A reportagem tentou ainda ouvir um porta-voz da cooperativa, mas não foi possível por questão de agenda. Paulo Bertolini, diretor da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Miho), explica que o déficit de armazenagem é um problema crônico do agronegócio brasileiro, mas que vem piorando ano após ano. Isso porque a produção de grãos brasileira tem crescido a uma média 9,4 milhões de toneladas por ano, enquanto a capacidade de armazenagem cresce praticamente a metade disso: a um ritmo de 4,8 milhões de toneladas por ano, segundo dados da Conab e da Abimaq. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim, com dois anos seguidos de safra recorde, a armazenagem de milho a céu aberto na segunda safra este ano acontece em volume sem precedentes. "É bem mais do que em anos anteriores e o problema da falta de espaço para armazenagem aconteceu aqui no Paraná já na primeira safra, pela primeira vez na história", relata Bertolini. A título de comparação, enquanto a primeira safra (colhida entre janeiro e fevereiro) somou 27 milhões de toneladas, a segunda safra (atualmente em fase de colheita) deve chegar a 98 milhões de toneladas, com um crescimento em volume de 14% em relação à segunda safra do ano passado, segundo a Conab. Antes chamada de "safrinha", a segunda safra de milho brasileira supera a primeira desde o ciclo de 2011/2012, chegando ao dobro de volume no período 2017/2018 e a mais do que o triplo no ciclo 2022/2023. "Agora está entrando a segunda safra, com volume bastante grande de produção, e ela encontrou os armazéns ainda repletos de soja. Então é um problema crônico, mas que esse ano se agravou substancialmente", diz o diretor da Abramilho. "Quem mais sofre é o milho, porque ele tem um valor agregado menor do que a soja — uma saca de milho vale menos do que a metade que a de soja", acrescenta. "E ele produz duas vezes e meia a mais por hectare, então ocupa duas vezes e meia mais espaço do que a soja ocuparia e gasta duas vezes mais tempo para secar. Então a situação do milho é mais grave, num cenário onde o Brasil não tem capacidade para processar sua produção inteira." Além da safra recorde, a queda de preços dos grãos também explica o grande volume de milho armazenado a céu aberto este ano, diz Sadi Beledelli, presidente do Sindicato Rural de Sorriso (MT). "Como não só o preço do milho caiu, mas o preço da soja caiu, muitos produtores não fizeram negociação de soja ainda, estão mantendo a soja armazenada [à espera de melhores preços]. Então ela está tirando o espaço que seria ocupado pelo milho nesse período", afirma. "Nós não temos armazéns suficientes na região para armazenar as duas safras, então muitos armazéns estão colocando milho a céu aberto, do lado de fora." Beledelli explica que isso é possível no Mato Grosso porque chuvas são raras na região nessa época do ano. Mas a partir de setembro, quando voltam as águas, será necessário colocar todo esse milho em algum lugar, diz ele. João Pedro Lopes, analista de inteligência de mercado da StoneX, lembra que 2021 e 2022 foram anos de preços altos para os grãos. Isso por conta de uma combinação de safras prejudicadas por questões climáticas no Brasil e no mundo; efeitos inflacionários da pandemia de covid-19; desvalorização cambial por aqui; e a guerra entre Rússia e Ucrânia, a partir de fevereiro de 2022, que afetou o embarque de grãos ucranianos e o preço de insumos agrícolas, como os fertilizantes. Em 2023, no entanto, os preços apresentam tendência de queda acentuada, devido à expectativa de forte produção no Brasil, elevada oferta também nos Estados Unidos e, mais recentemente, pela valorização do real, que torna as exportações brasileiras menos atrativas. Assim, a soja, que chegou a ser negociada no porto de Paranaguá (PR) acima de R$ 200 por saca de 60 kg em março de 2022, é cotada atualmente a R$ 145 – uma desvalorização de 30% em relação ao pico, segundo dados do Cepea/USP (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Universidade de São Paulo). Já o milho chegou a R$ 104 a saca de 60 kg em março do ano passado, sendo negociada atualmente a R$ 55, uma desvalorização de 47% em relação ao pico, conforme o índice Esalq/BM&FBovespa. E a falta de espaço para armazenagem pressiona ainda mais os preços, diz Bertolini, da Abramilho. "Quando as cooperativas ficam sem espaço para receber a produção dos seus cooperados, o agricultor que ainda não comercializou a produção que está prestes a colher força o mercado, porque precisa se ver livre da produção que ninguém quer receber, fazendo os preços desabarem", relata. O prejuízo aos produtores devido à falta de estrutura para processamento e armazenagem dos grãos é estimado em R$ 30,5 bilhões na safra 2022/2023, segundo cálculo de Carlos Cogo, da consultoria Cogo Inteligência em Agronegócio, citado pelo diretor da Abramilho. "Na nossa região de Campos Gerais no Paraná, a safra passada do milho veio a R$ 100 a saca, hoje está em torno de R$ 40. Esse valor não remunera os custos de produção e a atividade passa a operar no vermelho", diz Bertolini. "É um prejuízo ao agricultor e um desestímulo para a próxima safra, quando provavelmente haverá uma redução de área de plantio." Segundo estimativa da Abimaq, seriam necessários R$ 15 bilhões em investimentos por ano para frear o aumento do déficit em armazenagem. "O que falta ao Brasil é recurso para financiamento compatível com o tipo de investimento necessário", avalia Bertolini. Ele defende a necessidade de mais verba para o PCA do BNDES (Programa para Construção e Ampliação de Armazéns do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de que o financiamento para investimento em armazenagem chegue na ponta, aos agricultores. Em 2022, apenas 15% da capacidade de armazenagem de grãos no Brasil estava nas fazendas, enquanto 85% estavam em áreas urbanas e industriais, administradas em sua maioria por cooperativas e traders (grandes empresas dedicadas à negociação global de commodities). Nos EUA, em comparação, mais de 60% da capacidade de armazenagem está nas fazendas. O país tem capacidade de armazenar o equivalente a uma safra e meia, cita o diretor da Abramilho, com base nos dados da Abimaq. Procurado, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informou que, para a safra 2023/2024, foram destinados R$ 6,65 bilhões ao PCA. "São R$ 2,85 bilhões para financiar armazéns com capacidade de até 6 mil toneladas, o que corresponde a 80,9% a mais de recursos comparativamente à safra 2022/2023, e R$ 3,80 bilhões para financiar armazéns com capacidade acima de 6 mil toneladas, ou 60,8% acima do que foi programado na safra passada", informou a pasta. "Além disso, existem outras medidas para ajudar o produtor a enfrentar a defasagem, como a linha dolarizada do BNDES que oferece recursos sem limite de volume e tamanho de armazenagem para que o produtor não tenha que vender uma safra a preços baixos para colocar outra no armazém." Já o BNDES afirmou em nota que "atento ao comportamento da demanda e às necessidades do setor, mantém aberto permanentemente o produto BNDES Crédito Rural". "Vale destacar também que para atender aos projetos de armazenagem do segmento, além dos recursos do PCA, o BNDES também realiza operações na modalidade direta, onde o banco assume o risco de crédito", disse o banco de fomento, citando as linhas BNDES Finem e Finame Direto. Para Beledelli, do Sindicato Rural de Sorriso, apenas ampliar o volume de financiamento não basta. "Uma política governamental a respeito de armazenagem tem que ser implantada de forma urgente no país", defende o ruralista. Segundo o representante do setor, é preciso também uma política de Estado para a questão logística, com a melhora das condições de transporte, principalmente através de ferrovias, e o aumento da capacidade dos portos brasileiros. Ele defende ainda a necessidade da desburocratização para que a iniciativa privada possa fazer isso acontecer.
2023-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5jvg73z74o
brasil
Quem são os 'lunaristas', eleitores de Bolsonaro que agora aprovam Lula
Seis meses após o início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), institutos de pesquisa de opinião pública passaram a detectar um fenômeno inesperado. Os achados vão, aparentemente, na contramão do que as pesquisas de intenção de voto apontavam na reta final da acirrada campanha eleitoral do ano passado, quando o percentual de eleitores de Lula e Bolsonaro oscilou pouco. Isso indicava preferência e rejeições fortes dos grupos em relação a Lula e Bolsonaro. Quem apoiava Lula rejeitava Bolsonaro e vice-versa. Agora, alguns desses mesmos institutos de pesquisa começam a mostrar uma mudança nesse cenário. Fim do Matérias recomendadas E dados exclusivos obtidos pela BBC News Brasil ajudam a entender quem são estes "lunaristas" — os bolsonaristas que agora aprovam Lula. Pesquisa de avaliação de governo conduzida pelo Ipec mostrou que 37% de todos os entrevistados aprovam o governo Lula classificando-o como ótimo ou bom. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outros 28% dos entrevistados desaprovam o governo, classificando-o como ruim ou péssimo. Do restante, 32% avaliam o governo como regular e 3% não souberam ou não responderam. Foram ouvidas 2 mil pessoas entre 1º e 5 de junho em 127 municípios e a pesquisa tem uma margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. O detalhamento desses dados feito pelo instituto deu um passo além e mostrou que eleitores de Bolsonaro passaram a aprovar o governo Lula. O Ipec perguntou aos entrevistados em quem eles votaram no segundo turno das eleições. A pesquisa mostra que 8% dos entrevistados que afirmaram terem votado em Bolsonaro aprovam o governo do seu principal adversário político ao classificarem-no como ótimo ou bom. Considerando a margem de erro, esse valor pode estar entre 6% e 10%. A pesquisa também perguntou se os entrevistados aprovavam a forma como Lula vem administrando o país. Na pesquisa geral, 52% dizem aprovar a forma como Lula governa. Entre os eleitores do petista, 88% aprovam Lula, 8% desaprovam e 4% não responderam. Entre os que dizem ter votado em Bolsonaro no segundo turno, são 19% os que aprovam Lula no Planalto, contra 76% que desaprovam e 5% que não quiseram responder. Dados obtidos pela BBC News Brasil com o instituto de pesquisa apontam quem são esses eleitores de Bolsonaro que aprovam a maneira como Lula vem governando. O perfil geral dos "lunaristas" é o seguinte: Com exceção de alguns critérios, os eleitores de Bolsonaro que hoje apoiam Lula incluem homens e mulheres com diferentes níveis de renda e educação. Refletem em linhas gerais as faixas demográficas brasileiras - a margem de erro é de 8 pontos percentuais, resultante do pequeno tamanho da amostra desse recorte da pesquisa. Entre as características mais marcadas dos "lunaristas", está a concentração maior nas cidades do interior (65% deles). Em termos de renda, um total de 23% deles ganham até um salário mínimo, mas a fatia de renda mais numerosa dos "lunaristas" está entre os que ganham entre 2 e 5 salários mínimos, 29%, um público de renda média que Lula já falou explicitamente que quer conquistar. Essa distribuição em várias faixas sugere, na visão da presidente do Ipec, Márcia Cavallari, que o mais relevante para se tornar "lunarista" é o tipo de adesão a Bolsonaro - se mais ideológica e fiel em todas as frentes, ou mais pragmática - e menos o perfil social e econômico. A avaliação é compartilhada por Felipe Nunes, do instituto Genial/Quaest, que divulgou uma pesquisa em junho e também detectou a aprovação do governo Lula por parte do eleitorado bolsonarista (22% dos que dizem ter votado em Bolsonaro no segundo turno aprovam o governo Lula). Para a presidente do Ipec, Márcia Cavallari, "a decisão do voto não é puramente ideológica". "Então, à medida que o governo avança, mesmo quem não votou no Lula e votou no Bolsonaro vai fazendo uma avaliação do governo e pode ir mudando sua posição", disse Cavallari à BBC News Brasil. A presidente do Ipec atribui essa aprovação de Lula entre eleitores de Bolsonaro à sensação de melhora na economia. "Isso acontece por conta de uma percepção de que diminuiu a inflação e o custo de vida. Há uma percepção de que os indicadores econômicos estão melhores, de que ele (Lula) estaria cumprindo o que falou na campanha e de que ele está tomando ações de combate à fome e à pobreza", afirma Cavallari. "O eleitor está dizendo: 'Eu não votei nele, mas estou vendo o que está acontecendo'. O eleitor vai se reposicionando." O diretor da Quaest, Felipe Nunes, também avalia que a percepção de melhora no cenário político pode ter influenciado parte do eleitor que votou em Bolsonaro e que, agora, aprova a gestão de Lula. Ele explica que o eleitorado de Bolsonaro é composto por uma base ideológica e outra pragmática. A ideológica apoia o ex-presidente com base nas ideias defendidas por ele —Bolsonaro ficou conhecido por se posicionar contra a expansão de direitos femininos e LGBTQIA+ e a descriminalização das drogas e por se associar fortemente a segmentos considerados mais conservadores da sociedade como o eleitorado evangélico, aponta Nunes. Ele diz, no entanto, que o eleitorado "pragmático" de Bolsonaro é aquele que percebeu uma melhora no ambiente econômico no final do ano passado, quando o governo criou benefícios sociais às vésperas do período eleitoral. Segundo Nunes, é essa parcela do eleitorado bolsonarista que aprova agora o governo Lula. "Esse eleitorado que vota não pela ideologia, mas por pragmatismo, é o que está se movendo neste momento. Ele é minoritário, mas existe", diz Nunes à BBC News Brasil. Nunes cita como exemplos desse pragmatismo as respostas dos entrevistados que disseram ter votado em Bolsonaro a perguntas sobre a economia do país. "No caso dos alimentos, metade da população diz que o preço parou de subir, o que é muito importante. Em relação aos combustíveis, parte desse eleitorado afirma que o preço caiu", afirma Nunes. "Quando você junta a queda no preço dos combustíveis de um lado e a percepção de que os alimentos pararam de subir, de outro, você tem um efeito econômico observado diretamente." O IPCA-15 (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15), conhecido como uma prévia da inflação oficial, desacelerou em junho pelo quarto mês seguido, para 0,04%, segundo divulgou o IBGE. Foi a menor variação mensal desde setembro de 2022, quando houve deflação de 0,37%. Esther Solano, professora de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), diz que essa compreensão de que o eleitorado bolsonarista não é homogêneo é chave para entender o surgimento dos "lunaristas". “Nós temos, de um lado, o eleitorado mais ideológico, mais radicalizado, e fiel ao presidente. Depois, nós também temos um eleitorado mais moderado que votou de fato no Bolsonaro, mas que não adotou um discurso antipetista tão raivoso, tão violento e agressivo", diz Solano. "Nesse eleitorado mais moderado, uma boa parte já votou no Lula em gestões passadas e tem uma lembrança positiva desses governos”. Para a professora da USP, esta não é uma base cativa do ex-presidente. Questionada se esse apoio pode se refletir nas eleições municipais de 2024, Esther Solano segue a mesma linha de Márcia Cavallari e Felipe Nunes ao afirmar que o PT deve se fortalecer, mas que a corrente bolsonarista também deve continuar forte. “O campo petista entra com mais força por estar no poder, e a centro-direita tradicional continua com um grande problema porque não está se reestruturando e se reinventando", afirma Solano. "Mesmo agora com a inelegibilidade de Bolsonaro, o ecossistema bolsonarista é muito importante. Digitalmente, eles ainda são protagonistas. Ele ainda tem uma força simbólica muito grande.” Apesar de os dois institutos terem registrado a existência de eleitores de Bolsonaro aprovando o governo Lula, os diretores do Ipec e da Quaest afirmam que isso não significa que esses eleitores votariam no petista em uma eventual nova disputa contra o ex-presidente. Segundo eles, a conversão da aprovação em votos depende de outros fatores que não se resumem à percepção da situação da economia. "A eleição é fruto de um debate e de uma comparação. O governo pode estar comemorando essa aprovação, mas isso não é garantia de sucesso eleitoral mais adiante", diz Nunes. "Se o tema principal das próximas eleições foram valores ou costumes, de nada vai adiantar essa avaliação positiva da economia ou, pelo menos, não será preponderante", segue Nunes. Márcia Cavallari concorda que só a aprovação do governo não é suficiente. "A pessoa pode estar aprovando o governo agora, mas isso não significa que ela irá, necessariamente, votar neste governante. É preciso fidelizar esse eleitor antes", diz. Segundo ela, as eleições no Brasil são marcadas por uma personalização da disputa em torno da figura dos candidatos e por uma baixa identificação dos eleitores com partidos. "Precisa de muito mais coisa (que a melhora econômica) para fidelizar. Tem um elemento forte de empatia porque as pessoas não conseguem distinguir diferenças entre os partidos, é uma eleição muito personificada", diz Cavallari. Isso faz com que características pessoais de quem disputa os cargos tenham um peso muito alto na decisão do voto. A fidelização de novos eleitores fica ainda mais difícil neste cenário, especialmente se eles estão em um campo político diferente da candidatura que busca seus votos. "Ainda é cedo para falar que há uma fidelização (para Lula do eleitor que votou em Bolsonaro)", diz Cavallari. Nunes enxerga um possível teto para a aprovação de Lula entre eleitores de Bolsonaro. "Eu tenho dúvidas se esse fenômeno vai continuar ou se haverá um contingente maior do que o que a gente observou (até agora) porque a gente estaria chegando ao limite daquilo que seria o eleitorado pragmático de Bolsonaro. Esse eleitorado é menor (que o ideológico)", diz. Para Esther Solano, o apoio de bolsonaristas a Lula é frágil e depende de se o partido vai conquistar espaço em debates em que o bolsonarismo é dominante, como “os valores da antipolítica, a luta contra a corrupção, da ordem e da fé”. "Se o PT conseguisse fazer essa disputa ideológica dos princípios, dos valores e das questões simbólicas, aí de fato ele teria uma fortaleza maior.” Nota da redação: O trecho desta reportagem que detalha o perfil dos "lunaristas" foi alterado em 14/07/2023. A versão anterior da reportagem apontava que esse detalhamento se referia ao grupo de eleitores de Bolsonaro que classificava o governo de Lula como bom ou ótimo - o que representa 8% dos eleitores de Bolsonaro. Na verdade, esse detalhamento se refere aos 19% dos eleitores de Bolsonaro que aprovam o governo Lula.
2023-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c98eqj941lpo
brasil
Vídeo, Como mudanças climáticas influenciam nos ciclones que causam destruição no BrasilDuration, 4,42
A passagem de um ciclone extratropical pela região Sul do país nesta semana vem causando estragos e traz riscos de corte de energia, queda de árvores e grandes transtornos nas cidades atingidas. De acordo com Estael Sias, meteorologista do MetSul Meteorologia, o aquecimento global tem contribuído para o surgimento de ciclones extratropicais atípicos, que podem se formar com mais rapidez e causar impacto maior. Elementos como o fenômeno El Niño, que aumentam a umidade, acabam potencializando ainda mais a força das chuvas. A repórter Giulia Granchi explica a formação desses ciclones e como as mudanças climáticas influenciam na frequência do fenômeno.
2023-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66200577
brasil
Vídeo, Deflação: como queda nos preços pode impactar seu bolso e economia do BrasilDuration, 3,47
Quedas nos preços dos combustíveis, do carro novo, e de alimentos como carne e leite levaram o país a registrar em junho a primeira deflação de 2023. O cenário também representa um alívio para as famílias, combinado a um momento de renda em alta, fruto de um mercado de trabalho ainda aquecido e benefícios sociais ampliados. Mas o IPCA em terreno negativo deve ter vida curta, e a expectativa é de que a inflação volte a crescer a partir de agosto. A repórter Thais Carrança explica o impacto da deflação no dia a dia da economia e por que ela não deve durar muito.
2023-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66200574
brasil
Vídeo, As razões para o Brasil liderar ranking de países onde mais se acredita em DeusDuration, 7,36
Uma pesquisa produzida pelo instituto Ipsos indicou que, no Brasil, 89% dos entrevistados acreditam em Deus ou em um poder superior. O Brasil está, ao lado da África do Sul, no topo de um ranking de 26 países. Entre os países pesquisados, o Brasil ficou 28 pontos percentuais acima da média na crença em Deus, que foi de 61%. Quais são os motivos para essa relação historicamente muito próxima entre o brasileiro e a fé? Assista e confira.
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66187889
brasil
'Achei que era piada, mas me curou': como é o transplante de fezes, que Brasil estuda regulamentar
Durante dez meses, um desequilíbrio intestinal severo causado por uma bactéria fez com que a aposentada Sônia Maria Vitor Oliveira, de 67 anos, tivesse diarreias incontroláveis e persistentes. "Eu sofria noite e dia, sem controle algum do meu corpo. Precisei usar fraldas e cheguei a perder 45 quilos", conta ela. A bactéria Clostridium difficile, que causou o problema de saúde de Sônia, está presente no organismo de qualquer pessoa. No entanto, quando há uso prolongado ou descuidado de antibióticos, as bactérias podem se deslocar, causando o quadro chamado de colite pseudomembranosa, apontam especialistas. Trata-se de uma inflamação do cólon, região central do intestino grosso, que causa febre, dor abdominal e diarreia. Fim do Matérias recomendadas Sônia, por exemplo, precisou usar várias medicações diferentes nos últimos anos devido a pressão alta e diabetes, passou por um transplante de rim e teve uma infecção grave por covid-19 durante a pandemia. O uso prolongado de diferentes medicações, de acordo com o médico Felipe Tuon, que acompanhou Sônia, contribuiu para a disbiose — o desequilíbrio de bactérias na flora intestinal. Sem apetite e perdendo peso continuamente, ela foi internada no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba, no Paraná — um dos hospitais universitários que pesquisam transplante de fezes atualmente no Brasil. "Passei 63 dias internada, foi um período muito difícil. Os médicos encontraram várias úlceras [feridas] no meu intestino. Quando descreveram isso, fiquei com medo de ter câncer. Mas, depois de alguns exames, constataram que era essa bactéria que estava causando os danos." Quando escutou do médico a recomendação de um transplante de fezes, Sônia pensou que se tratava de uma brincadeira. "Eu dei risada, mas ele logo me disse que era sério, e depois acrescentou de forma bem humorada: 'É um transplante de cocô mesmo. A senhora topa fazer?' E eu não pensei duas vezes. Disse que se fosse para o meu bem, toparia, sim." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Também chamado de transplante de microbiota fecal, o procedimento é simples e tem como objetivo transferir bactérias intestinais de um doador saudável para uma pessoa que está com a flora danificada. O primeiro trabalho descrevendo esse procedimento foi feito em 1958, mas, no Brasil, o transplante de fezes aconteceu pela primeira vez apenas em 2013. Apesar do nome sugestivo, não são literalmente fezes que são colocadas no paciente doente. O bolo fecal passa por um procedimento para separar as bactérias "boas", que são os microorganismos presentes no organismo humano que exercem papéis positivos, como ajudar na digestão, fortalecer o sistema imunológico, produzir vitaminas essenciais, competir com bactérias prejudiciais e manter o equilíbrio do microbioma. Depois, o conteúdo pode ser injetado como pó, após passar por processo de desidratação, ou líquido, a forma mais utilizada, que precisa ser armazenada em um ultrafreezer (-80°C), o que garante a sua viabilidade por cerca de quatro meses. O procedimento é similar à colonoscopia, exame que analisa o intestino grosso. Depois de tomar um remédio contra diarreia e ser sedado, o paciente recebe uma injeção do transplante da amostra fecal no cólon através de um tubo de colonoscopia. "O remédio contra a diarreia segura as bactérias saudáveis no organismo, o que aumenta as chances de se proliferarem e auxiliarem no tratamento", explica o infectologista Felipe Tuon, responsável pelo projeto no Hospital Universitário Cajuru. Para Sônia, o transplante foi um sucesso. "Em dez dias não tive mais diarreias, pude parar de usar fraldas e voltar a sair de casa", conta. De acordo com Tuon, entre os 30 pacientes que já foram atendidos gratuitamente pelo projeto, 27 tiveram sucesso na cura dos quadros. "Como pesquisador, embora seja empolgado por trazer benefícios, às vezes sou bastante cético", diz o médico. "E é também por isso que o transplante surpreende tanto: realmente os pacientes apresentam uma resposta maravilhosa, muitos cessam a diarreia em 24 horas. Além disso, o procedimento evita necessidade de cirurgia, tempo prolongado de internação e infecções por bactérias multirresistentes." Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), outra que oferece transplantes de fezes dentro de um protocolo de pesquisa feito no hospital universitário, a taxa de sucesso também é alta: 11 dos 12 pacientes que passaram pelo procedimento tiveram resultados satisfatórios, segundo informou a instituição à BBC News Brasil. Com a triagem correta do material fecal, o procedimento é considerado seguro e bem tolerado pelo organismo humano. Os possíveis efeitos colaterais são leves, incluindo dores abdominais, desconforto gástrico, inchaço, constipação e diarreia. Embora rara, há a possibilidade de transmissão de doenças entre o doador e o receptor - ou pela falta de triagem adequada ou por quadros que não foram identificados nos testes de triagem. Em 2022, locais como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália receberam a aprovação dos órgãos reguladores de saúde locais para realizar o transplante fecal como opção oficial de tratamento contra infecções recorrentes por superbactérias. "Nos Estados Unidos, inclusive, já estão mais avançados: a FDA [órgão regulador equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil, a Anvisa] aprovou dois comprimidos diferentes que funcionam como transplante de microbiota por via oral", explica Eduardo Vilela, gastroenterologista e coordenador do Centro da UFMG. Por enquanto, a indicação do uso é para casos como o de Sônia, pela bactéria Clostridium difficile. Mas há estudos em curso para avaliar se a técnica pode ser efetiva para doenças como Síndrome do Intestino Irritável e Doença de Crohn. Já no Brasil, a técnica ainda não foi aprovada e regulamentada pela Anvisa e, por isso, não pode ser amplamente oferecida em hospitais. As universidades que oferecem o procedimento estão dentro de um protocolo de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa — e devem seguir as regras estipuladas no projeto autorizado. A Anvisa afirmou à BBC News Brasil que recebeu recentemente um pedido de "enquadramento regulatório" para este tipo de tratamento. "O ‘enquadramento regulatório’ define qual o caminho de regularização necessário para uma nova tecnologia", informou a agência. "No momento, os técnicos estudam o assunto e buscam informações em agências internacionais de referência." O infectologista Felipe Tuon considera que a história do transplante de fezes está "apenas começando" no Brasil. "Ainda é um desafio sem uma legislação específica, mas estamos trabalhando nesse sentido, para que o procedimento seja regulado e que possa ser inspecionado pelos órgãos fiscalizadores, garantindo a segurança para os pacientes", afirma. Dentro de seus projetos de pesquisa, tanto o Hospital Universitário Cajuru quanto a UFMG, que atende por meio do Hospital das Clínicas, tentam construir bancos de fezes — locais de estoque de material fecal de doadores saudáveis. “É uma forma de facilitar a oferta para os pacientes que atendemos, e nossa ideia é expandir para oferecer material não só para a nossa instituição, mas também para fora”, afirma Tuon. Atualmente, os grupos de pesquisadores enfrentam o desafio de encontrar doadores. "A triagem é extremamente rigorosa, mais exigente que um transplante de órgão. É feita uma entrevista e uma série de exames de sangue e de fezes para garantir que não ocorra nenhuma transmissão de infecção viral, bacteriana, fúngica ou parasitária", detalha o médico do Hospital Universitário Cajuru. Eduardo Vilela, coordenador do projeto da UFMG, complementa que os critérios clínicos incluem não ter doença crônica ou em curso e não usar medicamentos de uso contínuo, não ter sofrido infecção gastrointestinal nos últimos seis meses e ter boa saúde cardiovascular. O candidato passa por uma bateria completa de exames, com vários testes sanguíneos para detectar possíveis infecções transmissíveis, além de avaliação clínica e laboratorial. Por fim, seu material fecal passa por testes moleculares que visam detectar patógenos que não estão causando nenhum sintoma naquela pessoa, mas podem vir a causar no receptor. "Já avaliamos mais de 170 doadores, e só 6 cumpriram todos os requisitos necessários", diz Vilela. "Conseguir um material biológico perfeito é uma preocupação muito grande, já que a segurança é essencial para quem vai passar pelo transplante." No Brasil, poucos centros contam com iniciativas semelhantes, e as doações acabam sendo realizadas conforme a demanda. Por ser uma técnica ainda não regulamentada, se há alguém com indicação de transplante de fezes internado em um hospital, o procedimento pode ser realizado com o consentimento do paciente, que assina um termo. "Como não há banco de fezes nos hospitais, eles chamam um familiar que passa por toda a triagem", explica Tuon. "É um processo complicado de se fazer dessa forma individual, porque a pessoa tem que coletar imediatamente, analisar esse material, e o outro paciente tem que estar preparado para fazer o transplante. E ainda há chances de não ser um material biológico ideal."
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd16x2d9p62o
brasil
O que pode acontecer com nigerianos que chegaram ao Brasil escondidos em navio
Os quatro homens nigerianos encontrados no leme de um navio na Baía de Vitória, no Espírito Santo, terão de deixar o Brasil em até 25 dias, segundo a Polícia Federal. No entanto, há alternativas para a permanência do grupo no país (leia mais abaixo). De acordo com um delegado da corporação, os imigrantes não “faziam ideia” de onde iriam parar quando se esconderam na embarcação. Classificados pela PF como “clandestinos”, eles foram descobertos por tripulantes de outro navio que passava ao lado do veículo onde eles estavam. A polícia foi então acionada e uma equipe resgatou os homens escondidos no leme, na parte de fora do navio de carga, que tinha como destino o porto de Santos. Segundo a PF, para fugir da Nigéria, o grupo se escondeu no navio Ken Wave, que possui bandeira da Libéria, pouco antes de ele deixar o porto de Lagos, maior cidade nigeriana, no dia 27 de junho. Fim do Matérias recomendadas “Eles estavam em uma situação bem precária, mas não tinham problemas graves de saúde. Estavam há alguns dias sem comida e há pelo menos quatro dias sem água”, conta o delegado Ramon Almeida, chefe da delegacia de imigração da superintendência da PF no Espírito Santo. Segundo ele, dois imigrantes do grupo falavam inglês e conseguiram se comunicar com os policiais. Ao embarcar em Lagos, eles levaram alimentos e água, mas os suprimentos acabaram ao longo da viagem. “Nossa experiência mostra que essas pessoas simplesmente se escondem nas embarcações sem nem saber qual será seu destino final. Elas podem parar em qualquer porto do mundo”, diz o delegado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo Eugênio Ricas, superintendente da PF no Espírito Santo, os homens nigerianos vão ficar sob responsabilidade da empresa dona do navio Ken Wave “até a devolução compulsória à Nigéria” em 25 dias. De acordo com o delegado Ramon Almeida, a empresa dona do navio é a responsável legal por mantê-los em um hotel no Brasil e por financiar seu retorno ao país africano - mesmo que a companhia não tivesse conhecimento de que os nigerianos estavam na embarcação. “Eles têm autorização para permanecer por 25 dias no Brasil, até obter documentos, adquirir passagens e retornar à Nigéria”, disse Almeida. Porém, há algumas alternativas para o grupo permanecer legalmente no Brasil: pedir refúgio ou residência permanente. Segundo Marina Rongo, assessora do programa de fortalecimento do espaço Democrático da ONG Conectas, há dispositivos na Lei de Migração, aprovada em 2017, que podem ser utilizados para impedir a repatriação dos nigerianos. “Há a disposição de que não procederá a repatriação quando existirem razões que possam colocar a pessoa em risco, ainda que se alegue que eles não tinham documentos", explica. "Eles foram encontrados em situação de extrema vulnerabilidade, debilitados, com fome e frio, em uma viagem longa de muito risco”, diz. Marina Rongo afirma que os quatro rapazes podem solicitar refúgio no país - e a análise dos casos vai ser feita pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare). “Cada caso será analisado individualmente por meio de entrevistas, levando em consideração cada uma das histórias. Enquanto o Conare não decidir, e isso pode demorar meses ou até anos, eles podem permanecer no Brasil”, diz. Segundo dados do Conare de 2022, em média, a análise sobre um pedido de refúgio demora 3,6 anos para ser dedicida pelo órgão. A Lei de Refúgio, aprovada em 1997, considera refugiado quem “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”. A definição também se aplica a quem, “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. O caso dos nigerianos se encaixaria no primeiro caso, segundo Marina Rongo, da ONG Conectas. Segundo dados do Conare, de 1985 a dezembro do ano passado, o Brasil reconheceu 156 nigerianos como refugiados, o que representa 26% do total de pedidos de refúgio dessa nacionalidade. Embora o número seja baixo, regiões de São Paulo, como a zona leste, têm grande concentração de nigerianos com residência permanente ou sem presença regularizada. No total, o Brasil concedeu 65.811 refúgios nesse mesmo período. A grande maioria deles foi para venezuelanos (53.307 casos - ou 97% dos pedidos dessa nacionalidade). O Brasil também concede a sírios, afegãos, haitianos e ucranianos o chamado “visto humanitário”, uma modalidade especial de vistos que atende pessoas oriundas de países “em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos”. Esse tipo de visto tem caráter emergencial e busca facilitar o acesso de pessoas desses grupos. Outra possibilidade para a permanência dos quatro nigerianos seria pedir residência permanente no Brasil. Esse benefício pode ser dado em caso de emprego no país, período de estudos ou casamento - e eles teriam 120 dias para provar alguma dessas condições. O caso dos quatro nigerianos encontrados no leme do navio no Espírito Santo é um exemplo da grave crise humanitária e social que a Nigéria vivencia nos últimos 20 anos. A crise é causada principalmente pela insurgência do grupo islâmico Boko Haram, que ocupa parte do nordeste do país, trava conflitos armados contra as forças de segurança e promove violações de direitos humanos. Segundo a Acnur, agência da ONU para refugiados, “embora os militares nigerianos tenham recuperado o controle em partes do nordeste do país, civis na Nigéria, Camarões, Chade e Níger continuam sendo afetados por violações graves de direitos humanos, violência generalizada de gênero e sexo, recrutamento forçado e atentados suicidas”. A agência aponta que o conflito com o Boko Haram produziu 304,5 mil refugiados nigerianos - e mais de 2,4 milhões de deslocados dentro do próprio país. Formado em 2002, o Boko Haram combatia uma guerra contra o poder central na Nigéria com a intenção de estabelecer um controle islâmico sobre o Estado de Borno, no nordeste do país. A Nigéria tem a maior economia da África e é um dos grandes exportadores de petróleo do mundo. O país tem um PIB (Produto Interno Bruto) de US$ 440 bilhões, segundo dados do Banco Mundial de 2022. A Nigéria também tem também a maior população da África, com 213 milhões de habitantes, segundo o Banco Mundial. Está acima da Etiópia (121 milhões) e do Egito (107 milhões). Além de populoso, o país é dividido religiosa e culturalmente, com um norte majoritariamente muçulmano, o sul do país predominantemente cristão e uma faixa de maior mistura na parte central.
2023-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2l902p2el0o
brasil
Como deflação em junho deve impactar seu bolso e economia brasileira nos próximos meses
Quedas nos preços dos combustíveis, do carro novo, e de alimentos como carne e leite levaram o país a registrar em junho a primeira deflação de 2023. O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) teve queda de 0,08% no mês passado, em relação a maio, divulgou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nesta terça-feira (11/7). Essa foi a menor variação para o mês de junho desde 2017, quando o índice foi uma deflação de 0,23% O resultado ficou praticamente em linha com a expectativa dos economistas, que era de uma queda de 0,09% para o IPCA em junho, segundo a mediana das expectativas colhidas pelo boletim Focus do Banco Central. Com o resultado, a inflação acumulada em 12 meses caiu de 3,94% em maio para 3,16% em junho, menor patamar desde setembro de 2020. Fim do Matérias recomendadas A deflação em junho fortalece a expectativa de que o Banco Central deve começar a cortar a taxa básica de juros a partir de agosto, avaliam economistas. O cenário de desinflação também representa um alívio para as famílias, combinado a um momento de renda em alta, fruto de um mercado de trabalho ainda aquecido e benefícios sociais ampliados. Mas o IPCA em terreno negativo deve ter vida curta, e a expectativa é de que a inflação volte a crescer a partir de agosto, com a taxa em 12 meses encerrando o ano pouco abaixo dos 5%. Entenda nesta reportagem: Entre os principais destaques da queda da inflação em junho está um recuo de 1,85% dos combustíveis, com quedas do óleo diesel (-6,68%), do etanol (-5,11%), do gás veicular (-2,77%) e da gasolina (-1,14%). A variação negativa reflete corte de preços anunciado pela Petrobras em junho – foi o segundo corte feito pela empresa, desde que a estatal comunicou a mudança da sua política de preços, em meados de maio. Com a mudança, a Petrobras abandonou o chamado PPI (preço de paridade de importação), que desde 2016 atrelava o valor dos combustíveis no mercado interno à variação do petróleo no exterior e do câmbio, passando a considerar outros fatores na formação de preços. Outro fator a puxar a inflação para baixo no mês foi o programa do governo federal de descontos para carros populares, lançado em 6 de junho e encerrado na última sexta-feira (7/7). De acordo com o MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), foram comercializados no período 125 mil carros com descontos entre R$ 2 mil e R$ 8 mil. Com isso, os preços do automóvel novo caíram 2,76% no IPCA de junho, conforme o IBGE, e os dos usados recuaram 0,93%. Outro destaque no mês foi a alimentação no domicílio (-1,07%), com quedas nos preços do óleo de soja (-8,96%), frutas (-3,38%), leite longa vida (-2,68%) e carnes (-2,10%). Vilãs da inflação nos últimos anos, as carnes já acumulam queda de preços de 5,89% em 2023. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "As carnes vêm refletindo a cotação internacional e os preços do atacado, que caíram muito e ainda não tínhamos tido um repasse equivalente [nos preços ao consumidor]", observa Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos. "Há um aumento de oferta [de animais para abate nos frigoríficos e carne nos açougues] e também insumos mais baratos, com soja e milho [usados na ração animal] caindo bastante", acrescenta Andréa Angelo, analista de inflação na gestora de investimentos Warren Rena. Na ponta positiva, as maiores altas foram registradas no grupo de habitação (0,69%), devido a reajustes de energia elétrica e água e esgoto em algumas capitais. O grupo de saúde e cuidados pessoais (0,11%) foi influenciado pela alta nos preços dos planos de saúde (0,38%), decorrente do reajuste de até 9,63% autorizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em 13 de junho. Em transporte, o destaque foi a alta de 10,96% das passagens aéreas em junho, após queda de 17,73% em maio. Embora a inflação tenha dado folga em junho, o alívio deve durar pouco e a expectativa dos economistas é de que o IPCA volte a registrar variações positivas de agosto até o fim do ano. Em julho, o resultado ainda deve ser próximo de zero, ou até mesmo ligeiramente negativo, preveem os economistas da Ativa e da Warren Rena, devido a uma combinação de fatores. Neste mês, passa a valer a reoneração total do PIS/Cofins para a gasolina e o etanol, após corte de impostos feito pelo governo Jair Bolsonaro (PL) às vésperas da eleição de 2022 e mantido pela gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos primeiros meses de governo. No entanto, o efeito da reoneração foi parcialmente compensado por mais um corte de preços de combustíveis da Petrobras, de R$ 0,14 por litro da gasolina, que entrou em vigor em 1º de julho. Além disso, os alimentos devem continuar em baixa no mês e as contas de luz dos consumidores vão ficar pontualmente mais baratas, devido ao repasse do chamado "Bônus de Itaipu", um crédito nas faturas de energia elétrica resultado de um saldo positivo na comercialização de energia da usina binacional em 2022, observa Andréa, da Warren Rena. A partir de agosto, esse efeito pontual sobre as contas de luz desaparece e a queda no preço dos alimentos deve perder força. Com isso, o IPCA deve voltar ao campo positivo de agosto a dezembro. A taxa acumulada em 12 meses, que chegou a 3,16% em junho, também deve voltar a crescer até o fim do ano, prevê Sanchez, da Ativa. Isso porque, com o passar dos meses, irão saindo desta conta as deflações registradas em julho (-0,68%), agosto (-0,36%) e setembro (-0,29%) de 2022 – quando o país registrou uma rara sequência de três meses de quedas do IPCA, sob o impacto do corte de impostos da gasolina, aprovado por Bolsonaro em meio à sua tentativa frustrada de reeleição. "Vamos observar esse trimestre deflacionário [de julho a setembro de 2022] saindo da média móvel", diz Sanchez. "Então não é que a inflação mensal vá explodir, mas há uma normalização." Embora a deflação não deva persistir nos resultados mensais do IPCA nos próximos meses, o resultado negativo de junho deve contribuir para que o Banco Central inicie o corte da taxa básica de juros a partir de agosto, avaliam os economistas. "As expectativas de inflação estão voltando para a meta e o câmbio também está ajudando bastante. Todos esses fatores vão ajudar o Banco Central a iniciar esse relaxamento monetário", diz Andréa, da Warren. "Isso aos poucos vai ajudar o crédito a ficar mais barato e é isso que chega na ponta para o consumidor", completa a economista. Quando os juros caem, isso barateia o crédito para o consumo das famílias e investimento das empresas, contribuindo para um maior dinamismo da atividade econômica – é por isso que o nível de juros se tornou um "cavalo de batalha" entre BC e governo Lula nos últimos meses. Além disso, a perda de força da inflação representa um alívio para o orçamento das famílias, que veem seu poder de compra menos pressionado pela alta de preços. Também é um fator positivo para o governo, que se beneficia de uma percepção melhor da população com relação à economia. Não à toa, a queda de preços aos consumidores tem sido comemorada por Lula nas redes sociais. Sanchez observa, porém, que o processo de desinflação ainda ocorre de forma mais vagarosa do que o ideal. No acumulado de 12 meses, o IPCA foi de 10% em 2021, para 5,90% em 2022 e a expectativa do mercado agora é de que chegue a 4,95% em 2023. A meta de inflação é de 3,25% este ano, mas, com a margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos, ela chega a 4,75% em seu limite superior. Assim, a expectativa dos analistas é de que o afrouxamento monetário deverá ser feito pelo BC em ritmo lento. Sanchez espera um corte de 0,25 ponto percentual em agosto e, depois sucessivos cortes de 0,50 ponto, levando a Selic dos atuais 13,25% para 12% ao fim deste ano e 9% em 2023.
2023-07-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72lw9pkk00o
brasil
Mauro Cid em silêncio: 4 perguntas que CPI deve fazer a braço direito de Bolsonaro
Fim do Matérias recomendadas A defesa de Cid não respondeu às tentativas de contato da BBC News Brasil. A defesa de Bolsonaro disse que não comentaria o assunto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O depoimento de Cid é fundamental para isso, dizem parlamentares aliados do Planalto. “Estaremos na busca de informações que possam ajudar nas respostas dos dois pontos centrais da CPMI: quem são os fiadores e os autores (dos atos de 8 de janeiro)”, disse a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), relatora da comissão, à BBC News Brasil. “O Cid é militar, e a presença de militares é uma realidade (no 8 de janeiro). A tática usada para ter acesso à Praça dos Três Poderes foi militar. Avançaram em grupo, usaram água dos hidrantes para dispersar os efeitos do gás lacrimogêneo e usaram as grades de proteção como escada. Houve organização”, afirma Gama. Já a oposição defendeu a instauração da CPMI para apurar supostas omissões do governo federal na segurança de Brasília. Esses parlamentares alegam que, neste contexto, a convocação de Cid é desnecessária, apostando que seu depoimento em nada deve acrescentar à investigação. “O depoimento do Cid é 'cortina de fumaça' para desviar a apuração da omissão do governo que permitiu os lamentáveis eventos do 8 de janeiro, deixando de cumprir suas funções constitucionais e legais de prover segurança, a despeito das contundentes informações do sistema de inteligência”, afirma o senador Eduardo Girão (Novo-CE). “Portanto, buscaremos elaborar perguntas que possam ajudar a esclarecer quem foram os verdadeiros responsáveis por aqueles fatos. Tanto quem cometeu a ação violenta, bem como quais autoridades foram omissas.” Girão argumenta que as convocações mais importantes da CPMI são para ouvir aliados de Lula, como o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB): “Precisamos saber onde estava a força de segurança convocada pelo Ministério da Justiça”. O Ministério da Justiça afirmou à BBC News Brasil que a segurança da Praça dos Três Poderes é, constitucionalmente, atribuição do governo do Distrito Federal e que o plano de segurança alinhado com o Planalto não foi cumprido. Antes do início da audiência, já se sabia que Mauro Cid poderia ficar em silêncio, porque conseguiu no STF o direito de não responder aos questionamentos que possam prejudicá-lo na Justiça. Cid recorreu ao Supremo para não ir à CPMI, alegando que foi convocado como testemunha, mas também é investigado. A ministra Cármen Lúcia determinou que deveria comparecer e, se desejar, permanecer em silêncio. Se a CPMI identificar algum crime por meio do depoimento de Cid, deve informar isso às autoridades competentes para que elas as medidas necessárias, já que a comissão pode investigar, mas não aplica punições. “Ela faz um relatório com o resumo do que aconteceu e encaminha para as autoridades, como o Ministério Público, para as devidas providências”, explica o advogado Marcelo Crespo, coordenador de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Um dos pontos que os parlamentares devem abordar com Cid são justamente as mensagens de suposto teor golpista em seu celular. Ele também deve ser questionado sobre a minuta de um decreto de garantia de lei e ordem para intervir no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reverter o resultado das eleições. Porém, uma das principais dúvidas em torno do depoimento de Cid diz respeito não a ele exatamente, mas a seu ex-chefe direto: Jair Bolsonaro. Mauro Cid é oficial do Exército com mais de 20 anos de carreira. Seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, foi colega de turma de Bolsonaro na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) nos anos 1970. Cid se preparava para assumir um posto nos Estados Unidos quando foi nomeado para ser ajudante de ordens de Bolsonaro, pouco antes da posse do ex-presidente. Ele era considerado o braço direito do então presidente e prestava assistência direta a Bolsonaro, inclusive para assuntos pessoais. “O Cid é militar e ouvia os reclames das pessoas que defendiam o golpe. Então temos que entender que mediação ele fez e que tipo de informação levou ao Bolsonaro", pontua a senadora Eliziane Gama. O depoimento de Cid poderia, neste contexto, ajudar a esclarecer pontos que Gama considera importantes. "Qual o tipo de conversa que Bolsonaro teve com pessoas que estavam incentivando os atos golpistas? E como se deram as reuniões entre eles no período mais central disso, entre novembro e dezembro?", diz a senadora. Gama afirma esperar que o ex-ajudante de ordens se cale em partes de seu depoimento, mas avalia que mesmo isso pode ser valioso para os objetivos da comissão. “Há informações que ele naturalmente não vai querer dar, mas vamos seguir", afirma a relatora da comissão. "O depoente não tem direito ao silêncio irrestrito. Ele tem o direito de não se autoincriminar, mas pode responder aquilo que não o incrimina. Então, se ele não responder algo, já é um indicativo de que podemos nos aprofundar naquilo em que ele silencia.” Segundo a revista Veja, um relatório da PF arponta que Mauro Cid travou conversas com o coronel Jean Lawand Junior, então gerente de ordens do Alto Comando do Exército (ACE), com um suposto apelo de golpe de Estado ao então presidente Jair Bolsonaro. "Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer. Ele não pode recuar agora. Ele não tem nada a perder. Ele vai ser preso. O presidente vai ser preso. E, pior, na Papuda, cara", afirmou Lawand Junior em um áudio a Cid, em 1º de dezembro de 2022. Cid respondeu: "Mas o PR [Presidente da República] não pode dar uma ordem...se ele não confia no ACE". Em outra mensagem, em 10 de dezembro, Lawand Junior enviou outra mensagem: "Cid pelo amor de Deus, o homem tem que dar a ordem. Se a cúpula do EB [Exército Brasileiro] não está com ele, de Divisão pra baixo está". Cid respondeu: "Muita coisa acontecendo...Passo a passo", e recebeu de volta do coronel a resposta: "Excelente". Na última troca de mensagens entre eles, em 21 de dezembro, Lawand Junior escreveu: "Soube agora que não vai sair nada. Decepção irmão. Entregamos o país aos bandidos". Cid respondeu: "Infelizmente". Em depoimento à CPMI, no fim de junho, Lawand Junior negou que tenha incentivado um golpe. "Em nenhum momento falei sobre golpe, atentei contra a democracia brasileira ou quis quebrar, destituir, agredir qualquer uma das instituições. Fui infeliz. Minha colocação foi muito infeliz, não tenho contato com ninguém do Alto Comando. Não deveria tê-la feito", afirmou O cientista social Jonas Medeiros, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), diz que um ponto que precisa ser esclarecido no depoimento de Cid é quais medidas ele tomou após travar esses diálogos com o coronel. “Ele tem sido econômico nas palavras e lacônico sobre o que foi tornado público até o momento”, avalia Medeiros. Para Medeiros, Cid teria alguma responsabilidade por ter recebido propostas e clamores de projetos supostamente golpistas, mas não deve ser responsabilizado individualmente pelos atos. “É uma situação que precisa ser explicada, porque, para que as pessoas conseguissem fazer o que fizeram, só pode ter ocorrido uma omissão das forças de segurança”, diz Medeiros. O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), chegou a ser afastado por 90 dias, durante as investigações sobre os atos golpistas, pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. O governo federal também fez uma intervenção temporária da segurança da capital. Após Ibaneis retomar o cargo, ele afirmou que houve um "apagão geral" em 8 de janeiro que culminou nas invasões aos prédios. "O que aconteceu no dia 8 de janeiro foi imprevisível", justificou Ibaneis ao retomar o governo do DF. O então secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, chegou a ser preso por uma suposta omissão na segurança no dia, o que ele nega. A decisão partiu de Alexandre de Moraes, que atendeu pedido da Advocacia-geral da União. O ministro determinou sua liberação após quatro meses. Um outro questionamento considerado importante por especialistas é o que Cid tem a dizer sobre as diversas conversas sobre os supostos planos de golpe de Estado e se compactuava com essa ideia. "Ele está sendo assessorado por advogados com uma estratégia jurídica de que, se ele tinha planos golpistas, é preciso entender que a maré mudou. Ou seja, a banalização da defesa de um golpe contra a eleição não existe mais", avalia Medeiros. "Depois do 8 de janeiro, passou a ser possível reprimir e não permitir legitimidade pública disso que circulou.” Para que Cid não crie possíveis provas contra si, as perguntas sobre um eventual apoio de Cid ao plano de golpe podem ficar sem respostas na CPMI, apontam especialistas. “Uma pessoa que é ouvida como testemunha não pode calar a verdade, precisa dizer os fatos. Uma testemunha não pode optar por não falar. Está previsto no Código de Processo Penal que a testemunha é obrigada a dizer a verdade, inclusive se não disser o que sabe pode responder por falso testemunho.", explica o advogado Marcelo Crespo. "Mas, ao mesmo tempo, quem é investigado não é obrigado a produzir prova contra si.” No entanto, o mesmo direito ao silêncio foi concedido ao coronel Lawand Júnior. Apesar da permissão do STF para não responder perguntas que pudessem incriminá-lo, Lawand afirmou na comissão que estava à disposição para responder aos questionamentos dos parlamentares. Ele afirmou na ocasião que sua intenção na troca de mensagens com Cid, ao pedir uma manifestação de Bolsonaro, seria "apaziguar o país" e evitar uma "covulsão social". "A sociedade brasileira, dividida em opiniões, acerca de 'o que vai contecer?', 'o que vai ser agora?', 'como foi o pleito?'. A gente vendo aquelas pessoas, a insegurança trazida por aquilo, que podia levar a alguma convulsão social, a alguma revolta, a um problema na segurança, foi o que eu falei", disse Lawand Júnior. O relatório da PF sobre o que foi encontrado no celular de Mauro Cid aponta que o documento com instruções para um suposto golpe de Estado foi criado em 25 de outubro de 2022. O documento, intitulado "Forças Armadas como poder moderador", lista entre as ações a serem tomadas a declaração de um estado de sítio, a nomeação de um interventor, o afastamento e abertura de inquéritos contra ministros do TSE e outras autoridades e a fixação de um prazo para novas eleições. O documento aponta que as medidas poderiam ser tomadas após autorização do presidente da República. Não há indícios, no entanto, de que o texto tenha sido encaminhado a Jair Bolsonaro, nem de conversas com esse teor entre Cid e o ex-presidente. Uma outra minuta semelhante foi encontrada pela PF na casa do ex-ministro da Anderson Torres, que decretava estado de defesa no Brasil, possibilitando a revisão do resultado das eleições de 2022 após a vitória de Lula. Torres disse na época que o documento foi divulgado fora do contexto para "alimentar narrativas falaciosas" contra ele. "Tenho minha consciência tranquila quanto à minha atuação como ministro”, disse. Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro, chegou a afirmar que várias minutas golpistas circulavam no entorno do ex-presidente. “É importante estabelecer quem redigiu os documentos que vieram a público, como a minuta do golpe. Quem redigiu isso? A partir disso é possível entender melhor como a proposta desse golpe era aventada”, afirma Medeiros. O advogado Marcelo Crespo pontua que esclarecer a autoria da minuta e o envolvimento de Cid nisso pode ter implicações sérias para o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro na apuração de uma suposta tentativa de golpe de Estado, crime que pode ser punido com até 12 anos de prisão. "Se ele recebeu a minuta do golpe e estava articulando esse golpe, ele responde na Justiça por tentativa de golpe contra o Estado democrático de direito. Tudo depende do que ficar comprovado da conduta que ele praticou. Se ele recebeu a minuta e de alguma forma estava articulando (um golpe), ele responde por isso", explica Crespo.
2023-07-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4npg9m01e8o
brasil
'Reforma tributária acabou desfigurada, mas Senado pode melhorar', diz economista Felipe Salto
Antes um defensor da reforma tributária, o economista Felipe Salto se converteu em um dos mais duros críticos da mudança dos impostos aprovada na Câmara nesta quinta (6/7) e que, após análise de destaques, segue ao Senado. "A proposta original da reforma tributária, a PEC [Proposta de Emenda Constitucional] 45, tinha as bases corretas: a migração da tributação para o destino [isto é, para o local de consumo de um produto ou serviço], a não cumulatividade plena e a ideia de que haveria uma simplificação geral, com uniformidade de alíquota em todo o território nacional. Isso tudo era positivo", enumera Salto. "O problema é que o texto foi sendo modificado, de modo que acabou desfigurado." Pelo texto aprovado, cinco tributos que incidem sobre o consumo – PIS, Cofins, IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal) – serão unificados em um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), dividido em duas partes. A CBS vai substituir os impostos federais e o IBS, os tributos estadual e municipal. Entre os pontos criticados por Salto estão o que ele considera: Fim do Matérias recomendadas Atualmente economista-chefe e sócio da gestora de investimentos Warren Rena, Salto foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado (2016-2022), sendo uma das vozes mais atuantes no debate sobre as contas públicas no país. Conselho Federativo O primeiro ponto problemático, segundo o economista, é a previsão de criação de um Conselho Federativo – órgão que ficará responsável pelo recolhimento e distribuição do IBS, imposto que substituirá o ICMS estadual e o ISS municipal – com amplos poderes. Pelo texto aprovado, o conselho poderá arrecadar, normatizar, regulamentar, ter iniciativa de lei complementar, partilhar recursos entre os entes federados e devolver créditos aos contribuintes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Tem aí um problema federativo de autonomia", avalia Salto, fazendo eco às críticas de prefeitos e governadores, que foram um dos pontos sensíveis da tramitação da proposta na Câmara. Além da perda de autonomia de Estados e municípios, o economista vê problema na questão da devolução dos créditos para os contribuintes intermediários, que são aqueles do meio das cadeias produtivas. No modelo atual de tributação, os bens e serviços são tributados em todas as etapas da cadeia, e os tributos incidem uns sobre os outros. A ideia com a devolução de crédito seria acabar com esse "efeito cascata", garantindo a chamada não-cumulatividade plena. "Quando você diz que o conselho, por meio de conta central, vai garantir automaticamente essas devoluções, pode-se produzir um incentivo perverso, que é a geração de notas frias para produzir crédito que não deveria ser pago", diz Salto. "Isso só se resolve com fiscalização, por isso a arrecadação deveria ficar a cargo de cada ente federal", defende o analista. Exceções à alíquota geral Um segundo problema, segundo Salto, são as diversas exceções à alíquota geral do IBS, ampliadas no texto final aprovado na Câmara na quinta-feira. A lista de bens e serviços que terão alíquota reduzida (equivalente a 40% da alíquota padrão, ainda não definida), inclui os setores de: educação, saúde, instrumentos e equipamentos médicos, medicamentos e itens de saúde menstrual, serviços de transporte coletivo, produtos e insumos agropecuários, e atividades artísticas e culturais. "Com todas as exceções aprovadas, a alíquota geral vai ter que ser maior [para que não haja perda de arrecadação]", diz Salto. "E uma lei complementar ainda vai detalhar tudo isso, o que pode aumentar o número de exceções. Tudo isso quebra a ideia de uniformidade, de não haver exceções." Guerra fiscal pode não acabar Um terceiro problema citado por Salto é que um dos objetivos da reforma tributária seria acabar com a chamada "guerra fiscal" – prática adotada pelos Estados de oferecer desonerações de ICMS às empresas para atrair investimentos. Essa meta, segundo ele, pode não ser atingida. Salto observa que os incentivos serão substituídos por um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, com aportes que somarão R$ 160 bilhões entre 2025 e 2032. "O problema é que há um artigo na PEC, que garante que a União vai ter que cobrir no fundo todo e qualquer incentivo que se mostre convalidado nos termos da lei complementar. Então, no limite, se os R$ 200 bilhões de incentivos que existem hoje forem todos considerados legítimos, a União pode ter que colocar muito mais dinheiro", diz Salto. Isso representaria a manutenção de incentivos que distorcem a alocação econômica e produzem efeitos negativos sobre o crescimento econômico até 2032, considera o economista. Transição para o IBS Outro fator que pode impedir o fim da guerra fiscal é a janela de transição para a criação do IBS, avalia o economista-chefe da Warren Rena. Pela proposta aprovada na Câmara, o IBS será instituído com alíquota de 0,1% em 2026. Até 2028, o novo imposto vai conviver com o ICMS e o ISS sem mudança de alíquotas nos tributos antigos. A partir de 2029, os impostos antigos começam a ser reduzidos, em 10% ao ano, até 2032. Assim, segundo Salto, ao final de 2032, o ICMS e o ISS terão alíquotas equivalentes a 60% das atuais. "Para que [a tributação] migre para o destino, nós temos que acreditar que não vai haver pressão nenhuma para que esses 60% de ICMS não continuem vigorando além de 2032. Ou seja, que da noite pro dia esse ICMS de 60% vá passar a zero", diz Salto. "Isso é um risco porque, ao manter uma alíquota grande para um imposto ruim que enseja benefícios fiscais – o que não é proibido pela PEC –, você pode ensejar a concessão de novos incentivos tributários. Aí há o risco de não termos a migração para o destino nem em uma década." Cesta básica Por fim, Salto cita como um último ponto problemático da reforma tributária aprovada na Câmara a dupla desoneração da cesta básica. Atualmente, os produtos da cesta básica são desonerados em 100% de PIS e Cofins, tributos sobre consumo cobrados pelo governo federal. A isenção é considerada mal focalizada, já que beneficia indistintamente ricos e pobres. A ideia original da reforma tributária era reonerar a cesta básica e passar a devolver os impostos pagos à população de baixa renda, mecanismo chamado de "cashback". No entanto, mediante pressões no processo de tramitação, acabou sendo aprovada a manutenção da desoneração da cesta, cuja composição será fixada em lei complementar. Mas a possibilidade de devolução de impostos também foi mantida no texto. Assim, a má focalização se mantém e ainda não há clareza de como vai funcionar a cumulatividade de desoneração e cashback. "Eles fizeram isso por conta da pressão dos supermercados", avalia Salto. "Melhor seria o cashback focalizado, que dava para viabilizar porque há, por exemplo, a experiência em São Paulo da Nota Fiscal Paulista, que devolve imposto para as pessoas que pedem nota fiscal nos estabelecimentos. Outros Estados têm modelos similares, com programas de cidadania fiscal que viabilizam a devolução de uma parte do ICMS para as pessoas." Apesar dos diversos problemas apontados por Salto, ele avalia que nem tudo está perdido, já que ainda há a possibilidade de o Senado melhorar o texto, que deverá passar por votação na casa no segundo semestre. "Espero que o Senado dê essa contribuição, porque a Câmara atropelou todo o processo tradicional de tramitação – não teve comissão, não teve o devido debate da nova proposta, o texto demorou para ser divulgado, tanto o preliminar, quanto os dois textos finais", diz o economista. Para Salto, o Senado deveria extinguir o Conselho Federativo e devolver a Estados e municípios a responsabilidade por suas respectivas arrecadações; revisitar a questão das exceções à alíquota geral; discutir a transição para o IBS, tornada demasiado longa pela Câmara, na avaliação do economista; e reanalisar a questão do fundo de compensação de benefícios. "O Senado é a casa da federação e acho que os senadores, até por serem em número menor de parlamentares do que na Câmara, tendem a promover discussões mais aprofundadas e exercer esse papel de casa revisora ", afirma. Em seu périplo para fazer as críticas à reforma serem ouvidas, Salto chegou a se reunir com Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo e que foi um dos mais vocais contra o Conselho Federativo e a perda de autonomia dos Estados. Tarcísio, no entanto, acabou recuando, mediante a concessão pelo relator de algumas mudanças na governança do Conselho Federativo. A guinada do governador de São Paulo foi considerada decisiva para a aprovação da reforma antes do recesso parlamentar e levou a um desgaste entre Tarcísio e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que se colocou contrário à reforma. Questionado sobre a mudança de posição de Tarcísio, Salto afirma que o governador conseguiu mudanças relevantes na formatação do conselho. Pelo texto aprovado, serão 27 representantes estaduais, 14 representantes eleitos pelos municípios e outros 13 eleitos pelos municípios, mas levando em conta o número de habitantes. "Com isso, Estados populosos vão ter uma influência grande sobre o conselho", observa Salto. "Não estou dizendo que isso é suficiente – por mim, tinha que fulminar o Conselho Federativo. Agora, ele [Tarcísio] conquistou isso e tomou a decisão que achou que tinha que tomar." O debate sobre a reforma tributária entre os economistas foi acalorado nas últimas semanas. Do lado contrário à proposta, se colocaram Salto, e fiscalistas como Everardo Maciel, Fernando Resende, Jorge Rachid, José Roberto Afonso, Marcos Cintra e Selene Peres Nunes. A ponta a favor reuniu um manifesto com mais de 60 nomes, incluindo Armínio Fraga, Affonso Celso Pastore, Maílson da Nobrega, Guido Mantega, Octaviano Canuto e Edmar Bacha. "Acho que a democracia é assim mesmo", diz Salto, quando questionado sobre a experiência de estar em lado oposto a economistas que ele admira. "A divergência no campo técnico tem que ser exaltada e os pontos têm que ser colocados na mesa. Acho que é da vida, às vezes você fica de um lado, às vezes de outro – o importante é ter convicção técnica das coisas que se está defendendo, e isso eu tenho." Com passagens pelo Senado e governo paulista, Salto chegou a ser cotado para a equipe econômica do governo Lula, mas acabou não sendo escolhido e assumiu um cargo no mercado financeiro. Mas ele admite desejar voltar ao setor público. "Gostei muito das passagens que tive no setor público. Foram oito anos em Brasília e um ano na Fazenda de São Paulo, que foi a experiência profissional mais gratificante que já tive", afirma. "Estou tendo uma boa experiência no mercado financeiro, era uma lacuna que eu tinha na minha carreira profissional, mas eu de fato gosto muito do setor público e, em algum momento, pretendo voltar."
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw5gy0reykro