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brasil
Quem foi Oswaldo Aranha, o brasileiro que ajudou a criar o Estado de Israel
“Sua atuação no cenário internacional estava dentro da questão do excedente de poder, um conceito de política externa que trata das coisas que criam condições para que você crie outras”, diz à BBC News Brasil o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha) e associado sênior na organização desarmamentista Middle East Treaty. “A participação do Brasil [na criação do Estado de Israel] foi importante para o país mostrar capacidade de gerir assuntos complexos de paz que não são de sua região. Até hoje nos dá prestígio no cenário internacional”, acrescenta. Fim do Matérias recomendadas “Ao lado de Ruy Barbosa [(1849-1923)], Barão do Rio Branco [(1845-1912)] e Bertha Lutz [(1894-1976)], é um dos nomes mais importantes da diplomacia brasileira. Simboliza um Brasil que se lançava para o mundo”, afirma à BBC News Brasil o economista Robert Georg Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sua biografia indica uma facilidade inata para intermediar conflitos e buscar soluções. “Ele tinha uma aptidão muito grande para questões internacionais desde cedo”, diz à reportagem o cientista político Christopher Mendonça, professor na Ibmec de Belo Horizonte. “Aranha nasceu no lugar onde é praticamente fronteira do Brasil com Argentina e Uruguai [o município de Alegrete] e jovem esteve em países como França, Itália e Suíça. Esse conhecimento internacional fez dele uma pessoa de destaque nesse assunto.” Graduado pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, hoje Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), logo em seguida passou uma temporada de estudos em Paris. Só então se viu talhado para começar a carreira, como advogado, no Rio Grande do Sul. Logo sua trajetória se misturaria com a política. Em 1923, tinha 29 anos quando explodiu a luta entre chimangos e maragatos — e ele chegou a pegar em armas para lutar a favor do sistema republicano em seu estado. Dois anos mais tarde tornou-se prefeito de sua cidade natal — e lembrado até hoje como o introdutor do sistema de esgoto no município. Nesse período, o diplomata dentro dele pareceu saltar aos olhos. Os resquícios do conflito de dois anos atrás ainda ecoavam em sua Alegrete, fazendo com que famílias distintas se vissem como rivais. Ele conseguiu selar a paz. Aranha parecia galgar uma ascensão meteórica. Em 1927, foi eleito deputado federal. No ano seguinte, foi nomeado secretário de Negócios Interiores e Exteriores do Rio Grande do Sul. Pouco tempo depois, ele era um dos principais articuladores da chamada Aliança Liberal, campanha que organizou o golpe armado que deporia o presidente Washington Luís (1869-1957), fazendo a Revolução de 30 que acabaria levando o seu conterrâneo gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República pela primeira vez. Foi nessa época que a amizade de ambos se tornou forte. “Ele passou a fazer parte do gabinete governativo de Vargas”, pontua Mendonça. Foi ministro da Justiça e, depois, da Fazenda. Seu olhar estava sempre mirando o exterior — tanto que em sua gestão no comando das finanças públicas promoveu um levantamento que, pela primeira vez, consolidou o montante da dívida externa brasileira. Mendonça lembra que era um momento delicado para as contas, já que o planeta vivia o rescaldo da intensa crise de 1929, quando houve a quebra da bolsa de valores de Nova York e uma reação em cadeia pelos mercados mundo afora. A amizade com Vargas, contudo, não fazia dele um apoiador inconteste. Em 1934, após uma série de desentendimentos, ele pediu demissão do cargo. Foi quando acabou nomeado embaixador brasileiro em Washington. “Ele foi colocado nessa posição por sua grande capacidade em assuntos internacionais e habilidade de mediação política”, ressalta Mendonça. “Aranha era um admirador dos Estados Unidos, de como uma ex-colônia se tornava uma democracia pujante. Ao mesmo tempo, ele era antifascista e pró-democracia e isso é uma característica na qual ele foi muito coerente ao longo de sua carreira”, diz Bandarra. Durante sua gestão, ele costurou alguns tratados importantes. Em 1935, por exemplo, Brasil e Estados Unidos firmaram um compromisso comercial mútuo que é considerado basilar para a aproximação histórica entre as duas nações. Ele também se aproximou do presidente Roosevelt, de quem se tornou amigo, e formou uma comitiva que o trouxe para visitar o Rio de Janeiro, em 1936. “Os Estados Unidos ainda não eram um país de referência, uma potência global, mas Oswaldo Aranha teve o feeling, a capacidade de ver neles uma grande capacidade do ponto de vista econômico e militar”, analisa o cientista político. No ano seguinte, houve nova rusga com Vargas. “Foi quando o presidente redigiu o decreto do Estado Novo. Aranha criticou”, lembra Mendonça. O episódio precipitou sua demissão do posto em Washington. “Ele tinha uma relação próxima com Vargas, mas era uma relação crítica, com momentos de proximidade e momentos de separação, de corte de relações formais com o governo”, explica Bandarra. “Isso só reforça que ele falava o que pensava, o que acreditava.” Em 1938, ambos se aproximaram mais uma vez. Oswaldo Aranha acabou nomeado ministro das Relações Exteriores. E aí seu papel se tornou crucial para os rumos adotados pelo país durante a Segunda Guerra Mundial, conflito que ocorreu entre 1939 e 1945. O primeiro ponto elementar de sua gestão à frente do Itamaraty foi reforçar os laços brasileiros dentro das relações americanas. “Ele lutou pela aproximação comercial com a Argentina e os Estados Unidos e, vale dizer, os dois são até hoje parceiros muito importantes para o Brasil. Nesse sentido, Aranha foi responsável pelo padrão da política externa brasileira ainda vigente”, argumenta Mendonça. Com a guerra, havia uma pressão para o posicionamento brasileiro dentro do conflito. Em 1942, na Conferência do Rio que foi presidida por ele, Aranha declarou o rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com os países do Eixo. “Esse foi o passo fundamental para a aproximação do Brasil com os países que posteriormente venceram a Segunda Guerra”, analisa Mendonça. “Havia no país um flerte com o autoritarismo, inclusive com o nazismo. Nesse sentido, ele teve o mérito de fazer com que o país se mantivesse dentro dos preceitos da democracia, da liberdade.” O cientista político Bandarra afirma que, no governo Vargas, Aranha se contrapunha a dois outros nomes sobre o posicionamento brasileiro na guerra: o então chefe da polícia política Filinto Müller (1900-1973) e Enrique Gaspar Dutra (1883-1974), que ocupava o posto de ministro da Guerra. “Estes eram favoráveis a uma relação próxima com os países do Eixo. Aranha teve uma atuação forte nos bastidores para que o Brasil ficasse ao lado dos Aliados”, diz. No princípio, o diplomata advogou pela chamada equidistância, em que o país deveria assumir uma pretensa neutralidade no conflito, tentando se beneficiar de ambos os lados. “Seria um equilíbrio pragmático, uma neutralidade positiva”, afirma Bandarra. “Em seguida, ele puxou para o caminho mais próximo com o lado americano, pela questão do panamericanismo, da democracia e tudo isso”, complementa. “Ele foi uma pessoa que pensou à frente na questão da posição do país no cenário internacional.” “Era um momento muito conturbado da política internacional e, ao mesmo tempo, um momento em que o Brasil estava se lançando ao mundo, se mostrando para o mundo”, comenta Uebel. “Oswaldo Aranha teve um papel fundamental nisso, reafirmando a imagem do Brasil como um país antifascista e antinazista, um país alinhado aos valores ocidentais.” Em 1944, novamente enfraquecido no governo, decidiu pedir demissão do cargo de ministro. Havia um rumor de que ele seria um nome forte para disputar as eleições para a presidência em 1945, mas não houve base política suficiente para bancá-lo na corrida. Quando a Organização das Nações Unidas foi criada, ele logo assumiu o cargo de chefe da delegação brasileira, a partir de 1947. Foi aí que ocorreu seu papel-chave na criação do Estado de Israel. “Ele já estava fora da agenda política e foi recolocado no cenário pelo presidente Dutra [que sucedeu Vargas]. Pode parecer inesperado, porque eles tinham uma relação anterior problemática, mas, durante seu governo, ele se tornou um pró-americanista incisivo na política externa, então fazia sentido chamar de volta o Aranha”, analisa Bandarra. Aranha se tornou o presidente da II Assembleia Geral da ONU, justamente aquela que votou o plano para a partição da Palestina. A resolução estava longe de ser um consenso, e mesmo entre aqueles que defendiam a criação de um novo Estado não havia posição unânime sobre as formas de dividir o território. “Ele tinha uma boa aproximação com os judeus que viviam nos Estados Unidos e isso influenciou em sua postura”, afirma Mendonça. “Sua motivação não era apenas política, mas também pessoal.” “Mas a criação do Estado não foi consensual. Havia interesses difusos durante o processo de negociação, o que causou muitas intercorrências. O papel de mediador de Aranha, hábil, foi fundamental para a negociação”, complementa o cientista político. “Eu diria que ele foi muito bem-sucedido ao manobrar os interesses das partes”, afirma Bandarra. Utilizando a história do Brasil como exemplo, o diplomata soube conduzir as discussões dentro daquilo que, ao menos sob o prisma da época, parecia ser o mais adequado. “Aranha negociou bastante, inclusive acionando contatos nos governos, principalmente nos Estados Unidos. E buscou formas alternativas de como chegar ao resultado, de como deveria ser feita a partilha do território”, explica Bandarra. O pesquisador afirma que eram muitas as propostas e, para defender a solução que acabaria adotada naquele momento, Aranha usou como exemplo a história da definição das fronteiras do Brasil. “No final, foi o critério que se usou: quem está ocupando deve ter a terra”, diz. Se por um lado, naquele momento parece ter funcionado — e o processo ocorreu com rapidez — por outro ele traria problemas, segundo o especialista. “A Palestina ficou com duas partes desconectadas, foram criados dois exclaves, digamos, e isso dificulta bastante até hoje a viabilidade do Estado Palestino. É uma coisa que não ficou solucionada”, diz Bandarra. Mas, conforme ressalta o pesquisador, é inegável que Aranha “manobrou de diversas formas para que, no final, conseguisse uma boa votação e a consequente aprovação da resolução” que dividiu a Palestina e criou Israel. “Foi uma posição bem feita, embora poderia ter levado outros fatores em consideração para evitar futuros problemas”, critica ele. “É preciso lembrar, entretanto, que foi uma solução relativamente rápida e isso é uma coisa importante. Mostra eficiência na negociação e vontade de resolução.” Para Uebel, é preciso lembrar que Aranha “é reconhecido até hoje pelo papel de destaque” nesses primeiros anos da ONU e isso está atrelado ao seu trabalho pela aprovação da criação do Estado de Israel. “Ele construiu todo o diálogo político necessário”, comenta. “Havia também a preocupação humanista de Aranha em busca de uma solução para um povo que havia sido tão perseguido, que havia acabado de sofrer o Holocausto na Segunda Guerra.” Houve ganhos simbólicos também para a política externa brasileira. “Isso demonstra também que Aranha já pensava na época em colocar o Brasil na agenda internacional”, acrescenta. Um dos motivos que faz com que o país historicamente abra as assembleias gerais da ONU é justamente em homenagem ao trabalho de Aranha no período. “De forma geral, a trajetória de Oswaldo Aranha mostra que ele viveu momentos de grande necessidade da atuação forte da diplomacia brasileira. Foi ministro da Fazenda em um momento crucial, pós-Crise de 1929, conduziu o Brasil no mercado internacional de maneira importante através de assinaturas com Estados Unidos e Argentina, foi referência na entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, nos primeiros passos da ONU”, diz Mendonça. “É um nome inescapável dentro da história diplomática.” Além dos logradouros públicos com seu nome, uma das mais curiosas homenagens que acabaram por eternizar a memória do diplomata é um prato, o filé à Oswaldo Aranha. Trata-se de um bife de filé mignon ou contra-filé, fartamente temperado com alho frito, acompanhado de batatas, arroz e farofa de ovos. O apelido pegou porque essa era a receita que ele costumava pedir no restaurante Cosmopolita, chamado popularmente de Senadinho, que ele costumava frequentar na Lapa, no Rio.
2023-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wxwr76er1o
brasil
Como PCC fez Paraguai virar um dos países com maior presença de crime organizado no mundo
No ranking de 2023, a nação saltou para a 4ª posição entre os 193 membros da ONU incluídos no estudo, atrás apenas de Colômbia, México e Mianmar, o atual líder. A pontuação do Paraguai é agora de 7,52. A classificação é obtida por meio da média de notas atribuídas em diferentes categorias. A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrou em contato com diversos órgãos públicos e ministérios do Paraguai, assim como com o gabinete da Presidência de Santagio Peña, para analisar este resultado, mas não obteve respostas. Fim do Matérias recomendadas A operação contra o narcotráfico e a lavagem de dinheiro chamada "A Ultranza PY", a maior da história do país, realizada em 2019, deixou claro que as coisas mudaram nos últimos anos na nação sul-americana. Esta operação levou à destituição de ministros e à prisão de 24 pessoas por supostos vínculos com organizações de narcotraficantes. Para Carolina Sampó, doutora e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), os criminosos no Paraguai se aproveitaram durante anos da “falta de reputação do país como exportador de drogas para reenviar cocaína sem serem detectados e dirigi-la a portos de saída não tradicionais e rotas contraintuitivas como aquelas que se iniciam no porto de Buenos Aires, de San Antonio, ou de Montevidéu”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pecci investigava casos de corrupção e lavagem de dinheiro de alto perfil quando foi assassinado em sua lua de mel na Colômbia. “Todos os mercados e atores criminosos que se encontram nas Américas estão presentes em vários países. Esses mercados criminosos interconectados e transnacionais aproveitam situações de liderança e governança deficitárias”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. “Os pontos de 2023 mostram que a região das Américas continua dominando o comércio mundial de cocaína como principal mercado de origem da droga”, acrescentam. O Brasil está na posição 22 no ranking de 193 países e é o sétimo com maior criminalidade organizada das Américas, segundo a lista. Para começar, especialistas apontam que o país está situado no coração da América Latina, fazendo fronteira com mercados enormes como Brasil, Argentina e Bolívia. Só isso já torna o Paraguai geograficamente atraente. Além disso, pelo menos outros 8 fatores ajudam a explicar como o país sul-americano se transformou em um centro criminoso internacional: A maior vigilância nos portos da Argentina e do Brasil fez com que o Paraguai se tornasse um centro internacional de distribuição de cocaína andina graças à sua proximidade geográfica com dois dos principais produtores desta droga, Peru e Bolívia. “Isso é algo novo. A cocaína que vem do Peru, da Colômbia ou do Equador chega ao Paraguai em pequenos aviões e é transportada até os portos de Buenos Aires e Montevidéu, que ficam no Atlântico, ou passa pelos portos do próprio país. A partir daqui, a cocaína começa a ser enviada para países da Europa, da África ou mesmo do Oriente Médio”, afirma Juan A. Martens, pesquisador da Universidade Nacional de Pilar e do Inecip (Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais) do Paraguai. “Os movimentos aéreos são movimentos curtos, o que os torna muito fáceis. Em muitos casos nem é necessário que os pequenos aviões pousem, eles só jogam a cocaína do ar em um campo e voltam”, diz Sampó. Nesta chegada aos portos atlânticos, desempenha um papel fundamental um dos maiores sistemas navegáveis ​​do mundo, no qual, mais uma vez, o Paraguai está geograficamente localizado no centro. É a hidrovia Paraná-Paraguai. Com extensão de 3.442 quilômetros, atravessa ou tem ramificações na Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. “O Brasil é um mercado de 200 milhões de pessoas. Por água, apenas uma hora nos separa do maior estado brasileiro. De Saltos del Guaira, no norte do Paraguai, é uma hora de barco até o estado de São Paulo, que tem 45 milhões de habitantes.” “É muito fácil traficar por essa via”, diz o pesquisador paraguaio. O Paraguai cultiva cerca de 7 mil hectares de maconha por ano. “Sempre foi um espaço territorial complexo no que diz respeito à criminalidade. A primeira questão é a quantidade e a qualidade da produção de maconha na região de Pedro Juan Caballero e como essa produção de maconha deu origem a graves conflitos entre diferentes organizações criminosas brasileiras e clãs locais”, diz Sampó. “Os níveis de consumo de maconha no Brasil são muito elevados e a qualidade da maconha de Pedro Juan é a mais alta da região. Ao unir produtores a clientes, o negócio vale milhões no Brasil”, afirma a pesquisadora argentina. É pela necessidade de controlar a circulação dessa droga que ocorre a expansão do tráfico de drogas. O Paraguai passou de primeiro produtor de maconha da América do Sul a um dos principais distribuidores de cocaína, apesar de não produzi-la. “A presença do cartel se estende por todo o Paraguai. A expansão do PCC para países vizinhos e suas conexões com redes internacionais sublinham a crescente influência do grupo na América do Sul”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. Sampó explica que o PCC escolhe o Paraguai para sua expansão devido à proximidade com os centros de distribuição de maconha e cocaína. “Sua chegada tem a ver com um primeiro desembarque para controlar a maconha e depois se expande para diversos espaços do Paraguai, rurais e urbanos, onde recriam suas rígidas estruturas de organização criminosa”. A partir daí, a organização expande seus negócios e começa a transportar cocaína do Peru e da Bolívia para o Paraguai e de lá para o porto de Santos. O porto de Santos é o principal porto do Brasil e da América Latina. Posteriormente, viria a expansão de outras rotas, principalmente aquelas que têm a ver com o uso da hidrovia e a saída pelos portos de Buenos Aires e Montevidéu. “O cartel nasce nas prisões. É uma organização criminosa enorme e muito complexa. Para ingressar, é preciso ser batizado, é preciso passar por um processo de admissão”, afirma a pesquisadora. “O que começamos a ver entre 2018 e 2019 é que começam a haver batismos dentro das prisões paraguaias de paraguaios, não de brasileiros. Dos paraguaios que começam a pertencer ao PCC. E assim a organização amplia sua base dentro do território paraguaio”, afirma. Diferentes organizações internacionais afirmam que o Paraguai tem um problema de corrupção generalizado, que afeta todos os níveis de governo e da sociedade, tanto na esfera pública como na privada. “As pontuações do Paraguai, Venezuela e Nicarágua sugerem que os criminosos têm um nível preocupante de influência na sociedade e nas estruturas estatais”, diz o relatório produzido junto do índice. A chegada da cocaína do Paraguai aos portos da Bélgica, Holanda e Alemanha atraiu a atenção da Europol, da DEA (Administração de Fiscalização de Drogas, dos EUA) e de outras agências internacionais, o que tornou visível o vínculo institucional que existe entre o crime organizado e o poder público. Martens lembra os casos do ex-deputado Juan Carlos Ozorio, acusado de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e associação criminosa, ou do senador Erico Galeano, que atualmente é processado por lavagem de dinheiro e associação criminosa. “Há uma impunidade sistemática”, diz ele. Sampó concorda com isso: “As condições de fragilidade do Estado, a fragilidade institucional, os altos níveis de corrupção, os altos níveis de impunidade, viabilizam que o PCC desembarque como organização criminosa, se estabeleça e combine com os clãs locais a distribuição do negócio.” Estima-se que entre Argentina e Paraguai existam mais ou menos 200 travessias ilícitas. Em algumas partes, a distância entre os dois países é tão curta que, com uma lancha rápida, a fronteira pode ser atravessada em dois minutos. Mas outro dos fatores que torna a fronteira paraguaia porosa é a falta de recursos para controlar o espaço aéreo do país. “Até o momento, o Paraguai não possui radar para monitorar o céu. É claramente uma decisão política e um convite aos grupos criminosos transnacionais. Tornou este território um ímã de atração para grupos do México, da Europa Oriental ou da máfia italiana”, diz Martens. O Paraguai possui uma legislação muito favorável à compra e venda de armas e os requisitos para adquiri-las não são muito complicados. “Setenta e três grupos criminosos atuam no Brasil e as armas que esses grupos geralmente utilizam passam pelo Paraguai. Especificamente, são destinados às favelas do Rio. Estamos falando deles chegando ao Rio de Janeiro, ao Espírito Santo, a Minas Gerais e ao Nordeste brasileiro”, diz Martens. E não só armas de pequeno e médio calibre, mas também munições são distribuídas do Paraguai. “As armas abastecem organizações criminosas brasileiras como o PCC ou o Comando Vermelho”, diz Sampó. As rotas da droga são utilizadas para o tráfico de armas, mas também para o contrabando de cigarros e produtos falsificados. “O Paraguai é um centro importante para o comércio ilícito de tabaco, tanto a nível nacional como regional. A área da tríplice fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina é um corredor movimentado para o tráfico de tabaco, que financia outras atividades criminosas. O Paraguai ocupava a posição mais elevada da América neste mercado ilícito”, diz o relatório. “Os cigarros paraguaios inundam grande parte dos países vizinhos, impactando diretamente nas receitas dos Estados. E uma das características básicas das organizações criminosas é estarem envolvidas em tudo ao mesmo tempo. Muitas vezes até são utilizadas as mesmas rotas”, diz Sampó. E de mãos dadas com o contrabando também vem o comércio de produtos falsificados, que é outro mercado criminoso nas Américas. A pontuação média da América do Sul de 6,25 coloca a região em segundo lugar globalmente no ranking de crime organizado. O Peru e o Paraguai têm as pontuações individuais mais altas da região e ambos os países são avaliados como importantes focos de produtos falsificados. Ciudad del Este, no Paraguai, é um importante centro de produtos falsificados, incluindo roupas, calçados, relógios, eletrodomésticos e perfumes. “Grupos criminosos no Paraguai se destacam por facilitar esse comércio ilícito”, acrescenta o documento.
2023-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp646zz6z46o
brasil
Vídeo, Massa ou Milei: o que Brasil tem a ganhar ou perder nas eleições argentinasDuration, 7,42
O segundo turno das eleições presidenciais na Argentina será no dia 19 de novembro e vai opor dois candidatos considerados totalmente antagônicos. De um lado o atual ministro da Economia, Sergio Massa, candidato do tradicional grupo peronista de centro-esquerda e que foi o mais votado no primeiro turno - causando surpresa - com 36,68% dos votos. Do outro lado, o economista libertário Javier Milei, que ficou conhecido por propostas polêmicas como extinguir o Banco Central e dolarizar a economia argentina. Apesar de liderar as principais pesquisas de intenção de voto, Milei ficou em segundo, com 29,98%. E de um outro lado da fronteira, no Brasil, o processo eleitoral na Argentina é acompanhado com atenção, tanto por motivos políticos quanto econômicos. O repórter da BBC News Brasil Leandro Prazeres conversou com especialistas para saber quais são os efeitos para o Brasil da eleição no país vizinho.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckv0gkn84qjo
brasil
Dia de Finados: como celebração dos mortos, que nasceu entre pagãos, foi incorporada pela Igreja
"Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam./ Porque ele a fundou sobre os mares, e a firmou sobre os rios./ Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo?/ Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente./ Este receberá a bênção do Senhor e a justiça do Deus da sua salvação." Odon de Cluny (878-942) foi um abade francês, responsável por diversas reformas no sistema religioso da época. "É um dia de celebrar as vidas de todos os fiéis falecidos. No Brasil e em Portugal, o dia é reservado para visitar os túmulos", comenta Altemeyer. Fim do Matérias recomendadas "A Igreja toma a data e 'batiza' com significado próprio", diz Altemeyer. "Mas celebrar os mortos é algo antropológico. Desde o Cro-Magnon (ou seja, das primeiras populações de Homo sapiens) temos ritos funerários e de expectativa do além túmulo." O "Martirológio Romano", o calendário oficial da Igreja, explica ambas as datas. Sobre o Dia de Todos os Santos, ele diz: "Solenidade de todos os Santos que estão com Cristo na Glória. Na mesma celebração festiva, a santa Igreja ainda peregrina sobre a terra venera a memória daqueles cuja companhia alegra os Céus, para que se estimule com o seu exemplo, se conforte com a sua proteção e com eles receba a coroa do triunfo na visão eterna da divina majestade". E sobre o Dia de Fiados: "A Igreja, mãe piedosa, quer interceder diante de Deus pelas almas de todos os que nos precederam marcados com o sinal da fé e agora dormem na esperança da ressurreição, bem como por todos os defuntos desde o principio do mundo cuja fé só Deus conhece". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muito antes de a Igreja Católica institucionalizar o Dia de Finados, um livro lançou as bases para como os cristãos acabam tratando os mortos. Trata-se de De Cura pro Mortuis Gerenda, texto do ano 421, atribuído ao teólogo Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho. "A obra trata do culto devido aos mortos. É uma preciosidade, com verdadeiras pérolas do maior teólogo da Igreja", comenta Altemeyer. Conforme escreveu o estudioso da fé católica Carlos Martins Nabeto, especialista em Direito Canônico, na obra "Santo Agostinho aborda uma série de fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são conservados e respeitados pela Igreja". "Entre outras coisas, fala da utilidade da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (por meio do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de Finados)", exemplifica o estudioso. Uma celebração de Finados, de certa forma, está implícita no seguinte trecho do livro - o que sugere que, mesmo longe de ter sido formalizada e oficializada pelo rito católico, já se faziam as orações aos mortos em geral, em data específica. "A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes, ela os inclui numa comemoração geral", diz a obra. Santo Agostinho também aborda questões referentes aos ritos fúnebres, ressaltando que "não deixa de ser marca dos bons sentimentos do coração humano escolher para seus entes queridos que serão sepultados um lugar próximo aos túmulos dos santos". "Já que o sepultamento é, por si só, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos", afirma. Sobre túmulos construídos como verdadeiros monumentos, o teólogo também faz considerações. "Isso é feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que não aconteça de, tendo sido retirados da presença dos vivos, também sejam retirados do coração pelo esquecimento", escreve. "Aliás, o termo 'memorial' indica claramente esse sentido de recordação, da mesma forma como 'monumento' significa 'o que traz à mente', ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de mnemeion ao que chamamos de 'memória' ou 'monumento'. Na língua deles, 'mnème' significa 'memória', a faculdade com a qual recordamos." Agostinho trata da importância das orações aos mortos. "Assim, quando o pensamento de alguém se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um mártir venerável, então a afeição amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse mártir", pontua. "A morte é natural, é universal, e não pode ser tratada como um tabu", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, estudiosa do luto e professora da PUC-SP. "As culturas e as sociedades vivem o luto de acordo com uma herança que vem há séculos e vai dando sentido a uma experiência importante como a morte, carregada de significados próprios que passam pela espiritualidade e pela religião." De acordo com a pesquisadora, para compreender essa questão cultural é preciso ter em mente que o homem não têm conhecimento definitivo do que acontece depois da morte. E, mesmo do ponto de vista biológico, entender a morte do corpo é uma consciência relativamente recente. "Na falta de explicações, o homem foi construindo significados. E esses significados, ao longo da história, foram pautando comportamentos", explica ela. Seja na maneira de realizar os procedimentos referentes ao velório, seja no Dia de Finados, variações desse comportamento são notados em diversas culturas. Sobretudo em cidades menores, no Brasil ainda é costume que um carro com alto-falantes percorra as ruas da cidade divulgando a "nota de falecimento" e convidando a todos para participarem do velório e do enterro. No interior da Itália, por exemplo, é comum que, quando um parente morre, familiares afixem no portão da casa um aviso fúnebre, muitas vezes decorado com fitas e ilustrado com uma fotografia do falecido, além de um texto semelhante aos anúncios de obituário de jornal. Já a celebração de Finados mais famosa, sem dúvida, é a que ocorre no México. "É uma cerimônia bastante conhecida. Eles promovem um momento de encontro entre os vivos, que vão celebrar, visitar e honrar seus mortos nos cemitérios", explica Franco. "Há varias comidas que são próprias dessa época, comportamentos que são esperados... É muito bonita como cerimônia." Alegria também está presente no rito fúnebre de Bali. Lá, o mais comum é que os mortos sejam cremados. E a cerimônia é acompanhada por uma grande festa em honra ao falecido. Conhecida por ser a capital do jazz, Nova Orleans, nos Estados Unidos, tem também um ritual fúnebre embalada pelo gênero musical. Trata-se de uma procissão fúnebre que mescla tradições africanas, francesas e afro-americanas. Conduzidos por uma banda, os enlutados alternam entre alegria e tristeza. É uma celebração catártica, que procura evocar bons momentos vividos pelo morto. Comunidades budistas da Mongólia e do Tibete acreditam ser necessário devolver o corpo à natureza, para que a alma siga em frente. Assim, têm o costume de cortar o defunto em pedaços e, então, depositá-lo no alto de uma montanha, para que abutres façam o trabalho. Nas Filipinas, diferentes grupos étnicos lidam de forma diferente com a morte e com as práticas funerárias. Os integrantes da cultura Itneg têm o hábito de vestir os defuntos com as melhores roupas, sentarem-no em uma cadeira e colocar um cigarro aceso em sua boca. Benguet, por sua vez, vendam os mortos e os velam ao lado da entrada principal da casa. Já os Caviteño sepultam os mortos fazendo de um tronco oco de árvore o caixão. Os Apayo enterram os mortos sob o chão da cozinha. Em Madagascar, por sua vez, persiste o costume de um ritual chamado farmadihana. Trata-se de uma celebração, que ocorre geralmente a cada sete anos, em que familiares exumam os restos mortais de seus entes queridos, pulverizando os ossos com vinho ou perfume. Uma banda acompanha a cerimônia, que ocorre de forma feliz. Em Gana, é costume que o morto seja enterrado em caixões que representem o que ele fazia em vida, do trabalho aos hobbies. Executivos, por exemplo, podem ser sepultados em sarcófagos em forma de carros de luxo; um fotógrafo pode ser enterrado em uma câmera fotográfica gigante; um pecuarista, em um caixão que represente uma vaca. * Texto publicado em 31 outubro 2018 e atualizado em 2 novembro de 2023.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1354g63mpeo
brasil
A estratégia do Brasil por resolução sobre Israel-Gaza no fim de mandato do Conselho de Segurança
Após quatro propostas terem sido rejeitadas nas últimas duas semanas, a diplomacia brasileira tenta agora "driblar" os pontos sensíveis apresentados por potências como Estados Unidos, Rússia e China para obter a aprovação da resolução. Diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado descreveram que a estratégia brasileira passou por uma intensificação dos diálogos com membros não-rotativos do conselho e por tentativas de afinar o texto da resolução para que ela não seja vetada mais uma vez. Ao mesmo tempo, tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, têm mantido conversas com lideranças internacionais para tentar diminuir as resistências à aprovação de uma resolução que possa diminuir a temperatura do conflito. Fim do Matérias recomendadas Os ataques foram condenados por dezenas de países da comunidade internacional. Eles aconteceram na primeira semana da presidência brasileira junto ao Conselho de Segurança. O Conselho de Segurança é formado por 15 países, sendo 10 membros rotativos e cinco permanentes com poder de veto: Rússia, Estados Unidos, França, Inglaterra e China. Eles formam o chamado P5. Os demais, são chamados de P10. Para qualquer proposta ser aprovada no Conselho de Segurança da ONU, ela precisa de pelo menos nove votos dos 15 países membros do órgão. Também não pode ter nenhum veto. Apenas os membros permanentes do grupo têm direito a veto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A primeira proposta de resolução sobre o atual conflito foi feita pela Rússia, mas recebeu os votos contrários de três dos cinco membros permanentes: Estados Unidos, Reino Unido e França. A segunda proposta, feita pelo Brasil, também não foi aprovada. Daquela vez, os Estados Unidos foram o único país do chamado P5 a vetar o texto. Daquela vez, a justificativa americana foi a de que o texto proposto pelos brasileiros não mencionava o direito à autodefesa do Estado de Israel. "Israel tem o direito inerente à autodefesa", disse a representante dos EUA na ONU, a embaixadora Linda Thomas-Greenfield. Na semana passada, outras duas propostas foram rejeitadas: uma apresentada pela Rússia e outra pelos Estados Unidos. A estimativa é de que pelo menos 1,4 mil israelenses morreram vítimas do ataque do Hamas. Segundo o governo do país, há pelo menos outras 200 pessoas mantidas como reféns pelo grupo. Do outro lado, segundo o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, pelo menos sete mil palestinos já morreram vítimas dos ataques conduzidos por Israel. O governo na Faixa de Gaza é controlado pelo Hamas. Em meio a esse impasse, a UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos, disse, na semana passada, que o atual conflito na região já foi responsável pelo deslocamento de pelo menos 1,4 milhão de pessoas na Faixa de Gaza. Desse total, 600 mil estariam em abrigos ou instalações fornecidas pela agência. Esse deslocamento aconteceu após Israel alertar a população palestina a se dirigir ao sul da região por conta das ações militares que seriam realizadas na parte norte. As entradas e saídas da Faixa de Gaza estão fechadas. A ONU e organizações internacionais vêm alertando para o risco de desabastecimento de água, alimentos, remédios e outros produtos. Para tentar driblar o impasse existente entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, o Brasil se juntou a outros três membros não-permanentes do Conselho de Segurança para desenhar uma resolução. Os três membros mais próximos do Brasil nesse esforço, segundo a diplomacia brasileira, são Suíça, Emirados Árabes Unidos e Malta, que é porta-voz do chamado P-10, grupo dos membros não-permanentes do Conselho de Segurança. Nos últimos dias, diplomatas brasileiros mantiveram reuniões a portas fechadas com representantes destes países para trabalhar o texto. Diplomatas brasileiros afirmaram à BBC News Brasil que os negociadores do Conselho se debruçam sobre pontos principais: menções ao direito de autodefesa de Israel; e um eventual cessar-fogo na região. Os dois pontos são considerados polêmicos porque têm influência direta sobre os rumos do conflito. Um diplomata brasileiro disse à BBC News Brasil que há a preocupação de que uma menção na resolução ao direito de autodefesa israelense poderia ser usada como justificativa para uma intensificação das ações de Israel na Faixa de Gaza. Por outro lado, também haveria preocupação entre os norte-americanos e outros aliados de Israel sobre os efeitos que um eventual cessar-fogo poderia ter. O temor é de que o Hamas poderia aproveitar a pausa para se reorganizar e voltar a lançar ataques a Israel. Os termos exatos para "driblar" esse impasse, segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda não foram encontrados. A estratégia é que o texto desenhado por esses quatro países tenha a maioria ou todos os votos do P-10. Isso, avaliam os diplomatas brasileiros, poderia pressionar os membros permanentes a reconsiderar um possível novo veto ao texto. A expectativa é de que um rascunho fique pronto nesta terça-feira (31/10), último dia da presidência brasileira. Depois disso, o texto poderia ser levado à votação do Conselho. Diplomatas brasileiros afirmam que a estratégia brasileira se dividiu em três frentes. O principal objetivo, até o momento, é criar uma espécie de pausa no conflito para que a população palestina que vive na Faixa de Gaza possa receber ajuda humanitária, principalmente, pela fronteira da área com o Egito. Uma dessas frentes é conduzida pelo presidente Lula, que vem mantendo conversas com líderes de diversos países desde o início da crise. Entre esses líderes estão o presidente da França, Emmanuel Macron, o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Outra frente é conduzida pelo assessor especial para Assuntos Internacionais, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Nos últimos dias, ele teria tido encontros e conversas com assessores e lideranças diplomáticas de diversos países para avaliar o cenário. A terceira frente, considerada mais ampla, é a liderada pelo Itamaraty, que vem, sob orientação do governo, tentando negociar um texto que possa ser aprovado pelo conselho. Essa frente é liderada pelo chanceler Mauro Vieira e pelo representante brasileiro na ONU, o embaixador Sérgio Danese. Na segunda-feira (30/10), Mauro Vieira teve uma conversa telefônica com o secretário de Estado americano, Anthony Blinken em que conversaram sobre as negociações em curso no Conselho de Segurança da ONU. Uma fonte ouvida pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmou que a ligação partiu do ministro brasileiro. A dificuldade em obter um texto que agrade a todos os membros permanentes do Conselho de Segurança foi mencionada por Mauro Vieira nesta segunda-feira, durante reunião do colegiado, e também por especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil. "Desde 2016, o Conselho não foi capaz de aprovar uma única resolução sobre a situação na Palestina. A situação no Oriente Médio é, portanto, de longe, uma das situações mais bloqueadas no Conselho de Segurança [...] Isso mostra a ineficiência do sistema de governança e da falta de representatividade de certas partes do mundo nesse grupo", disse Vieira. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, um dos elementos que torna a chegada a uma resolução sobre o conflito tão difícil é o que ele classificou como nova "bipolarização" da ordem internacional. Essa polarização se daria entre um grupo de países liderados pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, de um lado, e Rússia, China e nações sob suas influências, de outro. "Alguns analistas afirmam que há, hoje, uma bipolarização 2.0 (menção à ordem bipolar que vigorou entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria). Nesse contexto, torna-se mais difícil tomar qualquer decisão, especialmente aquelas que tocam os interesses das superpotências porque prevalece o que chamamos de jogo de soma zero: se um lado ganha, o outro perde", disse o professor à BBC News Brasil. "Esse conflito em especial opõe interesses vitais e visões de mundo antagônicas dos membros permanentes do Conselho de Segurança de forma que a linguagem da resolução, para que passe, precisa ser eficaz para a realidade do terreno sem ferir suscetibilidades dos membros permanentes", disse à BBC News Brasil a professora da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa, Mariana Kalil. Os dois especialistas avaliam que, considerando as características da presidência rotativa do Conselho de Segurança e a forma como o órgão é estruturado, seria incorreto atribuir responsabilidades ao Brasil pela demora para que uma resolução sobre o conflito seja obtida. "De forma alguma seria possível estabelecer uma relação entre o papel do Brasil como presidente do Conselho de Segurança e a dificuldade de aprovação de uma resolução sobre o conflito", disse Mariana Kalil. Segundo ela, neste período, o Brasil chegou a conseguir um consenso entre membros do chamado P3 (grupo formado por Estados Unidos, Reino Unido e França) e Rússia e China. Isso aconteceu durante a votação da resolução proposta pelo Brasil que obteve votos favoráveis da França, Rússia e China e a abstenção do Reino Unido. A abstenção do Reino Unido em um contexto em que ele poderia exercer o poder de veto é vista como uma posição de apoio à resolução. "Unanimidade, diante de um caso como o referido, é, na prática, altamente improvável", disse a professora. Para Dawisson Lopes, simples fato de presidir o conselho não seria suficiente para que o Brasil conseguisse um consenso sobre o conflito entre os membros do Conselho de Segurança. "A presidência do Conselho é uma posição quase procedimental. O país que assume o comando praticamente só organiza os trabalhos do grupo. Ela tem um quê de cerimonial, mas o Brasil não tem capacidade efetiva de, durante um mês, impor uma agenda ou fabricar consensos", disse o professor.
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clw7wle9pgxo
brasil
'Descobri um câncer de mama aos 23 anos': por que casos entre jovens têm aumentado e são mais agressivos
Em janeiro de 2023, Bianca Lopes, de 23 anos, recebeu o diagnóstico de câncer de mama em estágio 3. A confirmação da doença veio cerca de dois meses após a jovem de Fortaleza sentir um caroço na mama esquerda. "Nunca me ensinaram a fazer o autoexame, mas acabei aprendendo com campanhas e fazia sempre." Com a notícia, ela precisou organizar a vida de uma forma que nunca tinha imaginado fazer sendo tão jovem. "Tinha acabado de casar, em processo de mudança para apartamento novo, ser promovida e estávamos com planos de sermos pais em 2024. Precisei me afastar da empresa, e adiar o sonho de ser mãe, e acabei não me mudando", conta Lopes. "Tive muito medo. Minha rede de apoio foi fundamental." Fim do Matérias recomendadas Após 16 sessões de quimioterapia e a retirada cirúrgica das duas mamas, Bianca está em remissão e atualmente faz tratamento médico com bloqueadores hormonais buscando evitar a recorrência de tumores. Casos como o de Bianca, de cânceres de mama em mulheres jovens, ainda são minoria — mas vêm aumentando. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É o que mostram tanto estudos internacionais quanto outros feitos especificamente com brasileiras. Ao todo, foram 13.385 casos tratados na instituição. Desses, 1.594 eram mulheres jovens. O estudo ainda apontou que dentre as pacientes com menos de 40 anos, 11% estavam com câncer in situ — com o tumor presente apenas no local inicial. As outras 89% já estavam com câncer invasivo. O câncer de mama é considerado 'jovem' quando acontece em pessoas com menos de 50 anos. "Aproximadamente 90% dos casos acontecem em mulheres entre 50 e 69 anos. Aos chegar aos 50 anos, qualquer mulher, apenas pelo sexo biológico, já tem 12% de chance de ter a doença", explica o mastologista Renato Cagnacci Neto, coordenador da Comissão de Neoplasias da Mama da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica e médico do A.C. Camargo Cancer Center. O especialista descreve que depois deste, o grupo mais afetado são mulheres com idade entre 40 e 50 anos. "As ainda mais jovens são consideradas casos mais raros." Para uma célula cancerígena surgir, é necessário que haja um dano no DNA — algo que desestabiliza uma célula que antes era saudável. Esse mecanismo de dano no DNA, explica Cagnacci Neto, pode ocorrer de duas maneiras. A primeira delas é adquirir esse defeito ao longo da vida devido a diversos fatores, como estilo de vida pouco saudável, falta de exercício físico, má alimentação e tabagismo. "A razão pela qual as pessoas têm mais câncer entre os 50 e 69 anos de idade é o tempo de suas vidas pelo qual elas foram constantemente expostas a agressões. Esses fatores de risco mencionados anteriormente causam danos no DNA e levam ao surgimento do câncer, o que chamamos de câncer esporádico." A outra, que explica o surgimento da doença em jovens, tem a ver com uma predisposição ao câncer. "Existe uma forte associação com a presença de um defeito genético desde o nascimento. Quando alguém nasce com esse defeito genético, desde a infância, está sujeito a uma propensão para o desenvolvimento da doença." No caso de Bianca, embora não houvesse histórico familiar de câncer de mama, uma consulta com uma médica geneticista revelou que ela possui uma mutação no gene CHEK2, que está relacionada a um risco duas vezes maior de desenvolver câncer de mama em mulheres. Um fator que poderia estar contribuindo para mais mulheres jovens sofrerem com a doença, de acordo com a ginecologista obstetra e mastologista Karina Belickas Carreiro, é o fato de a maternidade tardia ter se tornado mais comum, privando as mulheres de um dos fatores protetivos contra o câncer de mama, a amamentação. Durante a amamentação, os níveis de estrogênio, um hormônio que está relacionado ao crescimento das células de câncer de mama, diminuem no corpo da mulher. Menos exposição a esse hormônio ao longo da vida reduz o risco de câncer de mama — ainda que não seja uma garantia de que essa mulher não terá câncer. Além disso, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), os processos que ocorrem na amamentação promovem a eliminação e renovação de células que poderiam ter lesões no material genético diminuindo assim as chances de câncer de mama na mulher. O mastologista Renato Cagnacci Neto acrescenta ainda as mudanças no acesso dos serviços de saúde como uma das possíveis razões para o aumento nos casos. "O acesso à saúde ficou melhor nas últimas décadas, assim como o acesso à informação, especialmente com a facilidade de informações disponíveis na internet. Esses fatores contribuem para um maior número de diagnósticos, portanto, essa tendência de aumento do câncer não pode ser atribuída apenas a fatores biológicos." Em sua pesquisa, a médica e seus colegas notaram que as pacientes examinadas, abaixo dos 41 anos, tinham, em sua maioria, tumores mais agressivos do que mulheres com 50 anos ou mais. Na avaliação da autora, isso pode ser atribuído à demora na detecção e também ao próprio perfil dos tumores em mulheres jovens, que muitas vezes são mais agressivos e têm uma evolução mais rápida. De acordo com o mastologista Renato Cagnacci Neto, essas mutações costumam estar ligadas a cânceres mais agressivos. Um exemplo é o câncer de mama negativo para receptores hormonais, que tem crescimento mais rápido e há menos opções de tratamento. Outro tipo é o câncer de mama HER2 positivo, no qual as células cancerosas possuem um receptor chamado HER2, que estimula um crescimento mais agressivo do câncer. "Mas se uma mulher jovem tiver um subtipo de câncer de mama menos agressivo, como o subtipo luminal A, seu tratamento tende a ser mais eficaz, e a probabilidade de cura é alta." Em casos nos quais os tumores são mais agressivos, o tempo é especialmente importante. Quanto mais cedo a doença é descoberta, melhor é o prognóstico. "Ao analisar os dados da nossa pesquisa, ficou evidente que as mulheres estavam sendo negligenciadas em relação ao tempo transcorrido desde a percepção dos sintomas até o diagnóstico do câncer", afirma a médica Karina Belickas Carreiro. O estudo apontou que o período de espera médio era de aproximadamente seis meses. "A maioria das mulheres notava alguma alteração em seu corpo, mas muitas vezes não atribuíam a devida importância a essas mudanças, ou quando buscavam uma consulta, o médico não considerava a possibilidade de câncer devido à ideia errônea de que mulheres jovens não poderiam desenvolvê-lo." "Como resultado, a resposta ao tratamento para duas mulheres com tumores de tamanho semelhante, uma mais jovem e outra entre 49 e 60 anos, era frequentemente desigual, com a paciente mais jovem tendo um prognóstico menos favorável." O aumento da incidência de câncer de mama em mulheres jovens levanta questões importantes sobre o rastreamento. Para jovens como Bianca e outras que tenham até 39 anos, a única recomendação é o autoexame e a busca imediata de avaliação médica caso note algum sinal. Os principais sintomas do câncer de mama incluem a presença de um nódulo ou espessamento no seio, mudanças na forma ou tamanho do seio, dor persistente, alterações na pele do seio, como vermelhidão, inchaço ou retração, descarga anormal do mamilo, alterações no mamilo, como inversão, e o surgimento de caroços nas axilas. Para pacientes jovens de alto risco, como aqueles com mutações genéticas ou histórico familiar de câncer de mama, Carreiro aponta que existem orientações específicas para o rastreamento, que podem incluir exames de ressonância magnética, ultrassom e mamografia. Diversas sociedades médicas brasileiras e internacionais, incluindo a Sociedade Brasileira de Mastologia, defendem a realização do primeiro exame aos 40 anos. Na rede de saúde particular, o rastreamento é iniciado a partir desta idade. A recomendação atual do Ministério da Saúde, por sua vez, é que os exames devem ser feitos a partir dos 50 anos, com repetição a cada dois anos para mulheres até os 69 anos ou em intervalos menores conforme o resultado da mamografia anterior. "A diretriz do governo é baseada em custos. Realizar o rastreamento de todas as mulheres a partir dos 40 anos de idade requer recursos significativos - que podem impactar em outros rastreamentos e tratamentos de doenças - e uma logística complexa. É necessário disponibilizar mamógrafos em todo o país e organizar a distribuição de maneira eficiente." "Começar o rastreamento nessa faixa etária envolve um custo mais elevado para detectar um número menor de casos. Por outro lado, como médico e não como administrador, avaliando dados científicos, afirmo que realizar o rastreamento a partir dos 40 anos de idade é o ideal. Embora sejam menos casos, essa prática pode salvar vidas", diz ele, recomendando que mulheres que não tenham restrições econômicas ou pessoais façam o exame a partir desta idade. De acordo com a pesquisadora do ICESP, a maioria das pessoas não segue essas recomendações, mesmo a partir dos 40. "Portanto, é importante focar primeiro em aumentar a conscientização e educação sobre a importância do autocuidado e da detecção precoce, independentemente da idade. Encorajar as mulheres a procurar ajuda médica se detectarem qualquer alteração nos seios é o primeiro passo." "A ampliação do rastreamento em populações jovens pode ser considerada, mas requer uma análise cuidadosa e um plano de implementação de longo prazo."
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wx034nz5yo
brasil
8 perguntas para entender avanço das 'narcomilícias' que agrava crise de segurança no Rio
A polícia atribuiu os atos a um protesto de criminosos contra a morte de um miliciano em ação da Polícia Civil naquele mesmo dia. Grupos paramilitares originalmente criados por policiais, as milícias dominam dezenas de comunidades nas zonas oeste e norte da capital, além da Baixada Fluminense e em cidades da região leste do Estado, como São Gonçalo e Itaboraí. Em anos recentes, alguns desses grupos racharam e se associaram ao tráfico, o que mudou inclusive sua forma de agir. O ataque violento contra o transporte público – o maior de que se tem notícia no Estado – era prática comum de traficantes, não de milicianos, observam pesquisadores do setor. Fim do Matérias recomendadas "A milícia mudou", explica o coronel da reserva da Polícia Militar Robson Rodrigues, que foi chefe do Estado-Maior da corporação e coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e é doutor em ciências sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ). "O Comando Vermelho mudou, a milícia mudou, e um grupo começou a absorver o aprendizado e técnicas e estratégias do outro", afirma. Um dos pontos criticados por pesquisadores foi o fim da Secretaria de Segurança (Seseg), no início de 2019, por iniciativa do então governador Wilson Witzel (PSC). A medida foi mantida por seu sucessor, o atual governador, Cláudio Castro (PL). Por meio de sua assessoria, Castro afirmou à BBC News Brasil que atribuir ao fim da Seseg a atual crise é uma "análise rasa". Leia no fim desta reportagem a íntegra das declarações de Castro à BBC News Brasil sobre as críticas feitas por especialistas nesta reportagem. Com base em entrevistas com especialistas, a BBC News Brasil elaborou perguntas e respostas que ajudam a explicar o novo cenário da violência no Rio. Parte da mudança se deve à entrada de traficantes na guerra que rachou a maior milícia do Rio na zona oeste. Mas a crise é alimentada também por outros fatores, inclusive políticos. Um deles, segundo especialistas, foi o fim, em 2019, da Secretaria de Segurança – uma decisão que, de acordo esses analistas, buscava atender a compromissos políticos com as polícias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Especialistas em segurança pública criticam a medida, que teria desmantelado políticas de planejamento e de metas e levado as polícias de volta ao passado. Segundo eles, hoje as corporações estão isoladas e trabalham em operações com foco na "visibilidade". São, dizem, incursões espetaculosas em comunidades, por exemplo, mas que têm pouco resultado por não abalarem a estrutura do crime organizado, segundo pesquisadores da área de segurança. “Houve muito retrocesso, ou seja, (uma volta) às muitas formas antigas que já foram adotadas anteriormente e não deram certo”, diz Rodrigues. Ele afirma ainda que faltam investimentos na reforma do aparato policial e na eficiência das corporações. Jacqueline Muniz, antropóloga e professora de Segurança Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), tem crítica semelhante. "Ninguém faz polícia, foi todo mundo fazer operação, porque fazer operação é a única dimensão visível que o cidadão desesperado por segurança reconhece", explica ela. “É algo que dá poder, prestígio.” O ataque que resultou no incêndio de 35 ônibus e um trem em oito bairros do Rio de Janeiro na semana passada foi o ponto culminante de uma sequência de episódios especialmente violentos na cidade ao longo dos últimos 30 dias. Em 24 de setembro, o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu imagens de traficantes recebendo treinamento militar com fuzis em uma área de lazer no Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte carioca. Três dias depois, ladrões lançaram uma granada contra um ônibus, após assaltarem seus passageiros, na Avenida Brasil, na altura de Barros Filho, na zona norte. Três pessoas ficaram feridas. O motivo, para policiais, foi a semelhança física de uma das vítimas com um criminoso rival dos atiradores - há uma guerra de quadrilhas pelo controle da zona oeste da cidade. Algumas horas depois, quatro suspeitos do crime foram encontrados mortos - , segundo a polícia, eles foram assassinados por ordem da cúpula da quadrilha, devido ao erro que teriam cometido. Em 19 de outubro, quatro policiais civis e um advogado foram presos pela Polícia Federal, acusados de terem negociado com traficantes a liberação de 16 toneladas de maconha apreendidas. A negociação, segundo a Polícia Federal, ocorreu na Cidade da Polícia, complexo de delegacias especializadas na zona norte. Imagens do caminhão carregado com a droga, escoltado por carros da Polícia Civil para ser entregue a traficantes em uma favela, foram divulgadas. Na mesma data, agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes anunciaram ter achado, em um carro vazio na Gardênia Azul, oito das 21 armas desviadas de um arsenal do Exército, em São Paulo. Segundo policiais, o armamento provavelmente seria usado na “guerra” da zona oeste. Um dia depois, nova operação da PF apontou que três policiais civis e um delegado desviaram parte de uma carga de cocaína apreendida. Os quatro foram afastados de suas funções pela Justiça, que também ordenou que usem tornozeleiras. A morte, em ação policial, de Matheus da Silva Rezende, de 24 anos, conhecido como Faustão e sobrinho de Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, chefe de uma das milícias em luta pela zona oeste, desencadeou o ataque aos meios de transporte, segundo a polícia do Rio. Os grupos conhecidos como milícias no Rio de Janeiro eram inicialmente formados por policiais civis, PMs, bombeiros, guardas municipais e membros das Forças Armadas. Tinham domínio sobre áreas pobres e agiam sob proteção de políticos - alguns deles, também milicianos. As milícias ganharam essa configuração no início dos anos 2000, mas suas raízes podem ser rastreadas até à ditadura militar, nos anos 60. Essa era a época dos chamados Esquadrões da Morte, formados por agentes da repressão que assassinavam criminosos comuns na periferia das grandes cidades. Nos anos 70 e 80, surgiram os grupos de extermínio ou "polícias mineiras", como eram conhecidos grupos armados de “justiceiros” que agiam nas periferias. Atuavam, muitas vezes, a soldo de comerciantes para matar ladrões e consumidores de drogas ilícitas. A partir do fim dos anos 90, com o avanço do tráfico, policiais “no desvio” passaram a “vender” segurança nas favelas e comunidades das quais expulsavam traficantes ou que “conquistavam” antes deles. Da cobrança inicial de “contribuições para a segurança”, que eram impostas a moradores e comerciantes, logo passaram a explorar, diretamente ou por meio de taxas, negócios como venda de gás, água mineral, carvão, transporte por van, venda de imóveis em áreas de proteção ambiental e outros. A representação política, a partir dos votos conseguidos em áreas dominadas por milícias, foi o passo seguinte. Mais recentemente, milicianos e traficantes se aliaram em bairros das zonas oeste, norte e Baixada Fluminense. Especialistas destacam que, sem a participação ou conivência de agentes do Estado, as milícias não teriam conseguido se instalar nem se expandir. "São o que chamo de governos criminais", diz a antropóloga Jacqueline Muniz, da UFF. "Sempre que tem autonomização predatória do poder de polícia, tem um processo de milicianização", diz ela. Para Robson Rodrigues, o foco da repressão policial, durante muito tempo, foi conter a facção criminosa Comando Vermelho (CV). O perigo da expansão das milícias foi subestimado. Só uma Unidade de Polícia Pacificadora foi instalada em uma área de domínio miliciano, o Jardim Batam. Mesmo assim, a medida só foi tomada após um episódio no qual jornalistas foram torturados por criminosos. O pesquisador destaca as mudanças nas milícias, lembrando a aproximação entre milicianos e traficantes - grupos que antes eram inimigos. “Esse tipo de ação, o ataque a ônibus, era típico do tráfico”, observa. “A milícia era mais discreta.” Oficial da reserva da PM e mestre em Antropologia, Paulo Storani aponta outra mudança nas milícias: hoje não policiais chegaram ao topo do comando desses grupos. “Eles sucederam, lá atrás, o miliciano que tomava conta da zona oeste, que conseguiu controlar boa parte do território, e acabou sendo morto. E sendo morto, quem assumiu não era mais um agente do Estado.” Segundo Storani, esse “novo miliciano” acrescentou a venda de drogas a seu “portfolio de atividades criminosas”. Até 2021, a zona oeste da capital fluminense era dominada pelo Bonde do Ecko, novo nome da Liga da Justiça, uma das primeiras milícias do Estado – e a maior delas, com penetração na zona norte e Baixada. Depois que policiais civis mataram o chefe do bando, Wellington da Silva Braga, o Ecko, seu irmão, Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, assumiu a chefia da quadrilha, de acordo com a Polícia. Mas Daniel Dias Lima, o Tandera, que integrava a mesma quadrilha, desentendeu-se com Zinho, dividindo a milícia e abrindo uma guerra que já dura um ano e meio, pelo menos. Tandera domina parte da Baixada Fluminense e investe sobre a zona oeste da capital. Diante da divisão no bando, o Comando Vermelho resolveu investir e se associou a milicianos na região, aprofundando sua penetração em comunidades da região. O motivo é que os milicianos, muitas vezes com passagem pelas forças policiais, têm treinamento, organização e ligações no aparelho estatal, o que os torna mais fortes. "A gestão do território dá múltiplas vantagens", explica a antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Então, para que um grupo criminoso possa sobreviver, possa existir e se expandir, tem que que ter relações com o Estado, diversificação de suas atividades criminais no espaço onde está, no território que domina. Não existe a perspectiva de nenhum grupo criminoso, seja PCC, seja o Comando Vermelho, Terceiro Comando ou milícia, sem parceria ou sociedade com setores do Estado. Nas fronteiras tem sempre um servidor público para atravessar droga, arma, o que você quiser, ou explorar a luz, o gás." Rodrigues afirma que o "assédio" do tráfico a policiais, com ofertas de corrupção, se repete. "O crime organizado hoje está mais sofisticado ainda", diz. "Está sempre tentando assediar, cooptar." Para ele, a prioridade dos governos deveria ser controlar os desvios de policiais. Muitos governos, no entanto, não têm coragem de contrariar suas polícias, segundo o analista. A transformação do Rio em uma versão brasileira de Ciudad Juarez, município mexicano marcado por altos índices de mortalidade, com tortura e decapitação de cidadãos e ampla penetração do Estado pelo crime organização, é uma possibilidade que ronda debates na área de segurança no Brasil. A capital fluminense ainda não chegou a esse grau de descontrole, mas as cenas de 23 de outubro, quando milicianos incendiaram ônibus ainda com passageiros diante da inação da Polícia, geraram alertas entre quem estuda e pesquisa o setor. Para Storani, "sem dúvida" há perigo do Rio de Janeiro se "mexicanizar". "No México, tem regiões ou províncias onde você não entra sem autorização dos cartéis", diz ele. "A gente hoje no Rio de Janeiro já tem algo semelhante em menor escala. Você não vai entrar em qualquer comunidade, você tem um problema em relação àquilo. Então, há sim um processo de 'mexicanização'. E o que é pior, que acontece no Brasil: essas caras (milicianos) elegem representantes. Da mesma forma que o tráfico." Rodrigues vê a possibilidade de "mexicanização" com mais reticências, por causa das diferenças entre os países e o processo de globalização. "Eu conheci vários outros países aqui, principalmente na América Latina, Caribe, que têm tem algumas semelhanças, mas têm mais distinções do que similaridades. Eu digo que isso aqui é tudo um sistema de vasos comunicantes." "Eu não diria 'mexicanização', mas eu diria assim: existem regiões da América do Sul e da América Latina, envolvendo o México também, que têm certas características, onde passam essas rotas (de tráfico de drogas), esse comércio bilionário, com impactos em cidades às vezes muito pobres e que têm uma vulnerabilidade social muito grande. Então, isso impacta." Segundo ele, a situação do México é mais grave que no Brasil porque, lá, os cartéis se especializaram na exportação das drogas e conseguem retornos superiores às facções brasileiras. Com mais ganhos, os cartéis mexicanos ampliam seu poder bélico, de corrupção etc. Isso já aconteceu outras vezes, durante crises anteriores de segurança no Rio de Janeiro. Desta vez, porém, o envolvimento de militares em ações contra o crime tende a ser menor, segundo posicionamentos recentes de autoridades. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva há algum tempo demonstra reserva em relação à ideia de colocar as Forças Armadas para patrulhar ruas ou para participar de operações policiais. Isso exigira uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Até agora, o governo federal admitiu apenas possibilidade de Marinha e Aeronáutica reforçarem seus papéis em ações de combate ao crime já previstas em lei, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino. Seria uma atuação complementar à das polícias do Rio. Na sexta-feira (27/10), o presidente da República confirmou a jornalistas com quem tomou café da manhã que não haverá Operação de Garantia da Lei e da Ordem no Rio. Há ainda resistência a iniciativas que possam levar para o Palácio do Planalto a crise de segurança fluminense, o que criaria um problema político para Lula. A relação entre o governo e as Forças Armadas vive momento delicado. Analistas atribuem essas tensões ao papel que muitos militares da reserva e da ativa tiveram no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Alguns desses militares têm sido investigados por suposto envolvimento nos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Naquele dia, embora instado por pessoas próximas a decretar uma GLO para enfrentar o que considerava uma tentativa de golpe, Lula preferiu ordenar uma intervenção federal civil. Essa medida foi limitada à Polícia Militar do Distrito Federal. Há ainda há resistência de setores da esquerda representados no governo à participação de militares em ações de Segurança Pública. Até o fim de 2018, o Rio de Janeiro tinha uma Secretaria de Segurança, à qual as polícias Civil e Militar eram subordinadas. Com a posse de Wilson Witzel (em janeiro de 2019), a Seseg foi extinta, e as duas corporações policiais ganharam secretarias próprias e independentes. A decisão foi atribuída a uma exigência de policiais civis e militares, que assim ganharam autonomia e passaram ao nível de secretarias, com acesso direto ao governador. A medida foi criticada por especialistas, mas mantida pelo sucessor de Witzel, Claudio Castro, que se reelegeu em 2022 com o mesmo compromisso de dar autonomia às polícias. Em declaração por escrito à BBC News Brasil, Castro diz considerar que o fim da secretaria não teve impacto na crise atual no Rio. "É muito importante a gente lembrar que o primeiro Estado que teve um problema grave (de segurança) esse ano foi o DF, que tinha secretaria de segurança pública", afirma o governador. "Depois, percebemos problema no Rio Grande do Norte, tinha secretaria de segurança pública. Logo em seguida, veio o Ceará que tinha secretaria de segurança pública. Posteriormente, a Bahia que, pasmem, também tinha secretaria de segurança pública. Outro dia, São Paulo que também tem secretaria de segurança pública. Eu não creio que o problema de não ter secretaria de segurança pública seja o causador disso, no Brasil inteiro." E prossegue: "Acho que isso é uma análise rasa de quem tem uma opinião só e se firma naquilo como pedra angular. Aqui sempre será aberto ao diálogo. Se a gente perceber que o modelo não está funcionando, podemos mudar sim. Mas, nesse momento, não vejo, até porque quando o Rio de Janeiro precisou de intervenção federal, também tinha secretaria segurança pública. Então, esse não é o motivo de termos crise na segurança", conclui. O governador não quis se posicionar sobre as demais críticas feitas por especialistas nesta reportagem, como a de as polícias do Rio estariam empenhadas em operações de "grande visibilidade", mas com pouco impacto efetivo, e de que faltariam investimentos para modernização das forças.
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx1zryl9vlo
brasil
De atração turística a propaganda nazista: a história dos dirigíveis no Brasil
No dia 22 de maio de 1930, o governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, decretou feriado municipal. Naquela quinta-feira, cerca de 15 mil pessoas correram até o Campo do Jiquiá, na Zona Oeste do Recife, para assistir à chegada do LZ 127 Graf Zeppelin – o nome da aeronave era uma homenagem a Ferdinand Adolf August Heinrich Graf von Zeppelin (1838-1917), o Conde Zeppelin. O dirigível de 236,6 metros de comprimento por 30,5 metros de largura saiu da Alemanha no dia 18, fez escala na Espanha e, quatro dias depois, chegou ao Brasil, por volta das sete e meia da noite. Para se ter uma ideia do tamanho do zepelim, o Boeing 747-8, um dos maiores aviões de passageiros do mundo, tem “apenas” 77 metros de comprimento. Ou seja: o Graf Zeppelin era três vezes maior! Tudo o que diz respeito ao zepelim é gigante. O governador de Pernambuco mandou construir uma torre de atracação de 16,5 metros de altura e um galpão de 315 metros quadrados, com sala de embarque, despacho de bagagem, posto médico, estação de rádio, cozinha, refeitório e dormitório para a tripulação. De quebra, contratou banda de música para animar a festa e montou arquibancada para receber os convidados. Durante o pouso, os tripulantes esqueceram de colocar a bandeira com os procedimentos da atracação. Resultado: os soldados do Exército, responsáveis por segurar as cordas lançadas pelo dirigível, não sabiam o que fazer. “Uma senhora amarrou uma das cordas em uma palmeira”, conta o historiador Cristiano Rocha Affonso da Costa, autor de Os Zeppelins Nos Céus do Brasil (2021). “A árvore foi arrancada com raiz e tudo”. Fim do Matérias recomendadas Passado o susto inicial, o capitão Hugo Eckener (1868-1954) recebeu as boas-vindas do antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), representante do governo pernambucano. Depois de ser reabastecido de gás hidrogênio, o dirigível seguiu viagem rumo ao Rio de Janeiro. Na então capital federal do país, o zepelim atracou, três dias depois, no Campo dos Afonsos, na Zona Oeste da cidade. Em 1936, os pousos e as decolagens foram transferidos para a Base Aérea de Santa Cruz. Lá, foi construído o aeroporto Bartolomeu de Gusmão. Se o Recife ergueu uma torre de atracação, o Rio construiu um hangar de 274 metros de comprimento por 58 metros de largura. “O Graf Zeppelin chegou ao Brasil no mesmo dia em que saiu o resultado das eleições para presidente. E simplesmente ‘roubou a cena’. Ler sobre o ‘charuto voador’ despertava mais atenção do que sobre a vitória de Júlio Prestes”, compara Charles Narloch, doutor em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e tecnologista do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). A torre de atracação no Recife foi restaurada em 2013 pelo artista plástico Jobson Figueiredo. Já o hangar na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, atualmente, é propriedade da Força Aérea Brasileira (FAB). A passagem do Graf Zeppelin pelos céus do Recife foi mostrada no filme Retratos Fantasmas (2023), dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho. O documentário foi escolhido para representar o Brasil na busca por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. O dirigível alemão serviu de inspiração, também, para O Crime do Bom Nazista (Todavia, 2023), escrito por Samir Machado de Machado. O romance policial é ambientado no interior de um zepelim alemão. “Durante meu mestrado, tive aulas de Filosofia e Literatura onde se analisavam a linguagem de regimes totalitários, e seus paralelos com o bolsonarismo. Daí, nasceu a ideia do mistério que move o enredo: um assassinato onde a vítima é um judem homossexual e todos a bordo são nazistas”, explica o autor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No livro Os Zeppelins nos Céus do Brasil, Cristiano Rocha Affonso da Costa recorda que, na década de 1930, os dirigíveis ajudavam a vender os mais variados produtos, de refrigerantes, como o guaraná Antarctica, até cigarros, como Lucky Strike, passando por sapato, óleo de motor e leite em pó. Ao longo das décadas, os zepelins inspiraram artistas dos mais diferentes gêneros – tanto na hora de compor, caso do cantor e compositor Chico Buarque, autor de Geni e o Zepelim, da peça Ópera do Malandro (1979), quanto na hora de escolher um nome para sua banda de rock, como a britânica Led Zeppelin – a ideia, no caso, teria partido do integrante de outro supergrupo: o baterista Keith Moon, do The Who. Quem não gostou nem um pouco do nome (“zepelim de chumbo”, em livre tradução) foi Eva von Zeppelin, a neta do Conde Zeppelin. Menos ainda da capa do primeiro álbum do Led Zeppelin, lançado em 1969, que reproduzia o exato momento da explosão do dirigível Hindenburg, em 1937. Ainda em Retratos Fantasmas, o cineasta Kleber Mendonça Filho lembra do tempo em que, estudante de Jornalismo, conheceu Alexandre Moura, que trabalhava na cabine de projeção do antigo Art-Palácio, do Recife. O cineasta comparou a sala de cinema a “um navio prestes a ser afundado”. Considerado um dos maiores estúdios cinematográficos da Alemanha, a Universum Film AG, mais conhecida pela sigla UFA, foi fundada em 18 de dezembro de 1917 e produziu, entre outros, o clássico Metropolis (1927), dirigido por Fritz Lang (1890-1976). “Desde sua origem, o cinema foi visto como forte ferramenta de propaganda política e doutrinária. Neste contexto, a UFA tornou-se aliada do governo nazista na representação de uma boa reputação da Alemanha no exterior. A produtora ganhou tanta popularidade no país que qualquer filme alemão era taxado de filme da UFA”, explica o historiador Arthur Gustavo Lira do Nascimento, doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Ao mesmo tempo em que, na Alemanha, a UFA se alinhava ao nazismo, a produtora se expandia em nosso país”. No Brasil, a UFA inaugurou duas salas de cinema: UFA-Palácio, em São Paulo, no dia 13 de novembro de 1936, depois rebatizada de Art-Palácio, e Art-Palácio, no Recife, no dia 10 de março de 1940. Os dois cinemas foram projetados pelo arquiteto brasileiro Rino Levi (1901-1965). Segundo o historiador Flaviano Bugatti Isolan, professor de História Contemporânea na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do artigo Cinema Alemão no Brasil nos Anos 1920 e 1930: Percursos de uma Política Cultural Exterior, havia planos de inaugurar uma terceira sala em Campinas (SP). Ter uma sala de cinema para chamar de sua e, principalmente, para exibir os próprios filmes não era um privilégio da UFA. Outros estúdios cinematográficos, como a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e a Paramount Pictures, também tiveram. “Filmes de propaganda nazista nunca tiveram grande circulação no Brasil”, afirma o historiador Flaviano Isolan. “Logo, os produtores notaram que, para atrair público, a propaganda tinha que ser menos escancarada e mais sutil. E começaram a produzir comédias, romances e musicais de viés nazista. Ao contrário dos filmes de Hollywood, fantasiosos e romantizados, os alemães eram realistas e defendiam valores patrióticos”. Como exemplo, cita Heróis Sem Pátria (1933), O Velho E O Novo Rei (1934) e Juventude Ardente (1937). O Art-Palácio do Recife fechou suas portas em 1993 e o Art-Palácio de São Paulo em 2009. O Graf Zeppelin é, nas palavras de Cristiano Rocha Affonso da Costa, “o dirigível de maior sucesso da história”. Ao todo, realizou 590 voos – 68 deles para o Brasil – e transportou cerca de 13 mil passageiros. Entre outras proezas, deu a volta ao mundo em 1929 – a viagem, de 21 dias, foi patrocinada pelo magnata William Randolph Hearst (1863-1951) – e levou cientistas até o Ártico em 1931. Podia alcançar a velocidade de 128 km/h e transportar até 40 passageiros. Se um navio levava de 15 a 21 dias para cruzar o Atlântico, um dirigível percorria o mesmo trajeto em apenas três dias e meio. Mas, se, por um lado, o tempo de travessia era menor; o preço da passagem, por outro, era maior, bem maior – correspondia a uma primeira classe em navio de luxo. Tripulantes e passageiros viajavam em um compartimento chamado “gôndola”, onde funcionava, além das cabines de comando e de controle, a cozinha, o refeitório, os dormitórios e os banheiros. No filme Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), o intrépido arqueólogo é perseguido por um oficial nazista na gôndola de um zepelim. Disfarçado de bilheteiro, dá um soco no sujeito e o atira janela abaixo. O que transportava a gôndola era o “invólucro” ou “envelope”, nome dado à parte superior do dirigível. “Vamos supor que o corpo do dirigível seja um pacote de biscoito – ou de bolacha, dependendo de onde você mora. Dentro dele, há vários biscoitos. Cada um equivale a um balão (ou célula de gás). No caso do Graf Zeppelin, eram 17, todos inflados com gás mais leve que o ar”, explica Cristiano Rocha Affonso da Costa. Os gases de elevação mais usados eram o hidrogênio e o hélio. Se o primeiro é barato e de fácil obtenção, o segundo é caro e de difícil produção. Outra diferença importante: o hidrogênio é altamente inflamável. “Num primeiro momento, os dirigíveis funcionavam como meio de transporte. Mas, com a chegada de Hitler ao poder, se tornaram instrumentos de propaganda nazista”, afirma o historiador Dirceu Marroquim, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), e coautor do livro Zeppelin no Recife (2015), em parceria com Jobson Figueiredo. “Muitos deles, inclusive, passaram a ostentar uma suástica no leme”. Além do Graf Zeppelin, outro dirigível, de fabricação alemã, também fazia a rota Europa-América do Sul: era o LZ 129 Hindenburg. Seu primeiro voo para o Brasil aconteceu no dia 31 de março de 1936 e conduzia, entre os passageiros, o maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Comparado ao Graf Zeppelin, o Hindenburg era um pouco maior: tinha 245 metros de comprimento – quase o tamanho do transatlântico britânico Titanic, que tinha 269 metros – e 41,2 metros de largura. Atingia a velocidade de 135 km/h e transportava até 72 passageiros. Cada passageiro podia transportar até 20 quilos de bagagem. Mais do que isso, as malas tinham que ser despachadas por navio, sem custo adicional. Maior e mais moderno: o Hindenburg tinha “piloto automático”, sistema de aquecimento e sala de fumantes – no Graf Zeppelin, fumar era proibido. A tripulação era dividida entre equipe técnica e geral: o capitão coordenava o primeiro grupo, que incluía engenheiros, maquinistas e operadores de leme, e o comissário de bordo, o segundo, de cozinheiro a médico. Se o Graf Zeppelin realizou, entre 1930 e 1937, 68 viagens para o Brasil, o Hindenburg realizou, entre 1936 e 1937, apenas oito. Dessas oito, duas foram estratégicas: uma experimental para Buenos Aires, na Argentina, em 1934, e outra em homenagem à colônia alemã no Paraná e Santa Catarina, em 1936. Nas duas ocasiões, o dirigível sobrevoou cidades como Porto Alegre, Joinville e Pelotas. Em Blumenau, a passagem do Hindenburg foi saudada por buzinas de carros, sirenes de fábricas e sinos de igrejas. “A maioria das pessoas sabia que os dirigíveis sobrevoariam suas cidades. A notícia chegava com dias de antecedência, através das rádios ou dos jornais”, explica o roteirista Saulo Adami, um dos diretores do documentário O Dirigível (2019), ao lado de Alessandro Vieira e Carlos Alexandre Martins. “Mesmo assim, muitos se surpreenderam com o tamanho dos zepelins. Disseram que eram assombrosos”. O LZ 129 Hindenburg teve vida curta: no dia 6 de maio de 1937, pegou fogo em Lakehurst, em Nova Jersey (EUA). A tragédia durou inacreditáveis 34 segundos. Morreram 13 dos 36 passageiros e 22 dos 61 tripulantes. “O que aconteceu naquele dia foi uma fatalidade”, lamenta o historiador Cristiano Rocha Affonso da Costa. “Duas comissões, uma da Alemanha e outra dos EUA, investigaram a explosão e descartaram a hipótese de sabotagem. O que houve foi vazamento de gás aliado à eletricidade estática”. Já Charles Narloch, do MAST, compara a tragédia de Hindenburg ao naufrágio do Titanic, em 1912. “Além de serem os maiores do mundo, eram tidos como ‘infalíveis’. A tragédia do Hindenburg comoveu o mundo. Para o Brasil, ficou o gosto amargo de uma promessa que não se cumpriu”, lamenta. O LZ Graf Zeppelin foi desmontado em 1940. Sua carcaça foi usada na construção de aviões de guerra. O Conde Zeppelin entrou para a história da aviação por emprestar seu sobrenome à empresa que fundou em 1908, a Companhia Zeppelin. O primeiro modelo que inventou, o LZ 1, tinha 137 metros de comprimento, chegou a 390 metros de altura e caiu depois de voar por 18 minutos. Durante a Primeira Guerra, seus zepelins foram transformados em naves militares. No dia 31 de maio de 1915, o LZ 38 bombardeou a cidade de Londres e deixou um saldo de 28 mortos e 60 feridos. Ao todo, os 109 dirigíveis fabricados durante a guerra, 89 deles pela Companhia Zeppelin, mataram 557 pessoas e feriram outras 1.358. Não por acaso, foram apelidados de “Baby Killers”. Curiosamente, o primeiro piloto a realizar um voo totalmente controlado de dirigível foi um brasileiro: Alberto Santos-Dumont (1873-1932). Foi no dia 20 de setembro de 1898. Seu invento tinha 25 metros de comprimento, era equipado com motor de 12 cavalos e chegou a uma altitude de 400 metros.
2023-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c28vyplnx99o
brasil
Região Norte é 8 anos mais 'jovem' que Sudeste: os achados do Censo 2022
A cada dez anos, o Brasil tem uma oportunidade inédita de olhar para a sua população com os censos demográficos. Nesta sexta-feira (27/10), chegou um novo capítulo do censo realizado entre agosto e outubro do ano passado e divulgado neste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): dados sobre a idade e o sexo dos brasileiros. Os novos dados confirmam tendências constatadas nos últimos Censos, como a de que a população brasileira está cada vez mais envelhecida. O Censo 2022 mostra que 10,9% da população é de idosos com mais de 65 anos (cerca de 22 milhões de pessoas) e 19,8% de crianças com até 14 anos (40 milhões). Fim do Matérias recomendadas Em 2010, o percentual e o número de idosos era menor, e o de crianças, maior. Naquele ano, 7,4% da população tinha mais de 65 anos (14 milhões) e 24% até 14 anos (45,9 milhões). A pirâmide etária do Brasil está cada vez mais diferente da pirâmide clássica, com uma grande base representando os mais novos. "A partir de 1940, tem início a transição demográfica do Brasil com a redução da mortalidade. Essa redução afeta a população de crianças primeiramente, e depois a queda da mortalidade segue em todos os grupos de idade", explicou à imprensa Izabel Marri, pesquisadora do IBGE e doutora em demografia. "A gente começa a ver o estreitamento da base da pirâmide no final da década de 1980 para 1990, como efeito da queda da fecundidade [número médio de filhos por mulher], iniciada em 1960 nas regiões mais industrializadas do país." "A estrutura populacional está em franco envelhecimento e tende a envelhecer mais." Outro dado que evidencia o envelhecimento do país é a chamada idade mediana, aquela que separa a metade mais jovem da metade mais velha da população. Essa idade no Brasil saltou de 29 anos em 2010 para 35 em 2022 — ou seja, aumentou seis anos de um Censo para o outro. A idade mediana também revela outra coisa: todas as regiões brasileiras estão envelhecendo, mas não na mesma medida. De 2010 para 2022, a idade aumentou em todas elas, mas elas têm valores diferentes. Em ordem crescente, a idade mediana no Norte é de 29 anos; no Centro-Oeste e Nordeste, 33 anos; no Sul, 36 anos; e no Sudeste, 37 anos. Os percentuais de crianças com até 14 anos e idosos com mais de 65 anos também colocam o Norte em uma ponta, e o Sudeste em outra. No Norte, as crianças são 25% da população, e os idosos, 7% Já no Sudeste, as crianças são 18% da população, e os idosos, 12%. Izabel Marri explica que as diferenças constatadas atualmente remontam, em parte, a tendências iniciadas nas décadas passadas. "A queda da fecundidade iniciada lá em 1960 se inicia nas regiões mais industrializadas do país, no Sudeste e Sul, entre as mulheres que residem nas áreas urbanas e que são mais escolarizadas", explica a demógrafa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Acompanhando esses padrões regionais, duas cidades no Rio Grande do Sul, Coqueiro Baixo e União da Serra, estão empatadas como as que têm a maior idade mediana do país: 53 anos. Já aquela com a idade mais jovem é Uiramutã, em Roraima, onde a mediana é de 15 anos. Mas olhando para os dados dos Estados e principalmente dos municípios, nota-se que há fatores particulares que influenciam na pirâmide etária da cidade, como a migração e a atividade econômica no local. O tamanho dos municípios também tende a fazer diferença, como mostra o chamado índice de envelhecimento — que é o número de idosos (com mais de 65 anos) para cada grupo de 100 crianças (de 0 a 14 anos). Considerando o tamanho das cidades, o índice mais alto está nos municípios com até 5 mil habitantes: 76,2 idosos por grupo de crianças. "O que acontece nos municípios muito pequenos é a saída da população em idade economicamente ativa, em idade reprodutiva, para cidades que oferecem maior chances de emprego e melhor as ofertas de serviço", explica a demógrafa do IBGE. Conforme o tamanho dos municípios aumenta a partir dos 5 mil habitantes, a proporção de idosos diminui — mas volta a aumentar nos municípios grandes, com mais de 100 mil habitantes. "Aí, a gente tem o efeito do número menor de crianças. São nessas regiões que o nível da fecundidade tende a ser mais baixo", diz Marri sobre as cidades grandes. Outra tendência que já vinha sendo observada em edições anteriores do Censo e que foi intensificada na edição atual é a da maior quantidade de mulheres em relação aos homens no Brasil. De acordo com o Censo 2022, 51,5% da população brasileira é formada por mulheres e 48,5% por homens. Há cerca de 104 milhões de mulheres no país — 6 milhões a mais do que homens. A pesquisa usa também um indicador chamado razão de sexo, que é o número de homens para cada 100 mulheres. Aliás, ao falar no "sexo" de uma pessoa, o IBGE considerou o sexo biológico no nascimento. Quando a razão de sexo fica abaixo de 100, quer dizer que há mais mulheres do que homens na população. Esse número caiu nas últimas décadas. Em 1980, eram 98,7 homens para cada 100 mulheres; em 2000, 96,9; e em 2022, 94,2. "Essa diminuição ao longo do tempo reflete a maior mortalidade dos homens em todos os grupos etários da população. Nascem mais meninos, mas morrem também mais meninos. E principalmente nas idades dos jovens adultos, o Brasil apresenta uma sobremortalidade masculina muito maior do que a população feminina", aponta Marri. "As causas de morte dessa população jovem adulta masculina estão relacionadas causas não naturais, que são as causas violentas", diz, referindo-se a mortes, por exemplo, por armas de fogo ou por acidentes de trânsito. "Embora a população apresente maior longevidade, as taxas de mortalidade dos homens são maiores do que das mulheres em todos os grupos, então quanto mais a gente envelhece, menor tenderá a ser a razão de sexo no país." Em todas as regiões, a razão de sexo é menor do que 100 — ou seja, há menos homens que mulheres. Por ser "uma das áreas mais envelhecidas do país", segundo a demógrafa, o Sudeste tem a menor razão de sexo: são 92,9 homens para cada 100 mulheres. Novamente, a nível mais "micro", importam as características dos municípios. Por exemplo, aqueles em que predominam atividades econômicas exercidas predominantemente por homens terão uma proporção maior deles. Isso acontece também em cidades que têm presídios, como Balbinos (SP), onde há 443 homens para cada 100 mulheres — a maior razão de sexo do país. No Brasil, há muito mais presos homens do que detentas mulheres. Dados de mortalidade, nascimentos, migração e fecundidade, apesar de estarem relacionados às informações divulgadas nessa sexta-feira, ainda não foram disponibilizados pelo Censo 2022. Espera-se que o efeito da pandemia de coronavírus se reflita nesses dados a serem publicados futuramente. Mas, por enquanto, as recém-divulgadas informações de idade e sexo da população — consideradas pelo IBGE o "cerne" do Censo — já poderão a ajudar no planejamento de políticas públicas fundamentais, como as que afetam escolas, hospitais e a previdência social.
2023-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72mg3j3x7eo
brasil
'Aqui quem manda no preço do gás não é a Petrobras': como milícia e tráfico controlam venda de botijão em comunidades do RJ
Quando precisa de gás para sua casa, em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro, Pedro (nome fictício) compra o produto em um dos pontos de revenda na comunidade. O gasto atualmente chega a R$ 146 pelo botijão de 13 quilos. Fora dali, no “asfalto”, o mesmo botijão pode ser adquirido por cerca de R$ 100, mas essa não é uma alternativa possível nem para Pedro, nem para seus vizinhos. O sobrepreço no GLP (gás liquefeito de petróleo), conhecido popularmente como gás de cozinha, é resultado de um mercado dominado pelo crime organizado, neste caso, por uma quadrilha de traficantes. O grupo obriga que moradores comprem o gás no comércio local e impõe taxas à atividade econômica na região que dominam. De mototaxistas a comerciantes, todos pagam pelo direito de trabalhar, fazer negócios ou simplesmente viver na favela perto do mar onde Pedro mora. O custo pesa no bolso - como o extra pago pelo GLP essencial para cozinhar -, em uma peculiar inflação do crime. O processo também atinge a água mineral em galões e chega até o carvão para churrasco. “Há pelo menos dez anos é assim”, diz Pedro, que é aposentado, à BBC News Brasil. Ele também paga R$ 100 por mês aos traficantes apenas para ter acesso à internet, depois que a operadora oficial avisou que não poderia mais fornecer o sinal na comunidade. Antes, gastava R$ 150 mensais com a concessionária, mas por um pacote com mais serviços. “Somos abandonados pela fiscalização pública.” Fim do Matérias recomendadas O domínio sobre o comércio do gás de botijão, comum em muitas comunidades pobres do Rio, é um dos negócios em disputa na “guerra” que, há mais de um ano, envolve milicianos e traficantes na cidade. Em jogo, também está o dinheiro que flui não só da imposição do comércio de botijões a preços turbinados como também do controle da venda ilegal de acesso à internet, TV a cabo, transporte por van, carros de aplicativo ou motocicletas, aluguel e comércio de imóveis, além da venda de diferentes produtos, incluindo drogas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O foco é a zona oeste da cidade, onde assassinatos e chacinas registram aumento neste ano como reflexo do confronto entre grupos rivais, mas repercussões se espalham pelo município. Na segunda-feira (23/10), criminosos incendiaram 35 ônibus e um trem. Foi um protesto contra a morte de um dos chefes milicianos em uma operação da Polícia Civil. Matheus da Silva Rezende, o Faustão, de 24 anos, era procurado sob acusação de integrar a milícia comandada por seu tio , Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho. Sua eliminação embaralhou ainda mais a luta entre grupos milicianos e entre essas quadrilhas e o narcotráfico. O conflito também é apontado pela polícia como motivo para o ataque que matou três médicos no início de outubro. Uma das vítimas tinha semelhança física com um rival dos assassinos. O cenário da disputa, a zona oeste da capital fluminense, equivalea 70% do município. Nela, vivem cerca de 2,5 milhões de pessoas. Aos menos dois fatores favorecem a expansão do esquema ilegal de venda de gás e outros produtos. O primeiro deles é a possibilidade de domínio territorial armado, imposto por milicianos ou traficantes a comunidades pobres, com pouca ou nenhuma presença oficial do Estado. Outro fator é a “milicianização” do narcotráfico. Há alguns anos, traficantes começaram a copiar o modelo de negócios das quadrilhas milicianas. Esses bandos, originalmente formados por agentes das forças de segurança, além de ex-policiais e ex-bombeiros, monopolizam serviços e venda de produtos nas favelas ou cobram taxas ilegais sobre eles. Agora, os papéis se misturam cada vez mais: traficantes exploram serviços como a venda dos botijões, enquanto milicianos se aliam a alguns deles na venda de drogas. Mas como funciona o domínio do comércio do gás de cozinha? Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) a pedido da BBC News Brasil dá algumas pistas sobre os mecanismos que governam o comércio de gás em comunidades controladas por criminosos no Estado do Rio. O estudo comparou os preços médios do gás de cozinha em áreas sem controle de grupos armados com os valores cobrados em comunidades cariocas dominadas pelas milícias ou pelo tráfico. No Brasil, o preço do gás de cozinha não é tabelado, mas é fortemente influenciado pelo preço que a estatal Petrobras determina para o insumo. Varia entre Estados a depender dos impostos cobrados. Altera-se ainda de acordo com o preço de distribuidoras e revendedoras. Semanalmente, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) coleta os preços na ponta e calcula o preço médio do GLP por Estado. No levantamento, o Geni-UFF analisou os valores médios para o gás entre 2008 a 2022 apurados pela ANP. Também os cruzou com dados de mais de 13 mil perímetros - como são denominadas favelas, conjuntos habitacionais e sub-bairros pobres que formam a sua base de dados. O levantamento do Geni-UFF apontou que, sobretudo na capital fluminense, moradores de áreas dominadas por traficantes e milicianos, em geral, pagaram mais pelo botijão, A comparação foi feita com os valores desembolsados por quem mora em localidades sem controle de grupos armados. Nas áreas de milícias, o sobrepreço variou entre 10,31% a 18,19% nos 15 anos analisados. A exceção foi o ano de 2008, quando o preço no território sob domínio de milicianos ficou abaixo do medido pela ANP nas áreas dominadas. Já nas áreas dominadas pelo tráfico, o sobrepreço do botijão ficou abaixo de 10%, com exceção dos anos de 2013 e 2014, quando os valores a mais foram 14,6% e 15,2, respectivamente. O sociólogo Daniel Hirata, do Geni-UFF, explica que os últimos anos da série estatística indicam uma aproximação entre os preços do gás praticados nas áreas dominadas por milicianos e naquelas sob jugo por traficantes. Em 2020, na capital, milícia e tráfico cobravam respectivamente, em média, R$ 63,31 e R$ 67,64 por botijão; em 2021, R$ 83,11 e R$ 82,84; em 2022, R$ 99,16 e R$ 97,07. O movimento indicaria a adoção cada vez mais intensa, pelo tráfico, da economia gerida originalmente das milícias. Segundo Hirata, o modelo dos milicianos é “muito mais diversificado” e atua na “extração dos recursos urbanos” - água, luz, internet, gás. Aproveita-se do distanciamento da fiscalização. “Há uma convergência (de preços) cada vez maior que pode ser identificada por esse valor parelho, cada vez mais próximo, do botijão de gás vendido nessas áreas”, afirma. Ele ressalta que o movimento é mais claro na capital fluminense do que na região metropolitana ou no leste do Estado (região de Niterói e São Gonçalo, por exemplo). Segundo Hirata, embora as práticas aproximam milícias e tráfico, “do ponto de vista sociológico” permanecem diferenças importantes. “Porque temos que pensar não só, digamos assim, na atuação em certos mercados específicos, mas em quais são as redes que estruturam essa atuação”, explica. “Aí me parece que ainda há algumas diferenças no sentido de que as milícias têm redes mais extensas e uma penetração no Estado que ainda é maior do que o tráfico de drogas”, segue Hirata. Sob anonimato, moradores afirmam que os revendedores de gás nas comunidades dominadas por traficantes ou milicianos não têm escolha. Se quiserem vender gás nas favelas, devem cobrar o ágio no preço do botijão e repassá-lo aos moradores. Além de evitar problemas, a contrapartida dessa simbiose é lucrativa. Os vendedores ganham um mercado exclusivo, sem concorrência e com preços regulados para cima - pelos criminosos. Quem desafia essa lógica arrisca a vida. Foi o caso de um comerciante na zona oeste da capital fluminense. Seu depósito de venda de água mineral e GLP recebeu tiros de fuzil na noite de 10 de setembro, segundo o telejornal RJ2, da Rede Globo. O pequeno empresário de Campo Grande disse à emissora ter se recusado a aumentar o preço dos botijões, de R$ 80 para R$ 100. Essa exigência fora feita dois dias antes do ataque, por homens encapuzados. Eles foram ao depósito, dizendo ser da “milícia do KM 32”, localidade pobre próxima. Lá, depósitos cobrariam R$ 100 por botijão e pagariam ágio aos criminosos. Muitos moradores tinham passado a comprar o produto, 20% mais barato, com o comerciante de fora da área dominada. Os criminosos disseram que, se a ordem de reajuste não fosse cumprida, o negócio seria metralhado. O cumprimento da ameaça – com cerca de 30 disparos registrados por câmeras de segurança, que deixaram buracos redondos no muro- foi um aviso sobre o funcionamento da economia na área. "O depósito é legalizado. Não faz sentido isso", queixou-se o homem à emissora, sem se identificar, por segurança. Antropóloga e professora de segurança pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz afirma que, nos territórios dominados pelo crime, o Estado é “terceirizado” para o que chama de “governos criminais”. São grupos que, lembra a pesquisadora, administram água, luz, internet, venda de gás e outros produtos. Essa é uma forma também de bancar os custos – muitas vezes altos - das atividades criminosas, como aluguel de armas, por exemplo. “A economia do gás está articulada com as outras prestações de serviços essenciais, que garantem o fluxo de caixa cotidiano”, explica. Falhas nos serviços são reportadas a pessoas próximas aos criminosos, para que o problema seja sanado, relata ela. “Por que eu chamo de governos criminais?”, pergunta ela. “É exatamente porque essas são mercadorias políticas, importantíssimas ali. Quando você tem o controle do território, você tem o do mercado ilegal. Na prática, os governos criminais no Rio de Janeiro administram população, controlam território e regulam o mercado. Quem administra território, controla população e regula mercado governo é.” O gás de botijão é um insumo crítico para as favelas e bairros mais distantes das áreas centrais do Rio. Esses locais não têm conexão com a rede de gás natural canalizado. Uma família com quatro pessoas pode consumir aproximadamente um botijão de 13 kg a cada dois meses, mas isso pode variar e o gasto ser maior. O valor médio, atualmente, fica em torno dos R$ 100 a cada compra. O salário mínimo é de R$ 1320 desde 1º de maio. Para aliviar essas despesas, as famílias mais pobres têm direito ao Auxílio Gás operado pelo governo federal. O “Vale Gás”, como é popularmente conhecido, é um benefício repassado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) a famílias inscritas no Cadastro Único, com renda familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. Desde o ano passado, passou a cobrir o valor médio aproximado de um botijão (antes, era metade), calculado pela Agência Nacional do Petróleo e pago a cada dois meses. Essencial para subsidiar a renda dos mais desfavorecidos, o benefício torna o comércio de gás em áreas mais pobres ainda mais atrativo. O benefício é pago em dinheiro e não está vinculado diretamente à compra de GLP, podendo ser gasto em outras mercadorias. Ainda assim, ao menos parte deste valor deve ir efetivamente para a compra do botijão, uma despesa básica que pesa na conta dos mais pobres. No município do Rio, 137.359 famílias receberam os R$ 14.834.772,00 pelo Vale Gás em agosto de 2023 ( número mais recente disponível). As milícias controlam cerca de 60% do território do Rio de Janeiro sob domínio do crime organizado, de acordo com estudo de um conjunto de entidades que inclui o Geni-UFF. O território total dominado pelo crime, por sua vez, representa cerca de 20% da área total da região metropolitana do Rio, segundo levantamento da ONG Fogo Cruzado. O coronel da reserva da PM, doutor em Ciências Sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Robson Rodrigues alerta para a possibilidade de o dinheiro do Auxílio Gás ser apropriado pelas quadrilhas que dominam esse comércio. “Entendo ser extremamente positivo esse fluxo de dinheiro para os mais vulnerabilizados socialmente”, diz. “Isso tende a minimizar esses impactos e melhorar a situação dessas pessoas. No entanto, quando esse aumento de recursos chega a um local de que o Estado não tem um domínio, e esses grupos criminosos estão à frente, dominando, observando e vigiando a vida local, evidentemente a chance de que eles obriguem a usar esses já parcos recursos vai ocorrer. Isso é sempre negócio, Negócio observa oportunidade de se expandir e de ganhar mais. Então, é evidente que para que essa política fosse ainda mais efetiva e eficaz, seria necessária a presença do Estado para vigiar, olhar, cuidar.” Ex-coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), Rodrigues lembra que, quando o processo de pacificação estava “com bastante força, com fôlego, com recurso, com legitimidade”, a vida, segundo ele, ficou “mais próxima da normalidade” em comunidades pacificadas. O mesmo, porém, não ocorreu nas demais favelas. “Como um contraponto, naquelas comunidades onde não havia UPP, mas mesmo assim o governo federal colocou recursos, com obras do PAC, com alguns recursos de transferência de renda para essa população mais pobre, esses criminosos, sobretudo os traficantes, ainda sem a presença do Estado, aparelhavam a associação de moradores e acabavam aparelhando toda a destinação desses recursos”, conta. “Eles é que orientavam quem ia receber, como ia fazer. Isso mostrou que obras sociais são de imensa importância, mas se não tiver um mínimo de segurança antes, para que isso possa funcionar de uma forma mais próxima de uma normalidade civilizatória, evidentemente que o Estado não vai conseguir fazer, mesmo com toda a boa vontade e todo o aspecto positivo de uma política de transferência de renda.” Pedro, morador da favela da zona sul, explica que o controle vigente em sua comunidade, dominada por traficantes, é rígido. “Não pode ter concorrente de fora”, conta ele, que nunca tentou comprar gás em outro local que não a vizinhança. “Se tivesse carro, talvez pensasse nisso, mas sempre é um risco.” Morador de um complexo de favelas na zona norte também dominado por traficantes, Jonas (nome fictício), um desempregado que vive de biscates que lhe rendem cerca de R$ 2 mil por mês, faz um relato parecido com o de Pedro. Mas há algumas diferenças, aparentemente ligadas a relações de vizinhança - afinal, “todo mundo é amigo”, diz. “O botijão de gás é vendido, na revenda oficial, por 80 reais. Mas nas comunidades (do complexo) é revendido a R$ 115 no dinheiro e R$120 no cartão. Isto não ocorre somente com o gás. Também com o carvão e o galão da água mineral. A pessoa tem um depósito e combina com o tráfico: “Vou te dar tanto (dinheiro) para (poder) vender meu produto na tua comunidade ou favela. Então só ele vende”, relata. Nesse caso, porém, a compra de botijões em outros locais, fora das favelas, é tolerada. “Ninguém vai revistar o teu carro”, conta Jonas. Mas há uma condição: o gás deve ser para consumo do morador e não pode ser revendido a preço mais barato do que o tabelado pelos criminosos. No Complexo, há cinco distribuidoras de GLP, com divisão territorial. Um depósito não pode entregar o produto na “área” de outro, diz Jonas. “Mesmo os proprietários sendo amigos”, relata. Jonas afirma que o domínio do tráfico sobre o comércio de gás na região começou “há dez, doze anos”, copiando prática de milicianos. Com relação a água e carvão, já tem duas décadas. Ele sente as consequências desse domínio. Paga R$ 10 por galão de água que, fora do complexo, custa R$ 5. Também usa transporte por vans, carros de aplicativo, mototáxis que pagam “pedágio” aos criminosos. “Logo, pagamos”, diz. Por nota, a Polícia Civil do Rio afirmou ter “investigações em andamento” e realizar “trabalhos de inteligência e diligências para identificar traficantes e milicianos envolvidos na comercialização ilegal” de gás de botijão. Sem ser específica, a corporação afirmou que já interditou “dezenas de estabelecimentos irregulares” e apreendido “centenas de botijas de gás (...) durante as ações”. Também declara que essas iniciativas “resultaram em prisões de criminosos”. “A instituição reforça a importância da população registrar as ocorrências e apresentar informações que auxiliem nas investigações para identificação e prisão dos envolvidos na prática criminosa”, diz o texto. “Os registros também podem ser feitos pela internet, por meio da Delegacia On-line.”
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vl2vm6zm1o
brasil
Vídeo, Deus na Constituição e religião na escola: a (lenta) separação entre Igreja e Estado no BrasilDuration, 8,26
Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo. Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que "pertence ao Senhor Jesus" e outros que-tais. Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas? A repórter Letícia Mori conta sobre essa relação que permeia quase toda a história do Brasil.
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0v7j944nx0o
brasil
Trabalhar para app rende menos por hora a motoristas e entregadores; veja salários
As informações são parte de dados inéditos divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta quarta-feira (25/10). Motoristas de aplicativos recebem, em média, R$ 11,80 por hora trabalhada – ou 87% do ganho daqueles que atuam fora das plataformas (R$ 13,60). E as jornadas são mais extensas: os motoristas de aplicativos trabalham, em média, 7 horas a mais horas por semana (47,9 horas) que os que estão fora das plataformas (40,9 horas). Fim do Matérias recomendadas No fim do mês, os motoristas de aplicativo – com mais horas trabalhadas, chegam a um rendimento médio (R$ 2.454) ligeiramente superior aos ganhos dos que atuam fora de plataformas (R$ 2.412). Considerando apenas o trabalho principal dos brasileiros, a estimativa é que havia em 2022 um total de 1,2 milhão de pessoas ocupadas como condutores de automóveis na atividade principal de transporte rodoviário de passageiros – 60,5% trabalhavam por meio de aplicativos de transporte (inclusive táxi) enquanto 39,5% não utilizavam esses aplicativos. O ganho médio por hora de motoboys que trabalham com entrega por aplicativo (R$ 8,70) representa 73% da remuneração por hora daqueles que não trabalham para plataforma (R$ 11,90). Na mesma linha do que ocorre com os motoristas, a média de horas trabalhadas por semana é maior para o motoboy que trabalha para aplicativo (47,6 horas) do que para os demais (42,8 horas). No entanto, mesmo com jornadas mais extensas, o ganho médio no fim do mês é menor para os que trabalham para plataformas (R$ 1.784) do que para os motoboys fora dos aplicativos (R$ 2.210). Considerando os condutores de motocicletas em atividades de malote e entrega no trabalho principal, o IBGE estimou um total de 338 mil pessoas em 2022 – 50,8% atuando por meio de aplicativos de entrega, e 49,2% fora das plataformas. Os valores de rendimento, segundo o IBGE, consideram a receita do trabalhador após descontar despesas com aquele trabalho – como combustível, por exemplo, no caso de motoristas e entregadores. Os dados sobre trabalhadores de plataformas, referentes ao 4º trimestre de 2022, foram divulgados pela primeira vez pelo IBGE – por isso, não há ainda histórico que permita comparar o resultado com períodos anteriores. O IBGE informou que essas estatísticas, parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), estão em fase de teste e sob avaliação. O levantamento considera o trabalho principal de pessoas de 14 anos ou mais ocupadas no período de referência da pesquisa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os dados divulgados nesta quarta-feira jogam luz sobre um tema que vem sendo discutido no Brasil e no mundo – os desafios trazidos pelo trabalho por plataforma, uma modalidade que não se enquadra em todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos. No Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego prepara uma proposta de regulamentação do trabalho para aplicativos – o texto seria enviado ao Congresso até o fim de setembro, segundo o governo, mas isso ainda não aconteceu. O Ministério do Trabalho e Emprego respondeu na terça-feira (24/10) que o projeto de lei ainda “está em construção” e que a previsão é de envio ao Congresso até o fim da próxima semana. Em um ponto fundamental para a discussão de políticas nessa área, a pesquisa mostrou que os trabalhadores de plataformas estão menos protegidos pela Previdência do que os demais trabalhadores no setor privado. Só 23,6% dos motoristas de app faziam contribuições à Previdência – o que significa que mais de sete a cada dez estavam desprotegidos pelo INSS. A taxa para motoristas que atuavam fora de plataformas era de quase 44%. Entre os motoboys de aplicativo, só 22,3% contribuíam com o INSS, enquanto a taxa era de quase 40% para os que atuam fora das plataformas. Os trabalhadores que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes ou de doenças que exijam afastamento do trabalho. Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes. Os dados gerais da pesquisa consideram, além de motoristas e motoboys, outros brasileiros que atuam por meio de outros tipos de aplicativos, como de prestação de serviços gerais ou profissionais – faxina, lavagem, cuidado de pessoas, reformas e reparos, entre outros. A quantidade de brasileiros ocupados no 4º trimestre de 2022 – desconsiderando os empregados no setor público e militares – foi estimada em 87,2 milhões. Desse total, 1,49 milhão de pessoas trabalhavam por meio de plataformas digitais de serviços – com uma concentração no Sudeste de quase 58% do total de trabalhadores plataformizados. E quais são os tipos de aplicativos de serviços mais usados como plataforma de serviço por esses trabalhadores, segundo a pesquisa? A soma dos percentuais acima supera 100% porque o mesmo trabalhador pode usar, em seu trabalho principal, mais de um tipo de plataforma – por exemplo, aplicativo de táxi e de transporte particular. E qual é o perfil desses trabalhadores? Os trabalhadores por aplicativo são principalmente homens (mais de 81% do total), uma proporção bem maior do que a parcela masculina na média geral dos trabalhadores ocupados fora do setor público (59%). Quase metade (mais de 48%) das pessoas que trabalhavam por meio de plataformas estava no grupo de 25 a 39 anos. A taxa para esta faixa etária, entre trabalhadores que estão fora das plataformas, era de 39,5%. Em relação ao nível de instrução, a maioria dos trabalhadores de app tinha nível médio completo ou superior incompleto (mais de 61%). O mesmo grupo, entre a população de trabalhadores fora das plataformas, representava 43%. A pesquisa também procurou medir o nível de dependência sentido pelos trabalhadores em relação às plataformas, em aspectos como o valor a ser recebido pelo trabalho realizado, clientes a serem atendidos, prazo para realização de tarefas, e forma de recebimento do pagamento. O IBGE concluiu que “há diferenças substanciais entre os tipos de aplicativos de serviços em relação à dependência dos trabalhadores”. Os maiores graus de dependência em relação à plataforma foram identificados, segundo o IBGE, para trabalhadores de aplicativos de transporte de passageiros (exceto aplicativo de táxi) e entregadores em aplicativos de entrega. Na outra ponta, com menor grau de dependência, aparecem aqueles que utilizavam plataformas de prestação de serviços gerais ou profissionais. Por exemplo, na pergunta sobre o valor a ser recebido por tarefa entregue, 97,3% das pessoas que trabalhavam por meio de aplicativo de transporte particular de passageiros (fora táxi) afirmaram que o valor era determinado pelo aplicativo. Para outras plataformas, os percentuais foram: 84,3% para aplicativos de entrega, 79,9% para aplicativos de táxi, e 31,9% para aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais. O levantamento também mediu a influência dos aplicativos na determinação da jornada de trabalho, com potenciais estratégias usadas por plataformas, como incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços; ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma; e sugestão de turnos e dias pela plataforma. O IBGE disse que observou, também, a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente. Por exemplo, no grupo de pessoas que trabalhavam para aplicativos de transporte de passageiros (fora táxi), 63,2% afirmaram que a jornada de trabalho era influenciada por meio de incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços; 42,3%, por ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma; e 29,2%, por meio de sugestão de turnos e dias. Mesmo nesse cenário, 83,8% desses trabalhadores afirmaram ter a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84535d7v7xo
brasil
Fuga de cérebros: Brasil está perdendo talentos em inteligência artificial para exterior, diz ranking
No ramo da inteligência artificial (IA), o Brasil se sai bem quando o assunto é "talentos". Porém muitos dos melhores profissionais brasileiros trabalham hoje para empresas e governos estrangeiros. "É um cenário parecido com o de países como a Índia", comenta o historiador Joe White, cientista de dados da Tortoise, grupo de mídia inglês, em entrevista à BBC News Brasil. "Nosso levantamento aponta que o talento criado em um país muitas vezes não é retido. Há uma fuga de cérebros, com êxodo para nações mais ricas." Essas são conclusões do The Global AI Index, pesquisa da Tortoise coordenada por White e por sua colega Serena Cesareo, também cientista de dados. O estudo avalia o cenário de 62 países no mercado de inteligência artificial, em torno de três pilares principais: investimento, inovação e implementação. O Brasil está no meio do ranking, em 35º lugar. Os tópicos do ranking são divididos em sete categorias, respectivamente sob cada um desses três pilares: talento, infraestrutura e ambiente de operações (investimento); pesquisa e desenvolvimento (inovação); estratégia governamental e comércio (implementação). "Nossa principal base de pesquisa para identificar talentos locais foi o Linkedin", comenta Serena Cesareo. "Ficou evidente como o Brasil possui um grande número de profissionais no campo, tanto em termos absolutos quanto em proporcionais, em relação ao tamanho da população." Fim do Matérias recomendadas O The Global AI Index se apresenta como a primeira pesquisa global a analisar o cenário dessa tecnologia de forma tão abrangente. Foi criado em 2019 e está em sua quarta edição. Em todas elas, os Estados Unidos lideraram o ranking, seguidos pela China. O Brasil aparece em 35º lugar no ranking geral. Todavia, no critério "talentos", está em 21º, à frente de países como Áustria, Bélgica, Portugal e Rússia, todos melhores colocados na listagem geral. E logo atrás da China, em 20ª neste tópico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Se um profissional brasileiro se forma em seu país, mora onde nasceu, só que trabalha no dia a dia para o escritório local da Microsoft, que é americana, nós o registramos como um talento brasileiro, mas que não contribui para o mercado nacional de IA, mas, sim, para o dos Estados Unidos", diz Joe White, da Tortoise. A comparação realizada por White com a Índia, logo no início desta reportagem, é evidenciada pelos números. Enquanto os indianos garantem um invejável segundo lugar no tópico "talentos", estão em 14º na classificação geral. Isso ocorre porque, em outros temas, a Índia não tem desempenho tão bom. Em "infraestrutura", por exemplo, é quase a lanterninha da lista, na 59ª colocação. O país também vai mal em "estratégia governamental" (38ª) e "pesquisa" (30ª). No caso do Brasil, em 21º lugar em "talentos", os dados do levantamento apontam para carência em "estratégia governamental", com o país em 30º lugar, assim como em indicadores impactados diretamente por ações do Estado, como em "pesquisa" e "desenvolvimento" (em 36º nesses dois âmbitos). "Esse cenário todo está ligado à fuga de cérebros do país", resume Joe White. Com 31 anos de idade, e doutorado concluído em 2021 na Universidade de Princeton, o paulista Talmo Pereira rapidamente alcançou uma posição cobiçada no ramo acadêmico: a de líder de seu próprio laboratório. Todavia, o feito foi conquistado a quase 10 mil quilômetros de distância de sua cidade natal, Campinas (SP). No Salk Institute for Biological Studies, na cidade californiana de San Diego, nos Estados Unidos, ele está à frente de uma equipe de catorze pesquisadores e que se dedica a usar ferramentas computacionais de aprendizagem profunda (no termo em inglês, deep learning) para solucionar uma variedade de questões das biociências. Em termos mais leigos, o neurocientista brasileiro usa a inteligência artificial como uma forma de investigar padrões biológicos em animais e humanos. "Criamos, por exemplo, uma tecnologia que prevê movimentos de animais, mesmo de pequenos insetos", pontua Pereira. Na sequência, ele continua a enumerar os estudos sob seu cuidado. "Temos avançado no uso dessa ferramenta para detectar doenças, como cânceres, antes que os sintomas apareçam. Em outra pesquisa, em parceria com um museu de Los Angeles, rastreamos como as pessoas se comportam diante de obras de arte. E também temos um trabalho com a Nasa." O time do Talmo Lab, o nome de seu laboratório em San Diego, tem realizado estudos sob encomenda da agência espacial americana. "Vamos enviar experimentos para a Estação Espacial Internacional. Como astronautas permanecem muito tempo no espaço, e há planos de mandá-los a Marte, meu grupo procura criar métodos de prevenir doenças que podem se desenvolver mais rápido em ambientes de baixa gravidade." Talmo Pereira é exemplo de um talento brasileiro que foi perdido pelo país. No ranking do The Global AI Index, da Tortoise, todo seu trabalho rende pontos para os Estados Unidos, e não para o Brasil. "O Brasil infelizmente tem um contexto sócio-cultural, além de econômico, que prejudica quem ambiciona seguir uma carreira acadêmica", comenta. "Eu e minha mãe migramos para os Estados Unidos em busca de condições melhores para mim." Pereira imigrou aos 16 anos de idade, com planos de entrar em uma universidade americana. Desde então, não voltou para sua terra natal. "O Brasil não investe tanto quanto deveria em políticas públicas que incentivem a educação, principalmente para os menos privilegiados", opina. "Se fosse diferente, se houvesse esse incentivo, eu não teria de ter saído de meu país para procurar pelas melhores oportunidades." "Tanto o sistema público quanto o privado brasileiros têm um cenário complicado para quem trabalha na nossa área", avalia o economista Alexandre Chiavegatto, professor de aprendizado das máquinas [machine learning] da Universidade de São Paulo (USP). "As empresas não valorizam o quanto deveriam. O governo, preocupa-se mais em regular e restringir, do que em desenvolvimento." Chiavegatto fez da graduação ao doutorado na USP, onde se especializou na área de ciências de dados de saúde. O pós-doutorado, que concluiu em 2012, foi na Universidade de Harvard. "Decidi não ficar nos Estados Unidos pois passei no concurso público da USP e pude realizar um sonho que eu tinha, de me tornar professor nessa universidade", diz Chiavegatto. "Mas o cenário lá fora é melhor, com empresas e o governo apostando mais no setor." Ele é um talento que permanece no Brasil. Na USP, lidera o Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde. "Somos um time de trinta pesquisadores", afirma. "Usamos a inteligência artificial para desenvolver algoritmos capazes de predizer e nos ajudar a combater doenças." Chiavegatto conta que seus melhores alunos costumam ser recrutados por universidades e empresas estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos – o líder do mercado de IA, segundo o The Global AI Index. "A qualidade dos trabalhos dos brasileiros nessa área é excelente, por isso acabamos por ganhar os empregos lá fora", diz ele. Ele cita, como "um de muitos exemplos", o caso de Helena Schuch, que colaborou em trabalhos de seu laboratório na USP. "Agora, ela está em Harvard." Dentista dedicada às pesquisas acadêmicas, a gaúcha Helena, de 33 anos, é pesquisadora da Harvard School of Dental Medicine. À BBC News Brasil, ela conta que utiliza ferramentas de IA para prever incidências de problemas dentais em pacientes, em particular os de camadas mais pobres da sociedade. "É difícil conseguir cargo de pesquisadora no Brasil", opina ela. "Nas universidades brasileiras, é preciso se dedicar integralmente a ser professor, além de pesquisador. Isso não favorece o desenvolvimento da ciência por não aproveitar aqueles que, como eu, tem maior perfil de laboratório, não de dar aulas." Pesquisador da Fiocruz, o cientista da computação Paulo Carvalho, líder do laboratório de proteômica da instituição, também identifica o êxodo de talentos. "Um ex-aluno está em uma empresa do Vale do Silício. Tem um que mora no Brasil, mas trabalha para uma startup americana. Outro, na Universidade de Cincinnati. E dois foram para o Uruguai", diz à BBC Brasil. Segundo Carvalho contabiliza, a maioria dos estudantes de mestrado e doutorado que passaram por seu laboratório acabaram em vagas em instituições estrangeiras. "Nos Estados Unidos, um jovem pesquisador pode ganhar três vezes mais que um sênior aqui no Brasil", estima. "Faltam incentivos para ficar no país." Joe White, que elaborou o ranking global, diz que "para os países que querem subir na classificação, um caminho que tem se mostrado produtivo é o do governo criar mais possibilidades e incentivos para o setor de IA". Apesar das dificuldades do Brasil, o país tem melhorado no ranking. Na edição de 2020 do The Global AI Index, o Brasil estava em 46º na classificação geral. Em 2021, avançou para 39º. Na última edição, publicada em junho (em 2022 o levantamento não foi realizado), chegou a 35º. Os brasileiros sempre se destacam no indicador "talentos", ficando em 35º em 2020 e em 31º, no penúltimo ranking. "O país está sendo puxado por seus profissionais, mas ao mesmo tempo apresenta dificuldade de mantê-los", complementa White. O que está em jogo nesse mercado? Segundo estimativa da consultoria MarketsandMarkets, trata-se de uma indústria que hoje movimenta anualmente cerca de US$ 150 bilhões (R$ 760 bilhões). Um mercado promissor, que deve ser quase de vez maior em 2030, quando se calcula que chegará próximo de US$ 1,4 trilhão.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2lklwl4x9o
brasil
Tensão entre políticos e 'Supremos' pressiona democracias pelo mundo, diz pesquisador americano
Enquanto parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) participam no Brasil de um cabo de guerra sobre quais são as funções e os limites do poder Legislativo e a mais alta corte do Judiciário, outros países estão testemunhando também esse tenso "jogo" entre poderes. México, El Salvador, Mali e Polônia são alguns dos países em que essa tensão emergiu nos últimos anos em menor ou maior medida — desde projetos partindo do Executivo ou do Legislativo para limitar as decisões de supremas cortes ou cortes constitucionais até ações que efetivamente tiraram juízes de seus mandatos e mudaram a composição dos tribunais (confira mais detalhes sobre esses países abaixo). Há também o caso de Israel, onde, até a véspera dos ataques do grupo palestino Hamas em 7 de outubro e a decorrente retaliação israelense, uma reforma no Judiciário proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estava causando uma ebulição doméstica. O pesquisador americano Tom Ginsburg, professor da Universidade de Chicago, tem como trabalho acompanhar a situação do Judiciário ao redor do planeta: ele é especializado em direito internacional e é codiretor do projeto Comparative Constitutions, dedicado a reunir informações das constituições pelo mundo. Quando perguntado se as altas cortes estão atualmente mais vulneráveis à pressão política, Ginsburg responde: "Acho que sim. E é uma tendência ruim". Fim do Matérias recomendadas "Estamos vendo em muitos países políticos tentando controlar os membros [das altas cortes]. Isso é perigoso, porque se tivermos pessoas muito ligadas à política, provavelmente elas não serão os melhores juízes, tecnicamente", aponta Ginsburg, em entrevista à BBC News Brasil por videoconferência. "Eu não gosto dessa tendência. Ao mesmo tempo, não acho que os juízes devem sair de sua esfera. Eles devem respeitar o que a lei exige e não impor as suas preferências pessoais", diz o pesquisador, dedicado também à ciência política. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ginsburg tem doutorado em Jurisprudência e Políticas Sociais pela Universidade da Califórnia em Berkeley e é autor de vários livros, como Democracies and International Law (2021) e How to save a Constitutional Democracy (2018). O pesquisador já esteve no Brasil e, ao conversar com a BBC, mostrou que estava antenado com a situação do país. Por aqui, o mais recente capítulo da tensão entre a política e o STF é protagonizado por parlamentares — sucedendo anos de ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à corte. Há vários projetos tramitando na Câmara e no Senado que propõem medidas como a anulação de decisões do STF pelo Legislativo, a limitação do tempo de mandato de ministros do STF e de decisões individuais (monocráticas). O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou a colegas que deve ser votada no plenário em novembro uma proposta de emenda constitucional (PEC) que proíbe decisões monocráticas de suspenderem leis ou atos do Executivo ou do Legislativo federal. A discussão sobre a PEC está prevista para começar nessa terça-feira (24/10). Pacheco tem liderado no Congresso a defesa de mudanças no STF — ela já se manifestou favoravelmente à limitação do tempo de mandato dos ministros e ao aumento da idade mínima para se entrar no STF. Durante um evento na França, Pacheco afirmou à CNN Brasil no sábado (14/10) que "não há crise" entre poderes, apenas uma "busca de convergências" por mudanças. "O Legislativo é formado por 594 parlamentares votados diretamente pelo povo. Então, a essência do que é a vontade popular — e que todo poder emana do povo é uma premissa que nós temos que considerar —, ela é do Legislativo. Portanto, as grandes definições nacionais, para onde o Brasil deve se encaminhar, é um papel muito genuíno do poder Legislativo", afirmou Pacheco. "Nós não deixamos de legislar. Quando há algum tipo de opção de não se deliberar sobre determinado tema e fazer prevalecer a lei atual, essa também é uma forma de posição política do Congresso." O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, deu uma entrevista coletiva em 4 de outubro sobre as tentativas de mudanças e afirmou ver "com muita ressalva" projetos que visam reverter decisões da corte. O ministro defendeu que a questão dos mandatos já foi bastante discutida na preparação da Constituição de 1988 — em que ficou decidida que os ministros do STF teriam cargo vitalício, embora desde 2015, haja aposentadoria compulsória aos 75 anos. "Considerando uma instituição que vem funcionando bem, eu não vejo muita razão para se procurar mexer na composição e no funcionamento do Supremo. Mas o debate público no Congresso é legítimo e nós participamos também desse debate público", afirmou Barroso. Tom Ginsburg destaca que, após um ciclo de "judicialização da política", o mundo está vivendo agora o ciclo da "politização da Justiça". "Na década de 1990, houve uma espécie de vitória da democracia liberal, e parte disso inclui o empoderamento dos tribunais. Havia um sentimento de que os juízes, em virtude da sua disciplina profissional, eram necessários para proteger os fundamentos da democracia, para proteger os direitos e para tomar decisões importantes sobre a constitucionalidade." "Como resultado dessa época, vimos os tribunais de muitos países expandirem o seu papel na sociedade, e por vezes chamamos isso de judicialização da política: coisas que normalmente eram resolvidas na política, pelo povo, agora estavam nos tribunais." "A situação em que estamos agora é: estamos vendo em muitos países o que eu chamaria de politização da Justiça. As forças políticas não estão necessariamente satisfeitas com algumas das decisões tomadas pelos tribunais e querem mais controle." Questionado se a politização da Justiça é algo bom ou ruim, Ginsburg brinca: "Depende do quanto você gosta das decisões que os tribunais estão tomando." Depois, responde mais seriamente. "A politização do Judiciário é algo natural. Não deveríamos olhar para ela como se fosse de todo ruim. É uma reação natural a juízes tomando grandes decisões. Críticas a decisões, é disso que é feita a democracia, certo? É assim que funciona a democracia." "O problema nos nossos tempos é que a negociação política fracassou em muitas sociedades em uma era polarizada. Temos sociedades muito divididas. O Brasil está assim, o Estados Unidos estão asssim." O pesquisador usa como exemplo o frequente apelo de partidos à Justiça para contestar decisões do Executivo ou do Legislativo com as quais não concordam — algo frequente no Brasil e, segundo Ginsburg, também em outros países. "Se a competição é polarizada e intensa, os partidos vão buscar ter qualquer vantagem que puderem na instituição que for", diz. "Só de se ter mais um fórum, quem perde na esfera política comum sempre pode ir ao tribunal. Isso coloca pressão sobre os tribunais porque agora eles têm muito mais decisões a tomar. Tornou-se um trabalho muito mais difícil." Ginsburg aponta para um outro fator complicador na combinação de elementos de tensão entre poderes: uma certa impotência do Legislativo nas democracias contemporâneas. "Vimos nos últimos anos um grande crescimento do poder Executivo. O Estado é muito maior do que já foi. Isso dá ao Executivo muito poder para interferir na vida das pessoas." "Por outro lado, o Legislativo ficou bem mais fraco. As formas de governar modernas se tornaram muito complicadas para que eles [parlamentares] tomem decisões. Então você tem muito Executivo, e poucas políticas públicas vindo do Legislativo." Mas o professor da Universidade de Chicago reconhece que tentativas — às vezes ameaçadoras à democracia — de controlar as altas cortes podem vir tanto do Legislativo quanto do próprio Executivo. "O mais preocupante é uma situação como a da Venezuela, onde você tem um partido forte controlando tudo", aponta, destacando também que esforços prejudiciais contra as cortes podem partir tanto de políticos de esquerda quanto de direita. "Não acredito que qualquer lado político tenha o monopólio de governos ruins, do populismo e de valores antidemocráticos." "No meu país, temos um problema de verdade agora, em que a Suprema Corte — não em todos os casos, mas em muitos casos — parece estar impondo suas visões políticas particulares." "Nem todos os países são assim, mas nos Estados Unidos é bastante claro que o partido do presidente que nomeia [um juiz da Suprema Corte] é muito importante para decisões em casos de alto impacto, e não para casos comuns." "Mas não devemos simplesmente presumir que os juízes só votarão ao encontro do presidente que os nomeou. Temos muitos exemplos de juízes que mudaram [de posição], e é isso que chamamos de questão empírica. Você tem que analisar os dados." "Todos falam da independência da Justiça, mas também há o outro lado, que é a fiscalização do Judiciário." "Alguns tribunais estão se excedendo, inserindo suas próprias [vontades] políticas." Para Ginsburg, há tentativas de mudanças do Judiciário que partem de um "bom espírito" democrático e são bem-vindas, enquanto outras atendem a projetos de poder particulares de políticos e partidos. O pesquisador cita como um bom exemplo na conciliação entre política e Judiciário o chamado modelo de Commonwealth — grupo de países com origens no Império Britânico. "Vemos isso no Canadá, na Nova Zelândia e no Reino Unido. Você tem essa ideia de que a corte pode tomar uma decisão e se o Legislativo realmente não gostar dela, pode derrubar a decisão." "Vários acadêmicos realmente gostam desse modelo, porque na maior parte das vezes, a decisão da corte vai prevalecer. Mas se for uma decisão muito maluca, ela pode ser derrubada." "Eu não estou dizendo que esse é um bom modelo para todos os casos — eu não iria querer isso para ao meu país, porque eu não confio no nosso Congresso. Mas esse tipo de iniciativa, em que você tem um diálogo entre as cortes e outros poderes, é bom." Ainda sobre boas iniciativas para fiscalizar o judiciário, Ginsburg menciona a importância de "rígidas normas éticas" para membros da corte e o predomínio de decisões coletivas (colegiadas). "Acho também que a possibilidade de apelar para cortes internacionais é boa. Se o tribunal decidir algo realmente negativo para um indivíduo, essa decisão pode estar sujeita a um exame mais minucioso a nível internacional. Esse é um tipo de mecanismo de controle dos tribunais. O Brasil tem isso na Corte Interamericana de Direitos Humanos." "E é isso que vemos na União Europeia. É por isso que Orbán [Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria] e Kaczynski [Jaroslaw Kaczynski, líder do partido PiS, que comanda a Polônia desde 2015] estão limitados na sua capacidade de abusar totalmente dos direitos dos cidadãos, porque estão inseridos na Convenção Europeia de Direitos Humanos." Países que passaram recentemente ou estão passando por tensões entre política e altas cortes Após os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro, alguns analistas e políticos de oposição têm apontado que o contexto doméstico na véspera fragilizou a defesa do país. Depois dos ataques do Hamas, o líder da oposição Yair Lapid disse que "o sistema de Israel colapsou porque ele se desconectou de seu DNA". "Israel sempre disse ao mundo: somos a única democracia no Oriente Médio, somos o país mais forte no Oriente Médio. Nós simplesmente esquecemos, mas essas duas coisas não estão desconectadas. Elas são causa e efeito." Tom Ginsburg endossa a avaliação. "A situação de Israel ilustra o que acontece quando populistas gastam muito tempo tentando minar as cortes. O governo israelense estava tão distraído com a tomada do poder que eles se provaram completamente incompetentes e despreparados para o ataque do Hamas", diz o pesquisador americano. "Muitos em Israel estão percebendo isso agora, e isso será uma mancha para Netanyahu por toda a história." Ginsburg afirma que, mesmo que ele seja um crítico da Suprema Corte israelense, ela é necessária. "Eles [juízes da Suprema Corte israelense] fizeram realmente algumas decisões malucas. Eles se inseriram muito em muitos assuntos da política. Mas eu acho que Israel seria um país muito pior se eles não tivessem essa corte, porque eles têm um modelo de representação proporcional puro", diz. Ele se refere ao sistema eleitoral israelense, baseado no parlamentarismo e onde tem se mostrado quase impossível um único partido conquistar um número suficiente de assentos para formar governo sem alianças. Partidos pequenos normalmente são necessários para formar uma coalizão — e, para Ginsburg, isso faz com que minorias consigam usar o governo contra o direito de outras minorias. "Me preocupo muito com os direitos das minorias, por exemplo a minoria árabe em Israel, que compõe cerca de 20% da população do país." Outra preocupação do especialista é com iniciativas como projetos do Congresso brasileiro para limitar mandatos de juízes do STF. Ao defender essa mudança, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou em entrevista coletiva no dia 2 de outubro que a limitação é aplicada "em outros países do mundo e defendida em diversos segmentos, inclusive por ministros e ex-ministros do STF". Tom Ginsburg avalia que a regra brasileira atual é boa: não há limite de mandato, mas há aposentadoria compulsória. Por outro lado, ele critica o sistema americano, onde não há mandato e nem aposentadoria compulsória — o cargo é realmente vitalício. "Não há fim para o trabalho deles [ministros dos EUA]. Isso seria bom se eles estivessem fazendo apenas coisas pequenas, e não tomando decisões substantivas sobre grandes temas para a vida dos americanos." "Se há aposentadoria compulsória, um limite de mandato é ruim. Um limite de idade é muito bom: a pessoa se dedica muito ao tribunal, mas depois tem que sair." "Já o limite de mandato em um país como o Brasil significará que os juízes estarão sempre pensando no que farão depois. Isso é muito perigoso em um tribunal, porque eles podem pensar: 'Tem um empresário na minha frente e, quer saber, farei um belo favor a ele. Aí, depois que eu me aposentar, posso ir falar com ele'. Acho que é algo que leva à corrupção." O pesquisador cita também o risco de juízes vislumbrarem uma carreira política depois de um eventual mandato no STF. "É extremamente perigoso quando os juízes estão fazendo o seu trabalho e pensando na esfera política. Isso põe em dúvida todo o sistema jurídico, como se fosse um sistema político. A legitimidade da lei vem de haver técnica, e não política", conclui.
2023-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5lqpq08z5o
brasil
O geólogo 'escorraçado' do Brasil por sugerir à Petrobras que procurasse petróleo no mar
“Há tanto petróleo no fundo do mar – e tão forte é a sua pressão – que o melhor técnico da Petrobras ainda não conseguiu dominar inteiramente o jorro”. Foi assim que o então repórter do jornal O Estado de S. Paulo Paulo Barbosa de Araújo descreveu a cena que testemunhara no dia anterior, rodeado de técnicos da empresa norte-americana Zapata Drilling Company no alto da plataforma de exploração Vinegaroon, não muito longe da arrebentação das ondas da orla de Aracaju (SE). Era começo de outubro de 1968 e, na semana anterior, a Petrobras havia anunciado ao mundo o que se esperava há quase quatro décadas: o Brasil tinha petróleo no mar. Já aposentado, sentado no escritório de casa, no Estado de Indiana, nos EUA, o geólogo norte-americano Walter Karl Link não se surpreendeu com a notícia. Tampouco se orgulhou. Havia nele apenas um senso de justiça: sete anos antes, ele havia deixado o Brasil escorraçado pela imprensa, por autoridades e por diretores da própria Petrobras por sugerir que a empresa mudasse a estratégia de perfurar poços em bacias terrestres (onshore) e fosse atrás dele, justamente, no oceano (offshore). Fim do Matérias recomendadas “Link era um cientista muito sério. Imagino que ele tenha ficado mais satisfeito com a comprovação científica do seu trabalho do que com qualquer questão pessoal”, acredita a pesquisadora Drielli Peyerl, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, que passou anos estudando a vida do geólogo durante seu pós-doutorado, nos EUA. “Hoje, fica evidente que ele sofreu com o contexto da época: a Petrobras era seguida por todo mundo e ele havia chegado ao Rio de Janeiro como o responsável por fazê-la encontrar petróleo no território do Brasil. Quando ele notou que, em terra, não havia tantas bacias, foi uma frustração não só política e econômica para o país, mas também social – e até da ordem da identidade nacional”, completa ela, que também é pesquisadora do Instituto de Energia e Meio Ambiente e do Researcher Centre for Greenhouse Gas Innovation da Universidade de São Paulo (USP). Peyerl conheceu a história de Walter Link na década passada, quando estudava os investimentos pesados que a Petrobras fez desde o início para formar técnicos brasileiros que fossem capazes de achar e explorar petróleo. Era uma fixação que atravessara todos os governos desde os tempos de Getúlio Vargas até o regime militar. Enquanto fazia entrevistas na empresa, não raro ela ouvia alguém contar, com diferenças sutis, uma mesma história: a do geólogo “mais famoso do mundo” em sua época que, contratado pela Petrobras para transformar o Brasil em autossuficiente na produção de petróleo, jamais foi ouvido na única certeza que carregava: que a exploração brasileira deveria ser offshore – porque, em terra, o esforço seria menos promissor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quase 15 anos após descobrir sua primeira jazida de petróleo, em um bairro do subúrbio de Salvador (BA), o Brasil estava dividido. O palco era o Congresso, onde bancadas e setores empresariais defendiam que empresas petrolíferas estrangeiras que já atuavam no país – principalmente subsidiárias da Standard Oil Co. e a Anglo-Mexican Petroleum Co. –, mantivessem o status. Ao mesmo tempo, havia a defesa da presença mais intensa do Estado no mercado de energia, que se expressava sob o famoso slogan “O Petróleo É Nosso”. Esse conflito entrou nos anos 1950 como principal dilema político do Brasil, conhecido como “problema do petróleo”: de um lado, os “entreguistas”, a favor das empresas estrangeiras e, do outro, os “nacionalistas”, exigindo um papel mais intervencionista do Estado. A fundação da Petrobras, no início de outubro de 1953, foi a consequência final dessa divisão: uma empresa financiada com investimentos públicos e privados, mas gerida pelo governo – o que garantia o monopólio público sobre qualquer lugar onde houvesse petróleo no território nacional. Parte dessa estrutura legal se mantém há exatos 70 anos. Pouquíssimo tempo depois, sem saber por onde começar a procurar novos poços, a novíssima estatal foi atrás de Walter Link nos Estados Unidos. Em 1954 ele era, de fato, um dos geólogos mais famosos do mundo, cuja carreira começara na fase final da Standard Oil Company, gigante norte-americana que se desintegrou a partir de 1911, mas se consolidara ao longo do século colaborando com países como Venezuela, Equador, Suriname e Indonésia a encontrar suas próprias jazidas do “ouro negro”. Já esperando pelas críticas dos “nacionalistas”, a empresa correu a argumentar que a contratação de Link era temporária, e que seu trabalho seria mais treinar profissionais brasileiros para o futuro próximo do que ditar os passos produtivos da companhia. Não era mentira: seu contrato tinha, de fato, duração até o final de 1960. Das portas para dentro, porém, todo mundo sabia que o plano era outro: entregar a ele o cobiçado cargo de diretor do Departamento de Exploração e, em troca, saber o mais rápido possível sobre as “possibilidades petrolíferas do Brasil”, como o próprio geólogo contou em um relatório que escreveu antes de voltar ao seu país. “Era uma posição mais importante do que a da própria presidência da Petrobras, porque enquanto uma era essencialmente política, a outra dava sentido à existência da empresa – que, naquela época, era achar petróleo no território brasileiro. O fato dele ser estrangeiro também colaborou para colocá-lo diante nos holofotes”, explica Peyerl. O jornalista Norman Gall, correspondente de diversos veículos da imprensa norte-americana no Brasil desde os anos 1950, foi uma das poucas pessoas que conseguiram conversar com Link para além das pressões políticas que ele sofria dentro e fora da Petrobras. Gall, que aos 90 anos ainda vive em São Paulo, o entrevistou várias vezes. “Ele veio sabendo que ocuparia um posto importante e que, por causa disso, teria que lidar com as críticas da imprensa e dos políticos”, conta Gall. “Lembro, sobretudo, que ele ainda falava com certa excitação sobre a possibilidade de tirar petróleo do Rio Madeira, na Amazônia, que confirmava um mapeamento feito antes mesmo da fundação da Petrobras”, continua ele, citando um poço explorado por pouco tempo na cidade de Nova Olinda do Norte, hoje no Amazonas. Walter Link arregaçou as mangas, de fato, em 1955, viajando pelas áreas onshore que a Petrobras e o Conselho Nacional de Petróleo (CNP), entidade que a antecedera, haviam mapeado no território brasileiro desde a década de 1930. Segundo relatórios da época analisados pela BBC News Brasil, ele passou por estados como Paraná, Maranhão, Rio Grande do Norte e no Amazonas – que voltou a ser um dilema para a companhia neste ano por causa da bacia na Foz do Rio Amazonas, onde a empresa pretende investir, mas esbarra na resistência do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. Desde os seus primeiros relatórios, Link já expressava certa desilusão. “Ele viu como muitos documentos produzidos sobre o tema no início da República já eram pessimistas. Geólogos estrangeiros diziam que não havia petróleo no país desde a década de 1900, por exemplo. Conforme ele ia a campo, os diagnósticos iam se confirmando”, explica Drielli Peyerl. Ainda assim, empolgado com o projeto da Petrobras, o geólogo voltou aos Estados Unidos no ano seguinte com a missão de formar um time de técnicos que o ajudasse no desafio. Em paralelo, conseguiu que a estatal investisse em uma estrutura ampla, que incluía desde laboratórios de paleontologia até técnicos em palinologia – ramo da ciência que estuda palinoformos, como grãos de pólen, por exemplo. Em 1956, com os primeiros resultados em mãos, ele tomou duas decisões importantes: avançar no recém-criado programa baiano, onde havia chances sólidas de tirar o fóssil da abundante bacia do Recôncavo e, ao mesmo tempo, focar nas duas principais bacias sedimentares que conseguira mapear melhor — a do Solimões, no Amazonas, e a do Paraná, no Sul do país. Link já colecionava alguns insucessos, como uma perfuração no Sergipe que não tinha achado nenhum resquício de petróleo, como contou um ex-funcionário da equipe dele à Folha de S. Paulo em 2003. Foi puro azar, porque, anos depois, muito perto dali se estabeleceria o maior campo terrestre da Petrobras no Brasil: o de Carmópolis, vendido à espanhola Carmo Energy em 2021. Norman Gall lembra que o petróleo brasileiro recebia atenção mundial em meados dos anos 1950, muito por conta do imaginário de que o país possuía grandes bacias repletas de petróleo intocado. “Os jornais norte-americanos me pediam constantemente para acompanhar o que ele estava fazendo na Petrobras e, principalmente, se ele tinha achado alguma coisa”, relembra aos risos. Nos anos seguintes, porém, os problemas foram tomando conta da mesa de Link. O diagnóstico era que as bacias estavam em regiões de difícil acesso, sobretudo na Amazônia, o que dificultaria o escoamento da produção e a logística dos equipamentos. Ele chegou a destinar 60% dos recursos do seu departamento para a exploração do Solimões, mas havia outro entrave ainda mais grave para seus planos: a falta de tecnologias e, principalmente, de técnicos qualificados para avançar no projeto – o que o geólogo procurou resolver criando centros de pesquisa e treinamento dentro da própria Petrobras. Interlocutores da empresa ouvidos pela BBC News Brasil se repetem em dizer que esse é o legado mais evidente de Link, conclusão que aparece também nas memórias de Carlos Walter Marinho Campos, ex-diretor de Exploração da companhia – que o homenageou dando seu sobrenome à bacia que hoje se estende do Rio de Janeiro ao Espírito Santo. “Ele deixou em nós a mentalidade, mas também os procedimentos necessários de uma indústria petrolífera”, escreveu. Os ânimos mudaram em junho de 1959, quando Link apresentou um artigo técnico em um congresso global de energia, em Nova York, nos EUA, contando ao mundo que o Brasil só possuía uma única bacia de onde se podia tirar petróleo para vender e consumir: a do Recôncavo baiano, com capacidade de mais de 1 bilhão de barris. No debate com os especialistas presentes, ele também reclamou da falta de instrumentos, tecnologia e de mão de obra. “Eu não sei de onde o petróleo vem, mas nós acreditamos, ou desejamos, que o que temos chamado de xisto de Ponta Grossa, acima de Furnas e abaixo de Itararé, seria o lugar mais provável para encontrá-lo. (...) Se nós tivéssemos estrutura acho que também acharíamos algo na bacia do Paraná. Devo admitir que estamos absolutamente perplexos sobre o que fazer”, afirmou Link, segundo os autos do encontro. Assim que o leram, os outros diretores da Petrobras ficaram estarrecidos. “Imagina você dizer à comunidade internacional, em um momento de corrida intensa, que o Brasil não tinha quase petróleo nenhum? O impacto político foi imediato – e o econômico era questão de tempo”, observa Drielli Peyerl. Walter Link, no entanto, já não vislumbrava sua permanência na Petrobras. A imprensa seguia questionando seus vencimentos altos – de cerca de 125 mil cruzeiros mensais (aproximadamente R$ 45 mil em valores atualizados) –, enquanto a empresa sofria pressões políticas por manter um quadro estrangeiro com poder significativo de decisão. A acusação mais contumaz era que Link era um infiltrado das petrolíferas norte-americanas que haviam herdado a estrutura da Standard Oil – a Exxon e a Mobil. Estava no rol dos “entreguistas”, mas disfarçado. O que definiria a passagem do geólogo no Brasil, porém, viria a seguir: um documento de cerca de dez páginas que Walter Link entregou, em meados de 1960, nas mãos do então presidente da Petrobras, o coronel do Exército Idálio Sardenberg. Conhecido imediatamente pelo símbolo inequívoco do seu sobrenome, o Relatório Link era uma análise técnica assinada por ele e outros 14 técnicos da companhia em que se dizia objetivamente que o Brasil deveria parar de procurar petróleo em bacias sedimentares (onshore), onde não encontraria muita coisa, porque elas eram geologicamente muito antigas, e “investir em plataformas continentais” ou, em outras palavras, no mar. Link e seu time ainda sugeriam que a empresa investisse na exploração e produção de petróleo em outros países do continente sul-americano. À época, Equador e Venezuela já eram potenciais nomes regionais do setor. “O documento teve impacto também porque Link escreveu de forma direta: ‘as bacias sedimentares brasileiras não apresentam indícios de produção em larga escala de petróleo e as pesquisas precisam ser redirecionadas para o mar”, revela Drielli Peyerl. “Na verdade, ele não aguentou tanto descontentamento e pressão: mesmo com gente de dentro da Petrobras pedindo para ele ficar, ele resolveu partir. Não teria clima ainda que quisesse. No dia do embarque, muita gente foi ao aeroporto fotografá-lo indo embora.” “Como o conheci, imagino que ele estava aliviado. Apesar da pressão que recebeu, ele era muito honesto. O relatório é uma prova disso, já que ele foi contratado para apresentar justamente uma conclusão contrária” completa Norman Gall, que escreveu reportagens sobre a crise envolvendo o geólogo e o Brasil ao longo dos anos 1960. O Relatório Link foi publicado pelos jornais brasileiros e repercutiu na imprensa internacional dias após surgir na mesa de Sardenberg, não sem endossarem as críticas que o geólogo e a Petrobras recebiam pela presença dele na estatal. Mais do que isso, o documento trouxe à tona novamente o velho “problema do petróleo”. Sardenberg precisou ir à Câmara, semanas depois da partida, explicar a um grupo de deputados que o relatório era “sumamente pessimista” e que continha um erro estrutural: olhava para a produção petrolífera brasileira “de um ponto de vista comercial”. “Mas a Petrobras não concorda com essa opinião, pois para o Brasil o problema do petróleo é de interesse nacional e não comercial”, disse ele à época. Ainda assim, o “problema do petróleo” escalou tanto que, em meados do ano seguinte, se metamorfoseou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados. “Talvez tenha sido a primeira crise da história da Petrobras”, sugere Peyerl. De fato, em fevereiro de 1961, ainda antes da CPI, Sardenberg foi preso acusado de ato de indisciplina contra Jânio Quadros, depois de criticar publicamente o então presidente do país em meio a uma discussão sobre a situação financeira da companhia. Ele passara os meses anteriores se explicando sobre a quantidade de barris que o Brasil produzia e o quanto essa margem podia aumentar. Foi seu substituto, Geonísio Barroso quem expressou de forma mais inequívoca o tamanho do impacto do Relatório Link sobre a Petrobras. Chamado para depor na CPI em maio de 1961, ele disse que o documento criou um “clima emocional” pesado dentro e fora da empresa e que, para aplacá-lo, havia ordenado a realização de novos estudos que provassem as previsões “excessivamente pessimistas” de Walter Link. No final, as pesquisas contratadas reforçaram a tese do geólogo. O próprio Link foi perguntado, na ocasião, sobre a crise – e respondeu enfático. “Não é o petróleo o grande problema do Brasil. É a política”, disse ao jornal carioca Última Hora. “Na verdade, ele nunca ficou muito amargurado com essa história. Amava muito o Brasil, assim como muitos outros norte-americanos daquele tempo”, relembra Gall. Drielli Peyerl encontrou recentemente cartas que Link trocou com colegas brasileiros depois de voltar para os Estados Unidos. Em uma delas, enviada em março de 1962 para o paleontólogo Frederico W. Lange, ainda lotado na Petrobras, ele questionava a si mesmo se o esforço que havia feito durante a década anterior surtira algum efeito. “Eu sempre senti que você teria problemas quando eu fosse embora, mas nunca imaginei que, em tão pouco tempo, a empresa completaria seu ciclo e retornaria para o velho regime da CNP”, escreveu, citando a instituição que dera origem à companhia e que insistia em procurar petróleo onshore. “O sangue, o suor e, sim, até algumas lágrimas, foram derramados por nada”. A desilusão tinha sentido e objeto: naquele mesmo mês, a Petrobras usara a descoberta de novas áreas de exploração na Bahia para criticar nomeadamente as previsões do geólogo, dizendo que os achados as contrapunham. Na entrevista coletiva de anúncio da novidade, o então presidente da empresa, Francisco Mangabeira, disse que as bacias baianas superavam o que estava no Relatório Link e, mais do que isso, que, “se a Petrobras tivesse seguido as recomendações daquele relatório, já teria abandonado os trabalhos de exploração em outros Estados”. Em outra correspondência, de maio de 1963, também remetida a Frederico Lange, Link ainda se mostrava preocupado com a crise que seu prognóstico causou no Brasil. “Você não sabe o quanto eu lamento que tudo tenha acontecido do jeito que aconteceu. Eu esperava, para o seu bem e para o bem do seu país, que algo muito construtivo e duradouro pudesse ser criado a partir da coisa toda”. Naquele ano, em paralelo às investidas no território (com a descoberta de Carmópolis em 1963, no Sergipe, que ajudou a acalmar os ânimos políticos), a Petrobras já admitia internamente seguir o conselho de relatório de Walter Link e começar a procurar petróleo offshore. Em 1968, quando finalmente o encontrou no litoral do Sergipe, usava uma plataforma arrendada da Zapata Drilling Company. O poço estava a 28 metros de profundidade. Demoraria mais quase duas décadas para a previsão se concretizar totalmente: em setembro de 1984, a estatal anunciou a descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro em águas profundas (mais de 300 metros), no campo de Albacora, na bacia de Campos (RJ). O pré-sal, símbolo da autossuficiência brasileira no fóssil, é de 2008. Mas Link não pôde usufruir do reconhecimento: em 1982, ano em que receberia a maior honraria da profissão, o Sidney Powers Memorial Award, medalha concedida pela Associação Americana de Geólogos de Petróleo (AAPG, na sigla em inglês), ele morreu em sua casa, em Indiana. O Brasil, por sua vez, se consolidou como um explorador offshore. Hoje é o nono maior produtor de petróleo do mundo, com 3,2 milhões de barris de petróleo por dia. Segundo os dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), quase a totalidade (98%) deles saem do mar.
2023-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx0e5v2pzj5o
brasil
Narcomilícias no Rio: os fatores que acirram a disputa na zona oeste da cidade
A zona oeste do Rio de Janeiro vive nesta segunda-feira (23/10) mais um episódio dos violentos confrontos de grupos criminosos com a polícia ou entre si pelo domínio da região. Quase 30 ônibus, em diferentes pontos da zona oeste, foram alvos de incêndios criminosos e levaram a capital fluminense ao "estágio de mobilização" — quando há riscos de ocorrências de alto impacto na cidade. Os incêndios teriam sido provocados por criminosos em represália à morte de Matheus da Silva Rezende durante troca de tiros com agentes, também nesta segunda. Conhecido como Faustão ou Teteu, ele era sobrinho de Zinho, chefe de uma das principais milícias da região. O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), afirmou em entrevista coletiva no início da noite de segunda que Matheus foi morto em uma operação da Polícia Civil — cujas unidades e agentes Castro parabenizou por "neutralizarem um dos maiores criminosos da atualidade do Rio de Janeiro". Segundo o jornal O Globo, Faustão era considerado o segundo homem na hierarquia da milícia e seria o principal encarregado nas disputas entre bandos rivais na zona oeste. Fim do Matérias recomendadas Para a polícia, já não há mais distinção entre milícia e tráfico, porque ambos imitam os "modelos de negócio" um do outro — o que pode ter sido um motor para a escalada de mortes e outros crimes violentos na área nos últimos meses. O Comando Vermelho (CV), facção criminosa originalmente focada no tráfico de drogas, agora se alia a milicianos da zona oeste pelo controle de comunidades na região. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ter o domínio da área significa poder explorar o comércio ilegal de drogas e de produtos e serviços, como a venda de gás de botijão, acesso à internet, transporte por van e outros — agora feito por milicianos e traficantes, indistintamente. Segundo a Polícia Civil, as armas furtadas dos militares provavelmente seriam usado na disputa pelo controle territorial de favelas da região que ocorre há mais de um ano e meio. Na disputa em que o armamento do Exército seria usado está uma narcomilícia da Gardênia Azul agora aliada ao CV. Foi no bairro que foram encontrados mortos quatro suspeitos da chacina de três médicos de São Paulo no dia 5 de outubro. A execução teria sido ordenada pela cúpula do CV, de acordo com a polícia, porque a ação não atingiu o seu objetivo, a eliminação de um rival, e chamou a atenção para as atividades na região. A Polícia Civil afirma que sua principal linha de investigação é a de que um engano causou o ataque com as mortes dos ortopedistas Diego Ralf Bonfim, irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Marcos de Andrade Corsato e Perseu Ribeiro de Almeida, além de ferimentos graves no também médico Daniel Proença. Perseu teria sido confundido com Taillon Barbosa, um miliciano rival dos autores da chacina, e que foi recentemente solto da prisão. Os quatro médicos bebiam em um quiosque na calçada oposta ao Hotel Windsor, onde estavam hospedados para um congresso de ortopedia. Esse conflito entre grupos criminosos gerou nos últimos meses uma escalada de mortes e outros casos violentos na área. Os efeitos já aparecem nas estatísticas de violência. Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado apontou que, de 1° de janeiro até 12h de 20 de outubro de 2023 (quando a contagem foi encerrada), ocorreram na zona oeste carioca: Em comparação, a zona sul, a mais rica do município, registrou, no mesmo período: "As disputas na região explodiram após a morte do Ecko (Wellington da Silva Braga), chefe da principal milícia, em junho de 2021", afirma o Instituto Fogo Cruzado em texto sobre o levantamento. "O irmão dele, Zinho [Luiz Carlos da Silva Braga], e um ex-aliado, Tandera [Danilo Dias Lima], passaram a disputar bairros. Com a milícia fragilizada, o Comando Vermelho passou a tentar tomar as áreas. A disputa em Jacarepaguá [zona oeste do Rio] é uma das mais críticas.” Segundo Carlos Nhanga, coordenador regional do Fogo Cruzado, a disputa entre esses grupos na zona oeste do Rio não começou agora, mas se intensificou pela entrada de novos atores na disputa pelos territórios. “Antes, era dominado por uma milícia”, afirma ele. “Hoje, tem facções do tráfico entrando. A morte do Ecko gerou um novo cenário. Não existe vácuo de poder. Determinadas ações [como a morte do antigo chefe da milícia] têm consequências, pelos dados históricos do Rio de Janeiro.” O pesquisador Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), diz que as mortes violentas na região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca afetaram os indicadores gerais de violência do Sudeste e do país. Segundo o Monitor da Violência do G1, os homicídios caíram 3,4% no Brasil no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado. A queda se deu em quase todas as regiões. E o exceção foi o Sudeste, onde os assassinatos cresceram. Na região, o maior aumento ocorreu justamente no Rio de Janeiro: 17,3%. “Os dados de 2022 e 2023 mostram que tivemos uma reversão da tendência nacional no Sudeste, que foi afetada pelo Rio”, diz ele. “E quando olhamos, vemos que o aumento se deu mais na zona oeste da capital e em alguns municípios da Baixada Fluminense.” A maior milícia do Rio, então chamada de Liga da Justiça começou a atuar há pelo menos 15 anos dizendo que tinha o objetivo de combater o avanço do tráfico de drogas. A organização criminosa foi criada por policiais que expulsaram traficantes e dominaram bairros da região. Policiais civis e militares, bombeiros, guardas municipais e integrantes da Forças Armadas, além, de criminosos comuns, integravam o bando. Em alguns casos, tiveram apoio de moradores. A quadrilha cobrava, por meio de intimidação e violência, taxas ilegais de moradores e comerciantes, a pretexto de combater o crime. Os milicianos também impunham a venda de produtos, como gás em botijão e água mineral, e serviços, como acesso clandestino à internet, TV a cabo pirata e transporte por vans. Com o tempo, transformaram o domínio em poder político e conquistaram mandatos parlamentares. O modelo foi replicado em outros bairros por outros criminosos. Os chefes do grupo criminoso original, segundo a Polícia Civil, eram Natalino Guimarães, que se elegeu deputado estadual, e seu irmão, Jerônimo Guimarães, o Jerominho, que foi vereador na capital fluminense. Com base eleitoral no bairro de Campo Grande, ambos sempre negavam ter ligações com o crime ou qualquer atividade ilegal. Natalino foi preso ainda no mandato, ao qual renunciou. Depois de cumprir dez anos de cadeia por vários crimes, entre eles o de formação de quadrilha, os dois desistiram das carreiras parlamentares, embora tentassem influir na política. Cumpriram suas penas e foram soltos. Jerominho foi morto a tiros em agosto de 2022, em um ataque a tiros na rua durante o dia. Na época em que os irmãos Guimarães estavam na cadeia, a chefia da Liga da Justiça foi assumida por Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes. Policiais atribuem a ele a entrada da milícia da zona oeste do tráfico de drogas. Três Pontes foi morto pela polícia em abril de 2017. Seu irmão, Ecko, assumiu o comando da Liga. Ele expandiu os negócios e se tornou o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro. O nome do grupo foi mudado para Bonde do Ecko. Ecko foi morto durante uma operação policial em 2021. A quadrilha, então, passou a ser comandada por um irmão de Ecko e Três Pontes: Luiz Carlos da Silva Braga, o Zinho. Mas o bando rachou. A dissidência é chefiada por Danilo Dias Lima, o Tandera, que era aliado de Ecko. Os dois grupos começaram a guerra pela zona oeste, há mais de um ano, com assassinatos, tiroteios e destruição de vans controladas pelos rivais. Com a entrada de traficantes de outros bairros, o confronto se agravou. A facção Comando Vermelho investiu no conflito. São dela os criminosos que se aliaram aos narcomilicianos da Gardênia Azul, origem dos algozes dos médicos. Antiga zona rural do Rio de Janeiro, a zona oeste concentra a maior parte da população da cidade. É uma área de urbanização relativamente recente, acelerada a partir dos anos 1980 — uma fronteira urbana. Algumas características da região ajudaram no desenvolvimento dos grupos criminosos. O modelo de negócios dessas quadrilhas, a partir do domínio territorial armado, focava loteamentos, compra e venda de imóveis e oferecimento de serviços de infraestrutura. "Tudo estava por ser feito na zona oeste", explica Hirata. "As milícias intermediavam." Outro fator que impulsionou esses grupos criminosos foi que boa parte dos investimentos feitos para os grandes eventos nos anos 2010 — Copa do Mundo, Olimpíada, Jornada Mundial da Juventude — se deu na zona oeste, observa o pesquisador. Isso levou à valorização acelerada dos imóveis situados naquela região, o que favoreceu os milicianos. No mesmo período, a política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), de atuação comunitária para desarticular quadrilhas, não focou na área. Quase todas foram instaladas em áreas de tráfico — apenas uma, no Jardim Batam, foi montada na zona oeste. "A zona oeste se tornou mais homogeneamente miliciana", diz Hirata. "Agora tem a disputa ali. Depois da morte do Ecko, houve uma disputa pela sucessão, ainda em curso, pelo Zinho, Tandera e outros. Isso ajuda a entender o caso dos médicos." A Polícia Civil do Rio afirma que tem feito um trabalho intenso de combate aos milicianos da zona oeste, o que teria desestabilizado os grupos criminosos daquela região. Enfraquecidas, menores e mais capilarizadas, as milícias, segundo a corporação, teriam procurado alianças com traficantes. As ações dos criminosos na região, de acordo com a Secretaria de Polícia Civil, são monitoradas de várias formas. Agentes da Subsecretaria de Inteligência, da Delegacia Repressão a Entorpecentes (DRE) , da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) e também de delegacias locais acompanham as ações dos suspeitos. Segundo a Polícia, isso resultou na “neutralização” e prisão de criminosos, além de ações contra fontes de recursos dos criminosos. O prejuízo teria chegado a R$ 2,5 bilhões em dois anos. Por nota, a Secretaria de Polícia Militar informa que a corporação “vem empreendendo esforços no combate à criminalidade”, segundo o texto “com ações de inteligência, pautadas por critérios técnicos e pelo previsto na legislação vigente, tendo como preocupação central a preservação de vidas”. “Os dados relativos à letalidade nos últimos meses estão diretamente ligados às disputas territoriais entre grupos criminosos rivais, principalmente na zona oeste da cidade do Rio”, diz a PM na nota. “Nesse contexto, a corporação destaca as incessantes ações conjuntas com a Secretaria de Estado de Polícia Civil para estabilizar as localidades, assim como para localizar e retirar de circulação os marginais envolvidos em tais mobilizações.” Segundo a nota, desde o início de 2023 “a Polícia Militar prendeu quase 25 mil pessoas, apreendeu quase 3.200 adolescentes, mais de 4.600 armas de fogo e 389 fuzis foram retirados das ruas”.
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cprxe45xzrpo
brasil
Com Bolsa Família 'turbinado', número de negros na pobreza ainda é o triplo de brancos
Isso significa que três em cada quatro brasileiros na pobreza ainda serão negros, comparado a uma participação de 56% de pretos e pardos no total da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). "Quando você tem uma população que sofre com certas desigualdades que são questões sociais históricas, no momento que você trata essa população de forma igual, do ponto de vista de políticas públicas, você está dando um tratamento desigual", diz Luiza Nassif-Pires, diretora do Made-USP e uma das autoras do estudo, ao lado de Amanda Resende, João Pedro Freitas e Gustavo Serra. Fim do Matérias recomendadas Conforme a economista, para populações desiguais, são necessárias ações focadas, como as políticas de ação afirmativa para ampliar o acesso da população negra à educação. No estudo Do Bolsa Família ao Brasil sem miséria? Duas décadas de luta pela universalização da cidadania, os pesquisadores do Made-USP calcularam os impactos da política social nas taxas de pobreza e extrema pobreza ao longo das duas décadas de existência do programa – de 2003 a 2023. Para isso, consideram as linhas de pobreza e extrema pobreza do Banco Mundial, utilizadas também pelo IBGE: US$ 5,50 e US$ 1,90 por dia, respectivamente. Considerando a Paridade de Poder de Compra (PPC) entre as duas moedas e descontando a inflação medida pelo IPCA (índice de inflação oficial do país), para junho de 2023, esses valores são equivalentes a R$ 536 mensais por pessoa para pobreza e R$ 185 para extrema pobreza, calculam os economistas. Para fazer a análise, os pesquisadores usaram a antiga Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) anual do IBGE para os anos de 2003 a 2015 e a atual Pnad Contínua entre 2012 e 2023 – realizada mensalmente em uma amostra de domicílios, a pesquisa recolhe dados sobre emprego e renda da população, entre outros indicadores socioeconômicos. Em média, o programa reduziu a taxa de pobreza em apenas 0,66 ponto percentual (p.p.) por ano entre 2003 e 2015 e em 0,89 entre 2012 e 2019, mostram os pesquisadores no estudo. Em comparação, o Auxílio Emergencial, o Auxílio Brasil e o novo Bolsa Família – todos programas com valores de transferência mais altos – impactaram a redução da pobreza respectivamente em 4,98 p.p. (para a média dos anos 2020 e 2021), 3,58 p.p. (em 2022) e até 5,04 p.p. em 2023. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil retiraram, em média, 9,9 milhões de pessoas da pobreza por ano de 2020 a 2022 e o novo Bolsa Família tem o potencial de retirar 10,7 milhões de pessoas da pobreza em 2023, em contraste com 1,8 milhão de pessoas por ano resgatadas dessa situação pelo Bolsa Família entre 2012 e 2019, em média", destacam os economistas. Os autores observam que parte do resultado surpreendentemente modesto encontrado para o efeito do Bolsa Família sobre a taxa de pobreza até 2019 se deve às linhas de pobreza escolhidas no levantamento. Outros estudos que avaliaram esse mesmo efeito no passado e apontaram resultados ligeiramente melhores usaram linhas de pobreza mais baixas, destacam os economistas. Mas não é só isso. Como o efeito dos programas posteriores revela, o baixo valor do Bolsa Família também limitou durante anos que o programa tivesse um impacto maior em reduzir as taxas de pobreza – ainda que tenha servido para aliviá-la, além de reduzir os diferenciais de pobreza entre homens e mulheres e entre brancos e negros, conforme também mostra o estudo do Made-USP. "O Bolsa Família começa como um programa muito mais tímido e assim tem efeito menor na pobreza", observa Nassif-Pires. "Ele ganha ímpeto nos últimos anos, com o Auxílio Emergencial e sobretudo com o novo Bolsa Família, que tem um efeito muito grande, de uma redução quase histórica da taxa de pobreza graças a ele." A economista observa que outros fatores contribuíram para a redução da pobreza nesses 20 anos, como o crescimento da economia e do emprego até 2014, os aumentos do salário mínimo acima da inflação e o próprio efeito multiplicador do programa de transferência de renda na economia. Assim, o Made-USP estima que 82 milhões (47%) de brasileiros viviam na pobreza em 2003 e quase 25 milhões (14%) na extrema pobreza. Em 2023, esses números devem ser reduzidos a 45 milhões (21%) e 3 milhões (1,4%), respectivamente. Sem o novo Bolsa Família, seriam 56 milhões na pobreza (26%) e quase 18 milhões (8,3%) na extrema pobreza este ano, calculam os economistas. "Historicamente, sempre houve muita resistência ao programa Bolsa Família", diz Nassif-Pires. "Era um programa que representava um gasto pequeno em termos de percentual do PIB e com um benefício de valor muito baixo nos seus primeiros anos, então não tinha como ter um efeito muito grande, mas combinado a outras políticas, conseguimos uma saída de pessoas da pobreza." A diretora do Made-USP observa, porém, que houve uma mudança nos anos recentes, sobretudo durante a pandemia, com uma visão mais favorável da opinião pública quanto aos programas de transferência de renda no mundo todo. Assim, com um benefício agora mais robusto (de R$ 600 mais valores variáveis por criança), o programa finalmente deve chegar próximo de erradicar a extrema pobreza no país, projeta. Ainda assim, críticas ao programa ainda existem. O Banco Mundial, por exemplo, divulgou em setembro uma nota técnica defendendo um novo modelo para o programa, com o pagamento de R$ 150 por membro da família, mais R$ 150 por criança ou jovem de até 18 anos. O banco considera que esse modelo seria mais equitativo e reduziria os custos do governo federal com o programa. Ela defende um modelo em que, ao invés de um valor fixo, as famílias recebam uma complementação de renda até alcançarem o valor da linha de pobreza. E um bônus para as famílias que consigam uma renda do trabalho. Outros críticos ao programa em seu modelo atual apontam ainda que ele favorece o desmembramento artificial de famílias para ter acesso a mais benefícios, problema que o governo tem tentado resolver com uma revisão do cadastro que tem levado ao cancelamento de milhares de pagamentos considerados indevidos. Para os pesquisadores do Made-USP, o aumento do valor e redesenho do Bolsa Família foram passos importantes na melhoria do programa. Mas é preciso mais, dizem os estudiosos, sobretudo para atender à demanda dos grupos mais atingidos pela vulnerabilidade financeira: as mulheres e os negros. Além das políticas de ação afirmativa, combate ao racismo e reparação histórica voltadas à população negra, Nassif-Pires destaca também a necessidade de políticas de cuidado, para que mais mulheres – e especialmente as mulheres negras – possam acessar o mercado de trabalho, obtendo assim um patamar de renda maior para suas famílias. São medidas como ampliar a oferta de creches, de instituições e serviços de cuidado para idosos e pessoas com deficiência, de ensino infantil em tempo integral, entre outras. "O racismo sustenta o país de tantas formas que as pessoas nem percebem, que você não consegue resolver o problema do racismo sem resolver outros problemas também", diz a diretora do Made-USP, ainda comentando o fato de os negros serem 71% dos pobres e 75% dos extremamente pobres, mesmo após o aumento do orçamento do Bolsa Família de cerca de R$ 30 bilhões por ano para R$ 175 bilhões em 2023. Nassif-Pires dá o exemplo da mulher branca que está no mercado de trabalho, se sente sobrecarregada, ganha menos do que um homem e é responsável pelos cuidados do lar. Essa mulher contrata uma pessoa negra pagando pouco e nem pensa sobre sua posição de privilégio, diz a professora da Unicamp, por sofrer com outros desfavorecimentos nesta cadeia de relações sociais. "É essencial pensarmos numa política de cuidado", defende a economista. Ela lembra que um Plano Nacional de Cuidados está sendo discutido pelo governo federal desde maio, quando foi criado um grupo de trabalho interministerial sobre o tema. "Considero esse plano essencial para começarmos a desconstruir o racismo, pois atualmente a crise do cuidado é solucionada em cima de discriminação de gênero e raça. São os dois pilares que sustentam a economia do cuidado no Brasil, então você não destrói o racismo sem dar uma solução para a crise do cuidado", argumenta a pesquisadora. Para Nassif-Pires, também é preciso garantir que o Bolsa Família agora ampliado em valor não se torne a única política de combate à pobreza, em meio às restrições orçamentárias impostas pelo novo arcabouço fiscal (conjunto de regras para limitar o gasto público e evitar o crescimento descontrolado da dívida pública, que substituiu o antigo teto de gastos). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem argumentado que o arcabouço fiscal possibilita a volta dos mais pobres ao Orçamento e garante mais espaço para investimentos públicos. Enquanto economistas de perfil mais fiscalista dizem que o controle fiscal de alguma maneira protege os mais pobres, que são os mais afetados pela inflação resultante de uma situação de desconfiança do mercado com relação à capacidade do governo de honrar suas obrigações. A professora da Unicamp discorda, no entanto, desta interpretação. "O novo arcabouço fiscal é uma política de austeridade e coloca em xeque a possibilidade de continuidade de políticas públicas essenciais, por exemplo, o piso constitucional para despesas com saúde e educação", diz Nassif-Pires. "A Constituição não cabia no teto de gastos e continua não cabendo no novo arcabouço fiscal. Então eu tenho um pé atrás antes de comemorar que estamos mudando aquela visão negativa sobre o Bolsa Família. Vejo isso com cautela e medo de que ele se torne a única política pública."
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn036x357eyo
brasil
'Se países ricos cumprissem promessas, teriam mais moral para cobrar', diz negociador-chefe do Brasil para o clima
“Se países ricos cumprissem suas promessas, teriam mais moral para cobrar”. É assim que o principal negociador ambiental do governo brasileiro, o secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, André Corrêa do Lago, definiu em entrevista à BBC News Brasil parte da postura do Brasil na cúpula do clima da Organizações das Nações Unidas (ONU), a COP-28. O evento será realizado entre novembro e dezembro deste ano em Dubai, Emirados Árabes Unidos, e deverá reunir chefes-de-Estado de todo o mundo para discutir medidas para reverter ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas. A declaração de Corrêa do Lago é uma menção direta à promessa feita em 2009 pelos países desenvolvidos de destinar US$ 100 bilhões até 2020 a países em desenvolvimento para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Estimativas apontam que a meta nunca foi cumprida e o prazo foi estendido para 2025. Juntamente com outros ministérios, como o do Meio Ambiente, Corrêa do Lago é um dos responsáveis pela condução das negociações durante a COP-28. O evento é visto nos bastidores como uma espécie de vitrine para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e como uma preparação para a COP-30, que será realizada em Belém, em 2025. Corrêa do Lago é diplomata de carreira e começou a atuar na área climática em 2001. Ele já atuou como negociador-chefe do Brasil para mudanças climáticas no passado, inclusive durante a Rio+20, em 2012. Antes de assumir a secretaria, no início deste ano, ele era embaixador do Brasil na Índia. A delegação brasileira chegará a Dubai embalada por dados favoráveis em relação à queda do desmatamento na Amazônia (queda de 57% em setembro deste ano na comparação com o ano passado) e seguindo a linha adotada por Lula nos últimos meses, que colocou o meio ambiente como um dos pilares da sua política internacional. Um dos exemplos da diplomacia ambiental internacional de Lula foi realização da COP-30 em Belém, em 2025, já confirmada pela ONU. Fim do Matérias recomendadas Mas ao mesmo tempo em que o governo usa o meio ambiente para ampliar sua influência global, ele também deverá enfrentar o escrutínio da opinião pública internacional por continuar a apostar na exploração de petróleo, principal responsável pelas mudanças climáticas. Nos últimos meses, setores do governo e a Petrobras vêm defendendo, por exemplo, a exploração de petróleo na bacia da Foz do Rio Amazonas, no litoral do Amapá, uma região considerada sensível da Amazônia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Corrêa do Lago evita dizer que a aposta do Brasil em combustíveis fósseis seja uma contradição da política ambiental do país. Segundo ele, o Brasil teria diversas opções no campo energético e poderia se adaptar ao que o mundo decidir em torno do futuro do petróleo. Corrêa do Lago disse que o Brasil vai pressionar os países ricos a cumprirem a promessa de aportar US$ 100 bilhões por ano até 2025 (novo prazo para o compromisso feito em 2009) e defendeu que a China, maior emissora de gases do efeito estufa, não seja obrigada a contribuir para fundos internacionais para a mitigação dos efeitos da mudança climática. A cobrança para que a China faça parte desses fundos vem sendo feita por países ameaçados pelo aumento no nível dos oceanos e pelos Estados Unidos. “Quando os países desenvolvidos pressionam a China, eles, na realidade, querem é diminuir a sua responsabilidade”, disse. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Quais são os principais pontos de interesse dessa COP para o Brasil? O que está em jogo para o Brasil? André Corrêa do Lago – Entre todas essas negociações, provavelmente a mais importante é o que está sendo chamado de Global Stock Take, que a gente poderia traduzir por “balanço global”. O balanço global é um resumo do que os países conseguiram definir como seus principais êxitos e suas maiores dificuldades na implementação do Acordo de Paris. A importância desse balanço é que ele vai orientar o tema principal da COP 29, que será relacionada aos recursos financeiros para combater as mudanças climáticas [...] Há, também, uma expectativa muito grande quanto ao tema de energia [...] No nosso caso, o presidente Lula pretende abordar o tema das florestas sob o ponto de vista dos países florestais. Nós estamos conversando com outras importantes regiões florestais, como a bacia do Congo (na África) ou a Bacia do Mekong (na Ásia), para que os países florestais tenham uma posição tão próxima quanto possível nas discussões do clima. BBC News Brasil - Os dados oficiais apontam uma queda na taxa de desmatamento na Amazônia. Essa queda tem algum impacto na forma como o Brasil chega para a COP-28? André Corrêa do Lago – O fato de o Brasil estar conseguindo combater a principal fonte das suas emissões é um exemplo extraordinário para o mundo. O Brasil conseguiu diminuir cerca de 50% das suas emissões em oito meses. É uma coisa gigantesca. O Brasil chegará à COP 28 como um país que assumiu o seu principal problema de emissões, que é desmatamento, e por isso pode cobrar dos outros para que eles resolvam os seus problemas. O principal motivo que provoca a mudança do clima é a energia (queima de combustíveis fósseis). Mais de 70% das emissões vêm daí. O tema do desmatamento é muito importante para o Brasil, mas a realidade é que, em termos globais, o desmatamento é menos de 10% das emissões do mundo. Acabar com o desmatamento é uma coisa importantíssima, mas não resolve o problema porque o que resolve é o que se vai fazer com as emissões oriundas da produção de energia. BBC News Brasil - Em que pese o fato de haver redução no desmatamento na Amazônia, setores do governo, e a Petrobras, que é controlada pelo governo, continuam apostando na exploração de combustíveis fósseis. Isso é uma contradição e de que forma isso afeta a imagem do Brasil em uma COP? André Corrêa do Lago - Eu não usaria a palavra contradição por alguns motivos. O Brasil tem uma matriz energética entre as mais limpas do mundo. Temos praticamente 90% da nossa eletricidade vinda de energia renovável. Isso é uma posição que as maiores economias do mundo gostariam de ter. Essa posição nos permite ajustar uma questão também muito particular brasileira, que foi o fato de nós que temos descoberto muito petróleo relativamente tarde. É importante que haja esse debate dentro do Brasil sobre como nós vamos avançar. BBC News Brasil - Do ponto de vista global, se o petróleo extraído pelo Brasil for queimado aqui ou fora do país, ele contribuirá para o aquecimento global da mesma forma. Não é contraditório o Brasil querer ser líder na agenda climática ao mesmo tempo em que continua apostando em petróleo? André Corrêa do Lago - É preciso levar em consideração várias coisas. Há países como a Noruega que são grandes produtores de petróleo e também são líderes na discussão sobre o combate às mudanças climáticas [...] O problema é que a negociação de mudança do clima começou como uma discussão ambiental, mas se tornou tão importante e tão divisiva porque ela é essencialmente econômica. Todos os países do mundo têm setores que vão sofrer no esforço de combate à mudança climática. [...] O essencial nesse debate com relação ao petróleo é lembrar que cada país tem que encontrar a sua forma de fazer. [...] as escolhas têm que ser feita pelo próprio país, soberanamente, e não por imposição de outros interesses. BBC News Brasil - Os relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) dizem que o mundo precisa, de forma rápida, reduzir o uso de combustíveis fósseis, o chamado “phase out” ou “phase down”. O Brasil vai apresentar alguma proposta redução ou abolição dos combustíveis fósseis na COP-28? André Corrêa do Lago - Não. Nesta COP não há espaço para isso. BBC News Brasil - Não há espaço porque o assunto não está maduro dentro do Brasil? André Corrêa do Lago - Não há espaço porque o assunto não está maduro internacionalmente. Não há uma negociação para o “phase out” ou “phase down”. O tema não está na agenda de negociação dessa COP. BBC News Brasil - Faz diferença o Brasil liderar o debate de mudança climática em florestas, que respondem por 10% das emissões e não liderar o tema em relação à energia, que representa 70%? André Corrêa do Lago - O Brasil é um país que tem várias opções. Outros produtores de petróleo não têm as opções que o Brasil tem. O Brasil vai ter muito mais capacidade de se adaptar às tendências que serão decididas internacionalmente por todos os países na comparação com outras nações. BBC News Brasil - Em 2009, os países ricos prometeram US$ 100 bilhões por ano até 2020 (o prazo foi ampliado para 2025) para combater os efeitos das mudanças climáticas, mas as estimativas apontam que esse valor nunca foi alcançado. Qual o tamanho do prejuízo global por não terem cumprido essa promessa? André Corrêa do Lago - Essa é uma questão muito constrangedora para os países desenvolvidos, porque eles também estão divididos. Tem vários países envolvidos, como vários países europeus, por exemplo, que têm contribuído de maneira significativa em recursos. Mas há outros países desenvolvidos que não têm contribuído. Você acaba tendo uma disputa entre os países ricos. Eles se indagam: “Por que vou dar US$ 20 bilhões se um outro país, tão rico como eu, só está dando US$ 3 bilhões?”. BBC News Brasil - O não cumprimento dessa promessa afeta a credibilidade da COP e dos países desenvolvidos? André Corrêa do Lago - Sim, afeta a credibilidade da negociação. E vários setores econômicos e vários países apostam nesse enfraquecimento da convergência sobre o assunto. Nós temos que resistir à tentação de culpar a COP por não haver resultados ou pelo fato de os resultados não estarem sendo eficazes. Isso só favorece quem quer enfraquecer as negociações. BBC News Brasil - Que países e setores estão, hoje, interessados em enfraquecer essas negociações? André Corrêa do Lago - Em geral, você não tem países que são inteiramente contra ou inteiramente a favor das negociações. Os países estão um pouco divididos [...] Tem setores refratários a essa agenda em todos os países do mundo. BBC News Brasil - O Brasil pretende pressionar os países ricos, de alguma forma, a cumprir a promessa dos US$ 100 bilhões? André Corrêa do Lago - O Brasil vai, sim, pressionar de maneira muito significativa tanto no contexto do G77+China (grupo de 134 países em desenvolvimento e a China) e no contexto do BASIC (sigla para Brasil, África do Sul, Índia e China). Vamos pressionar, também, individualmente [...] O Brasil será um dos principais porta vozes dessa decepção com os países ricos. BBC News Brasil – Países mais ameaçados pelo aumento no nível dos oceanos como pequenas ilhas oceânicas e outras nações como os Estados Unidos passaram a pressionar a China a contribuir para mecanismos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas porque o país é, hoje, o maior emissor de gases do efeito estufa no mundo. A China deveria contribuir para esses fundos? André Corrêa do Lago - Não no contexto da convenção para o clima (COP) porque ela coloca, muito claramente, quais são as obrigações para os países desenvolvidos e para os países em desenvolvimento. Portanto, no contexto da Convenção, a posição da China é totalmente correta. BBC News Brasil - Mas a China é hoje o país que mais emite gases do chamado efeito estufa... André Corrêa do Lago - Isso acontece porque ela é o país que mais cresce no mundo e o que mais diminuiu a pobreza. O que a China pode fazer são coisas fora do âmbito da Convenção. Quando os países desenvolvidos pressionam a China, eles, na realidade, querem é diminuir a sua responsabilidade. Se os países desenvolvidos cumprissem com o que eles se comprometeram, eles teriam muito mais moral para poder cobrar dos outros. Há vários países da União Europeia dizendo que os países desenvolvidos têm que chegar aos US$ 100 bilhões para ter a credibilidade de poder cobrar mais dos outros. Como vão cobrar dos outros sem cumprir a sua parte? BBC News Brasil - O governo recalculou suas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa (essas metas são conhecidas como NDC, sigla em inglês para Contribuição Nacional Determinada) e voltou aos parâmetros originais estabelecidos em 2015. Diante da emergência climática, ambientalistas argumentam que o Brasil deveriam apresentar metas mais agressivas. O Brasil vai indicar uma NDC mais ambiciosa nesta COP? André Corrêa do Lago – Isso deverá acontecer apenas na COP-30, que é quando todos os países deverão apresentar metas mais ambiciosas [...]Pode-se dizer que a atual NDC não foi um progresso, mas este governo está assumindo o compromisso de compensar tudo o que foi feito de errado nos últimos quatro anos. Estamos voltando ao que foi estabelecido no Acordo de Paris, mas não contávamos que teríamos quatro anos de retrocesso. BBC News Brasil - Qual seria o impacto que a eventual aprovação da exploração de petróleo na bacia da Foz do Amazonas teria na imagem do Brasil no momento em que o país tenta liderar o debate climático? André Corrêa do Lago - Quando se fala em negociação climática, o que se espera do Brasil é efetividade no combate ao desmatamento e o petróleo não é visto como uma questão do Brasil. BBC News Brasil – O senhor não fez menção à extração na bacia da Foz do Amazonas... André Corrêa do Lago - Esse é um tema extremamente importante na sociedade brasileira e que tem que ser amplamente debatido com a com o conhecimento dos dados e seus possíveis impactos. A população do Estado do Amapá, por exemplo, conta com esses recursos para o seu desenvolvimento. O Pará também. No Brasil, temos um governo democrático, uma sociedade civil extremamente atuante e cientistas de alta qualidade para conseguirmos debater de uma maneira muito objetiva quais são as vantagens e desvantagens para o país de escolher um caminho ou outro. BBC News Brasil - Há algumas semanas, o senhor disse que a questão ambiental não poderia ser usada como pretexto para medidas protecionistas comerciais. Neste ano, a União Europeia enviou uma carta adicional ao texto do acordo comercial com o Mercosul que continha exigências e criava possíveis sanções focadas no cumprimento de metas ambientais. A União Europeia usou o tema ambiental para fins comerciais? André Corrêa do Lago - O que aconteceu ali foi um acúmulo de erros táticos da União Europeia. Essa carta foi um erro tático na medida em que eles a divulgaram quando o governo já era outro, e um governo que já tinha apresentado plena disposição em mudar a política ambiental anterior. A União Europeia tem uma burocracia muito eficiente, mas que cometeu um erro tático nesse caso [...] Nenhum país do mundo gosta de parecer estar sendo forçado a fazer alguma coisa. Há um desejo muito claro deste governo em melhorar os indicadores ambientais, mas no momento em que outros pedem para você fazer, isso diminui a sua boa vontade de fazer algo que você tinha toda intenção de realizar. BBC News Brasil – Na entrevista que o senhor deu recentemente ao jornal Valor Econômico, o senhor disse que a pauta ambiental não poderia ser usada para fins comerciais. Neste caso concreto, foi isso o que aconteceu? André Corrêa do Lago - Nossas dificuldades na área agrícola com a União Europeia são famosas e antigas. Como em todos os países do mundo, os setores que vão perder no esforço de combater a mudança do clima são muito mais ativos do que os setores que vão ganhar. Esses setores que temem a competitividade do Brasil foram ativos dentro da União Europeia para procurar criar situações complexas para os produtos brasileiros ou do Mercosul. Nesse sentido, a interpretação de que há uma dimensão essencialmente comercial (no envio da carta) pode ser legítima, mas é um debate muito complexo porque há vários setores da União Europeia que querem que os produtos brasileiros aumentem sua participação no mercado europeu. Eu não creio que haja uma intenção política.
2023-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck7w313gmn4o
brasil
Arquitetura no Brasil perpetua violência colonial, diz escritora Grada Kilomba
Na abertura da 35ª Bienal de São Paulo, numa quarta-feira de setembro, a artista e escritora portuguesa Grada Kilomba mal conseguia caminhar entre as obras de arte que havia ajudado a selecionar. A cada poucos passos, Kilomba — que faz parte do coletivo de curadores da mostra — era interpelada por visitantes com pedidos de fotos, que atendia com paciência e sorrisos. Numa das várias abordagens, um homem negro lhe disse: “Seu livro mudou a minha vida”. A artista retribuiu com um abraço e voltou a caminhar — até o pedido de foto seguinte, segundos depois. A cena, presenciada pela BBC News Brasil, mostra o status de celebridade que Kilomba conquistou em certos grupos no Brasil — país onde seu livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano virou ao mesmo tempo best-seller e referência acadêmica, uma rara combinação. Também abraçada por muitos militantes negros e feministas, a obra aborda temas que geram debates acalorados no país, como a associação entre linguagem e opressão (leia mais adiante). Fim do Matérias recomendadas O trabalho artístico da portuguesa também tem tido destaque por aqui. Ela expôs na 32ª Bienal e teve, em 2019, uma mostra individual na Pinacoteca de São Paulo, um dos principais museus do país. "O Brasil é o lugar onde eu mais amo trabalhar", diz Kilomba à BBC News Brasil em entrevista concedida ao lado de uma das instalações da 35ª Bienal — um milharal cultivado pelo artista indígena brasileiro Denilson Baniwa. "É, assim, uma coisa inexplicável", prossegue Kilomba, ao descrever como é tratada no país. Sente-se mais aclamada aqui do que na Alemanha, onde vive desde 2008, ou que em sua terra natal, Portugal? "Múltiplas vezes mais, mais do que em todo lugar", ela diz. Kilomba atribui seu sucesso no Brasil a uma série de características que vê em novas gerações daqui: uma combinação de saberes ancestrais, intelectuais e espirituais, e uma forma de encarar o tempo na qual passado, presente e futuro se fundem. Essas leituras do mundo, segundo ela, derivam de tradições africanas e indígenas e fazem com que os brasileiros consigam "entrar nas minhas obras e nas obras de tantos artistas". "Isso não existe em lugar nenhum. Eu acho que (o Brasil) é uma cozinha do futurismo. Aqui está a acontecer o futuro", afirma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Kilomba se define como uma "artista multidisciplinar": em várias de suas obras há elementos de dança, teatro, fotografia, performances e vídeos. Muitas versam sobre o colonialismo e o racismo. É o caso da instalação O Barco, na qual 140 blocos formam a silhueta de uma nau com 32 metros de comprimento. A obra é uma referência aos navios que transportaram milhões de africanos escravizados para as Américas e foi exposta em 2021 nas margens do rio Tejo, em Lisboa. Obras sobre o racismo e o colonialismo também estão presentes na atual edição da Bienal de São Paulo. Ela diz que a exposição, intitulada Coreografias do impossível, se contrapõe a “saberes ocidentais e patriarcais” que “já não conseguem dar respostas para o presente” — por exemplo, em relação à crise climática. Há muitas obras de artistas indígenas, negros e LGBTQia+ na mostra — movimento também observado em outros grandes museus pelo mundo. Segundo Kilomba, um dos objetivos desta bienal é "questionar o que não sabemos e por que — e como esse não-saber está intimamente ligado ao poder, à violência, ao apagamento, ao silenciamento de identidades e histórias". Apesar dos elogios que faz ao Brasil, Kilomba não tem só visões positivas do país. Ela conta que, em 2016, numa das primeiras vezes que veio expor aqui, se chocou com uma arquitetura que reserva "entradas diferentes para corpos diferentes: a entrada da frente, para os corpos normativos, e uma porta de serviço, com um elevador de serviço, para os corpos periféricos, marginais e secundários". O espanto de Kilomba foi ainda maior, diz ela, porque essa "hierarquização de humanos" não vigora só em prédios antigos, mas também em muitos recentes. "Como é que a arquitetura pode ser desenhada hoje, neste tempo de agora, e ainda ter uma informação tão antiga, de séculos atrás, onde corpos diferentes são colocados em espaços diferentes?", questiona. Kilomba associa essa arquitetura a visões que, segundo ela, ganharam o mundo com o colonialismo europeu. A escritora afirma, porém, que esse tipo de arquitetura já foi abandonado na Europa. "Toda gente entra na mesma porta, toda gente sobe no mesmo elevador e senta na mesma cadeira." Impressões negativas como essa já a levaram a fazer a crítica de que o Brasil "é uma história de sucesso colonial". E um país onde atrasos e avanços convivem. "O Brasil é como muitos lugares cheios de polaridade, onde não se sabe muito e sabe-se tanto ao mesmo tempo. Então tem essa negação, mas também tem uma nova geração que sabe muito e está tão pronta para aprender", ela diz à BBC. Logo no início do livro Memórias da Plantação, Kilomba trata de outro ponto de contato entre ela e o Brasil. Na seção de agradecimentos, Kilomba cita, entre várias pessoas, seu babalorixá, o brasileiro Fábio Maia, e os orixás Oxalá, Iemanjá, Oxóssi e Oyá. As entidades são veneradas em religiões afro-brasileiras de influência iorubá, um povo que habita a atual Nigéria e nações vizinhas. Kilomba também tem antepassados da África, mas de outras partes do continente onde esses orixás não são tão conhecidos: seus familiares migraram de Angola e de São Tomé e Príncipe para Portugal, onde ela nasceu em 1968, em Lisboa. Ela diz que sua relação com os orixás de fato passa pelo Brasil, mas remonta a um laço anterior. "Eu tenho uma relação aqui (Brasil), e esta relação daqui vem de lá (África), então há esse triângulo", diz. "Nós não podemos esquecer que, embora eu viva na Europa, os meus ancestrais vêm da África." "Esses orixás acompanham-me, esta ancestralidade me acompanha há muito tempo", afirma. Kilomba diz que não é fortuita a presença das entidades e de seu babalorixá na página de agradecimentos. Ela conta que, quando escrevia Memórias da Plantação — fruto de sua tese de doutorado em Filosofia na Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em 2009 —, muitos a desencorajaram. Diziam, entre outras coisas, que o trabalho não seguia à risca os métodos científicos e poderia desagradar muita gente. Kilomba diz que só conseguiu concluir a obra após "tirar muitas pessoas do meu caminho" e recorrer a quem estava "além do meu tempo e sabia mais que eu" — grupo que, segundo ela, incluía “pessoas da espiritualidade” e da psicanálise. Em Memórias da Plantação, Kilomba compila depoimentos de mulheres negras na Alemanha e teoriza sobre o racismo, dialogando com autores como a crítica literária indiana Gayatri Spivak (1942-) e várias teóricas feministas americanas, entre as quais bell hooks (1952-2021), Patricia Hill Collins (1948-) e Audre Lorde (1934-1992). O texto, no entanto, foge do estilo acadêmico tradicional: Kilomba também conta várias experiências pessoais, o que dá à obra um ar autobiográfico. Num desses trechos, ela descreve uma visita a um consultório médico em Portugal quando tinha 12 ou 13 anos. A artista conta que, após examiná-la, o médico lhe fez uma proposta: acompanhá-lo numa viagem de férias em família para cozinhar e lavar as roupas do grupo. "Eu realmente não me lembro se fui capaz de dizer algo. Acho que não. Mas me lembro de sair do consultório em um estado de vertigem e de vomitar, após ter me distanciado de lá algumas ruas, antes de chegar em casa", Kilomba conta no livro. A obra foi aprovada com summa cum laude (com a maior das honrarias, em latim), premiação que a universidade só havia concedido a outro aluno até então. Lançado no Brasil só 12 anos depois, o livro foi o mais vendido na Feira Literária de Paraty (Flip) de 2019 e entrou na bibliografia de várias redes públicas de ensino, como na do Estado de São Paulo. Para a historiadora e psicanalista Mariléa de Almeida, professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), o livro de Kilomba teve grande impacto no debate de questões raciais não só no Brasil, mas em toda a diáspora africana. Almeida diz à BBC que Kilomba "reforça e atualiza uma tradição de pensamento de vários intelectuais negros, negras e 'negres' que apontam que o racismo é um fenômeno complexo" e que está presente não só nas instituições, "mas também nas relações cotidianas e nos afetos". A historiadora diz que Memórias da Plantação tem paralelos com o clássico Pele negra, máscaras brancas, em que o filósofo martinicano Frantz Fanon (1925-1961) também trata de experiências pessoais com o racismo. Fanon, por sinal, é um dos autores mais citados no livro da portuguesa. Grada Kilomba também é considerada uma referência por uma das vozes mais influentes no debate racial brasileiro hoje: Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Em artigo em 2019, Ribeiro diz que os pensamentos de Kilomba "inspiraram uma parte fundamental" das reflexões que lhe fariam escrever o best-seller O que é lugar de fala?, de 2017. Durante a produção de Memórias da plantação, Kilomba diz que teve de tomar "uma série de decisões radicais", entre as quais escrever o texto em primeira pessoa e em inglês, língua em que não é nativa. A opção de Kilomba por redigir em inglês se relaciona com sua decisão de deixar Portugal, onde diz ter vivido vários anos “em grande isolamento” na juventude. Na edição brasileira do livro, Kilomba conta que era a única estudante negra no curso de psicologia em Lisboa e que, ao trabalhar em hospitais portugueses, era rejeitada por pacientes e confundida com a "senhora da limpeza". Sair de Portugal para cursar o doutorado na Alemanha, diz no livro, foi um "imenso alívio". Não que a Alemanha estivesse livre de problemas: ela diz na obra que "a história colonial alemã e a ditadura imperial fascista deixaram marcas inimagináveis" no país. Mas afirma que havia uma diferença. "Enquanto eu vinha de um lugar de negação, ou até mesmo de glorificação da história colonial, estava agora num outro lugar onde a história provocava culpa, ou até mesmo vergonha", conta no livro. A mudança para a Alemanha, prossegue Kilomba, lhe permitiu ainda aprender "um novo vocabulário, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me". Kilomba diz à BBC que o português e outros idiomas latinos "são línguas muito binárias, que constroem sempre polaridades entre nós e um outro". Ela afirma que essa dinâmica se aplica, por exemplo, à atribuição de gêneros a grande parte das palavras — uma característica que inexiste em muitos idiomas. Outro ponto da língua portuguesa que ela critica é o chamado masculino genérico, pelo qual palavras masculinas nomeiam grupos de pessoas de diferentes gêneros. "A partir do momento em que nós dois estamos a falar e eu me identifico como mulher e tu como homem, nós passamos a ser 'eles', porque eu deixo de existir", afirma. Kilomba diz que teria sido um contrassenso escrever um livro crítico ao colonialismo e ao patriarcado usando uma língua que, segundo ela, "não só é extremamente patriarcal, em que tudo que existe pode ser apenas masculino, mas também é extremamente colonial, porque a maior parte das nossas definições está ancorada numa história colonial". Para contornar essas limitações, Jess Oliveira, tradutora da versão do livro em português, fez vários ajustes. Por exemplo: em vez do masculino genérico, o livro recorre a construções como "colonizada/o" e "negras/os". Já termos raciais em português que Kilomba associa ao colonialismo e que teriam, segundo ela, relação com nomenclaturas animais, como "mestiço" e "mulato", são grafados apenas pelas iniciais. Todas as palavras tidas como problemáticas são listadas num glossário na abertura da versão brasileira do livro, na qual a autora também lamenta a ausência em português de termos raciais "que noutras línguas, como a inglesa ou alemã, já foram criticamente desmontados ou mesmo reinventados num novo vocabulário". Kilomba conta que há muitos anos adotou o inglês como sua língua escrita e o alemão como língua falada. Ao português, diz ela, restou ser sua "língua sonhada". "Temos esta fantasia colonial de que a portuguesa é a língua mais bela do mundo", diz Kilomba à BBC. "É muito importante compreender o que a língua oferece, mas também o que a língua não oferece, como a língua prende identidades e categoriza identidades." Visões sobre linguagem e raça como as de Kilomba hoje são comuns entre movimentos de negros, feministas e pessoas LGBTQia+ associados à esquerda, grupos que são chamados por críticos de "identitários". Mas há na própria esquerda quem veja excessos nessas posições e considere que o Brasil está importando conceitos que não se aplicam à realidade local. O movimento contrário inclui figurões da literatura e da música, como o cantor Caetano Veloso. Em entrevista à Folha de São Paulo em 2022, Caetano disse que o Brasil estava adotando modelos raciais "americanizados demais". Em outra entrevista, no programa Roda Viva, em 2021, Caetano criticou quem o cobrava a abolir o termo “mulato” de seu vocabulário: "Não vejo qual o problema de mulato, meu pai era mulato, a pessoa que eu mais adorava e respeitava". Questionada sobre pessoas que se sentem envergonhadas ou constrangidas ao opinar sobre questões raciais por não dominarem os termos tidos como corretos pela militância, Grada Kilomba diz ver pontos positivos nessa reação. "Que bom que as pessoas se sentem constrangidas finalmente", diz Kilomba. "O que significa quando alguém se sente constrangido quando fala? É perceber-se de que a fala, a linguagem e a terminologia que usa talvez seja habitada por muita violência", afirma. "Isso é um momento fundamental de transformação". E quanto ao argumento, ecoado em partes da esquerda, de que o controle sobre a linguagem poderia alienar pessoas dessas causas e alimentar movimentos de extrema direita? "Temos de ter cuidado, porque os opressores sempre se trataram como vítimas dos oprimidos", afirma Kilomba. Ela diz que Adolf Hitler (1889-1945) se valeu da vitimização para convencer o povo alemão a apoiar o nazismo. "Temos de saber fazer uma leitura crítica de todos esses movimentos", afirma. Em Memórias da plantação, Kilomba defende outra prática que acabou sendo incorporada por certos círculos de ativistas: a marcação de características raciais e sexuais de pessoas pertencentes a grupos tidos como dominantes. O encadeamento de categorias como "homem", "hétero", "branco" e "cisgênero" se tornou comum em mensagens nas redes sociais. A descrição é muitas vezes usada para questionar comportamentos da pessoa citada e associá-la a supostos privilégios. Kilomba aborda o tema das marcações no livro quando narra momentos em que diz ter se sentido "fora do lugar" — como quando cursava a universidade na Alemanha. Segundo Kilomba, enquanto era sempre cobrada a comprovar que realmente estudava ali, estudantes brancos podiam circular livremente pelo edifício porque não eram "marcados pela negritude" nem vistos como "diferentes". Ela diz que esses colegas eram vistos "apenas como pessoas", sem adjetivos. Daí, segundo Kilomba, a necessidade de subverter o sistema, marcando a branquitude e fazendo a seguinte pergunta: "Quem é 'diferente' de quem? É o sujeito negro 'diferente' do sujeito branco ou o contrário, é o branco 'diferente' do negro?" Mas a marcação de identidades não pode acabar por nos encaixotar, nos amarrar a categorias que não respondem por nossa totalidade? O que Grada Kilomba tem a dizer a quem se sente reduzido por essas classificações? "Nós vivemos durante muito tempo com a constante ideia normativa de uma identidade que é apresentada como universal, como normativa, como norma, como centro", diz Kilomba. "Isso tem que ser questionado. Por que as pessoas que são vistas como humanas aparecem como pessoas e aquelas que são desviadas de humanas são marcadas com adjetivos?", questiona.
2023-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjr0vg704elo
brasil
Batalha pelo marco temporal: como veto de Lula pode abrir novo embate com ruralistas
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou parte do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que estabelecia um marco temporal para a demarcação de terras indígenas no país. O anúncio foi feito pelo secretário de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e pelo Advogado-Geral da União (AGU), Jorge Messias, na tarde desta sexta-feira (20/10). O principal item do projeto, o famigerado marco temporal, foi vetado, disse o trio de ministros. Apesar do tom de comemoração dos ministros, a decisão de Lula poderá abrir um novo embate com a poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional. Atualmente, a bancada do agronegócio corresponde a 303 deputados federais (59% do total) e a 50 (61%) senadores, os quais pertencem a de diversos partidos e Estados do país. Pouco depois do anúncio, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que congrega a chamada bancada ruralista, divulgou uma nota dando o tom da reação e afirmando que os vetos de Lula ao projeto "serão" derrubados pelo Congresso. Para derrubar vetos presidenciais são necessários os votos de pelo menos 257 deputados federais e 41 senadores. "A Frente Parlamentar da Agropecuária, bancada temática e suprapartidária [...] informa que os vetos realizados pela Presidência da República à Lei do Marco Temporal serão objeto de derrubada em sessão do Congresso Nacional", disse a nota. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O chamado marco temporal se transformou num dos principais "campos de batalha" do embate que colocou, de um lado, a bancada ruralista, e do outro, o governo e o Supremo Tribunal Federal (STF). O marco temporal é uma tese que vinha sendo debatida no Congresso e no STF segundo a qual a demarcação de terras indígenas só poderia ocorrer em comunidades já ocupadas por indígenas quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Ambientalistas e lideranças indígenas rejeitavam o marco temporal sob o argumento de que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. Ruralistas, por outro lado, alegam que o não estabelecimento de um marco temporal poderia causar insegurança jurídica, pois abriria o precedente para que áreas ocupadas por não indígenas possam ser reivindicadas como terras indígenas mesmo que elas não estivessem sendo habitadas por povos tradicionais antes da promulgação da Constituição. Em setembro deste ano, o STF julgou um processo sobre o caso e derrubou, por nove votos a dois, a tese do marco temporal. A decisão foi considerada uma vitória histórica para o movimento indígena. A bancada ruralista, por sua vez, manifestou ter interpretado a decisão do Supremo como uma intromissão do Judiciário, com o apoio do atual governo, em um assunto que estava sendo debatido pelo Legislativo. Em reação e com o apoio dos principais líderes do Congresso, os parlamentares aprovaram um projeto de lei que estabelecia um marco temporal para as demarcações de terras indígenas. Por ser um projeto de lei, o texto foi à sanção presidencial e Lula tinha até hoje para comunicar se vetaria ou não a matéria. Ao longo das últimas semanas, ambientalistas e movimentos indígenas pressionaram o governo para que Lula vetasse o projeto integralmente. Do outro lado, os ruralistas indicavam que, se Lula vetasse a matéria, os vetos seriam derrubados pelo Congresso Nacional. Nos bastidores, havia a expectativa de que Lula vetasse apenas parcialmente o projeto de lei. A dúvida era sobre qual seria a extensão do veto. Parlamentares da base governista defendiam que Lula evitasse se indispor ainda mais com a bancada ruralista. Ao mesmo tempo, havia o temor de que um veto considerado "tímido" pudesse comprometer o discurso do governo que tenta se colocar como defensor da causa indígena. Além de vetar o principal item do texto, que era o que estabelecia o marco temporal para a demarcação, Lula vetou outros dispositivos aprovados pelo Congresso — como o que previa a possibilidade de arrendamento de terras indígenas para não indígenas, o que permitia o cultivo de alimentos transgênicos nessas áreas e o que abria brechas na política de não contato com indígenas isolados. A ministra Sônia Guajajara comemorou os vetos, apesar de o movimento indígena defender que o projeto deveria ser vetado de forma total. "Nós podemos considerar uma grande vitória os vetos aqui apresentados pelo presidente, de reafirmar a decisão do Supremo Tribunal Federal, e de garantir essa coerência do governo com a agenda indígena, com a agenda ambiental e com a agenda internacional”, disse a ministra em nota sobre o assunto. Do outro lado dessa disputa, o presidente da FPA, o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), criticou o veto de Lula e afirmou que a bancada ruralista está pronta para mais um embate com a ala governista. "Essa decisão foi um desrespeito à maioria do Congresso Nacional. O presidente jogou para a torcida e decidiu pensando na bolha dele", disse o parlamentar à BBC News Brasil. "Nós temos ampla maioria para derrubar os vetos e esperamos que isso aconteça logo. Temos três meses para apreciar os vetos, mas acho que vamos fazer isso bem antes", disse o parlamentar. Em entrevista coletiva, Alexandre Padilha disse não temer uma reação dos parlamentares e que o governo estaria aberto ao diálogo com o Congresso para negociar os vetos. "Estamos absolutamente abertos a dialogar com o Congresso Nacional e acreditamos que aquilo que foi sancionado [por Lula] abre possibilidade de diálogo [com os parlamentares] porque era coerente com a Constituição", disse o ministro. Apesar disso, Pedro Lupion afirmou que a bancada ruralista vai continuar pressionando pelo estabelecimento do marco temporal. Além de se mobilizar para derrubar os vetos, a FPA, disse ele, vai tentar acelerar a tramitação de duas propostas de emendas à Constituição (PECs) que tratam do assunto. Uma delas, a PEC 48, restabelece a tese do marco temporal. A outra, a PEC 132, prevê o pagamento de indenização a proprietários que tenham suas terras convertidas em terras indígenas. A ideia é que, por se tratar de uma PEC, as mudanças propostas não estariam sujeitas à sanção presidencial e abririam menos margem para contestação junto ao STF, uma vez que alterariam o texto constitucional. Em meio às ameaças de reação, ambientalistas avaliam que o embate entre o governo e os ruralistas ainda está longe de acabar e que a estratégia usada pelos negociadores governistas estaria errada. "O problema é que os negociadores do governo não podem deixar que esses temas cruciais sejam decididos pelo presidente. O ideal é que o governo negociasse esses pontos antes de os projetos serem colocados em votação. Não dá para deixar o presidente ficar entre a cruz e a espada o tempo inteiro", disse o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, Márcio Astrini. A BBC News Brasil enviou questões ao Palácio do Planalto e à Secretaria de Relações Institucionais (SRI), mas não obteve resposta.
2023-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4jj2zw5zqo
brasil
'Não consigo mais plantar': como seca histórica na Amazônia afeta mulheres indígenas
"Esse sol está deixando as mulheres doentes. Ninguém consegue mais ir pra roça como fazíamos antes. Não consigo mais plantar." É assim que Virgília Arago Almeida, de 43 anos , indígena da etnia tariana, define os efeitos da seca histórica que atingiu a Amazônia neste ano. Segundo ela, as altas temperaturas e a falta de chuvas neste ano fizeram com que as mulheres na região do Alto Rio Negro, no Oeste do Amazonas, alterassem suas rotinas seculares de trabalho na roça, colocando em risco a segurança alimentar de comunidades inteiras. A seca que afeta a região amazônica neste ano é considerada uma das mais intensas já registradas. Um dos principais indicadores da sua intensidade é o nível do rio Negro em Manaus. Na segunda-feira (16/10), a régua que aponta o nível do rio registrou um novo recorde de baixa: 13,59 metros. Na quarta-feira (18/10), o rio continuou a secar e o nível baixou ainda mais: 13,38 metros. Fim do Matérias recomendadas Em outros pontos da chamada Amazônia Ocidental, composta por Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre, os efeitos também já começam a ser sentidos. Em Rondônia, o rio Madeira atingiu níveis históricos e fez com que a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, uma das maiores do Brasil, tivesse seu funcionamento suspenso temporariamente. No Amazonas, 59 dos 62 municípios do Estado já decretaram situação de emergência. Em Brasília, o governo federal anunciou medidas como o envio de mantimentos para comunidades isoladas e a dragagem de rios para facilitar a navegação. Mas longe dali, nas comunidades indígenas do Alto Rio Negro, os efeitos desta seca atípica vêm deixando os moradores, especialmente as mulheres, preocupadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A tradição entre parte dos povos indígenas do Alto Rio Negro é que as mulheres sejam as responsáveis pelo trabalho nos roçados enquanto os homens ficam encarregados da pesca e da caça. Sob a responsabilidade delas fica a plantação e a colheita de culturas como o cará (um tubérculo semelhante ao inhame) e a mandioca, base da alimentação dos indígenas naquela região. Homens também participam do trabalho na roça, mas em número bastante reduzido. Virgília e outras mulheres disseram à BBC News Brasil que a seca deste ano fez com que elas tivessem que mudar a forma como vinham trabalhando a roças há diversas gerações. Uma das principais alterações foi na jornada de trabalho. Elas contam que, normalmente, as mulheres se encaminham às roças a pé ou de barco nas primeiras horas da manhã e ficam trabalhando até o final da tarde. Agora elas afirmam que não conseguem mais suportar o sol escaldante. "A gente não aguenta mais. Neste ano, a gente tenta fazer o nosso trabalho de 7h às 9h e depois só depois das 16h, quando o sol já está mais frio. A gente vai até onde aguenta", diz Virgília. "Do jeito que a gente trabalha, o sol está prejudicando a nossa saúde. Está prejudicando, principalmente, o trabalho da roça. A gente vai só até certo momento porque não conseguimos aguentar mais o sol. Isso está mudando a saúde da gente", disse à BBC News Brasil a agricultora Madalena Fontes, indígena da etnia baniwa e que vive na comunidade Igarapé, no rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira. O impacto direto dessa mudança é que as roças acabam recebendo menos cuidado que o ideal, propiciando o surgimento de pragas ou mesmo diminuindo a quantidade de mandioca plantada e colhida, essencial para a segurança alimentar das comunidades. É a partir da mandioca que os indígenas produzem diversos produtos utilizados tanto no comércio quanto na própria alimentação das suas comunidades. Entre eles está a farinha, a tapioca, a goma e o beiju. A intensidade da estação seca já preocupa mulheres indígenas como Almerinda Ramos de Lima, 50, da etnia tariana, que vive no distrito de Iauaretê, também em São Gabriel da Cachoeira. Ele diz que os esforços para cultivar mandioca e outras espécies não têm dado certo porque o solo está muito quente e muito seco. "As sementes não germinam. O solo está muito quente. As manivas ficam todas podres [...] Eu tenho bastante preocupação porque minhas manivas estão todas morrendo. A gente vive disso. É o nosso alimento. É nossa sobrevivência e nossa resistência", disse. A antropóloga Lorena França explica que a morte das mudas nos roçados no Alto Rio Negro tem um impacto econômico, alimentar, mas também social e afetivo. "Toda mulher tem uma coleção de manivas (nome comumente dado à mandioca na região Norte), pimenteiras e outras mudas. Normalmente, elas recebem essas plantas de outras mulheres. Isso significa que esses cultivos, ao final, são resultado de uma intensa rede de relações", explica. Outra alteração foi com relação ao uso do fogo nos roçados. Há séculos, os indígenas utilizam o fogo para "limpar" as áreas em que irão cultivar. Essa prática manejada tem o nome de "coivara". O fogo elimina capim ou outras ervas indesejadas e deixa o solo pronto para o cultivo de dos vegetais que os indígenas querem plantar. "Nas roças que estão em seu primeiro ou terceiro ciclo de produção, o capim cresce com facilidade. Elas controlam o capim fazendo pequenas fogueiras. Algumas mulheres dizem que as suas mandiocas gostam do cheiro de fumaça e que isso joga um adubo na terra", conta a doutora em antropologia Lorena França, que estudou as práticas alimentares dos povos do Alto Rio Negro. Agora, contam as mulheres, a prática ancestral da "coivara" passou a ser evitada. Com a intensidade da atual estiagem, a matéria orgânica presente nas roças ficou muito ressecada e o fogo, antes manejado com cuidado, passou a sair de controle. "Não dá mais pra fazer as coivaras porque senão a roça toda vai queimar", disse Almerinda, do distrito de Iauaretê. "As faíscas vão queimando muito rápido e o fogo se alastra. Uma amiga perdeu toda a roça de abacaxi dela. Eu perdi quase todas as minhas pimenteiras", contou Almerinda. A estiagem prolongada na região não está afetando apenas as roças no Alto Rio Negro. Indígenas que vivem na região relataram à BBC News Brasil que até mesmo poços que abastecem comunidades com água potável secaram em meio à seca. "Dos 10 poços que abasteciam as comunidades onde eu moro, só sobraram dois. Agora, a gente está tendo que ir ao rio pegar água para beber e fazer comida", conta Almerinda. A situação foi confirmada à BBC News Brasil por Luiz Brazão dos Santos, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Negro, que atende a região de São Gabriel da Cachoeira. Segundo ele, com os rios mais secos, o risco de infecções causadas pelo consumo de água contaminada aumenta. "As pessoas estão indo ao rio para beber água, mas ele está muito seco. Como os dejetos são jogados no rio pelas comunidades mais acima, as pessoas das comunidades mais abaixo acabam correndo o risco de se contaminar", disse Santos. Ele relata que já há relatos de problemas de saúde como infecções e doenças de pele relacionadas ao consumo de água contaminada. "O problema é que com o rio seco, até mesmo o trabalho das equipes de saúde fica prejudicado. Antes, uma remoção de Taracuá, no rio Uaupés, até a sede de São Gabriel (da Cachoeira) levava um dia de barco. Agora, com o rio baixo e por conta das pedras e dos bancos de areia, a gente está levando mais de dois", contou. Almerinda Ramos diz não ter dúvidas. "Essa seca é culpa da mudança climática", disse a indígena. "Sou de um clã de líderes. Meu avô sempre dizia que os tempos iriam mudar e iriam piorar. E que o mundo, com o tempo iria pegar fogo. Naquela época, a gente não sabia o que isso queria dizer. Agora, a gente sabe", completou Almerinda. Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil nos últimos dias, no entanto, são menos categóricos. Eles explicam que a estiagem prolongada na Amazônia é causada por dois fenômenos climáticos que estão acontecendo ao mesmo tempo e influenciando o regime de chuvas na região. O El Niño teria, segundo os cientistas, afetado a estação chuvosa na Amazônia deste ano, que registrou índices pluviométricos abaixo da média. Com menos chuva, os rios entraram na estação seca com volume menor que o normal. O segundo fenômeno afetando a Amazônia é conhecido como dipolo do Atlântico, que é o aquecimento anormal das águas do Oceano Atlântico, especialmente nas latitudes mais ao norte, e que também reduz a quantidade de chuva na região. O pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Giovanni Dolif, disse à que ainda não é possível atribuir a ocorrência desses dois fenômenos às mudanças climáticas causadas pelo homem, mas a estiagem registrada neste momento seria compatível com os modelos projetados em que há aumento da temperatura do planeta. "Um único evento atmosférico é uma amostra pequena pra gente atribuir a um fenômeno de escala global, mas os estudos mostram que um planeta mais quente proporciona eventos extremos seja de seca como de inundações", disse o pesquisador à BBC News Brasil. Além da região do Alto Rio Negro, a situação das famílias indígenas vem preocupando autoridades em áreas como a calha do Rio Solimões, outro importante rio amazônico. Nesta semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem informando que indígenas da etnia kokama que vivem na Terra Indígena Boará/Boarazinho ficaram sem acesso a água potável e tiveram que passar a consumir água contaminada de um igarapé. Em nota enviada à reportagem da BBC News Brasil, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou que o órgão e outras instituições identificaram a existência de pelo menos 35 mil famílias indígenas em situação de vulnerabilidade no Estado do Amazonas em decorrência da estiagem. Ainda de acordo com a pasta, foram identificados os principais fatores que colocam essas populações em situação de vulnerabilidade: insegurança alimentar, falta de água potável e de medicamentos, impacto na economia local, condições sanitárias precárias e os incêndios florestais. "Outro problema levantado é o relativo à logística na região devido à seca dos rios, via de transporte essencial para mercadorias, equipes de saúde, técnicos e de deslocamento para a grande parte da população indígena", diz um trecho da nota. A pasta informou que está previsto o envio de pelo menos 20 mil cestas básicas às comunidades indígenas mapeadas e que já foi feito um pedido adicional de outras 50 mil cestas básicas à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Já o Ministério da Saúde enviou nota após a publicação da reportagem. A pasta afirmou que a Secretaria Indígena (SESAI) do ministério "acompanha o impacto da estiagem nas comunidades indígenas de 13 Distritos Sanitários Especiais Indígenas". "Há um mês, vem coletando dados dos territórios afetados. O maior empenho, no momento, é para garantir a assistência de saúde, viabilizar a chegada das equipes às aldeias, e o acesso a água potável. O trabalho está sendo realizado em parceria com outros ministérios, além das secretarias municipais e estadual de saúde", disse o ministério. "Portaria publicada esta semana pelo Ministério da Saúde destinou R$ 225 milhões ao Amazonas, com objetivo de reforçar a estrutura de saúde do estado e dos municípios para garantir a assistência à população, além da presença das equipes de saúde em todas as regiões do estado", finalizou. Para Almerinda Ramos, no entanto, só uma coisa pode resolver a crise: chuva. "Se essa seca não acabar logo, não sei o que vai acontecer", disse. Na quarta-feira, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) indicava a possibilidade de chuvas intensas na região onde Almerinda, Virgília e Madalena moram.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pjn19jw9xo
brasil
Vídeo, O misterioso animal híbrido de 'raposa' e cão encontrado em estrada do RSDuration, 7,27
Um animal estranho, parecido com um cachorro, provocou confusão entre cientistas brasileiros. O animal encontrado em 2021 foi identificado inicialmente como um cão silvestre, mas testes depois revelaram se tratar de uma espécie desconhecida, mistura de dois outros animais. Mas afinal, que bicho é esse? E o que ele indica sobre a biodiversidade do Brasil? Neste vídeo, o repórter André Biernath, da BBC News Brasil em Londres, conta essa história cercada de mistério e reviravoltas.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2981ew99j0o
brasil
A morte de adolescente em excursão escolar em SP que segue sem resposta há 8 anos
Em 11 de setembro de 2015, um ônibus com estudantes da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, seguiu em direção a uma fazenda no interior do Estado. Os jovens passariam uma semana na área rural. Entre os alunos estava Victoria Mafra Natalini, de 17 anos, descrita por familiares como estudiosa e apaixonada por arte. Na viagem escolar, a jovem contava os dias para um momento especial: quando voltasse para casa, ela iria a Porto Alegre (RS) para assistir ao show da sua banda preferida, o Queen. Mas aquela atividade escolar foi a última viagem da vida dela. A jovem nunca assistiu à apresentação musical que tanto esperava. Victoria foi encontrada morta dias depois de chegar à fazenda. O caso virou uma investigação policial que foi arquivada. É um mistério que dura quase uma década. A família da jovem cobra uma resposta e até contratou especialistas para uma investigação particular, o que foi fundamental para descobrir que ela não morreu por causas naturais. “Estou fazendo o papel de polícia e do Estado há oito anos”, afirma o pai de Victoria, o engenheiro mecânico João Carlos Natalini, de 58 anos. Fim do Matérias recomendadas Recentemente, professores e gestores da escola se tornaram réus por abandono de incapaz, em razão da morte da jovem. A excursão que hoje é lembrada pela morte de Victoria tinha o objetivo de levar 34 alunos da escola particular para passar alguns dias na Fazenda Pereiras, em Itatiba, no interior de São Paulo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Era um passeio escolar tradicional na unidade de ensino. Os alunos, junto com dois professores e três técnicos de topografia, foram à propriedade rural para fazer estudos práticos sobre matemática e topografia. Eles fariam um mapeamento detalhado da propriedade rural. A escola não permitia que os alunos levassem celular à fazenda. “Eles não poderiam se comunicar com os pais. Ficamos confiando que a escola exerceria o seu dever”, diz João à BBC News Brasil. Tudo parecia bem até o quinto dia da excursão, quando os alunos foram divididos em grupos para mapear diferentes áreas da fazenda. Por volta das 14h30 daquele dia, Victoria avisou aos colegas de grupo que iria ao banheiro. Ela seguiu por uma trilha de terra em direção à sede do local, a cerca de 500 metros do ponto em que estava. Essa foi a última vez em que a jovem foi vista, segundo a investigação policial. Cerca de duas horas depois, os colegas de grupo estranharam que ela não havia retornado e procuraram os professores, para perguntar se eles sabiam o paradeiro da adolescente. E então teve início uma busca pela jovem na propriedade rural. “Os professores colocaram até os próprios alunos para procurarem a minha filha na mata. Só por volta das 18h que a cozinheira da fazenda tomou a iniciativa de chamar a Defesa Civil”, conta o pai da garota, com base nos relatos que ouviu na época. “Eu só fui comunicado sobre o desaparecimento da minha filha às 20h e só consegui chegar lá por volta das 23h”, diz João.. Após o registro do desaparecimento, a polícia foi à fazenda. Por volta das 23h, as buscas foram suspensas e uma das possibilidades era de que a jovem tivesse sido sequestrada. As buscas foram retomadas na manhã seguinte. Por volta das 8h, o helicóptero da Polícia Militar de São Paulo encontrou o corpo de Victoria no entorno da fazenda. “Foi um baque muito grande quando me contaram que haviam encontrado o corpo dela. Eu estava em pé e tive que tomar fôlego para me reerguer. Foi tudo muito difícil. Precisei avisar aos familiares e ainda reconhecer o corpo da minha filha”, conta João. Ele define a descoberta sobre a morte da filha como o pior dia de sua vida. Não havia lesão aparente ou qualquer outro indício evidente de que Victoria havia sido vítima de um crime. No começo, a morte dela foi considerada como suspeita, mas a principal possibilidade cogitada era de que tivesse acontecido por causas naturais. Após viver os primeiros dias de luto intenso, João começou a questionar o que poderia ter acontecido com a filha. Na época, chegaram a noticiar que a garota tinha histórico de convulsões – o que foi negado pela família. João conta que a filha era saudável, se alimentava bem e praticava esportes. Em razão disso, ele achava pouco provável que Victoria tivesse morrido por problemas de saúde. “Já decorrido alguns dias ou semanas, a gente começou a pensar como havia coisa esquisita nisso tudo. O corpo dela foi encontrado em uma direção oposta à sede da fazenda, para onde ela queria ir quando desapareceu, e isso chamou a atenção. Pedimos insistentemente para a polícia local investigar, mas se negavam porque diziam que havia sido por causas naturais”, afirma João. Pouco após a morte da jovem, um laudo emitido pelo Instituto Médico Legal (IML) de Jundiaí (SP) apontou “causa indeterminada, sugestiva de morte natural” e descartou que ela tenha sido vítima de qualquer tipo de violência. Segundo os exames, Victoria não havia usado drogas nem ingerido bebida alcoólica. O laudo preocupou o pai da jovem, que acredita que depois disso a investigação do caso não recebeu a devida atenção das autoridades policiais. Para ele, não havia chance de a filha ter morrido de causa natural. Um fato que havia levantado desconfiança dele era a forma como o corpo dela foi encontrado: de bruços e com os braços entrelaçados. Para ele, isso representava que provavelmente alguém havia mexido no corpo. João decidiu investigar o caso por conta própria. Ele contratou peritos particulares que apontaram que apesar da falta de lesão aparente e de não ter ocorrido abuso sexual, a estudante foi assassinada e teve o corpo carregado até o local em que foi encontrada morta. “Esse laudo apontou uma série de incongruências do IML de Jundiaí, em razão da não investigação. Esses peritos que contratei pegaram todo o material a respeito da minha filha, avaliaram e desenharam toda a dinâmica, apontando que não tinha sido uma morte natural”, conta João. O pai da jovem apresentou o laudo particular à polícia. Diante disso, a apuração do caso foi reavaliada e encaminhada para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo. No começo de 2016, o DHPP pediu um novo laudo ao Centro de Perícias da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Essa nova análise confirmou que a aluna morreu por "asfixia mecânica, na modalidade de sufocação direta". O novo resultado apontou que a jovem pode ter sido assassinada. Isso porque esse tipo de sufocação direta, apontam especialistas, costuma ser feita pelas mãos, o que pode indicar que uma pessoa atacou a jovem. O pai acredita que Victoria foi morta em uma emboscada enquanto seguia para a sede da fazenda. “A pessoa tentou atacá-la, ela deve ter tentado se defender e a pessoa, com medo de que ela gritasse e denunciasse, acabou tentando calá-la, por isso tapou a boca e o nariz dela, o que acabou asfixiando a minha filha”, diz João. Em nota à reportagem, a Fazenda Pereiras, onde ocorreu a excursão, afirma que colaborou com a investigação e que permitiu a circulação de investigadores e peritos “que ouviram todos do staff que quiseram e quantas vezes consideraram necessárias, exibir qualquer documento que fosse solicitado.” “O trabalho policial sempre foi realizado com máxima liberdade e sempre seguimos à risca as determinações dos investigadores”, acrescenta o comunicado dos responsáveis pela fazenda. Mesmo no DHPP, o pai de Victoria avalia que a investigação avançou muito pouco. “Deixaram de fazer várias coisas, deixaram de colocar uma série de depoimentos no inquérito e tudo mais. Ao meu ver, foi uma investigação ruim e não foi bem conduzida”, declara João. O pai da garota afirma que um dos principais problemas foi o fato de que muitas provas foram deixadas de lado porque a apuração inicial, nos primeiros meses após o crime, seguiu a linha de que a jovem morreu de forma natural. Em nota à BBC News Brasil, a Polícia Civil de São Paulo nega que tenha havido falhas na investigação do caso e diz que “adotou todas as medidas de polícia judiciária cabíveis para esclarecer o caso.” Sem avanço ou qualquer suspeito, o inquérito foi encaminhado à Justiça e arquivado há cerca de um mês. A investigação só poderá ser reaberta se houver novas informações sobre o caso. Enquanto a investigação oficial segue arquivada, João assegura que não descansará até a prisão da pessoa que matou a sua filha. Nos últimos anos, ele teve algumas pequenas vitórias. Na área cível, a Justiça determinou que a escola pagasse uma indenização. No entanto, a unidade de ensino recorreu da decisão e pediu redução do valor. O caso segue em tramitação. Já no mês passado, a Justiça de São Paulo aceitou uma denúncia do Ministério Público do Estado (MPE) e funcionários da Escola Waldorf Rudolf Steiner se tornaram réus por abandono de incapaz. Na denúncia, o MPE apontou que os dois professores que estavam na excursão com Victoria "omitiram-se no seu dever legal, abandonando-a, deixando-a ir sozinha até a sede da fazenda, percurso longo e ermo.” Além dos dois, também se tornaram réus o gestor-executivo da escola, uma gestora pedagógica e a coordenadora do ensino médio. O MPE apontou que eles “concordaram com a "excursão com reduzido número de monitores e professores para monitorar e acompanhar os alunos de forma constante durante os dias na fazenda". O processo está em fase inicial. A reportagem procurou a escola, que disse, em nota, que adotou “todos os procedimentos de segurança necessários durante a viagem de estudo do meio e que, após a constatação da ausência de Victoria, as autoridades competentes foram contatadas.” “Esclarece, ainda, que em todas as atividades pedagógicas desenvolvidas – sejam na escola ou em ambiente externo - disponibiliza equipes de profissionais capacitados para acompanhamento de seus alunos”, acrescenta o comunicado da unidade de ensino. Na nota enviada, a escola não menciona especificamente sobre as questões judiciais do caso. Porém, lamenta a morte da jovem e afirma que “segue comprometida em contribuir com as autoridades e a justiça desde o primeiro dia das investigações.” A reportagem procurou a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para saber se houve alguma punição do Estado à unidade de ensino. Em nota, a pasta afirma que chegou a apurar o funcionamento da escola na época, mas não constatou irregularidades no local. Para João, o caso da morte da filha é uma sequência de impunidades. Mas ele avalia que a recente implicação jurídica aos gestores e professores da escola traz “certo alívio”. Porém, ele reclama da demora. “Foram oito anos até que eles se tornassem réus”, pontua. Ele segue com iniciativas para buscar respostas sobre a morte da filha. Há três anos, João criou um abaixo-assinado online para cobrar que o caso seja solucionado. Ele já conseguiu quase 58 mil assinaturas. Nas redes sociais, João mantém páginas para divulgar novidades do caso da filha. No Instagram, ele tem perfil “Victoria Natalini vive”, em que compartilha as notícias sobre o crime. João ainda continua com uma investigação particular para tentar descobrir novidades e apresentar à polícia. Recentemente, anunciou uma recompensa de R$ 50 mil para quem fornecer informações. “Precisamos de qualquer informação que leve ao autor do crime. Não é possível que nenhuma pessoa tenha ouvido ou não saiba de qualquer coisa. Estou disposto a pagar e manter o sigilo dessa pessoa que nos passar uma pista que pode levar ao assassino”, conta. Em meio à incansável busca por justiça, João viveu anos de intenso desgaste emocional. Mas ele afirma que caso fosse preciso, faria tudo de novo. “É a minha filha, não me arrependo”, declara. Para ele, descobrir o que aconteceu com a adolescente é uma forma de honrar a memória de Victoria.
2023-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72lely62l8o
brasil
Morre filha e neta de brasileiros desaparecida após ataques do Hamas em Israel
"A Celeste não está mais conosco", afirmou Mario Fishbein, de 66 anos, tio de Celeste, à BBC Brasil. "Recebemos a notícia de que o corpo dela foi encontrado e reconhecido. Foi um aviso oficial do Exército". Celeste é filha e neta de brasileiros e morava no kibbutz Be'eri, localizado no sul de Israel. A comunidade rural foi uma das atacadas no sábado (7/10), quando integrantes do grupo extremista mataram mais de 1.000 israelenses em uma incursão surpresa. Durante o final de semana, a família havia recebido uma comunicação das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) dizendo que ela havia sido sequestrada pelo Hamas. Fim do Matérias recomendadas Na ocasião, o tio da jovem manifestou preocupação sobre o estado da sobrinha. "A esperança é que ela esteja viva, que ela esteja bem, que ela esteja tranquila", disse no sábado. "Mas não sabemos se ela voltará a mesma pessoa." Com a confirmação da morte da jovem, porém, a família foi informada de que o corpo da jovem foi encontrado no caminho entre a sua casa e a Faixa de Gaza. Segundo Mario, o Exército acredita que ela foi capturada pelo Hamas, mas morta no percurso até Gaza. Celeste vivia em Be'eri com o namorado e trabalhava lá como babá. O ataque ao kibbutz no dia 7 começou com o disparo de mísseis e o soar dos alarmes de alerta. Assim como os outros moradores, Celeste se abrigou no quarto seguro de sua casa. Ao lado do namorado, se comunicava com seus parentes que vivem na cidade de Netanya, a norte de Tel Aviv, sobre a invasão. Na última mensagem recebida pela família, Celeste informava que os membros do Hamas estavam se aproximando do bunker onde ela estava. "Ela disse que eles estavam se aproximando e que tinham tomado o controle do grupo da comunidade. Ou seja, que poderiam enviar informações ou imagens falsas por lá", conta Fishbein. "Depois disso ela não falou mais nada." Estima-se que cerca de 199 israelenses estejam nas mãos do Hamas atualmente, entre homens, mulheres, idosos e crianças. Com os reféns detidos em locais secretos em Gaza, o governo de Israel agora enfrenta uma situação delicada. No sábado (14/10), as Forças Armadas do país anunciaram que se preparam para atacar Gaza por terra, ar e mar - e muitos temem pela segurança dos sequestrados.
2023-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2lnrne41zo
brasil
Brasileiro confirma morte de sobrinha desaparecida após ataques do Hamas: 'Celeste não está mais conosco'
Mas nesta terça-feira, as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) confirmaram à família que o corpo de Celeste foi encontrado e reconhecido. Durante o final de semana, a família havia recebido informações das IDF sobre o provável sequestro da jovem pelo Hamas, pois o sinal de seu celular havia sido localizado na Faixa de Gaza. Mas nesta terça, o Exército confirmou sua morte em uma visita à casa dos parentes. "A Celeste não está mais conosco", afirmou Mario Fishbein, de 66 anos, tio de Celeste, à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas "Recebemos a notícia de que o corpo dela foi encontrado e reconhecido. Foi um aviso oficial do Exército." A jovem nasceu em Israel, mas sua mãe, tio e avó são brasileiros. Eles moram no país há 52 anos, para onde se mudaram para ficar mais próximos da família e de outros membros da comunidade judaica. Celeste vivia na comunidade rural localizada a menos de 10 km de Gaza e era babá. Antes da confirmação da morte de Celeste, a família havia recebido, no sábado (14/10), uma comunicação das IDF dizendo que ela havia sido sequestrada. Na ocasião, o tio da jovem manifestou preocupação sobre o estado da sobrinha. "A esperança é que ela esteja viva, que ela esteja bem, que ela esteja tranquila", disse ele no sábado. "Mas não sabemos se ela voltará a mesma pessoa." Estima-se que cerca de 199 israelenses estejam nas mãos do Hamas atualmente, entre homens, mulheres, idosos e crianças. Neste sábado, as Forças Armadas do país anunciaram que se preparam para atacar Gaza por terra, ar e mar - e muitos temem pela segurança dos sequestrados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Celeste vivia em Be'eri com o namorado e trabalhava lá como babá. O ataque ao kibutz no sábado começou com o disparo de mísseis e o soar dos alarmes de alerta. A região é atingida com frequência por ataques aéreos, então todas as casas do vilarejo são equipadas com quartos seguros feitos de concreto reforçado com portas de aço herméticas e janelas projetadas para suportar ataques de mísseis. Todos os moradores se abrigaram nos bunkers, mas logo o ataque por terra começou e membros do Hamas invadiram Be'eri. Enquanto tudo acontecia, os vizinhos se comunicavam no grupo de WhatsApp do kibutz. Assim como os outros moradores, Celeste se abrigou no quarto seguro de sua casa. Ao lado do namorado, se comunicava com seus parentes que vivem na cidade de Netanya, a norte de Tel Aviv, sobre a invasão. Na última mensagem recebida pela família, Celeste informava que os membros do Hamas estavam se aproximando do bunker onde ela estava. "Ela disse que eles estavam se aproximando e que tinham tomado o controle do grupo da comunidade. Ou seja, que poderiam enviar informações ou imagens falsas por lá", conta Fishbein. "Depois disso ela não falou mais nada." A avó de Celeste, de 94 anos, também morava em Be'eri. Brasileira, ela passou cerca de 20 horas presa no bunker em sua casa antes de ser resgatada por soldados israelenses. "Foram muitas horas de medo, sem luz, água, comida ou acesso a banheiro", relata Mario. Quando o Exército israelense chegou ao kibbutz e iniciou a evacuação dos moradores, os membros do Hamas revidaram e atiraram contra os soldados. "Nessa hora minha mãe foi atingida por um tiro, mas por sorte não foi nada muito grave e ela está se recuperando." O tio de Celeste conta que a jovem morou sua vida toda em Be'eri e nunca pensou em se mudar, apesar da ameaça constante de violência na região. "Quando ela era pequena, tinha 2 anos, o kibbutz foi atingido por mísseis. Minha irmã, mãe da Celeste, foi atirada longe, mais de 20 metros, e ela ficou com pedaços de metal encrustados no corpo." "Se saíssem de lá e se mudassem, provavelmente teriam que se mudar de novo em seguida, porque a próxima cidade também poderia ser perigosa. Então decidiram ficar", relata Mario Fishbein. Morreram a carioca Karla Stelzer Mendes, de 42 anos, o gaúcho Ranani Nidejelski Glazer, de 23 anos, e a carioca Bruna Valeanu, de 24. Todos estavam em uma festa rave no deserto, a 5 km da Faixa de Gaza, quando o local foi invadido no sábado. Celeste é filha de mãe brasileira, mas não possuía nacionalidade brasileira.
2023-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2e8lg2jn5do
brasil
Os planos do governo Lula para os mais de 200 mil brasileiros em situação de rua
"Pela condição mesmo de situação de rua – de pessoas em grande parte indocumentadas –, a gente estima que esses números estejam subnotificados", diz Oliveira, em entrevista à BBC News Brasil. "Porque o CadÚnico pressupõe que as pessoas tenham tido não só acesso aos serviços públicos da rede, mas que tenham também documentos", afirma a defensora pública de carreira, que em 2021 também fez parte da Comissão de Juristas Negros e Negras, instituída pela Câmara dos Deputados. Fim do Matérias recomendadas "Como sabemos que boa parte dessa população não tem acesso ao serviço de documentação ou teve documentação perdida, extraviada, entendemos que o cadastro não lê toda essa população." Contar devidamente essas pessoas, através de um Censo específico, será uma das medidas do plano que o governo federal pretende lançar até novembro para a população em situação de rua. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ainda não há, no entanto, orçamento definido para a execução do conjunto de medidas. "Como o Orçamento de 2024 não está fechado, as pastas estão definindo seus recursos, mas obviamente, pelo tamanho do problema, sabemos que vai ser um aporte robusto", diz Oliveira. Entre as pastas que deverão estar envolvidas na execução do plano, além do MDHC, estão Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Saúde; Trabalho e Emprego; Justiça; Cidades; Educação; Gestão e Inovação em Serviços Públicos; e Cultura. À BBC News Brasil, a secretária-executiva do ministério falou ainda sobre o inquérito aberto pelo Ministério Público Federal para investigar o envolvimento do Banco do Brasil na escravidão e preferiu não comentar o impasse quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos. Para o governo federal, o STF deu 120 dias para a apresentação de um plano para a "efetiva implementação" da Política Nacional para a População de Rua, criada em 2009. Esse prazo vence em 24 de novembro mas, segundo a secretária-executiva do MDHC, a intenção do governo é lançar seu pacote antes disso, embora ainda não haja uma data definida. "Uma data precisamente não tem, porque a ideia é que [o plano] seja apresentado pelo próprio presidente Lula. Então vai depender da agenda do presidente. Mas obviamente vai ser dentro do prazo e a ideia que seja até antes", diz Oliveira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou por cirurgias de quadril e pálpebra em 29 de setembro e deve ficar três semanas trabalhando na residência oficial do Palácio do Alvorada. Segundo a secretária-executiva do MDHC, a habitação deve ser o eixo principal do pacote a ser anunciado pelo governo. "É o direito essencial que vai garantir todos os outros direitos para enfrentar o problema das pessoas da situação de rua", diz Oliveira. Nessa área, o governo planeja ampliar a oferta de locação social, com a disponibilização de moradias para aluguel a preços subsidiados. Também pretende criar cotas do programa Minha Casa, Minha Vida para pessoas em situação de rua. E oferecer uma modalidade de aluguel social assistida, acompanhada de políticas de cidadania e saúde. Essa vertente será voltada para pessoas "com perfil crônico de rua", diz a representante do MDHC, que são aquelas que moram nas ruas há mais tempo e muitas vezes sofrem de problemas de saúde mental, associados ao abuso de substâncias como álcool e drogas. O modelo é inspirado na metodologia "Housing First" (Moradia Primeiro), adotada por diversos países para atender pessoas em situação de rua. No Brasil, municípios como Curitiba e São Paulo já realizaram políticas inspiradas nesta estratégia. No eixo de emprego e renda, o governo planeja fortalecer iniciativas de cooperativismo; fechar acordos de cooperação com grandes empregadores para promover acesso a vagas de emprego para a população de rua; e oferecer capacitação e qualificação profissional em parceria com federações e universidades, enumera a secretária-executiva. "São esses os exemplos [de políticas contidas no plano] que eu posso dar nesse momento", diz Oliveira. "Obviamente, existe um compromisso nosso de que o próprio presidente ou ministro [Silvio Almeida] anunciem as ações assim que o plano for fechado." A secretária-executiva antecipa, porém, que deve ser lançado nos próximos dias um decreto instituindo o grupo de trabalho que vai definir a metodologia do Censo da população de rua. A ideia é fazer ainda esse ano um pré-teste da coleta de dados e realizar os primeiros pilotos no primeiro semestre de 2024. Só então será definida uma data para o início do Censo. O IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estatística) realizou em 2022 – com dois anos de atraso, devido à pandemia e a cortes de verba – seu Censo Demográfico. Leia também: A pesquisa contou 203 milhões de brasileiros, mas, como a coleta contempla apenas os domicílios, as pessoas em situação de rua não são incluídas nessa contagem. Enquanto não existam dados censitários nacionais sobre essa população, o governo utiliza para elaboração de seu plano estimativas preliminares. Além do diagnóstico lançado em setembro pelo MDHC com base nos dados do Cadastro Único, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicou em dezembro de 2022 um estudo em que estimou a população em situação de rua no Brasil em 281,5 mil pessoas, a partir de dados oficiais informados por gestões municipais. Pela estimativa do Ipea, o número de pessoas vivendo nas ruas mais do que triplicou no Brasil em uma década – eram 90,5 mil pessoas nessa situação em 2012, nas contas do instituto. Essa "explosão" no número de pessoas vivendo nas ruas é muito superior ao crescimento vegetativo da população, que foi de apenas 6,5% entre 2010 e 2022, segundo o Censo do IBGE. Nesse cenário, o principal desafio para a execução do plano do governo federal para a população de rua é a articulação entre União, Estados e municípios, avalia a secretária-executiva do MDHC. "Todos nós sabemos que as ações só vão poder ser implementadas plenamente a partir do diálogo com os entes nacionais, especialmente os municípios", diz Oliveira. "Então esse é um desafio, mas nós estamos confiantes que todos entenderam, inclusive a partir da decisão do Supremo." A representante do ministério afirma que esse dialogo deverá ser feito "independente das diferenças partidárias ideológicas". O diagnóstico divulgado em setembro com base em dados do CadÚnico revelou, por exemplo, que 40% da população de rua total do Brasil se encontra no Estado de São Paulo, atualmente governado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro do governo Jair Bolsonaro (PL). E mais da metade desse contingente está na capital paulista, cuja prefeitura tem à frente o emedebista Ricardo Nunes. Segundo Oliveira, apesar do tamanho da população paulista em situação de rua, não deve haver políticas específicas para o Estado ou para a Cracolândia paulistana. Isso porque as políticas não estão sendo pensadas para espaços ou governos específicos, mas considerando os problemas da população em situação de rua, diz ela. "É óbvio que São Paulo, pela concentração de pessoas em situação de rua, tem a nossa atenção", afirma a secretária-executiva. "Se temos lá um número relevante de pessoas em situação de rua com uma problemática aguda de uso abusivo de álcool e droga, a política que estamos pensando para pessoas em situação de rua com uso abusivo de álcool e drogas vai ser oferecida para São Paulo, assim como vai ser oferecida para todas as capitais que têm o mesmo problema", acrescenta. Segundo a secretária, o plano do governo deverá ser norteado por dados, e seu cumprimento será avaliado por metas e indicadores, que serão disponibilizados numa plataforma pública, o Observatório Nacional de Direitos Humanos (Observa DH), que está para ser lançado. "Obviamente, a redução da população em situação de rua é um indicador fundamental da eficácia do plano", antecipa Oliveira. Ela avalia, porém, que ainda é cedo para falar em números. A BBC News Brasil também perguntou a Rita Cristina de Oliveira sobre outros temas relevantes que estão sendo tocados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Com relação ao inquérito aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar o envolvimento do Banco do Brasil (BB) na escravidão e no tráfico de escravizados no século 19, a secretária reafirma que a pasta deve participar de reunião sobre o tema no dia 27 de outubro, junto ao MPF, BB, Ministério da Igualdade Racial e ao grupo de historiadores que propôs a ação. "O ministério tem, desde o início dessa gestão, uma preocupação com a memória e verdade, e também medidas de reparação histórica em relação à escravidão e ao tráfico transatlântico", diz. "Tanto que, ineditamente, criou uma coordenação geral específica para tratar desse tema." A Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico, integrada ao MDHC, é liderada pela história da África Fernanda Thomaz desde março. A coordenadoria tem se dedicado a temas como a preservação e memória do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas. Questionada se a política de reparação histórica em gestão na pasta poderá eventualmente incluir compensação financeira para descendentes de escravizados – como estudado, por exemplo, pelo Estado da Califórnia, nos EUA – a secretária descarta essa possibilidade no momento atual. "Reparação financeira não está na linha de avaliação agora, até porque isso dependeria de alterações normativas que não estão nem no nosso alcance", diz Oliveira. "O passivo que nós temos em relação à escravidão e ao tráfico [de escravizados] é trazer à tona esses registros", avalia a "número 2" dos Direitos Humanos e Cidadania. "O que a gente ainda não fez enquanto país é trazer essa história, com todos os seus atores, à tona para uma discussão importante que a sociedade precisa fazer em relação ao tamanho dessa reparação. Então é isso que vamos fazer como política. Vamos trazer à tona essa história", afirma. "Agora, o alcance dessa reparação é um debate que ainda vai ser colocado." Quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos (extinta em dezembro de 2022, no apagar das luzes da gestão Bolsonaro) haveria um impasse, segundo reportado pela imprensa nas últimas semanas, com base em informações de bastidores. Questionada sobre o impasse, a secretária-executiva preferiu não se manifestar. "Sobre esse tema, eu não tenho nenhuma manifestação a dar, porque essa é uma questão que está sob avaliação atualmente da Presidência da República e da Casa Civil. Então o que tinha que ser feito pelo ministério já foi feito e não tenho mais nenhum comentário a fazer sobre isso."
2023-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg1z4emydlo
brasil
'Me sinto um anjo da morte': o brasileiro encarregado de avisar famílias em Israel sobre morte de parentes
Os familiares de todas os israelenses que morrem em operações militares ou em ataques classificados como terroristas pelo governo local recebem um acompanhamento especial, que inclui a visita de um oficial do Exército para comunicar oficialmente o falecimento. O brasileiro Rafael* é major do Exército e foi um dos intimados. Desde a última sexta-feira (13/10), ele tem visitado em média três famílias por dia para levar a notícia sobre a morte de um ente querido. "Quando bato na porta dessas famílias, me sinto como um anjo da morte", afirmou à BBC News Brasil. "Mas sei que esse trabalho é muito importante, pois dá a oportunidade da família de ter certeza sobre o que aconteceu com o seu ente querido e poder enterrá-lo." Fim do Matérias recomendadas Esta é a primeira vez que Rafael assume essa função. Há 14 anos no Exército de Israel, o brasileiro natural do Rio de Janeiro trabalha com aconselhamento jurídico nas IDF. "Há pessoas no Exército que cumprem essa função regularmente, mas como a quantidade de mortos chegou a uma dimensão gigante, a quantidade de oficiais treinados para esse tipo de missão não foi suficiente", diz. O militar conta que passou por um treinamento de quatro horas antes de começar a tarefa. "Na nossa preparação eles disseram que, principalmente nos primeiros dias, poderíamos ficar muito abalados, sem apetite e sem sono", diz. "E isso realmente está acontecendo - é difícil de dormir e de comer." "Mas eu continuo logicamente fazendo as refeições e tentando dormir, porque eu sei que se não fizer isso existirão mais uma, duas, três, quatro, cinco famílias que não vão receber informações sobre seus parentes." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rafael conta que algumas das visitas que mais o marcaram foram às casas de famílias com crianças e adolescentes. Em uma delas, teve que dar a notícia sobre o falecimento de uma jovem de 17 anos ao seu pai. Ela passava a noite com o namorado em uma praia próxima à Faixa de Gaza quando o casal foi atacado pelo Hamas. "Quando nós demos a notícia para esse pai, ele disse que no dia anterior havia visto uma foto de sua filha na televisão, entre as das pessoas que provavelmente foram sequestradas", diz. "Ele falou que tinha ficado com uma certa esperança - se é que alguém pode ter esperança de um filho ser sequestrado - de que ela estivesse viva ainda" Em outra viagem, visitou os pais de uma mulher de 30 anos que foi assassinada dentro de sua própria casa. Seu marido está desaparecido. "Eles deixaram dois filhos gêmeos de 10 meses que só sobreviveram porque os pais conseguiram colocá-los dentro do bunker e trancar o quarto antes dos terroristas chegarem", relata. "Está sendo muito difícil, eu não paro de pensar nas famílias. São pais que nunca mais vão ver seus filhos, são crianças que vão crescer sem os pais." Segundo Rafael, muitas dos familiares das vítimas do ataque do dia 7 de outubro terão que esperar muitos dias antes de receber notícias sobre seu ente querido. "O reconhecimento dos corpos está difícil, pois alguns deles estão totalmente destruídos. Com isso as confirmações das mortes demoram a chegar", diz. "Há mais de 600 pessoas desaparecidas e uma grande quantidade delas, infelizmente, estão mortas, mas o reconhecimento dos corpos ainda não foi possível." Rafael mora em Israel há 20 anos. "Eu sou um judeu sionista e sei que o Estado de Israel está voltado para receber os judeus de todo mundo", diz. "Mas gosto muito do Brasil e visito com frequência. É um país que recebeu muito bem o meu avô, que foi sobrevivente do Holocausto." A incursão do dia 7 foi considerada o ataque transfronteiriço mais sério que Israel enfrentou em mais de uma geração. Membros do Hamas violaram a cerca que separa Gaza de Israel em vários lugares, invadiram vilarejos e mataram mais de 1.300 pessoas. Estima-se que cerca de 199 pessoas tenham sido sequestradas. Os combatentes também dispararam milhares de foguetes a partir da Faixa de Gaza, alguns dos quais atingiram cidades tão distantes quanto Tel Aviv e Jerusalém. Além disso, segundo as autoridades palestinas, cerca de mil pessoas estão desaparecidas em escombros de prédios bombardeados. A crise humanitária no enclave palestino está cada vez mais aguda e há um crescente temor de uma escalada regional envolvendo outros países da região, como Líbano e Irã. *A BBC omitiu o sobrenome do militar por questões de segurança
2023-10-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5lqd4qp8do
brasil
Número de brasileiros resgatados em Israel chega a 916; entenda repatriação em curso
Até a manhã desta segunda-feira (16/10), 916 brasileiros e 24 animais de estimação já haviam sido repatriados de Israel para o Brasil em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Uma aeronave está em Roma, na Itália, aguardando autorização para buscar um grupo de brasileiros que está no Egito após deixar a Faixa de Gaza. Ainda não há previsão de retorno desse avião. Outro avião da FAB deve deixar Brasília a partir da base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, às 17h desta segunda para resgatar mais brasileiros em Israel. A previsão é que ele pouse de volta na capital fluminense às 2h30 de quinta-feira (19/10). Os nomes dos passageiros dos voos não foram divulgados oficialmente por questão de segurança. Fim do Matérias recomendadas Na ação interministerial, denominada Operação Voltando em Paz, já foram realizados cinco voos de repatriação: Leia também: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O governo também fornece instruções sobre como se dirigir ao Aeroporto Ben-Gurion à medida que os voos forem confirmados. O Itamaraty ainda recomenda a todos os brasileiros que possuam passagens aéreas que considerem embarcar nos voos comerciais disponíveis no Aeroporto de Ben-Gurion, que, apesar dos problemas, continua operando. Cerca de 14 mil brasileiros vivem em Israel e 6 mil na Palestina, segundo estimativas do Itamaraty - a maioria fora da área de conflito. Até o momento, foram contabilizados mais de 1,4 mil mortos em Israel e 2.670 na Faixa de Gaza após retaliação das forças israelenses. Em meio ao anúncio de guerra, além de sua força permanente de 160 mil militares, mais de 360 mil reservistas – um número recorde no país – foram convocados pelo Exército de Israel. Os três estavam em uma festa rave no deserto, a 5 km da Faixa de Gaza, quando foram atacados por militantes do Hamas no sábado (7/10).
2023-10-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqv98ejqg43o
brasil
'Argenchina': por que Argentina desbancou Brasil e virou 'queridinha' da China na América Latina
Ao fim de sua viagem à China, em junho, Sergio Massa, ministro da Economia argentino e candidato à presidência, brincou que seu país deveria ser rebatizado de "Argenchina". "Vamos fundar a República da Argenchina", disse ele a jornalistas em Pequim após receber a promessa de uma nova rodada de investimentos bilionários. Mas, como diz o ditado, toda brincadeira tem um fundo de verdade. Os números não mentem: os laços entre Argentina e China se estreitaram significativamente, a ponto de o país vizinho ter desbancado o Brasil como o principal destino de investimentos chineses na América Latina no ano passado. Fim do Matérias recomendadas E, desde o ano passado, a Argentina faz parte da chamada 'Nova Rota da Seda', projeto desenvolvimentista chinês. Foi a primeira grande economia da América Latina a aderir à iniciativa. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem acreditar que o ano passado foi um caso isolado, e o Brasil — que sempre recebeu praticamente a metade do total do investimento chinês na América Latina — deve retomar a liderança (ler mais abaixo). O primeiro turno das eleições presidenciais argentinas vai ocorrer no próximo domingo, dia 22 de outubro — Sergio Massa (União pela Pátria), o candidato governista, e Milei (A Liberdade Avança), da oposição, são os favoritos na disputa. Em terceiro nas sondagens, está a também opositora e ex-ministra de segurança argentina Patricia Bullrich (Juntos pela Mudança). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A China é o segundo principal parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil. Trinta anos atrás, em 1992, era o 14º. As razões para a aproximação entre os dois países são muitas, algumas das quais também explicam o interesse chinês pelo Brasil. De um lado, a Argentina, assim como o Brasil, é um país que exporta commodities — uma potência tanto na agricultura, com carne, trigo, milho, soja, quanto em recursos minerais, com petróleo, gás e lítio. De outro, a China, com uma população de mais de 1,4 bilhão de pessoas e um apetite voraz, precisa dessas matérias-primas para se desenvolver e crescer. "A China sempre vai precisar importar uma grande quantidade de alimentos porque os seus próprios recursos agrícolas não são suficientes. Nesse sentido, a Argentina, com a sua enorme riqueza agrícola, é um parceiro óbvio", diz à BBC News Brasil Jorge Heine, ex-ministro de Ativos Nacionais do Chile e ex-embaixador chileno em Pequim, hoje professor na Universidade de Boston, nos Estados Unidos. Mas a escassez histórica de dólares do país vizinho, sobretudo pelas altas dívidas externas contraídas ao longo de suas diversas crises, acabou por aumentar essa dependência. "A Argentina hoje não tem muitas opções na mesa que não envolvam a China, essa é uma realidade incontornável. Sob risco de calote dos Estados Unidos e bancos ocidentais, Europa cada vez mais distante da região, a Rússia, que poderia aproveitar esse vácuo, às voltas com suas crises por conta da guerra na Ucrânia...o único país com envergadura para costurar algum tipo de parceria mais confortável com a Argentina é a China", diz Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC. E, como pano de fundo, também há a questão geopolítica — a China vem aumentando sua influência sobre a América Latina, uma região que por muito tempo foi considerada "o quintal" de seu principal arquirrival no xadrez geopolítico internacional: os Estados Unidos. "A China tem uma visão de longo prazo sobre seus investimentos e, neste sentido, problemas ou contratempos da economia argentina constituem um obstáculo menor do que para as empresas ocidentais", explica Heine. Além disso, segundo ele, "a economia americana compete com a economia argentina — os EUA produzem carne e soja, por exemplo. Há mais elementos de complementaridade entre as economias chinesa e argentina, o que explica essa parceria frutífera", acrescenta. Para uma fonte do alto escalão do governo argentino, ouvida pela BBC News Brasil sob condição de anonimato, a China "foi o principal aliado financeiro da Argentina nos últimos tempos e o presidente Alberto Fernández é grato ao governo chinês. Por isso, sua última viagem internacional foi à China, num gesto de diplomacia presidencial, após a renovação do swap de moedas". Fernández chegou à China no último sábado (14/10) para se encontrar com a ex-presidente Dilma Rousseff, chefe do Novo Banco de Desenvolvimento (também chamado de "Banco dos Brics"), em Xangai, e com o presidente chinês, Xi Jinping, em Pequim. Ele participa do 3º Fórum do Cinturão e Rota para a Cooperação Internacional e também se encontra com investidores. Apesar de a Argentina ter ultrapassado o Brasil em volume de investimentos no ano passado, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil não acreditam que isso vá se tornar uma tendência. "Acho que essa questão de a Argentina ultrapassar o Brasil tem que ser contextualizada. A diferença entre os dois em 2022 é muito pequena, não chega nem a US$ 500 milhões. Sem contar que em termos históricos, o Brasil quase sempre liderou, com alguns países da região ultrapassando em raros momentos por quentões pontuais. O Chile, por exemplo, já ficou na frente do Brasil por ter recebido um investimento gigantesco na área de lítio", diz Cariello, do CEBC. Heine, da Universidade de Boston, concorda. "Considero o que aconteceu no ano passado mais como um acaso do que qualquer outra coisa. Há vários projetos chineses sendo desenvolvidos no Brasil. Portanto, o que acontece em um ano não significa necessariamente uma tendência", assinala. Segundo o relatório do CEBC, no ano passado, um dos motivos que ajudou a Argentina a superar o Brasil em volume de aportes chineses foram os negócios expressivos no segmento de lítio, na área de mineração. Houve duas aquisições na exploração do mineral por parte das chinesas Ganfeng Lithium e Zijin Mining Group. Mas especialistas apontam que, assim como acontece no Brasil, muitos investimentos chineses bilionários anunciados na Argentina ainda não saíram do papel. "Há mais de 15 anos, a China vem anunciando investimentos na Argentina que na maioria dos casos não se concretizaram de forma suficiente. O que tem acontecido, ultimamente, são alguns investimentos específicos", diz à BBC News Brasil o economista Marcelo Elizondo, presidente do Comitê Argentino da Câmara de Comércio Internacional (ICC). Em sua visão, "a Argentina é pouco atraente para investidores chineses, que se depararam com muitos obstáculos", acrescenta ele, citando a "brecha cambial" (as diferenças entre o câmbio oficial e as várias cotações paralelas do dólar) e a dificuldade para importar insumos e máquinas para a produção. "Neste sentido, a China tem estado presente muito mais pelas urgências financeiras e conjunturais da Argentina (como o pagamento ao FMI)", acrescenta. E o que deve acontecer com a Argentina se o candidato mais bem cotado à presidência, o anarcocapitalista Javier Milei, vencer? Tachado de "Trump argentino", Milei aventou "cortar relações com a China", devido ao fato de que o país asiático é governado pelo Partido Comunista, e quer reaproximar a Argentina dos Estados Unidos, atualmente o terceiro principal parceiro comercial argentino. Também prometeu, se eleito, tirar a Argentina do Mercosul e chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de socialista "com vocação totalitária". "Este rompimento (da Argentina com a China) seria impossível. A China é o principal destino da carne bovina e da soja que exportamos. É impossível deixar de negociar com a China. Não é possível ideologizar o comércio exterior, isso é impossível", diz à BBC News Brasil Diego Guelar, ex-embaixador da Argentina no Brasil. Para o embaixador argentino na Suíça, Gustavo Martínez Pandiani, cotado como chanceler em eventual governo do candidato Sergio Massa, "a China é hoje uma das economias emergentes mais importantes do planeta e passou a ser um investidor relevante na América Latina. Achamos que se deve continuar fortalecendo a parceria estratégica com a China com o objetivo de se avançar no desenvolvimento de setores-chave como o agroindustrial e o energético, entre outros". Heine, da Universidade de Boston, lembra que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) também lançou mão da mesma retórica anti-China durante a corrida presidencial, mas em seu governo, as relações comerciais entre os dois países não foram prejudicadas. "Meu palpite é que Milei, se eleito, tenha que fazer teriam que fazer o mesmo que Bolsonaro fez: engolir suas palavras e fazer o que os imperativos das realidades econômicas internacionais lhe impõem", diz. Apesar disso, Ariel González Levaggi, secretário-executivo do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Católica Argentina, não descarta atritos entre Argentina e China com a vitória de Milei. "Essas eleições não são uma boa notícia para os chineses, porque os três candidatos apresentaram agendas muito menos favoráveis à China. Mas, no caso de Milei, a preocupação é grande, especialmente no tocante ao aprofundamento das relações, com um temor de que alguns projetos de investimentos sejam paralisados", diz. "De qualquer forma, dificilmente, as relações bilaterais vão retornar ao nível da presidência de Cristina Kirchner (2007-2015), sobretudo em seu segundo mandato, quando houve uma aproximação entre os dois países, e a Argentina tinha uma posição muito refratária aos Estados Unidos", conclui.
2023-10-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9re46xw5lgo
brasil
3 pontos para entender impasse no Conselho de Segurança da ONU sobre o conflito
A Rússia apresentou uma proposta de resolução durante o encontro a portas fechadas, pedindo por um cessar-fogo humanitário. Os membros do Conselho devem agora debater o rascunho, mas ainda não está claro se a proposta será votada formalmente. A reunião havia sido convocada pelo governo do Brasil, que presidirá o órgão em outubro, e foi comandada pelo ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira. A liderança rotativa é ocupada a cada mês por um representante dos 15 países-membros. Fim do Matérias recomendadas As resoluções do Conselho de Segurança precisam de pelo menos nove votos dos 15 países-membros e nenhum veto dos cinco membros permanentes - EUA, Reino Unido, França, Rússia e China - para serem aprovadas. O órgão está cada vez mais dividido, especialmente desde o início da guerra na Ucrânia. A Rússia tem vetado resoluções que prejudicam sua posição e, em algumas ocasiões, conta com o apoio chinês. Nos últimos anos, o governo americano também tem exercido o seu direito de veto em favor do seu aliado Israel. Entenda, a seguir, alguns dos pontos discutidos na reunião e o que levou ao impasse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A proposta de resolução distribuída pela Rússia aos membros do Conselho apela por um cessar-fogo humanitário entre Israel e o grupo palestino extremista Hamas. O rascunho é bastante breve, com cinco pontos principais e apenas uma página. O texto pede um cessar-fogo humanitário imediato, duradouro e plenamente respeitado, a libertação segura de todos os reféns, a distribuição de assistência humanitária e a evacuação segura dos civis necessitados. Isso significa que os cerca de 1,1 milhão de moradores da região devem abandonar suas casas e se dirigirem ao sul da Faixa, para sua "segurança e proteção". Após o ultimato, civis palestinos estão fugindo do norte de Gaza de carro, na carroceria de caminhões e a pé rumo ao sul do país. Muitos, no entanto, não têm para onde ir. Um diplomata que representa um país ocidental no Conselho de Segurança afirmou à repórter Nada Tawfik, da BBC News, que a Rússia não havia consultado nenhum dos outros membros sobre a proposta antes da reunião, o que pegou todos de surpresa. Ele disse ainda duvidar da seriedade da proposta, pois o texto não menciona o Hamas. Para o diplomata, a Rússia “claramente não está sendo séria ou alinhada com a maioria dos membros do Conselho”. O chanceler Mauro Vieira afirmou ainda à imprensa que a proposta russa não atende às necessidades de todos os países do órgão porque "há uma grande divisão do Conselho". "No final da reunião, os demais membros pediram ao Brasil, na qualidade de presidente, que fizesse consultas com todos os lados para chegarmos a uma redação que seja aceitável por todos", disse o ministro brasileiro. Vieira disse ainda que pode haver a convocação de uma nova reunião para aprovar essa redação negociada. "Não sei quanto tempo vai ser preciso para acomodar as posições", disse a jornalistas. Já o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que estava trabalhando com Israel para garantir “áreas seguras” em Gaza. Como atual presidente do Conselho, o governo brasileiro pediu a criação de corredores humanitários na Faixa de Gaza para que as pessoas que desejam deixar o local possam sair pela fronteira com o Egito. Pelas redes sociais, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que conversou por telefone com o Presidente de Israel, Isaac Herzog, e defendeu a proposta para preservar crianças, adolescentes e mulheres e garantir comida, remédio, água e luz na região de conflito. “Não é possível que os inocentes sejam vítimas da insanidade daqueles que querem a guerra", escreveu Lula. A proposta de estabelecimento de um corredor humanitário já foi apoiada por outros países também, como os Estados Unidos, que é aliado histórico de Israel. John Kirby, diretor de comunicações estratégicas do Conselho de Segurança Nacional americano, afirmou na quinta-feira (12/10) que essa "seria a coisa certa a se fazer". “Estamos conversando com autoridades israelenses sobre a necessidade contínua de assistência humanitária ao povo palestino”, disse Kirby. Nesta sexta, o porta-voz americano disse que os EUA não foram consultados sobre a decisão israelense de emitir ordens de retirada para o norte da Faixa de Gaza. “Que eu saiba, não houve consulta prévia antes do IDF [Forças de Defesa de Israel, o Exército israelense] emitir aquele aviso de evacuação”, disse. Segundo diplomatas do governo brasileiro, os EUA têm se mostrado mais abertos a discutir soluções para a crise humanitária em Gaza. As fontes também viram a declaração de Kirby a respeito do desconhecimento da Casa Branca sobre a decisão israelense de esvaziar Gaza como uma tentativa do governo americano de se dissociar da medida. Pouco antes da reunião do Conselho de Segurança desta sexta, o embaixador de Israel nas Nações Unidas, Gilad Erdan, participou de um evento na sede da ONU em que defendeu que "a única situação humanitária que o Conselho deve discutir agora é a situação humanitária dos nossos cidadãos sequestrados que estão detidos em violação horrível do direito internacional". Erdan disse ainda que a ONU deveria elogiá-los pelas "medidas de precaução" com a população civil da Faixa de Gaza. "Enquanto escolas e hospitais em Gaza se tornavam bases de lançamento de foguetes do Hamas, a ONU permanecia em silêncio. Agora que Israel dá um aviso com antecedência à população civil de Gaza para evacuar áreas, porque valorizamos a vida e fazemos tudo o que podemos para minimizar as baixas civis, a ONU prefere condenar essas medidas preventivas e colocar pressão novamente sobre o lado que defende a civilização", afirmou o embaixador. O diplomata afirmou ainda os israelenses acreditam que a ONU "não se preocupa com civis". "O que ouvimos é a indiferença da ONU em relação ao assassinato de 1.300 israelenses. A ONU está deixando claro que não quer que Israel se defenda." Segundo diplomatas, o objetivo do Brasil nas negociações que devem continuar pelas próximas horas é emitir ao menos uma declaração pedindo por uma "desescalada" no confronto entre Israel e Hamas. Algo muito aquém desse resultado seria considerado uma derrota para o mecanismo do Conselho de Segurança, segundo as fontes envolvidas no processo. Antes da reunião do Conselho de Segurança, a delegação brasileira se reuniu com a Arábia Saudita para discutir a preocupação de que o conflito possa se tornar mais violento nos próximos dias. Em uma rápida declaração à imprensa após o término da reunião, o chanceler Mauro Vieira reiterou o apoio brasileiro à criação do corredor humanitário e pediu por uma "pausa humanitária". "O direito internacional humanitário e o direito internacional dos direitos humanos fornecem orientações claras sobre o que precisa ser feito. É urgente uma pausa humanitária, bem como a criação de corredores humanitários para acessar Gaza", disse, em inglês. O chanceler ainda condenou a decisão de Israel de pedir a evacuação de civis do norte da Faixa de Gaza. "Como afirmaram as Nações Unidas, isso pode levar a níveis de miséria sem precedentes para civis inocentes." Segundo Mauro Vieira, todos os 15 membros do Conselho fizeram apelos a Israel para estender o prazo de 24 horas fornecido para a evacuação dos civis para garantir a saída de todos em segurança. No papel de ministro de Relações Exteriores, Vieira também reiterou o apoio do Brasil "a uma solução duradoura de dois Estados, em que Israel e a Palestina vivam lado a lado, em paz e prosperidade, dentro de fronteiras seguras, mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas". Em sua conversa com o presidente de Israel nesta sexta, Lula também reforçou a necessidade da criação do corredor humanitário para ajustar o cruzamento de fronteiras em segurança e o uso do espaço aéreo dos países da região. Segundo o governo, as negociações são essenciais para permitir que 22 brasileiros que estão em Gaza consigam cruzar a fronteira terrestre com o Egito em segurança para serem deslocados para o Brasil. Até o momento, 701 brasileiros foram retirados de Israel após a mobilização de quatro aeronaves da Força Aérea Brasileira para ações de repatriação. Entre as mortes registradas em Israel após o ataque de sábado do Hamas estão três brasileiros: Karla Stelzer Mendes, de 42 anos; Ranani Nidejelski Glazer, de 23 anos; e Bruna Valeanu, de 24. Todos estavam em um evento que era a versão israelense do festival Universo Paralello, criado no Brasil.
2023-10-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2e8r47l8njo
brasil
Por que só o Brasil comemora o Dia das Crianças em 12 de outubro?
Um político notou a comoção provocada pelo tema na época. No ano seguinte, o recém-eleito deputado federal Galdino do Valle Filho (1879-1961) propôs uma lei instituindo, no 12 de outubro, o Dia das Crianças no Brasil. Em 5 de novembro de 1924, o então presidente da República Arthur Bernardes (1875-1955) sancionou o Decreto 4.867. "Artigo único. Fica instituído o dia 12 de outubro para ter lugar, em todo o território nacional, a festa da criança, revogadas as disposições em contrário", diz o texto. E, assim, foi criado o Dia das Crianças. Mas a data custou a pegar. Não havia feriado e o comércio não atentava para ela. Fim do Matérias recomendadas Em 1940, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954), criou um novo decreto. Por pouco, o Dia das Crianças não "mudava" de data. Na lei de Vargas, que "fixava as bases da organização da proteção à maternidade, à infância e à adolescência em todo o País", o artigo 17 do capítulo 6 dizia: "será comemorado em todo o País, a 25 de março de cada ano, o Dia da Criança". "Constituirá objetivo principal dessa comemoração avivar na opinião pública a consciência da necessidade de ser dada a mais vigilante e extensa proteção à maternidade, à infância e à adolescência", dizia o texto. Mas o 25 de março não saiu do papel. Nos anos 1950, uma intensa campanha de marketing criou, de fato, o Dia das Crianças no Brasil. Foi uma promoção conjunta entre duas gigantes da indústria: a fábrica de brinquedos Estrela e a Johnson & Johnson. Em 1955, elas lançaram a Semana do Bebê Robusto. Era uma ação para aumentar as vendas dos produtos, é claro. Mas envolvia a população, pois os clientes eram convidados a enviar fotos de seus filhos - de 6 meses a 2 anos. E os pais do "bebê Johnson do ano" embolsavam um prêmio, enquanto o rebento tinha o rosto e a fofurice estampados em revistas e jornais. Com a adesão de outras empresas, em pouco tempo a Semana do Bebê Robusto se tornou Semana da Criança. Foi quando os fabricantes decidiram concentrar os esforços em uma única data. Recuperaram o decreto de 1924 e, desde então, todo brasileiro sabe: dia 12 de outubro é dia de presentear a criançada. "Essas datas surgem pois o comércio precisa conseguir vender também em épocas de baixa sazonalidade", contextualiza a administradora de empresas Mariana Munis, especialista em marketing e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas. "Do meu ponto de vista, algumas datas comemorativas pegam mais do que outras porque surgiram primeiro. Dia das Crianças, Natal, Dia dos Namorados e Dia das Mães são exemplos bem-sucedidos." "Também acho que o Dia das Crianças desperta sentimentos de nostalgia. Aproxima os pais dos filhos", acrescenta Munis. "É quando os pais, em meio a uma vida tão corrida, querem dar algo para os filhos. Por isso acabou se tornando uma data tão importante para o calendário brasileiro." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo, o Dia das Crianças "não tem peso significativo para o comércio" - ao contrário de datas como Natal, Dia das Mães e Dia dos Namorados. Por outro lado, ele afirma que "como o Dia das Crianças se encontra em um período próximo ao Natal, ele representa para os lojistas um termômetro "de como vai ser o fim do ano". "Se no Dia das Crianças as vendas de brinquedos forem boas, por exemplo, é sinal de o comércio está mais aquecido e isso deve se refletir positivamente no Natal", exemplifica. Solimeo ressalta que, depois da forte crise econômica, o comércio vem se recuperando. E isto já pode ser notado pelas vendas em datas comemorativas. "Acreditamos este ano em um crescimento na casa dos 3% em relação a 2017 no movimento de vendas do varejo paulistano no Dia das Crianças", prevê. "É um ritmo moderado e aproximado ao que o setor tem apresentado: no período acumulado de janeiro a agosto de 2018, as vendas cresceram em média de 2,8%. Importante lembrar que a realização do primeiro turno das eleições no fim de semana anterior ao Dia das Crianças pode diminuir o movimento nas lojas, já que a atenção do consumidor tende a estar voltada para o cenário político e à escolha dos candidatos", lembra ele. Ainda de acordo com os dados da Associação Comercial, nos últimos anos, o Dia das Crianças sentiu quedas bruscas nas vendas - de 6,9% em 2016 e 13% em 2015. "Em 2017 o movimento voltou a crescer, 3%, mas sobre uma base muito fraca", salienta o economista. Ao redor do mundo, outros países também celebram o Dia das Crianças, mas em outras datas. Em 1925, houve uma Conferência Mundial para o Bem-Estar da Criança em Genebra, na Suíça. Ali ficou instituído o dia 1º de junho como o Dia Internacional da Criança - e esta data entrou para o calendário de diversas nações, como Portugal, China, Eslovênia, Polônia e Angola. Já a Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) reconhece outra data. Dia 20 de novembro é considerado o Dia Mundial da Criança porque foi neste dia, em 1959, que foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança. Finlândia, França, Trinidad e Tobago, Reino Unido e Canadá estão entre os países que levam em conta esta data. Mas há muitos exemplos diferentes. A Austrália instituiu como Dia da Criança a última quarta-feira de outubro. Na Argentina, é o segundo domingo de agosto. Na África do Sul, o primeiro sábado de novembro. Países da África Central - Congo, Chade, Camarões e outros - comemoram a data junto ao Natal, 25 de dezembro. O Japão tem uma data para meninas (3 de março) e outra para meninos (5 de maio). Na Hungria, é o último domingo de maio. A santa já era oficialmente padroeira do Brasil desde 1930, após decreto papal. Em 30 de junho de 1980, João Paulo II (1920-2005) se tornava o primeiro papa a pisar em solo brasileiro. O presidente João Figueiredo (1918-1999), último da ditadura militar do Brasil, aproveitou a data para declarar feriado nacional o dia da Padroeira, 12 de outubro. A partir daquele ano, portanto, ficou "declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil", conforme o texto da lei. "O Dia das Crianças, no meu entender, não ofusca a festa de Nossa Senhora Aparecida. As celebrações, entre crianças e a padroeira, são compartilhadas", acredita o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia. "Vez por outra, vemos até a imagem de Nossa Senhora Aparecida estilizada para crianças." Reportagem originalmente publicada em 11 de outubro de 2018
2023-10-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-45783342
brasil
Dia das Crianças: como a ideia de infância mudou ao longo do tempo
Ariès também diz, baseando-se no fato da raridade de túmulos dedicados a crianças no período, embora fosse grande a mortalidade infantil, que essa banalização da morte nos primeiros anos de vida acabou provocando uma total ausência de vínculos de amor familiar. Em outras palavras, era como se não valesse a pena investir tanto esforço e afeto às crianças, diante da incerteza de sua própria sobrevivência. Fim do Matérias recomendadas “O conceito de infância foi atribuído ao historiador Ariès. No entanto, outros pesquisadores, como [o historiador americano] Peter Stearns, em sua obra A Infância [de 2006], questionam tal ideia”, afirma à BBC News Brasil a pedagoga Maria Angela Barbato Carneiro, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ela afirma que, se “o conceito de infância está relacionado ao papel que a criança ocupa na sociedade” e não há registros sobre isso anteriores ao historiador francês, “atribui-se a ele os primeiros estudos sobre ela”. “Na sociedade medieval […] o sentimento da infância não existia — o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas”, diz Ariès, no livro. “O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Até por volta do século 12, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”, pontua Ariès. Ele observa que as crianças eram pintadas com deformações, como se fossem réplicas menores de adultos. E cita uma ilustração que consta de evangeliário feito por volta do ano 1000, no Sacro-Império Romano Germânico. “O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas […]. Ora, o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seu tamanho os distingue dos adultos.” Descrevendo outra obra, Ariès lembra que “o pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São Luís de Leyde, datado do fim do século 12 ou do início do 13, Ismael, pouco depois de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de um homem.” Ele defende que essa ideia da infância como um período próprio da vida havia se perdido com a romanização do mundo, na Idade Média. E só seria recuperada com o fim dessa fase histórica. A partir do século 13, ele nota o reaparecimento de figuras infantis, mas ainda ligadas ao religioso — ou seja, não crianças exatamente, mas anjos, em que “os artistas sublinhariam com afetação os traços redondos e graciosos — e um tanto efeminados — dos meninos mal saídos da infância”. “Já estamos longe dos adultos em escala reduzida […]”, comenta. O historiador notou que a criança só começa a protagonizar retratos já no século 15, mas ainda assim com trajes de adulto. Em efígies funerárias, a situação encontrada pelo pesquisador foi ainda mais tardia: remonta ao século 16 a presença de imagens alusivas a crianças mortas. “Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena”, explica ele. “No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão problemática.” “O sentimento de que se faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte”, afirma. Ele se baseou em relatos que traziam histórias como a de uma mulher, no século 17, que estava nervosa por dar à luz ao sexto filho e era consolada por uma vizinha que lhe lembrava: “antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade”. “As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual”, diz Ariès. Ele conta que muitas famílias optavam, inclusive, por retardar em alguns anos o batismo dos filhos. E isto fazia com que não houvesse a necessidade dos ritos cristãos do enterro. “Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa, no jardim, a criança morta sem batismo”, aponta ele. “[…] será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?”. Havia então quem ainda entendesse as crianças como um ser marginal, que ainda não haviam se inserido completamente na vida. Por esse entendimento, bastava a criança superar esses primeiros anos, cuja sobrevivência era mais difícil, para logo ser considerada parte do mundo dos adultos. Outro ponto curioso abordado pelo historiador francês diz respeito à sexualidade — ou como esta era tratada em relação às crianças. Para isso, ele utiliza como fonte o diário do médico de Henrique 4º (1553-1610), rei da França, especialmente as anotações sobre fatos corriqueiros do filho do monarca, o futuro rei Luís 13 (1601-1643). Quando o menino tinha menos de 1 ano de vida, o médico escreveu: “Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos”. E, mais tarde, relata que Luís passa a exibir seu órgão sexual sempre que avista um criado. “Muito alegre, ele manda que todos lhe beijem o pênis”, relatou o médico, quando o herdeiro tinha 1 ano de idade. Alguns meses depois, quando ficou arranjado seu futuro casamento com a infanta da Espanha, ele passaria a colocar a mão em seu pênis sempre que os adultos lhe perguntavam “onde está o benzinho da infanta?”. A julgar pelos relatos, todas essas brincadeiras de cunho sexual eram encaradas com naturalidade, nunca com reprovação. Aos quatro anos, conforme o diário, ele já havia aprendido, na teoria, como ocorria o ato sexual. Mas Ariès nota que a partir do século 16 é possível verificar um movimento de inclusão da criança, sem respeitar suas diferenças, ao mundo dos adultos. Primeiro, como um divertimento. O filósofo Montaigne (1533-1592) escreveu, sobre o gosto pelo pitoresco e a graça dos pequeninos, que com eles era possível se divertir “para nosso passatempo, assim como nos divertimos com os macacos”. “Esse sentimento podia muito bem se acomodar à indiferença com relação à personalidade essencial e definitiva da criança, a alma imortal”, diz Ariès. O historiador nota que a partir do século 17 a criança começa a protagonizar retratos de família. Na mesma época, a infância passa a ser entendida como uma fase da vida. Essa definição vai ficando mais intensa à medida que a sociedade moderna se organiza. As rotinas de trabalho, dentro do contexto industrial, acabam por criar uma divisão mais clara entre o espaço das crianças — ainda muito novas, impossibilitadas ao trabalho — e o espaço dos adultos — no qual, claro, estavam incluídas as crianças um pouco mais velhas, que também trabalhavam. E a educação escolar começa a tomar a forma como a conhecemos — são nas escolas que as crianças têm seu espaço e, cada vez mais, passam a ser tratadas com o respeito devido à infância. “Não saberia dizer se o conceito de infância acompanhou o próprio conceito de ensino como entendemos hoje mas, de fato, sempre foi um processo que envolveu ensino e aprendizagem”, comenta a professora Carneiro. “A escolarização assume um papel importante a partir da Reforma Protestante, quando surgem as escolas da igreja onde poderiam aprender a ler a Bíblia, porque antes eram privilégio da elite e da igreja.” Ela lembra, contudo, que as crianças, “de fato tiveram seu lugar” no mundo a partir da Declaração dos Direitos da Criança, documento criado pela Organização nas Nações Unidas (ONU) em 1959. “É algo bastante recente e, mesmo assim, pouco respeitado”, diz. Doutor em educação, arte e história da cultura e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ítalo Francisco Curcio concorda com a ideia de que “o conceito de infância, como assimilamos hoje”, tenha surgido com a modernidade, “não por coincidência, paralelamente ao novo modelo de produção, surgido com a chamada primeira Revolução Industrial”. “Até então […], o ser humano era visto e entendido socialmente num modelo de dois segmentos, o do ‘pré-adulto’, ou criança; e o do adulto”, diz ele, à BBC News Brasil. “Mais precisamos, o segmento antes da capacidade de procriação e o segmento a partir da capacidade de procriação”. Curcio sintetiza: embora o conceito de infância existisse, de forma subliminar, desde a origem da humanidade, “somente a partir do fim do século 17 ele é efetivamente assimilado como uma fase do desenvolvimento da pessoa humana”. “Mais precisamente, a partir do século 18, especialmente no meio cristão, passou-se a ver o ser humano, nos seus primeiros 10 anos de vida, como um tempo de crescimento não somente físico mas também intelectual, cultural e espiritual”, afirma ele. A historiadora da educação e psicóloga Maria Cristina Soares de Gouvêa, professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também situa a era moderna como o marco do surgimento da ideia de infância. “Veio mais ou menos com as mudanças advindas do que a gente chama de modernidade”, diz ela, à BBC News Brasil. Isto porque a fundação do Estado moderno implicou na “necessidade de construção de uma ordem social ligada ao Estado, em que sujeitos não obedecessem mais apenas a disputas entre nobres”. Segundo ela, como era preciso desenvolver indivíduos “capazes de controlar a si mesmos” dentro dos princípios da “civilidade”, o momento para essa formação passou a ser a infância. “Na virada do século 16 surge uma série de tratados, manuais de conduta, de educação moral, tudo ensinando como educar os filhos ainda no ambiente doméstico. Ao mesmo tempo, se expandem as escolas, ainda restritas às elites”, afirma a psicóloga. “A escola dá nova visibilidade à criança, cuja formação passa a ser entendida como função do Estado.” É quando gradualmente começa a existir um momento determinado em que a criança “não é produtiva” porque “todo o investimento é voltado para sua escolarização”. “A criança, inicialmente de 8 a 12 anos, ganha uma nova função social: a função de aluno inserido na escola. Este é o modelo de infância que se constitui com a decadência do modelo da sociedade medieval”, diz ela. Gouvêa lembra que o principal mérito da obra de Ariès está no papel de fundamentar o conceito de infância. “Ele entendia que havia [no passado] uma indiferença em relação às crianças, um sentimento de indistinção entre infância e idade adulta. E uma certa indiferença afetiva, ligada à alta mortalidade e às condições de vida”, comenta ela. “Para ele, as crianças eram tratadas como pequenos adultos.” Gouvêa acrescenta que “as pesquisas dele foram muito importantes porque ele foi o primeiro a trazer visibilidade para a história e para as ciências sociais acerca da questão da infância”. “A infância até então era entendida como tema restrito à psicologia e à pedagogia ou à pediatria. Ele trouxe a ideia da infância e o sujeito criança para o interior do campo história. Ele historicizou a noção contemporânea que temos da infância.” Se o pioneirismo de Ariès é amplamente reconhecido, também não faltam críticas ao seu modo de teorizar a questão. A psicóloga Gouvêa lembra que a pesquisa do francês foi “muito original” na utilização de lápides, pinturas de época, cartas e tudo o mais que ele foi levantando, “já que a criança não aparecia claramente nos discursos oficiais, então ele foi procurando traços do infantil nas produções culturais”. Por outro lado, isto limitou seu alcance. “Ao pesquisar pinturas, ele só teve acesso a crianças nobres da Idade Média e não a criança concreta. E essa criança nobre era retratada como um pequeno adulto porque, historiadores da época vão dizer, naquela época a pintura não retratava o sujeito, mas a posição social”, diz a professora. “Era preciso então retratar o herdeiro do trono, por exemplo, daí essa posição do adulto.” Outra hipótese aventada por ela é de que, naquele tempo em que as telas precisavam de uma observação do artista, “a criança não apareceria porque era difícil retratá-las, difícil que ela ficasse parada por horas”. “E pesquisas posteriores já mostraram que, mesmo com a alta taxa de mortalidade, isso não significaria que os pais tratassem os filhos com indiferença. Há cartas em que eles expressavam a tristeza pela perda dos filhos, o vínculo afetivo, etc.”, diz Gouvêa. Carneiro lembra ainda que a “ausência de quaisquer tipos de representação referente às crianças” era menos por um entendimento do papel delas e mais “porque elas viviam pouco, morriam cedo”. “Imagine os povos nômades carregando os pequenos”, exemplifica. “A sobrevivência era difícil para os adultos devido às adversidades, imagine para as crianças.” O historiador Stearns, por exemplo, defende que a parca documentação sobre crianças do passado é decorrente do fato de que as descrições das mesmas dependiam do ponto de vista dos adultos. “Na minha opinião, a infância sempre existiu, mas não temos dados suficientes para estudá-la melhor nos diferentes contextos e épocas”, completa a professora. “Se por um lado, foram poucos os dados encontrados sobre as crianças, em algumas sociedades elas trabalhavam ajudando os adultos e participando de ritos de iniciação”, comenta a professora Carneiro. Ela ressalta, contudo, que o Ariès precisa ser entendido “dentro de uma sociedade ocidental europeia” e, deste ponto de vista, considerando a época analisada, “ele está correto”. “Não podemos falar o mesmo de sociedades sul-africanas ou indígenas sul-americanos, porque as realidades eram outras”, afirma Carneiro. A psicóloga Gouvêa acrescenta ainda que é preciso ter em mente a diferença entre criança e infância. O primeiro termo é carregado de universalidade: significa sujeito de pouca idade. “Já infância é uma construção social que age sobre esses sujeitos. Ou seja: a criança é criada de acordo com o modelo social de infância de sua sociedade, de sua cultura”, contextualiza. Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, da combinação de um prefixo de negação com um substantivo que significa “falante”. “Infância poderia ser entendia literalmente como ‘alguém sem fala’, ou que não sabe falar. Sem confundir, porém, com o significado de mudo. Entende-se por mudo quem não consegue falar, o que é diferente de não saber falar”, define Curcio.
2023-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx1p7p9753o
brasil
Conflito Israel-Hamas: quem são as vítimas internacionais
A BBC fez uma lista das informações divulgadas sobre essas pessoas desde o início dos ataques: Nove cidadãos norte-americanos foram mortos, disse um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional do país. “Expressamos as nossas mais profundas condolências às vítimas e às famílias de todos os afetados e desejamos aos feridos uma rápida recuperação”, disseram. “Continuamos monitorando a situação de perto e permanecendo em contato com nossos parceiros israelenses, especialmente com as autoridades locais”. Fim do Matérias recomendadas As identidades dos mortos ainda não foram confirmadas, enquanto outros ainda estão desaparecidos. Entre eles, está Hersh Golberg-Polin, um cidadão com cidadania americano-israelense, de quem não se tem notícias desde a manhã de sábado (7/10). De acordo com o jornal Jerusalem Post, ele se mudou da Califórnia, nos EUA, para Israel com sua família aos 7 anos de idade e terminou o serviço militar obrigatório em abril de 2023. Em entrevista à CBS, o embaixador de Israel nos Estados Unidos, Michael Herzog, disse entender que os americanos estavam entre os reféns feitos pelo Hamas, embora não haja um número claro de quantos. A Global Affairs Canada, uma agência do governo canadense, disse estar ciente de relatos de que um cidadão do país morreu e outros dois estão desaparecidos. Ben Mizrachi, da Colúmbia Britânica, está entre eles, informou a CTV News. Mizrachi se formou na King David High School de Vancouver há cinco anos e participava de um evento no sul de Israel, disse a escola. A agência informou que há 1.419 canadenses registrados em Israel e 492 nos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza – mas ponderou que esse registro era voluntário e provavelmente representa um número incompleto de seus cidadãos. O primeiro-ministro britânico, Justin Trudeau, conversou com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para expressar suas “profundas condolências”. O Canadá incentivou seus cidadãos a se registrarem no Global Affairs Canada e disponibilizou um número de contato de emergência. Um funcionário disse à BBC que mais de 10 cidadãos britânicos estão mortos ou desaparecidos. Nathanel Young, um britânico que serve nas forças armadas israelenses, foi confirmado como morto. Dois outros cidadãos britânicos - Jake Marlowe e Dan Darlington - estão desaparecidos. Bernard Cowan, de Glasgow, na Escócia, também foi identificado por familiares nas redes sociais como tendo sido morto no ataque. Ele cresceu na região de Glasgow e se estabeleceu em Israel, onde morava com sua esposa e três filhos. A escola do norte de Londres frequentada por Young, de 20 anos, está “devastada” pela morte dele, disse o diretor. Ele frequentou a mesma escola – a JFS Jewish School, no norte de Londres – que Marlowe, de 26 anos. O primeiro-ministro Rishi Sunak disse ter garantido ao seu homólogo israelense, Benjamin Netanyahu, o “apoio inabalável do Reino Unido enquanto Israel se defende”. Dois franceses foram mortos nos ataques do Hamas, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, e outros 14 estão desaparecidos. Representante dos cidadãos franceses no exterior, Meyer Habib, disse que um dos reféns feitos pelo Hamas seria um homem de 26 anos de Bordéus que estava no festival Supernova no sul de Israel. Ele contou que o pai deste homem disse que o filho dele, Avidan, estava sendo mantido como refém pelo Hamas. A Tailândia disse que 18 dos seus cidadãos foram mortos, de acordo com os últimos números. Ao menos 11 cidadãos tailandeses foram feitos reféns, disse o Ministério das Relações Exteriores. O Ministério das Relações Exteriores da Tailândia disse que os aviões da Força Aérea estavam de prontidão para levar seus cidadãos para casa. Há cerca de 30 mil tailandeses em Israel que trabalham na agricultura, muitos deles perto da fronteira com Gaza. O Ministério das Relações Exteriores diz que 3.226 querem ser repatriados de Israel. O Nepal disse que 10 dos seus cidadãos foram mortos. O país confirmou no domingo que se tratavam de estudantes que foram para Israel trabalhar e adquirir conhecimento numa empresa agrícola. Outros 265 estudantes do Nepal também trabalham em diversas fazendas, com outros 4.500 nepaleses que atuam como agricultores. Acredita-se que a cidadã germano-israelense Shani Louk tenha sido retirada do festival Supernova, mas ainda não está claro se ela está viva. “Minha filha, Shani Nicole Luke, cidadã alemã, foi sequestrada junto com um grupo de turistas”, disse a mãe dela, Ricarda Louk, em um vídeo após o ataque. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha também disse que tinha de assumir que os alemães estavam entre os raptados pelo Hamas e que acreditava que essas pessoas também eram cidadãos israelitas. O Ministério das Relações Exteriores da Áustria afirma que três israelenses austríacos que estavam no sul de Israel podem ter sido feitos reféns pelo Hamas, mas a situação ainda não está clara e não há confirmação. Um casal italiano que vivia no Kibutz Be'eri está entre os desaparecidos no sul de Israel, disse o ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani. O marido e a mulher, que têm dupla cidadania, não atenderam aos telefonemas da família, disse ele à TV italiana. "Esperamos encontrá-los, mas no momento não temos mais notícias. Provavelmente foram feitos reféns", disse ele. O Itamaraty confirmou nesta terça-feira (10/10) a morte do gaúcho Ranani Nidejelski Glazer, de 23 anos, e da carioca Bruna Valeanu, de 24. Outro brasileiro ficou ferido no ataque e ainda há um desaparecido. Bruna morava na cidade de Petah Tikva, em Israel. Ela tinha se mudado para o país em 2015 e estudava comunicação social e sociologia em uma universidade em Tel Aviv. O primeiro-ministro do país, Hun Manet, confirmou que um estudante foi morto. Uma chinesa-israelense nascida em Pequim chamada Noa Argamani está entre as pessoas retiradas do festival Supernova, de acordo com a Embaixada de Israel na China. A embaixada publicou um vídeo do que afirma ser o sequestro. O governo do país disse que dois dos seus cidadãos estão desaparecidos, sem dar mais detalhes. Há relatos na imprensa nacional de que um casal foi morto. A ministra das Relações Exteriores, Alicia Barcena, escreveu nas redes sociais que dois mexicanos foram feitos reféns, mas não deu mais detalhes. Kim Danti, uma mulher irlandesa-israelense de 22 anos, está desaparecida. A RTÉ, emissora irlandesa, informa que ela foi vista pela última vez no festival de música. Taoiseach Leo Varadkar disse que a Embaixada da Irlanda no país estava cuidando do assunto. A embaixada da Tanzânia em Israel está tentando localizar dois estudantes tanzanianos que estavam fazendo estágio em administração. O Embaixador Alex Kallua disse que a equipe dele tem mantido contato com aproximadamente 350 tanzanianos em todo o país - a maioria é estudante.
2023-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp64zkr9gyjo
brasil
Direita, esquerda: como conflito Hamas-Israel afeta a polarização no Brasil?
E a mais de 16 mil quilômetros dali, no Brasil, esse conflito alimentou a já conhecida polarização entre a esquerda e a direita no país. "Pelo respeito e admiração ao povo de Israel repudio o ataque terrorista feito pelo Hamas, grupo terrorista que parabenizou Luís Inácio Lula da Silva quando o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) o anunciou vencedor das eleições de 2022", disse Bolsonaro. O ex-juiz da Operação Lava Jato e senador Sergio Moro (União Brasil-PR) seguiu a mesma linha e criticou uma nota divulgada pelo governo federal que condenou os ataques do grupo militante, mas não citou o nome do Hamas. Fim do Matérias recomendadas Em suas redes sociais, porém, Lula disse, no sábado, ter lamentado as mortes e classificou os ataques feitos pelo Hamas como "terroristas". "Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar disso, ainda na esquerda, influenciadores digitais e políticos como o ministro das Comunicações, Paulo Pimenta, deram declarações vistas por oposicionistas como demonstrações de apoio ao Hamas. "A ocupação prolongada dos territórios Palestinos e a incapacidade das fóruns internacionais em fazer cumprir as resoluções da ONU são o pano de fundo para compreendermos esse novo capítulo de um processo de violências e privações que jamais poderiam ter sido toleradas", disse o ministro em suas redes sociais. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que, nos últimos anos, houve, em linhas gerais, uma associação entre a esquerda brasileira e a causa palestina de um lado e entre a direita brasileira e a causa judaico-israelense de outro. Eles explicam que essa vinculação no Brasil tem nuances e não é absoluta, mas reflete, em algum grau, uma tendência internacional. Eles dizem, porém, que essa ligação também tem raízes históricas ligadas tanto à trajetória do conflito israelo-palestino quanto à história recente do Brasil. Se hoje a direita brasileira é próxima a Israel, a história mostra que isso nem sempre foi assim. É o que sustenta o professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, Michel Gherman. "Nem sempre essa ligação entre judaísmo e direita existiu no Brasil e no mundo. No final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, o que era muito comum era uma forte ligação entre a comunidade judaica e o socialismo. O primeiro partido internacionalista de esquerda foi fundado por judeus da Polônia, Letônia, Estônia e Lituânia. Havia uma visão de que a pauta judaica de emancipação e liberdade também era uma causa cara ao socialismo", conta Gherman à BBC News Brasil. "Os principais pensadores socialistas tratavam o antissemitismo como uma pauta reacionária e contrarrevolucionária. Karl Marx falava sobre o antissemitismo, da mesma maneira que (Leon) Trotsky e Lênin", complementa Gherman. O professor disse ainda que essa vinculação era tão grande que o Estado de Israel começa, na década de 1940, sob forte influência socialista. "Não podemos deixar de lembrar que Israel nasceu e implementou experiências socialistas como as moradias coletivas dos kibutz e também recebeu armamentos da hoje extinta União Soviética para se defender dos países árabes contrários à criação do Estado de Israel", disse Gherman. No Brasil, a relação entre a comunidade judaica e a esquerda também foi relevante, afirmam historiadores. "A esquerda no Brasil teve militantes históricos dentro da comunidade judaica. Um exemplo dessa ligação é o fato de que um dos maiores símbolos da luta contra a ditadura foi a morte, exatamente, de um judeu: Vladimir Herzog", diz a historiadora Monique Sochaczewski, do IDP. O Estado de Israel foi criado em 1948 pela Organização das Nações Unidas, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, pelo menos seis milhões de judeus foram mortos pelo regime nazista. O drama vivido pelo povo judeu ajudou a viabilizar o apoio necessário para a criação de Israel. Por outro lado, populações árabes que viviam na região conhecida como Palestina onde foi criado o Estado de Israel ficaram insatisfeitas com a medida, o que resultou em uma série de conflitos nas décadas que se seguiram. Um deles em particular é apontado pelos especialistas como o momento de "virada" na forma como a esquerda passa a ver a questão judaica: a Guerra dos Seis Dias. Entre os dias 5 e 10 de junho, Israel lançou um ataque surpresa contra Egito, Síria e Jordânia e aumentou seu território. Do Egito foi incorporada a Península do Sinai. Da Síria, as Colinas de Golã. Da Jordânia, foi incorporada a Cisjordânia. Estimativas apontam que meio milhão de palestinos que viviam nessas áreas viraram refugiados. "A partir de 1967, com a tomada de territórios ocupados por palestinos, a esquerda passa a ver o conflito de outra forma. A partir dali, a questão palestina passa a ser vista com uma causa entre um opressor, Israel, e um oprimido, o povo palestino. O conflito entre opressor e oprimido está no cerne da linha de raciocínio", diz o cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Guilherme Casarões. "É nesse momento que a esquerda começa a ver aqueles judeus vítimas do racismo e da discriminação na Europa atuando como colonizadores dos territórios palestinos ocupados. Isso acaba gerando uma aproximação maior entre os movimentos de esquerda e a causa palestina ao mesmo tempo em que há o afastamento da esquerda com a causa judaica ou com o sionismo, que é o movimento pela criação e manutenção do Estado de Israel", diz Michel Gherman. Casarões explica ainda que, na década de 1960, Israel já estava mais alinhada com os Estados Unidos enquanto os países árabes rivais eram militarmente equipados e financeiramente auxiliados pela então União Soviética. "Estavam reproduzindo ali o tabuleiro de interesses da Guerra Fria", disse o professor. Desde então, as condições de vida da população palestina vivendo nos territórios ocupados foram denunciadas por organizações que atuam na defesa dos direitos humanos. Em 2022, por exemplo, um relatório produzido por uma comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU disse que a ocupação das áreas habitadas por palestinos seria a causa dos conflitos na região. Israel rebateu o documento classificando-o como "parcial e tendencioso" e baseado em "informações parciais e segmentadas". Esse distanciamento de parte da esquerda mundial em relação à causa judaica e a aproximação com a causa palestina também se refletiu no Brasil, dizem os especialistas. "O Brasil acabou reproduzindo aqui, mesmo com suas particularidades, a divisão ideológica que havia fora do país. Isso acabou levando a uma aproximação de organizações e partidos de esquerda com a causa palestina", disse Michel Gherman. Guilherme Casarões diz que essa identificação da esquerda brasileira com a causa palestina continuou ao longo dos anos e influenciou partidos como o PT, que há décadas mantém uma postura de apoio ao povo palestino. Casarões diz, no entanto, que esse apoio não implica em aceitação de atos como os cometidos pelo Hamas nos últimos dias. "Em que pese a simpatia da esquerda com o povo palestino, as manifestações dos governos do PT sobre o conflito sempre foram equilibradas. O governo brasileiro, tanto sob Dilma (Rousseff) ou Lula, sempre defenderam a chamada solução de dois Estados, em que Israel e Palestina possam coexistir pacificamente", diz o professor. "A partir dos anos 1980 e 1990, começa a haver uma instrumentalização de alguns símbolos judeus por grupos evangélicos brasileiros. A gente vê isso, por exemplo, em pastores como Silas Malafaia (da Igreja Assembleia de Deus de Madureira) ou Edir Macedo (da Igreja Universal do Reino de Deus). No segundo caso, ele passa até a usar indumentárias semelhantes à de alguns rabinos", disse Michel Gherman. "A via de entrada dessa conexão entre judeus e a direita brasileira é uma leitura da Bíblia feita por alguns grupos evangélicos segundo a qual Israel precisa ser protegido para a segunda vinda de Jesus à terra. É uma reprodução de um movimento que começou nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 e chegou aqui pelas conexões entre essas denominações neopentecostais desses dois países", complementa Guilherme Casarões. Os especialistas afirmam que, à medida em que o eleitorado evangélico foi ganhando peso no jogo político brasileiro e foi se alinhando à direita, teria havido uma espécie de "acoplamento" da direita com a defesa do Estado de Israel por um lado. Por outro, haveria uma antipatia desse eleitorado com a causa palestina, identificada com a esquerda no Brasil. Essa associação ganhou contornos mais intensos nos últimos anos. Nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, Jair Bolsonaro era visto, frequentemente, em cultos evangélicos decorados com bandeiras de Israel e símbolos judaicos. Já no governo, ele prometeu, embora não tenha cumprido, transferir a sede da Embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. A promessa foi um aceno ao eleitorado evangélico que votou em peso em sua candidatura. "Há a construção dessa ideia de um judeu imaginário. E esse judeu é branco, heterossexual, armamentista e de direita. Essa imagem vai ser muito usada pela direita brasileira", disse Gherman. Casarões avalia que essa aparente divisão entre esquerda e causa palestina de um lado, direita e defesa do Estado de Israel de outro, não seria uma mera "instrumentalização" do conflito no Oriente Médio pelos atores políticos brasileiros. "Ela reflete duas visões de mundo distintas. De um lado, temos o eleitorado evangélico que enxerga em Israel um ator de uma suposta luta do bem contra o mal. Do outro nós temos a esquerda que vê na causa palestina como uma disputa entre um opressor, Israel, e um oprimido, o povo palestino", explica. Para Monique Sochaczewski, essa polarização entre esquerda e direita no Brasil dificulta a compreensão sobre um dos conflitos mais complexos da história recente. "Acho que falta um pouco de conhecimento sobre a realidade local. Quando a direita se alinha a Israel, ela parece ignorar, por exemplo, que lá o aborto é permitido, algo impensável para a direita evangélica brasileira", avalia. Michel Gherman também avalia que a polarização no Brasil atrapalha a análise. "Pela esquerda, a gente vê um movimento fundamentalista islâmico como o Hamas, que produziu a matança que produziu, sendo visto apenas como uma força anticolonial e, portanto, respeitada por parte da esquerda", avalia.
2023-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz97v20dv4eo
brasil
Gasolina, dólar e inflação: os possíveis impactos do conflito Hamas-Israel no Brasil e no mundo
O cenário de instabilidade internacional também pode manter os juros altos nos Estados Unidos por mais tempo – o que tem efeito negativo para o câmbio e investimentos em países emergentes. Tudo isso adiciona pressão para um 2024 que já deve ser desafiador, em meio aos possíveis efeitos do El Niño sobre a próxima safra agrícola brasileira e às incertezas nas contas públicas nacionais. Fim do Matérias recomendadas Leia também: "Qualquer conflito hoje afeta o mundo inteiro, principalmente quando mexe no preço do barril de petróleo", diz André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). "Uma pressão em cima desse mercado aumenta a probabilidade de termos algum aumento do diesel e da gasolina daqui até o final do ano", acrescenta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Braz observa que a gasolina compromete cerca de 5% do orçamento das famílias brasileiras. "Isso significa que, para cada 1% de aumento da gasolina, o impacto na inflação ao consumidor é de 0,05 ponto percentual. Então um aumento de 5% na bomba, por exemplo, representaria um aumento na inflação de 0,25 ponto. Isso é inflação na veia", afirma. O IPCA-15, prévia da inflação oficial brasileira, chegou a 5% no acumulado de 12 meses até setembro, registrando o segundo mês de aceleração, após ir a uma mínima de 3,19% em julho. No mês passado, a alta de preços já havia sido puxada pela gasolina, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Nesta segunda-feira, o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, afirmou que o maior efeito da guerra deve ser sobre o diesel, mas que a empresa deve mitigar a volatilidade através de sua nova política de preços, que não segue mais automaticamente a paridade internacional. "Isso vai mostrar como está dando certo a política atual de preços da Petrobras, ela deve mitigar esses efeitos", disse Prates em evento no Rio de Janeiro. Braz avalia, porém, que a empresa pode até adiar o reajuste, mas não conseguirá evitá-lo, caso o preço do petróleo se consolide em patamar mais elevado, em torno de U$ 95 por barril. Esse, segundo ele, parece ser o cenário mais provável, diante da guerra e das restrições de oferta por parte da Rússia e da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Braz destaca, porém, que a alta do petróleo não afeta apenas os combustíveis, mas também uma série de outro derivados do óleo, como adubos, fertilizantes, químicos, querosene de aviação e resinas plásticas utilizadas como insumo pelas indústrias. "O aumento dos combustíveis é um efeito mais rápido, mas à medida que o preço do petróleo se consolide num novo patamar tudo isso acaba subindo de preço e o destino é a inflação ao consumidor, à medida em que a indústria vê seus insumos mais caros", diz Braz. "Você já começa a contratar uma pressão inflacionária que vai ser mais difícil de ser combatida em 2024, porque ela vem de uma pressão de custo, não de demanda", observa. Isso porque o principal instrumento do Banco Central para o controle da inflação é a taxa básica de juros (a Selic), que é usada como uma forma de controlar a oferta de crédito para empresas e famílias, esfriando ou aquecendo a economia. Mas a taxa afeta a atividade pelo lado da demanda – o investimento no caso das empresas e o consumo, em se tratando das famílias –, tendo pouco efeito quando a inflação vem de uma pressão de oferta. Braz observa que essa pressão para a inflação em 2024 já começa a se formar em diversos segmentos – como os alimentos, que pesam bastante para as famílias de menor renda. "Há dúvidas sobre como o El Niño vai impactar a agricultura no ano que vem, então já temos essa pressão inflacionária no radar e agora vão se somando outras." Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, se o conflito se mantiver restrito aos territórios de Israel e palestinos (Faixa de Gaza e Cisjordânia), o efeito da guerra deverá se restringir à volatilidade do petróleo, com impacto menor para a economia mundial do que a guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022. Vale observa que um risco maior nesse cenário será se a Opep decidir fazer algum movimento semelhante àquele observado na Guerra dos Seis Dias (1967) ou na Guerra do Yom Kippur (1973), quando os países árabes se uniram contra o apoio americano e europeu a Israel e impuseram corte na produção e embargo às exportações, elevando os preços do petróleo a recordes para aquela época. Mas ele avalia que esse não é hoje o cenário mais provável. Para o ano que vem, no entanto, Vale observa que o cenário de oferta restrita, estoques baixos e poucos investimentos novos no setor de petróleo se soma à questão política da eleição nos Estados Unidos. "Aí pode haver interesse, tanto da Arábia Saudita, como da Rússia, de tentar prejudicar a eleição de [Joe] Biden ano que vem, forçando um preço de petróleo mais alto e trazendo repercussão de preço de combustível, inflação, taxa de juros e crescimento da economia americana, que prejudicaria o atual presidente na sua tentativa de reeleição", avalia o analista. O economista acrescenta que um cenário de entrada de atores como o Irã, Hezbollah e Arábia Saudita no conflito em Israel poderia mudar a escala da guerra. Mas ele também considera que esse não é o quadro mais verossímil neste momento. Para as commodities agrícolas – principal item da pauta de exportação brasileira –, Vale acredita que o tamanho da safra no ano que vem e o desempenho das economias dos EUA e China são fatores mais importantes do que o conflito no Oriente Médio. "No caso americano, a grande complicação é uma economia que não para de crescer, o que pressiona a taxa de juros a ficar elevada por mais tempo e pode levar a um processo recessivo no ano que vem. É alta a probabilidade de isso acontecer", diz Vale. Isso geraria uma turbulência na economia mundial muito mais complexa, diz o economista, num cenário em que os EUA enfrentam um quadro fiscal desafiador e uma polarização política agressiva, que coloca indefinição para uma resposta mais coordenada a uma eventual situação de crise. "Tudo isso pode trazer mais impacto para a economia mundial e brasileira no ano que vem do que estamos vendo agora em Israel", conclui o economista.
2023-10-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye1w539pnzo
brasil
Como variação do dólar afeta renda dos catadores de recicláveis
Enquanto alguns setores do país comemoram a queda do dólar no primeiro semestre deste ano, o que diminui o valor das viagens internacionais e da importação de produtos, o catador Elias Pereira, de 53 anos, viu a renda familiar dele cair drasticamente. Por conta principalmente da valorização do real frente à moeda americana nos primeiros meses do ano, cada quilo de papel que ele vendia por R$ 1 em 2021, hoje vale R$ 0,15. A latinha caiu de R$ 8,50 para R$ 5 e hoje ele relata que está desesperado para alimentar "as oito bocas que eu tenho dentro de casa". Hoje, Elias precisa transportar 8,8 toneladas de papel para arrecadar o equivalente ao valor de um salário mínimo: R$ 1.320. O repórter Felipe Souza foi até Guarulhos, na Grande São Paulo, e acompanhou o cotidiano do catador e conversou com uma economista para entender o fenômeno. Fim do Matérias recomendadas
2023-10-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14v529v9gxo
brasil
Metrô é público em Londres e privado em Buenos Aires: como é o sistema de transporte em outros países
São Paulo viveu um dia de caos na terça-feira (03/10) com uma greve de 24 horas de trabalhadores do Metrô de São Paulo e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) para forçar o governo estadual a recuar em projetos de privatização. Já o governo de São Paulo, comandado por Tarcísio de Freitas (Republicanos) chamou a greve de "ilegal e abusiva" em nota. Esse tipo de embate — sobre privatização ou não dos sistemas de transporte — é comum em outras cidades e países. Mas como funciona a operação nos principais metrôs do mundo? A maior parte deles — como o metrô de Nova York, nos Estados Unidos — é gerenciada pelo poder público. Fim do Matérias recomendadas Cidades onde a iniciativa privada cuida da maior parte do sistema são raras. Dois exemplos são o metrô de Buenos Aires, na Argentina, e o do Rio de Janeiro. No entanto, vale ressaltar que, em muitos locais, o poder público usou a iniciativa privada para projetos de expansão, no que é conhecido no Brasil como PPPs (Parcerias Público-Privadas) - este é o caso da Linha 4-amarela do metrô de São Paulo. Confira a seguir o modelo de gestão de alguns dos principais metrôs do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Berlim, Alemanha Público. O U-Bahn, o metrô de Berlim, é controlado pela estatal Berliner Verkehrsbetriebe. Já o S-Bahn, o sistema de trens rápidos da capital alemã, é gerido pela Deutsche Bahn AG, cujo principal acionista é o governo. Buenos Aires, Argentina Privado. O metrô de Buenos Aires é gerido pela Metrovías, uma empresa privada do grupo de infraestrutura Roggio. A privatização ocorreu em 1994 durante o governo do ex-presidente argentino Carlos Ménem (1989-1999). Cidade do México, México O metrô da Cidade do México, inaugurado em 1969, é operado pelo Sistema de Transporte Colectivo (CTS), uma autarquia que no país é chamada de "Organização Pública Descentralizada". Segundo o governo mexicano, essas entidades "paraestatais" são responsáveis por se encarregar de "uma área estratégica, uma área prioritária, para prestar um serviço público ou social". Chicago, Estados Unidos Público. O Chicago "L" é o sistema de trânsito rápido que atende a cidade de Chicago e alguns de seus subúrbios vizinhos, no estado americano de Illinois. Ele é gerido pela Chicago Transit Authority, uma agência governamental independente. É o terceiro sistema de trânsito rápido mais movimentado dos Estados Unidos, depois do metrô de Nova York e de Washington DC. Londres, Inglaterra Público. A Transport for London (TfL), uma empresa pública criada em 2000, é a responsável pela gestão do metrô de Londres. Já outros meios de transporte público na capital britânica, como ônibus, metrô de superfície (overground) e bonde são geridos por operadores privados contratrados pela TfL. Paris, França Público. A gestão do metrô de Paris, um dos mais movimentados do mundo, é feito pela RATP, uma empresa estatal. Nova York, Estados Unidos Público. O sistema central de metrô de Nova York é gerido pela New York City Transit Authority, uma corporação de utilidade pública ("public-benefit corporation", em inglês). Essas corporações operam como se fossem empresas privadas, com um conselho de administração nomeado por funcionários eleitos. Também guardam semelhanças com agências governamentais, mas estão isentas de muitas regulamentações estaduais e locais. Assim como em São Paulo, existem PPPs, como o AirTrain JFK, que liga o aeroporto internacional John F. Kennedy ao sistema de metrôs da MTA, operado pela canadense Bombardier. Nova Déli, Índia Público. A estatal Delhi Metro Rail Corporation opera o sistema central do metrô da capital indiana. Ali também houve PPP para a construção da Airport Express Line, que conecta o Aeroporto Internacional Indira Gandhi ao centro da cidade. Moscou, Rússia Público. O metrô de Moscou, inaugurado em 1935, foi o primeiro sistema ferroviário subterrâneo da antiga União Soviética (URSS) e é gerido por uma empresa estatal. Pequim, China Público. Operado pelo governo municipal de Pequim e com quase 500 estações, o metrô da capital chinesa é o mais movimentado do mundo, com 4 bilhões de viagens por ano. Rio de Janeiro, Brasil São Paulo, Brasil Público. O metrô de São paulo é operado pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (CMPS), uma empresa de capital misto (a maior parte de suas ações pertencem ao governo de São Paulo), e sua ampliação vem acontecendo por meio de parcerias. A linha 4, amarela, foi a primeira do sistema do país concedida a um consórcio da iniciativa privada. Santiago, Chile Público. Um dos sistemas mais modernos da América Latina e o segundo maior da região, atrás apenas do da Cidade do México, o metrô do Chile é operado pela estatal Metro S.A. Tóquio, Japão Público. O metrô de Tóquio é operado por duas empresas, a Tokyo Metro (controlada pelo governo federal e a prefeitura da capital japonesa) e a Toei Subway, administrada pelo Tokyo Metropolitan Bureau of Transportation, uma agência do governo metropolitano de Tóquio. "[A greve] só reforça a convicção de que estamos indo na direção certa, que temos que estudar [a desestatização de linhas]. Enfrentamos esse debate no momento das eleições. Sempre colocamos com muita clareza e sinceridade", disse ele em declaração no Palácio dos Bandeirantes. "Estamos estudando para verificar a viabilidade financeira, verificar se a gente pode prestar o melhor serviço. Em todo o processo de desestatização, de concessão existe um momento de consulta à população. Faz parte do rito a audiência pública", acrescentou. O governador de São Paulo argumenta que a privatização foi decidida nas urnas, com a sua vitória. Já os sindicatos alegam que as privatizações ameaçam o emprego e os direitos dos trabalhadores. No caso do metrô, dois pregões já estão agendados para este mês: está prevista a concessão dos serviços de atendimento ao público nas estações, hoje feito por servidores públicos, e da manutenção da linha 15-prata. Além disso, segundo o jornal Folha de S.Paulo, Tarcísio já demonstrou vontade de privatizar a operação das quatro linhas públicas do Metrô —1-azul, 2-verde, 3-vermelha e 15-prata. Para Cibele Franceze, professora da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) e ex-secretária estadual adjunta de Gestão Pública e de Planejamento e Desenvolvimento Regional de São Paulo, a privatização do metrô pode colocar em risco o planejamento metroviário da capital paulista. "Hoje quem pensa transporte trabalha no metrô e não na secretaria. Se o metrô for privatizado, o Estado perde a capacidade de planejamento da rede e não apenas de operação", opina. "É diferente de uma PPP. Se a PPP der errado, o Estado pode renegociar o contrato, pode suspender o contrato, fazer outro contrato; se o Estado faz uma privatização e ela dá errado, o Estado já vendeu a empresa. É um caminho mais complicado e perigoso". Em sua avaliação, "não faz sentido, portanto, abrir mão de toda a capacidade técnica, que está hoje no metrô". "Quem vai ser o planejador da estrutura metroviária do lado do governo se os técnicos que entendem de planejamento metroviário estão no metrô? Quem vai planejar as próximas linhas? Quem vai ficar do outro lado para cobrar os próximos concessionários? É preciso ter uma capacidade técnica no Estado até mesmo para lidar com as concessionárias, para gerenciar esses contratos", questiona.
2023-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1v2gxdyy0o
brasil
Brasil tem minérios e americanos têm recursos para investir, diz subsecretário de Estado dos EUA
O envio de meio bilhão de dólares à floresta amazônica dependeria da aprovação do Congresso dos Estados Unidos. Mas, há meses, os partidos Democrata e Republicano não conseguem construir um consenso em torno do orçamento do país. No último sábado (30/9), o Congresso evitou que o governo americano fosse paralisado por falta de verbas menos de quatro horas antes do prazo limite - e com a aprovação de uma solução tampão de 45 dias. Ficaram de fora, por exemplo, as verbas previstas para apoiar os ucranianos em seu esforço de guerra. O terreno legislativo do país virou um ambiente conflagrado — o que ficou demonstrado na terça-feira (03) com a destituição do líder da Câmara, o republicano Kevin McCarthy, após decisão dos parlamentares da Casa, que aprovaram por 216 votos a 210 sua saída em uma moção para retirá-lo do cargo. Nesse contexto da política doméstica do país, tanto diplomatas brasileiros como americanos consideram praticamente descartada a aprovação da verba anunciada por Biden ao Fundo Amazônia ainda este ano. Fim do Matérias recomendadas Os dois governos, no entanto, se empenharam para evitar que o não cumprimento da promessa simbolizasse um novo constrangimento na relação entre os países, que tanto Biden quanto Lula afirmaram ter chegado a um novo patamar. E outras opções passaram a ser avaliadas. Por um lado, durante o encontro bilateral entre os presidentes Lula e Biden (e alguns de seus ministros) em Nova York, há duas semanas, o Brasil propôs a inclusão do país no chamado Inflation Reduction Act (IRA, na sigla em inglês), um pacote climático proposto pela atual gestão, já chancelado pelo legislativo, e que destina US$ 369 bilhões para apoiar a transição energética e o desenvolvimento de tecnologias verdes ao país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até agora, o Brasil pouco se beneficiou do plano bilionário porque, de acordo com o texto aprovado pelo Congresso, somente países com acordos de livre-comércio com os EUA poderiam reclamar tais investimentos em suas indústrias. O Brasil jamais firmou tal acordo com os americanos. Para tentar estudar formas de driblar essa limitação, brasileiros e americanos acertaram, durante o encontro bilateral, a criação de um grupo de trabalho — que do lado brasileiro será levado a cabo pela Fazenda — para propor saídas que permitam que ao menos parte desse recurso desembarque no Brasil. Do lado de Biden, a estratégia para demonstrar que a relação com o Brasil é prioritária é aliar investimentos públicos pontuais e estímulo ao intercâmbio empresarial. Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil depois do encontro bilateral entre os dois presidentes, o subsecretário de Estado para Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente dos EUA, José Fernandez, afirmou que o país pretende aportar recursos diretamente no Brasil em setores como a extração dos chamados "minerais críticos" — cobalto, lítio e níquel, entre outros — fundamentais para a fabricação de baterias de veículos elétricos, por exemplo. Hoje, 80% desses minerais estão sob controle de países que os EUA consideram como autocracias e expandir as fontes dos materiais se tornou uma meta para a gestão Biden. Uma das novas fontes que os americanos encontraram fica no interior do Piauí. Lá, a agência governamental americana, Development Finance Corporation (DFC), aportou algumas dezenas de milhões de dólares para a exploração de cobalto e níquel pela empresa TechMet. “A China construiu uma posição de domínio esmagador da cadeia de abastecimento (de minerais críticos). A dependência contínua dos Estados Unidos das importações para o fornecimento de metais críticos representa uma ameaça significativa à competitividade a longo prazo da indústria americana. A TechMet, alinhada aos interesses dos EUA, está empenhada em desenvolver um fornecimento independente destes metais críticos”, diz a empresa em um comunicado em 2020 no qual anuncia o aporte de US$25 milhões da DFC. A China já se estabeleceu no Brasil com duas fabricantes de automóveis elétricos - a BYD e a Great Wall Motors. “Em minerais críticos, o Brasil tem grandes reservas, o que quer é capital, empresas que estejam preparadas para fazer a coisa certa ao trabalhar com as comunidades, que garantam respeito aos direitos trabalhistas, ao meio ambiente. E nós estamos preparados para incentivar esse tipo de empresa”, afirmou Fernandez. O secretário qualificou o setor minerador do Brasil como “vibrante” e disse que o que os EUA oferecem é “trabalharmos em conjunto no financiamento de projetos minerais críticos, com um investimento feito de forma responsável, seguindo o mais alto princípio ambiental, social e de governança para que os países não precisem escolher entre custos ambientais e crescimento econômico”. Segundo ele, porém, as parcerias com o Brasil não estariam limitadas à mineração. Há ainda interesses em apoiar o desenvolvimento de hidrogênio verde, energia eólica e solar brasileiras, além do desenvolvimento de sementes pela Embrapa que gerem plantas capazes de suportar as mudanças climáticas. Na semana passada, o Departamento de Estado dos EUA remeteu ao Brasil cerca de 40 empresários, numa visita organizada pela equipe do enviado especial dos EUA para o clima, John Kerry, e batizada de GreenTech Mission. Entre as empresas americanas representadas na visita estavam 3M, Bayer, Boeing, Cargill, GE, Merck e Kellogg. Havia ainda funcionários da EximBank, agência de crédito à exportação dos EUA; dos departamentos de Agricultura, de Energia, dentre outros. Ao anunciar, em Nova York e ao lado de Kerry, a expedição dos americanos ao Brasil, o ministro da Fazenda Fernando Haddad qualificou o novo momento da parceria com os EUA como um "ganha-ganha". "Não podemos deixar uma potência como os EUA de costas para o Brasil. O Brasil e os EUA têm interesses em comum. Queremos abrir possibilidades novas para que Brasil e EUA se aproximem com ganhos mútuos", afirmou Haddad. O tom de Fernandez é ainda mais contundente: “O Brasil está ansioso e queremos mais investimentos dos EUA no Brasil. Quando você tem um país com o potencial que o Brasil tem na região (América Latina), ele tem que estar na frente e no centro dos seus planos”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista da BBC News Brasil com Fernandez, feita por videochamada e editada por concisão e clareza. BBC News Brasil - Brasil e EUA parecem estar em um novo momento em sua relação bilateral, é o que os dois presidentes disseram no mês passado, em encontro bilateral, em Nova York. O que isso significa em termos de comércio e oportunidades de negócios? José Fernandez - Nossa relação com o Brasil é muito forte, temos excelentes relações comerciais, mas também compartilhamos muitos dos mesmos valores e algo em que tanto o presidente Biden quanto o presidente Lula acreditam é em ter as mudanças climáticas no topo da agenda. Eles discutiram o que o presidente Lula quer fazer na Amazônia e nós compartilhamos os mesmos objetivos. Especificamente nas áreas com as quais eu trato, como minerais críticos, os EUA acabaram de fazer um investimento numa empresa no Nordeste. Temos um diálogo energético muito ativo. Estamos engajados em toda a questão da sustentabilidade, das mudanças climáticas. Vamos nos envolver com o Brasil no acordo de plásticos que estamos começando a negociar. Eu me encontrei com a nova embaixadora do Brasil nos EUA (Maria Luiza Viotti) e estamos comprometidos em cooperar em muitas áreas. É um relacionamento muito forte. BBC News Brasil - Você poderia detalhar um pouco mais esse investimento em minerais no Nordeste? Fernandez - O nome da empresa é Techmet. Eles receberam um investimento de muitos países, mas um dos investimentos foi da nossa Development Finance Corporation para construir uma mina no nordeste. Eles estão no mercado de minerais críticos. E continuaremos a fazer mais. O Brasil tem um setor de mineração muito vibrante e de grande interesse e o que oferecemos é a oportunidade para trabalharmos em conjunto no financiamento de projetos minerais críticos, com um investimento feito de forma responsável, seguindo o mais alto princípio ambiental, social e de governança para que os países não precisem escolher entre os custos ambientais e o crescimento econômico. O Brasil compartilha esse anseio e eu tenho tanto no governo Lula quanto durante o período Bolsonaro conversado com a indústria de mineração brasileira e continuarei a promover esse tipo de oportunidade que acreditamos ser uma oportunidade única em uma geração e uma oportunidade que o Brasil quer aproveitar. Em minerais críticos, o Brasil tem grandes reservas, o que quer é capital, empresas que estejam preparadas para fazer a coisa certa ao trabalhar com as comunidades, para garantir que elas respeitem os direitos trabalhistas e o meio ambiente. E, por isso, estamos preparados para incentivar esse tipo de empresa. O desafio é focar em projetos específicos daqui para frente e continuaremos a fazer isso. Mas não se limita à mineração. Um dos projetos que coordeno é para desenvolver plantações no sul da África que resistirão às mudanças climáticas. Se o clima continuar a aquecer, muitas das culturas agrícolas que, neste momento, são alimentos básicos na África, não sobreviverão às alterações climáticas nos próximos 20 anos. Estamos trabalhando com a Embrapa nisso no sul da África. BBC News Brasil - Na semana passada, a equipe do enviado climático John Kerry esteve no Brasil com algumas dezenas de empresários justamente com esta agenda. Pode me falar mais sobre isso? Fernandez - Apoiamos o secretário Kerry na empreitada. Ele tem sido incansável em trabalhar na busca de uma cooperação com o Brasil. Quando você olha para a crise das mudanças climáticas que enfrentamos, o Brasil está no centro da solução, como líder na preservação amazônica de um dos maiores pulmões do mundo. Precisamos do Brasil como parceiro. O Brasil já é um líder climático, grande parte da sua energia agora é renovável, é energia hidrelétrica, então acho que todos podemos aprender com os esforços que o Brasil tem tomado na Amazônia e em outros aspectos sobre mudanças climáticas e nós queremos tê-los como parceiros na América Latina, dada a sua proeminência na região. E é por isso que tenho certeza de que o secretário Kerry deseja promover esse objetivo, mas também percebendo que o setor privado será fundamental para a necessidade de investimento. Logo, ele está trazendo empresas ao país. BBC News Brasil - E em relação a fundos governamentais dos EUA, subsecretário? O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, citou recentemente a possibilidade de que recursos do Inflation Reduction Act pudessem financiar iniciativas no Brasil. Isso é uma conversa ainda muito inicial ou já uma realidade? Fernandez - Acho que estamos começando a conversa e isso é um pouco fora da minha especialidade. Grande parte da discussão sobre o Inflation Reduction Act centra-se nas baterias de veículos elétricos e subsídios (para produzi-las). Em relação ao Brasil, já estamos vendo os benefícios desse investimento que mencionei na Techmet. Mas não é só isso. No hidrogênio verde, o Brasil poderá ser um líder, há uma série de áreas onde vemos condições de trabalhar em conjunto com o Brasil. Sinceramente, não sei se a discussão já está em andamento, mas certamente tenha em mente que o Inflation Reduction Act é o maior investimento feito por qualquer país na História em energia limpa, são US$ 369 bilhões, e vai além das baterias de veículos, inclui a captura de carbono, hidrogênio verde, energia eólica, solar e muito desse investimento irá para tecnologia. E essa tecnologia ajudará a todos nós. Então, quer o Brasil se torne ou não um dos países do FTA (Free Trade Agreements, livre comércio, condição necessária para receber aportes diretos do IRA) para fins de veículos elétricos, o Brasil vai se beneficiar porque a tecnologia vai baratear turbinas eólicas e painéis solares. E, em última análise, o que estamos tentando fazer é lidar com as alterações climáticas, que são a crise existencial do nosso tempo. BBC News Brasil - O presidente Lula, na viagem a Nova York, tinha por objetivo atrair investidores americanos para obras do Programa de Aceleração do Crescimento em energia eólica e solar, especialmente no nordeste do país. O senhor vê esse interesse no setor privado americano? Fernandez - Com certeza. Sei que existe um grande interesse também por parte de muitas empresas europeias. O Brasil é um excelente candidato para energia eólica e solar e já é líder em energias renováveis. Há uma série de empresas que estão muito otimistas em trabalhar com o Brasil e sentem que o país já está pronto agora para mais energia renovável. O Brasil tem uma ótima rede hidrelétrica, mas vimos o que acontece em tempos de seca, e é por isso que o presidente Lula quer diversificar para outras fontes de energia renovável e é por isso que as empresas estão interessadas. BBC News Brasil - Há uma certa frustração no governo brasileiro que diz ouvir muitos questionamentos sobre os investimentos chineses no país, mas ao mesmo tempo afirma que os investidores americanos não aparecem nas concorrências quando elas são abertas. Fernandez - O Brasil está ansioso e queremos mais investimentos dos EUA no Brasil. Lembre-se que os EUA continuam sendo, de longe, o maior investidor na América Latina e também o maior parceiro comercial da América Latina e do Caribe, por isso queremos fazer parte da solução e trabalharemos com o Brasil para tentar incentivar empresas a investirem nisso. Assim como estamos incentivando as empresas brasileiras a virem para os EUA, nossos números comerciais cresceram tremendamente nos últimos dois anos. Nossas relações são bastante saudáveis. Mas nós não podemos dormir sobre o nosso sucesso. Precisamos continuar atentos porque quando você tem um país com o potencial que o Brasil tem na região, ele tem que estar na frente e no centro dos seus planos.
2023-10-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cje98x0vpwvo
brasil
Sem nova ministra mulher, STF brasileiro se tornará segundo mais desigual da América Latina
Considerando o percentual de mulheres em cada um dos tribunais da região, o brasileiro era o quarto mais desigual, com 18,2% de juízas do sexo feminino. Apenas Argentina, Paraguai e Bolívia ficam atrás, com menos de 12% de mulheres. Mas com a saída de Weber, o STF pode passar a ser composto por dez homens e apenas uma mulher, caindo ainda mais no ranking. A nomeação de um novo ministro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda é esperada, mas a disputa tem se afunilado em torno de homens, segundo diversas fontes da imprensa brasileira. Fim do Matérias recomendadas Apesar da intensa campanha para que indique uma mulher negra, Lula afirmou que não levará em conta a cor da pele ou o gênero para escolher seu indicado. Perguntado, o presidente disse que escolherá alguém em quem ele confie e que atenderá aos "interesses" do país. Se a preferência por um ministro homem for confirmada, a única mulher integrante na Corte será a ministra Cármen Lúcia, nomeada por Lula em seu primeiro mandato. Nesse caso, o Brasil cairá três posições no ranking de participação feminina em Supremos da América Latina e Caribe. A lista foi elaborada pela BBC News Brasil, tendo como base informações das Nações Unidas e dos governos locais. A reportagem procurou a Presidência da República e o Ministério das Mulheres para pedir comentários sobre os dados, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. As Supremas Cortes são compostas de formas distintas em diferentes países, com arranjos e sistemas de nomeação de juízes que variam muito. Mas, para efeito de comparação, a reportagem considerou o percentual de mulheres em cada um dos tribunais analisados. Sem uma nova mulher no STF, o país passará a ser o segundo menos igualitário da região, à frente apenas da Argentina, que não tem nenhuma mulher em sua Corte Suprema de Justiça, formada por quatro magistrados. Em percentual, o Brasil teria apenas 9,1% de representantes femininas no STF, atrás de nações controladas como Venezuela, El Salvador e Nicarágua, apontados por organismos de direitos humanos e analistas internacionais como autoritários ou não democráticos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já o país da América Latina e Caribe com melhor representação feminina em seu tribunal máximo é a Jamaica, com 30 mulheres em uma Suprema Corte de 42 magistrados. A Suprema Corte jamaicana, que tem sua sede em Kingston, é responsável por julgar questões civis e criminais graves e tem jurisdição ilimitada. Seus membros são nomeados pelo Governador-geral, um cargo basicamente cerimonial cujo titular é escolhido pela Coroa britânica. Um outro tribunal, o Comitê Judicial do Conselho Privado, tem sede em Londres, Reino Unido, e atua como a última corte de apelação para alguns países da Commonwealth em casos em que há possibilidade de recorrer para além da Justiça local. O Comitê Judicial é composto por 12 juízes - 11 homens e 1 mulher - que também formam a Suprema Corte do Reino Unido (veja abaixo). Em comparação com os membros do G7, grupo que inclui as sete democracias mais ricas do mundo, o Brasil só perde para a Suprema Corte do Reino Unido. O melhor colocado do G7 é a França, com uma composição de pouco mais da metade de magistradas do sexo feminino. No país europeu, os juízes da chamada Corte de Cassação são escolhidos pelo presidente a partir de indicações do Conselho Superior da Magistratura Judicial. A aposentadoria de Rosa Weber foi publicada na última semana no Diário Oficial da União, mas ainda não se sabe quem ocupará a vaga deixada por ela. A Constituição não impõe um prazo para que o presidente da República indique um novo ministro do STF. Porém, entre os mais cotados, segundo os principais meios de comunicação brasileiros, estão o ministro da Justiça, Flávio Dino, o presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, e o advogado-geral da União, Jorge Messias. Desde sua instalação em 1891, o STF teve apenas três mulheres entre seus ministros: Rosa Weber, Carmen Lúcia e Ellen Gracie, empossada em 2000 como a primeira magistrada do sexo feminino na Corte e que se aposentou em 2011. Na semana passada, um grupo de 25 deputadas federais da base do governo enviou uma carta ao presidente Lula pedindo que ele indique uma mulher negra para o STF, mais um capítulo da pressão que tem sofrido de seus próprios correligionários neste sentido. No documento, as parlamentares argumentam que esse é um passo essencial para a representatividade da população negra nas esferas de poder e também para a modernização do Judiciário. "A reivindicação por uma ministra negra é essencial para o avanço na necessária transformação do sistema de justiça brasileiro, não só pela importância de ver o povo negro sendo representado, mas por todas as possíveis mudanças estruturais na forma como a lei será interpretada, o direito aplicado e a justiça feita", afirmam as deputadas de partidos como PT, PSOL, PSB e PCdoB. Em termos de representatividade de raça, o Supremo brasileiro não tem atualmente nenhum magistrado que se identifique como negro, apesar das populações preta e parda representam 9,1% e 47% da população brasileira, respectivamente. Em sua história, a corte teve apenas três ministros negros, todos homens e já aposentados: Pedro Lessa, nomeado em 1907, Hermenegildo Rodrigues de Barros, nomeado em 1919, e Joaquim Barbosa, indicado em 2003. A realidade é a mesma quando considerado o contexto geral do Judiciário no Brasil. De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as mulheres representam 38% da magistratura, sendo 40% presentes no primeiro grau de jurisdição e apenas 21% no segundo grau. Outra pesquisa mostrou que 14,5% dos juízes brasileiros se declaram negros, sendo 1,7% pretos(as) e 12,8% pardos(as). Entre os principais nomes cotados para a vaga do STF, apenas Flávio Dino se identifica como pardo. Além da vaga no STF, também devem abrir em breve duas posições no Superior Tribunal de Justiça (STJ) – estão previstas para outubro e janeiro as saídas das ministras Laurita Vaz e Assusete Magalhães da corte. Segundo o portal UOL, os mais cotados para substituir as magistradas também são homens. No final de setembro, o CNJ aprovou a criação de uma política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário. A proposta original, que contou com o apoio da ministra Rosa Weber, previa a utilização de uma lista exclusiva para mulheres em alternância com a lista mista tradicional. Isso porque os juízes promovidos são escolhidos a partir de duas listas, uma que classifica os candidatos por tempo de serviço e outra por merecimento (usando critérios objetivos), de forma alternada. O texto original buscava a utilização das listas femininas tanto quando o critério da vez fosse merecimento quanto antiguidade. Mas apenas a mudança no critério de merecimento foi aprovada. Dessa forma, cada nova vaga aberta continuará sendo preenchida usando uma alternância entre as listas de antiguidade e merecimento, mas sempre que essa segunda for considerada haverá uma segunda alternância, entre uma lista formada apenas por mulheres e outra mista. Para a juíza de direito Daniela Pereira, que faz parte do Movimento Nacional pela Paridade no Judiciário, impulsionador da proposta aprovada no CNJ, a desigualdade de gênero na área judicial no Brasil tem origem nos obstáculos enfrentados pelas mulheres na ocupação. A magistrada cita, por exemplo, a dificuldade de muitas em se mudar de cidade com frequência, algo que é quase inevitável para juízes que buscam a progressão de carreira. "As mulheres enfrentam uma série de empecilhos porque acumulam mais funções de cuidado, seja dos filhos, dos maridos ou do ambiente doméstico", diz. "Os homens também costumam integrar mais grupos, como por exemplo o grupo do futebol, do tênis ou o clube do charuto. Por meio disso, fazem mais conexões e têm seus nomes mais lembrados para indicações. Enquanto isso as mulheres se sujeitam a duplas jornadas e têm menos tempo." Segundo a magistrada, as obrigações com a casa e a família, que costumam recair desproporcionalmente sobre as mulheres, também impedem que muitas busquem especializações ou se prepararem de forma suficiente para os concursos para juiz. Essa realidade, segundo especialistas, reflete diretamente na composição do STF, cujos integrantes são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado. Quanto menos mulheres conseguem progredir na carreira como juízas, menos nomes femininos são considerados no momento da indicação. Além disso, segundo Luiza Ferraro, pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP, há menos mulheres em outras posições de influência que costumam render nomeações para o STF, como, por exemplo, o Ministério da Justiça ou a Advocacia-Geral da União (AGU), o que também dificulta que seus nomes sejam cogitados. "Tivemos uma mulher Advogada-Geral da União nos últimos 30 anos e nenhuma mulher ministra da Justiça na história do Brasil", diz Ferraro. "As barreiras que impedem muitas mulheres de progredir são como um teto de vidro: aparentemente invisíveis para muitos, mas na verdade presentes." Para Daniela Pereira, um Supremo igualitário é um preceito constitucional. "Nossa Constituição estabelece de forma clara que um dos objetivos da nossa República é a construção de uma sociedade livre, justa e fraterna e que também consagre o princípio da igualdade", diz. "Será que um Supremo formado majoritariamente por homens brancos está cumprindo os preceitos constitucionais?" Segundo a juíza, uma mudança no cenário atual é "um imperativo". "Mesmo alguém que não tenha argumentos técnicos ou nunca tenha lido a nossa Constituição consegue a olhos vistos perceber que a igualdade não está sendo efetivado quando ignoramos essa dissidência." Para além da manutenção da igualdade, as especialistas consultadas pela BBC News Brasil argumentam que um Judiciário e um Supremo mais plurais produzem decisões mais legítimas e de maior qualidade. "O grande papel do STF é de intérprete e garantidor da Constituição - e mulheres, assim como negros e mulheres negras, trazem uma diversidade de olhar para a Constituição e suas interpretações", diz Luiza Ferraro, da FGV. Para a pesquisadora, essas visões diversas são especialmente importantes para garantir a manutenção e o cumprimento dos direitos individuais de minorias. Ferraro cita como exemplo o voto de Rosa Weber para que o aborto realizado até 12 semanas de gestação não seja mais crime no país. Pouco antes de sua aposentadoria, a magistrada pautou o julgamento no plenário virtual, em que os ministros depositam seu voto eletronicamente por escrito, para que tivesse tempo de se manifestar. A ministra argumentou que a criminalização fere direitos fundamentais das mulheres, como os direitos à autodeterminação pessoal, à liberdade e à intimidade. Por outro lado, Weber considerou que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais adequado políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, como educação sexual. As manifestações da ministra Carmen Lúcia contra as constantes interrupções feitas pelos magistrados do sexo masculino durante suas falas também mostram como é importante ter mais mulheres na Corte, diz a pesquisadora da FGV. "Nós ficamos silenciadas pela palavra, pela voz mais alta, mais grave, dos homens. Pelos espaços que eles tiveram para falar. Muitas vezes há um ambiente tal que eles nem se dão conta que estão interrompendo mais as mulheres do que outros homens", disse a ministra em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em março deste no. "O ambiente do Judiciário é machista, majoritariamente machista. Basta ver que na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a maioria é de mulheres, mas nós nunca tivemos na história uma mulher presidindo a OAB", acrescentou Carmen Lúcia. "Não é porque se tratam de ministras mulheres que elas vão votar da mesma maneira - elas são pessoas qualificadas que têm visões distintas", avalia Ferraro. "Mas a tendência é que essa representatividade garanta os direitos de minorias como as mulheres ou os negros, caso possamos ter mais ministros ou ministras negras no futuro." Nas recentes disputas por vagas no Supremo, especialistas apontam que as indicações no Brasil têm sido muito mais pautadas por critérios políticos e estratégicos do que por méritos como saber jurídico ou interesses de grupos sociais. Em artigo para a revista Piauí, o advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei tratou sobre a "escolha de nomes ideologicamente alinhados" nos últimos anos, logo depois que Lula escolheu seu antigo advogado Cristiano Zanin para o STF no início de agosto. Para Mafei, o presidente Lula privilegiou "lealdade e fidelidade pessoais acima de quaisquer outros critérios". Ainda segundo o especialista, essa tendência deve ser mantida nas próximas indicações como uma reação ao que os políticos veem como abusos de poder de ministros e da influência da política na jurisprudência do tribunal. "Nesse ambiente, o que tem mais valor, aos olhos de quem indica? A respeitabilidade intelectual, a ética do recatamento judiciário, a deferência à letra da lei e à colegialidade, a conduta proba ou republicana? Ou a confiança de que, quando a coisa apertar, alguma lealdade e fidelidade fraternas no tribunal funcionarão como o melhor porto seguro?", escreveu. "Quem deseja construir uma candidatura progressista para a sucessão de Rosa Weber precisa enxergar que o jogo da indicação para o Supremo mudou", advertiu o professor, afirmando que, na lógica atual, pouco importa a diversidade que uma nomeação pode agregar ao tribunal quando a segurança do presidente e de outros políticos está em jogo. Grazielle Albuquerque, jornalista, cientista politica e autora de "Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF" (no prelo, pela editora Amanuense) concorda. "É reconhecido como as outras indicações do PT, em especial dos governos de Lula, passavam por uma conversa mais partidária, por coalizões, tinham uma costura que em boa parte era encabeçada pelo (então ministro da Justica morto em 2014) Márcio Thomaz Bastos", diz. Depois da Operaçãoo Lava Jato e suas consequências, tudo mudou, ela opina. "Essa mediação para a escolha de um nome se enfraqueceu drasticamente. A escolha se tornou mais pessoal e o cálculo político é o principal."
2023-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy71l5lnelgo
brasil
Balneário Camboriú: avaliada em milhões, última casinha de madeira de praia será demolida
De frente para o mar, pintada de branca e com detalhes vermelhos, é possível avistar a última "casinha da avenida Atlântica". Pois, ao contrário dos arranha-céus de Balneário Camboriú e das casas de luxo com muros altos, seus portões brancos baixos são vazados, o que permite aos curiosos a observarem de perto. Ao longo dos anos, o imóvel ganhou até status de atrativo turístico. Porém, resta pouco tempo para a última casa de madeira na mais nobre avenida da cidade: a residência de número 4100 será demolida para dar lugar a um prédio de 12 andares. A casinha branca de esquadrias e janelas vermelhas tem 139 m², ocupando a maior parte do terreno de 286 m². Exemplo de Arquitetura Popular, um estilo amplamente difundido em Santa Catarina entre o final do século 19 e meados do século 20, esse tipo de construção apresenta soluções simples, com materiais limitados – segundo a arquiteta e professora da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Alessandra Devitte. Fim do Matérias recomendadas A arquitetura em madeira, em geral, acompanhou a evolução socioeconômica e cultural da região Sul, diz ela. Essa arquitetura incorporou influências estéticas de diversas culturas, especialmente da imigração alemã, italiana e polonesa, que trouxeram novas técnicas e estilos de construção. A madeira tem destaque, especialmente entre imigrantes alemães (oriundos de uma cultura florestal), pela abundância do material na região naquela época. A demolição da casa, na visão de Devitte, representa não apenas uma perda material, mas histórica e cultural. "A preservação da arquitetura popular desempenha um papel crucial na manutenção da identidade cultural e histórica de uma comunidade. Ela reflete as tradições, os ofícios tradicionais, os valores e os modos de vida do povo", diz a arquiteta. O pedido de demolição da casinha e o protocolo do projeto foram feitos em dezembro de 2022 para análise da Secretaria de Planejamento. E, em janeiro de 2023, o alvará de demolição foi emitido. O imóvel na Barra Sul de Balneário Camboriú foi construído antes mesmo da hoje chamada "Dubai brasileira" (em referência à abundância de prédios altos) virar cidade. A casa foi construída em 1956. Ao longo dos anos, a modesta casa viu seu entorno ser tomado por prédios, estando hoje "espremida" entre os edifícios. Embora a casinha seja vista por muitos como símbolo de resistência na região, a família – que usava o imóvel para veraneio até o ano passado – possivelmente negociou a residência à beira-mar por um valor condizente com um título que a cidade ostenta hoje: o metro quadrado mais caro do Brasil, segundo o índice Fipe-Zap Um corretor local consultado pela BBC News Brasil estimou que o imóvel pode ter um valor de R$ 15 milhões a R$ 18 milhões, considerando as cotações imobiliários da área. Em 2019, um dos donos, João, disse a um jornal local de Balneário que não tinha interesse em vender o imóvel. A família foi procurada, mas não respondeu ao pedido de entrevista da BBC News Brasil. Em 1956, quando a casinha da praia foi construída, ainda nem existia sequer um edifício em Balneário Camboriú – que na época chamava-se Praia de Camboriú. Foi apenas seis anos depois que surgiu o prédio Punta del Leste, na Praia Central. O imóvel viu a paisagem urbana se transformar, sobretudo nas últimas duas décadas. Para o corretor de imóveis de alto padrão da cidade Diego Wantowsky, é só questão de tempo até a demolição da casa. Na visão de Wantowsky, o local só não foi vendido antes porque o investimento para construir um empreendimento em frente ao mar é alto. "Ainda não tem previsão de quando será construído o prédio. Foi apenas compartilhado que foi comercializado, os donos estão bem reservados quanto a essas informações", diz. Destino turístico de famosos como o jogador Neymar, o valor negociado pela casa não surpreende quem conhece a região. Afinal, Balneário Camboriú é hoje a cidade brasileira com o metro quadrado mais caro no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto os preços do metro quadrado dos imóveis em São Paulo e Rio de Janeiro ficam em R$ 10.549 e R$ 9.926, respectivamente, Balneário lidera com preço médio de R$ 12.335. Os dados são do Índice FipeZap, publicado em boletim da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) no início deste ano. A alta demanda de imóveis no município se dá principalmente pela segurança e pela localização privilegiada. Além das praias, Balneário é facilmente acessada por estradas e aeroportos. O alargamento da Praia Central foi também um fator crucial para a valorização, diz Wantowsky. "O alargamento da praia foi tão importante quanto a revitalização do calçadão que está por vir. Vai valorizar no mínimo mais uns 20 a 30% os apartamentos da região". O "boom" imobiliário se repete em outras cidades litorâneas de Santa Catarina, como Piçarras, Praia Brava e Itapema - esta, a segunda cidade com o metro quadrado mais caro do país: R$ 10.804. As construtoras, além de buscar o público de alta renda brasileiro, estão focadas em atrair estrangeiros. No fim de julho, a construtora FG Empreendimentos lançou um comercial estrelado pelo jogador de futebol português Cristiano Ronaldo. A publicidade foi do empreendimento One Tower, residencial mais alto da América Latina, com 84 andares. Com 20 ambientes de áreas de lazer, cada apartamento foi vendido por cerca de R$ 15 milhões. "Até se comenta que Balneário já está um pouco 'dolarizada'. Eu mesmo vendi um apartamento esses tempos para uma mulher da Bélgica", conta Wantowsky. Com o crescimento exponencial da cidade, assuntos como sombreamento das praias, falta de infraestrutura de água e esgoto e trânsito vêm preocupando a população e especialistas da área. Após o alargamento, os dez pontos da Praia Central estavam impróprios para banho, segundo análise do Instituto do Meio Ambiente (IMA) do final de 2022. Além disso, praias e praças centrais ficam sem sol no meio da tarde por conta da altura dos prédios. Daniela Occhialini, presidente da Associação Comunitária de Moradores da Praia Brava (AC BRAVA) e uma das organizadoras do movimento Salve Brava, luta para que a Praia Brava não siga o mesmo caminho que a "Dubai brasileira", ainda que o local já esteja muito diferente do original. "A gente começa a mexer e vê que tem um monte de coisa errada. Existe um alinhamento gigantesco entre a gestão pública e o setor privado, que no caso é o da construção civil", diz ela. Em nota, a prefeitura de Balneário Camboriú diz que o município não entende que a verticalização é um problema e que, em relação ao sombreamento da cidade, a obra de alargamento da faixa de areia (que foi de 25m para 75m) propiciou mais tempo de sol durante o dia para banhistas. Sobre as críticas relacionadas à primazia do dinheiro e alinhamento com construtoras, respondeu que as outorgas onerosas de construtoras proporcionam a realização de importantes empreendimentos e obras para a cidade. Ainda em nota, comenta que grande parte da receita do município vem de impostos como IPTU e ITBI, advindos do ramo imobiliário, salientando que todos os processos necessários para a edificação de prédios são seguidos de forma transparente e rigorosa. A organizadora do Salve Brava diz que outros municípios da região – como Barra Velha, Penha, São Francisco do Sul – já procuraram ajuda para impedir que o crescimento desordenado não atinja suas praias. Lilian Simões, aposentada de 78 anos, mora em Penha (37km de Balneário Camboriú) desde 1996 e tem uma relação especial com o mar: quando criança ela contraiu coqueluche e o médico indicou que a família passasse um tempo no litoral. Desde então, ela tem um apego com a praia. A moradora de Penha concorda que é preciso estrutura para a cidade poder receber o setor imobiliário. Porém, ela diz que ficaria feliz de poder vender sua casa e se mudar para um apartamento e ter mais conforto. "Penso em ir para Itajaí, pois lá tem mais estrutura, como hospitais, mercados e serviços em geral". Não é mais possível reverter o modelo de urbanização de Balneário, diz Rosemeri Carvalho Marenzi, engenheira florestal e docente do programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologia Ambiental da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). "Fica o aprendizado que as outras cidades podem levar. No sentido que elas podem ter um modelo diferenciado, principalmente em termos de escalonamento e distribuição dos edifícios". No caso do Balneário Camboriú, diz Marenzi, a concentração urbana se deu porque o território é pequeno, mas isso não significa que as pessoas precisam de mais moradia, pois grande parte dessas edificações são de ocupações de veraneio, investimento ou aluguel. Para ela, os chamados "apartamentos fantasmas" (aqueles que são ocupados apenas uma pequena parte ou nenhuma do ano) geram a exclusão dos moradores locais. "São os moradores que acabam tendo que muitas vezes vender os seus imóveis em função da especulação imobiliária. Se ele não vender o seu imóvel, na verdade, ele vai ficar em meio a um conjunto de prédios, ilhado e sem sol". Na visão da especialista, o foco do planejamento urbano deve ser não só a economia, mas também o turismo, ambiente e os interesses dos moradores.
2023-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c88j218nzgmo
brasil
O surpreendente 'país' onde imigrantes brasileiros podem ser 30% da população
Se para boa parte dos brasileiros a palavra "Oiapoque" é o sinônimo imediato do ponto mais ao norte do país, para um grupo cada vez maior ela também significa a entrada para uma vida no exterior. É ali, naquela cidade do Amapá, que o Brasil encontra a Guiana Francesa, um departamento ultramarino da França na América do Sul — uma espécie de Estado que não faz parte da França Metropolitana (que fica na Europa), mas que é parte do país. É um número que vem aumentando ano após ano — eram 82,5 mil em 2021, e 72,3 mil em 2020, segundo os dados do Itamaraty. O órgão não faz distinção de status migratório (legal ou ilegal) nas estatísticas sobre comunidade brasileira no exterior. “Você ouve português em todo lugar. De leste a oeste, há brasileiros aqui”, diz a maranhense Vaneza Ferreira, que mora na Guiana Francesa há 24 anos e trabalha numa organização humanitária com atuação na fronteira e com povos tradicionais. Fim do Matérias recomendadas Considerando a população total da Guiana Francesa de 301 mil habitantes (equivalente à de Palmas, capital do Tocantins), segundo estimativas do Insee, o órgão de estatísticas demográficas da França, o número do Itamaraty equivaleria a quase um terço (30,3%) dos moradores daquele território. Uma fonte do Itamaraty ressaltou à BBC News Brasil que essa proporção pode ser um pouco menor na realidade, já que a população total da Guiana Francesa deve ser maior que os 301 mil, caso fossem consideradas as pessoas que vivem ali sem documentação. Segundo a estimativa do Brasil, dos 91,5 mil brasileiros no território franco-guianense, 89 mil estão em Caiena, a capital, a cerca de 200 km da fronteira com o Amapá, e 2,5 mil na região da cidade de Saint Georges de L'Oyapock, do outro lado da fronteira com o Oiapoque. Do lado das estatísticas oficiais francesas, dados de 2020 do Insee apontavam que cerca 30% dos moradores registrados na Guiana Francesa são imigrantes da América, Ásia e Oceania, sem especificar os países . Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O que torna a Guiana Francesa especialmente atrativa a brasileiros em primeiro lugar, segundo especialistas e moradores do país, é a moeda. Como é parte da França, os trabalhos são pagos em euro. Na cotação no início de outubro, 1 euro equivale a aproximadamente 5,30 reais. “Eles conseguem ganhar valores que nunca ganhariam no Brasil, em funções como pedreiros, por exemplo”, diz a socióloga Rosiane Martins, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) que desenvolveu pesquisas no Pará e Amapá sobre o movimento migratório à Guiana Francesa. Além da busca pelo salário em euro, que possa patrocinar uma vida melhor da família por meio de envio de recursos ao Brasil, a migração à Guiana Francesa também tem outras especificidades, segundo a pesquisadora e especialistas no assunto. A maioria dos brasileiros que vai para o território é natural de Estados próximos geograficamente, principalmente Amapá, Pará e Maranhão. São, na maior parte, homens, que buscam empregos na área da construção civil e no garimpo. Como um ato de esforço do governo francês de coibir a entrada ilegal de brasileiros no território, é necessário um visto de turismo, que é solicitado nos consulados da França no Brasil, para acessar temporariamente a Guiana Francesa. Com dinheiro para uma passagem aérea, é mais fácil ir como turista à França, na Europa, onde o brasileiro não precisa de visto. Desde 2020, também foi suspensa a emissão de vistos para Guiana Francesa em Macapá, a capital mais perto da fronteira. Os interessados precisam ir até Brasília para realizar o procedimento. Na ponte binacional entre as duas cidades, inaugurada em 2017 após muito atraso, brasileiros precisam mostrar visto e, caso estejam de carro, pagar um seguro de automóvel de até 175 euros. A travessia por barco, muitas vezes sem fiscalização, segue sendo a mais utilizada. Uma fonte do Itamaraty afirma que essas medidas tomadas pela França acontecem porque, "se não, a Guiana Francesa iria virar brasileira, dada a dimensão da população do Brasil e a pressão demográfica que isso iria causar”. A mão de obra brasileira foi até incentivada, diante do vazio populacional que existia naquele território. Em 1974, eram estimados 1,5 mil brasileiros ali, em geral qualificados para construção e atuação. Esse primeiro grupo é considerado por pesquisadores como parte de uma “migração familiar”, que ocorreu com a ida de famílias inteiras ou ainda com as políticas de reunificação familiar a partir de 1976. Essas pessoas formaram uma comunidade estável e permanente, inserida na sociedade local. Mas, após o término das obras, os brasileiros seguiram sendo mão de obra primordial na construção da infraestrutura francesa. Desde aquela época até hoje, há relatos de brasileiros reunidos “na praça das Palmeiras (centro de Caiena) onde aguardavam os empreiteiros chegarem com as pickups anunciando obras”. As notícias sobre as oportunidades correram nos Estados vizinhos, atraindo mais e mais imigrantes, grande parte com baixa escolaridade e sem os documentos legais. Também foram chegando mais moradores à cidade de Oiapoque, atraídos pelas oportunidades na vida fronteiriça, como a possibilidade de ganhar em euro e gastar em real. Em 2000, eram 12 mil moradores na cidade; em 2010, já eram mais de 20 mil; em 2022, a população chegou a 27 mil, segundo o IBGE. Natural da cidade de Santa Helena, no Maranhão, Vaneza Ferreira tinha 12 anos, em 1999, quando atravessou com a mãe, que se casou com um franco-guianense, para o lado francês da fronteira. Ela faz parte da geração que se estabeleceu permanentemente no território e se considera parte da “diáspora brasileira, que já tem pessoas de até terceira e quarta geração”. “Eu me reivindico franco-guianense-brasileira, porque a Guiana adotou a gente”, diz. Do outro lado dessa moeda, há milhares de brasileiros que não criam vínculos com o território e vão ali muitas vezes para atuar em atividades ilegais, como o garimpo em minas de ouro, explica a pesquisadora Rosiane Martins. "Se pensar nos migrantes clandestinos, é incontável. A cada legalizado que eu encontrava morando lá, havia até sete morando em sublocações, de forma irregular". diz Martins. São, em geral, homens que cruzam o rio no Oiapoque para ganhar algum dinheiro e voltar ao Brasil. Muitas vezes são detidos e levados pela polícia francesa de volta ao Amapá. As mulheres conseguem vagas na faxina, cozinha e muitas vezes são exploradas numa rede de prostituição. Segundo um relatório de 2016 da então Agência Francesa de Coesão Social e Igualdade de Oportunidades, o crescimento da população brasileira na Guiana Francesa está principalmente relacionado ao ressurgimento da atividade de mineração de ouro desde meados da década de 1990. De acordo com Martins, as redes que cooptam esses migrantes atuam principalmente no Maranhão, Amapá e Pará. Muitos desses imigrantes vivem no vai e vem na fronteira, mas outros acabam tentando a vida em Caiena, onde vivem em situação extremamente vulnerável, invadindo terrenos e criando ocupações e favelas. "Eles vão ficando porque é perto, fácil de voltar ao Brasil, tem o fuso horário igual, clima igual. E acabam convivendo bem numa sociedade multiétnica", explica Martins. "Alguns vão querendo voltar, mas não conseguem fugir mais dessa realidade". “A gente que está dentro da sociedade, temos nossa segurança, como se proteger. Mas essas pessoas são exploradas, estão em risco constante. As pessoas precisam tomar cuidado com a ilusão desse trabalho ilegal. A gente recebe todos os dias notícias dramáticas vindas da floresta”, diz Vaneza Ferreira, que vê de perto a realidade no seu trabalho. Uma fonte do Itamaraty com relações na Guiana Francesa disse que “vira e mexe recebe no celular foto de cadáver". "Também presenciei a situação de humilhação de centenas de brasileiros que são deportados toda semana para Belém e Macapá”, disse a fonte. O caminho para se legalizar é considerado cada vez mais difícil. Mas isso não quer dizer que o fluxo diminui. "São pessoas que consomem, trabalham por um valor baixo, fazem parte da economia. Então, em momentos de necessidade, a fiscalização diminui, não colocam tantas barreiras", diz Rosiane Martins. A presença massiva de brasileiros na Guiana Francesa pode ser percebida no dia a dia no território, segundo moradores. Há restaurantes do tipo self service com churrasco espalhados por Caiena, festas onde se ouve música pop brasileira e igrejas evangélicas nos bairros. “Quando cheguei aqui, o açaí por exemplo só era consumido por brasileiros. Hoje é universal e todo mundo aqui come, como o paraense, acompanhado de um peixe frito, uma carne”, diz Pierre Cupidon, 35 anos, que trabalha como DJ e na construção civil, instalando redes de água e internet. Como o pai dele era da Guiana Francesa, ele se mudou com a mãe de Belém para a região de Caiena em 2002. "Há festas que eu só toco música brasileira. Claro, há influências de outros países também, mas o Brasil é muito presente". Outro exemplo é no vocabulário, que muitas vezes mistura o francês com o português e até com o creole (a língua local). “Tem gente que chama 'amiga' aqui de ‘copina’. É como se fosse uma aportuguesada de ‘copine’, que é 'amiga' em francês”, exemplifica Vaneza Ferreira. Diante de um território diverso em origens, os brasileiros sentem que há uma intensa troca cultural. “É engraçado porque a gente ainda é bem pequenininho comparado a outras cidades do Brasil, mas a diversidade cultural é enorme, enriquece o território”, diz Ferreira. “O povo em si aqui se sente mais parte da América Latina do que da França”, opina Cupidon. A chamada região das Guianas (que inclui Guiana Francesa, Suriname, Guiana e ainda o Estado brasileiro do Amapá e a região venezuelana de Guayana) foi alvo de disputa entre os colonizadores europeus desde o século 16, com a presença de espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses. A Guiana (antes chamada de Guiana Inglesa) conseguiu independência do Reino Unido e se tornou um país em 1966. O Suriname (antes Guiana Holandesa) passou pelo mesmo processo em 1975, separando-se do Reino dos Países Baixos. A ocasionalmente chamada "Guiana Portuguesa" virou Estado do Amapá no Brasil, e a parte da Guiana Espanhola somou-se à Venezuela. A Guiana Francesa, por sua vez, nunca se separou da França. Oficialmente, o território faz parte da União Europeia, sua moeda oficial é o euro e sua população tem cidadania francesa. Economicamente, a Guiana Francesa segue dependente da França. Como boa parte da América do Sul, o território foi colonizado como uma sociedade escravista, onde plantadores importavam escravizados da África. Após o fim da escravidão, a França estabeleceu ali uma colônia penal, com uma rede de campos e penitenciárias onde prisioneiros do país eram enviados a trabalhos forçados. A primeira onda de imigração à região aconteceu com os chineses ainda no século 19, para trabalhar nas plantações de açúcar, e de pessoas vindas da ilha caribenha de Santa Lúcia. A partir dos anos 1960, porém, três grupos se sobressaíram nesse movimento migratório: os haitianos (também colonizados por franceses), os vizinhos surinameses e os brasileiros. Em 2016, essas três nacionalidades representavam 90% de todos os imigrantes do país, segundo o órgão de estatísticas da França.
2023-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51q1qqqww1o
brasil
ONU autoriza e Brasil se prepara para treinar policiais do Haiti
Seis anos depois do fim oficial da Minustah, a operação militar de paz liderada pelo Brasil no Haiti, brasileiros devem voltar a atuar na área de segurança do país caribenho, que vive um colapso das instituições, com grande parte da capital, Porto Príncipe, sob controle de cerca de 160 gangues. Dessa vez, porém, o Brasil não pretende mandar tropas das Forças Armadas Brasileiras para atuarem sob o manto dos conhecidos capacetes azuis, marca das missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo ao menos cinco embaixadores brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil, o governo brasileiro está decidido a fornecer treinamento à Polícia Nacional do Haiti (PNH). "Há, de fato, o comprometimento do governo brasileiro como um todo em apoiar a capacitação das forças de segurança do Haiti. É uma iniciativa que vem sendo coordenada pelo Ministério de Relações Exteriores em conjunto com a Agência Brasileira de Cooperação e com a Polícia Federal (PF)", afirmou à BBC News Brasil o delegado Valdecy Urquiza, diretor de Cooperação Internacional da Polícia Federal (PF). O último passo que faltava para que o plano fosse colocado em marcha foi dado nesta segunda, 2/10: o Conselho de Segurança da ONU aprovou o envio de uma força policial internacional ao país, liderada pelo Quênia. Embora não se trate de uma missão de paz da ONU, o aval da organização era considerado imprescindível para trazer segurança jurídica às nações que atuarão no esforço - inclusive o Brasil. Fim do Matérias recomendadas O Brasil votou a favor da medida e, por meio de seu embaixador Sérgio Danese, disse estar "pronto para continuar suas atividades de cooperação e examinar formas de contribuir com a Missão Multinacional de Apoio à Segurança do Haiti". A expectativa é que uma equipe da Polícia Federal visite Porto Príncipe na segunda quinzena de outubro pra definir o escopo do trabalho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Discutida há meses em Brasília, a disposição teria sido comunicada ao primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, pelo próprio presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante uma conversa entre os dois líderes no dia 22 de junho, em Paris, na França, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil. A cooperação entre as polícias seria o modo pelo qual o Brasil estaria disposto a apoiar o Haiti no combate à onda de violência que gerou ao menos dois mil homicídios e mil sequestros apenas no primeiro semestre de 2023, segundo estimativas da ONU. O treinamento será responsabilidade de uma equipe da Academia Nacional da Polícia Federal, que concluirá em outubro um diagnóstico sobre as principais necessidades das forças policiais do país. Segundo disse Urquiza, em agosto, a ideia é que ao menos uma primeira turma de policiais haitianos, com algo entre 80 e 100 alunos, já estivessem completamente treinados ainda este ano, em Brasília, e possivelmente outras centenas submetidos a treinamentos em território haitiano. Em vez de se lançar ao combate à criminalidade local, como o Exército Brasileiro fez durante 13 anos na área - de 2004 a 2017 - , Urquiza diz que o Brasil quer ver reduções da criminalidade local operada pelo policiamento haitiano treinado pelo Brasil. A participação das Forças Armadas brasileiras na nova atuação está descartada. "Nós queremos apoiar as forças de segurança do Haiti para que eles tenham condições de manter a atividade de segurança pública no país. Esse é o compromisso do governo brasileiro, da Polícia Federal, para que eles sejam autossuficientes em relação à segurança pública", diz Urquiza. "Então, (queremos ) formar policiais que sejam multiplicadores, para que rapidamente isso alcance o maior número possível de policiais haitianos, com o objetivo de ver os índices de criminalidade no país reduzidos pela ação da própria força de segurança local." A concretização da cooperação atrasou em relação à expectativa do Brasil, já que dependia hjustamente da aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU. Diplomatas brasileiros e estrangeiros esperavam que o assunto estivesse resolvido anes da Assembleia Geral da ONU, que aconteceu em Nova York, em 18 de setembro. Em carta ao Conselho, no último dia 15 de agosto, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, exortou os membros do Conselho (do qual o Brasil faz parte como integrante temporário) a chancelar "uma força policial multinacional especializada e capaz, habilitada por meios militares, coordenada com a polícia nacional (haitiana)". A Força Multinacional era a alternativa viável às tradicionais missões de paz da ONU, cuja imagem ficou manchada após investigações jornalísticas mostrarem, entre outras falhas e desvios, centenas de casos de abusos sexuais por militares das forças de paz no próprio Haiti, no Congo e na República Centro Africana. No Haiti, a missão de paz também introduziu a cólera ao país, que já gerou epidemias locais. Em seu discurso na abertura do evento, o presidente Lula chegou a citar a "crise humanitária no Haiti" e em conversa com o presidente americano Joe Biden ouviu um pedido para que o Brasil usasse suas boas relações com Pequim e Moscou para tentar facilitar o trânsito da medida no Conselho. Rússia e China, que costumam barrar propostas que lhes soem como intervenção estrangeira em territórios alheios, estariam desencorajadas de votar contra já que, desde outubro de 2022, as autoridades haitianas têm explicitamente apelado pelo envio de uma força multinacional em socorro ao país. “Mesmo em um conselho bastante conflagrado como o atual, com China e Rússia em tensão com EUA e europeus, a expectativa é que a força seja aprovada porque há um pedido dos próprios haitianos pelo envio da força”, diz um diplomata que atua no conselho de segurança da ONU. Em maio, uma pesquisa telefônica feita com 5 mil pessoas no Haiti pela Alliance for Risk Management and Business Continuity (Agerca) mostrou que 71% dos respondentes não acreditavam que a Polícia do Haiti teria condições de repor segurança ao país e 69% se diziam favoráveis ao envio de uma força policial internacional para ajudar a pacificar o país. O Quênia se comprometeu a enviar mil policiais ao país e já remeteu uma delegação ao Haiti no fim de agosto, mesmo sem a aprovação no conselho. A força multinacional também deve contar com missões ostensivas de outros países caribenhos de língua inglesa, como Jamaica e Bahamas. Se patrulharão o país armados ou se farão uma espécie de segurança estática de pontos-chave do país, como portos e aeroportos, é algo ainda em discussão pela comunidade internacional. Outros países, como EUA e Canadá, estariam dispostos a financiar ao menos em parte o trabalho. A participação brasileira ficaria, por ora, restrita ao treinamento policial - e autoridades brasileiras descartam, por enquanto, que policiais brasileiros atuem ostensivamente na segurança do território haitiano. “ "Não posso falar pelos arranjos bilaterais que o Brasil e o Haiti possam ter. O que posso dizer, porém, é que qualquer ajuda para fortalecer a Polícia Nacional do Haiti é boa, e isso inclui treinamento", afirmou à BBC News Brasil María Isabel Salvador, Representante Especial da Secretaria-Geral e Chefe do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH), que esteve em Brasília no começo de setembro. Salvador também foi ao México e ao Chile, em um esforço para sensibilizar países da região sobre a urgência do auxílio aos haitianos. Na visita que farão nas próximas semanas ao Haiti, os agentes da Polícia Federal pretendem terminar um diagnóstico sobre os tipos de treinamento policial mais urgentes para os haitianos. Uma das propostas à mesa é a de que os brasileiros ajudem os haitianos a criar um serviço de inteligência para investigações - capacidade de que a Polícia Nacional do Haiti hoje não dispõe - e que explica, por exemplo, como gangues haitianas pedem dezenas de resgates de sequestros usando um único número de telefone celular. Os haitianos teriam aulas sobre como investigar objetos apreendidos, periciar materiais e usá-los como prova em investigação. A segunda proposta é a de oferecer treinamento para combate a guerrilhas urbanas em territórios conflagrados. Segundo o delegado Urquiza, a Polícia Federal teria condição de oferecer capacitação para grupos táticos de pronta intervenção, mas só será possível saber se essas ferramentas são suficientes ou se seria necessário parcerias com polícias militares ao final do diagnóstico a ser feito em setembro. Caso se mostre necessário envolver as polícias militares, de acordo com três diplomatas com conhecimento das negociações que falaram sob anonimato à BBC News Brasil pela sensibilidade do tema e pela indefinição, a tendência é de que o Brasil ofereça aos haitianos parceria com destacamentos de elite das polícias que atuem em áreas brasileiras com desafios similares e que já tenham antes atuado no Haiti, como o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope). Além disso, o mais provável é que o Brasil traga alguns policiais haitianos para serem treinados no Brasil mas também envie instrutores a Porto Príncipe, para maximizar o número de agentes capacitados. O governo Lula trata o assunto com discrição, tanto pela indefinição dos detalhes operacionais quanto pelo potencial polêmico do assunto. Oficialmente, o Planalto não comentou. "Os abusos cometidos pelas polícias brasileiras são um dos problemas mais urgentes e crônicos de direitos humanos no país, que afetam desproporcionalmente a população negra", disse à BBC News Brasil César Muñoz, diretor adjunto para as Américas da ONG Human Rights Watch, que monitora a situação haitiana. "Se policiais brasileiros forem enviados ao Haiti para treinar a polícia local é fundamental que as unidades e os agentes selecionados, inclusive os comandantes, sejam avaliados minuciosamente para garantir que não estejam envolvidos em violações de direitos humanos ou má conduta." Desde seu início, o governo Lula enfrentou intensa pressão, especialmente dos Estados Unidos, para voltar a liderar algum tipo de ação militar no país. Ao menos desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, o país vive uma situação de colapso. Os últimos mandatos de deputados e senadores expiraram no começo de 2023 e não há representantes eleitos nem para o Congresso, nem para a Presidência. O governo provisório do primeiro-ministro Henry não vê condições de fazer eleições, dada a falta de segurança. O país possui cerca de dez mil policiais - para uma população de quase 12 milhões de pessoas (em comparação, o Estado de São Paulo, com 44,5 milhões de habitantes, possui 80 mil policiais militares). Além disso, no Haiti, quase 5 milhões passam fome atualmente. As condições de desabastecimento da população são agravadas pela atuação das gangues, que dificultam o escoamento da produção agrícola de uma região à outra do Haiti. No ano passado, uma das facções tomou o controle do principal terminal portuário haitiano, e passou a impedir a chegada de combustível e até mesmo de água potável ao Haiti, que naquele momento enfrentava uma epidemia de cólera. Diante da situação, boa parte da população tenta deixar o país - e o destino preferencial são os EUA. Entre outubro de 2020 e maio de 2023, agentes de migração americana encontraram haitianos tentando cruzar a fronteira entre EUA e México ao menos 146 mil vezes. E até maio, havia 580 mil pedidos de acolhida humanitária para haitianos no país. Isso explica, em parte, a urgência dos americanos em ver algum tipo de solução para o problema. "Tanto os Estados Unidos quanto o Brasil estão profundamente preocupados com a situação no Haiti. Durante sua visita ao Brasil em maio, o secretário adjunto (Brian) Nichols conversou com os líderes brasileiros sobre as opções para abordar a questão e (eles) se comprometeram a trabalhar juntos para abordá-la de forma mais direta, principalmente no Conselho de Segurança. Estamos envolvendo o Congresso enquanto trabalhamos para garantir recursos para apoiar uma Força Multinacional (policial) no Haiti e com a comunidade internacional para fornecer financiamento, equipamento, treinamento e pessoal", afirmou um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA após ser questionado pela BBC News Brasil sobre a intenção do Brasil de oferecer treinamento policial ao Haiti. Aos americanos, o governo Lula descartou por completo liderar uma nova missão no país. A avaliação do governo brasileiro é a de que, depois de 13 anos de atuação do Brasil, o Haiti está hoje pior do que antes. Os resultados da Minustah são, no mínimo, ambíguas: drenaram recursos financeiros, custaram vidas haitianas e brasileiras e, depois de mais de uma década, não produziram estabilidade ou avanços institucionais duradouros para o Haiti. Na perspectiva do Brasil, portanto, a atuação militar ou policial simplesmente não é capaz de oferecer saídas para os haitianos. “Não é só segurança. Segurança pública é o primeiro passo para que outros atores internacionais, de ajuda humanitária, de apoio técnico e de desenvolvimento econômico e democrático também possam atuar”, diz um embaixador com conhecimento direto da situação no Haiti. O trabalho de treinamento dos policiais brasileiros, de acordo com integrantes do Executivo, deve ser seguido da atuação de organizações com fins de promoção aos direitos humanos, como a Viva Rio e o Instituto Igarapé - que atuam ou já atuaram antes no país caribenho. “O Haiti precisa de uma resposta multidimensional baseada em direitos humanos para lidar com a gravíssima crise atual", afirma Muñoz, da Human Rights Watch. Para ele, embora melhorar o desempenho da polícia haitiana seja muito importante, essa resposta multidimensional também precisa abordar outras questões-chave, como ajudar o Haiti a "retomar o caminho da real governança democrática, restabelecer o Estado de direito, abordar a disfuncionalidade do sistema judiciário, fortalecer o respeito aos direitos humanos e fornecer ajuda humanitária e outros serviços básicos às pessoas em situação de vulnerabilidade". Consultado oficialmente, o Itamaraty afirmou por meio de nota que "o governo brasileiro continua atento à crise multidimensional no Haiti e estuda as melhores formas de auxiliar aquele país, tanto bilateralmente quando por meio de iniciativas multilaterais” e relembra que "até o momento, nenhuma proposta concreta foi apresentada ao Conselho de Segurança das Nações Unidas” e que “eventual envolvimento do Brasil dependerá de uma série de fatores, inclusive o mandato e o formato que eventual força multinacional venha a ter”.
2023-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51qdq08k5wo
brasil
'Só por milagre ganharia o mesmo no Brasil': como é ser motoboy na Inglaterra
Quem compara a vida de motoboy na Inglaterra com a experiência de exercer a mesma atividade no Brasil diz que encontrou no Reino Unido mais segurança e retornos financeiros bem maiores. "Só por um milagre teria o mesmo ganho no Brasil", diz Jorge*, brasileiro que trabalhou como entregador de aplicativo em ruas paulistanas e inglesas. Ao mesmo tempo, quem compara a vida de motoboy na Inglaterra com a experiência de exercer a atividade no mesmo país há alguns anos diz que condições e pagamentos pioraram. "Não se faz mais dinheiro como antes", afirma Jéssica de Oliveira, que trabalha há mais de uma década como entregadora. "Ainda paga as contas, mas não vejo meu futuro em aplicativo por muito tempo." O crescimento do trabalho por meio de plataformas, como as de transporte de passageiros e entrega de comida, tem levado governos e cortes judiciais do mundo todo a discutir regras para a relação entre empresas e trabalhadores da área – inclusive no Brasil (leia mais abaixo). Fim do Matérias recomendadas Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora faltem estatísticas oficiais detalhadas, dados citados por especialistas incluem a estimativa de que, no Reino Unido, 7,25 milhões de pessoas trabalhavam na chamada gig economy (ou seja, atuando por meio de plataformas diversas, não apenas de transporte) no fim de 2022, segundo dados compilados pela plataforma de RH StandOut CV. Na prática, como é ser motoboy brasileiro na Inglaterra – onde basta caminhar alguns quarteirões em Londres para cruzar com grupos de brasileiros que fazem entrega de comida em motos e bicicletas? A seguir, veja os relatos de Jorge, que acabou de voltar ao Brasil após um ano e meio no Reino Unido; Jéssica, que trabalha com entrega na Inglaterra há 13 anos; e Thiago, que recentemente deixou de ser exclusivamente motoboy para ter como atividade principal um trabalho registrado no país. O motoboy Jorge, de 45 anos, retornou a São Paulo depois de uma temporada de mais de um ano na Inglaterra – onde conta ter conseguido, na mesma atividade, ganhos que não consegue no Brasil. Um motivo que o impulsionou a trocar as ruas paulistanas pelo Reino Unido foi exatamente a necessidade de aumentar a renda da família. “Meu pai, que faleceu em 2022, tinha uma doença rara no pulmão e, no fim, usava dois cilindros de oxigênio por semana, que custava R$ 300. Aqui (em SP), não tinha como eu manter isso. Mas em um dia de trabalho na Inglaterra eu comprava dois oxigênios.” Os valores que um trabalhador de entrega ganha dependem, além da quantidade de horas trabalhadas, de quanto o trânsito está fluindo, do dia da semana (de sexta a domingo, há mais pedidos), da época do ano e das condições de temperatura daquele dia (em dias de chuva e de frio, os pedidos aumentam). Jorge e outros motoboys ouvidos pela reportagem relataram que gira em torno de 100 libras (mais de R$ 600) o valor de um dia de trabalho para quem atua exclusivamente nessa atividade por cerca de 12 horas diárias. O valor, segundo eles, pode chegar a 200 libras (R$ 1,2 mil) em um dia de muito trabalho em um fim de semana de inverno (época em que, segundo eles, a quantidade de pedidos é muito maior). Desse montante, são descontados os gastos com o veículo, como combustível e manutenção. "Minha meta era de 120 libras, para ficar com 100, porque era 10 de gasolina e 10 de cigarro." "Para fazer R$ 600 no Brasil, só um milagre. O máximo que eu consigo trabalhando a mesma quantidade de horas no Brasil é R$ 200." A demanda mais alta pelo trabalho dos motoboys no inverno, quando os moradores saem menos de casa, vêm com um preço sentido na pele na Inglaterra. “Nunca passei tanto frio na minha vida – meus pés doíam, meu pé nunca ficou quente nesse lugar no primeiro ano. Depois, comprei uma meia elétrica que me indicaram. Sofri demais com o frio.” Ele diz que, no exterior, conseguiu comprar produtos que não poderia no Brasil. “Nunca que eu compraria jaqueta da mesma marca que comprei na Inglaterra – paguei 260 libras (R$ 1.580) e aqui custa R$ 3 mil”, diz. “Aqui você trabalha o mesmo tanto de horas, mas não consegue conquistar as coisas que conquista na Inglaterra”, diz. “Você vai ao mercado lá, tem vontade de comer uma coisa e não precisa ficar escolhendo – você pega e compra. Tem um sorvete que experimentei aí, 5 libras (R$ 30), que aqui custa R$ 54. Também comprei um iPhone – eu não teria como comprar iPhone 13 Pro Max no Brasil.” Outro fator que deixa saudades no brasileiro é a sensação de segurança que ele tinha, quando comparada à que sente em São Paulo. “Aqui em SP, os caras vêm com revólver, mão armada, para te assaltar”, diz. “Lá (cidade inglesa), graças a Deus o perigo são as raposas. Se ela bater na scooter, que a roda é muito pequena, você cai.” Apesar da dificuldade imposta pelo frio, Jorge diz que foi a língua sua principal barreira. Chegou ao Reino Unido, nas palavras dele, sabendo inglês suficiente apenas para contar até dez. “Foi muito sofrimento, porque quando você faz entrega, os aplicativos pedem código para o cliente (informar para o motorista). Aí já viu. A sorte é que, na minha experiência, 90% dos clientes eram muito cordiais, mesmo você não falando inglês. Nunca fui maltratado – diferente do Brasil, onde às vezes o pessoal é meio ignorante quando você atrasa”, diz. Para exemplificar o avanço na língua, ele compara as experiências ao comprar café na Inglaterra na chegada e na partida. “Quando cheguei, não sabia que tinha que pedir café preto (black coffee, ou café sem leite). Aí a atendente perguntava se eu queria com alguma coisa e eu não entendia o que ela falava. Ela pegou um galão de leite e sacudiu”, diz. “Aí, antes de ir embora, consegui pedir um salgado e um café, e entendi que ela me perguntou se eu queria frio ou quente. Pensa numa alegria que fiquei com uma coisa simples – foi uma vitória muito grande”, diz ele, que conta ter voltado ao Brasil devido à saudade da família que havia ficado por lá. A mineira Jessica de Oliveira, de 32 anos, acumula experiência com entregas de moto no Reino Unido desde 2015, quando deixou de ser chef de cozinha para trabalhar com delivery. “Tava cansada da cozinha e queria trabalhar para mim. Sempre fui motoboy, sempre gostei de moto.” Inicialmente, ela entregava encomendas, por meio de uma empresa, e recebia 9 libras (R$ 55 na cotação atual) por entrega. Depois disso, conheceu a entrega de alimentos por meio de aplicativos. “Entrega de comida sempre foi menos, uma média de 6 pounds por entrega. Antes, pagavam bem mais que hoje em dia, tinha corrida que recebia 10 libras. Hoje em dia, não tem mais esse valor”, diz. “Não se faz mais dinheiro como antes. Mas sempre é mais que o Brasil.” Ela – que se formou em gastronomia no passado e hoje estuda direito – resume que o trabalho com delivery “ainda paga as contas”. Mas diz que não vê seu futuro em aplicativo “por muito tempo”. As condições pioraram nos últimos anos, na avaliação dela. Além dos ganhos terem diminuído, diz que a sensação de segurança piorou. “Já tem gente sendo assaltada com faca para pegar a moto. Antes não tinha isso. Ninguém ia roubar moto na sua mão. Isso já chegou ao Reino Unido. Preciso ter um futuro melhor.” A brasileira morou dez anos em Londres – onde define o trânsito como “uma loucura” – e agora vive há três em Brighton – “mais tranquilo”. Além das dificuldades enfrentadas pelos colegas homens, as mulheres nessa atividade precisam lidar com dificuldades adicionais, relata Jessica. “Assédio tem muito, inclusive pelos motoristas que ficam nas ruas, – e pode ser até mesmo brasileiro. Às vezes entra uma moça nova e, se ela for muito bonita, é assediada pelos outros motoristas. Acontece bastante também quando você entrega álcool ou cigarro, porque o aplicativo pede (para o entregador checar) código e identificação do cliente. Se o cliente tiver drogado, bêbado ou algo do tipo, já aconteceu agressão verbal ou até física.” “Uma amiga que trabalhava na minha área foi falar para o cliente que não poderia entregar a ordem (sem a identificação), ele tomou a ordem da mão dela e empurrou ela no chão. Quando chamamos a polícia, disseram que não podiam fazer nada.” Jessica diz que considera que seriam benéficas regras para trabalhadores dessa área. Defende que é necessário continuar com a flexibilidade que hoje existe, mas argumenta que uma proteção maior para esses trabalhadores seria necessária. Foi durante a pandemia de coronavírus, em 2020, que Thiago Tedesco, de 39 anos, decidiu imigrar para o Reino Unido para trabalhar como motoboy para entrega por aplicativos. Ele trabalha com moto no Brasil desde 2008 – antes dos aplicativos, tinha um trabalho registrado também como motoboy – e diz que sempre teve planos de morar fora. Quando um amigo que vivia na Inglaterra contou que os ganhos tinham subido para os entregadores durante a pandemia e que a demanda por entrega havia aumentado muito, Thiago entendeu que seria o momento. “Já tinha planos de vir e aproveitei o momento financeiro, que estava em alta aqui. E, no Brasil, estava aquele caos que a gente sabe.” Entre os trabalhadores do delivery, é consenso que o período da pandemia propiciou maiores retornos financeiros para o trabalho deles. Um conjunto de fatores explica: além da maior demanda devido aos confinamentos, as vias sem trânsito (o que reduziu tempo de entregas) e o fato de que restaurantes muitas vezes operavam exclusivamente com entrega (reduzindo o tempo de espera). Três anos após ter chegado ao Reino Unido e de uma breve temporada na Itália, Thiago faz o balanço de que “valeu à pena na época financeiramente” e diz que “conseguiu pôr a vida em ordem”. “Se não fosse o poder de compra e a segurança, eu ficaria no Brasil. Mas aqui a qualidade de vida é melhor.” De 2015 até meses atrás, a atividade principal de Thiago era o delivery – mas neste ano achou que valia mais a pena migrar para um trabalho registrado e manter as entregas como um complemento no orçamento. “No verão, o delivery dá uma caída e pós-pandemia os ganhos no meu estilo de serviço não estavam sendo mais compensadores. Aí arrumei serviço registrado porque não estava ganhando o que gostaria. A desvalorização do serviço aqui e no Brasil é parecida, porém aqui a libra camufla isso, porque o poder de compra da libra é grande”, diz ele, que foi contratado para equipe de limpeza por uma universidade. “No começo, achava que não ia conseguir cumprir horário pelo tempo que tive de flexibilidade. Nesse quesito, foi bem tranquilo. O que me fez decidir foi a garantia do salário do fim do mês, saber o que vou ganhar, ter férias, stress psicológico menor, porque sei o que vou ganhar – faça chuva faça sol. Na ponta do lápis, se analisar os gastos com moto, hoje ganho igual ou mais sem a despesa na moto.” Agora, Thiago e a família planejam a mudança da esposa e dos filhos – gêmeos de 7 anos e uma menina de 5 anos –, que ficaram no Brasil. “Quando minha família tiver aqui e minha esposa tiver trabalhando, vou diminuir drasticamente o tempo de trabalho (com delivery). Se eu ganhasse bem mais do que ganho hoje, pararia (com delivery).” Sobre a falta de proteção para a categoria, Thiago diz que, desde que vivia no Brasil, priorizou pagar seguro “top” para casos de queda e seguro de vida. “Muitos acham besteira pagar um seguro, mas tenho 3 filhos, eu não posso falhar.” A BBC News Brasil procurou a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) para questionar se há um entendimento geral sobre as exigências para o cadastro no Brasil, e a associação informou que “os processos variam”. A Uber no Brasil informou que as exigências para cadastro dependem de legislação local e que a empresa segue as regras de acordo com país ou cidade. A discussão sobre o que devem ser as regras do trabalho para plataformas vem crescendo no Brasil, onde o Ministério do Trabalho discute com plataformas e trabalhadores os termos para uma proposta de regulação a ser enviada ao Congresso Nacional. “Claro que é necessário um ambiente favorável à inovação, mas não vejo a regulação e a adequação às necessidades humanas como barreiras. Pelo contrário. A tecnologia tem que servir às pessoas, e não as pessoas servirem à tecnologia”, disse Pinheiro. *Nome fictício para proteger a identidade do entrevistado.
2023-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nv07mk1x2o
brasil
Exclusivo | Banco do Brasil é alvo de inquérito inédito sobre papel na escravidão e MPF pede reparação
O Ministério Público Federal (MPF) notificou o Banco do Brasil (BB) na tarde desta quarta-feira (27/09) sobre a abertura de um inquérito civil público que pretende investigar o envolvimento da instituição na escravidão e no tráfico de cativos africanos durante o século 19. A ação, inédita no país e obtida com exclusividade pela BBC News Brasil, visa iniciar um movimento de cobrança por reparação histórica de grandes e centenárias instituições brasileiras - estatais e privadas - que de alguma forma tenham participado ou fomentado a escravidão no país. O inquérito foi proposto por um grupo de 14 historiadores de 11 universidades, que pesquisaram e escreveram um texto sobre o que se sabe da relação do Banco do Brasil com a economia escravista e seus negociantes. Eles descobriram, por exemplo, que entre os fundadores e acionistas do BB estavam alguns dos mais notórios traficantes de escravizados da época - entre eles José Bernardino de Sá, tido como o maior contrabandista de africanos do período (leia mais abaixo). Três procuradores aceitaram a sugestão e elaboraram uma ação com o objetivo de fazer com que o banco estatal reconheça e tome medidas para investigar e tornar públicas suas ações durante a escravidão. Fim do Matérias recomendadas Entre essas ações, está o financiamento, em um primeiro momento, de pesquisas acadêmicas sobre o assunto para que, no futuro, possa bancar projetos de reparação e políticas públicas voltadas à comunidade negra. “O debate sobre reparação está acontecendo no mundo inteiro. Da nossa parte, queremos aprofundar a discussão com o Banco do Brasil e com a sociedade para que essa história não seja mais silenciada”, diz Julio Araujo, procurador regional dos direitos do cidadão do MPF, que assina o despacho com outros dois colegas, Jaime Mitropoulos e Aline Caixeta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “O que existe hoje é uma naturalização do papel de várias instituições brasileiras nesse período. Essa é uma discussão importantíssima a ser encarada: até que ponto cabe a reparação histórica e qual é a melhor maneira de fazê-la?”, questiona o procurador. A escravidão é considerada um crime contra a humanidade. Por isso, não prescreve e permite que ações relacionadas ao período ainda possam correr na Justiça. Instituições de alguns países, como universidades e bancos nos Estados Unidos e Inglaterra, têm reconhecido seu papel na escravidão e criado medidas de reparação, que vão de fomento a pesquisas acadêmicas e indenizações. No documento enviado ao Banco do Brasil, o MPF estipulou um prazo de 20 dias para a presidência da instituição responder a uma série de questões: “A posição do banco sobre sua relação com o tráfico de pessoas negras escravizadas”, “informações sobre financiamentos realizados pelo banco e relação com a escravidão”, “informações sobre traficantes de pessoas escravizadas e sua relação com o banco” e “iniciativas do banco com finalidades específicas de reparação em relação a esse período.” Os procuradores também solicitaram uma reunião com a direção do BB para discutir medidas de reparação histórica no dia 27 de outubro, no Rio de Janeiro. Também convidaram para o encontro o grupo de historiadores que propôs a ação e membros dos ministérios de Direitos Humanos e Igualdade Racial. Segundo Julio Araujo, o inquérito civil “é diferente de uma investigação tradicional”, e pode terminar em um acordo, Termo de Ajuste de Conduta (TAC) ou mesmo uma ação judicial contra o banco caso a instituição se recuse a discutir o tema. “É imprevisível, não sabemos qual o rumo ele pode tomar, mas queremos uma resposta do banco”, afirma o procurador. Após a publicação da reportagem, o BB enviou uma nota afirmando que pretente colaborar com o MPF. "O Banco do Brasil está à disposição do Ministério Público Federal para continuar protagonizando e envolver toda a sociedade na busca pela aceleração do processo de reparação" (leia a nota completa abaixo). Mas, afinal, como o Banco do Brasil participou da escravidão? Nos últimos cinco meses, os historiadores pesquisaram em arquivos públicos a participação de escravocratas e traficantes na fundação e estabelecimento do Banco do Brasil como a maior instituição financeira do Império. No início da pesquisa, havia uma questão fundamental: o Banco do Brasil de hoje é o mesmo do século 19? “Inicialmente, na minha cabeça, a resposta era negativa, porque ele havia sido fundado, liquidado e refundado outras vezes”, explica o historiador Thiago Campos Pessoa, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), um dos acadêmicos que assinaram o documento enviado ao MPF. A resposta para o dilema, conta Pessoa, veio do próprio banco. “Oficialmente, o BB conta que sua história começa em 1808, com a vinda do rei D. João 6º ao Brasil. Ou seja, mesmo com as refundações, ele considera que é sempre a mesma instituição. Então, partimos dessa premissa: é o mesmo banco”, afirma Pessoa. De fato, em seu site, o Banco do Brasil afirma ter mais de 200 anos de história, embora não cite a escravidão nem suas três refundações. “Estamos cuidando do futuro com responsabilidade, e cultivando, há mais de 200 anos, o valor dessa relação que temos com os brasileiros”, diz o texto da empresa na seção “Quem somos”. Em sites de órgãos do governo federal, como do Banco Central e do Arquivo Nacional, a história do BB sempre começa em 12 de outubro de 1808, meses depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil. Quando foi criado, o objetivo da instituição era enfrentar a escassez de crédito e de moeda do Império português, mas sua atuação se reduziria ao financiamento público. Segundo os historiadores, porém, parte do dinheiro do banco vinha de taxas cobradas de embarcações dedicadas ao tráfico de africanos. “A escravidão e o comércio negreiro financiavam a constituição do banco também de maneira indireta por meio de subscrições”, escrevem os pesquisadores. Ou seja, o governo imperial concedia títulos de nobreza a escravocratas e comerciantes ilegais que colocavam dinheiro no banco. Com dificuldades financeiras, esse primeiro BB foi dissolvido em 1829 e depois foi refundado em 1833, mas essa fase durou apenas um curto período. É na refundação de 1853 que a ligação do Banco do Brasil com a escravidão fica mais estreita, segundo os pesquisadores que procuraram o MPF. Eles descobriram, por exemplo, que grandes traficantes de escravizados fizeram parte do grupo de empresários que assinaram o termo de refundação da instituição. Embora tenha renascido como um banco privado, o BB tinha finalidades públicas, como o controle do mercado de crédito e o monopólio da emissão da moeda. Um desses empresários que fundaram o BB era José Bernardino de Sá, que se tornou seu maior acionista em 1853. Um dos homens mais ricos do Império, o magnata tinha fazendas, inúmeros imóveis e até um teatro no Centro do Rio de Janeiro. Mas sua principal atuação era o tráfico de africanos, diz o historiador Thiago Campos Pessoa, da UFF, que há anos estuda a vida do contrabandista e há poucos meses se deparou com o nome dele entre os fundadores do Banco do Brasil. “Esse era um mercado muito complexo e envolvia muitas pessoas dos dois lados do Atlântico. Mas também era extremamente lucrativo, porque, na época, um escravizado valia muito dinheiro. Uma única viagem de um navio negreiro podia enriquecer um traficante”, afirma. Segundo Pessoa, Bernardino de Sá tinha um barracão ao norte de Luanda, capital de Angola, onde deixava os africanos sequestrados até o embarque. Eles chegavam ao litoral de São Paulo e Rio de Janeiro e, depois, eram deixados em fazendas do empresário até serem negociados. Estima-se que o traficante tenha contrabandeado 20 mil africanos entre 1825 e 1851. Essa operação, porém, era considerada ilegal desde 1830, quando o comércio transatlântico de pessoas foi proibido por lei sob pressão da Inglaterra. A questão é que a proibição “não pegou” no Brasil e ficou conhecida como “lei para inglês ver”. Nos anos seguintes, o tráfico se intensificou com anuência e participação do Império. Calcula-se que cerca de 753 mil africanos foram trazidos ilegalmente ao Brasil em apenas duas décadas, entre 1830 e 1850. Como comparação, em todo o período da escravidão no Brasil, que durou cerca de 300 anos, 5 milhões de pessoas foram trazidas ao Brasil. “Nessas duas décadas, o Brasil foi responsável pelo maior crime contra a humanidade do século 19”, diz Bruno Rodrigues de Lima, doutor em História e o Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha, e especialista na história da escravidão desse período. “A lei assinada pelo imperador D. Pedro 2º tem efeito contrário. O tráfico se torna massivo, em escala industrial. O Rio de Janeiro se tornou na época a capital mundial da escravidão. E, para esse mercado dar certo, era preciso muito dinheiro, crédito, operações bancárias e documentos oficiais”, explica Lima, organizador das Obras Completas de Luiz Gama. Era nesse contexto que atuava José Bernardino de Sá. “Não era segredo o que ele fazia, ele era uma pessoa rica e conhecida, com muitos investimentos. Mas foi o tráfico que o enriqueceu. Esse ‘comércio ilegal’ era naturalizado, era conduzido pelo Estado e tinha o Estado como parceiro”, diz. Segundo os historiadores, em 1855, José Bernardino de Sá possuía 5.216 ações do Banco do Brasil, o que representava um montante de cerca de mil contos de réis, fortuna maior do que a de muitos fazendeiros do Vale do Paraíba, região cafeeira entre o Rio e São Paulo e morada dos homens mais ricos do Brasil na época. Mas havia outros nomes conhecidos da escravidão entre os fundadores do Banco do Brasil, inclusive em sua diretoria. Um deles era João Pereira Darigue Faro, vice-presidente do banco em 1855. Visconde do Rio Bonito, Darigue Faro era membro de uma das famílias mais ricas do Vale do Paraíba fluminense. Segundo o documento do MPF, sua família possuía 540 escravizados, “certamente dos maiores proprietários de escravos no Império”, diz o texto. Outro nome era João Henrique Ulrich, diretor do BB por uma década a partir de 1854. Sua história com a escravidão também é conhecida. Em 1842, ele foi flagrado pelo governo de Angola comandando um barracão de escravizados em Luanda. Segundo jornais da época, Ulrich fez fortuna com o tráfico e intermediando negócios do café. Embora entre os fundadores do BB estejam traficantes de escravizados, até que ponto o banco estava ligado à escravidão e quanto de seu dinheiro vinha desse sistema? Para Clemente Penna, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que também assina o documento, o sistema financeiro da época “dependia da escravidão”, mas ainda faltam mais pesquisas acadêmicas para determinar o papel de cada instituição. “Era uma economia que tinha pouca moeda oficial circulando. O que havia era um sistema baseado em títulos de créditos, hipotecas, letras de câmbio… Quem tinha muito dinheiro em caixa eram os traficantes. Então, foram eles que financiaram o Estado, os títulos da dívida e o capital societário dos bancos”, explica. A pesquisa do historiador, que analisou 3 mil execuções de dívidas no Rio de Janeiro entre 1830 e 1860, aponta que escravizados eram utilizados inclusive como garantia do pagamento de empréstimos. Quando havia uma débito não pago, a Justiça determinava que escravizados pertencentes ao devedor fossem enviados a um depósito no antigo Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, onde eram “armazenados” até que o dinheiro fosse devolvido. Se isso não acontecesse, o cativo era leiloado e o valor era usado para saldar a dívida. Segundo Penna, 65% das execuções de dívidas no período tiveram ao menos um escravizado levado a esse depósito - algumas dessas negociatas tiveram participação dos bancos. Para o historiador, todas as operações financeiras da época tinham ligação com a escravidão. “Quem fazia dinheiro no século 19 estava ligado com a escravidão, porque ela estava em toda a sociedade, em toda esquina. Todo o sistema financeiro dependia dela”, explica. O Banco do Brasil também concedeu empréstimos a fazendeiros proprietários de escravizados. Segundo a tese de doutorado de Thiago Campos Pessoa, da UFF, o banco emprestou 800 contos de réis para José e Joaquim de Souza Breves, conhecidos como Irmãos Breves, em 1871. A pesquisa aponta que, além de acionista e com membros na diretoria do BB, a família Breves era conhecida como uma das maiores proprietárias de escravizados do país, com cerca de 5 mil pessoas espalhadas em suas fazendas no Rio e em São Paulo. “O que acontecia era que o banco financiava a escravidão e a escravidão financiava o banco. O dinheiro que entrava e o que saía faziam parte desse sistema”, explica Pessoa. O inquérito do MPF segue um movimento global por reparação histórica de grandes instituições que participaram da escravidão. Na Inglaterra, por exemplo, o caso mais emblemático é do Bank of England, fundado em 1694, que foi proprietário de centenas de escravizados no século 18. Recentemente, o banco reconheceu seu papel na escravidão e, por meio de pesquisas históricas, encontrou descendentes de escravizados*. Já nos Estados Unidos, universidades como Harvard e Brown University também reconheceram o papel que proprietários de escravos tiveram em sua fundação e crescimento. A partir daí, as entidades financiaram pesquisas acadêmicas de longo prazo e em projetos voltados à comunidade negra afetada. Para o procurador Julio Araujo, o inquérito contra o Banco do Brasil pode ser o pontapé inicial das discussões sobre reparação histórica no país. “É preciso encarar essa discussão, porque esse passado e essa memória fazem parte e ainda afetam nosso presente, por meio das desigualdades sociais e do racismo estrutural. A sociedade e as grandes instituições brasileiras precisam se olhar no espelho e enfrentar esse assunto”, diz. Já o historiador Bruno Lima afirma que “todas as instituições brasileiras com mais de 150 anos, sejam elas bancos, universidades e até tribunais de Justiça, têm em suas mãos o sangue e as digitais da escravidão.” “Elas enriqueceram com a escravidão, compraram e venderam pessoas. É preciso um esforço institucional e uma pressão da sociedade para que essa história seja escavada, seja reconhecida, e que a gente consiga finalmente compreender como foi formado o Brasil”, afirma. *Originalmente, a reportagem afirmava que o Bank of England já tinha iniciado a reparação financeira a famílias de descendentes de escravizados. Embora haja uma campanha para que isso aconteça, os pagamentos ainda não foram realizados. Após a publicação da reportagem, o Banco do Brasil enviou uma nota sobre a ação do MPF. Leia abaixo, na íntegra: "O Banco do Brasil considera que a história do país e suas relações com a escravidão das comunidades negras precisam ser um processo de reflexão permanente. Em relação à reparação histórica, o BB entende que essa é uma responsabilidade de toda a sociedade. É essa necessidade de amplo envolvimento do país com o tema que norteou a criação dos ministérios dos Direitos Humanos, Dos Povos Indígenas, da Igualdade Racial e Da Mulher. Também foi recriado o Ministério da Cultura. Tudo isso para acelerar a tomada de consciência e a criação de medidas efetivas de reparação. O Banco do Brasil tem sido uma das empresas brasileiras que mais tem contribuído nesse sentido. Em julho deste ano, o BB assinou Protocolo de Intenções com o Ministério da Igualdade Racial, a fim de unir esforços em ações direcionadas à superação da discriminação racial, à inclusão e à valorização das mulheres negras, com o objetivo de fixar e promover: - o ingresso de jovens negras no mercado de trabalho; - a valorização de iniciativas e produções de mulheres negras, sobretudo aquelas que se referirem a projetos culturais; - ações de fomento ao empreendedorismo e fortalecimento de micro e pequenos negócios de mulheres negras; - o estímulo à ocupação equilibrada de espaços de lideranças no BB, considerando o respeito à diversidade étnica e de gênero; e - apoio mútuo e intercâmbio de experiências no sentido de ampliar as políticas afirmativas internas de raça e gênero, trazendo uma perspectiva interseccional às iniciativas em curso ou a serem realizadas no BB. Em agosto deste ano, o Banco do Brasil tornou-se embaixador de três importantes movimentos de Direitos Humanos da Rede Brasil do Pacto Global da ONU: “Elas lideras 2030”, “Raça é Prioridade” e “Salário Digno”, que buscam mobilizar empresas e organizar empresas para o alcance do ODS. No mesmo mês, o BB foi selecionado para compor a carteira do índice de diversidade da B3 (iDiversa B3), que inclui 79 ativos de 75 empresas, abrangendo dez setores econômicos. O BB ocupa lugar de destaque, com maior peso na composição do índice, pois possui um dos conselhos de administração mais diversos do mercado, composto por 50% de mulheres e 25% de pessoas autodeclaradas negras. Também em agosto, em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares, o Banco do Brasil, renovando a parceria assinada em 2018, assinou a carta de adesão à Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, que é um movimento formado por empresas e instituições comprometidas com a promoção da inclusão racial e a superação do racismo no ambiente corporativo e em toda a sua cadeia de valor. Como empresa que busca promover a igualdade racial, o Banco do Brasil está à disposição do Ministério Público Federal para continuar protagonizando e envolver toda a sociedade na busca pela aceleração do processo de reparação."
2023-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c89w05408pjo
brasil
Motorista e entregador: onde trabalhadores de app têm mais direitos que no Brasil
Motoristas e entregadores devem ter um piso de pagamento por hora trabalhada para plataformas de entrega e de transporte de passageiros? Como podem ter acesso a aposentadoria e auxílios em casos de acidente? Quanto e quem deve pagar por isso? A resposta para questões que definem direitos e deveres de trabalhadores de plataformas está ligada a uma disputa que tem gerado debate no mundo inteiro: como enquadrar a relação entre eles e as empresas da área. Se esses trabalhadores não têm todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos, como definir o tipo de vínculo com as plataformas? Essas atividades estão no que pesquisadores da área chamam de “zona cinzenta” – quer dizer, quem não é geralmente considerado empregado nos moldes tradicionais, mas também não tem todas as características de um trabalhador autônomo. Fim do Matérias recomendadas Enquanto o governo brasileiro discute com empresas e trabalhadores quais podem ser as propostas de regras para a área (leia mais abaixo), o que está sendo feito em outros países? Em países como Chile e Espanha, foram criadas leis que garantiram direitos específicos para a categoria. Na França, a legislação exige que as empresas ofereçam determinados seguros aos trabalhadores. Já no Reino Unido, a decisão sobre direitos da categoria tem ficado na mão dos tribunais. Nesta reportagem, conheça os principais caminhos que governos e cortes de justiça na Europa e na América Latina estão tomando – e onde trabalhadores de aplicativo encontram regras que hoje garantem mais direitos do que no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes, é preciso entender a dificuldade de enquadrar trabalhadores da economia das plataformas em leis preexistentes em diversos países. O professor de Direito da Universidade de Bristol (Reino Unido) Manoj Dias-Abey explica que, com a existência de apenas duas categorias principais – empregado e autônomo – na maiorias dos países, há diversas disputas judiciais para questionar em qual modalidade se enquadram esses trabalhadores. São, por exemplo, ações que pedem o reconhecimento de trabalhadores de plataforma como empregados em vez de autônomos (veja abaixo o exemplo do Reino Unido). “Esse tem sido um tema muito polêmico no mundo. O problema é que existe uma classificação binária na maioria das jurisdições (empregado e autônomo) e você tem que ser caracterizado como empregado para obter acesso a proteções de emprego – como salário mínimo, férias e licença médica – enquanto os autônomos não têm direito a nenhum deles”, afirmou à BBC News Brasil o professor da instituição britânica, que tem pesquisas focadas em direito do trabalho, migração e política econômica. O economista Leonardo Rangel, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com foco em trabalho e previdência, diz que, entre o que seriam características de uma forma clássica de relação de emprego, está o fato de os motoristas estarem subordinados a um algoritmo das empresas que gerencia e avalia o trabalho. Ao mesmo tempo, aponta que a característica mais marcante de trabalho independente nesse modelo é, em teoria, a flexibilidade. "Você tem, ao mesmo tempo, um trabalhador subordinado ao algoritmo, cujo trabalho é gerenciado e avaliado por ele, mas ao mesmo tempo ele pode desligar o aplicativo e fazer outra coisa no momento que ele quiser." Apesar de a questão levantar debate no mundo inteiro, pode afetar de forma diferentes os países, dependendo do cenário socioeconômico. Um ponto importante que marca a diferença dos efeitos desse tema na Europa e na América Latina, segundo Rangel, é o nível de informalidade aos quais estão acostumados. Enquanto no Brasil e em seus vizinhos a informalidade é um traço histórico, diz ele, para os europeus, “a grande novidade é você ter um setor da economia estruturado com base no trabalho desregulado e desprotegido”. “O trabalho em plataforma não é culpado pela grande informalidade nesses países da América Latina, mas acaba jogando luz (nesse problema) porque tem roupagem moderna”, diz. “O dilema é como faz para proteger, para regular, sem parar as inovações.” Em uma decisão recente, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um processo em trâmite na Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo de emprego de um motorista com uma plataforma. Em uma análise preliminar, o ministro considerou que a decisão destoava da jurisprudência do Supremo no sentido da permissão constitucional de formas alternativas à relação de emprego. Pasqualeto diz que “existe uma certa dúvida sobre o que acontece na jurisprudência – o que não é bom para ninguém” e afirma que “a regulação seria muito bem-vinda”. “Hoje quando um trabalhador me pergunta: você acha que devo propor uma ação judicial? Tenho chance de ser considerada empregada? (Eu digo que) olha, depende né? Depende do tribunal, de onde é a ação, o que aconteceu”, diz ela, que também é pesquisadora no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV e no FGV Cidades. Como, então, os países estão encontrando saídas para esta questão? Rangel analisou mudanças tomadas em 15 países na Europa e na América Latina nos últimos anos e destacou três principais caminhos: Um dos caminhos é a decisão judicial, quando acaba nas mãos de cortes superiores determinarem regras para o tratamento desses profissionais. O maior exemplo nesse sentido é o Reino Unido, onde a Suprema Corte decidiu em 2021 que os motoristas eram "trabalhadores" (workers, em inglês), categoria profissional que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria. Essa categoria é uma modalidade intermediária, segundo as leis britânicas – fica entre o empregado (employee) e autônomo (contractor). “A decisão da Suprema Corte se baseou na análise do grau de controle que a Uber exercia sobre seus motoristas e na natureza do relacionamento entre a empresa e seus motoristas. Os juízes concluíram que os motoristas eram controlados de forma significativa pela empresa, o que indicava que eles eram trabalhadores com subordinação bem definida e deveriam ser contratados como empregados”, explicou Rangel. Manoj Dias-Abey, da Universidade de Bristol, diz que, embora essa decisão tenha sido relativa aos motoristas da empresa, entregadores de delivery em moto usaram essa decisão para tentar negociações coletivas – “não tiveram sucesso até agora, mas seus casos estão prestes a chegar ao Supremo Tribunal muito em breve”, disse. Outro caminho é a criação de uma lei, por meio de um projeto de lei enviado pelo governo ou do próprio Congresso para regular o trabalho. “Em algumas situações, como caso do Chile e do Uruguai, você cria condições específicas para o trabalhador independente. Você deixa bem claro que tem os padrões mínimos dos requisitos que as empresas precisam seguir, mas não as obriga a contratá-los como empregados”, diz Rangel. Em 2022, o Chile aprovou lei para regular as novas formas de trabalho trazidas pelo uso de plataformas digitais. Um dos pontos centrais da reforma chilena é que o trabalhador de aplicativo pode ser considerado como dependente ou autônomo em relação às plataformas digitais, dependendo de condições do código de trabalho chileno. Entre as normas estabelecidas no Chile, estão a exigência de arrecadação tributária e acesso à proteção social. Também ficou estabelecido que o valor da hora de trabalho não poderá ser inferior à proporção do salário mínimo mensal por hora, com um acréscimo de 20%. Além disso, a lei estabelece o tempo mínimo de desconexão de doze horas contínuas em um período de 24 horas. No Uruguai, em 2022, o governo apresentou ao Congresso projeto de lei para regular o trabalho em plataformas digitais de entrega de mercadorias e transporte de passageiros. A proposta prevê o acesso aos benefícios da seguridade social por meio de contribuição através de um sistema (chamado Monotributo) mais barato e menos burocrático que as outras formas de recolhimento. Na Europa, o maior exemplo é a Espanha, que obrigou empresas, com a Ley Rider, de 2021, a contratarem entregadores como empregados. Ao serem contratados como empregados, segundo as leis do país, passaram a ter direito a jornada de trabalho regulada, descanso e férias remuneradas, licença maternidade, e cobertura do sistema de proteção social. “As consequências para cada uma dessas intervenções sempre há. Na Espanha, as notícias foram de que no curto prazo houve diminuição da oferta de trabalho, mas depois o número de entregadores estava crescendo”, diz Rangel. “O terceiro caminho – que tem sido adotado até o momento pela França, por exemplo, e pela Dinamarca – é obrigar uma maior responsabilidade da empresa no sentido de mais responsabilidade social: vem cá, você tem que oferecer seguro de acidente de trabalho para esses profissionais, um seguro de substituição de renda caso adoeçam”, diz Rangel. Ele explica que, nessa linha de entendimento, não existe um mecanismo estatal para oferecer benefício da seguridade social, “mas o Estado entra obrigando as empresas a oferecerem por conta delas mais proteção para o trabalho”. Na França, onde não há categoria além de empregado ou autônomo, foram feitas nos últimos anos mudanças nas leis relativas ao trabalho em plataformas digitais. A Lei El Khomri, de 2016, mesmo sem entrar no debate se o trabalhador de aplicativo é empregado ou prestador de serviço, determinou que as empresas ofereçam seguros individuais contra acidente de trabalho e doença. Em 2019, outra lei francesa estabeleceu que trabalhadores de plataforma podem se recusar a prestar um serviço sem que isso resulte em sanção – isso, segundo Rangel, significa que essas decisões dos trabalhadores não podem mais ser usadas pelas plataformas para sancioná-los e tampouco para rescindir uma relação contratual. A discussão sobre o que devem ser as regras do trabalho para plataformas vem crescendo no Brasil, onde o Ministério do Trabalho discute com plataformas e trabalhadores os termos para uma proposta de regulação a ser enviada ao Congresso Nacional. E quais são os pontos sobre os quais se espera definições no Brasil, segundo os especialistas? “Remuneração, saúde, segurança, transparência e previdência são os pontos sobre os quais conversamos. Os aplicativos não querem fazer nada”, disse o presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo, que defende um formato de remuneração que considere hora logada nos aplicativos (em vez de tempo de entrega). Procurada pela BBC News Brasil, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) – que representa empresas de mobilidade como iFood e Uber – disse que “a relação entre empresas e profissionais não caracteriza vínculo nos moldes da CLT, formato que não se adequa à realidade criada pelo trabalho em plataformas”. A associação afirmou, ainda, que participa “de forma construtiva” do grupo de trabalho “para propor uma regulação para o trabalho executado por intermédio de plataformas tecnológicas”. Em discurso na assembleia da ONU, nos Estados Unidos, Lula disse em setembro que “aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos”. Esse tema foi mencionado no plano de governo de Lula, enquanto era candidato. O documento mencionava que sua gestão revogaria o que chamou de "marcos regressivos" da legislação trabalhista e dizia que o governo pretendia propor "uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas". Após assumir o comando do Ministério do Trabalho, o ministro Luiz Marinho disse que daria prioridade à "regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social". A ideia, segundo ele, é "assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas". No início do ano, Marinho disse que pretendia apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre – o que não aconteceu. Nas últimas semanas, a expectativa era de que o grupo de trabalho chegasse ainda em setembro a uma proposta a ser encaminhada ao Congresso – com regras para jornadas, remuneração e proteção social dos trabalhadores –, mas isso ainda não aconteceu.
2023-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg0pr7l0ljo
brasil
Mais de uma centena de botos mortos: as imagens que mostram o drama na seca da Amazônia
Em meio à segunda maior seca na Amazônia em 13 anos, pesquisadores e ribeirinhos da região de Tefé, no interior do Amazonas, registraram a morte de pelo menos 110 botos de diferentes espécies ameaçadas de extinção. A contagem foi feita por pesquisadores do Instituto Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Informações (MCTI). Eles avaliam que a seca intensa na região pode ter desencadeado as mortes dos animais. Diante à mortandade, organizações não-governamentais e agências do governo federal avaliam a realização de uma operação de ajuda para remover animais das áreas mais secas e tentar evitar novas mortes. Procurado pela reportagem da BBC News Brasil, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) enviou uma nota informando o deslocamento de técnicos para a região e a realização de uma operação de resgate para os animais encalhados. Ainda segundo a nota, "há indícios de que o calor e a seca histórica dos rios estejam provocando as mortes de peixes e mamíferos na região". O ICMBio é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). Fim do Matérias recomendadas Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Amazonas (Sema) afirmou que "tem monitorado a situação nas Unidades de Conservação Estaduais sob gestão da pasta". "No momento, a Sema vem realizando esforços no sentido de articular ações junto aos órgãos fiscalizadores de fauna, como o Ibama, a fim de encontrar estratégias emergenciais e de remanejamento de botos", acrescentou em nota. De acordo com especialistas da secretaria, "no caso dos botos, os eventos podem estar associados à estiagem, à escassez de alimentos com a morte de peixes ou, ainda, ao aumentos da temperatura de rios e lagos com a seca. Entretanto, há a necessidade de mais estudos para compreender melhor as causas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As mortes dos botos foram registradas no Lago de Tefé, que se forma em frente ao município de mesmo nome, a pouco mais de oito quilômetros da confluência com o rio Solimões. As carcaças, segundo pesquisadores, começaram a ser avistadas pelos ribeirinhos a partir do sábado (23/09). Em apenas um dia, pelo menos 70 animais mortos teriam sido avistados. Tefé fica a 521 quilômetros de distância de Manaus, capital do Amazonas. O estado, por sua vez, é um dos mais afetados pela estiagem deste ano. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), esta é a segunda maior seca na região desde 2010. Outros 40 municípios estão em estado de alerta e cinco em atenção. De acordo com o coordenador do grupo de pesquisas em geociências e pesquisador titular do Instituto Mamirauá, Ayan Fleischman, as duas espécies encontradas mortas são o boto tucuxi (Sotalia fluviatilis) e o boto vermelho (Inia geoffrensis). As duas são consideradas ameaçadas de extinção e estão na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. "A situação é grave. É um número muito expressivo de botos mortos e a gente fala com os moradores e os ribeirinhos da região e eles dizem que nunca viram algo parecido", afirmou", o pesquisador. Ao se depararem com as carcaças de botos na orla do Lago de Tefé, pesquisadores do Instituto Mamirauá começaram a se perguntar sobre o que teria causado essa quantidade aparentemente anormal de mortes dessas espécies. A pesquisadora do instituto e líder de um grupo de pesquisas sobre mamíferos aquáticos amazônicos, Míriam Marmontel, diz que ainda não é possível afirmar quais as causas específicas das mortes, mas, segundo ela, essa mortandade pode ter sido desencadeada pela seca prolongada na região. "Não posso dizer nesse momento qual é a causa, mas a estiagem e a elevação da temperatura, certamente são fatores que estão levando às mortes", disse a pesquisadora. Marmontel afirma que uma das principais suspeitas é a de que os animais possam ter morrido de hipertermia, que é quando há uma elevação intensa da temperatura corporal causada por causas internas ou externas. "A série histórica aponta que a temperatura máxima do lago era de 32ºC. Nós fizemos medições agora e encontramos temperaturas de 39ºC e 40ºC. Imagina-se que qualquer um de nós sentiria essa diferença de sete ou oito graus Celsius e que isso gera um stress para os organismos. Agora, ainda não sabemos se isso causou a hipertermia", afirma a pesquisadora. Segundo ela, pesquisadores e ribeirinhos têm notado um comportamento atípico desses animais. "Nós temos visto eles adotando um comportamento errático. Aparentemente, eles não conseguem mergulhar e ficam se movimentando em círculos, o que não é normal do comportamento deles", disse. Outro elemento investigado pelos pesquisadores é a possibilidade de que algum agente infeccioso esteja causando as mortes. "No meu entendimento, acho que é algo exacerbado pela temperatura. Pode ter sido algum organismo ou alguma toxina presente na água que anteriormente não causava nada nos animais mas que pela concentração física e pelo aumento da temperatura acabou sendo potencializado e está causando esses problemas", explicou a pesquisadora. Marmontel afirmou que os pesquisadores estão coletando amostras de tecidos dos botos para serem analisadas em laboratórios. O objetivo é que essas análises possam indicar as reais causas da mortandade. De acordo com Míriam Marmontel, uma operação de resgate organizada pelo ICMBio e entidades parceiras deverá começar no domingo (1º/10). A operação terá o objetivo de desencalhar botos que estejam em bancos de areia ou em áreas muito rasas. A informação foi confirmada pela nota enviada pelo ICMBio à BBC News Brasil. A pesquisadora, no entanto, diz que há elementos que dificultam essa ação de resgate. Um deles é a incerteza sobre as causas das mortes e o que será feito com os animais resgatados. Segundo ela, como há a possibilidade de que os animais tenham sido infectados com algum agente externo, a remoção deles para áreas como o leito do rio Solimões poderia colocar em risco outros animais. A BBC News Brasil indagou o ICMBio sobre o destino dos animais eventualmente resgatados, mas não houve resposta. Ayan Fleischman explica que o aumento da temperatura da água no Lago de Tefé é resultado da seca intensa registrada na Amazônia. Segundo ele, essa estiagem é causada pela fenômeno climático conhecido como El Niño, que é o aquecimento das águas do Oceano Pacífico. Ele explica, no entanto, que além do El Niño, a região também estaria sendo afetada pelo aquecimento das águas do Oceano Atlântico. "Antes víamos eventos extremos acontecerem a cada 15 anos. Hoje não, vemos acontecer a cada cinco anos e às vezes até menos", diz Moreira, lembrando que Rio Branco também sofreu com enchentes sem precedentes no primeiro semestre. Especialistas afirmam que a combinação do El Niño com o aquecimento das águas do Atlântico pode levar a um atraso no início da temporada chuvosa na Amazônia, que normalmente começa no mês de outubro. Para Miriam Marmontel, do Instituto Mamirauá, um possível atraso no início da estação chuvosa na Amazônia poderia ter efeitos ainda mais dramáticos em relação às mortes dos botos. Segundo ela, os especialistas temem que o prolongamento da estiagem possa levar a mais mortes. "A expectativa é de que haja mais mortes. Tem mais um mês de seca e o panorama é muito sombrio", disse a pesquisadora.
2023-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25qnlwd3z5o
brasil
'Dark offices': os trabalhadores que têm que usar guarda-móveis como escritório
Tipo de negócio que está se expandindo nas grandes cidades brasileiras, o self storage é conhecido por ser um local onde se pode alugar espaços — de cubículos de 1m² a salas passando de 100 m² — para guardar móveis, eletrodomésticos, garrafas de vinho, arquivos, estoques de produtos, entre vários outros itens. Mas, além de objetos, esses espaços têm sido usados para abrigar também pessoas, mais especificamente trabalhadores de empresas que alugam os chamados box ("caixas", em tradução livre do inglês) para suas operações e para que os funcionários trabalhem ali em uma parte ou em todo o expediente. Boa parte das empresas que têm funcionários trabalhando nos boxes lidam com a armazenagem e a entrega de produtos, ou usam esses cubículos para guardar documentos. Grandes empresas de self storage costumam oferecer estrutura que facilita essas atividades, como wi-fi, acesso por senha ou digital, câmeras de segurança, elevadores para carga, empilhadeiras, carrinhos e docas para a colocação de produtos em caminhões. Fim do Matérias recomendadas Mas alguns especialistas em direito do trabalho criticam o uso desses ambientes — que foram feitos para armazenamento — como escritórios (leia mais no final desta reportagem). Bruna*, de 28 anos, trabalha há um ano e meio em um storage na região metropolitana de São Paulo. Ela é analista de almoxarifado de uma loja virtual. Embora ela goste do seu trabalho, não gosta do ambiente dele. "Na teoria, o self storage é feito apenas para o armazenamento de coisas e produtos, e não para se ter pessoas trabalhando dentro do box", diz Bruna, que trabalha com outras pessoas dentro de um box sem refrigeração. "Não tem janela, o que já é horroroso. Você não vê a luz do dia. É uma grande tendência, mas trabalhar em storage é insalubre." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já Otávio*, 21 anos, surpreendeu-se positivamente quando começou a trabalhar em um storage. Ele, que era atendente de uma loja física e estava acostumado com o contato diário com clientes, foi comunicado por sua chefia que trabalharia por alguns meses dentro de um box, no intervalo da mudança de uma loja física para outra. Ele já está trabalhando há três meses em um box. Em algumas semanas, vai de segunda a sexta para lá, em outras, dia sim dia não — depende do volume e dos horários que chegam as compras pela internet, onde sua empresa vende produtos cosméticos. Sua rotina envolve gerar notas das vendas e entregar os pacotes para a transportadora, que coleta os produtos ali mesmo. Ele trabalha todo o expediente no box, e nos intervalos descansa e mexe no celular em uma área de convivência do storage que tem sofás e tomadas. "No antigo local, todos os dias tinha uma troca. Você nem precisava conhecer a pessoa, mas só de ela dar 'bom dia', já é uma troca. Aí você vem para um lugar onde não tem tanto convívio com clientes, com pessoas de modo geral, eu estranhei", desabafa o jovem. "É um pouco estranho, mas de certa forma é legal também, entendeu? São experiências que a vida nos dá. [O lado legal de trabalhar aqui] Seria basicamente ter um tempo para mim mesmo, colocar os pensamentos em dia. A estrutura é muito boa", diz Otávio, que trabalha sozinho em um box que tem uma pequena janela e um microondas. "Escritório no Self Storage? Dá certo sim", diz o título de um texto no site da Good Storage, uma das maiores empresas de self storage do país e que tem mais de 20 unidades no Estado de São Paulo, principalmente na capital paulista. Segundo o texto, alugar um box é um "excelente custo-benefício para quem deseja ter um local para receber clientes ou, até mesmo, trabalhar de forma privativa e tranquila". Entre as vantagens deste uso enumeradas pela Good Storage estão o wi-fi gratuito, vagas para visitantes, além da segurança e da localização de "excelentes endereços da cidade de São Paulo". Várias unidades da rede têm áreas comuns com mesas para trabalho e café de cortesia. A Good Storage começou também a inaugurar espaços exclusivamente empresariais, com galpões que podem ser usados como locais de armazenamento e centros de distribuição, por exemplo. O Guarde Aqui, outra grande empresa do setor, com 25 unidades em vários Estados, afirmou por meio da assessoria de imprensa que apoia e permite o uso de seus boxes como ambiente de trabalho. Para isso, diz oferecer estações de trabalho com computadores e acesso à internet, além de ambiente para refeições. "Há alguns anos, a grande maioria do nosso público era pessoa física. Hoje, pessoas jurídicas já representam 40% da nossa base de clientes", afirma Mariane Wiederkehr, CEO (diretora executiva) do Guarde Aqui. "Um dos principais motivos é o fortalecimento do e-commerce [comércio eletrônico]. Essas empresas, principalmente do varejo digital, buscam no self storage mais que armazenagem de estoque, elas precisam de um centro de distribuição próprio que conceituamos como dark stores ["lojas escuras"], espaços onde são realizados os processos de armazenagem, separação, embalagem e despacho desses produtos vendidos online." A Guarde Mais — que, segundo seu CEO, Alberto Neto, é a maior rede de storage do Brasil, com 90 unidades — também afirmou permitir e apoiar o uso de boxes para trabalho. "Até uma fábrica de aviamento têxtil temos instalada dentro de um dos nossos boxes", diz Neto. Mirando no setor empresarial, a Guarde Mais está construindo um hotel logístico no Rio de Janeiro (RJ) que terá self storage, estúdios para gravação de podcasts, áreas para armazenagem e estrutura para dark pharmacy ("farmácia escura", para distribuição de itens de farmácia vendidos online). Embora empresas de storage estejam inaugurando espaços dedicados a empresas ou ofereçam áreas comuns para os trabalhadores, o que a BBC News Brasil observou é que muitos destes continuam trabalhando, parcial ou totalmente, dentro dos boxes comuns — aqueles em que uma pessoa física pode guardar móveis ou um empregador decide alocar seus funcionários. Mas o presidente da Asbrass, Rafael Cohen, aponta que, além do preço do m², é preciso considerar que o aluguel de um espaço comercial convencional costuma incluir outros custos, como condomínio, segurança, seguro, entre outros, além de exigências como fiador e contratos longos. "Nesse preço do self storage, já está tudo incluído em um único ticket", diz Cohen, ele mesmo proprietário de uma empresa de self storage no Rio de Janeiro (RJ), a Smartbox, que tem duas unidades. O empresário também destaca que os boxes pequenos puxam o preço médio para cima — e as empresas tendem a precisar de espaços maiores. "O preço do box tem relação com o tamanho. Boxes pequenos têm preços de metro quadrado muito alto. À medida que esses boxes vão sendo maiores, os preços vão caindo", aponta. "Aquele é um preço médio do Brasil, onde existe uma preponderância de boxes pequenos." Rodrigo Melo, proprietário da Thunderbolt, uma marca de bicicletas e patinetes elétricos, viu-se justamente diante da escolha entre alugar uma loja ou um box ao criar sua empresa em 2019, um pouco antes da pandemia de coronavírus. Hoje, suas vendas são online e ele aluga três boxes em uma unidade de storage na capital paulista. Embora ele não tenha funcionários fixos e trabalhe de casa, que fica próxima ao storage, seu negócio demonstra a convergência entre o setor de storage e o ramo das vendas online. Os compartimentos são usados como estoque e, ocasionalmente, para ele ou um prestador de serviço fazer revisões e consertos de bicicletas e patinetes. Ele também recebe clientes ali e usa corredores para fazer fotos de seus produtos. "Eu não tinha essa visão de ter um negócio assim, eu ia montar uma loja, ia ser um negócio de rua. Aí veio a pandemia e ela meio que obrigou a enxugar a estrutura, porque não tinha fundamento ter uma loja de rua numa época que não tinha gente circulando. Então foi nessa época que eu comecei a estruturar a empresa aqui", conta Melo. "Aqui no bairro, em uma loja você vai pagar R$ 8 mil, R$ 10 mil de locação. Enquanto aqui eu gasto R$ 2 mil, R$ 3 mil." "O grande diferencial são os equipamentos. Você tem carrinhos de mão, a doca, então a empresa vem, retira e leva [os produtos]. Leva para o Brasil inteiro. O cliente pode vir aqui para o showroom e depois a gente vai para o coworking e negocia. Ele tem um ambiente seguro para fazer o pagamento, mexer com o banco." "Não vou mudar mais, agora a minha ideia é expandir. A gente vai começar a ter franqueado, vai ser um box desse em cada Estado." Nos quatro prédios de storage que a reportagem visitou na região metropolitana de São Paulo — Estado onde o setor é mais forte —, observou-se que o uso de boxes como ambiente de trabalho não é o que predomina, mas eles estavam sempre ali. Alguns não têm janelas e, em alguns casos, nenhuma lâmpada, recorrendo apenas à luz dos corredores do estabelecimento. Outros têm pequenas janelas tipo basculantes. Alguns box têm tomadas, outros não, dando margem à improvisação, com fios ligados a tomadas nos corredores. Não estava muito calor, mas os locais tampouco estavam frescos. Por serem ambientes muito monitorados e controlados, a BBC News Brasil decidiu não captar nem reproduzir fotos desses ambientes, mas produziu ilustrações com base no que foi visto. Rafael Cohen, da Asbrass, avalia que a pandemia impulsionou o uso dos boxes por empresas. "A atividade [de self storage] inicialmente é muito voltada para pessoa física, e atualmente o público preponderante ainda é a pessoa física. Porém, com a pandemia, a gente teve uma aceleração muito forte no comércio eletrônico, e as empresas começaram a perceber que existem novas formas de trabalhar." Ele afirma que o uso pontual dos boxes para atividades de empresas é o esperado, e não o uso permanente — mas, em última instância, cabe ao locatário do box decidir como usá-lo, diz. Cohen destaca que, diferente da interpretação errônea de muitas pessoas, o negócio do self storage não é a prestação de serviço, e sim a locação de imóveis. "Não é para permanência integral, não foi feito para isso, não é esse objetivo. Mas você usa o seu box como você quiser. Se você quiser ficar o dia inteiro dentro do seu box, você pode. Tem condições de fazer isso", aponta o presidente da associação do setor. "São lugares arejados. Embora sejam fechados, são saudáveis. Tem controle de umidade, tem temperatura adequada, porque também não posso guardar coisas num lugar muito quente. Tem controle de praga, não vai ter barata, não vai ter rato, são locais salubres." Mas dois advogados trabalhistas entrevistados pela BBC News Brasil foram enfáticos quanto ao que dizem ser inadequado o uso de boxes como ambiente de trabalho. "O guarda móvel, até pelo nome que se intitulou o serviço, é próprio para armazenar coisas, e não um local de trabalho para pessoas", afirma o advogado Ricardo Calcini, professor do Insper e sócio do escritório Calcini Advogados. "Isso leva ao fenômeno que a doutrina trabalhista já apelidou de 'coisificação do ser humano', permitindo que sindicatos e o próprio Ministério Público do Trabalho ingressem com ações judiciais para impedir a adoção de tais práticas, podendo as empresas assumirem condenações milionárias." "Certamente tais locais estão em desacordo com a legislação trabalhista. " Calcini aponta que a situação pode ser considerada irregular sob a norma regulamentadora nº 15 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que aborda a inadequação do ambiente de trabalho. Segundo o advogado, isso traria, na Justiça, consequências como o pagamento de adicional de insalubridade, além de danos morais. Especialista em direito processual e material do trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o advogado Marcel Zangiácomo aponta também para possíveis violações ao artigo 175 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que exige iluminação natural ou artificial "uniformemente distribuída, geral e difusa, a fim de evitar ofuscamento, reflexos incômodos, sombras e contrastes excessivos". Ele aponta também para o artigo 171, segundo o qual os locais de trabalho devem ter no mínimo 3 metros de pé-direito, salvo se "atendidas as condições de iluminação e conforto térmico compatíveis com a natureza do trabalho". Mas, para Zangiácomo, os problemas não estão apenas em pontos específicos, como iluminação ou pé direito, mas no que chama de "deturpação gigantesca" da finalidade desses espaços. "Logicamente, é grave. Primeiro porque o fundamento, inclusive o objeto social do negócio dessas empresas [de storage], não é posto de trabalho, mas sim a guarda de materiais. Então não é um ambiente propício pro trabalho, com absoluta certeza", afirma o advogado, sócio do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados. Outra gravidade, segundo o advogado, é a dificuldade de fiscalização, já que os storages não são locais óbvios de trabalho como são, por exemplo, salas comerciais ou espaços de coworking (espaço compartilhado de trabalho). "Parece aquele famoso jeitinho brasileiro: 'Olha, eu já pago o aluguel desses locais, por que não fazer a minha empresa aqui?'", diz, simulando o pensamento de um empresário ou uma empresária que decide ter funcionários nos box. Zangiácomo avalia que tanto as empresas que têm funcionários trabalhando nesses espaços alugados quanto as próprias empresas de storage que são locatárias podem ser alvo de ações trabalhistas na Justiça, eventualmente acusadas pelo MTE, pelo Ministério Público, por empregados ou sindicatos Sobre as empresas de storage, o advogado diz: "A responsabilidade dessas empresa existe. Quando elas agem com culpa — ou seja, através de negligência, omissão ou imprudência —, elas podem ser responsabilizadas." Para ele, essas empresas estão sendo "no mínimo imprudentes". A reportagem pediu posicionamento sobre como empresas do setor que tenham no mínimo 20 unidades lidam com as acusações de insalubridade. Em nota, a Good Storage afirmou que "atua como locadora e gestora das áreas comuns, não interferindo e se responsabilizando pelas atividades dentro dos espaços." "Trata-se de uma relação de cunho locatício, seguindo as mesmas regras praticadas pelo mercado imobiliário. O que se encontra em absoluta consonância com as regras jurídicas do Direito Brasileiro", afirmou a assessoria de imprensa. Já o Guarde Aqui afirmou: "A empresa não incentiva os clientes a trabalharem full time [em tempo integral] dentro dos boxes. Oferecemos fora dos boxes uma estrutura completa para quem quer trabalhar, com salas com ar condicionado, mesas, wifi, banheiros e refeitório para todos os clientes." Por fim, Alberto Neto, da Guarde Mais, garantiu que todos os compartimentos usados para trabalho são adaptados para isso. "Eles são preparados com total infraestrutura: elétrica, climatização, detector de presença e fumaça, pallets e qualquer outra demanda que possa ser solicitada pelo cliente." O relatório da Asbrass relativo ao primeiro trimestre de 2023 mostra uma expansão do setor de self storage, de trimestre a trimestre desde o início de 2022, em número de boxes, operações (que são unidades, como um prédio cheio de boxes) e empresas. Na comparação do primeiro trimestre de 2022 com o mesmo período de 2023, a vacância diminuiu 3,4% (de 17,5% para 16,9%). Rafael Cohen, presidente da associação, prevê que o setor ainda crescerá muito no Brasil. "É um mercado que tem um futuro muito grande pela frente. A gente se compara sempre aos Estados Unidos, que é a Meca desse negócio. Eles têm mais de 60 mil locais de self storage, a gente tem 500." Das operações existentes no país (um total de 542), 42% começaram a funcionar até 2015, 36,3% entre 2016 e 2019 e 21,8% depois de 2019. "Os imóveis estão ficando cada vez menores, as cidades estão ficando cada vez mais densas e as pessoas estão cada vez acumulando mais. Tudo isso faz com que o setor seja conhecido lá [nos EUA] como um setor à prova de crise: quando está tudo bombando, as pessoas compram mais e guardam; e quando está ruim, as empresas se desmobilizam para guardar equipamentos, guardar seus móveis, guardar seus documentos, porque fecham [seus escritórios]", diz Cohen. O Estado de São Paulo lidera no setor, concentrando 28,7% das empresas e 41% das operações de self storage no país. Considerando as operações nas regiões brasileiras, 2% estão no Norte, 10% no Centro-Oeste, 18% no Sul, 12% no Nordeste e 57% no Sudeste. *Alguns nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados, cujos locais de trabalho também foram ocultados.
2023-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5d5wqg18wo
brasil
Sem água na torneira, comida mais cara: o suplício das famílias em seca histórica na Amazônia
A Amazônia concentra 20% de toda a água doce do mundo, mas na casa de Maria, de 63 anos e moradora de Rio Branco, no Acre, não há água nas torneiras. Casada e mãe de dois filhos, ela está dependendo da prefeitura local para receber 3 mil litros de água, entregues de caminhão-pipa semanalmente. "Se a gente lava uma roupa, tira a última água para passar pano na casa, lavar a calçada. Vamos economizando, por que a gente vive na expectativa – nunca sabe se vai ter água ou não", conta Maria, que pediu para ter seu sobrenome preservado. "Às vezes, o pipa da Prefeitura dá algum problema e não vem, daí temos que gastar R$ 50 para comprar uma caixa de mil litros. É assim, é muito sofrido." A família de Maria é uma das mais de 4 mil famílias que estão sendo abastecidas por caminhões-pipa da Operação Estiagem, iniciada pela Defesa Civil do Rio Branco em julho e que este ano deve se estender até meados de dezembro. Fim do Matérias recomendadas Em 2021, a operação atendia 10 comunidades, mas este ano já são pelo menos 30 – em um momento em que o rio Acre, que abastece a capital do Estado, chegou a bater no nível de 1,44 metro, apenas 19 cm acima da mínima histórica de 1,25 metro, registrada em outubro de 2022. "Estamos com 40% de perda de produção em culturas como mandioca, banana, café, na piscicultura [criação de peixes] e na bacia leiteira – isso representa 40% de perda na economia do produtor na zona rural", estima o tenente-coronel Cláudio Falcão, coordenador da Defesa Civil em Rio Branco. "Na zona urbana, há um aumento das doenças respiratórias devido às queimadas e alto risco de desabastecimento de água na capital. Temos nos desdobrado para manter o abastecimento nos bairros onde a água não tem pressão suficiente, mas os caminhões-pipa já estão sendo insuficientes para a demanda – lembrando que, com a seca, o consumo de água aumenta." Na semana passada, o governo do Acre declarou estado de emergência, citando a superlotação das unidades de saúde devido à má qualidade do ar e altas temperaturas. "Entre 23 de junho e 4 de agosto, passamos 41 dias sem um pingo de chuva e, agora em setembro, a média histórica é de 91 mm e até agora temos a metade disso", diz Falcão. Os três acontecimentos – chuva em excesso no Sul, temperaturas acima da média na primavera e seca no Norte – têm uma causa em comum: o El Niño, aquecimento das águas do Pacífico. Mas, este ano, o El Niño ocorre simultaneamente a um aquecimento do Atlântico Tropical Norte. É a combinação dos dois efeitos que está agravando a seca na Amazônia e pode atrasar a próxima estação chuvosa na região – que normalmente começa em meados de outubro – em até 45 dias, afirma o meteorologista Renato Senna, do Inpa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nesse momento, basicamente toda a Amazônia Oriental – do Pará até a foz do Amazonas no Oceano Atlântico – já está com déficit de precipitação bastante marcado. E, na Amazônia Ocidental, o problema é mais grave na bacia do Negro e do Rio Branco, no Estado de Roraima, onde a chuva está muito abaixo do que normalmente ocorre nesta época do ano." Segundo Senna, a ocorrência simultânea do aquecimento das águas do Pacífico e do Atlântico já aconteceu em 2005 e no biênio 2009-2010 – neste último episódio, foi registrada a maior seca na bacia do rio Negro nos últimos 120 anos. "No rio Negro, estamos observado este ano um regime de descida do rio muito acentuado e atípico para essa época do ano", observa Senna. "Normalmente, [a descida] fica na casa de 15 a 20 cm [por dia]. Em 2005, essas taxas foram maiores, mas ainda dentro desse limite; em 2010, já ficou acima dos 20 cm por dia no mês de setembro e, em 2023, estamos em uma média de quase 30 cm por dia – o que é totalmente fora dos padrões", destaca o especialista. Ele observa ainda que alguns dos principais rios amazônicos já estão em nível abaixo daquele registrado na mesma época em 2010 – ano da maior seca da história na Amazônia. "Hoje [26/9], o nível do rio Negro em Manaus está em 16,74 m. A mínima histórica foi 13,63 m em 2010 – mas nessa época aquele ano, o rio estava em 17,2 m. Ou seja, estava 50 cm acima do que temos hoje", diz Senna, observando que isso indica que a seca esse ano pode talvez superar aquela histórica de 2010. José Genivaldo Moreira, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), observa que, embora os períodos de seca sejam sazonais na Amazônia e o El Niño seja um fenômeno cíclico, há um aumento da frequência dos eventos climáticos extremos na região, o que pode estar relacionado com o avanço das mudanças climáticas – que são agravadas por fatores como o desmatamento. "Antes víamos eventos extremos acontecerem a cada 15 anos. Hoje não, vemos acontecer a cada cinco anos e às vezes até menos", diz Moreira, lembrando que Rio Branco também sofreu com enchentes sem precedentes no primeiro semestre. "Esses impactos recorrentes também são decorrentes de falhas na estrutura de ações que devem partir do poder público para enfrentamento do impacto desses eventos." No Estado do Amazonas, já são 15 municípios em situação de emergência em razão da seca severa. Segundo levantamento realizado pela Defesa Civil do Estado, as cidades mais atingidas pela baixa das águas estão nas calhas dos rios Juruá e Solimões, nas regiões do Alto e Médio Solimões. Outros 40 municípios estão em estado de alerta e cinco em atenção. Em nota divulgada na semana passada, a Secretaria de Estado de Educação do Amazonas informou que a seca já afetava 355 estudantes da rede estadual de ensino, impedidos de chegar a suas escolas devido ao baixo nível dos rios. "Caso a vazante continue a se acentuar nos municípios, pelo menos 20 mil alunos podem ser impactados", informou a pasta, acrescentando que os estudantes já prejudicados terão mudança no calendário letivo e que os alunos em vulnerabilidade receberão kits de alimentação. Na terça-feira (26/9), o governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), esteve em reunião em Brasília com os ministros da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e representantes de seis órgãos federais. Após a reunião, foram anunciadas a ampliação da ajuda humanitária à região, com o envio de itens como cestas básicas e água, além da intensificação do combate ao desmatamento e aos incêndios, principalmente no sul do Amazonas. O governo federal também anunciou a liberação de R$ 140 milhões para dragagem nos rios Madeira e Solimões, importantes vias de escoamento de cargas e produtos da região, inclusive da Zona Franca de Manaus. Segundo Wilson Lima, mais de 100 mil já são afetados pela estiagem no Amazonas e o número de atingidos deve aumentar ao longo de outubro, chegando a 500 mil pessoas que podem ficar sem acesso a alimentos e água potável. Além disso, ele acredita que a seca de 2024 na região amazônica pode ser ainda mais severa do que a atual. Isso porque, por conta do baixo nível dos rios agora, o próximo período chuvoso pode não ser suficiente para recuperá-los. Vanessa Reis, de 40 anos, é moradora de Benjamin Constant (AM), um dos municípios mais afetados pela seca no extremo Oeste do Estado do Amazonas. Assistente administrativa em uma escola indígena e dona de um pequeno negócio de papelaria personalizada para empreendedores, ela sente os efeitos da seca extrema na alimentação de sua família e nos custos de sua pequena empresa. "Houve uma alta nos preços dos produtos em torno de 40%, porque as embarcações grandes não estão chegando em Benjamin Constant. Elas estão chegando apenas na cidade vizinha de Tabatinga", observa Vanessa, que é casada e mãe de um filho com deficiência. Segundo ela, isso afetou principalmente os preços de itens que chegam de fora, como arroz, feijão e óleo, que agora precisam ser entregues em Tabatinga e então transportados a Benjamin Constant em embarcações menores, como as canoas e voadeiras. "Houve um aumento também na passagem – para sair daqui para Tabatinga, custava R$ 35 nas baleeiras, que são as voadeiras pequenas. De R$ 35, foi para R$ 70, porque o percurso ficou mais longo. E tem muita gente que faz esse percurso diariamente, porque mora aqui e trabalha em Tabatinga, ou vice-versa", relata a moradora. Com seu pequeno negócio de papelaria, Vanessa atendia encomendas de cidades do entorno, mas precisou interromper a atividade devido à alta do frete. Agora, ela apenas cria os produtos e auxilia os clientes a imprimir por conta própria – mas com isso, perdeu bastante receita. "Pagamos aluguel, combustível e nosso negócio ajudava a aliviar o orçamento. Agora estamos fazendo controle de gastos – por exemplo, a gente não janta mais, só fazemos um lanche à noite, então estamos aproveitando para equilibrar a balança", afirma, mantendo o bom humor. Renato Senna, do Inpa, avalia que as regiões amazônicas não estão preparadas para enfrentar uma seca tão dura como a atual – apesar dos esforços empreendidos atualmente por prefeituras, governos estaduais e federal, além das diversas defesas civis da região. "Os rios são as grandes artérias de tráfego da população – são as estradas da Amazônia. Quando há uma grande seca, isso interrompe a chegada de itens de necessidade básica. Cestas básicas não chegam, combustível não chega para muitas cidades que ainda dependem disso para ter iluminação, o acesso às escolas e à saúde são interrompidos", exemplifica. "Com a seca, as distâncias crescem e os barcos não conseguem navegar. Fica impossível."
2023-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c109gg1304qo
brasil
O que a negritude de Machado de Assis diz sobre como Brasil lida com racismo
Assinada pelo escrivão Olympio da Silva Pereira, a certidão de óbito de Joaquim Maria Machado de Assis, morto aos 69 anos em 29 de setembro de 1908, há 115 anos, traz uma informação curiosa, senão polêmica: a nona linha do formulário declara que sua cor era "branca". Sobretudo nos últimos anos, a questão racial daquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos tem se tornado uma bandeira importante para a afirmação e a valorização da população negra. Mas o que pesquisadores contemporâneos têm descoberto é que, considerando documentos como a própria certidão de óbito e cartas antigas, a identidade racial de Machado de Assis é um assunto polêmico desde antes da morte dele. O que leva a uma questão importante: como o próprio Machado de Assis se identificava? "Nós não sabemos até o momento. Não há nenhum documento que tenha chegado até nós que traga essa informação, como o próprio Machado se identificava, como ele se via. Temos depoimentos só de terceiros", afirma à BBC News Brasil a historiadora Raquel Machado Gonçalves Campos, professora na Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora sobre a vida e a obra do escritor. Fim do Matérias recomendadas Um dos documentos citados por ela é a carta enviada pelo poeta português Gonçalves Crespo (1846-1883) a Machado, com data de 6 de junho de 1871. "A Vossa Ex., já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma certa simpatia que para si me levou quando me disseram que era… de cor como eu", diz trecho da correspondência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não se sabe como o escritor brasileiro reagiu ao ler a missiva, tampouco se conhece qualquer resposta que ele tenha eventualmente redigido de volta ao português. A professora Campos pontua que a expressão "de cor" era a mais aceita naquele momento histórico para descrever pessoas negras. "[O relevante é que] Machado é visto como um homem ‘de cor’ por um escritor de seu próprio tempo", salienta ela. Pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a historiador Cristiane Garcia traz outro elemento que pode indicar que o escritor, em vida, se via como negro. "Eu pesquiso Machado de Assis quando jovem. Entre o final de 1854 e início de 1855, Machado de Assis passou a frequentar a tipografia de Francisco de Paula Brito, tipógrafo, editor e homem de letras, negro como Machado", conta ela, à BBC News Brasil. "A tipografia de Paula Brito foi a responsável pela imprensa negra de meados do século XIX, no Brasil. Não só isso: ali se organizava uma rede de homens negros que se ajudavam e protegiam, pelo menos até os primeiros anos da década de 1860", aponta. "E a condição de ser homem negro na sociedade da época é uma questão presente na produção deles, em alguns jornais que saíam da tipografia do Paula Brito, no posicionamento político, entre tantos outros aspectos presentes na trajetória desses homens. Machado de Assis foi um aprendiz desse grupo, cresceu muito com eles. Paula Brito o apresentou para uma rede de sociabilidade que possibilitou a abertura de novos caminhos profissionais para o jovem Machado de Assis." Pesquisador independente que já descobriu vários textos inéditos do escritor, o publicitário Felipe Rissato também afirma à reportagem que "não existe uma declaração de Machado de Assis acerca da cor de sua pele". "Quando fez seu testamento de próprio punho, em 1906, poderia ter incluído esse dado. Não que fosse obrigatório. E nada mencionou", pontua ele. "Fato é que Machado de Assis era mulato, filho de pai pardo, alforriado, e mãe branca." Um mês após a morte do escritor, o jornalista e escritor José Veríssimo (1857-1916) publicou um obituário sobre o amigo no Jornal do Commercio, texto este intitulado 'Machado de Assis: impressões e reminiscências'. Nele consta a seguinte frase: "mulato, foi de fato um grego da melhor época". O texto provocou reação em outro amigo de Machado, o jornalista, historiador e político Joaquim Nabuco (1849-1910). "Ele escreveu uma carta ao Veríssimo elogiando o obituário, mas dizendo que ele, Veríssimo, deveria retirar este trecho para o caso de uma futura publicação em livro do texto", comenta Campos. "Eu não o teria chamado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese", anotou Nabuco. "Rogo-lhe que tire isso, quando reduzir os artigos a páginas permanentes. A palavra não é literária e é pejorativa. O Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego." Há outro registro contemporâneo a Machado sobre como os outros o viam. Trata-se do livro 'Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira', publicado em 1897 pelo crítico Sylvio Romero (1851-1914). Na obra, o autor afirma que Machado de Assis é "um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto". "Mas a crítica não existe para ser agradável aos preconceitos dos homens, que devem ter ânimo bastante para libertar-se de infundados prejuízos", prossegue Romero. "Sim, Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua fisiologia […]. Com certeza não o molesto, falando assim; e não pode ser por outro modo." Para Campos, "dentro da perspectiva racista de Sylvio Romero, ele ataca e diminui o Machado de Assis, qualificando-o como mestiço [com a expressão 'sub-raça brasileira']". Filho de um descendente de escravos alforriados, Francisco José de Assis, e de uma lavadeira portuguesa oriunda dos Açores, Maria Leopoldina Machado da Câmara, o escritor foi fotografado algumas vezes — mas a baixa qualidade das imagens e o fato de serem em preto e branco, dadas as limitações técnicas da época, ainda hoje suscitam debates sobre qual seria a real cor de sua pele. Em artigo publicado nos anais do VI Seminário do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, de agosto de 2020, Raquel Campos analisou a "cor e a identidade racial" nas biografias escritas sobre Machado de Assis. Compilado de conferências proferidas entre 1915 e 1917, 'Machado de Assis', do advogado, jornalista e crítico Alfredo Pujol (1865-1930) traz apenas duas menções raciais sobre o escritor. Logo no início, ele pontua que seu biografado era filho de "um casal de gente de cor". Em seguida, quando ele descreve os primeiros anos de sua carreira de colaborador de jornal, enfatiza sua convivência com "as agruras criadas pela inferioridade de seu nascimento, pelos preconceitos de cor, pela sua grande pobreza". Até hoje considerada a mais influente biografia de Machado, a obra de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), 'Machado de Assis: estudo crítico e biográfico', de 1936, insiste bastante no aspecto racial do escritor. Segundo a análise de Campos, ela prefere chamá-lo de "mulatinho" mas também usa os termos "mestiço" e "pardinho". A ideia de Pereira era abordar Machado como alguém que nasceu com três grandes dificuldades — a pobreza, a cor e a epilepsia, da qual sofria — e, mesmo assim, ao superar essas questões, conseguiu vencer e se tornar o maior da literatura brasileira. Na conversa com a reportagem, a professora Campos ressaltou que essa biografia tem muitas informações contestadas, mas que ali está dito que Machado "não gostava de referências à sua cor"e "que nunca utilizava a palavra mulato". Em 'A Vida de Machado de Assis', de 1965, o escritor e advogado Luiz Viana Filho (1908-1990) pouco se refere à cor e à identidade racial de Machado, embora recupere a ideia de que ele era "como um grego". Mas há um ponto curioso trazido por esta obra: uma análise do ensaísta e jornalista Peregrino Júnior (1898-1983) que aborda o "embranquecimento" de Machado. Viana Filho vê com naturalidade que o escritor, "uma flor da civilização", houvesse optado por uma imagem mais caucasiana para ilustrar seu livro 'Poesias Completas', de 1901. Para o biógrafo, o "tempo depurou a fisionomia de Machado, fazendo-o perder gradativamente os traços do mestiço" e "ao fim da vida dificilmente se dirá não ser um ariano". Em 'Vida e Obra de Machado de Assis', de 1981, o jornalista e teatrólogo Raymundo Magalhães Júnior (1907-1981) classifica o escritor como "amulatado" e diz que, quando havia ficado noiva dele, Carolina Xavier de Novais (1835-1904) teria afirmado que iria se casar com "um homem de cor". O professor de literatura francês Jean-Michel Massa (1930-2012), em 'A Juventude de Machado de Assis', de 1971, traz um subcapítulo chamado "J. M. Machado de Assis, um mestiço", no qual afirma que ele “é, parece, mestiço”. Mas também pontua que "como muitos brasileiros, não é nem um homem de cor, nem, strictu sensu, um homem branco". 'Machado de Assis, Um Gênio Brasileiro', livro de 2005 escrito pelo jornalista Daniel Piza (1970-2011) foi a última das biografias contempladas pela professora Campos em seu artigo. Ela ressalta que, nele, "são esparsas as alusões à cor de Machado de Assis, que é referido sempre, nessas ocasiões, como mulato". "Lendo as biografias com os olhos do presente, chama a atenção a ausência de classificações de Machado de Assis como 'negro'", pontua a pesquisadora. "Apesar da origem humilde, desde muito cedo Machado teve o acolhimento das pessoas certas para ter a formação autodidata que teve, aprendendo línguas, como o francês, e humanidades, fora dos cursos convencionais. Bem quisto no trabalho como funcionário público, bem como literato, embora não fosse uma unanimidade, Machado adquiriu o status que não se permitia a um homem negro, salvo raras exceções, daí a busca para se começar a entender a incógnita de seu embranquecimento", comenta o pesquisador Rissato. "Curioso é que tendo acesso às suas fotografias originais, vemos claramente os seus traços de homem mulato, o que deixa ainda mais inexplicável a cor 'branca' indicada em seu atestado de óbito". À reportagem, Campos comenta que "não sabemos se Machado se considerava negro mas, mais provavelmente no universo da especulação, considerando os testemunhos que temos, se ele se identificava racialmente provavelmente os termos que ele lidaria seriam 'homem de cor' ou 'mulato', não ‘negro'". Ela lembra que, parte de seus próprios estudos, é preciso compreender a maneira como as identidades raciais foram entendidas no Brasil do século 19 e ao longo do século 20. "Há uma discussão que atravessa pela questão cultural, o conceito antropológico de cultura que enfatiza muito a singularidade do Brasil como uma nação mestiça", afirma. "Sabemos que no século 19 e no 20, essa mestiçagem era entendida como fator de inferioridade, obstáculo ao desenvolvimento nacional. Isso explica o caráter racial das políticas de imigração financiadas pelo Estado brasileiro, que selecionaram as populações alvo considerando um ideal de embranquecimento da população nacional." Nesse contexto, o embranquecimento do maior escritor brasileiro parecia fazer sentido. "A partir da década de 1930, o Machado de Assis começa a ser visto como mestiço, e aí o grande escritor nacional correspondia justamente a um exemplo da identidade nacional mestiça. Machado de Assis passou então a ser tratado fortemente como mulato", acrescenta a professora. Assim, ao longo de boa parte do século 20 no Brasil, tratá-lo como mestiço ou mulato parecia ser a maneira entendida como correta. "Havia esse ideal de democracia racial brasileira, uma construção criada, na verdade, para impedir o combate ao racismo estrutural”, afirma Campos. É como se o Machado pudesse se assumir negro apenas em suas memórias póstumas, a bem da verdade. E isto tem tudo a ver com a ascensão do movimento negro. É por isso que, observa ela, o escritor aparece como negro justamente quando é "descoberto" pelos Estados Unidos, já nos anos 1960. "Nessa época, Magalhães Júnior começa a recusar tal classificação. Para o crítico, o escritor brasileiro poderia ser considerado negro 'do ponto de vista americano'. Já 'segundo os nossos padrões', seria mulato", contextualiza a professora. Para a especialista, é inegável que, sim, "houve um processo de embranquecimento de Machado" e isso está nítida na própria certidão de óbito, onde "fica explícito o apagamento da cor". Mas esse percurso não pode ser achatado em uma linha reta. É permeado de complexidades culturais e sociais. "Uma questão controversa", resume. No meio desse então incipiente debate, a obra 'Machado de Assis e o Hipopótamo', de 1960, é interessante. Ali, o jornalista e historiador Gondin da Fonseca (1899-1977) considera que levantar a questão da identidade racial de Machado é que seria uma conduta racista. "Ele recupera essa perspectiva da democracia racial, dizendo que no Brasil todo mundo tem um pouco de sangue negro, todo mundo é mestiço, então não daria para falar que alguns são brancos, outros são negros", diz Campos. O apagamento da cor de Machado de Assis, então, também pode ter obedecido a essa perspectiva anacrônica de racismo. Se para o mercado literário norte-americano, Machado de Assis é visto como um escritor negro desde os anos 1960, no Brasil essa perspectiva é mais recente. Somente nos últimos anos, por exemplo, livros escolares passaram a defini-lo assim e as próprias fotografias dele passaram a ser restauradas de forma a enfatizar mais nitidamente aspectos afrodescendentes. Além de reparar a história, tais esforços também ecoam políticas afirmativas requisitadas pelo menos desde o fim dos anos 1970 pelo movimento negro no Brasil. Em 2021, a Universidade Zumbi dos Palmares lançou a campanha Machado de Assis Real, um abaixo-assinado para que as editoras deixem de imprimir e comercializar livros em que o escritor apareça embranquecido. Reitor da universidade, o advogado e educador José Vicente diz à BBC News Brasil que a campanha foi realizada porque "a cada momento em que somos surpreendidos por mais um dos efeitos nocivos do racismo, que tenta apagar nossas existências, nossa história, entendemos e reafirmamos nossa missão e temos que agir". Para ele, o embranquecimento de Machado torna "perceptível o reflexo de como o brasileiro enxerga as pessoas negras no país, sempre as colocando em posições subordinadas e lhes tirando os próprios feitos". "A publicidade tem uma enorme responsabilidade com a construção do imaginário e ao reforçar estereótipos, ao embranquecer um personagem tão icônico do protagonismo negro na literatura temos a dimensão de quão doente está nossa sociedade. Não havia a possibilidade de nos silenciarmos. Como uma instituição educacional a Zumbi dos Palmares liderou ações com o viés de reparação, educação e conhecimento", acrescenta. "Desde o período pós-abolição não têm sido poucas as iniciativas para o embranquecimento da população negra. O processo de branqueamento pelo qual Machado de Assis veio passando diz respeito ao imaginário social que o povo brasileiro construiu em relação à população negra, que é vista como inferior e incapaz." O manifesto divulgado pela campanha sentenciava: "Machado de Assis era um homem negro. O racismo o retratou como branco". Em 2011, a Caixa Econômica Federal envolveu-se em uma polêmica ao divulgar um comercial exaltando o fato — verdadeiro — de que Machado de Assis mantinha uma caderneta de poupança no banco. O vídeo foi ao ar com uma gafe: o ator que representava o escritor era branco. A campanha foi retirada do ar, o banco desculpou-se publicamente; no ano seguinte, o mesmo material, reeditado e desta vez com um Machado de Assis negro, voltou a ser exibido. Machado de Assis também consta em verbete da 'Enciclopédia Negra', livro de 2021 de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. E vem sendo retratado assim não só em apostilas escolares, mas também em eventos públicos, como a exposição aberta no ano passado no Engenho Massangana, no Recife, que trouxe retratos de Jeff Alan de personalidades negras brasileiras, com destaque para Machado. Campos nota que há uma mudança na abordagem. Antes, quando se falava em intelectuais negros do século 19, Machado não costumava constar no rol que agrupava nomes como André Rebouças (1838-1898), Luiz Gama (1830-1882) e José do Patrocínio (1853-1905). "Até recentemente ele não ocupava esse lugar. Agora, sim", pontua ela. "No Brasil de hoje, ele é, sim, um escritor negro." A professora Campos lembra que, "enquanto historiadora" que se debruça sobre as questões de cor em Machado, sua função "não é arbitrar essa questão", mas sim mostrar como há uma historicidade nessa construção. Machado de Assis ora visto como branco, como grego. Machado de Assis de cor. Machado de Assis mulato, mestiço. Machado de Assis negro. "Há uma expressão que diz que Machado de Assis é um escritor que nos lê. Por meio dele podemos pensar uma série de questões que dizem respeito à história do Brasil, inclusive a complexidade de nossa questão racial, marcada por uma população que conheceu e conhece a miscigenação", pontua ela. "Também compreendemos um pouco da história da luta antirracista, da discriminação racial. Tudo por meio da identidade racial de Machado de Assis", acrescenta. "A reivindicação de Machado de Assis como negro é muito recente. E, insisto, do meu ponto de vista ela se explica por uma modificação do que é o próprio debate sobre raça, racismo, mestiçagem e identidade nacional. Isto levou a uma problematização dessa categoria de mulato em consonância ao mito da democracia racial", afirma Campos. "E levou a uma modificação da compreensão da identidade racial de Machado de Assis." A questão, portanto, é mais complicada ainda do que saber se Capitu traiu ou não Bentinho. Estas são as memórias póstumas de Machado de Assis. E não parecem haver vencedores para ficar com as batatas.
2023-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl7xvyz1eyro
brasil
Há 35 anos, um desempregado sequestrou um avião — seu plano era atingir o Palácio do Planalto e matar o presidente
Parece enredo de filme de Hollywood: um tratorista fica desempregado e, revoltado com o contexto sociopolítico do país, decide sequestrar um avião com o objetivo de fazê-lo colidir com a sede do governo federal, matando o presidente. Parece enredo de filme de Hollywood, mas vai ser um filme brasileiro — ‘O Sequestro do Voo 375’ tem estreia prevista para dezembro. Mas vamos falar sobre o filme depois. Primeiro, a fantástica história que abalou o país em 29 de setembro de 1988. Foi no voo Vasp 375, que fazia a rota Porto Velho a Rio de Janeiro com quatro escalas: Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte, com um avião Boeing 737-317. Naquele dia, contudo, houve pânico entre os 110 a bordo: um tratorista desempregado de 28 anos, o maranhense Raimundo Nonato Alves da Conceição, armado com um revólver calibre 32, anunciou que estava sequestrando a aeronave. E seu plano era arremessá-lo contra o Palácio do Planalto. Em sua mochila, Conceição portava 90 balas para recarregar a arma. Fim do Matérias recomendadas Para o tratorista, a culpa pela situação econômica que havia feito com que ele perdesse seu emprego era do presidente, José Sarney. De acordo com dados do Dieese-Sead, naquele ano o desemprego no Brasil oscilou entre 9% e 11%. A inflação era galopante: em média, 17,7% ao mês. Conceição trabalhava em empreiteiras de construção civil. Comprou a arma e embarcou no último trecho do voo, que decolou às 10h52 no Aeroporto de Confins, região de Belo Horizonte Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vinte minutos depois, já no espaço aéreo do Rio, começou sua ação. Deixando claro que se tratava de um sequestro, ele disse que queria entrar na cabine de comando e baleou um comissário que tentou impedi-lo. Conceição disparou vários tiros contra a porta da cabine — um deles atingiu outro comissário, outro acertou o painel do avião. Com receio de que a situação se tornasse ainda mais descontrolada, a tripulação decidiu ceder a ele acesso à cabine. Sem que o sequestrador notasse, o piloto, Fernando Murilo de Lima e Silva (1944-2020) conseguiu passar ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta) o código correspondente à “interferência ilícita” ocorrendo a bordo. Quando o copiloto, Salvador Evangelista, tentava se comunicar de volta com o Cindacta pelo rádio, Conceição o baleou na nuca, matando-o na hora. Com a arma apontando para o piloto Lima e Silva, o sequestrador então determinou seu plano: que o avião retornasse para Brasília. O comandante foi hábil e conseguiu dissuadi-lo da ideia de chocar o Boeing contra o Palácio do Planalto. Argumentou que não havia condições de visibilidade para isso. Mas Conceição não topou que o avião pousasse no aeroporto de Brasília — queria que fosse em São Paulo. Não havia combustível para tanto. Depois de manobras ousadas — para desequilibrar o sequestrador — e com um dos motores falhando, Lima e Silva conseguiu pousar no Aeroporto Internacional Santa Genoveva, em Goiânia, às 13h45. Foram horas de negociação em terra. Às 19h, Conceição desceu da aeronave usando o piloto como escudo humano. Foi alvejado com dois tiros na altura dos rins por agentes de elite da Polícia Federal. Uma terceira bala também atingiu o piloto, na perna. Encaminhado a um hospital, o sequestrador passou por uma cirurgia de emergência e foi anunciado que não corria risco de vida. Dias depois, contudo, morreu no hospital — o laudo apontou que em decorrência de anemia falciforme, sem relação com o fato de ele ter sido baleado. O caso se tornou um marco histórico da aviação brasileira. “Difícil dizer se houve erros quando há alguém mal-intencionado e uma circunstância inédita acontece”, comenta à BBC News Brasil a professora Larissa Ferrer Branco, arquiteta que estuda operações aeroportuárias e coordena cursos de engenharia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Em todas as indústrias e setores aprendemos sempre com casos novos, cenários improváveis ou até mesmo impensáveis. A segurança na aviação é altíssima há muitas décadas e os indicadores só melhoram”, acrescenta ela, lembrando que “é injusto julgar fatos do passado com o conhecimento que temos hoje”. “Mas a rigor, pode-se dizer que os fatores que contribuíram para o caso dificilmente voltariam a se repetir hoje em dia, com a invasão da cabine de comando de uma aeronave comercial por um passageiro armado”, frisa Branco. “É praticamente impossível pensar que o aparato de segurança aeroportuária atual seria permeável a ponto de alguém entrar armado a bordo sem conhecimento do comandante da aeronave, sem seguir rígidos protocolos de verificação. Além do mais, desde depois dos ataques de 11 de setembro [de 2021, nos Estados Unidos], as portas das cabines permanecem fechadas praticamente todo o tempo, só são abertas mediante protocolos muito rigorosos e são blindadas.” Investigador de acidentes aeronáuticos e gestor de crises, Mauricio Pontes, CEO da C5i Crisis Consulting, explica à reportagem que um sequestro como este não aconteceria nos dias de hoje por conta dos protocolos de segurança implementados de lá para cá. “A começar pela revista no embarque, equipamentos, regras para transporte de arma a bordo e treinamentos específicos”, enumera ele, lembrando que isso tudo “poderia ter feito diferença”. “Mas a cultura da época não contemplava esses cenários no país”, comenta. Piloto-aluno na época, Pontes recorda que viu a cobertura televisiva do acontecimento. Ele acredita que os méritos foram do piloto para que uma tragédia não ocorresse. “Acho que toda a atuação do comandante, com frieza, perícia e raciocínio sob pressão, foram decisivos”, diz. “A crise em si foi um caos. O presidente [da República] sequer foi retirado de seu gabinete, prédios não foram evacuados, enfim… Difícil falar em erros e acertos em um episódio com um enredo tão complexo.” Segundo ele, pilotos na época recebiam um treinamento muito básico sobre como se comportar em casos assim. “Conheciam-se regras sobre como agir em caso de interceptação e uso do transponder para informar aos órgãos de controle um ato de interferência ilícita”, cita. “Não era uma preocupação a ponto de tirar um tripulante por mais horas do cockpit para um treinamento específico.” Atualmente, a questão é tratada com mais cuidado, com treinamentos periódicos que preparam pilotos e comissários para eventuais enfrentamentos, “desde casos de passageiros indisciplinados que põem em risco a segurança do voo até situações mais específicas e potencialmente fatais, como sequestros”. “O comandante [do voo da Vasp no caso] foi um exemplo de profissional e se tornou um herói. Mesmo com o primeiro oficial [o copiloto] baleado, ele foi hábil e extremamente equilibrado para conduzir o sequestrador ao longo da ocorrência, evitando um desfecho que poderia ser catastrófico”, comenta a professora Branco. “A aeronave pouso e os passageiros e tripulantes saíram ilesos, assim como prédios públicos e pessoas em terra, que eram alvo do sequestrador. Entendo que ele [o piloto Lima e Silva] acertou em tudo: a forma como conduziu uma situação extremamente incerta e grave, as manobras que fez para desestabilizar o sequestrador, a perícia e o profissionalismo, e a capacidade de trazer a aeronave de volta ao solo com segurança”, acrescenta ela. Pontes lembra, contudo, que as melhorias de segurança de voo só foram implementadas de fato após o 11 de setembro, e não depois desse fato brasileiro. “O assunto [do voo da Vasp] teve a repercussão típica dos grandes eventos na mídia por um curto período, mas foi rapidamente esquecido. Nada significativo de fato ocorreu em termos de procedimentos, ao que eu me lembro”, comenta. “Tanto que, em julho de 1997, um homem entrou facilmente [com um explosivo] no voo TAM 283 entre São José dos Campos e São Paulo sem ter passado pelo raio-X e a explosão a bordo matou um passageiro.” O especialista acrescenta que tal ocasião específica deixou “a falta de segurança dos aeroportos brasileiros em xeque e a necessidade de inspeção por raio-X virou um tema levado mais a sério”. Branco concorda. “De 1988 para cá a aviação comercial mundial, e não só a brasileira, mudou bastante em termos de prevenção a sequestros”, ressalta ela. “Instalações de um enorme aparato de segurança para embarque dos passageiros nos aeroportos, proibição de acesso de passageiros nas cabines de comando durante os voos, inúmeros procedimentos operacionais antes, durante e depois dos voos para impedir o acesso de pessoas estranhas às operações nas áreas onde as aeronaves estacionam quando chegam e antes de partirem são só algumas dessas mudanças.” “Mas nenhuma delas tem correlação direta com o caso do Vasp 375. Essas mudanças ocorreram mais tarde, após 11 de setembro de 2001. De 2001 para cá podemos dizer que as áreas de segurança mudaram completamente em relação ao que ocorria antes”, destaca a especialista. A ideia do filme, que se chamará ‘O Sequestro do Voo 375’ veio em consequência a um outro “quase acidente”. No caso, envolvendo o jornalista Constâncio Viana Coutinho, que em 2011, atuando como correspondente da TV Record na África, esteve em um voo que precisou fazer uma manobra arriscada em Moçambique. “Foi uma situação bem séria, com o avião apontando o bico para baixo. Achei que aquele momento seria o fim de minha vida. Foi tão traumático que eu desenvolvi síndrome do pânico e desde então tenho muita dificuldade para entrar em avião”, conta ele, à reportagem. O fato fez de Coutinho um obsessivo pesquisador de acidentes aéreos. E então, recuperando o caso da Vasp, ele passou a esboçar um roteiro para um documentário. “Mas não foi possível fazê-lo, não consegui apoio, financiamento”, relata. Mais tarde, contudo, seu roteiro acabou caindo nas graças do roteirista de cinema Lusa Silvestre. “E resolvemos que seria um filme”, diz Coutinho. “Ele [Silvestre] foi o primeiro cara que entrou no negócio, disse que estava dentro. Então eu passei a buscar outras pessoas para contar as lembranças do acontecimento.” Coutinho ressalta que o filme “é uma homenagem direta ao piloto”, que teve “papel heróico” reconhecido por “todos os passageiros”. “Ele pousou praticamente sem combustível e fazendo manobras impensadas. Morreu [em 2020] com uma grande mágoa porque mesmo depois de tudo oque ele fez, de ter salvado tantas vidas, o Sarney nunca reconheceu isso, nunca agradeceu.” Com o filme prestes a ser lançado, o jornalista pretende também publicar um livro a respeito. O título provisório é ‘Nas Mãos Certas’. Em conversa com a BBC News Brasil, o roteirista Silvestre enfatiza que o que será visto nas telas “é uma história real”. “A gente não mudou a história. O que fizemos foi lançar um pouco mais de luz sobre algum personagem aqui e ali, contar um pouco mais, imaginar os subterrâneos do governo federal enquanto estava-se lidando com o sequestro”, comenta. “Mas a história é real, inclusive as acrobacias feitas pelo avião.” “E incrivelmente teve um cara mesmo que sequestrou um avião para jogar no Palácio do Planalto”, resume. CEO do Estúdio Escarlate, a produtora Joana Henning conta à reportagem que o maior desafio empreendido pela equipe foi fazer “um tipo de filme que nunca tinha sido feito no Brasil” — no caso, uma história de ação envolvendo um avião. “As referências de desenho de produção eram todas internacionais. Tivemos de criar soluções alternativas com menos recursos, conseguindo dar qualidade para a cena de ação que o filme merecia”, destaca, revelando que para isso foram empregadas técnicas circenses e recursos das indústrias do carnaval e da publicidade. O diretor do filme, Marcus Baldini lembra que “esse é o 11 de setembro brasileiro, o quase 11 de setembro brasileiro”. “E é muito surpreendente que ninguém conheça essa história”, diz ele, à BBC News Brasil. “O filme é um jeito de contar para as pessoas uma história muito importante que estava esquecida, sobre um herói brasileiro que salvou a vida de 110 pessoas com suas habilidades e capacidade de manter o controle. E isso foi importante para que essa história tivesse um final minimamente feliz.” O especialista Pontes reconhece que se trata de uma história por muito tempo relegada ao esquecimento. “O sequestro do Vasp 375 foi sumariamente apagado da memória nacional. Não teve a repercussão internacional que merecia, tampouco”, diz.
2023-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51j897z9gvo
brasil
Como ruralistas reagiram ao STF e aprovaram marco temporal
Há menos de uma semana, indígenas de todo o Brasil se aglomeravam em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) entre abraços e lágrimas para comemorar a maioria formada na Corte para rejeitar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Naquele dia, o julgamento era considerado, por eles, uma vitória histórica. Seis dias depois, nesta quarta-feira (27/09), um movimento capitaneado por parlamentares da bancada ruralista no Senado liderou a aprovação por 43 votos a favor e 21 contra de um projeto de lei que estabelece o marco temporal e uma série de outras medidas. Para os ruralistas, foi uma vitória do Congresso Nacional sobre o que classificam como "ativismo judicial". Para parlamentares governistas, ambientalistas e lideranças indígenas, a aprovação do projeto foi um "retrocesso a 1500" (ano de chegada dos portugueses ao Brasil). Para entrar em vigor, o projeto de lei ainda precisa passar pela sanção presidencial. Nos bastidores, a expectativa é de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete total ou parcialmente a matéria aprovada, o que deve gerar ainda mais atritos com parte do chamado Centrão, bloco do qual o petista depende para manter a governabilidade no Congresso. Fim do Matérias recomendadas Como o marco temporal já foi alvo de um julgamento no STF, lideranças indígenas prometem recorrer ao Judiciário para que declare inconstitucional a lei aprovada nesta quarta-feira. Na última quinta-feira (21/09), o STF havia formado maioria contra a tese do marco temporal. O julgamento foi concluído nesta quarta-feira (27) e o placar terminou com nove votos contra e dois a favor do marco. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reação à votação no STF não demorou a acontecer. Ainda na semana passada, os parlamentares aceleraram os trâmites de um projeto de lei que estabelecia o marco temporal. A ação contou com o apoio maciço de congressistas da poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — formada, em grande parte, por deputados e senadores do Centrão, bloco informal de partidos de centro-direita do qual sucessivos governos vêm dependendo nos últimos anos para garantir a aprovação de medidas de seu interesse. A posição oficial da FPA sempre foi a favor do marco temporal, com o argumento de que a ausência dele colocaria em risco produtores rurais de todo o Brasil, especialmente aqueles localizados em áreas da nova fronteira agrícola, na Amazônia e no Centro-Oeste. Nesta quarta-feira, a operação para a aprovação do marco temporal no Senado levou pouco mais de 10 horas para se concretizar. No início da manhã, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) abriu uma sessão para votar o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO), relator da matéria e integrante da chamada bancada ruralista. No início da tarde, o relatório foi aprovado por 16 votos a favor e 10 contra. À tarde, o Plenário do Senado aprovou um pedido de urgência para que o projeto fosse votado. Parlamentares governistas como o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), criticaram o projeto. "Isso é um retrocesso a 1500. Isso é um retrocesso à chegada dos europeus e aos primeiros contatos [com povos indígenas]", disse o senador. Apesar dos apelos da ala governista, às 18h56, o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), declarou a aprovação da matéria. O chamado "marco temporal" é uma tese que vinha sendo debatida no Congresso e no STF segundo a qual a demarcação de terras indígenas só poderia ocorrer em comunidades já ocupadas por indígenas quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. O julgamento do STF foi sobre um caso envolvendo uma parte da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos xokleng, kaingang e guarani. A disputa envolvia, de um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai); e de outro, órgãos do governo estadual de Santa Catarina, que reivindicavam áreas que a Funai havia declarado como tradicional ocupação indígena. Ambientalistas e lideranças indígenas rejeitavam o marco temporal sob o argumento de que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. Era esse o argumento usado pelos xokleng no julgamento no STF. Eles dizem terem sido forçados a deixar as áreas tradicionalmente ocupadas para fugir de perseguições e matanças ao longo de décadas. Ruralistas, por outro lado, alegam que o não estabelecimento de um marco temporal poderia causar insegurança jurídica, pois abriria o precedente para que áreas ocupadas por não-indígenas possam ser reivindicadas como terras indígenas mesmo que elas não estivessem sendo habitadas por povos tradicionais antes da promulgação da Constituição Federal. A votação do projeto sobre o marco temporal mesmo após o julgamento do caso foi vista como uma "reação" do Legislativo ao Supremo pelo cientista político Marco Antônio Teixeira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "Essa votação foi uma resposta do Legislativo [...] Se houver mais situações em que decisões do Supremo sejam imediatamente contestadas pelo Parlamento, a relação entre esses dois poderes tende a ficar tensa", afirmou o professor. Para Teixeira, o movimento protagonizado pelo Senado nesta quarta-feira é resultado não de algum tipo de interferência do Judiciário no Legislativo, o chamado "ativismo judicial", mas pela suposta demora do Legislativo em decidir temas relevantes. "O poder de legislar é do Legislativo, mas quando ele demora muito a tomar decisões sobre questões urgentes como era o marco temporal, o Supremo acaba tendo que decidir quando é consultado sobre o assunto", disse o professor. O senador Marcos Rogério (PL-RO), negou, no entanto, que a votação tenha sido uma reação ao STF. "São os precedentes do próprio STF que asseguram que o Legislativo tenha a atribuição de legislar inclusive sobre matérias que foram alvo de julgamento do STF. Pensar diferente seria aniquilar o papel do Legislativo. Não é uma afronta ao Supremo", disse o senador à BBC News Brasil. Desde a semana passada, lideranças indígenas já vinham demonstrando preocupação com a possibilidade de uma "reação" por parte dos ruralistas após a formação de maioria contra o marco temporal no STF. Indígenas e ambientalistas afirmam que a lei aprovada nesta quarta-feira contém dispositivos ainda mais perigosos para os povos indígenas que o simples marco temporal. A lei prevê, por exemplo, que terras indígenas já demarcadas podem ser retomadas caso seja verificada a mudança de traços culturais das comunidades que vivem nelas, possibilidade que não existia até então. "Isso é um risco muito grande para os povos indígenas porque basta que alguém diga que nós mudamos nosso modo de viver para que questionem a legitimidade das nossas terras", disse outro coordenador-executivo da Apib, Dinaman Tuxá. Outro ponto controverso é a autorização para que não-indígenas possam exercer atividades agrícolas em terras já demarcadas. Essa é uma reivindicação de produtores rurais de estados como Mato Grosso e de uma parcela considerada pequena de indígenas em regiões dominadas pelo agronegócio como os da etnia Haliti-Paresi que vinham arrendando suas terras de forma irregular para produtores de soja. Outro dispositivo previsto no projeto aprovado é o que, segundo críticos, flexibilizaria a política de não-contato com indígenas isolados que vigora no país há décadas. O projeto estabelece que o contato com esses indivíduos poderia ser feito para "intermediar ação do estado de utilidade pública", um conceito considerado muito vago por ambientalistas e que poderia abrir brechas para o contato forçado com os isolados. "Esse projeto de lei é um risco para os povos indígenas porque ele está repleto de inconstitucionalidades. Ele traz insegurança jurídica pois coloca em risco até mesmo aquelas terras que já foram demarcadas e homologadas. Há violações claras de preceitos constitucionais", afirmou à BBC News Brasil o analista sênior de políticas públicas da organização não-governamental WWF Brasil, Bruno Taitson. O senador Marcos Rogério rebate as críticas. "Muito se fala em cuidar do índio, em dar terra para o índio. Mas pouco se fala em assistência ao índio. Índios aldeados e não aldeados vivem, muitos deles, em condição de miserabilidade", disse o parlamentar. Agora, ambientalistas e movimentos indígenas se reorganizam para tentar impedir que o projeto aprovado passe a ter validade. A primeira estratégia reside em criar pressão sobre o presidente Lula para que ele vete o projeto. No governo, a aprovação do projeto foi criticada. "Embora a ministra dos Povos Indígenas (Sônia Guajajara) e representantes do MPI tenham sido recebidos por líderes, relatores e até pelo presidente (do Senado) Rodrigo Pacheco para apresentar pontos críticos e sensíveis aos direitos indígenas, nada foi acatado pelo Senado", diz o trecho de uma nota do Ministério dos Povos Indígenas. O MPI afirmou ainda que "lamenta" a aprovação e classificou o projeto de lei como "inconstitucional". O problema, para aqueles que são contrários ao projeto, é que o Congresso poderia derrubar os vetos e a lei passaria a vigorar. Além disso, eles temem que Lula tenha que negociar com o Congresso quais pontos seriam vetados. "Isso seria particularmente preocupante porque a maior parte do projeto contém retrocessos muito grandes aos indígenas. O pouco que não for vetado por meio de uma possível negociação ainda será prejudicial", avalia Bruno Taitson, do WWF Brasil. A segunda estratégia dos contrários ao projeto é levar o assunto, novamente, para o STF. Um dos argumentos mencionados é o de que apenas uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) teria o peso suficiente para reverter o entendimento de um julgamento do Supremo. Como o que foi aprovado foi um projeto de lei, ele não teria poder suficiente para se sobrepor a uma decisão do STF, responsável por interpretar o texto constitucional. "É uma situação delicada, mas não vamos desistir. Já estamos estudando a possibilidade de questionar a constitucionalidade dessa lei. Vai ser mais uma batalha, mas não vamos desistir", afirma Dinaman Tuxá.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nxd9d93p5o
brasil
Florestas urbanas podem ser solução para combater ondas de calor em grandes cidades?
O Brasil não é o único país a sofrer com ondas de calor. Devido às mudanças climáticas, a temperatura global vem subindo gradativamente, e o impacto é sentido de diferentes formas em todo o mundo. A situação tende a ser pior nas grandes cidades, onde a imensidão de concreto e a falta de áreas verdes contribuem para uma sensação térmica acima da que os termômetros apontam. Algumas iniciativas, no entanto, vêm sendo implementadas para tentar contornar tal problema, que afeta a saúde de todos: o calor intenso pode causar exaustão, dificuldades respiratórias e insolação. Um exemplo é Karachi, no Paquistão, a maior cidade do Paquistão. Fim do Matérias recomendadas Em 2015, uma onda de calor elevou as temperaturas a 45 °C e 1,2 mil pessoas morreram. Muitos procuraram combater o calor com ar-condicionado. Mas, em um país extremamente desigual como o Paquistão, o acesso ao equipamento continua sendo um luxo para a imensa maioria da população. Além disso, não é ecossustentável. O ar-condicionado usa combustíveis fósseis, que liberam gases de efeito estufa, o que, por sua vez, contribui ainda mais para o aquecimento global. Mas um homem optou por outra solução: plantar florestas urbanas. "Cinco anos atrás, Karachi acabara de passar por uma onda de calor. Sonhei que poderíamos mudar o destino da cidade", disse o empreendedor Shahzad Qureshi à BBC em 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Qureshi usou financiamento coletivo para criar a primeira "floresta urbana" de Karachi, no parque público de Clifton, em 2016. O local foi projetado por um arquiteto paisagista alemão, tendo em mente a sustentabilidade a longo prazo e o máximo de benefícios para a comunidade. Na floresta urbana de Clifton, é possível ouvir o barulho dos pássaros entre as árvores onde antes havia uma montanha de lixo. "Começamos a pensar que deveríamos fazer 25 parques como esse na cidade", disse ele. "Nasci e cresci aqui. Jogava críquete nas ruas. Hoje, vemos a cidade se deteriorar diante dos nossos olhos. Daqui a alguns anos, ela vai se tornar inabitável se não fizermos nada", alertou ele. Desde então, a ONG de Qureshi criou oito pequenas florestas em Karachi e duas em Lahore usando o método Miyawaki. Batizado em homenagem ao botânico japonês Akira Miyawaki, o método envolve a preparação cuidadosa do solo e o plantio denso de uma variedade de plantas florestais nativas benéficas para a vida selvagem em uma área geralmente do tamanho de uma quadra de tênis. Mais de 9 mil pessoas plantaram mudas no parque público de Clifton e mais de 30 escolas participaram de uma viagem educacional para aprender sobre as espécies nativas. Agora, Qureshi planeja expandir o conceito por todo o Paquistão, convertendo a maior parte dos parques em florestas. Entre os objetivos, segundo ele, estão reverter as crescentes "ilhas de calor", que são geradas quando a cobertura natural do solo é substituída por superfícies que absorvem e retêm calor, como pavimentos e edifícios, e a escassez de água. Estudos mostram que florestas urbanas podem reduzir significativamente as temperaturas das cidades. Áreas com floresta ou cobertura hídrica significam temperaturas mais frias, até 12°C em algumas regiões. As árvores também absorvem CO2, mitigando as alterações climáticas. Em um estudo no ano passado, cientistas de Pequim usaram dados provenientes de mapas de calor via satélite para investigar os efeitos dos parques urbanos. Eles concluíram que os parques aquecem mais lentamente do que as regiões urbanas durante o dia e que os espaços públicos verdes que contém água têm um melhor efeito de arrefecimento tanto no interior do parque como na área ao redor. Anomalias termo-higrométricas são alterações que ocorrem na umidade e na temperatura e são oriundas do aquecimento diferenciado das diferentes características do ambiente urbano. Eles constataram que as regiões da cidade "com maior quantidade de áreas permeáveis, concentração de remanescentes florestais ou espaços verdes públicos apresentaram menores temperaturas e aumento da umidade relativa do ar". Outro estudo, realizado pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) em 2021 e publicado na prestigiada revista científica Journal of Exposure Science & Environmental Epidemiology, tratou da cobertura verde na região metropolitana de São Paulo. No entanto, aumentar a quantidade de cobertura verde sem considerar suas condições locais pode resultar em uma eficiência limitada na redução do aquecimento urbano, apontam especialistas. "As formas topográficas e geométricas de seus arredores podem determinar até que ponto o ar frio pode penetrar, pois as fontes de calor e os edifícios físicos geralmente formam barreiras que bloqueiam o fluxo de ar". "Em áreas urbanas densas com disponibilidade limitada de espaço, entender essas condições é crucial para criar uma estratégia eficaz", acrescenta ela. Florian destaca que, se por um lado, grandes áreas verdes são preferíveis para criar ilhas estáveis e frias, por outro, nem todas as cidades podem implementá-las — estudos mostram que pequenos aglomerados de áreas verdes também podem ajudar a distribuir ar frio e reduzir significativamente o calor urbano. Cientistas também alertam que se a implementação das áreas verdes não for feita com planejamento estratégico, pode acabar levando ao aumento do valor da propriedade e ao deslocamento de moradores a longo prazo. Por isso, defendem uma estratégia chamada "apenas verde o suficiente", de modo a criar intervenções estratégicas para apoiar as comunidades locais. Na última sexta-feira (22/9), o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) ampliou o alerta de "grande perigo" por causa das temperaturas acima da média para 11 estados e o Distrito Federal e estendeu o aviso até terça-feira (26/9). Segundo especialistas, a onda de calor que atravessa o país guarda relação direta com o fenômeno El Niño, muito mais rigoroso neste ano, e com a crise climática, devido à emissão de gases de efeito estufa, que aumenta a frequência de eventos climáticos extremos.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv20x1628qno
brasil
Vídeo, Nipah: quais são as chances de vírus mortal chegar ao Brasil ou causar nova pandemia?Duration, 6,10
Um surto de contaminações por um vírus mortal volta a provocar temores no mundo. Desta vez, o surto é de infecções pelo vírus Nipah, que levou uma região da Índia onde os casos se concentram a fechar escolas e escritórios. Esse é o quarto episódio de infecções relacionadas a esse patógeno nessa região indiana desde 2018. Mas será que existe o risco de esse vírus se espalhar para outros lugares e eventualmente chegar até o Brasil? Neste vídeo, o repórter André Biernath, da BBC News Brasil em Londres, explica em 3 pontos que vírus é esse — e qual o tamanho do risco que ele representa.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2edkw1el7o
brasil
Brasil teme nova crise de imigrantes no Acre após Peru e Chile aumentarem controles
"No Peru, é muito difícil conseguir documentação. Eu praticamente não existia no Peru. Não consegui abrir conta no banco", conta Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana de 37 anos. Hoje, ela mora em Rio Branco, no Acre, depois de quase cinco anos no país vizinho, onde trabalhou como auxiliar de cozinha e vendedora ambulante. Andreina foi um dos 3.375 venezuelanos que ingressaram no Brasil em 2022 pela fronteira do Acre com o Peru, um aumento expressivo em comparação com 2021 quando 1.862 entraram, e com 2020 quando 572 entraram, segundo dados coletados pela Polícia Federal no município fronteiriço de Assis Brasil e obtidos pela BBC News Brasil. No passado haitianos eram maioria, mas hoje, os venezuelanos são, com quase exclusividade, o maior grupo estrangeiro que entra no Brasil pela fronteira com o Acre. Desde o ano de 2020, mais de 8,5 mil venezuelanos cruzaram a fronteira Brasil-Peru-Bolívia pela cidade de Assis Brasil. Só até 12 de setembro deste ano, foram 2.706. Fim do Matérias recomendadas Especialistas locais ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o endurecimento das regras da migração no Peru e Chile, incluindo a militarização das fronteiras desses dois países, contribuem para esse aumento de migrantes venezuelanos para o Brasil. O número crescente de imigrantes já sobrecarrega abrigos, segundo as autoridades locais, e desperta temores de uma nova "crise migratória", como visto no Estado em 2013 e 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esses receios são acentuados por um decreto governamental do Peru, que pretende expulsar estrangeiros indocumentados, que entrará em vigor em 28 de outubro. "Esta nova política do governo peruano nos preocupa muito, porque seremos aquele local para onde os imigrantes vão recorrer na primeira hora”, diz Letícia Mamed, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Acre (Ufac) que estuda migração no Brasil. "Não consigo nem imaginar como isso não vai sobrecarregar nossas bases de apoio aqui, porque elas existem, mas são pequenas", acrescenta. "A expectativa é exatamente essa, que haja uma intensificação dos fluxos aqui pela nossa fronteira, o que é bastante complicado porque hoje já temos um fluxo muito intenso." Procurado pela BBC News Brasil, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil, reconheceu a gravidade da situação do Acre e afirmou que "a América Latina e o Caribe enfrentam uma crise de deslocamento sem precedentes, tanto em sua complexidade quanto em sua escala". "O deslocamento forçado na região, inclusive através das fronteiras do Acre, está sendo gerado por causas básicas, contínuas e intensas, como violência, insegurança, desigualdade e violações dos direitos humanos", observa o Acnur. "Esta situação é agravada pelo aumento da xenofobia e pelo pesado tributo que a pandemia da covid-19 causou às pessoas mais vulneráveis da região." Semana passada, a Anistia Internacional lançou o relatório "Regularizar e Proteger: Obrigações internacionais para a proteção dos cidadãos venezuelanos" que destacou o "crescente êxodo de venezuelanos" e "o fracasso da Colômbia, Peru, Equador e Chile em cumprir suas obrigações". "Diante de uma crise sem precedentes na região, Colômbia, Peru, Equador e Chile não conseguiram ou não quiseram proteger aqueles que fogem da Venezuela. As diversas medidas e programas que estão a implementar para lhes oferecer o estatuto regular de migrantes não cumprem os padrões definidos pelo direito internacional. Estes Estados têm a oportunidade e a obrigação de proteger com urgência os mais de 5 milhões de venezuelanos nos seus territórios", afirmou Ana Piquer, diretora para as Américas da Anistia Internacional. As autoridades do Acre já sentem a pressão migratória. O Estado tem três casas de passagem, locais onde os imigrantes podem tomar banho, comer e dormir e depois seguir viagem. Uma fica em Assis Brasil, na fronteira com o Peru, outra em Brasiléia, a duas horas de carro da fronteira, e outra em Rio Branco. Aurinete Brasil, assessora técnica regional da organização humanitária Cáritas no Acre, conta à BBC News Brasil que, quase todos os dias, cada casa está operando perto ou acima da capacidade. Às vezes, estes locais recebem até o dobro de pessoas do que o número máximo para o qual foram planejados, observa a assessora. "O Acre não tem condições hoje de acolher 200 pessoas, se chegarem ao mesmo tempo", diz ela. "Infelizmente, as nossas fronteiras, nosso Estado, não tem uma política adequada, uma política de acolhimento, integração, proteção ao migrante e refugiado. Assim como a maioria dos Estados", acrescenta. "O Brasil abre os braços, mas não abraça." Ela destaca as violências sofridas no Estado por imigrantes que não têm onde ficar. "Se ele [o imigrante] não tiver dinheiro para pagar uma noite no hotel, ele acaba nas ruas, vulnerável a todo e qualquer tipo de violência", afirma. "Pode ser abordado por narcotraficantes, também por pessoas em situação de rua que estão em situação de dependência de drogas, [pode sofrer] violência. Já acolhemos muitas imigrantes que foram violentadas nas ruas. Se for mulher a violência é dobrada, triplicada." Em junho deste ano, o governo do Estado montou uma sala de emergência — uma espécie de gabinete de crise « para colher informações dos órgãos policiais e das instituições que trabalham com atendimento a imigrantes para monitorar as fronteiras do Acre. Uma equipe interministerial do governo federal visitou o Estado no mês seguinte com o objetivo de conhecer as dificuldades nos serviços oferecidos aos migrantes. "A missão do governo federal realizou visitas técnicas a autoridades locais para tratar da situação migratória em municípios do Acre. Visitou casas de passagem, com o intuito de conhecer a realidade local e definir estratégias de apoio ao Estado e aos municípios, por meio de um esforço interministerial", informou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. "A questão migratória é uma demanda intersetorial, que exige políticas transversais nas três esferas de governo. Cabe ao MDS assegurar o acesso de imigrantes, inclusive aqueles que não possuem documentação, a todos os serviços, programas, projetos e benefícios da Assistência Social, em igualdade de condições com os nacionais." A BBC News Brasil também solicitou um posicionamento à secretaria de Direitos Humanos do Acre, liderada pelo pastor Alexander de Carvalho, mas depois de quase duas semanas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. A pasta, porém, enviou por engano para a BBC uma resposta direcionada para uma outra autoridade que confirmou que o "Estado do Acre é visto como uma porta de entrada do Brasil". A principal rota de entrada de venezuelanos no Brasil continua sendo Roraima, Estado que faz fronteira com a Venezuela e que também registrou aumento de fluxo esse ano, com média mensal de cerca de 12 mil venezuelanos que entram no país pelas cidades Pacaraima e Boa Vista, segundo o General Helder de Freitas, coordenador Operacional da Operação Acolhida, programa que reassenta Venezuelanos no Brasil. A partir de Roraima, desde 2018, mais de 100 mil imigrantes foram reassentados em todo o Brasil, muitos nos Estados do Sul do país, como parte do programa Operação Acolhida, segundo dados do governo federal, que opera o programa. Autoridades do Acre e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que o governo federal adote um programa similar para o Estado, adequado às necessidades e realidade local do Acre. O Brasil é o terceiro país que mais recebe refugiados e imigrantes venezuelanos na região (477.493, em agosto de 2023), atrás da Colômbia (2,9 milhões) e do Peru (1,5 milhão), de acordo com a Plataforma de Coordenação Interinstitucional para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V). Os venezuelanos começaram a deixar o seu país em números significativos em meados da década de 2010. Muitos venezuelanos procuram melhores oportunidades e condições de vida no exterior. A emigração em massa da Venezuela ganhou impulso por volta de 2015 devido a uma grave crise econômica e política que assolou o país, caracterizada por hiperinflação, escassez de alimentos e medicamentos, instabilidade política e agitação social. Até hoje, segundo a Acnur, mais de 7,7 milhões de Venezuelanos deixaram o país em busca de uma vida melhor e a maioria – mais de 6,5 milhões de pessoas – foi acolhida em países da América Latina e Caribe. Em discurso no Dia da Independência do Peru, em 28 de julho, a presidente Dina Boluarte classificou alguns imigrantes no país como "criminosos" e apelou por uma mudança no código legal nacional para facilitar deportações. Também reforçou que, quando o atual prazo para solicitar a regularização temporária expirar em 28 de outubro, não haverá mais regularizações, e o país passará a deportar os imigrantes indocumentados. "Não haverá prorrogação. Aqueles que não cumprirem [o prazo para solicitar a regularização] serão expulsos do país", disse ela. Para Cécile Blouin, professora da Universidade Católica do Peru, o discurso reflete o clima atual no Peru. "Em 2017, você tem o primeiro momento de recepção de migrantes venezuelanos. E você tem o momento de acolher, [quando se dizia]: 'Ah, eles estão fugindo desse terrível governo de esquerda e temos que ajudá-los'. Mas isso não durou muito", diz a pesquisadora especialista em migração, asilo, fronteiras, gênero e racismo na América do Sul, com foco na Região Andina. Blouin critica a fala de Boluarte. "É um discurso que reflete muita xenofobia, no governo, no Congresso, em todos os poderes do Estado, mas também na população", diz ela. Dina Boluarte é a sétima pessoa a ocupar a presidência do Peru desde 2015, tendo substituído o esquerdista Pedro Castillo, de quem era vice, em dezembro de 2022. Castillo sofreu impeachment pelo Congresso e foi detido sob acusações de ter tentado um golpe de Estado. Mais de 60 pessoas foram mortas em protestos no início deste ano, e Boluarte enfrentou apelos para renunciar, com desaprovação de seu mandato por 90% da população. A rejeição ao atual Congresso peruano é ainda maior, de 94%. Tal como o Peru, o Chile também assistiu a uma onda xenofóbica, personificada pelo candidato presidencial de direita radical José Antonio Kast, cuja derrota nas eleições de 2021 foi precedida por uma onda de violência anti-imigrantes na cidade de Iquique. O candidato de esquerda Gabriel Boric ganhou as eleições e assumiu o poder em 2022 mas também tem trabalhado para endurecer regras migratórias. Desde fevereiro, o governo enviou tropas ao longo das suas fronteiras com a Bolívia e o Peru, a fim de impedir a entrada de imigrantes sem documentos, na sua maioria venezuelanos. Em abril, o governo peruano declarou estado de emergência e ordenou o envio das suas forças armadas para sua fronteira com Chile, em uma decisão que foi criticada pela Anistia Internacional, e que deixou centenas de migrantes, em sua maioria venezuelanos, presos no deserto do Atacama. Em uma coletiva de imprensa no Palácio, a presidente do Peru culpou abertamente os migrantes pelo aumento da criminalidade no país. "Aqueles que cometem assaltos, roubos e outros atos criminosos diariamente são estrangeiros. Por isso temos que reformular a lei de imigração, olhar para essa questão da migração", disse a presidente. "É uma retórica muito fácil, mas que não é apoiada por quaisquer fatos concretos", diz Cécile Blouin. "Existe a ideia de que antes da migração venezuelana, o Peru era muito seguro, mas nunca foi assim. Há muitas inseguranças de longa data, sentidas pela população em relação ao crime organizado, ao tráfico de drogas e ao Sendero Luminoso [grupo guerrilheiro peruano criado nos anos 1960]", observa a professora da Universidade Católica do Peru. Além da xenofobia, Blouin destacou as complexidades da regularização de imigrantes venezuelanos no Peru – custos financeiros, tempo, burocracia, regras complexas, deslocamento – especialmente para famílias com vários filhos. Embora Blouin e outros especialistas ouvidos pela BBC Brasil duvidem da capacidade do Estado peruano de expulsar fisicamente centenas de milhares de pessoas, ela diz que o decreto governamental cria um "clima de medo" em que as pessoas "convivem com o receio da deportação". "O outro problema do Peru é que a regularização não é gratuita. É preciso pagar, fazer a papelada, gastar dinheiro com isso", diz ela, sobre a taxa de regularização de 47,5 soles peruanos (R$ 62). Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana que mora hoje em Rio Branco, Acre, diz que sabe bem das dificuldades para se regularizar no Peru. Nascida em Guatire, a uma hora de carro da capital venezuelana de Caracas, e formada em Administração, ela deixou o emprego em um banco na Venezuela em 2017, precisamente quando o colapso econômico do país se agravou. Chegando ao Peru, ela teve dois empregos durante pouco mais de um ano. Pela manhã, trabalhava como auxiliar de cozinha e, à tarde, como vendedora ambulante. Depois de algum tempo comprou um freezer e bebidas e se dedicou apenas ao comércio. Ela diz que chegou a vender até 700 garrafas de água e refrigerante num dia só, trabalhando como vendedora ambulante autônoma na cidade de Ica, a 300 km da capital peruana, Lima. Em um dia bom, dava para ganhar 150 soles peruanos (cerca de R$ 200), diz ela. Mesmo assim, era uma vida longe de ser fácil. "Lá [no Peru] você tem a oportunidade de ganhar muito dinheiro. Mas você vive mal, vive triste, estressada, sempre cansada", diz ela. A dificuldade de se regularizar no país foi uma das duas principais razões para a saída, além da precariedade dos serviços públicos: a escola do filho era ruim e era preciso pagar, lembra. "Na cidade em que morava, não podia fazer a regularização, então eu precisava ir para Lima, com meu filho pequeno", diz ela. Frustrada, ela então ouviu que "o Brasil é melhor, a documentação é mais fácil". Chegando ao Acre, ela trabalhou em uma pizzaria em Brasiléia. "É uma cidade pequena, com poucas oportunidades para crescer, mas eu fui acolhida muito bem", diz ela. A rota migratória do Acre começou a receber maior fluxo de pessoas a partir de 2010, quando o terremoto no Haiti levou à entrada de grande número de haitianos, seguidos por africanos, principalmente do Senegal. Os dois grupos chegam à América do Sul via República Dominicana. Em 2013, houve uma crise causada pela superlotação de um abrigo, que tinha capacidade para 200 pessoas, mas se tornou moradia temporária de mais de 1,3 mil, para imigrantes principalmente haitianos, na cidade de Brasiléia. De acordo com dados do governo estadual, nos anos 2012, 2013, 2014 e 2015, o governo do Acre atendeu 42.074 migrantes, a maioria do Haiti. Mais recentemente, em 2021, durante a pandemia, um grupo de dezenas de imigrantes, na maioria haitianos, segundo a imprensa local, ficou acampado na Ponte da Integração, que conecta Iñapari no Peru com Assis Brasil, sem possibilidade de entrar no Brasil ou voltar ao Peru. A rota do Acre também é usada em menor escala por imigrantes que estão indo para os Estados Unidos. No início de setembro, três motoristas de táxi foram presos pela Polícia Federal levando 22 imigrantes vietnamitas para Assis Brasil. A rota é usada para subir pela América do Sul até o Darien Gap, passagem florestal que conecta a Colômbia com o Panamá e por onde esse ano já passaram 300 mil migrantes, segundo dados do próprio governo do Panamá. Em comparação, menos de 250 mil cruzaram a fronteira por esse caminho em todo o ano de 2022. De Darien Gap, os imigrantes na maioria continuam subindo para os Estados Unidos, onde, só em agosto deste ano, 91 mil pessoas foram presas pela Patrulha de Fronteira na fronteira com o México, informou o jornal The Washington Post. "Esse fluxo, que vem desde 2010, quando foi inaugurada essa rota, pelos imigrantes haitianos, nunca deixou de ser usado por imigrantes de todo o mundo", diz Letícia Mamed, da Ufac. "Claro que esse fluxo aumenta e diminui de acordo com a geopolítica global", observa. "Em 2010, eu imaginava que a situação dos haitianos era uma coisa passageira, relacionada ao terremoto, e que iria acabar. Mas não, na verdade os haitianos desbravaram essa rota, de acesso ao Brasil, e desde então a rota foi configurada, enraizou-se e é acessada por todas as nacionalidades que você pode imaginar." Hoje, em Rio Branco, Andreina Veliz Ramirez mora em um apartamento de um quarto, com o filho de 8 anos matriculado em uma escola pública. Ela vende água de coco e recebe o auxílio do Bolsa Família, direito que ela e todos estrangeiros registrados têm no Brasil. Para os imigrantes, diz Letícia Mamed, da Ufac, mesmo que às vezes haja dificuldade para achar emprego, a rede de proteção social do Brasil pode ser considerada boa. "Mesmo no Brasil, onde estamos nos reconfigurando economicamente e politicamente, depois dos últimos quatro anos, há uma estrutura de serviço social", diz ela. "O Sistema Único de Saúde é uma coisa incrível para os imigrantes", afirma, lembrando que o SUS opera em regime de "porta abertas" atendendo a todos, brasileiros ou não. "Eles consideram: 'Mesmo que eu não tenha um bom emprego aqui, tenho políticas públicas'. Então esse é um elemento que favorece para eles ficarem no Brasil ou pelo menos procurarem o Brasil até um dia poderem ir para os países mais avançados economicamente, como os Estados Unidos e locais da Europa", diz. Mas a vida dos imigrantes no Brasil, especialmente em Estados mais pobres como o Acre, pode não ser fácil. "É difícil ganhar dinheiro", lamenta Andreina. "Tenho um currículo extenso mas não consigo emprego formal. Tenho um filho pequeno e não consigo ir muito longe", diz ela.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv234k0y9p1o
brasil
Rosa Weber: como ministra acabou com farra dos pedidos de vistas e foi contraponto a 'ministros políticos'
Avessa aos holofotes e à articulação política comuns a alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Rosa Weber deixou uma marca nada discreta em sua passagem pela Corte, que se encerra no dia 2 de outubro, quando ela completa 75 anos e é obrigada a se aposentar. Para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, sua trajetória foi marcada por decisões importantes e controversas – como o voto de minerva que autorizou a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou a recente manifestação pela liberação do aborto – e também por mudar a dinâmica da Corte, aprovando durante sua presidência uma alteração no regimento interno que limitou decisões individuais dos ministros, como os intermináveis pedidos de vista que paralisavam julgamentos indefinidamente. Já outra mudança capaz de impactar a estrutura do Poder Judiciário foi aprovada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sua última sessão como presidente do órgão: uma alteração na dinâmica de promoção de juízes para a segunda instância vai aumentar a presença de mulheres nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. “Confesso que sinto esse resultado como uma verdadeira vitória”, disse Weber após a decisão. No entanto, mais do que suas decisões em processos ou sua gestão como presidente do STF e do CNJ, é sua postura como ministra que é mais lembrada como seu legado para a Corte. Fim do Matérias recomendadas Em contraste com diversos colegas, Weber passou seus quase doze anos na Corte sem conceder entrevistas, sem participar de eventos patrocinados por empresas, sem comentar julgamentos fora dos autos e sem se reunir com políticos. Ela também atuou com respeito ao colegiado, ou seja, seguindo as jurisprudências (decisões anteriores) do STF, ao invés de buscar impor sua vontade individual nas decisões. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para juristas ouvidos pela reportagem, a ministra agiu como uma espécie de modelo ideal de integrante da Suprema Corte – o que não impede algumas críticas, como no caso do voto contra o habeas corpus de Lula, caso que divide os entrevistados. "Em seu comportamento pessoal, funcional e social, a Ministra Rosa Weber transmitiu ao STF aquela aura de grandeza, de dignidade, de gravitas e de respeitabilidade. Esse, pois, o seu grande legado, que assim será sempre lembrado, ad perpetuam, nos fatos da história judiciária do Supremo Tribunal Federal", disse em mensagem à BBC News Brasil o ministro aposentado Celso de Mello, que dividiu o plenário do Supremo com Weber por quase uma década. Ele destacou também a importância de sua liderança na reação da Corte aos ataques de 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes foram vandalizadas por bolsonaristas radicais insatisfeitos com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. "O Brasil teve, então, na pessoa da ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal, um decisivo fator de equilíbrio, de confiança, de firmeza e de segurança no respeito incondicional à nossa Lei Fundamental (a Constituição) e na preservação da estabilidade do regime democrático, das instituições da República e das liberdades essenciais do Povo de nosso País", escreveu Mello. Para o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua, a descrição e o respeito à colegialidade de Weber são posturas que fortalecem a institucionalidade do STF e, consequentemente, a democracia. "A literatura da ciência política vem apontando isso. O argumento central do livro Como as democracias morrem (Daniel Ziblatt e Steven Levitsky) é que as democracias modernas claudicam não por posturas ideológicas de um lado ou de outro, mas porque as suas instituições se enfraquecem e aí grupos autoritários conseguem tomar o poder ou dominar o funcionamento da República", afirma. "No caso da ministra Rosa Weber, isso (sua postura) é especialmente importante porque contrasta com a pouca relevância dada à instituição do Supremo Tribunal Federal e ao papel do Supremo junto a outras instituições que os colegas da Rosa Weber normalmente demonstram", disse ainda. Autor do livro O Supremo, entre o direito e a política, o professor do Insper Diego Werneck também exalta o perfil discreto na ministra. Na sua avaliação, o fato de Weber não se manifestar fora dos autos e se manter distante da política fortalece seus votos, pois não deixa margem para suspeitas sobre as motivações de suas decisões. Isso, acredita, deu mais autoridade à ministra para tomar, eventualmente, decisões de forte intervenção em outros Poderes, como no caso em que suspendeu liminarmente o funcionamento do chamado Orçamento Secreto, em que o Poder Executivo liberava recursos para emendas parlamentares com pouca transparência. Depois, a decisão foi confirmada pela maioria da Corte. Em contraste à postura austera de Weber, Werneck cita ministros que falam com frequência em público, como Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moares e Luís Roberto Barroso. "O comportamento da ministra Rosa Weber é muito importante porque mostra que faz sentido cobrar que seja diferente", nota o professor. "É possível e desejável que ministros aceitem que vão ter que perder certas liberdades para integrar o Supremo. Não vão poder só fazer mais coisas do que fariam se não fossem ministro do Supremo. Vão poder fazer menos", reforça. Nesse sentido, caso se confirme a expectativa de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolha um jurista homem de sua confiança para a vaga de Weber, pode haver uma "dupla perda" para o Supremo, avalia Werneck, seja pela redução da presença de mulheres na Corte (Cármen Lúcia será a única ministra), seja pela entrada de um integrante com perfil mais político. Hoje, os nomes mais cotados para a vaga são os ministros Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União). Magistrada de carreira na Justiça do Trabalho, Weber chegou ao STF por indicação de Dilma Rousseff em 2011. Ela foi apenas a terceira ministra mulher em 132 anos de história do STF, depois de Ellen Gracie, indicada por Fernando Henrique Cardoso, e Cármen Lúcia, indicada por Lula. Devido a sua aposentadoria, Weber ficou apenas um ano na presidência do STF, metade do mandato normal. Nesse curto período, deu andamento a julgamentos de temas sensíveis, com o que rejeitou o marco temporal para territórios indígenas. Também pautou a retomada do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo, julgamento que acabou suspenso por um novo pedido de vista (mais tempo para analisar o caso), após reunir cinco votos favoráveis a liberação no caso específico da maconha (inclusive o de Weber). "Rosa Weber não só pautou temas controversos, como ela geriu para que esses casos chegassem até o fim, custasse o que custasse", nota Eloísa Machado, professora de direito constitucional da FGV, citando em especial o caso do Marco Temporal, que consumiu onze sessões de julgamento. Já ao final do seu mandato, a ministra iniciou o julgamento de uma ação pela descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, dando um voto histórico pela liberação do procedimento. Para os defensores da descriminalização se trata de um importante posicionamento pelo direito das mulheres, enquanto o lado favorável à proibição vê o voto como uma afronta à maioria conservadora do país e um desrespeito à vida do feto. Weber foi sorteada para relatar a ação em 2017 e já em 2018 realizou audiências públicas no Supremo para ouvir os argumentos dos dois lados. A demora em levar a ação a julgamento é atribuída ao clima político desfavorável durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Depois, a presidência da ministra acabou atropelada pelo 8 de janeiro, o que atrasou novamente o julgamento, acredita a antropóloga Débora Diniz, professora que pesquisa o tema do aborto e esteve à frente da ação que em 2012 levou a liberação da interrupção da gestação de fetos anencéfalos (sem cérebro) pelo Supremo. O julgamento acabou sendo iniciado no plenário virtual – em que os ministros apenas depositam seu voto escrito eletronicamente – e foi interrompido por um destaque (pedido para levar o caso ao plenário físico) de Barroso. Como próximo presidente do STF, é ele quem vai decidir quando o tema volta a ser analisado. Quando isso ocorrer, é dado como certo que um novo pedido de vista interromperá o julgamento, possivelmente de um dos ministros considerados mais conservadores – André Mendonça e Nunes Marques, ambos nomeados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Diniz espera que outra medida capitaneada por Weber, a mudança no regimento interno do STF aprovada em dezembro de 2022 que limitou os pedidos de vista a um prazo de 90 dias, contribua para que a ação sobre o aborto não fique eternamente em suspenso. Na sua leitura, a presidente do Supremo promoveu essa alteração tendo em vista os temas sensíveis que ela queria julgar durante sua presidência. "Essa mudança que a ministra Rosa Weber faz, de limitar os pedidos de vista, é revolucionária. E ela não faz isso sem ter grandes questões em mente, que foram essas que ela enfrenta (pautando ações sensíveis para julgamento)", acredita. O professor Diego Werneck também chama a mudança de "revolucionária". Ele ressalta que a ideia de limitar os pedidos de vista e a duração de medidas individuais dos ministros (como algumas liminares) já vinha sendo discutida internamente por outros ministros. Mas, na sua avaliação, a ministra tinha "autoridade moral" para avançar o tema em sua gestão, justamente por não abusar dos mecanismos que ficaram limitados com a decisão. No auge da operação Lava Jato, o STF viveu uma intensa disputa interna sobre a possibilidade de um réu condenado em segunda instância começar a cumprir a pena antes do trânsito em julgado do processo – ou seja, quando todos os recursos se esgotam. Recuperar esse contexto é importante para analisar o polêmico voto de Weber que contribuiu para a prisão de Lula. Desde 1988, quando a Constituição foi promulgada, até 2009, vinha prevalecendo o entendimento de que era possível cumprir a pena antecipadamente, mas não havia uma orientação clara do STF sobre o assunto. Por causa disso, em 2009 o plenário do STF analisou a questão a partir de um habeas corpus (pedido de liberdade) de um réu condenado por homicídio – na ocasião, por 7 a 4, o Supremo decidiu contra a prisão antes do esgotamento dos recursos, já que a Constituição prevê que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Em 2016, porém, quando o país vivia um forte clamor contra a impunidade em meio à operação Lava Jato, a Corte mudou sua posição, ao julgar um caso específico e, depois, ao analisar provisoriamente duas ações amplas sobre esse tema. Na ocasião, uma maioria apertada (6 a 5) entendeu que é possível iniciar o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, por ser a etapa em que se encerram a análise de provas (as cortes superiores julgam apenas questões processuais, ou seja, se a lei foi aplicada corretamente no processo). O resultado foi modificado porque a composição da corte se alterou, devido à aposentadoria de alguns ministros, e também porque Gilmar Mendes mudou seu voto. Após ter ficado contra a prisão antecipada em 2009, ele votou em 2016 a favor. Já em 2017, porém, Mendes indicou que mudou seu posicionamento novamente, o que gerou fortes críticas de que estaria agindo politicamente após a Lava Jato ampliar seu alcance a atingir políticos do PSDB e do MDB, próximos ao ministro. Mendes negou essa motivação e se justificou dizendo que havia votado para autorizar a prisão antecipada, mas não para que se tornasse algo automático após a condenação em segunda instância, como estava ocorrendo. Após ele sinalizar sua mudança de posição, ministros contrários a prisão antecipada passaram a pressionar a então presidente da Corte, Cármen Lúcia, a pautar novamente as duas ações amplas que discutiam essa questão, e que haviam sido julgadas apenas provisoriamente em 2016. Favorável à prisão após segunda instância e crítica a uma revisão tão rápida de uma decisão do colegiado, ela resistiu à pressão. Em vez de pautar as ações mais amplas, levou a julgamento em 2018 um pedido de habeas corpus de Lula, em que a defesa pedia que ele não fosse preso antes do trânsito em julgado. O julgamento foi envolto em forte tensão, dada à grande projeção política de Lula – ele havia sido condenado meses antes em segunda instância no caso do Tríplex do Guarujá, em rápido julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que confirmou uma decisão do então juiz Sergio Moro, hoje senador. Como esperado, Gilmar mudou de lado, votando contra a possibilidade de Lula ser preso. O petista acabou indo pra cadeia, porém, porque Weber se manifestou contra seu pedido de habeas corpus. Para Diego Werneck, o voto foi coerente com a postura da ministra de respeitar o colegiado: como havia uma decisão ampla do STF autorizando a prisão antecipada para todos os réus, não faria sentido, na lógica de Weber, considerar ilegal que Lula fosse preso. "Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação ao meu voto, porque eu tenho critérios e procuro manter a coerência das minhas decisões", disse Weber no julgamento, após ser interrompida em seu voto, com críticas dos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski (já aposentados). A professora Eloísa Machado, por sua vez, considera "um erro de avaliação" o voto da ministra, já que a jurisprudência da corte que autorizava a prisão antecipada era "instável" e seria revista em seguida. De fato, em 2019, o novo presidente do STF, Dias Toffoli, levou a julgamento novamente as ações amplas que discutiam a constitucionalidade da prisão após segunda instância. Nessa caso, Weber voltou a votar contra essa possibilidade, firmando maioria no Supremo contra o cumprimento antecipado da pena. Lula foi solto após essa decisão, e depois teve suas condenações anuladas pelo Supremo, devido a ilegalidades na condução dos processos da Lava Jato. "Eu acho que esse talvez seja o momento mais é polêmico e que marca a trajetória da ministra Rosa Weber. Talvez ela devesse ter se mantido fiel as suas convicções ao invés de se atrelar a uma maioria do colegiado que já se mostrava instável", nota Machado. "De fato, é um mérito os ministros do Supremo serem deferentes às posições do colegiado. Isso não é algo ruim. Porém, essa decisão da possibilidade de execução da pena após condenações em segunda instância não se mostrava uma posição consolidada na Corte. Portanto, se ela se mantivesse atrelada a suas convicções contrária a antecipação da execução da pena, ela não estaria minando a colegialidade do tribunal", acrescenta.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1lq49gj4do
brasil
Queda do dólar aniquila renda dos catadores de recicláveis: 8 toneladas de papel para ganhar um salário mínimo
O latido incessante dos cães entre as grades dos portões anuncia a passagem do piauiense Elias Pereira, de 53 anos, que puxa sua carroça pelas ruas de Guarulhos, na Grande São Paulo. Todos os dias, o catador de material reciclável percorre 20 km de bicicleta, para ir e voltar de casa, e pelo menos mais 20 km puxando o carrinho artesanal que, sozinho, pesa 110 kg. Enquanto alguns setores do país comemoram a queda do dólar, o que diminui o valor das viagens internacionais e da importação de produtos, Elias viu a renda familiar dele cair drasticamente. Por conta principalmente da valorização do real frente à moeda americana, cada quilo de papel que ele vendia por R$ 1 em 2021, hoje vale R$ 0,15. A latinha caiu de R$ 8,50 para R$ 5 e hoje ele relata que está desesperado para alimentar "as oito bocas que eu tenho dentro de casa". "Se fosse naquela época (há dois anos), eu teria ganhado R$ 30 com a quantidade que eu trouxe, mas hoje fiz R$ 5", afirma ele à reportagem logo após entregar o que arrecadou na primeira jornada do dia. Fim do Matérias recomendadas Hoje, Elias precisa transportar 8,8 toneladas de papel para arrecadar o equivalente ao valor de um salário mínimo: R$ 1.320. Em março de 2021, o dólar chegou a R$ 5,75. Em julho deste ano, a moeda americana era cotada a R$ 4,75 — 17% mais barato. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC News Brasil acompanhou parte da rotina diária do catador em busca de reciclagem. A reportagem também ouviu especialistas do setor, uma economista e outros catadores para entender por que isso acontece e se há caminhos possíveis para proteger os trabalhadores do segmento. Economista e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carla Beni afirma que a oscilação do preço do material reciclado ocorre porque a celulose e o alumínio são commodities negociadas no mercado financeiro mundial — ou seja, o preço flutua de acordo com fatores que vão muito além da economia local gerada pela reciclagem. A consequência desse impacto é que, assim como Elias, muitos catadores pensam em abandonar a profissão. A estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) é de que o Brasil tenha cerca de 1 milhão de catadores. Segundo o órgão, esses trabalhadores são responsáveis pela maior parte da coleta do país, mas 75% do lucro com esse trabalho fica com as indústrias. Às 8h, Elias inicia a pedalada no bairro do Cabuçu, que lhe rendeu o apelido pelo qual ele é conhecido na região. Cerca de 10 km e uma hora depois, o "Neguinho do Cabuçu" chega ao ferro-velho no bairro Santa Emília, em Guarulhos, para pegar a carroça e iniciar sua jornada. A reportagem o acompanhou por três horas caminhando pelas ruas da cidade, com termômetro registrando 31 graus num dia de setembro. Depois de 6 km percorridos, o resultado: 26 kg de papelão, 5 kg de ferro, 2,2 kg de alumínio e 13 kg de plástico. "Dia de sorte", diz ele ao olhar o carrinho cheio. É hora então de voltar ao ferro-velho e pesar tudo. Após o veredito da balança, o pagamento: R$ 30 reais, em três notas de 10. Elias é um homem sorridente, de 1,60 m e músculos talhados pelo trabalho duro, mas neste momento é o desânimo que aparece no olhar. Ele não esconde a decepção de ter sua mão-de-obra trocada por uma quantia que mal pagaria o seu almoço, caso ele não tivesse a opção de comer em uma unidade do Bom Prato, a R$ 1. Mas, dentro de casa, ele não tem refeições subsidiadas e confessa que precisa fazer escolhas diárias para garantir a alimentação da família. "Eu deixei de comprar carne (de boi). Um quilo é R$ 35. Eu compro mais uma bistequinha, um frango, uma salsicha. O feijão aumentou, o arroz aumentou. Você vai no mercado com R$ 80 e não traz quase nada", lamenta. "Ontem, eu comprei R$ 30 de asa de frango e parece que veio só as peles. Eu olhei e pensei: 'veio só isso?'" Do outro lado da balança no ferro-velho de Guarulhos está Mauriceia Maria de Lima Santos, de 54 anos. Dona do negócio e filha de catador, ela analisa o momento do setor. Santos afirma que a reciclagem viveu um de seus melhores momentos no ano de 2021, mas que, desde meados de 2022, viu a maioria dos catadores que vendiam para ela abandonar a profissão. "A gente está vivendo uma crise na reciclagem. Quando acontece essa queda brusca (do dólar), essas pessoas vivem em situação de miséria. Elas vivem de doação porque o que eles trazem de reciclagem não dá para comprar pão ", afirma a dona do ferro-velho. Ela diz que prefere, algumas vezes, diminuir a margem de lucro dela para melhorar a renda dos catadores. "Às vezes, o nosso comprador abaixa o preço e a gente segura, como acontece agora com o papelão. Hoje, eu pago R$ 0,15 quando a maioria paga R$ 0,10. Eu acho injusto a pessoa carregar 100 kg e ganhar R$ 10. Para muita gente pode não parecer muito, mas para o catador R$ 5 faz a diferença", conta ela. Ela disse ter percebido uma queda entre 40% e 50% na quantidade de reciclagem que recebe dos catadores. "Eu entregava uma média de 5 toneladas de sucata por semana. Hoje, eu levo 10 dias para entregar essa mesma quantidade. Meus custos aumentaram, meus impostos aumentaram, mas meu ganho caiu. O que eu preciso fazer? Trabalhar mais." A economista Carla Beni afirma que o papelão foi o produto mais afetado pela queda do dólar nos últimos meses. "Nós tivemos uma queda de preço para ele em torno de 70%. O câmbio em 2022 estava R$ 5,40, R$ 5,50. Hoje, nós estamos com câmbio abaixo de R$ 5. Tivemos períodos recentes a R$ 4,74. Então, quando você tem essa diferença de câmbio, a importação fica mais barata", explica. Ela diz que os catadores são prejudicados com a queda do dólar porque a latinha de alumínio, o aço, o papel, vidro, plástico, garrafa PET e embalagens do tipo longa vida são commodities negociadas nas bolsas de mercadorias em dólar. Segundo a professora, não existe um dado nacional dos preços pagos aos catadores de materiais recicláveis, mas números do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), uma associação de empresários dedicada à promoção da reciclagem, apontam que a variação do custo das mercadorias acompanha a do dólar. "Quanto mais apreciado estiver o real, o que é muito bom para vários segmentos da economia, pior é para a vida do catador. Ele vai precisar andar mais e recolher mais", afirma ela. A reportagem ouviu de integrantes do setor que diversas empresas preferem importar, por exemplo, plástico reciclado da China ou bobinas de papel branco quando o real está mais valorizado. O motivo é que os produtos importados têm melhor qualidade. "Qual é a concorrência imediata do papelão? O papel branco puro. Então, o papel reciclado tem um preço menor do que o papel branco só que, além de tudo, ele ainda tem todo um processo químico de elementos, tem que triturar e ele acaba tendo um rendimento menor. Então, na comparação, quando fica mais barato importar, acaba se preferindo comprar o papel puro branco", diz a professora da FGV. Para a economista, porém, é injusto que os catadores de recicláveis não sejam recompensados pelo trabalho social que fazem recolhendo materiais recicláveis. "Quando você precifica esses materiais como uma commodity, você está fazendo comparações diferentes. Esse catador recolhe uma a uma as latinhas que são jogadas no lixo e eu dou ao trabalho dele o mesmo preço do alumínio produzido na indústria. Não é possível que você ande um mês inteiro recolhendo as sobras da sociedade e não receba um salário mínimo", diz. Dudu Catador, líder nacional do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e membro da Rede Latino-Americana e Caribenha de Catadores (Red Lacre), defende que uma taxação mais alta dos materiais reciclados importados é o principal ponto para evitar uma queda ainda maior nos preços. "O Brasil precisa implantar decretos para melhorar a renda do catador. Tem que diminuir os impostos daqui (sobre o material reciclável) e aumentar os de fora para que os catadores possam trabalhar e levar sua renda digna e botar comida no prato", afirma. A economista da Fundação Getulio Vargas aponta que o aumento de impostos como medida protetiva de seu parque industrial é implantado no mundo inteiro. "É perfeitamente possível. Os países praticam impostos específicos para poder proteger a indústria interna. Mas fazer uma taxação maior para esse fim eu acho muito pouco provável. É melhor fazer uma distribuição de renda sob um plano específico de manutenção de pelo menos um salário mínimo", diz a professora. Ela explica que esse pagamento poderia ser feito após os trabalhadores serem devidamente cadastrados nos municípios onde vivem, embora seja mais cética quanto à possibilidade de implementar um programa nacional nestes moldes. De toda forma, a professora aponta que a saída mais efetiva seria que esses catadores criem ou participem de cooperativas. Quando isso ocorre, os ferros velhos são cortados da cadeia de vendas até a indústria e isso garante maior lucro para os trabalhadores. "Se ele se organizar numa cooperativa, vai receber um preço mais justo em relação ao preço de um atravessador, no ferro velho. Nas cooperativas, ele paga INSS e tem mais direitos e melhor rendimento, apesar de ainda ser autônomo", afirma. Elias e outros catadores ouvidos pela reportagem afirmaram que, além da queda do dólar, o advento da coleta seletiva fez "sumir" a reciclagem das ruas e impactar ainda mais o rendimento deles. Isso acontece, segundo eles, porque as pessoas que separavam esse material para os catadores, hoje entregam para o caminhão da coleta seletiva, que passa uma vez por semana. E tudo vai direto para as cooperativas da região. O catador conta que chegou a carregar 300 kg de material numa só viagem durante a pandemia, mas hoje entrega 50 kg quando tem sorte. "Eles passam levando tudo e a gente fica sem. Tem gente que guarda para mim, mas nem todo mundo pensa assim. Às vezes eu ganho R$ 50 o dia todo. Mas se está ruim trabalhando, ficar em casa é pior", conta. O catador mora com a mulher, os quatro filhos, dois netos e um genro no terreno da casa dele. A principal renda da família é o dinheiro que Elias consegue com o material reciclado que ele vende. A mulher dele, que sofre de depressão, não está trabalhando, assim como o genro. A filha, que está com um filho de 4 meses, recebe o Bolsa Família. Há oito meses, ele sentiu a pressão de ficar parado dentro de casa. Elias foi atropelado quando pedalava voltando para casa. O resultado foi um maxilar e duas costelas quebradas, além de um machucado no tornozelo que o faz mancar até hoje. Depois de 20 dias de repouso após o acidente, Elias viu os armários esvaziados e o apelo do neto o fez voltar às ruas. A única ajuda que tinha era de Mauriceia Santos, a dona do ferro-velho, que doou cestas básicas e fez compras para ele. "Ele (o neto) falou que tinha acabado as bolachas dele e o Danone (iogurte). A geladeira não tinha nada. Uma tristeza que saiu água dos olhos. Eu falei: 'quando o vô trabalhava, comprava suas coisas'", conta. "Naquele dia, eu tirei uns entulhos da casa de um rapaz e ganhei R$160. Eu estava com a boca inchada e desmaiei logo depois de almoçar no Bom Prato. Eu trabalho doente, mas eu não deixo ninguém com fome", segue o catador. A ausência de direitos trabalhistas desanima Elias — que soma 15 anos de carteira assinada, principalmente em supermercados. Depois que foi demitido há quase oito anos, ele conta que passou a recolher recicláveis e fazer bicos na construção civil. Elias diz que não recebe o benefício de transferência de renda do governo, o Bolsa Família, porque perdeu o CPF e não tem tempo para tirar uma segunda via do documento. Ele diz que procura emprego nas áreas onde já atuou com carteira assinada e pretende deixar de ser catador. Enquanto isso, busca alternativas para complementar a renda. "Sempre que eu posso, faço uns bicos. Limpo terrenos, carrego entulho. Qualquer um deles paga melhor do que a reciclagem", diz. De acordo com levantamento feito pela Ancat e Instituto Pragma, com dados de 641 organizações de catadores, em 2020 foram comercializadas 326,7 mil toneladas de materiais recicláveis no Brasil. Isso é o equivalente a uma produção média de 895 toneladas por dia. Embora a variação da cotação do dólar tenha impacto direto na vida dele, Elias conta que sequer acompanha as notícias do tema. Ele só sabe o resultado das mudanças na balança do ferro-velho. No entanto, ele tem fresco na memória o contraste de agora com o início de 2022, quando chegou a ganhar R$ 600 num único dia, um rendimento que não consegue nem mesmo em uma semana inteira de trabalho. Ele afirma que o custo das cestas básicas mensais da família dele é de, pelo menos, R$ 800. "Às vezes, eu quero comprar uma roupinha mais decente, mas não dá. Ou você come, ou você veste. Tem que escolher. Um chinelo Havaianas hoje custa R$ 30. Um chinelo simples. O valor que eu ganhei hoje foi o que eu paguei num chinelo." O sonho dele é conseguir comprar uma casa boa e dar melhores condições de vida e educação para os filhos e netos. Hoje, a família vive em uma área irregular e corre risco de despejo. "Quero colocar (meus netos) numa escola melhorzinha para não ficar que nem eu, analfabeto. Eu quero que eles estudem. Não quero eles puxando carrinho", desabafa. Elias relata que um familiar disfarçou e virou a cabeça para não cumprimentá-lo quando o viu com a carroça na rua. "Eu tenho vergonha (de ser catador). A gente faz isso para não roubar. Puxar carrinho é serviço de doido. Mas o ganho que eu achei foi esse aqui e estou bem nisso." Ele diz que apenas torce para ter novas oportunidades de trabalho, pois se sente humilhado pela desgastante rotina diária. Mas ele pensa em desistir? Elias levanta a camiseta polo e bate no abdômen definido enquanto diz, com a voz firme, que ainda tem muita força para trabalhar. "Pode estar sol ou chover granizo que eu estou trabalhando."
2023-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n25n573epo
brasil
As possíveis consequências para Bolsonaro e generais por suposta reunião do golpe
A delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), deverá ser um dos principais temas das próximas reuniões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos atos de 8 de janeiro, que terão sessões ao longo desta semana. Aguardada com ansiedade tanto por apoiadores quanto por opositores de Bolsonaro, a delação foi fechada com a Polícia Federal (PF) e homologada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Cid teria narrado à PF que Bolsonaro teria participado de uma suposta reunião com militares do alto escalão, de acordo com reportagens do portal UOL e do jornal O Globo, na qual se teria discutido uma minuta de um ato presidencial para convocar novas eleições e prender adversários. A suposta reunião teria ocorrido em 24 de novembro, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições em que Bolsonaro foi derrotado. As reportagens não apontam os nomes de todos os oficiais que teriam participado dessa reunião. Mas afirmam, citando a delação de Cid, que o então comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, teria demonstrado apoio à suposta tentativa de impedir a posse de Lula. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil não conseguiu localizar os contatos do militar e não identificou os contatos de sua defesa. Procurada pela BBC News Brasil, a Marinha disse em nota que não teve acesso à delação de Cid e que não se manifesta sobre processos investigatórios que tramitam no Judiciário. Afirmou ainda que "eventuais atos e opiniões individuais não representam o posicionamento oficial da Força" e que a Marinha está à disposição da Justiça para contribuir com as investigações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em nota publicada na semana passada após a divulgação dos relatos de Cid, advogados de Bolsonaro afirmaram que o ex-presidente "jamais tomou qualquer atitude que afrontasse os limites e garantias estabelecidas pela Constituição" e que, ao longo dos quatro anos de seu mandato, "sempre jogou dentro das quatro linhas da Constituição Federal". Após a publicação das reportagens sobre a delação de Mauro Cid, o atual ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, disse querer que o episódio seja esclarecido e admitiu que pudesse haver oficiais favoráveis a um possível golpe de Estado. "Essa questão do golpe, acho que eram questões isoladas. Podia o Garnier querer, mas a Marinha não queria", disse o ministro em entrevista à Revista Veja. Múcio disse ainda esperar que a delação premiada possa ajudar a identificar eventuais "infratores" envolvidos em uma suposta tentativa de golpe. "Torço para que as delações aconteçam e tenho certeza de que as Forças Armadas irão se antecipar e tomar suas posições com relação a todos os pretensos infratores. Vai ser bom para as Forças e vai ser bom para o Brasil. As Forças Armadas estão ao lado da sociedade", disse o ministro na mesma entrevista. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que, caso seja confirmado que a reunião ocorreu e que foi discutido de fato um plano para mudar o resultado das eleições, os participantes do suposto encontro teriam cometido crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição ao Estado democrático de direito e prevaricação (quando um funcionário público tem conhecimento de uma irregularidade, mas não toma medidas para impedi-la). As penas, segundo os especialistas, variam de quatro a doze anos de prisão. Mas estes mesmos especialistas enfatizam que ainda é cedo para afirmar categoricamente que esses crimes foram cometidos. Segundo eles, é preciso que a PF aprofunde as investigações e encontre elementos que corroborem a versão dada por Mauro Cid. Investigadores da PF ouvidos pela reportagem vão na mesma linha e ressaltam que uma delação é apenas uma parte da investigação e que precisa ser comprovada ao longo do inquérito. Os dois principais crimes que, segundo os especialistas, poderiam ser atribuídos a Bolsonaro e aos oficiais presentes à suposta reunião, caso o relato de Cid seja verdadeiro, são abolição violenta do Estado democrático de direito e tentativa de golpe de Estado. De acordo com o Código Penal, o primeiro crime se configura ao "tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". As penas para esses crimes variam de quatro a oito anos de prisão. O segundo crime, golpe de Estado, acontece ao tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. As penas vão de 4 a 12 anos de prisão. Os dois crimes foram incorporados ao Código Penal brasileiro somente em 2021 e são a base das acusações feitas aos réus que respondem a processos criminais por terem invadido e depredado as sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano. "Em tese, um presidente da República que convoca uma reunião para um ato golpista pode, sim, estar cometendo crimes, inclusive crimes de responsabilidade", diz Juliana Bertholdim, professora de Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná. O criminalista Celso Vilardi, professor de Direito Penal, também avalia que os crimes investigados com base no relato de Mauro Cid seriam a abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado. Ele diz, no entanto, que os elementos divulgados até agora ainda seriam insuficientes para atribuir, de forma peremptória, os crimes tanto a Bolsonaro quanto aos militares. "É preciso saber se nessa reunião foi discutida alguma ação concreta para tirar essa suposta minuta do papel. Se nenhuma atitude foi tomada, não acho que podemos falar que houve crime", disse. "Você pode dizer: 'Pretendo matar alguém. Posso fazer isso com o apoio de terceiros'. Isso não significa que estamos no campo do crime. O crime vai começar a partir de atitudes concretas que, no meu modo de ver, ainda não estão próximas de estarem comprovadas." Ricardo Jacobsen, professor do programa de Ciências Criminais da PUC do Rio Grande do Sul, concorda com Bertholdi e afirma que, no caso do crime de tentativa de abolir o estado democrático de direito, a mera convocação de uma reunião com chefes militares para discutir uma suposta minuta golpista já poderia ser vista como um crime. "No Direito Penal, uma das coisas fundamentais é estabelecer se houve ou não o dolo, ou seja, a intenção. Me parece, no entanto, que se o presidente convoca uma reunião para discutir essa minuta, ele passa à fase de execução do crime. A mera tentativa já enseja uma punição", afirma o professor. Bertholdi ressalta que o próprio tipo penal cita o termo "tentativa" de abolição do estado democrático de direito. "Porque se o sujeito que empreender essa tentativa tiver sucesso, não teríamos um Judiciário constituído para fazer o julgamento, logo, não faria sentido que o crime só existiria na sua forma consumada", diz a professora. "A dificuldade ao analisar o caso é saber se eles chegaram ao ponto de tentativa de abolição do estado democrático de direito ou se as conversas estavam apenas na fase das ideias sem um plano estruturado." Jacobsen avalia que o seu entendimento também poderia ser aplicado ao almirante Garnier que, segundo as reportagens do UOL e do jornal O Globo, teria demonstrado apoio à suposta tentativa de impedir a posse de Lula. "Se um dos militares declarou apoio a um suposto plano golpista, esse oficial poderia responder pelo crime de golpe de Estado", diz. Outro debate que se teve logo após a divulgação de detalhes da delação premiada de Mauro Cid é sobre se os militares que teriam participado da reunião poderiam ser punidos por prevaricação ou se poderiam ter dado voz de prisão contra Bolsonaro. Os juristas Celso Vilardi e Pierpaolo Bottini afirmam que, mesmo que Bolsonaro tivesse deixado claro na suposta reunião uma intenção de dar início a uma ruptura do regime democrático, os oficiais não poderiam ter dado voz de prisão ao então presidente. "Há uma imunidade aos presidentes da República prevista na Constituição Federal. Ele só poderia ser preso após uma sentença condenatória expedida pelo STF. Ele poderia responder pelos crimes no exercício da Presidência, mas só poderia ser preso após o fim do seu mandato", explica Bottini, que é professor de Direito Penal na Universidade de São Paulo (USP). Celso Vilardi também avalia que o presidente não poderia ser preso nestas uspostas circunstâncias. "Os comandantes militares teriam que comunicar às autoridades sobre essa reunião e, aí, uma investigação seria feita", diz. A resposta de Vilardi, em parte, aponta sua opinião sobre qual deveria ter sido a conduta dos oficiais caso eles tenham sido, de fato, apresentados a um plano golpista. Caso eles não tenham tomado essa medida, teriam, em tese, cometido do crime de prevaricação. No Código Penal, o crime de prevaricação ocorre quando um funcionário público retarda ou deixa de praticar um ato dentro de suas atribuições para satisfazer algum interesse ou sentimento pessoal. As penas previstas para esse crime variam de três meses a um ano de prisão. Em situações como essa, em função do tamanho reduzido da pena, raramente os acusados cumprem a pena na prisão. No caso da suposta reunião que teria sido citada por Mauro Cid, Vilardi defende que os militares deveriam ter procurado as autoridades competentes para reportar o teor da suposta reunião. "Ainda que não coubesse a prisão por conta da imunidade presidencial, se estava em curso um golpe de Estado, eles deveriam instaurar um procedimento para apurar o caso ou procurar as autoridades responsáveis por investigar o presidente", afirmou. Entre as autoridades que Pierpaolo e Vilardi mencionaram estão a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e a Procuradoria Geral da República (PGR). Além das consequências no âmbito criminal, os militares que caso venham a ser condenados por um suposto envolvimentos na reunião que teria sido mencionada por Cid ainda correriam o risco de enfrentar processos na Justiça Militar. De acordo com a legislação brasileira, oficiais da ativa ou da reserva condenados por crimes comuns podem ser submetidos a tipo de processo que tramita no Superior Tribunal Militar (STM) destinado a avaliar se o militar é digno ou não de permanecer nos quadros das Forças Armadas. No caso de serem considerados indignos, os oficiais ficariam sujeitos à perda de suas patentes e a até mesmo ser expulsos das Forças Armadas. Investigadores da PF ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmam que delações premiadas como a de Cid são apenas uma parte da investigação e, antes de resultarem em indiciamentos, denúncias ou condenações, elas precisam ser comprovadas a partir do andar das investigações. No caso de Mauro Cid, a PF ainda deverá tomar novos depoimentos de Mauro Cid e procurar provas que comprovem ou refutem o relato dado pelo ex-ajudante-de-ordens. Caso as provas encontradas indiquem que o relato seja verdadeiro, caberá à PF indiciar os participantes da reunião com base nas responsabilidades de cada um deles. Após o indiciamento, caberá ao Ministério Público oferecer uma denúncia contra os suspeitos. Só depois que a denúncia for feita e aceita pelo STF é que os ministros e ministras da Corte deverão julgar o caso. A suposta reunião que teria sido mencionada por Cid em sua delação é investigada no bojo do inquérito que investiga atos antidemocráticos e que tramita no STF. Cid, porém, é investigado em outros inquéritos como o que apura a suposta venda ilegal de joias dadas de presente a Bolsonaro e o que apura a suposta fraude em cartões de vacina de Bolsonaro, seus auxiliares e de sua filha. Em relação a esses dois casos, Bolsonaro e sua defesa já deram declarações negando seu envolvimento em irregularidades. Além das investigações no âmbito jdo Judiciário, a delação de Cid também teve repercussões no mundo político. Desde que detalhes do seu conteúdo começaram a ser divulgados, integrantes da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional que investiga os atos de 8 de janeiro passaram a pressionar pela convocação do almirante Garnier para depor. A relatora da comissão, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), disse em entrevista a veículos de imprensa na segunda-feira (25/9) que gostaria de ter os depoimentos de Garnier e outros dois ex-comandantes militares: o ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, e o ex-comandante da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Júnior. É preciso que os requerimentos de convocação dos três seja votado pelos integrantes da CPMI. Gama disse esperar que isso ocorra na terça-feira (26/9). Fontes ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmaram, porém, que ainda não há consenso entre os integrantes da comissão se Garnier será ou não convocado a depor.
2023-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c88mej5m870o
brasil
Vídeo, Teto que esquenta na favela e ar-condicionado no bairro rico: a desigualdade sob calor extremoDuration, 7,13
Com o aumento da temperatura no Brasil, alertas de "grande perigo" foram emitidos para áreas em nove Estados do país. Mas o calor não é experimentado da mesma maneira por todos os habitantes. Além da diferença entre a temperatura marcada pelos termômetros, a sensação térmica pode variar muito conforme as condições de moradia, áreas de sombra, número de prédios e arborização dos diferentes bairros, afirmam especialistas. A repórter Julia Braun visitou uma comunidade dentro da favela de Paraisópolis, em São Paulo, onde moradores sofrem devido à falta de áreas verdes e com casas com pouquíssima ventilação, e também Higienópolis, área nobre com residências de janelas grandes e estruturas que facilitam a ventilação, além de aparelhos de ar condicionado.
2023-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx1r7lk5d2o
brasil
As orientações para evitar acidentes em mergulho, segundo especialista
A morte inesperada do dentista Rafael Puglisi, de 35 anos, que tinha entre seus clientes inúmeras celebridades, como o jogador de futebol Neymar e a atriz Larissa Manoela, voltou a colocar em evidência os acidentes por mergulho. As causas do óbito ainda estão sendo apuradas pela polícia, que solicitou mais exames para investigar o ocorrido. Por enquanto, segundo nota da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo, a morte é considerada "suspeita" — quando não há causa evidente, ou seja, quando não está claro se o caso é violento (homicídio ou suicídio) ou morte natural. "Rafa foi fazer sua natação matinal, como de costume, estava em casa se preparando para entrar na sua piscina e mergulhar de ponta, como faz todos os dias! Porém, hoje, Deus quis que esse mergulho fosse diferente e Rafa acabou batendo a cabeça! Os médicos tentaram reanimá-lo, mas infelizmente ele chegou sem vida no hospital", escreveu a família no Instagram. Fim do Matérias recomendadas Não há dados consolidados sobre acidentes como o de Puglisi, mas, segundo a Sociedade Brasileira de Coluna (SBC), mergulhos em águas rasas são a segunda principal causa de lesões medulares no Brasil durante o verão, após os acidentes de trânsito. Por isso, todos os anos, quando chega a estação mais quente, a SBC faz campanhas para conscientizar a população sobre esse tipo de acidente, que tende a acometer com mais prevalência jovens do sexo masculino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, dados enviados pelo Ministério da Saúde a pedido da BBC News Brasil apontam que, entre 2015 e 2022, houve 417 mortes por afogamento/submersão decorrentes de queda de piscina no Brasil. "Normalmente, a morte ocorre por afogamento após lesão medular. Isso acontece porque o paciente perde os movimentos dos braços e das pernas (tetraplegia) imediatamente e não consegue deixar o local onde está sem a ajuda de outras pessoas", diz à BBC News Brasil Orlando Righesso Neto, médico ortopedista especializado em coluna e presidente da Comissão de Campanhas da SBC. "É um acidente que pode mudar sua vida de uma hora para outra. Sabemos que tragédias acontecem, mas estas podem ser evitadas", acrescenta ele. Atuando há mais de 30 anos como ortopedista de coluna, Righesso Neto diz já ter visto e atendido centenas de casos envolvendo acidentes por mergulho — a maioria das vítimas, segundo ele, é jovem e do sexo masculino. Na visão do especialista, muitos desses acidentes ocorrem por falta de informação sobre os perigos associados aos mergulhos em águas rasas. "É preciso que a sociedade se conscientize sobre esse tipo de acidente — que os pais se informem e eduquem seus filhos sobre como eles devem agir", diz Righesso Neto. O especialista faz as seguintes recomendações: Segundo Righesso Neto, as lesões acontecem normalmente quando a pessoa mergulha de ponta cabeça, com os braços para frente em posição de flecha ou de lado. "Mesmo que os braços estejam esticados, eles não são fortes o suficiente para impedir o choque. A vítima pode ter um trauma no crânio, mas normalmente isso não causa uma fratura craniana ou uma hemorragia interna", explica. "Mas essa batida vai ocasionar muito provavelmente uma flexão do pescoço em direção ao peito porque o peso do corpo vai ser todo projetado em cima da coluna cervical, que é muito frágil. São ossos muito pequenos. Como o peso do corpo é muito grande, a articulação pode se deslocar ou pode haver um rompimento da vértebra", acrescenta. Como resultado, segundo Righesso Neto, há um traumatismo na medula, o traumatismo raquimedular (TRM). "No início, após o traumatismo grave na coluna, a vítima entra no chamado "choque medular", quando há uma perda completa de todos os movimentos dos braços e das pernas. E, claro, se ela não for retirada da água, pode vir a óbito por afogamento". Righesso Neto diz que a lesão pode ser parcial ou total. "Só conseguimos determinar o tipo de lesão quando o paciente sai desse estado neurológico de choque medular que dura em torno de 24 a 48 horas, a partir de testes clínicos que fazemos". "Em muitos casos, a pessoa fica tetraplégica, que é a perda completa dos movimentos dos braços e das pernas definitivamente". Segundo Righesse Neto, depois que o paciente é socorrido, ele é levado a um centro de trauma, normalmente um hospital de referência, onde será submetido a radiografias da coluna, tomografia computadorizada e ressonância magnética. "Com esses exames, podemos determinar o nível da lesão e qual procedimento vamos realizar para descomprimir a medula e alinhar e fixar a coluna", explica. "Essa descompressão da medula é importante e procuramos fazer isso o mais rápido possível porque pode haver alguma esperança e melhora neurológica". "Em casos graves, às vezes pequenas melhoras são significativas para o paciente. E isso vai facilitar seu dia a dia se ele ficar confinado em uma cadeira de rodas", acrescenta. O pós-operatório, segundo Righesso Neto, é de "alto risco". Ele diz serem muitas as complicações que podem acontecer, como embolias, tromboses e infecções. "Normalmente, são internações prolongadas. O paciente costuma ficar na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) por vários dias e depois começa a fisioterapia respiratória e motora". "É um tipo de acidente que tende a acometer homens mais jovens que querem provar virilidade, masculinidade". "Mas precisamos de uma vez por todas entender que, em um minuto você pode mudar drasticamente a sua vida e a de sua família. O cuidado de que um tetraplégico necessita é enorme, e são muitos os desafios em um país menos desenvolvido como o Brasil". Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 6 a 8 mil casos novos de TRM são registrados no Brasil por ano — destes, 80% das vítimas são homens e 60% têm entre os 10 e 30 anos. O trauma é a causa predominante. Apesar dos avanços da medicina, a tetraplegia, apontam especialistas, costuma ser uma situação irreversível. A cura e a recuperação parcial dos movimentos vai depender da causa e da gravidade da lesão.
2023-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl420620pg0o
brasil
Teto que esquenta na favela, árvore e ar-condicionado no bairro rico: a desigualdade sob calor extremo
O aumento da temperatura no Brasil fez o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitir alertas de "grande perigo" para áreas localizadas em nove Estados do país. A onda de calor começou na segunda-feira (18/9) e deve ter o ápice neste fim de semana, com os termômetros podendo marcar até 43°C. O alerta é válido até as 18h de domingo (24/9). Segundo a Climatempo, as áreas mais afetadas serão Centro-Oeste, Norte e interior do Nordeste. Em São Paulo (SP), maior cidade da América Latina, os termômetros podem chegar a 37,1 °C, de acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), da Defesa Civil do estado. Fim do Matérias recomendadas Mas o calor não deve ser experimentado da mesma maneira por todos os moradores da capital paulista. Além da diferença entre a temperatura marcada pelos termômetros, a sensação térmica pode variar muito conforme as condições de moradia, áreas de sombra, número de prédios e arborização dos diferentes bairros, afirmam especialistas. Na comunidade do Jardim Colombo, no complexo de Paraisópolis, Zona Oeste de São Paulo, moradores têm sofrido mais do que em outras regiões mais nobres devido à falta de áreas verdes e das casas precárias, com pouquíssima ventilação. A casa de Maria do Carmo da Silva, apelidada no bairro de Rosinha, é coberta por um telhado de fibrocimento, instalado sem forro e com pouca altura. Ela conta que, nos dias de calor, a cobertura contribui para esquentar os cômodos significativamente. Aos 53 anos, ela está desempregada e mora com outras três pessoas em dois quartos. "No dia a dia, não conseguimos ficar no segundo andar da casa, porque fica muito quente", conta. "Não tem quase ventilação nenhuma e tenho que improvisar para conseguirmos dormir à noite." Rosinha usa dois ventiladores para refrescar os quartos, um deles sem a grade plástica de proteção. "Eu tirei a tampa para tentar ventilar mais", diz. Ela coloca também uma bacia com água todas as noites ao lado da cama da filha Lorena, de 2 anos, que sofre com asma e bronquite. "Está sendo muito difícil com ela assim. Semana passada tive que correr com ela [para o hospital] porque ela estava com febre e chegando lá já estava com falta de ar", diz Rosinha, que está tratando a menina com anti-inflamatórios e um aparelho de inalação emprestado de uma vizinha. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De modo geral, um alerta vermelho, segundo o Inmet, é emitido quando é esperado um fenômeno meteorológico de "intensidade excepcional, com grande probabilidade de ocorrência de grandes danos e acidentes, com riscos para a integridade física ou mesmo à vida humana". Segundo Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), assentamentos urbanos informais como as favelas tendem a ser densamente povoados e pouco arborizados, o que os torna mais quentes e vulneráveis em momentos de alertas. A falta de espaço para escoamento do ar quente, decorrente das construções estreitas coladas umas nas outras, ainda impede o resfriamento rápido durante a noite. E se o entorno não favorece, as condições internas das moradias também são prejudiciais para a saúde dos moradores, de acordo com Duarte. "Casas nessas zonas tendem a ter telhados metálicos e poucas e pequenas janelas. Nesses casos, não têm passagem do calor ou ventilação cruzada para ajudar a refrescar e a casa vira uma estufa", diz a especialista, que realiza pesquisas sobre microclimas urbanos e conforto climático. "Em assentamentos informais, como as favelas, moram por vezes mais de 1.000 habitantes por hectare — e não há espaço para abrigar as pessoas. As casas são grudadas e cai muito a qualidade de vida e a qualidade ambiental." Às 15h de quinta-feira, 21 de setembro, a temperatura marcada pelo Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas da Prefeitura de São Paulo (CGESP) na subprefeitura do Butantã, onde Rosinha mora, era de 31,9 ºC. Enquanto isso, os termômetros da subprefeitura da Sé, no centro de SP, marcavam dois graus a menos. A região central da cidade também tende a reter mais calor, por conta do excesso de asfalto e dos prédios altos. Mas em bairros específicos, especialmente em áreas nobres com maior quantidade de vegetação e uma arquitetura melhor planejada, a sensação térmica costuma ser de menos calor, diz Denise Duarte. É o caso de Higienópolis, zona rica da cidade que faz parte da subprefeitura da Sé. Muitas das moradias de classe alta do bairro têm janelas grandes e estruturas que facilitam a ventilação, além de aparelhos de ar condicionado e ventiladores de boa potência. Os próprios moradores da região admitem usufruir de um conforto climático proporcionado pela intensa arborização e distribuição dos prédios. A aposentada Olga González, de 79 anos, conta que aproveita a proximidade entre sua casa e o Parque Buenos Aires para caminhar e se refrescar pelo menos duas vezes ao dia. “Está realmente muito calor, mas dá para aguentar. Felizmente, o prédio é bem arborizado e meu apartamento bastante arejado”, diz a espanhola, que mora no Brasil desde os 13 anos de idade. “Basicamente não tivemos inverno esse ano. Mas gosto desse clima.” No mesmo bairro, na rua Maranhão, um casarão histórico construído no início do século 20, onde hoje funciona uma das sedes da FAU/USP, sequer precisa de ar condicionado ou ventiladores para manter alunos e funcionários refrescados. O pé direito alto do edifício, o jardim no entorno e as janelas amplas fazem com que o ambiente fique naturalmente fresco. "A onda de calor tem sido relativamente tranquila aqui no casarão, porque o pé direito é alto, quase 6 metros, e o ar circula muito", diz Paulo Cesar dos Santos, técnico de documentação que trabalha no local. "Só percebo o quanto está quente quando saio para andar na rua. Ou então na minha casa, que é mais abafada." A professora da FAU explica que fatores como dimensionamento correto dos espaços, orientação solar adequada e ventilação cruzada tornam as casas e apartamentos mais frescos. Além disso, segundo ela, solos gramados e árvores no entorno fazem grande diferença. As árvores absorvem uma parte do calor do sol e atuam como uma espécie de barreira entre os raios solares e as construções, impedindo o aquecimento de pisos, paredes e telhados. Para efeito de comparação, o distrito da Consolação, onde fica Higienópolis, tem uma média de quase 1.300 árvores por km², plantadas nas calçadas e canteiros. A média da cidade toda é de 670 árvores por km², segundo o Mapa da Desigualdade de 2019, o último a trazer dados sobre o tema. Já no distrito da Vila Sônia, que engloba a comunidade onde Rosinha mora, existem cerca de 760 árvores por km². A vegetação, porém, se concentra mais em outras áreas do bairro do que no Jardim Colombo, que tem uma urbanização deficitária e é formado por habitações precárias e nenhuma zona de lazer. A realidade se repete em outras áreas menos favorecidas da cidade, como Parelheiros, Grajaú e Brasilândia, que estão entre os distritos menos arborizados, e Itaim Paulista, considerado por muitos como o bairro mais quente de São Paulo. Prédios e casas mais afastados uns dos outros também evitam a formação das chamadas ilhas de calor urbanas, quando a aglomeração de edifícios e o excesso de ruas asfaltadas nas grandes cidades levam à retenção de calor. "A distribuição do adensamento na cidade é muito desigual. Enquanto em algumas zonas se vive em casas onde não há espaço ou conforto suficientes, em áreas mais nobres se constroem apartamentos enormes onde moram apenas duas pessoas", afirma Denise Duarte. "A conta não fecha."
2023-09-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czqeq2dzpw2o
brasil
63% vivem em terras não oficializadas: o panorama da população indígena em 4 gráficos
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (21/9) invalidar a tese do marco temporal das terras indígenas - que pregava que a demarcação de territórios só poderia ocorrer em comunidades que já ocupavam esses locais quando a Constituição atual foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. O Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cujos resultados começaram a ser divulgados em julho, trouxe dados atualizados do panorama da população indígena no país. Com o material, a BBC News Brasil produziu quatro gráficos explicativos. Segundo o IBGE, os indígenas no Brasil são mais de 1,69 milhão de pessoas. Esse total representa 0,83% do total da população brasileira. Os números mostram um grande aumento em relação aos dados do Censo anterior, de 2010, quando a população indígena era de 896,9 mil e representava 0,47% do total. Fim do Matérias recomendadas O crescimento de 88,8% na população indígena registrada é em parte explicado por uma mudança na metodologia do IBGE. Em 2022, o Censo encontrou mais terras indígenas do que em 2010 e passou a fazer uma pergunta a mais para as pessoas entrevistadas em certas localidades. A identificação de indígenas no Censo normalmente acontece quando alguém responde "indígena" à pergunta "qual é sua cor?". No entanto, o IBGE notou que muitas pessoas com ascendência indígena respondiam que sua cor é "parda". Por isso, em 2022, os recenseadores passaram a fazer a pergunta "você se considera indígena?" à lista de perguntas em locais que não são oficialmente terras indígenas, mas onde se sabe que há presença de povos originários. Isso fez com que o Censo captasse muito mais pessoas que se consideram indígenas, segundo o IBGE. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Essa diferença acontece porque as pessoas olham muito para a cor da pele quando essa pergunta (qual é sua cor?) é feita. Mas quando você faz a pergunta a mais (se a pessoa se considera indígena), isso abre para uma série de outros critérios de etnia que a pergunta sobre cor não responde", afirmou à BBC em agosto o pesquisador Tiago Moreira, do ISA (Instituto Socioambiental), uma das organizações da sociedade civil convidadas pelo IBGE a acompanhar a elaboração do Censo. Ou seja, muitas pessoas reconhecem sua ancestralidade indígena muito mais através de sua herança cultural do que através da cor da pele. "A pergunta remete à ascendência indígena, diferente da pergunta sobre a cor, que existe em um contexto mais restrito. Muitas vezes as pessoas são descendentes, até militam no movimento indígena, mas respondem pardo para a cor da pele", afirmou Moreira após a publicação dos dados no mês passado. Segundo o pesquisador, a pergunta "qual é sua cor" gera confusão e não é muito boa para captar a etnia das pessoas, mas ela é mantida por um motivo importante — a possibilidade de fazer comparação histórica precisa com censos anteriores, que já a usavam. Mudanças limitam a possibilidade de comparação de um ano com o outro — a inclusão da pergunta sobre os indígenas em 2022 também limita a comparação com 2010 devido ao aumento na detecção da população indígenas gerado pela mudança de metodologia. Para entender detalhadamente o aumento da população indígena são necessários os dados sobre natalidade e mortalidade indígena, que ainda não foram divulgados pelo IBGE. No entanto, ao menos parte da alta pode ser atribuído a um grande movimento de recuperação da identidade indígena, que tem se fortalecido nos últimos anos. "A gente tem um movimento antigo de recuperação dessa identidade, dos descendentes dos povos originários voltarem a se reconhecer, a prestar atenção nessa identidade, nessa ancestralidade", disse Tiago Moreira, do ISA. "A população indígena é o grupo social que mais cresce, que tem fecundidade alta. E isso está refletido nesse dado (de aumento da população)", afirmou. No entanto, dentro das terras indígenas, essa população parece estar crescendo menos do que crescia antes — algo que precisa ser confirmado pelos próximos dados divulgados pelo IBGE. Uma das hipóteses a ser confrontada com as novas informações é a de que essa aparente redução pode ser resultado dos efeitos devastadores da covid-19 dentro das terras indígenas. Segundo estudos epidemiológicos feitos pela Fiocruz, os indígenas foram um dos grupos mais vulneráveis durante a pandemia. O Censo mostrou que a maior parte dos indígenas do Brasil — cerca de 63% — vive hoje fora dos territórios indígenas oficialmente limitados. Por isso, de acordo com o pesquisador Tiago Moreira, o atendimento específico aos indígenas não pode ficar restrito aos territórios delimitados. "São dados muito importantes para planejamento de políticas públicas, para se ampliar o atendimento especial que leve em consideração as línguas, os valores e as necessidades de cada povo", afirmou o pesquisador. A terra indígena com maior número de pessoas indígenas hoje é a Terra Indígena Yanomami (AM/RR), com 27 mil pessoas, o equivalente a 4,36% do total de indígenas em terras indígenas no país. O segundo maior número é na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), com 26.176 habitantes indígenas. Os dados do Censo 2022 mostram ainda que quase metade (49,1%) da população indígena vivendo atualmente em terras demarcadas se encontra na região Norte. No levantamento, o Censo fez a pesquisa em 573 Terras Indígenas. Só foram consideradas as que tinham processos de regularização concluídos na época. A expectativa é que a rejeição da tese do marco temporal no Supremo tenha impacto em cerca de 300 processos de demarcação em curso. Outro dado que chama atenção é que, embora cinco Estados (AM, BA, MS, PE, RR) concentrem 61,43% da população indígenas (veja gráfico acima), o IBGE registrou presença indígena na maioria dos municípios do Brasil — em 4.480 dos 5.568 municípios do país. O município com maior número de pessoas indígenas em 2022 foi Manaus (AM), com 71,7 mil pessoas. Já a maior proporção ficou em cidades como Uiramutã (RR), onde 96,6% dos habitantes são indígenas; Santa Isabel do Rio Negro (AM), com 96,2%, e São Gabriel da Cachoeira, com 93,17%. *com reportagem de Letícia Mori
2023-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz949vv1w5xo
brasil
STF vota liberação do aborto; veja como tema é encarado na América Latina
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar nesta sexta-feira (22/9) uma ação que pede a ampla descriminalização do aborto realizado até 12 semanas de gestação, apresentada em 2017 pelo PSOL e o Instituto Anis. Primeira a votar, a relatora do caso e presidente do STF, Rosa Weber, se manifestou a favor da liberação da prática. Como esperado, porém, o julgamento foi interrompido por um pedido do ministro Luís Roberto Barroso para que a ação seja analisada pelo plenário físico do Supremo. Weber havia pautado o julgamento no plenário virtual, em que os ministros depositam seu voto eletronicamente por escrito, num prazo de seis dias úteis. Como a ministra se aposenta no dia 2 de outubro, quando completa 75 anos — limite de idade para a aposentadoria de ministros do STF — não haveria tempo para levar a ação ao plenário físico, em que os ministros debatem seus votos. Fim do Matérias recomendadas Caberá a Barroso, próximo presidente da Corte, que já se manifestou favoravelmente à descriminalização, decidir quando o julgamento será retomado. Hoje, o aborto é permitido no país em três cenários: gravidez por estupro, risco para a vida da gestante, e se o feto for anencéfalo (sem cérebro). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não se sabe nos bastidores do Supremo se há maioria para acompanhar o voto de Weber. Defensores da descriminalização dizem que o aborto deve ser uma decisão da mulher e que sua proibição fere direitos humanos da gestante. Já opositores defendem que a vida começa na concepção e que, portanto, deve-se proteger o feto. A possibilidade de o STF liberar a prática do aborto gerou reação de parte do Congresso, sob o argumento de que apenas o Parlamento pode decidir isso. "Qual é a prioridade de legalizar o aborto na pauta nacional hoje? Isso é desejo da população brasileira? É óbvio que não. É desejo de poucos militantes que usam toga, assim como fizeram na questão das drogas", disse o senador Eduardo Girão (Novo-CE), em referência também a outra ação que discute descriminalizar o porte de drogas para consumo. Já os defensores da descriminalização lembram que outros países já permitiram a interrupção da gestação por meio do Judiciário. No caso da América Latina, por exemplo, o Congresso foi o caminho para liberação do aborto no Uruguai e na Argentina. Já no México e na Colômbia a decisão foi do Judiciário. No Brasil, atualmente, o aborto é permitido parcialmente. A legislação permite a prática em casos de gestação em decorrência de estupro e quando há risco para a vida da mãe na gravidez. Já o STF autorizou em 2012 o aborto de fetos anencéfalos (sem cérebro), que não têm possibilidade de viver após o parto. A vereadora Luciana Boiteux (PSOL-RJ), professora de direito penal da UFRJ e uma das autoras da ação, rebate o argumento de que apenas o Congresso poderia decidir sobre o tema. Ela diz que Cortes Constitucionais têm o dever de proteger os direitos humanos, mesmo em temas em que a maioria da população seja contrária, como, na sua visão, é o caso do aborto para mulheres. Boiteux argumenta também que é função constitucional do Supremo analisar se leis ferem princípios da Constituição. O pedido da ação é para que a Corte determine que dois artigos do código penal, que criminalizam a gestante e a pessoa que realizar o aborto, seriam incompatíveis com preceitos fundamentais como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros. "O fato é que é exatamente o papel das Cortes constitucionais, nesse papel de guardião da Constituição e guardião dos direitos fundamentais, de atuar quando há uma demanda (uma ação apresentada) e quando se verifica que uma lei viola os princípios constitucionais", ressalta. Não está claro se há maioria na Corte para acompanhar o voto de Weber e descriminalizar o aborto no país. Defensores da descriminalização esperam ter ao menos quatro votos: além do de Weber, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. No caso de Weber, Barroso e Fachin, os três se manifestaram contra a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação em um julgamento da Primeira Turma do STF de 2016 que determinou a soltura de funcionários e médicos de uma clínica clandestina em Duque de Caxias (RJ), presos preventivamente. Já a expectativa do voto de Cármen Lúcia tem relação com o fato de ser uma mulher com visão progressista nas pautas de costumes. Por outro lado, os ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — Kássio Nunes e André Mendonça — devem votar contra a ampla liberação do aborto. Há mais incerteza sobre como vão se posicionar os demais: Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin. A implementação da eventual descriminalização do abordo dependerá dos temos da decisão do Supremo, avalia Luciana Boiteux. A Corte pode definir a liberação do aborto até 12 semanas, como pede o PSOL, ou determinar que um órgão técnico, como o Ministério da Saúde, defina qual será o tempo limite, por exemplo. Haverá também a necessidade de uma regulamentação sobre como o procedimento será oferecido, nos serviços de saúde públicos e privados. Para entidades feministas que defendem a liberação do aborto, isso poderia ser feito diretamente pelo Poder Executivo, como ocorreu quando o STF permitiu a interrupção de gravidez de fetos anencefálicos (2012). "Foi assim que aconteceu no caso da anencefalia: o STF decidiu que o aborto nesse caso não era crime, e o Ministério da Saúde definiu os detalhes de como as mulheres e pessoas que gestam poderiam acessar os serviços de saúde nesses casos", defende um cartilha sobre o tema produzida por organizações como Anis Bioética e Católicas pelo direito de decidir. "Foi assim que ocorreu em outros países que descriminalizaram o aborto, como a Colômbia. Com a decisão do tribunal, coube ao poder executivo editar uma regulamentação para a oferta do procedimento nos serviços de saúde", continua o documento. Luciana Boiteux, porém, reconhece que eventual regulamentação do acesso ao aborto "vai gerar ruído e disputa" com o Congresso. O aborto até 12 semanas de gestação, em geral, pode ser feito apenas com uso de medicamentos, como misoprostol e mifepristona. Outro impacto da eventual descriminalização é que pessoas condenadas ou processadas por praticar aborto poderiam ter seus casos anulados pela Justiça. Com a colaboração de Camilla Costa e da equipe de Jornalismo Visual da BBC.
2023-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c19gylezmrmo
brasil
Luísa Sonza e Chico Moedas: como desabafos públicos de celebridades podem ser um bom negócio
Por volta das 11h20 de quarta-feira (20/9), as redes sociais foram tomadas por um assunto: o fim do namoro da cantora Luísa Sonza com o influenciador Chico Veiga, conhecido como Chico Moedas. Sonza estava no programa “Mais Você”, da Rede Globo, quando anunciou o término e leu um texto sobre traição. Era o ponto final de um romance que havia sido extremamente noticiado e comentado na internet nas últimas semanas, com direito a música que se tornou hit nas plataformas. A repercussão do fim do relacionamento foi imediata. Enquanto Sonza lia o texto em rede nacional, os nomes dela e de Chico dominavam os assuntos mais comentados no X (antigo Twitter). Muitas pessoas demonstraram surpresa com o fim do breve namoro, que durou cerca de quatro meses. Enquanto isso, outros criticaram o fato de a artista desabafar sobre o caso em rede nacional. O episódio trouxe mais visibilidade para a cantora, que há um mês lançou um novo álbum, chamado “Escândalo Íntimo”. Fim do Matérias recomendadas No Spotify, a faixa “Chico”, em homenagem ao agora ex-namorado, teve mais de 1 milhão de streams no dia do desabafo da cantora. De acordo com o portal GShow, a canção subiu cinco posições na quinta-feira (21) e ocupou o quarto lugar entre as cinco músicas mais ouvidas na plataforma atualmente. A cantora ganhou milhares de novos seguidores no Instagram e no Twitter. Um levantamento da consultoria Arquimedes, feito exclusivamente para a reportagem, mostra que a cantora ganhou 405 mil novos seguidores nas duas redes sociais em 24 horas após o desabafo. No mesmo período, ela foi mencionada cerca de 600 mil vezes nas duas plataformas. Sonza, que acumula mais de 30 milhões de seguidores nas redes, viu a sua popularidade aumentar entre pessoas que não a conheciam, aponta o pesquisador Pedro Bruzzi, um dos sócios da consultoria Arquimedes. “Ela teve uma superexposição na televisão aberta e se tornou um dos principais assuntos do debate digital. Então é natural que muitas pessoas tenham tido o interesse de conhecer ou até checar o perfil dela e ver que ela estava fazendo, porque ela passou a atingir um público diferente do normal dela”, diz o pesquisador à BBC News Brasil. Assim como no caso da jovem cantora, desabafos de artistas sobre a vida pessoal se tornaram cada vez mais comuns em tempos de redes sociais e têm grande alcance. Para os seguidores, muitos famosos expõem suas conquistas, alegrias e até os momentos difíceis que enfrentam. Recentemente, situação semelhante foi vivida pela atriz Bella Campos, que ficou famosa por participar da novela Pantanal, da Rede Globo. Campos namorava o funkeiro MC Cabelinho e publicou um desabafo sobre o fim da relação logo após surgirem boatos de que ela havia sido traída. Bella ganhou mais de um milhão de seguidores após o episódio e se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes. Esses casos não se resumem ao Brasil. Um dos mais conhecidos no período recente é o de Shakira. A cantora colombiana desabafou que foi traída pelo ex-marido, o ex-jogador Gerard Piqué. Logo após, ela lançou músicas sobre infidelidade, que fizeram enorme sucesso. Seja por vontade própria, pressão dos fãs que pedem uma resposta sobre a vida pessoal do artista ou por objetivo comercial, o fato é que esses desabafos também se tornaram uma forma de engajamento nas redes sociais. O pesquisador Bruzzi avalia que esses desabafos costumam gerar engajamento porque chamam a atenção do público, que quer saber mais sobre aquele artista que está expondo a sua vida pessoal. “Essa exposição é também uma maneira de humanizar a figura. Porque o artista, com grande alcance na rede, acaba até sendo desumanizado e quando tem esses momentos de desabafo, traz de volta a figura por trás da imagem, a pessoa que sofre e tem problemas como todas as outras, que têm dificuldades em suas vidas”, diz Pedro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A vida pessoal de Luísa Sonza sempre esteve em evidência ao longo de sua carreira. Quando terminou o casamento com o youtuber Whindersson Nunes, ela recebeu inúmeras críticas e ofensas. A jovem chegou a ser acusada de ter traído o marido – fato que ela sempre negou. Desde essa separação, os ataques de ódio contra a artista se tornaram cada vez mais comuns. Por diversas vezes, Sonza comentou sobre como essa situação afetou a sua saúde mental e a fez buscar ajuda especializada. Meses atrás, ela voltou a ser notícia após anunciar o namoro com o influenciador Chico Moedas. Pouco depois, no fim de agosto, novamente voltou a ganhar destaque na mídia com o lançamento de seu novo álbum. Entre as novas músicas da cantora, uma chamou a atenção do público: a canção “Chico”. Entre elogios e críticas, a música se tornou a mais ouvida do novo álbum da artista. No início de setembro, a canção esteve no top 30 Global do Spotify. O jeito apaixonado da cantora chamou a atenção do público e até rendeu críticas pela exposição do relacionamento recente. Durante a entrevista à apresentadora Ana Maria Braga, na quarta-feira, muitos esperavam que a cantora comentasse sobre a canção e falasse sobre o novo namorado. Mas em vez disso, Sonza leu um texto no qual contou ter sido traída. "É insuportável que a traição, a quebra de combinado, respeito, confiança, zelo e cuidado continuem sendo normalizados. Um erro pontual. Só quem já foi traída sabe o que se sente, a dor que se acarreta ao que se chama de erro pontual. Da autoestima destruída, da dúvida, da insegurança que algo assim causa”, disse, visivelmente emocionada. “A traição faz você se invalidar, faz você se sentir idiota, burra, palhaça, trouxa. É uma dor impossível de explicar. É uma quebra da confiança do próximo, é o medo de acreditar nas pessoas, é um sonho destruído, é toda a sua entrega, o seu zelo, o cuidado e o amor jogados fora”, acrescentou a cantora, emocionando também a apresentadora do programa. Para o jornalista Maurício Stycer, crítico de televisão e mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), a decisão de falar abertamente sobre o assunto na emissora líder de audiência pode ter sido pensada previamente. “Os fatos que levaram ao desabafo (a traição) certamente são reais, mas a maneira de comunicar isso deve ter tido um planejamento”, afirma Stycer. “Não foi um desabafo repentino, havia um texto. E a televisão aberta e um programa como o da Ana maria Braga é visto como um bom lugar para esse tipo de situação. É uma forma de mostrar também que a tevê aberta está forte e vivíssima”, avalia o especialista. Stycer frisa que desabafos de artistas sobre a vida pessoal existem há décadas. “Mas no passado não tinha o alcance de hoje nas redes sociais. Ela falou na Ana Maria e 15 segundos depois já tinha vídeo no Twitter, TikTok e no Instagram. O universo de hoje amplificou tudo isso”, pontua. Nas redes, muitos se solidarizaram com o desabafo da cantora. Mas outros também a acusaram de criar uma estratégia de marketing por trás da dura situação pessoal para divulgar ainda mais a artista. Empresária de Luísa há seis anos, Fátima Pissarra, nega que tenha havido qualquer estratégia de marketing por trás do desabafo de Sonza e afirma que pensar isso sobre esse episódio “chega a ser cruel”. “É tão ofensivo achar que uma menina de 25 anos vai ter uma estratégia de marketing por trás de uma traição de um namorado para o qual ela fez uma música em homenagem. É desmerecer o papel tanto da artista como até dele, que recebeu essa música”, afirma Pissarra, que é uma das donas da Mynd. “Não existe nenhum tipo de estratégia em nenhum formato que vai gerar qualquer sofrimento para artista. Jamais. Isso não existe dentro da Mynd”, acrescenta. Pissarra afirma que a declaração da cantora em rede nacional foi uma forma de evitar polêmicas ou mentiras em torno do fim do relacionamento. “Existem muitas confabulações sobre assuntos que envolvem celebridades e envolvem muitas notícias falsas. Então ao falar sobre algum assunto que gera notícias falsas abertamente em um programa de televisão, você supostamente elimina todas essas fontes equivocadas e mentirosas sobre esse determinado assunto de uma vez só”, diz à BBC News Brasil. “Eu tenho certeza absoluta e posso falar em nome da Luísa: ela preferia qualquer coisa e não ter passado por esse tipo de traição de uma pessoa por quem ela estava muito apaixonada e fez uma declaração de amor desse tamanho”, completa. A empresária da artista frisa que a cantora contou sobre a traição do ex-namorado para mostrar a outras mulheres que é possível encerrar um relacionamento após passar por uma situação assim. “Esse é um assunto muito sério. É uma bandeira da Luísa. Como ela disse na Ana Maria Braga, existem históricos de traições na família dela e até entre amigas. E ela sempre foi contra essas mulheres continuarem casadas mesmo sabendo que eram traídas. E ela (Luísa) resolveu não ser uma dessas pessoas que são tantas no Brasil”, diz. A reportagem procurou a equipe de Chico Moedas para comentar a repercussão do caso, mas não obteve resposta até a conclusão deste texto.
2023-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnkgkzkz802o
brasil
Xokleng: a história do povo indígena quase dizimado que conseguiu vitória histórica no STF
Décadas depois, o caso dos Xokleng é foi cerne de um dos julgamentos mais importantes da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que definiu o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil. Os indígenas protestavam contra essa tese porque muitas comunidades foram forçadas a sair das terras ocupadas tradicionalmente e não tinham a posse delas em 1988. A decisão foi tomada em um processo em que o Estado de Santa Catarina contestava a demarcação de terra para o povo Xokleng, mas tem repercussão geral, ou seja, vale para centenas de casos similares. Fim do Matérias recomendadas Isso porque é possível que o Congresso aprove leis novamente trazendo a tese do marco temporal. Em 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei, que agora tramita no Senado, e que estabele limite de data para ocupação. No Congresso, o estabelecimento do marco temporal é uma antiga demanda da bancada ruralista e do Centrão, bloco informal de partidos sem linha ideológica clara, mas que compartilha valores conservadores. Na Câmara, foram 283 votos favoráveis ao projeto e 155 contrários. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um relato do livro Os Índios Xokleng - Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, ilustra os perigos enfrentados pelos Xokleng décadas atrás. As tropas de “bugreiros”, narra a obra, se deslocavam pelas trilhas à noite, em silêncio. Os homens, entre 8 e 15, evitavam até fumar para não chamar a atenção. Ao localizar um acampamento, atacavam de surpresa. "Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão", relatou Ireno Pinheiro, que era um “bugreiro”, sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar indígenas a mando de autoridades locais. "O corpo é que nem bananeira, corta macio", prossegue o bugreiro na descrição dos ataques. "Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança", completou. Poucas etnias foram tão combatidas pelos “bugreiros” quanto os Xokleng, de Santa Catarina. Em entrevista à BBC News Brasil em 2021, Brasílio Pripra, de 63 anos e uma das principais lideranças Xokleng, chorou ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados. "As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado", afirmou. O episódio foi descrito no jornal já extinto Novidades, de Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletrônica argentina Persona, em 2009. "Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo massacrado", relata o jornal. A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização europeia da região. Eram comuns relatos de furtos ou ataques de indígenas a trabalhadores que avançavam sobre seu território tradicional. Os Xokleng perderam dois terços de seus membros no século passado. Posteriormente, essa população voltou a crescer e a etnia atualmente soma cerca de 2,3 mil integrantes. Agora, o STF decidiu que Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais. Isso porque o Estado argumentava que os territórios não poderiam ser demarcados já que não estavam na posse dos indígenas em 1988. A ideia de marco temporal faz parte do léxico ruralista desde pelo menos 2009, quando o então ministro do STF Ayres Britto propôs sua adoção ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Naquela ocasião, o tribunal deu vitórias aos indígenas porque eles estavam na região em 1988 (ano da promulgação da Constituição) e usou o termo "marco temporal". Os indígenas, por outro lado, sempre foram contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. Foi o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar. "Não tínhamos fronteiras, andávamos por todo aquele espaço. Mas éramos tutelados, não tínhamos como responder por nós. Mal sabíamos falar português, imagine nos defender", disse à BBC News Brasil Ana Patté, jovem liderança Xokleng integrante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em junho de 2021. Patté afirmou que o território em disputa era usado pelos Xokleng para a caça, pesca e coleta de frutos, especialmente o pinhão. A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares. A área que estava em disputa integra a parte incorporada em 2003 e está parcialmente ocupada por plantações de fumo — atividade que, segundo Patté, fez o solo e os rios da região se contaminarem com agrotóxicos. Segundo Patté, a área será reflorestada, o que trará benefícios não só para os Xokleng mas para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras. O governo de Santa Catarina afirmava que essa área foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19. Políticos ruralistas catarinenses apoiavam a posição do governo estadual. Em 2008, os então deputados federais Valdir Colatto e João Matos, ambos do MDB, elaboraram um decreto legislativo anulando a ampliação da terra indígena. Eles afirmaram que, na área englobada pela ampliação, havia 457 pequenas propriedades agrícolas, com média de 15 hectares cada. "Nunca houve, e nem há, critérios seguros para se demarcar áreas indígenas, ficando a sociedade à mercê do entendimento pessoal do antropólogo que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento", argumentaram os deputados ao justificar o decreto. O Estado de Santa Catarina também disputava com os Xokleng 3.800 hectares onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais. Agora a Justiça deu vitória para o povo indígena. Em 2019, o STF havia decidido que o julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ tem repercussão geral. Com a Corte contra a tese do marco temporal, o governo federal em tese será obrigado a retomar os processos de demarcação que foram travados com base nesse princípio. Dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) apontam que há cerca de 300 processos de demarcação de terras ainda não concluídos. Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988. A rejeição do marco temporal faz com que os processos possam avançar, mas não garante a demarcação, que é analisada caso a caso e tem diversas exigências. Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua em prol dos povos indígenas, contava com 537 casos desse tipo em junho de 2021. Apesar da decisão do STF, ainda há a possibilidade de aprovação de uma lei sobre marco temporal pelo Congresso. A aprovação na Câmara em junho causou revolta entre representantes de povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, que protestaram na praça dos Três Poderes e no Salão Verde da Câmara. Antes da votação, o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu que o texto traria mais segurança jurídica para proprietários rurais e pediu que o STF deixasse de julgar o tema, uma vez que ele estava sendo deliberado no Legislativo. Além da questão do marco temporal, o texto aprovado na Câmara prevê a permissão para cultivo de transgênicos por indígenas e a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas. O projeto de lei votado na Câmara é originalmente de 2007. Inicialmente, ele tinha o objetivo de transferir do Executivo para o Legislativo o poder de demarcar terras indígenas — mas, desde então, ele recebeu várias modificações, por meio de mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da matéria. O texto na Câmara teve um requerimento de urgência aprovado e avançou rapidamente. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a rapidez ocorreu em razão do julgamento no STF. “Tentamos um acordo para que a gente não chegasse a este momento, mas o fato é que o Supremo vai julgar no dia 7 e este Congresso precisa demonstrar que está tratando a matéria com responsabilidade em cima dos marcos temporais que foram acertados na Raposa Serra do Sol. Qualquer coisa diferente daquilo vai causar insegurança jurídica”, disse Lira, defendendo o projeto de lei e a possibilidade de que os indígenas cultivem bens agrícolas em suas terras. “Nós não temos nada contra povos originários, nem o Congresso tem e não pode ser acusado disso. Agora, nós estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país", completou, segundo informações da Agência Câmara de Notícias. O texto agora tramita no Senado. Caso seja aprovado e não sofra veto do presidente, o mais provavél é que o assunto volte ao STF, já que a constitucionalidade da nova legislação pode ser contestada.
2023-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz9gkvk2ynxo
brasil
Vídeo, Lula em NY: qual o resultado das 3 missões do presidente brasileiro nos EUADuration, 8,44
Lula foi a Nova York com tres missões: impressionar a opinião internacional com seu discurso na ONU, reposicionar a relação entre Brasil e Estados Unidos e não permitir que um novo desencontro com o líder ucraniano Volodymyr Zelensky ofuscasse os dois primeiros objetivos. E deixou os Estados Unidos se sentindo bem sucedido em todas essas frentes. Neste vídeo, a repórter Mariana Sanches, enviada especial da BBC News Brasil a Nova York, conta como foram os quatro dias de Lula nos Estados Unidos. Leia mais sobre o tena em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq59nyqnyqxo Curtiu? Inscreva-se no canal da BBC News Brasil! E se quiser ler mais notícias, clique aqui: https://www.bbcbrasil.com #bbcnewsbrasil #lula #viagem #biden #zelenski #onu
2023-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-66782246
brasil
Brasil e Ucrânia tentam 'quebrar o gelo' em reunião de Lula com Zelensky após série de desencontros
Depois de uma hora de uma reunião bilateral entre o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, nesta quarta-feira (20/09), o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba afirmou que a reunião, que começou às 4h05 do horário de Nova York, serviu para "quebrar o gelo". Na sequência, tentou corrigir sua afirmação. "Não que houvesse gelo entre os nossos países, mas a conversa foi muito calorosa e honesta e acho que agora os dois presidentes entendem melhor o lado de cada um", complementou. A declaração de Kuleba revela a tensão que cercou a relação entre os dois países nos últimos meses. Por um lado, o governo do Brasil via Zelensky como "soberbo" em sua interação com o líder petista. Por outro lado, o ucraniano acusava Brasília de tomar posição pró-Rússia ao defender cessar-fogo com congelamento de ocupação russa em territórios ucranianos e rechaçou uma aparente sugestão de Lula de que a paz só seria alcançada com a cessão de territórios. Em menos de um minuto de pronunciamento, Kuleba ainda cometeu um ato falho, ao chamar Lula de Putin, em referência ao líder russo Vladimir Putin, responsável pela invasão à Ucrânia. Fim do Matérias recomendadas "Apreciamos a decisão do presidente Putin, digo, presidente Lula, com o seu conselheiro de Segurança Nacional, de continuar a participar nas reuniões de coordenação sobre a fórmula de paz proposta pelo presidente Zelensky. Então foi um momento muito importante e temos muito trabalho pela frente", disse Kuleba, em referência a um grupo liderado por Dinamarca e Noruega que tem tentado mediar soluções diplomáticas entre Rússia e Ucrânia. Ao lado de Kuleba, o chanceler brasileiro Mauro Vieira disse que a conversa foi "uma longa discussão num ambiente tranquilo e amigável" e que o Brasil se colocou à disposição para participar de qualquer grupo que queira discutir a paz entre os dois países ou até mesmo de apenas apoiar essas iniciativas, sem tomar parte nelas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os dois presidentes também teriam conversado sobre as relações bilaterais entre Brasil e Ucrânia e sobre a reforma de organismos multilaterais. Nesta quarta, Zelensky discursou ao Conselho de Segurança da ONU e defendeu que uma reforma para incluir novos membros era necessária. Porém, não passou despercebido pelos brasileiros que Zelensky não citou o Brasil, mencionando apenas Alemanha, Japão e Índia. Zelensky apenas mencionou genericamente que deveria haver uma vaga para a América Latina. Para o governo brasileiro, o encontro acontece em um momento em que Zelensky está na maior baixa desde o início da guerra. Ainda sem resultados militares robustos na contraofensiva à Rússia, tendo tido que demitir seu ministro da defesa recentemente sob alegações de corrupção e recebido críticas públicas sobre sua estratégia militar dos americanos, os maiores financiadores do esforço bélico ucraniano, Zelensky não atravessa uma boa fase e talvez isso tenha aumentado sua disposição para encontrar com Lula. Diplomatas com quem a BBC News Brasil conversou demonstraram desconfiança até o último momento de que Zelensky pudesse furar o encontro, o que geraria novo desgaste político para Lula. Na quinta-feira (21/09), o chanceler Mauro Vieira se encontrará em Nova York com o colega russo Sergey Lavrov. E o governo brasileiro não descarta que um encontro entre Lula e Putin possa ocorrer em breve.
2023-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxd8ld4yn8o
brasil
Trabalhadores, Haiti, reforma da ONU: 3 sinais de que Lula e Biden tentam levar relação a novo patamar
A reunião entre os dois presidentes começou às 13h27, no horário de NY, e durou cerca de uma hora. Do lado brasileiro, além de Lula, participaram os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Marina Silva (Meio Ambiente), o assessor especial Celso Amorim, o senador Jaques Wagner (PT-BA), a embaixadora do Brasil nos EUA, Maria Luiza Viotti, e o assessor-adjunto internacional do Planalto, Audo Faleiro. Do lado americano, estavam a secretária do Tesouro, Janet Yellen, o secretário-adjunto de Estado para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, o Enviado Climático John Kerry, e a embaixadora dos EUA no Brasil, Elizabeth Bagley, entre outros. "Essa reunião não é apenas uma reunião bilateral, há uma perspectiva conjunta de trabalho excepcional com os EUA", disse Lula. Fim do Matérias recomendadas Biden foi na mesma linha. "Nós temos a obrigação de liderar a próxima geração para um mundo melhor. A intenção de Brasil e EUA é de fazer isso juntos." A reunião Lula e Biden, às margens da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e o evento com sindicalistas de Brasil e Estados Unidos dos quais os dois líderes também participaram na tarde desta quarta, 20 de setembro, devem elevar a parceria entre os dois países a um "novo patamar". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esta tem sido a interpretação de diplomatas brasileiros e americanos e de integrantes do Planalto e da Casa Branca sobre a agenda de Lula e Biden que conversaram reservadamente com a BBC News Brasil nos últimos dias em NY. E o comportamento dos dois presidentes no início da conversa entre ambos, presenciado pela imprensa, não deixou dúvidas sobre isso. Biden quebrou o protocolo ao estender a presença da imprensa na sala em que ambos se reuniram, acompanhados de seus ministros e secretários, por mais de 11 minutos. “Eu sei que minha equipe já está enlouquecendo, mas quero dizer mais algumas palavras”, disse um entusiasmado Biden. O presidente americano fez questão de dizer que seu pai não tinha um diploma universitário e que costumava dizer: “Joe, um emprego é muito mais do que um contracheque. É (a condição de ter) dignidade, auto-respeito, e olhar nos olhos de seus filhos e dizer ‘querido, vai ficar tudo bem, de verdade””. Lula não deixou passar a coincidência: lembrou que também não possui um diploma universitário, apenas técnico, e que passou 27 anos numa fábrica. O brasileiro tampouco poupou elogios ao colega. "Nunca vi um presidente americano falar tão bem dos trabalhadores”, disse Lula, rememorando os discursos que assistiu do democrata. Presidente do G20 no ano que vem, o Brasil, por meio de Lula, prometeu levar o texto preparado pelos dois governos, ao bloco, para tentar angariar mais signatários. "Obrigado, Lula, por ter vindo e por trabalharmos por um mundo melhor", disse Biden. Agora, os dois países pretendem manter o foco nos princípios compartilhados - como a defesa dos direitos trabalhistas e da democracia - e trabalhar juntos em temas no qual concordam e podem se apoiar mutuamente nos ambientes multilaterais. "E essa é uma combinação perfeita, porque eu venho do mundo do trabalho e eu acho que o trabalho está muito precarizado, o salário está muito aviltado, cada vez mais os trabalhadores trabalham mais e ganham menos e essa sua ideia de a gente apresentar uma proposta que começa a ser discutida e poderá ir até o G20 é muito importante para o Brasil, é importante para os Estados Unidos e eu acho que é importante para o mundo", disse Lula, mencionando a iniciativa em favor de direitos trabalhistas e liberdade sindical que ambos lançavam. "A sacada não está em algo escrito no documento, está no fato de que Brasil e EUA estão liderando isso juntos, que Lula e Biden construíram algo novo em conjunto", disse à BBC News Brasil um dos auxiliares de Lula com envolvimento direto no assunto. Não está claro ainda como esta carta de princípios relativamente genéricos - como a defesa da dignidade, da diversidade e dos direitos no trabalho - será concretamente implementado em cada país. O texto da declaração conjunta fala em "colocar os trabalhadores no centro das nossas soluções políticas". O material lista "promover abordagens centradas nos trabalhadores para as transições digitais e de energia limpa" como um dos "cinco desafios mais urgentes enfrentados pelos trabalhadores em todo o mundo". O texto não fala especificamente de trabalhadores de aplicativos, mas esse tem sido um tema frequente de Lula e ele voltou a criticar as plataformas, em conversa com jornalistas, afirmando que se trata de trabalho "quase escravo". "No caso do Brasil, aquela meninada que trabalha de moto, trabalha de bicicleta, às vezes eles não têm banheiro para ir, às vezes eles trabalham de fraldão por não ter banheiro para ir. É inimaginável que no mundo digitalizado todo moderno o ser humano seja tratado ainda como se fosse escória", afirmou o brasileiro. Distante dos olhos da imprensa, a previsão da Casa Branca era de que Biden pedisse a Lula que aproveitasse sua relação próxima com Pequim para tentar fazer com que a China deixe de vetar, no Conselho de Segurança da ONU, o envio de uma força policial internacional ao Haiti, que vive um colapso do Estado e está dominado por gangues. Ainda assim, a posição chinesa não se alterou e tem impedido o envio da força ao Haiti. Um diplomata brasileiro que conversou com a BBC News Brasil notou que a posição dos chineses, antagonistas globais dos americanos, é bloquear o interesse americano, até porque interessa ao país manter uma situação de instabilidade no que seria "o quintal dos EUA", dada a instabilidade que os chineses acusam os americanos de criar em Taiwan. Um outro diplomata brasileiro com conhecimento do tema disse à BBC News Brasil que Lula estaria sim disposto a abrir conversa com Pequim para tentar fazer com que eles se movessem em outra direção. Outro exemplo de concordância entre os dois presidentes está na necessidade de reforma das instituições multilaterais. O assunto, inclusive, foi mencionado nos discursos de ambos na Assembleia Geral da ONU. Assim como Lula, cujo mote internacional é “o Brasil voltou", Biden também tem se esforçado para reocupar espaços multilaterais dos quais os EUA foram retirados durante o governo anterior, de Donald Trump, cujo slogan era “América primeiro”. Recentemente, ao participar do G20, na Índia, Biden se comprometeu a endossar a candidatura indiana por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil tem o mesmo pleito, mas os americanos, que têm defendido a reforma do Conselho, ainda não se comprometeram a apoiar o Brasil no objetivo. Questionados sobre se isso gerava algum constrangimento ao país, diplomatas brasileiros contemporizaram. “Claro que para os americanos, até pelo antagonismo entre Índia e China, faz sentido fazer um gesto claro para a Índia, mas eles certamente nos apoiam”.
2023-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq59nyqnyqxo
brasil
O satélite lançado pelo Brasil em 1993 que ainda funciona e é o mais antigo em operação atualmente
Às 10h15 — 11h15 no horário de Brasília — da manhã de 9 de fevereiro de 1993, um avião B52 da Nasa decolou do Centro Espacial Kennedy, no Estado americano da Flórida. Sob uma de suas asas, a aeronave carregava o foguete Pegasus, que, por sua vez, levava em seu "bico" o Satélite de Coleta de Dados 1, o SCD-1, o primeiro artefato brasileiro do tipo a ir ao espaço. Às 11h41, ele foi colocado em órbita, a uma altitude de 750 km. Tudo transcorreu de acordo com o previsto. Menos por um detalhe: seu tempo de operação previsto era de um ano, mas o SCD-1 está há mais de 30 anos em funcionamento, o que o torno o objeto mais antigo do mundo operando no espaço atualmente. Em 17 de junho, quando completou 30 anos, 4 meses e 4 dias em órbita, ele superou o satélite japonês Geotail, cujas operações foram encerradas em novembro de 2022. Fim do Matérias recomendadas Segundo o pesquisador Adenilson Roberto da Silva, coordenador-geral de Engenharia, Tecnologia e Ciências Espaciais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a longevidade do SCD-1 se deve ao fato dele ser um satélite simples e robusto, além da alta qualidade do seu projeto e dos seus componentes. "O projeto de um satélite envolve tecnologia e o conceito que está por trás dele, para que cumpra a missão a ele destinada", explica. "O SCD-1 foi projetado para coleta de dados. Trata-se uma missão diferente de uma de imageamento, por exemplo. Ele não precisa ficar apontando para lugares diferentes, nem ter muita estabilidade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Silva conta que esse satélite tem o princípio de estabilidade por rotação, e não por controle em três eixos. É como se fosse um pião, que enquanto está girando fica em pé. Quando a rotação diminuiu ele tomba. "O SCD-1 não precisa de computador de bordo, nem de softwares, nem de bateria, porque o próprio lançador deu o giro inicial, colocando-o em 120 rotações por minuto", diz. "Assim, combinando-se o projeto, o tipo de estabilização e componentes de alta qualidade se chega a uma vida útil tão longa." O SCD-1 começou a operar logo depois de ter sido colocado em órbita, quando seus primeiros sinais foram captados pela Estação Terrena de Alcântara, no Maranhão. Hoje, ele continua cumprindo sua função de receber dados ambientais coletados por centenas de plataformas distribuídas no território brasileiro e retransmitir as informações para as estações terrestres localizadas em Cuiabá e Natal. Os dados são armazenados em um sistema nacional e disponibilizados para os usuários. De acordo com Silva, são principalmente dados meteorológicos, como chuvas, velocidade e direção do vento, umidade do ar e níveis de rios, por exemplo, que servem para fazer e aprimorar previsões do tempo. Essas informações são vendidas para mais de uma centenas de usuários, entre os quais empresas, universidades, institutos e centro de pesquisas e centrais elétricas. O SCD-1 e seu irmão mais novo, o SCD-2, lançado em 22 de outubro de 1998, também por um foguete Pegasus, e ainda em operação, foram desenvolvidos no âmbito da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), criada em 1979 pelo governo federal. O objetivo era promover a pesquisa científica, a capacitação de pessoal e a geração de tecnologia espacial no Brasil, com envolvimento da indústria nacional. Para isso, a meta era o desenvolvimento de quatro satélites, um veículo lançador e de toda a infraestrutura de solo, na qual se inclui uma base de lançamentos. Coube ao Inpe a responsabilidade pela fabricação dos satélites, sendo dois de coleta de dados e dois de sensoriamento remoto, bem como pela infraestrutura de solo para sua operação em órbita. No caso do SCD-1, trata-se de um satélite com o formato de um prisma octogonal com diagonal de um metro e altura de 1,45 metro e que pesa 115 kg. Ele foi totalmente projetado, desenvolvido e integrado pelo Inpe, com significativa participação da indústria nacional. Para seu desenvolvimento, o instituto investiu muito em laboratórios modernos e na formação de seus recursos humanos. Houve também, no entanto, o uso de tecnologia de outros países, como grande parte dos componentes eletrônicos e o painel solar, que fornece energia ao satélite. "O transmissor de dados é outro componente que veio de fora, no caso, do Japão", acrescenta Silva. "Mas é importante ressaltar que se trata do primeiro desenvolvimento de um país na área de satélites. Isso mostra a competência tanto no projeto, quanto na fabricação." Silva também destaca a importância do SCD-1 para a atuação do Brasil na área espacial. "Ele foi desenvolvido há 30 anos e se hoje somos capazes de projetar, desenvolver, integrar e lançar artefatos complexos, como o Amazônia 1, de 638 Kg – o primeiro satélite de observação da terra completamente projetado, integrado, testado e operado pelo Brasil, lançado em 28 de fevereiro de 2021 –, é porque tivemos uma curva de aprendizado muito grande", diz. O pesquisador do Inpe lembra que são poucos os países do mundo que a partir de uma folha em branco são capazes de projetar um satélite, colocá-lo em órbita, operá-lo e receber os dados e processá-los. "Somos um deles", orgulha-se. "O SCD-1 foi o precursor e um dos grandes pilares das atividades espaciais do Brasil.' Para Silva, é impossível que algum satélite moderno bata o recorde do SCD-1, não pela qualidade deles, mas pelo sua complexidade. "Hoje, além do avanço na eletrônica e da miniaturização dos componentes, estão sendo solicitadas funções cada vez mais complexas desses objetos", explica. "Não se faz mais artefatos simples como o SCD-1." Segundo ele, hoje, por exemplo, há satélites que fazem processamento de imagem a bordo. "Imagina a complexidade da eletrônicas e dos computadores necessários para isso", diz. "E quanto maior a complexidade e o nível de eletrônica envolvida maior a possibilidade de falhas. Elas são mais frequentes em equipamentos mais complexos, com mais eletrônica embarcada." Por isso, ele acredita que se há um satélite capaz de superar o recorde do SCD-1 é o SCD-2. "Ele é uma evolução do primeiro", explica. "Esse segundo possui um dispositivo eletromagnético, que controla sua velocidade de rotação. Ela não está caindo, ao contrário do que ocorre com a do SCD-1, que baixou de 120 para 5 rotações por minuto ao longo de 30 anos." Silva acrescente que "quando ela chegar a zero, o satélite irá parar de operar. É difícil precisar quando isso vai acontecer, mas acredito que em cerca de dois anos. O SCD-2, por sua vez, deverá continuar por mais alguns anos".
2023-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g9emr37pjo
brasil
Lula precisa melhorar vida da classe média para fortalecer democracia, diz Acemoglu
"Ao menos que Lula encontre uma forma de atrair uma parcela significativa da população que se desencantou com a democracia brasileira, não será um caminho fácil", diz Acemoglu, em entrevista exclusiva à BBC News Brasil. Para o professor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, na sigla em inglês), o presidente brasileiro precisa ir além dos programas sociais para vencer a polarização do país. "É preciso criar melhores oportunidades de emprego para a classe média trabalhadora, para pessoas do setor agrícola", sugere o economista turco-americano, de etnia armênia. Fim do Matérias recomendadas Em Por que as nações fracassam (de 2012, relançado no Brasil pela editora Intrínseca em 2022), Acemoglu e James A. Robinson analisaram os motivos que levam alguns países a enriquecer e outros a permanecer na pobreza. Em O Corredor Estreito (de 2019 e publicado pela Intrínseca no ano passado), os mesmos autores avaliam por que alguns países conseguem conquistar a liberdade e a democracia, enquanto outros vivem em tiranias ou autocracias. Já no recém-lançado Poder e progresso (de 2023, com lançamento no Brasil previsto pela Objetiva para o início de 2024), Acemoglu e o também economista Simon Johnson analisam como, ao longo da história, diferentes escolhas levaram o avanço tecnológico a servir ao interesse das elites ou a um crescimento inclusivo, garantindo também a melhora de vida dos trabalhadores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para os economistas, é possível um futuro onde a inteligência artificial (IA) e as novas tecnologias digitais sejam usadas para empoderar os trabalhadores, e não para a vigilância e automação crescentes. Mas, para isso, é preciso fazer escolhas que levem as novas tecnologias nessa direção. "Não acho que estamos condenados a substituir o trabalho humano", afirma o economista. "Há um caminho alternativo e esse caminho é usar a inteligência artificial de maneira mais em favor do ser humano, em favor do trabalhador. Ao colocar tanta ênfase na renda básica universal, assumimos uma postura derrotista", defende. Confira abaixo os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil – Em anos recentes o senhor esteve pessimista em relação ao Brasil, tendo dito que estávamos sob risco de destruir nossa democracia. O senhor acredita que esse risco passou? Daron Acemoglu – É claro que eu estou muito feliz que [Jair] Bolsonaro não foi reeleito. E estou cautelosamente otimista que agora há espaço para reconstruir a democracia brasileira. Mas sigo preocupado com o fato de que o Brasil ainda é um país muito polarizado. E que essa polarização pode atrapalhar o fortalecimento da democracia. Acho que eu nunca fui pessimista ao ponto de pensar que o Brasil estava "condenado" a destruir sua democracia. Mas talvez minhas falas refletissem o fato de que, dez anos atrás, eu acreditava que a democracia brasileira estava muito segura, apesar de todos os escândalos de corrupção e todos os problemas que estavam acontecendo. [Eu acreditava] que o Brasil nunca voltaria a uma ditadura militar. Mas, sob o governo Bolsonaro, houve momentos em que passei a temer. Quando o presidente de vocês começou a pedir intervenção militar e a dizer que ele sentia saudade do tempo em que os militares mandavam no país. E ele se manteve muito popular, quase 50% dos brasileiros o apoiavam. Então eu acredito que isso é a polarização. Veja, Lula ter sido eleito é ótimo. Mas, ao menos que ele encontre uma forma de atrair uma parcela significativa da população que se desencantou com a democracia brasileira, não será um caminho fácil. O mesmo acontece nos EUA. Eu gosto de muitas das políticas da gestão [Joe] Biden, mas não acredito que elas sejam suficientes para ganhar de volta as pessoas que votaram em Trump e que se tornaram muito desiludidas com o sistema americano. BBC News Brasil – Então o que deve ser feito para assegurar que não voltemos àquele caminho de sentirmos que a democracia está sob ameaça? O senhor acredita que endereçar a questão da desigualdade no Brasil é uma das formas de garantir isso? Acemoglu – [Combater a] desigualdade é uma forma de garantir isso. Mas não pode ser apenas através de programas sociais. Acredito que é preciso criar melhores oportunidades de emprego para a classe média trabalhadora, para pessoas do setor agrícola... O mesmo vale para os EUA – não acredito que você vá trazer de volta os eleitores de Trump criando um programa de transferência de renda maior. Mas há uma chance maior de trazê-los de volta mostrando que um governo democrático cria empregos para eles, lhes dá melhores escolhas e lhes permite viver suas vidas da forma que eles quiserem. Acredito que os EUA e o Brasil têm muito em comum: são muito heterogêneos, têm sociedades muito diversas. É preciso respeitar essa diversidade e tentar criar mais e mais oportunidades para que as pessoas tenham boas condições de vida, e bons resultados econômicos dentro dessa diversidade. E eu acho que tanto a história do Brasil, como a dos EUA, mostra que, se você tenta eliminar essa diversidade de um jeito ou de outro, isso sai pela culatra. BBC News Brasil – O senhor também disse recentemente que o Brasil provavelmente não vai conseguir um crescimento significativo baseado apenas na exportação de commodities para a China. E que o país precisará em algum momento encontrar um outro caminho. O que o senhor vê para o futuro do Brasil? Acemoglu – O Brasil aspirou nos anos 1950 e 1960 a ser uma potência industrial. O país tem uma grande parcela de sua mão de obra educada. Tem uma quantidade de setores em que investiu muito no passado. Então acredito que o país precisa encontrar formas de estimular o setor privado. E o governo não pode fazer isso. O governo pode dar incentivos e ser um facilitador. Mas, no fim das contas, o setor privado precisa liderar um crescimento que não seja baseado apenas na exportação de commodities. No momento, eu não vejo isso acontecendo o suficiente. BBC News Brasil – O senhor acredita que o boom de industrialização que estamos vendo no México e na Índia pode ser exemplo para o Brasil? Acemoglu – Exatamente, mas talvez através de outros setores. O México tem vantagens comparativas em algumas coisas, facilitadas pela proximidade com os EUA. A Índia está apostando em outro conjunto de setores. Então o Brasil precisa encontrar em quais setores tem capital humano, conhecimento especializado e que façam sentido diante da sua posição geopolítica. BBC News Brasil – E o momento político para isso é agora? Acemoglu – Certamente, porque essa é a forma de criar empregos melhores para as pessoas, considerando que algumas delas se tornaram muito desiludidas com o modelo de crescimento brasileiro. Acredito que isso é parte da razão pela qual elas apoiaram Bolsonaro. BBC News Brasil – Recentemente o senhor escreveu um artigo afirmando que a expansão do Brics anunciada em agosto é "a expansão errada do Brics". Por que o senhor pensa assim? Acemoglu – Fiquei muito surpreso e entristecido pela forma como essa expansão aconteceu, porque acredito que os países que foram adicionados estão em grande medida sob influência de Rússia e China. Então isso transforma o Brics em um eixo amplamente controlado pela China, quando eu penso que o que o mundo precisa é um agrupamento de economias emergentes que deveria ter um papel maior na diplomacia internacional, mas também ter voz em questões relacionadas ao comércio internacional, tecnologia, respostas globais na área de saúde. Então países como Brasil, Índia, Indonésia, Malásia, Turquia vão ter uma perspectiva que é muito diferente daquela da China – ou deveriam ter uma perspectiva muito diferente da China. Pense em todas as grandes questões que devem surgir nos próximos dez anos. Por exemplo: democracia. A China é a maior ameaça à democracia em nível global. É nisso que os países do Brics deverão trabalhar junto à China? Com relação à globalização, por exemplo, haverá grandes tensões entre EUA e China. E precisamos de uma voz do mundo emergente que seja neutra em relação a esses dois poderes hegemônicos. Isso não vai acontecer enquanto o grupo estiver sob influência de China e Rússia. Na tecnologia, serão necessárias grandes decisões sobre como a inteligência artificial deverá ser usada. E a China é a maior impulsionadora do uso da IA para vigilância, mas não é disso que o mundo em desenvolvimento precisa. BBC News Brasil – No seu artigo, o senhor reforça que as economias emergentes deveriam buscar influenciar o futuro da inteligência artificial e de outras tecnologias digitais. Por que isso é importante e por que o senhor avalia que isso não será possível sob a nova formação do Brics? Acemoglu – Porque a China tem interesses muito distintos em se tratando do uso da tecnologia. Por exemplo, algumas das grandes decisões sobre o futuro da inteligência artificial serão o quanto dela irá na direção de ferramentas autoritárias, censura, monitoramento, vigilância, reconhecimento facial versus ferramentas que vão de fato ajudar as pessoas comuns a se comunicarem e talvez até se engajarem em atividades dissidentes, incluindo organizações da sociedade civil, mídia de oposição, mídia crítica ao governo. A China está em uma das pontas dessa escolha. Outra grande escolha, que é muito relevante para Índia, Indonésia e Brasil, é como as tecnologias de IA serão usadas na produção. Elas serão mais pró-trabalhador ou mais contrárias ao trabalhador? Aí também a China tem claros incentivos, nesse caso, muito alinhados com o setor americano de tecnologia, de usar mais e mais [a inteligência artificial] para automação. Isso em parte porque a mão de obra chinesa está envelhecendo, mas também porque a China está muito preocupada com o descontentamento trabalhista. Então usar IA e outras tecnologias de automação é muito atrativo para as autoridades chinesas por esses motivos. Mas isso não é do interesse do Brasil, que tem uma imensa força de trabalho, que deveria ser uma de suas vantagens competitivas. Mas não será se a inteligência artificial e as tecnologias digitais forem direcionadas para mais automação. Acredito que o Brasil poderia ter tido um papel de liderança nisso. Penso que um grupo independente nas relações internacionais seria de grande valor e que foi uma oportunidade perdida. BBC News Brasil – Ainda no tema da China, como senhor vê a atual crise econômica por lá e isso pode, do seu ponto de vista, se tornar uma crise política maior e mudar de alguma forma a trajetória autoritária daquele país? Acemoglu – Acredito que estamos apenas no começo desse processo. Não espero que isso se transforme numa crise política no futuro próximo. Precisamente pela forma como a censura [chinesa] usa ferramentas de IA e como outras tecnologias repressivas têm sido utilizadas ao longo da última década na China, acredito que o espaço para protestos é limitado. Então, se você comparar a sociedade civil chinesa hoje com aquela que prevalecia nos anos 2010, há uma grande diferença. Há muito menos liberdade, muito menos organização. [Naquele momento] havia pessoas defendendo os diretos dos trabalhadores rurais, de proprietários de terras, tratando de questões ambientais. Havia uma pequena quantidade de imprensa "semi livre", havia [protestos pela democracia em] Hong Kong. E tudo isso foi suprimido. Então eu não espero que a crise econômica leve imediatamente a uma crise política. Mas a China está enredada em um impossível paradoxo. BBC News Brasil – O que o senhor quer dizer com isso? Acemoglu – Eu explico. O impossível paradoxo é que eles querem crescimento econômico, mas estão muito preocupados que, à medida em que a economia cresce, a classe média fará mais demandas, enfraquecendo o controle do Partido Comunista da China. Assim, junto com o crescimento, há mais e mais controle governamental. Mas isso, por sua vez, cria ineficiências tanto no curto, quanto no longo prazo. Reduz a independência das empresas, desencoraja o verdadeiro potencial de inovação, leva a mais e mais má alocação de capital. Então a solução criada pelo governo é mais intervenção governamental na economia e ainda mais repressão, para que o descontentamento gerado por isso não resulte em oposição ao Partido Comunista. É, portanto, uma "bola de neve" e é essa a natureza do paradoxo. Agora, eu não acredito que isso possa durar para sempre. Então creio que, em cerca de dez anos, haverá uma crise política. Mas, no momento atual, eu não acredito que a sociedade civil, a imprensa ou qualquer tipo de organização seja forte o suficiente para que isso aconteça. BBC News Brasil – Mudando de assunto para seu novo livro, Poder e progresso. Nele, o senhor diz que o mundo está vivendo uma "ilusão da inteligência artificial". O que significa isso? Mas a ilusão é acharmos que podemos substituir e escantear os seres humanos. Isso é sintetizado pela busca por uma inteligência artificial geral [AI que teria a capacidade de aprender e desempenhar qualquer tarefa realizada por um ser humano] ou superinteligência. É sintetizado também pelo esforço incessante por automatizar o trabalho e resumir e capturar toda a sabedoria humana em tecnologias simples como o ChatGPT. As razões por que isso é uma ilusão são duas. A primeira é que eu acredito que, no fim das contas, mesmo com mais avanços, a criatividade humana será central e muito importante, tanto para a dignidade do trabalho humano e dos seres humano, como também para a eficiência produtiva. Em segundo lugar, ainda mais no curto prazo, essas tecnologias têm muitas limitações, então escantear os humanos leva a um caminho de ineficiência. E não estaremos obtendo os benefícios que poderíamos a partir dessas tecnologias. BBC News Brasil – O senhor também acredita que há um certo otimismo, certo? Quer dizer, haveria uma crença de que tudo isso será para o bem. E você diz que não necessariamente, que é preciso intervir para que essas tecnologias tragam resultados positivos. O senhor pode explicar isso melhor? Acemoglu – Toda essa busca por uma inteligência artificial geral vem combinada com um profundo "tecno otimismo". E esse tecno otimismo tem alguns desdobramentos. Primeiro, ele acredita que as máquinas se tornarão muito melhores do que os seres humanos rapidamente. Segundo, que isso vai gerar valor econômico. E terceiro, que isso também vai criar soluções tecnológicas para muitos problemas. Mas, quando combinamos isso com minha afirmação anterior de que, na verdade, as capacidades da IA são exageradas no curto prazo e não vão se realizar nem no médio prazo – a não ser que elas sejam usadas para ampliar as capacidades e o poder de agência humano – então você percebe que isso não está caminhando para nenhum bom lugar. Estamos desempoderando as pessoas mais e mais e não chegaremos às soluções ou obteremos o valor econômico prometido. Então eu não sou um completo pessimista, mas digo que há formas melhores de usar essas tecnologias e é por isso que precisamos de uma intervenção. Porque a indústria americana e, por motivos distintos, a indústria chinesa, com a liderança do Partido Comunista, caminham para uma direção que não é boa. Não é democrática, não vai trazer em nenhum momento próximo os benefícios econômicos prometidos e há caminhos muito melhores disponíveis. BBC News Brasil – No livro, o senhor aponta que impor limites ao poder das grandes empresas de tecnologia e regulá-las são passos cruciais para um futuro melhor para as tecnologias digitais. Mas, no Brasil, tivemos uma experiência recente de o Congresso tentar passar uma lei contra a desinformação nas redes sociais e voltar atrás, sob pressão de empresas como Google e Facebook, com o Google chegando a postar anúncios contra a lei na página principal do seu buscador. É realmente possível os governos regularem as big techs no cenário atual? Acemoglu – Google, Facebook, Amazon vão fazer o que podem para barrar regulações, mesmo quando dizem ser a favor de regulações razoáveis, como disseram recentemente aos congressistas americanos. E sim, em lugares onde os limites quanto ao uso de propaganda são mais frouxos, como no Brasil, eles vão usá-la de forma mais abusiva. Mas acredito elas serem tão resistentes é uma prova de que é possível regular essas empresas. Se de fato a regulação não tivesse nenhum efeito, elas não estariam gastando milhões de dólares para lutar contra isso. E há um país que mostra como efetivamente as big techs podem ser reguladas: a China. Veja, eu não sou a favor do caminho chinês, me oponho fortemente ao Partido Comunista Chinês e não gosto dos seus métodos ou seus objetivos. Mas a China provou nos últimos cinco anos que eles podem de forma muito bem-sucedida regular as big techs. Então eu espero que não precisemos copiar os chineses – certamente não deveríamos copiar seus métodos antidemocráticos ou seus objetivos. Mas é uma prova de que regular é possível. Mas deixe-me dizer algo sobre Brasil, Índia, Turquia e outros países como estes. O problema aí é muito mais difícil porque, por um lado, você quer fazer o mesmo tipo de regulação e garantir que as mazelas dessas novas tecnologias não afetem a população. Mas, diferentemente dos EUA, por exemplo, esses países estão atrasados na curva tecnológica. Então, ao mesmo tempo, é preciso garantir que empresas e indivíduos tenham incentivos para adotar e aprender essas tecnologias rapidamente. Mas, ao fazer isso, é preciso não repetir os erros cometidos nos EUA. Então é um problema bastante difícil. BBC News Brasil – E por que o senhor acredita que a renda básica universal não é a solução para a ameaça que a inteligência artificial representa ao futuro do trabalho? Acemoglu – Se eu estivesse convencido de que não há nada que possamos fazer e muitos empregos irão desaparecer; de que existe acordo político para uma renda básica universal; e de que, numa sociedade sem uma renda básica universal, pessoas que recebessem uma renda básica não seriam classificadas como cidadãos de segunda classe, eu seria mais favorável a uma renda básica universal. Mas todas essas condições não se aplicam. Primeiro, eu não acho que estamos condenados a substituir o trabalho humano. Há um caminho alternativo e esse caminho é usar a IA de maneira mais em favor do ser humano, em favor do trabalhador. Ao colocar tanta ênfase na renda básica universal, assumimos uma postura derrotista, fechando as portas para esse caminho muito mais atraente. Segundo, mesmo se decidíssimos pelo caminho da renda básica, não acredito que o equilíbrio político permitiria uma renda básica universal generosa. Elon Musk, Mark Zuckerberg e os executivos da Google, que são tão resistentes a um pouquinho de regulação, não vão dizer: "Tudo bem, peguem metade da minha riqueza e destinem para uma renda básica universal." E terceiro, mesmo que isso acontecesse, essa ainda seria uma sociedade de duas castas. Teríamos 10%, 15% ou 20% da população que seriam os grandes advogados, engenheiros, inovadores e designers, que ganhariam todo o dinheiro e então dariam uma fração dele para o cuidado com as outras pessoas. E as pessoas que receberiam não fariam nada, só ficariam com as migalhas dos super ricos. Essa seria uma sociedade muito desigual e acho que não queremos isso. BBC News Brasil – Então o senhor acredita que a forma de lidar com o impacto da IA sobre o trabalho é mudar sua direção? Acemoglu – Exatamente. Redirecionar a mudança tecnológica, regular a forma como usamos a inteligência artificial e garantir mais controle governamental sobre as direções em que estamos colocando nossos esforços.
2023-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg0rqny831o
brasil
Vídeo, Como discussão sobre linguagem neutra virou guerra cultural no BrasilDuration, 18,34
Neste vídeo, o repórter da BBC News Brasil em São Paulo João Fellet trata da disputa em torno da chamada "linguagem neutra" ou "linguagem não binária". Por essa proposta de mudança da língua, certas palavras ganham versões com gênero neutro, como "todes", "bem-vindes" e "amigues". A proposta, segundo seus defensores, busca contemplar pessoas não binárias (que não se identificam como homens nem mulheres) e reduzir o uso de termos masculinos genéricos como "todos", "bem-vindos" e "amigos". O movimento, no entanto, gerou uma contra-ofensiva. Nos últimos anos, dezenas de projetos de lei foram propostos no Congresso para proibir a linguagem neutra em escolas e concursos públicos. Alguns dos maiores adversários da causa são políticos bolsonaristas que tiveram fortes votações na última eleição. A reação tem levado alguns a questionar se o ativismo pró-linguagem neutra não poderia estar fortalecendo o campo político oposto. Assista e confira.
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-66782243
brasil
Onda de calor: o que acontece com o corpo quando somos expostos a temperaturas extremas
Uma massa de ar excepcionalmente quente deve fazer com que o Brasil enfrente temperaturas mais altas que o normal. De acordo com a empresa de meteorologia MetSul, as previsões indicam que as temperaturas previstas para esta semana e a próxima deverão superar consideravelmente as médias históricas de temperatura máxima em todas as cinco regiões do país, com um alto potencial para quebras de recordes. No Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estados que devem ser mais afetados, é possível que os termômetros marquem 45ºC. Estar exposto - especialmente nos horários de pico do calor, entre 12 e 16 horas - pode causar alterações no organismo que oferecem risco à saúde, principalmente para grupos com saúde mais frágil, incluindo idosos, pessoas com comorbidade, e crianças pequenas. Fim do Matérias recomendadas Quando o corpo está em estresse térmico, ou seja, é exposto a temperaturas extremas, ele passa por uma série de adaptações fisiológicas para regular a temperatura interna. No caso da exposição ao calor, primeira reação do organismo é dissipar calor através do suor e da dilatação dos vasos sanguíneos periféricos para liberar calor para o ambiente. No entanto, em temperaturas muito altas, especialmente quando atambém está úmido, o mecanismo de resfriamento do suor pode se tornar ineficaz, levando ao superaquecimento corporal, insolação e possíveis danos aos órgãos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando estamos expostos a temperaturas mais elevadas, ocorrem adaptações no nosso corpo. A frequência cardíaca aumenta como um mecanismo compensatório, assim como a pressão arterial", explica Lucas Albanaz, clínico geral, coordenador da clínica médica do Hospital Santa Lúcia, de Brasília, e mestre em ciências médicas. Outro risco, alerta o médico, é a desidratação devido ao aumento da sudorese. A depender da temperatura, complementa o médico Alexander Daudt, os sinais vão de câimbra (por falta de eletrólitos, eliminados no suor), a sede intensa e fadiga. "Outros sintomas mais graves, como tontura, náuseas ou vômitos também podem aparecer. Se a pessoa não conseguir aliviar esse calor, o quadro pode evoluir para choque térmico, com confusão mental, convulsões, e seguindo para a falência de múltiplos órgãos e óbito", explica ele, que é coordenador do Núcleo de Medicina de Estilo de Vida do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Os riscos são maiores para pessoas com comorbidades, pessoas idosas, especialmente aquelas com saúde fragilizada, crianças (por ainda estarem com o organismo em formação), trabalhadores que precisam se expor ao sol (como vendedores ambulantes), e aqueles que fazem uso de medicações que por algum motivo os tornem mais vulneráveis ao calor. "É o caso de pacientes que tomam remédios diuréticos, por exemplo. Eles naturalmente já perdem mais água, e precisam de cuidado extra com hidratação", aponta Daudt. "A palavra de ordem é hidratação, que deve ser feita principalmente pela ingestão de líquidos. Também é indicado hidratar a pele, com cremes, as narinas, com soro fisiológico, e os olhos, com colírio. Essas partes do corpo também são afetadas", diz Albanaz. Abaixo, destacamos dicas oferecidas pelos especialistas consultados na reportagem e divulgadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde): Mantenha sua casa fresca Evite o calor Mantenha-se hidratado e fresco Ajude outros Cuidados em caso de mal-estar As temperaturas do planeta vêm se elevando nas últimas décadas. Especialistas apontam que esse fenômeno, conhecido como aquecimento global, é causado pelo acúmulo crescente de dióxido de carbono e outros gases causadores do efeito estufa na atmosfera, graças à queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento. Quanto maior a quantidade de dióxido de carbono e outros gases na atmosfera, pior o impacto para a vida na Terra. Esses gases são responsáveis por absorver a radiação solar refletida pela superfície do planeta, o que faz com que o calor fique retido na atmosfera. Assim, o mundo fica cada vez mais quente, acelerando mudanças climáticas e aumentando o risco de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor intensas vistas agora no Hemisfério Norte, além de incêndios naturais, monções e enchentes. Com as temperaturas aumentando em toda a Terra, há, segundo os especialistas, duas palavras de ordem: mitigação e adaptação. A mitigação envolve medidas a longo prazo para proteger o planeta. Na edição de 2022 da Conferência das Partes, encontro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, quase 200 países assinaram o compromisso de tentar garantir o cumprimento da meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C. O objetivo do acordo é reduzir as emissões muito rapidamente, diminuindo-as em 50% até 2030, e alcançar emissões líquidas zeradas dos gases de efeito estufa antes da metade do século, seguido pela remoção significativa de dióxido de carbono da atmosfera na segunda metade do século. "Portanto, a situação do clima é extremamente arriscada, mesmo que tenhamos sucesso total no acordo de Paris [acordo prévio que foi aperfeiçoado na COP26]."
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmj1mp3m7vlo
brasil
Na ONU, Lula defende combate à desigualdade e mais impostos para ricos
Vinte anos depois do seu primeiro discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou ao púlpito da entidade, agora para fazer uma espécie de reapresentação das credenciais do Brasil diante das 193 nações que compõem a organização. Tradicionalmente, cabe ao presidente brasileiro inaugurar a sessão de debates de alto nível na organização. Em sua fala, que durou cerca de 21 minutos no total, Lula defendeu que a desigualdade deve ser o objetivo síntese da agenda. "É preciso reincluir o pobre nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais a seu patrimônio", declarou. O presidente brasileiro prestou condolências às vítimas de tragédias no Marrocos e Líbia, lembrando ainda das chuvas no Rio Grande do Sul. Fim do Matérias recomendadas Lula repetiu que o "Brasil está de volta", sendo interrompido por aplausos nesse momento de sua fala. Lembrou ainda que a fome foi tema central de seu discurso há 20 anos e que hoje ela atinge 735 milhões de pessoas, ao mesmo tempo em que os maiores bilionários acumulam mais riqueza do que os 40% mais pobres do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Precisamos vencer a resignação que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural", afirmou. "Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo." "O discurso cumpriu as expectativas", afirma Fernada Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). "A principal mensagem, além de 'Brazil is back' [o Brasil está de volta], é a ideia de que o Brasil tem ambições globais e quer propor uma reorganização das estruturas de governança global", afirma. Ela cita que Lula passou por assuntos inevitáveis, como crise climática e pobreza, mas vê dois objetivos na fala. O primeiro é imprimir um tom reformista ao advogar pela busca de alternativas para um mundo em transformação — "Não à toa falou dos Brics", observa, citando o grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, lembrado por Lula em seu discurso. "Lula tentou o tempo todo vincular o que ele chamou de um mundo em múltiplas crises simultâneas à desigualdade", observa Magnotta. "É como se o Brasil tivesse tentando promover uma revisão do agenda setting [dos temas a serem tratados]. Enquanto todo mundo está discutindo com centralidade temas geopolíticos como Ucrânia, Lula vai tentar vincular a crise da democracia, a crise da paz à desigualdade." Lula falou sobre a urgência de os países abordarem a questão da mudança climática. "São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima", destacou o presidente, incluindo a questão da desigualdade também na agenda climática. "Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera." Lula destacou as ações de seu governo para o combate ao desmatamento, afirmando que "ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%". Segundo dados do próprio governo federal, no entanto, no mesmo período, houve aumento de 19,8% nos alertas de desmatamento no Cerrado brasileiro, o que Lula omitiu em seu discurso. Ele ainda urgiu os países ricos quanto à necessidade de recursos para o cumprimento da agenda climática. "Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade. A promessa de destinar US$ 100 bilhões anualmente para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa", disse o mandatário brasileiro. Lula também reforçou a necessidade mudanças em organismos multilaterais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. "Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução", afirmou. "No ano passado, o FMI disponibilizou US$ 160 bilhões em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas US$ 34 bilhões para países africanos." "O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece paralisada, em especial o seu sistema de solução de controvérsias", criticou o presidente. Em outro momento de seu discurso, Lula disse ainda que o Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. "Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime", disse. "Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia." O presidente brasileiro criticou o que chamou de uma "dissonância cada vez maior entre a 'voz dos mercados' e a 'voz das ruas'", afirmando que "o neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política". Lula criticou ainda o surgimento de "aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas." "Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores", afirmou, reforçando ainda a necessidade da preservação da liberdade de imprensa. Ele criticou também a ação das redes sociais nesse contexto. "Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos. Aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos", disse o presidente, prestando ainda solidariedade ao jornalista Julian Assange, fundador do WikiLeaks e atualmente preso em Londres. "O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo." Dawisson Belém Lopes, professor de Relações Internacionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), observou que Lula falou de dois tabus da política externa dos EUA — Assange e Cuba — em território americano, no grande evento das Nações Unidas. "Não acho isso nada trivial", analisa. O professor se recorda que Lula já tinha falado de Assange em coletiva de imprensa quando esteve no Reino Unido para a coroação de Charles, mas não tinha chegado a falar diante de uma plateia como a ONU. O presidente brasileiro também tratou da guerra na Ucrânia em seu discurso, mas após mencionar uma série de outros conflitos em andamento no mundo, como a crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão, além do risco de golpe na Guatemala. "A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU", disse Lula. "Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo", acrescentou. O presidente criticou ainda "toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria." Belém Lopes, da UFMG observa que Lula repetiu a tática que já havia empregado em Hiroshima, no G7, de citar outros conflitos globais ao lado da guerra da Ucrânia. "Lula fez questão de resgatar temas difíceis. Trouxe o Brics pela porta da frente. Defendeu atenção às questões socioeconômicas sem medo de tensionar agentes do mercado e economias ricas do mundo. Mencionou um monte de países e situações do Sul Global", complementa o professor de Relações Internacionais. Segundo fontes do Itamaraty, a Assembleia Geral era o último “tabuleiro” no qual o petista queria reencaixar o Brasil como um jogador relevante — depois do que Lula considera como quatro anos de ausência internacional do país no cenário externo, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Em menos de nove meses de mandato, o líder brasileiro já participou dos fóruns do G7, G20, Brics, Celac com União Europeia e G77. A última vez que Lula havia discursado como presidente na Assembleia-Geral da ONU foi em 2009, há 14 anos. Confira a íntegra do discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York (EUA), conforme texto distribuído pelo assessoria de imprensa do Planalto: Meus cumprimentos ao Presidente da Assembleia Geral, Embaixador Dennis Francis, de Trinidad e Tobago. É uma satisfação ser antecedido pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. Saúdo cada um dos Chefes de Estado e de Governo e delegadas e delegados presentes. Presto minha homenagem ao nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello e 21 outros funcionários desta Organização, vítimas do brutal atentado em Bagdá, há 20 anos. Desejo igualmente expressar minhas condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades que atingiram a Líbia. A exemplo do que ocorreu recentemente no estado do Rio Grande do Sul no meu país, essas tragédias ceifam vidas e causam perdas irreparáveis. Nossos pensamentos e orações estão com todas as vítimas e seus familiares. Senhoras e Senhores Há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez. E disse, naquele 23 de setembro de 2003: "Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência” Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade. Naquela época, o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática. Hoje, ela bate às nossas portas, destroi nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres. A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade. O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe. A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida. Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente. Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas. Se completará os estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer. É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo. Senhores e senhoras Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país. A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão. A esperança, mais uma vez, venceu o medo. Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre. O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo. Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta. Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais. Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos. A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19; a crise climática; e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas. O racismo, a intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias criadas supostamente para nos aproximar. Se tivéssemos que resumir em uma única palavra esses desafios, ela seria desigualdade. A desigualdade está na raiz desses fenômenos ou atua para agravá-los. A mais ampla e mais ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 – pode se transformar no seu maior fracasso. Estamos na metade do período de implementação e ainda distantes das metas definidas. A maior parte dos objetivos de desenvolvimento sustentável caminha em ritmo lento. O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado. Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030. Reduzir as desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais ao seu patrimônio. No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente. Lançamos o plano Brasil sem Fome, que vai reunir uma série de iniciativas para reduzir a pobreza e a insegurança alimentar. Entre elas, está o Bolsa Família, que se tornou referência mundial em programas de transferência de renda para famílias que mantêm suas crianças vacinadas e na escola. Inspirados na brasileira Bertha Lutz, pioneira na defesa da igualdade de gênero na Carta da ONU, aprovamos a lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre mulheres e homens no exercício da mesma função. Combateremos o feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres. Seremos rigorosos na defesa dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência. Resgatamos a participação social como ferramenta estratégica para a execução de políticas públicas. Senhor presidente Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado. Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas. São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera. Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo. No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível. Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo. 87% da nossa energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis. A geração de energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano. É enorme o potencial de produção de hidrogênio verde. Com o Plano de Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura sustentáveis. Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%. O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si. Sediamos, há um mês, a Cúpula de Belém, no coração da Amazônia, e lançamos nova agenda de colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma. Somos 50 milhões de sul-americanos amazônidas, cujo futuro depende da ação decisiva e coordenada dos países que detêm soberania sobre os territórios da região. Também aprofundamos o diálogo com outros países detentores de florestas tropicais da África e da Ásia. Queremos chegar à COP 28 em Dubai com uma visão conjunta que reflita, sem qualquer tutela, as prioridades de preservação das bacias Amazônica, do Congo e do Bornéu-Mekong a partir das nossas necessidades. Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade. A promessa de destinar 100 bilhões de dólares – anualmente – para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa. Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares. Senhor presidente O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações – vem sendo corroído. Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego. Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução. No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos. A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável. Não corrigimos os excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo. As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas. O BRICS surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes. A ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21. Somos uma força que trabalha em prol de um comércio global mais justo num contexto de grave crise do multilateralismo. O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece paralisada, em especial o seu sistema de solução de controvérsias. Ninguém mais se recorda da Rodada do Desenvolvimento de Doha. Nesse ínterim, o desemprego e a precarização do trabalho minaram a confiança das pessoas em tempos melhores, em especial os jovens. Os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a “voz dos mercados” e a “voz das ruas”. O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário. Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores. Precisamos resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU. Políticas ativas de inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito. É fundamental preservar a liberdade de imprensa. Um jornalista, como Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima. Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos. Aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos. Ao assumir a presidência do G20 em dezembro próximo, não mediremos esforços para colocar no centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas dimensões. Sob o lema "Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável", a presidência brasileira vai articular inclusão social e combate à fome; desenvolvimento sustentável e reforma das instituições de governança global. Senhor presidente, Não haverá sustentabilidade nem prosperidade sem paz. Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana. Conhecemos os horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras. A promoção de uma cultura de paz é um dever de todos nós. Construí-la requer persistência e vigilância. É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças. Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino. A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão. Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas. A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações. Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento. No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares. As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU. Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade. A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo. A comunidade internacional precisa escolher: De um lado, está a ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do Estado de Direito. De outro, a renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz. As sanções unilaterais causam grande prejuízos à população dos países afetados. Além de não alcançarem seus alegados objetivos, dificultam os processos de mediação, prevenção e resolução pacífica de conflitos. O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo. Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria. O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia. Senhoras e senhores A desigualdade precisa inspirar indignação. Indignação com a fome, a pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano. Somente movidos pela força da indignação poderemos agir com vontade e determinação para vencer a desigualdade e transformar efetivamente o mundo a nosso redor. A ONU precisa cumprir seu papel de construtora de um mundo mais justo, solidário e fraterno. Mas só o fará se seus membros tiverem a coragem de proclamar sua indignação com a desigualdade e trabalhar incansavelmente para superá-la. Muito obrigado.
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgl09m8m03o
brasil
A busca pelos segredos do cemitério de estrangeiros de Niterói do século 19
Cimetière. Cemetery. Friedhof. Cementerio. Kirkegård. Cimitero. Cemitério. Marinheiros e viajantes franceses, ingleses, alemães, espanhóis, dinamarqueses, italianos e portugueses, quando desembarcavam no Rio de Janeiro cerca de 150 anos atrás, certamente não queriam ter um lugar assim como destino. Mas, como comprova um estudo arqueológico que vem sendo feito por pesquisadores em Niterói, esta foi praticamente a única experiência em solo nacional reservada a centenas de estrangeiros, principalmente europeus, que aportaram no Brasil na segunda metade do século 19. Curiosamente, chamado por um nome que nada tinha de estrangeiro: Jurujuba, emprestado da enseada onde o cemitério se localizava. A palavra é derivada da expressão tupi “ajuru juba”, que significa “papagaios amarelos”, como indígenas da região acabaram se referindo aos franceses que no século 18 chegaram ali — porque eram loiros e tagarelas. Em 1º de janeiro de 1851, o então presidente da Junta de Higiene Pública, Francisco de Paula Cândido (1805-1864) mandou instalar no local um lazareto, com capacidade inicial para abrigar 30 pessoas. Lazareto é um local destinado a manter em quarentena pessoas com alguma doença contagiosa, ou alguma suspeita do tipo. Era uma medida do Império, na gestão de d. Pedro 2º (1825-1891), para evitar que doenças como varíola, febre amarela, tifo e tuberculose se disseminassem pela região. Inaugurou-se o tal lazareto e, no caso da chegada de qualquer embarcação com sintomáticos no porto do Rio, o marinheiro ou viajante em questão era rapidamente levado para a quarentena. Fim do Matérias recomendadas “Mas o que foi criado naquelas redondezas como um lazareto, para acolher as pessoas que chegavam pelo mar com doenças infecciosas, em 1856 se transformou em hospital, o Hospital Marítimo Santa Isabel”, conta à BBC News Brasil o historiador Victor Andrade de Melo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Melo é um dos pesquisadores que, contratados pelo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), dedicam-se a estudar essa área. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas falávamos do cemitério. Eram tempos bastante precários para o tratamento de doenças infectocontagiosas, aquele século 19 sem antibióticos e outros medicamentos contemporâneos. Portanto, ir para o Hospital Marítimo significava, em boa parcela dos casos, ingressar num corredor da morte. “Nesse lazareto, depois hospital, muitas pessoas vinham a falecer. Porque eram doenças infecciosas, epidemias, e não havia ainda grandes avanços na medicina para tratar. Como era muita gente, muitos estrangeiros marítimos que vinham no trânsito de mercadorias por meio naval para o Brasil, pessoas que chegavam sem família, era impensável levar o corpo de volta [ao país de origem]”, contextualiza Melo. Niterói inaugurou apenas em 1856 seu primeiro cemitério público, o do Maruí. “Do outro lado da cidade”, situa o historiador. “Antes, sempre que morria alguém de doença infecciosa no lazareto, era preciso atravessar a baía de Guanabara para enterrar no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Isso começou a se tornar difícil, um incômodo para a população, que achava que era um risco ter corpos com doenças infecciosas transportados pela baía.” De acordo com o historiador e arqueólogo André Leonardo Chevitarese, professor da UFRJ que foi assumiu a coordenação desse projeto de pesquisa do IAB, estima-se que dos anos 1850 até o fim da década de 1870 tenham sido de 1 mil a 2 mil estrangeiros mortos após internações nesse lazareto ou no hospital que o sucedeu. “Estamos falando de viajantes que chegaram aqui no Rio não necessariamente porque jogaram suas âncoras aqui. Eles poderiam estar vindo para ficar ou estar de passagem, indo para outro destino”, diz Chevitarese à BBC News Brasil. Em 1858, decidiu-se inaugurar um cemitério ao lado do Hospital Marítimo Santa Isabel. Nascia o Cemitério de Jurujuba, com a vocação de ser o último lar de marinheiros e viajantes estrangeiros. “Na maioria dos casos, europeus, principalmente viajantes ingleses e franceses, mas também alemães, suecos, poloneses, italianos, portugueses, espanhóis”, conta o historiador. “Eram doentes de sarampo, de tifo… Fosse a doença que fosse, a inspetoria de saúde mandava o barco vir para cá.” É esse o terreno, precisamente, que os pesquisadores estão revirando. E além de ossadas, estão encontrando outros elementos — ou a ausência deles — que ajudam a contar a história do local. Exatamente onde era o lazareto, hoje fica uma escola, o Colégio Estadual Matemático Joaquim Gomes de Sousa. Quando o Hospital Santa Isabel fechou as portas, no início do século 20, no endereço passou a funcionar um abrigo para crianças que precisavam se isolar de familiares com tuberculose. Mais tarde, o local foi transformado em escola de enfermagem. Depois, um educandário para menores carentes. Ao longo de todo esse tempo, o apelido ficou: Casa da Princesa. A referência é à Isabel (1846-1921), a filha mais velha de d. Pedro 2º. Até porque o antigo hospital se chamava Santa Isabel também na ideia de reverenciá-la. “Essas instalações foram reformadas [ao longo do tempo] mas estão lá no entorno do cemitério”, pontua Melo. O cemitério em si teve outra trajetória. “Ele funcionou até 1898, mas desde os anos 1880 já se tinha noção de que não dava conta. O terreno não era muito adequado para sepultamentos, era muito beira-mar, o mar vivia invadindo, inundando a região”, relata o historiador. Em 1898 foi inaugurado um outro cemitério, o de São Francisco Xavier, que existe até hoje. “E o de Jurujuba entrou em processo de desativamento, foi sendo desativado com o decorrer do tempo”, acrescenta. “Algumas estruturas foram transferidas para o novo e foi feito um chamamento público para que as famílias recolhessem os restos mortais [de seus parentes] e levassem para o de São Francisco Xavier.” Evidentemente que ninguém se preocupou com os estrangeiros ali sepultados, a um oceano de distância de seus familiares. “A partir de 1910 a gente já não ouve falar desse cemitério. Quem recolheu os corpos recolheu, quem não recolheu ficou por ali. E tudo foi abandonado, até porque havia uma série de preocupações no que se refere à contaminação do solo, já que o espaço foi majoritariamente utilizado para enterrar pessoas vítimas de doenças infecciosas”, conta Melo. Nos anos 1950, o terreno foi cedido para a Associação dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo era que eles erguessem ali um hospital. “Foram cinco anos de construção até o hospital ser inaugurado. É possível que nesse processo tenham encontrado algumas evidências do cemitério antigo, como ossos e lápides, mas naqueles anos de 1950 ainda era muito inicial a preocupação com arqueologia no Brasil”, lamenta Melo. “Então não devem ter tido cuidado, deixaram para lá, jogaram fora.” O hospital funcionou até a década de 2000, quando a prefeitura de Niterói assumiu o controle do endereço e o transformou na Maternidade Municipal Alzira Reis. No ano passado, obras para uma ampla reforma e ampliação se iniciaram. Quando o terreno foi aberto para a construção, ossadas acabaram encontradas. Foi quando os arqueólogos e historiadores foram contratados: agora é preciso verificar toda essa história. Em casos assim, a legislação determina que o trabalho de prospecção arqueológico seja realizado. A Empresa Municipal de Moradia, Urbanização e Saneamento (Emusa) de Niterói encarregou então o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) de conduzir o trabalho. Tudo com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Já se sabia que ali havia sido um cemitério, mas ninguém sabia exatamente onde estava e como funcionava. Meu trabalho foi buscar as evidências em jornais e documentos, tudo o que havia sobre o cemitério, para compararmos com o que encontramos e fomos encontrando nas escavações”, explica Melo. O trabalho arqueológico foi dividido em três fases. A primeira, nos meses de abril e maio. A segunda, de julho a setembro. E uma terceira que ainda deve ocorrer nos próximos meses. Todo o material encontrado está sendo levado para análises laboratoriais, que podem revelar mais detalhes sobre a história do antigo hospital e do cemitério. “A curadoria dos acervos coletados ainda está no início e apenas confirma a função e a antiguidade do sítio, um cemitério do século 19, mas esperamos que os achados tragam resultados relevantes, em especial para a identificação das doenças que levaram tantas pessoas ao óbito”, comenta à reportagem a arqueóloga Josefa Jandira Neto Ferreira Dias, vice-presidente do IAB. “As expectativas já foram em parte alcançadas, pois com a descoberta das sepulturas remanescentes, se confirmou a existência do cemitério do final do século 19”, comenta à BBC News Brasil a arqueóloga Cassandra Ribeiro, uma das que estão trabalhando nas escavações. Em conversa com a reportagem, a arqueóloga e historiadora Lydia de Carvalho atenta para uma curiosidade: a falta de adereços normalmente encontrados em cemitérios. “No início da pesquisa, estávamos esperando encontrar signos que remetessem ao sagrado, como cruz, coisas assim. Mas não encontramos”, diz ela. “Acabamos encontrando fragmentos de elementos bastante comuns que nos dão informações relevantes. Existe um grande potencial analítico ali.” As pesquisas ainda são incipientes. Mas talvez essa ausência de ornamentos e símbolos próprios a um ambiente como este se explica justamente pela condição dos sepultados: estrangeiros longe das famílias, sem ninguém preocupado em prestar as últimas homenagens. “A descoberta das sepulturas remanescentes são de fatos as [conclusões] mais importantes, ainda que diversos tipos de material arqueológico tenham sido também identificados no sítio”, complementa Ribeiro. “Temos faianças [tipo de cerâmica] e cerâmicas portuguesas, alças de caixão em metal, mármores com inscrições, além dos próprios vestígios de ossos humanos.” A arqueóloga salienta que ficou surpresa com “a presença das sepulturas remanescentes”. “Pois a construção de um hospital impacta muito a área onde ele está assentado. Não somente o prédio em si, mas toda a estrutura hidráulica e elétrica necessária para o seu funcionamento”, comenta. “A área do sítio arqueológico fica em meio urbano, então além do hospital temos comércios, domicílios e rodovias. Tudo isso contribui para uma destruição iminente de sítios arqueológicos e a descoberta das sepulturas é, por si só, simplesmente surpreendente.” No laboratório do IAB as peças ainda estão em fase preliminar de higienização e análise. “A previsão é que terminaremos em seis meses”, diz à reportagem o historiador Alessandro Silva, coordenador do laboratório. “Por se tratar de um sítio histórico onde os relatos indicam um antigo cemitério, nosso olhar acaba voltado para esse contexto. Mas nosso grande objetivo é preencher algumas lacunas históricas”, comenta. Historiador especializado em bioarqueologia, João Gustavo Alves Chá Chá conta à reportagem que a partir do material encontrado vai ser possível descobrir “o sexo dos indivíduos, a idade, o tipo de vida que eles tiveram, o tipo de alimentação e até algumas doenças”. “Com isso, esperamos entender um pouco mais sobre o lazareto que funcionou naquele local”, diz ele, que trabalha em uma equipe de sete pessoas no laboratório. Chá Chá afirma que os indícios são de que os ossos foram muito remexidos, provavelmente pelas obras que ocorreram no terreno ao longo do século 20. “Encontramos os ossos mas notamos que eles foram revirados, espalhados. Mas foi encontrada uma sepultura com um esqueleto praticamente completo”, relata. O problema também é geográfico. Como na região, próxima ao mar, a partir de 130 centímetros de profundidade já se encontra água, essa característica contribui para acelerar a deterioração dos restos mortais. “Mas vamos extrair informações importantes. Apareceram muitos dentes [nas escavações], um material que estamos começando a olhar agora”, exemplifica Chá Chá. Em paralelo aos achados, ocorre a chamada educação patrimonial. E isso também pode ajudar até mesmo em novas descobertas. Como conta à reportagem o historiador William Cruz, as informações sobre o estudo em andamento foram compartilhadas primeiramente com os funcionários da maternidade e os trabalhadores na obra de ampliação do complexo. “Um trabalhador pode de repente encontrar um material enquanto estiver fazendo sua atividade e, como ele já passou pelo processo de educação patrimonial, ele vai se atentar e chamar o responsável pela arqueologia”, diz Cruz. Em breve, escolas da região e a comunidade do entorno também devem ser informados sobre o trabalho de pesquisa arqueológica e histórica.
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1z8pq209qo
brasil
Lava Jato segue viva no Peru e na Colômbia - e mantém Odebrecht e políticos sob pressão
Na semana passada, o ministro Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), invalidou provas obtidas no acordo de leniência firmado no Brasil pela empreiteira Odebrecht em mais um movimento que mina as consequências políticas e legais da operação Lava Jato no âmbito brasileiro. A decisão, que ainda pode ser revista pela segunda turma do Supremo, é também acompanhada com atenção nos países vizinhos, onde relatos e informações sobre corrupção repassadas por ex-executivos da empresa e pela própria construtora em acordos locais de leniência também deram origem a processos judiciais de alta voltagem política. O caso é especialmente emblemático no Peru, onde quatro ex-presidentes foram ou estão sendo investigados por suposto envolvimento em irregularidades ligadas à Odebrecht, num dos mais extensos desdobramentos da Lava Jato no exterior. Na semana passada, o depoimento na Justiça do antigo responsável pela construtora no Peru, Jorge Barata, dominou o noticiário peruano. Já na Colômbia a construtora é alvo de cobrança do presidente Gustavo Petro, que afirma que a Odebrecht não pagou a compensação devida ao país por envolvimento em corrupção - questionada pela BBC News Brasil, a empresa disse que não reconhece essa dívida. Fim do Matérias recomendadas Entenda abaixo os fundamentos da decisão de Toffoli, o posicionamento da construtora e como a a Lava Jato, combalida no Brasil, segue em evidência no Peru e na Colômbia. Em sua decisão, Toffoli reforça sentença anterior da corte que já afirmava que informações repassadas pelos executivos da construtora ou pela própria empresa não podem ser usadas em processos criminais contra acusados de irregularidades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os principais argumentos acatados pelo ministro do Supremo são dois: ele afirma que da Lava Jato pois houve quebra da cadeia de custódia. Ou seja, a produção dessas provas não respeitou a lei. O acordo da Odebrecht previa que a empresa iria devolver R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos e em troca o MPF (Ministério Público Federal) não entraria com ações contra ela na Justiça. A partir de informações obtidas da empresa com esse acordo, o MPF reuniu um material que apresentou como prova contra réus da Lava Jato em vários processos - incluindo um envolvendo o ex-presidente Lula. O problema, segundo o Supremo, é que esse acordo com Odebrecht foi irregular já que teve participação de autoridades brasileiras, americanas e suíças, mas sem passar pelos canais oficiais necessários. O problema, segundo o Supremo, é que esse acordo com Odebrecht foi irregular já que teve participação de autoridades brasileiras, americanas e suíças, mas sem passar pelos canais oficiais necessários. No final de 2017, em meio ao abalo provocado pela operação Lava Jato e após o acordo de leniência firmado com as autoridades brasileiras, a companhia decidiu mudar suas marcas e retirar o nome "Odebrecht" das diversas unidades de negócio. Atualmente, a empresa tem como nome Novonor. Já o ramo da construtora passou a se chamar OEC, com o descritivo "Odebrecht Engenharia e Construção". Desde então, sua identidade visual também passou por alterações. Alguns especialistas avaliam que a decisão de Toffoli possa repercutir nas esferas judiciais destas outras nações. Na última semana, o depoimento do antigo responsável pela Odebrecht no Peru, Jorge Barata, dominou o noticiário deste país. Na ocasião, o executivo reafirmou que a empresa pagou propina a uma série de importantes nomes da política local, incluindo uma série de ex-presidentes. A audiência foi realizada de maneira remota, mas Barata foi convocado a depor em solo peruano no caso que envolve o ex-presidente Ollanta Humala. O executivo Marcelo Odebrecht também havia sido convocado, mas sua defesa alegou que decisões recentes do STF fazem com que seu cliente não tenha de prestar depoimento neste caso. Uma decisão anterior de Toffoli invalidou evidências obtidas pelos sistemas Drousys e MyWebDay B, que eram supostamente utilizados pela empresa para ocultar o pagamento de subornos. A promotoria peruana pede 20 anos de prisão para Humala, além de 26 anos e seis meses para sua esposa Nadine Heredia, ambos julgados pelo crime de lavagem de dinheiro pelo recebimento de supostas verbas ilícitas, incluindo da Odebrecht. O caso envolveria um financiamento de US$ 3 milhões para a campanha presidencial de Humala em 2011. Em 2018, a Odebrecht chegou a um acordo no Peru no qual se declarou culpada pelas acusações de que ofereceu propina a políticos locais. Além disso, os executivos da empresa prometeram delatar os envolvidos nos esquemas de corrupção, o que incluía oferecer provas substanciais. Em troca, os executivos puderam deixar o país, além de poderem sacar fundos que possuíam no Peru. Por parte da companhia, houve a permissão para a venda de ativos locais. Dentre as negociações, a Odebrecht vendeu a usina hidrelétrica de Chaglla, no centro do país, por US$ 1,4 bilhões a um consórcio chinês. O empreendimento é responsável por cerca de 5% da energia produzida no Peru. Por outro lado, a empresa teve de pagar uma compensação de 610 milhões de soles (R$ 818 milhões) ao governo peruano, valor acrescido de 150 milhões de soles (R$ 201 milhões) de juros. O combinado é que os pagamentos sejam feitos de forma gradativa, e, até o momento, 220 milhões de soles (R$ 295 milhões) foram abatidos da dívida. Procurada pela BBC News Brasil, a Odebrecht afirmou que "a condição da companhia no Peru é de colaboradora do Ministério Público, entidade com a qual firmou um acordo que continua sendo cumprido integralmente pela empresa e que, em contrapartida, lhe confere garantias legais típicas desse tipo de convênio. Em tal contexto não é prevista, portanto, uma estratégia de 'defesa'". A advogada Delia Muñoz ocupou o cargo de ministra da Justiça e Direitos Humanos durante o governo do ex-presidente Manuel Merino – um mandato que durou 5 dias, entre 10 e 15 de novembro de 2020. À BBC News Brasil, ela afirma que o acordo foi benéfico para os executivos da Odebrecht, e diz que as compensações pagas pela empresa são "cômodas", e que demorarão anos para serem quitadas. Além disso, ela vê a justiça peruana com pouca capacidade para agir apenas com os depoimentos dos executivos, uma vez que as provas mais relevantes seguem no Brasil. "Quando foi descoberto o pagamento de propina para a conquista de obras, não houve acesso no Peru às grandes evidências que sustentassem as afirmações das acusações feitas pelos executivos da Odebrecht", afirma. No caso peruano, entre os grandes empreendimentos envolvidos nos processos estão o metro de Lima e a chamada rodovia Interoceânica, que conecta o país ao Brasil. Em sua visão, o movimento desta semana no STF dificulta que provas cheguem à justiça local. “É claro no Peru que esta recente decisão é um claro prejuízo para o país, uma vez que nega o acesso à justiça”, avalia. “Desta forma, o Brasil permite a impunidade absoluta no Peru. Os réus admitem que pagaram propina e agora vão dizer que as autoridades brasileiras não permitem que utilizem as provas que estão no país”, afirma a ex-ministra. Em sua visão, os executivos irão continuar fazendo afirmações sobre os envolvidos em corrupção, mas sem apresentar as provas. Para ela, o cenário atual faz com que o fim do caso localmente seja uma possibilidade real. “Vamos viver a situação absurda do caso arquivado apesar de declarações aceitando corrupção. Acho que o caso vai morrer em breve, é muito difícil fazer uma acusação sem provas fortes”, avalia. “Ficou claro que o Ministério Público peruano confiou na palavra dos executivos de que iriam entregar as provas, mas não foi isso que aconteceu. O caminho agora seria redesenhar a estratégia”, avalia. Segundo criminalistas consultados pela BBC News Brasil, no entanto, a decisão do STF leva em conta uma série de tratados internacionais determina que, qualquer cooperação jurídica criminal entre o Brasil e outros países precisa seguir uma série de regras. No caso do acordo feito pela Odebrecht, a cooperação entre o MPF e autoridades estrangeiras deveria ter sido acordada com o DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional), órgão do Ministério da Justiça. A defesa de Lula já havia pedido, em 2017, para ter acesso a esse acordo que foi celebrado entre Brasil, EUA e Suíça, e a acusação já havia dito que não havia correspondência oficial sobre isso. Agora, a partir de um pedido de Toffoli, o Ministério da Justiça confirmou que não encontrou qualquer registro de que o acordo tenha passado pelo DRCI, o que o torna irregular, segundo Toffoli. “O MPF não pode sair fornecendo informações nacionais para outros países sem passar pelas vias oficiais”, diz Bruno Salles, membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). “Em síntese, a decisão reforça que as comunicações realizadas entre autoridades devem ser realizadas sempre pelos meios e formas que garantam uma cadeia de custódia da prova”, acrescenta Rogério Cury, professor de direito penal do Mackenzie. “Havendo violação, tais provas devem ser consideradas ilícitas e desentranhadas dos autos, ou seja, retiradas do processo”, explica o professor. Em seu depoimento nesta semana, Barata afirmou que a empresa contribuiu para “diversas campanhas políticas, principalmente de presidentes, deputados e prefeitos”. Dentre os nomes que o executivo citou, estão os ex-presidentes Alan García, Ollanta Humala e Pedro Pablo Kucsynki, além da influente congressista Keiko Fujimori. Os escândalos da empresa no país envolvem ainda o ex-presidente Alejandro Toledo, que neste ano foi extraditado dos Estados Unidos para ser julgado em solo peruano. Em novembro de 2016, Barata afirmou que a construtora pagou US$ 20 milhões a Toledo em troca da permissão para a construção dos trechos 2 e 3 da Rodovia Interoceânica Sul. Na visão da socióloga do Instituto Nacional de Estudos Peruano (IEP) Patricia Zárate, o impacto na vida nacional destes sucessivos escândalos segue forte. “A corrupção continua a ser identificada como um dos principais problemas que o país tem”, aponta. “Após o escândalo da Odebrecht, os cidadãos consideraram a corrupção como o principal problema do Peru”, afirma a socióloga. Além disso, há uma percepção de impunidade, em sua visão. “Parece que não houve, ou não se sentiu como se houvesse, uma verdadeira luta contra o problema da corrupção porque novos escândalos continuam a surgir, talvez menores, mas são como uma constante, e não há ação tangível”, avalia. No entanto, segundo ela, há uma diferenciação da empresa com o Brasil, o que não reflete em uma imagem negativa sobre o país vizinho. “Há coisas mais positivas, como o futebol, que estão sempre na cabeça dos peruanos”, afirma. Em 2019, García suicidou-se com um tiro na cabeça, logo antes de ser preso. Em uma carta de despedida, ele reafirmou sua inocência no caso. Em 2018, ele chegou a pedir asilo político na embaixada do Uruguai, afirmando que sofria perseguição. Em seu depoimento nesta semana, Barata afirmou que, dentre os políticos mencionados, aquele com quem tinha uma relação mais próxima era García. O executivo afirmou ainda que a Odebrecht entregou dinheiro para campanhas do ex-presidente em duas oportunidades. À BBC News Brasil, Ricardo Pinedo, que foi secretário de Garcia, afirmou que “lamentavelmente”, as investigações foram “manipuladas de forma política”. Segundo ele, o processo ficou centrado nas relações do ex-presidente com os executivos. Sobre fotos que mostram García em aviões junto dos comandantes da Odebrecht, ele alega que era algo natural já que o mandatário tinha como hábito acompanhar inaugurações de obras. Para Pinedo, há uma sensação de que a Odebrecht “fez o que queria” no Peru, e que “na realidade zombou da justiça peruana porque os promotores, tendo um interesse tendencioso em investigar aproveitaram-se para que os depoentes dissessem o que lhes convinha”. Em resposta à consulta da BBC News Brasil, a Odebrecht reafirmou sua colaboração com as autoridades e destacou que está habilitada a realizar novos contratos no país. “No Peru, a empresa está habilitada para contratar com o Estado, o que foi recentemente confirmado pela Corte Suprema do país, e atualmente executa alguns projetos de infraestrutura nos setores de transporte e irrigação. No que se refere ao Acordo de Leniência, o objetivo da empresa é que seja integralmente cumprido pelas partes, conforme os seus termos e condições, o que compreende, entre outros pontos, o pagamento da multa até o final do prazo e a operação sem restrições no país”, afirmou. Na Colômbia, a Odebrecht voltou a ser foco das atenções em agosto, depois que o presidente Gustavo Petro afirmou que o caso envolvendo a empresa poderia ser reaberto no país. Em Bogotá, o governo colombiano sediou o Congresso Internacional sobre a Luta contra a Corrupção e a Recuperação de Ativos, ocasião na qual Petro acusou a procuradoria local de permitir que os responsáveis pela corrupção saíssem da Colômbia sem prestar contas à justiça. O presidente argumentou também que os proprietários da multinacional brasileira não compensaram financeiramente a Colômbia, apesar das sanções impostas pelos tribunais locais, como os US$ 250 milhões anunciados em 2018 pelo Tribunal Administrativo de Cundinamarca como compensação. “Não pagaram um só peso”, exclamou Petro. À BBC News Brasil, a Odebrecht afirmou: “A companhia tem um processo de colaboração iniciado em 2016 com o Ministério Público colombiano, permanecendo à disposição das autoridades em caso de continuação ou reabertura de qualquer procedimento com o qual a empresa possa contribuir”. “Na Colômbia, o foco tem sido a conclusão da colaboração com as autoridades e a preservação dos direitos da companhia com relação a uma série de procedimentos que considera indevidos”, acrescentou, em nota. Segundo o Ministério Público colombiano, houve uma rede de corrupção na qual executivos da Odebrecht teriam criado um empreendimento criminoso para entregar mais de 80 bilhões de pesos (R$ 99 milhões) em propinas na Colômbia. Mais 22 pessoas foram intimadas para serem processadas por suposto envolvimento nos atos de corrupção. Neste cenário, o promotor Daniel Hernández, foi acusado de deixar escapar vários executivos da Odebrecht e de intimidar testemunhas no caso da empresa brasileira. Ele foi indiciado pelos crimes de prevaricação por omissão e ameaças a testemunhas perante a Suprema Corte de Justiça da Colômbia. Em audiência no dia 7 de setembro, a defesa de Hernández afirmou que ele atuou como promotor de apoio no caso Odebrecht e não há clareza na norma que determina que tal função deve processar o registro de mandados de prisão na entidade judiciária.
2023-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgxgkxe35kdo
brasil
Brasil vê Zelensky 'em baixa' antes de encontro com Lula em NY
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o líder ucraniano Volodymyr Zelensky se encontrarão na quarta-feira (20/09), às 16 horas, em Nova York. A reunião deve encerrar uma sequência de quase 9 meses de desencontros e trocas de farpas entre os líderes. O governo brasileiro, porém, tenta relativizar a importância do encontro, embora Lula tenha recebido mais de 60 pedidos de reunião e Zelensky seja um dos poucos líderes com quem ele se encontrará, além do presidente dos EUA, Joe Biden, e do chanceler alemão, Olaf Scholz. "Se (o presidente russo Vladimir) Putin pedisse uma agenda e se comprometesse com o horário oferecido, o presidente Lula igualmente o encontraria", afirmou à BBC News Brasil um diplomata sênior do Brasil em NY. Recentemente, Lula chegou a dizer que Putin não seria preso se viesse ao Brasil, embora tenha uma ordem de prisão ativa do Tribunal Penal Internacional , do qual o Brasil é signatário. O presidente mais tarde recuou da declaração, embora tenha dito que não sabe qual a serventia do TPI. Fim do Matérias recomendadas Desde sua eleição, Lula tem defendido a criação de uma espécie de "clube da paz", capaz de construir uma solução diplomática para o fim do conflito que já dura um ano e meio. Em abril, o brasileiro afirmou que "Putin não pode ficar com o terreno da Ucrânia. Talvez se discuta a Crimeia. Mas o que ele invadiu de novo, tem que se repensar. O Zelensky não pode querer tudo. O mundo precisa de tranquilidade (..) A gente precisa encontrar uma solução". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Crimeia foi ocupada pela Rússia em 2014, antes da nova ofensiva de Putin iniciada no ano passado. A proposta foi inicialmente mal recebida por Zelensky, que já afirmou não estar disposto a ceder territórios à Rússia, e vista com ceticismo pelos americanos e europeus. Os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) têm financiado o esforço bélico ucraniano. Para o governo ucraniano, a posição do Brasil não é neutra nem equidistante. Ao propor um cessar-fogo para abrir negociações, o Brasil estaria privilegiando a Rússia, que teria congelada suas posições de ocupação de territórios ucranianos e ganharia tempo para preparar a defesa dessas áreas. Também gerou frustração que o assessor internacional de Lula, Celso Amorim, tenha feito uma visita a Putin e demorado para repetir o gesto com Zelensky - o que foi percebido como mais um sinal de uma posição pró-Kremlin do Brasil. O governo Lula nega e diz que pra manter a posição de imparcialidade, o presidente brasileiro até agora evitou visitas a Moscou. Em maio, durante o encontro do G-7, em Hiroshima, no Japão, do qual tanto Zelensky quanto Lula participaram na condição de convidados, havia a expectativa de que eles se reunissem, mas a viagem acabou em desencontro. Segundo o governo brasileiro, Lula ofereceu quatro horários ao colega na ocasião, mas nada agradou ao ucraniano. Já Zelensky disse que foi Lula quem demorou a responder ao pedido de conversa. "No G-7, Zelensky foi tratado como um super star pelos americanos e os europeus. Estava em busca de armas e ficou soberbo, viu o encontro com Lula como algo menor", disse à BBC News Brasil um auxiliar de Lula. Na ocasião, Zelensky estava preparando a contraofensiva à Rússia a ser lançada no verão, no Hemisfério Norte, e buscava abastecer seu arsenal. Lula já havia dito q Scholz e a Biden que o Brasil não cederia armamentos à Ucrânia. "Nós nem temos armamentos pra ceder", disse o senador Jaques Wagner (PT-BA) nesta segunda, em tom de piada, ao confirmar que a posição do Brasil pela solução diplomática não deve se alterar depois da conversa com o ucraniano. Wagner deverá participar da conversa com Zelensky, além do assessor internacional Celso Amorim e do chanceler Mauro Vieira. Agora, porém, o momento de Zelensky é diferente em relação a maio, notam diplomatas brasileiros. Auxiliares de Lula vêem Zelensky em sua "maior baixa de popularidade" desde o início do conflito. Ainda sem resultados militares robustos na contraofensiva à Rússia, tendo tido que demitir seu ministro da defesa recentemente sob alegações de corrupção e recebido críticas públicas sobre sua estratégia militar dos americanos, os maiores financiadores do esforço bélico ucraniano, Zelensky não atravessa uma boa fase e talvez isso tenha aumentado sua disposição para encontrar com Lula. "O presidente brasileiro é um líder global e certamente uma figurinha que faltava no álbum de fotos de Zelensky", diz outro embaixador brasileiro que participa das negociações de bilaterais na ONU. Há alguns dias, o chanceler ucraniano Dmitri Kuleba ligou ao colega brasileiro Mauro Vieira para pedir o encontro com Lula em NY, o que levou os brasileiros a se questionar se Zelensky estaria agora mais interessado em saídas diplomáticas que Lula possa ajudar a costurar e menos em armas - que o Brasil já afirmou que não dará. No ano que vem, com as eleições americanas, é possível que a principal fonte de financiamento dos ucranianos, o governo dos EUA, seque. E faltaria a Zelensky uma maior entrada com países do Sul Global, interlocução que Lula poderia ajudar a fazer. Tudo isso, no entanto, a depender da disposição do ucraniano de cumprir a agenda e ao desenrolar da conversa, ressaltam os diplomatas brasileiros, que não escondem o clima de desconfiança que cerca a realização da reunião. Mudanças de horários e cancelamento de compromissos são comuns às margens da Assembleia Geral da ONU, mas um novo desencontro entre Zelensky e Lula geraria ruídos políticos de parte a parte, o que o Brasil quer evitar. O temor é que o ucraniano acabe por eclipsar as prioridades de Lula na viagem: seu discurso de abertura na Assembleia Geral da ONU nesta terça e o encontro bilateral com Biden, na quarta. A expectativa é que Zelensky se desloque ao hotel onde Lula está hospedado. O brasileiro tem tentado restringir ao máximo sua circulação por conta das dores no quadril. Depois de voltar ao Brasil, o presidente será submetido a uma cirurgia para sanar o desgaste na cabeça do fêmur que o acomete.
2023-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c16k4wgk445o
brasil
Lula e Biden se unem por sindicatos e trabalhadores de aplicativos após tensão entre Brasil e EUA
Na próxima quarta-feira, 20/9, em Nova York, os presidentes de Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e Estados Unidos, Joe Biden, vão lançar um documento batizado de "Coalizão Global pelo Trabalho", no qual defenderão liberdade sindical, garantias aos trabalhadores por aplicativo, entre outras medidas. Ou, nas palavras do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, Biden e Lula irão se juntar "para destacar o papel central e crítico que os trabalhadores desempenham na construção de um país sustentável e democrático, um mundo equitativo e pacífico". Embora o teor do texto ainda não esteja finalizado e tampouco seja público, ao menos quatro pessoas envolvidas em sua elaboração, tanto do lado americano quanto do brasileiro, disseram à BBC News Brasil que os detalhes do acordo importam menos diante do que representa a própria existência da iniciativa. Depois de uma série de solavancos, o lançamento representa um certo resgate da relação entre os dois líderes. "A sacada não está em algo escrito no documento, está no fato de que Brasil e EUA estão liderando isso juntos, que Lula e Biden construíram algo novo em conjunto", disse à BBC News Brasil um dos auxiliares de Lula com envolvimento direto no assunto. Fim do Matérias recomendadas "Essa é realmente uma agenda positiva em que os líderes estão trabalhando juntos, depois de muito ouvirmos falar sobre fricções e dificuldades na relação entre eles", nota Alexander Main, diretor de Política Internacional no Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington, que recentemente acompanhou uma delegação de congressistas americanos, entre eles a estrela da esquerda democrata Alexandria Ocasio-Cortez, a Brasília para debater com autoridades brasileiras o plano. O entusiasmo de Lula ficou evidente após uma conversa telefônica entre ele e Biden, em meados de agosto, na qual ambos alinhavaram detalhes da ideia. "É a primeira vez que trato com um presidente interessado nos trabalhadores", disse Lula na ocasião. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O assunto é tratado como uma das grandes prioridades do presidente brasileiro em sua agenda de cinco dias em Nova York. Tanto assim que, embora tenha recebido mais de 50 pedidos de bilaterais, segundo fontes do Itamaraty, a única que já estava confirmada antes mesmo da partida do brasileiro para os EUA era a agenda com Biden. Além disso, Lula optou por não participar do lançamento público de títulos sustentáveis brasileiros na Bolsa de Valores de Nova York, nesta segunda (18/9), porque, de acordo com um diplomata brasileiro ciente dos planos presidenciais, ele não queria que sua imagem na viagem ficasse vinculada ao touro de Wall Street — "um símbolo da especulação capitalista" —, e sim à agenda pró-trabalhador. Em busca de parceiros privados para obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em energia renovável — especialmente eólica e solar no Nordeste — e de investidores americanos para o país, Lula optou por participar de um jantar fechado à imprensa, organizado pelas organizações patronais Fiesp e CNI, na noite de domingo, para o qual foram convidados cerca de 40 dirigentes de grandes empresas e fundos, como a Chevron, a Blackrock, o Citibank. Embora prometesse uma sintonia fina, graças ao apoio dos EUA à democracia brasileira e ao rápido reconhecimento da Casa Branca à vitória eleitoral de Lula em 2022, o começo da relação entre ele e Biden foi marcada por solavancos. Em sua primeira visita a Washington, em fevereiro, Lula não foi recebido para uma visita de Estado nem pode falar ao Congresso, como desejava. A pouca ambição da agenda nos EUA foi contrastada com a pompa com a qual Lula foi recebido na China, principal antagonista dos EUA globalmente, pouco mais de um mês depois. Além disso, os americanos anunciaram o ingresso no Fundo Amazônia, mas com uma contribuição considerada tão baixa (US$ 50 milhões) que os negociadores brasileiros pediram para que o valor fosse excluído da declaração conjunta entre Brasil e EUA. Semanas mais tarde, Biden anunciou a intenção de remeter US$ 500 milhões ao fundo. A soma, porém, precisa ser aprovada no Congresso e, sem maioria democrata na Câmara, parece cada vez menos provável que isso aconteça, ao menos este ano. Os dois países também se estranharam no tema da Guerra na Ucrânia. Na China, Lula disse que os EUA deveriam parar de "incentivar a guerra", ao que o porta-voz do Conselho de Segurança dos EUA, John Kirby, respondeu dizendo que o líder brasileiro "papagaiava propaganda russa e chinesa". A escalada de tensão ganhou tal dimensão que analistas dos dois lados começaram a cogitar "anti-americanismo" por parte da política externa do Brasil. Até que, segundo fontes do Brasil e dos EUA, Biden lançou a ideia de que os dois líderes se juntassem em uma iniciativa focada no trabalho. A primeira vez em que o tema foi tratado com o formato próximo ao atual foi durante uma reunião de ambos às margens do encontro do G7, em maio, em Hiroshima, no Japão. "Quando Lula veio a Washington (em fevereiro), seu grande pedido era ajuda para financiar o fundo Amazônia. A primeira resposta de Biden foi meio fraca, depois ele ofereceu mais, mas o presidente sabe que o Congresso (dos EUA) não vai aprovar isso agora. Então encontrou uma forma de engajar Lula e trabalhar junto sem ter que pedir a anuência do Congresso", diz Main. Além de interromper a sucessão de constrangimentos e tirar o foco das discordâncias entre os governos, a ideia valorizaria o histórico político singular de Lula, como líder grevista no ABC paulista, e reforçaria a ideia de que EUA e Brasil compartilham valores e princípios fundamentais, tecla em que os americanos gostam de bater para diferenciar-se da China. "Lula é uma das maiores lideranças sindicais do mundo e Biden é o auto-proclamado o presidente mais pró-trabalhador na história dos EUA, há uma conjuntura especial que está propiciando esta iniciativa. É claro que há essa confluência de personalidades dos dois presidentes, que é o que permite que isso ocorra agora", diz à BBC News Brasil Stanley Gacek, conselheiro do Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e Alimentares (UFCW, na sigla em inglês), que representa 1,3 milhões de trabalhadores nos EUA e no Canadá. Gacek conhece Lula desde os anos 1980, chegou a visitá-lo na prisão na sede da Polícia Federal do Paraná e agora também colaborou com a iniciativa. Para Biden, que enfrenta uma campanha para a reeleição no ano que vem, reforçar a imagem de um líder defensor dos trabalhadores pode ser fundamental para o sucesso eleitoral. Ainda mais em estados-pêndulo como a Pensilvânia e Michigan, que votam ora republicano, ora democrata e possuem importantes organizações sindicais. "Ali, onde 2 mil votos podem fazer a diferença, a capacidade dos sindicatos de aglutinar as pessoas e fazê-las votar é central", diz Main. O sindicalismo vive um ressurgimento nos EUA, e o patamar de aprovação da população aos movimentos sindicais está acima de 70%, algo alcançado pela última vez em 1965. Ciente disso, o presidente americano relançou sua candidatura na sede da AFL-CIO, a maior central sindical do país e uma histórica entusiasta e defensora de Lula. O provável oponente de Biden será o republicano Donald Trump, que tenta se associar aos trabalhadores a partir de uma agenda nacionalista, que defenderia os interesses do proletariado americano ao manter imigrantes fora do país e proteger a indústria nacional, privilegiando produtos originários dos EUA (algo que, aliás, também é defendido por Biden). No ano passado, um dos ideólogos de Trump, Steve Bannon, afirmou à BBC News Brasil que a direita populista pretendia obter cada vez mais entrada junto aos sindicatos. Auxiliares de Lula afirmam que também no Brasil o presidente está preocupado com o avanço da direita sobre os trabalhadores. "Se querem consolidar a base e ter sucesso eleitoral, Lula e Biden têm pela frente a missão de mostrar que seus governos podem entregar mais aos trabalhadores em um momento em que o populismo de direita apresenta uma retórica que têm apelo com os trabalhadores", diz Main. Fontes envolvidas na negociação disseram à BBC News Brasil que a premissa do documento é a definição de "trabalho decente", da Organização Internacional do Trabalho, que define como tal o trabalho produtivo e de qualidade e que garante a liberdade sindical, o direito de negociação coletiva, promove a proteção social e elimina o trabalho forçado, infantil e formas de discriminação. Assim, estarão contemplados na iniciativa princípios para a garantia de liberdade de associação com atuação sindical, respeito a convenções e acordos coletivos atingidos pela categoria sobre negociações individuais, salvaguardas a trabalhadores de aplicativos, como entregadores ou motoristas, que não devem ser tratados como empreendedores ou micro-empresários e sim como força de trabalho. Há também a previsão de que o material trate dos empregos da nova economia verde, um dos temas que mais preocupa os líderes sindicais, já que a transição econômica do combustível fóssil para a redução de emissão de carbono tende a eliminar mais postos de trabalho do que gera. É o que se vê, por exemplo, na indústria automobilística, na qual a fábrica de veículos elétricos demanda 40% menos trabalhadores do que automóveis à combustão. Tanto Biden quanto Lula são entusiastas da transição energética e das energias renováveis. Nos EUA, Biden não é apoiado pelo maior sindicato de metalúrgicos do país, a United Auto Workers (UAW), em parte pelo temor do que sua política para uma economia verde pode causar de impacto para os trabalhadores do setor. Os metalúrgicos da UAW estão neste momento em greve contra as três maiores montadoras do país, General Motors, Ford e Stellantis. Pressionada pelos movimentos grevistas, os maiores neste verão desde a década de 1970, a Casa Branca tem dito que "ninguém quer greve", mas que "Biden respeita o direito dos trabalhadores de usarem suas possibilidades para obter um acordo coletivo". O lançamento da coalizão deve colocar na mesma foto pela primeira vez na história de Brasil e EUA os dois presidentes e líderes sindicais americanos, como a AFL-CIO e a UFCW, quanto do Brasil, como da CUT. Também estarão presentes o Ministro do Trabalho do Brasil, Luiz Marinho, além de representantes do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Brasil e EUA têm leis trabalhistas muito distintas. Historicamente, o Brasil oferece muito mais garantias aos trabalhadores formais do que os EUA. Aqueles com carteira assinada no país tem acesso a trinta dias de férias remuneradas anuais, a licença médica de 15 dias seguidas sem perda salarial, a licença maternidade de ao menos 4 meses e ao fundo de garantia ao trabalhador por tempo de serviço acrescido de multa de 40% em caso de demissão sem justa causa. Nada disso é padronizado nos EUA: o trabalhador precisa negociar diretamente com o patrão suas férias e dias de licença médica, que com frequência são a mesma coisa e não superam os 15 dias anuais. Licença-maternidade também não é assegurada nacionalmente e depende da política do empregador e de alguma cobertura do governo local para existir. Não há qualquer tipo de FGTS. O funcionário dispensado nada tem a receber pela rescisão do contrato, que não precisa ser justificada. Ainda assim, segundo os entusiastas da iniciativa, Brasil e EUA têm muito a trocar em relação ao assunto, até porque no Brasil existe uma enorme informalidade dos trabalhadores, que estariam ainda mais desprotegidos do que a média dos americanos. "Nós vamos construir isso. Para o Brasil é importante primeiro pelo reconhecimento do presidente Lula como uma liderança global", disse em Nova York o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que negociou o texto. É exatamente na condição de liderança global que Lula pretende se apresentar no púlpito da Assembleia Geral da ONU. Na próxima terça, 19/9, ele abrirá o evento pela sétima vez, com um discurso no qual pretende reapresentar as credenciais do Brasil aos 193 países que compõem a audiência da ONU. Na fala do presidente estarão as pautas — e os resultados já obtidos pelo governo — da proteção ambiental, a militância pelo combate a todo tipo de desigualdade (seja econômica, climática ou de representação em organismos multilaterais), e um chamado pela paz no mundo e busca por saídas diplomáticas, com menção à Guerra da Ucrânia e a outros conflitos na África e no Oriente Médio. Existe a possibilidade, ainda, de que o adiado encontro entre Lula e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky se concretize em Nova York. Depois de um desencontro no Japão — em que cada lado culpou o outro lado pelo desfecho — e de trocarem palavras ríspidas em público, Zelensky teria sinalizado com interesse de sentar-se à mesa com o brasileiro que, segundo o senador Jaques Wagner, líder do governo, ofereceu aos ucranianos duas possibilidades de horário. Diplomatas brasileiros vêem Zelensky em um momento de "maior baixa de popularidade" desde o início do conflito. Ainda sem resultados militares robustos na contra-ofensiva à Rússia, tendo tido que demitir seu ministro da Defesa e ouvido críticas públicas sobre sua estratégia militar dos americanos, os maiores financiadores do esforço bélico ucraniano, na perspectiva de diplomatas brasileiros, talvez agora Zelensky esteja mais interessado em saídas diplomáticas que Lula possa ajudar a costurar e menos em armas — que o Brasil já afirmou que não dará.
2023-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyjwzd44x2no
brasil
A planta amazônica que virou a espécie invasora mais dominante do planeta
Os incêndios no Havaí deixaram centenas de mortos e imagens desoladoras em uma das paisagens mais idílicas do planeta. Mas também chamaram a atenção para o perigo das plantas exóticas invasoras - tipos de grama não-nativa teriam, segundo especialistas, deixado o Havaí muito mais vulnerável a incêndios. Como elas são estranhas aos ecossistemas "invadidos", elas prejudicam a natureza local, abalam cadeias alimentares e ameaçam a saúde humana a um custo anual estimado em US$ 423 bilhões, aponta o relatório, com base em dados de 2019. Segundo os especialistas, as plantas invasoras amplificam os efeitos que as alterações climáticas causam no planeta. “A ação de plantas invasoras resulta frequentemente em incêndios mais intensos e frequentes, como alguns dos devastadores ocorridos recentemente em todo o mundo, liberando ainda mais dióxido de carbono na atmosfera”, observa o relatório. Fim do Matérias recomendadas E, entre essas plantas, há uma que predomina sobre as demais espécies: a Pontederia crassipes, mais conhecida como jacinto-de-água ou aguapé. Originária da América do Sul, especialmente da região amazônica, ela é a espécie terrestre invasora exótica mais difundida. “Com o aumento do uso da terra para a produção agroindustrial, aumenta também o uso de plantas exóticas que acabam se tornando invasoras, como estamos vendo em todo o planeta”, diz a professora Helen Roy, especialista em plantas invasoras e membro do Centro Britânico de Ecologia e Hidrologia. Roy, que liderou o relatório feito à ONU, salienta que essa planta em particular causou efeitos profundos em diferentes regiões, como o Lago Vitória, na África. “O lago, uma das principais fontes de alimento de milhões de pessoas, está ficando sem peixes, mais especificamente a tilápia, porque o aguapé absorve nutrientes essenciais para os animais que vivem ali”, explica. E essa planta, que também é reconhecida pela beleza da sua flor, já chegou a muitas regiões onde causou graves e diversos danos. O jacinto-de-água é uma planta nativa da região amazônica e do rio Orinoco, o principal da Venezuela, onde encontra seu habitat perfeito nos enormes cursos d'água. Ela é uma planta flutuante que possui uma capacidade incrível de se reproduzir e crescer rapidamente. Outra de suas características é que suas raízes e folhas têm a capacidade de absorver substâncias tóxicas da água e filtrar seu conteúdo. Segundo especialistas, o que aconteceu é que os exploradores que percorreram o Orinoco no final do século 19 pensaram que o aguapé poderia ser uma planta ornamental perfeita para fontes artificiais em seus países de origem. Isso ocorre porque elas são plantas flutuantes e têm uma flor violeta marcante. Dessa forma, a espécie chegou a países como Estados Unidos e Japão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Algo que favorece o aguapé para o trabalho de invasão é que os ambientes de água doce são todos muito semelhantes em todo o mundo, especialmente aqueles localizados na zona tropical”, explicou à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Anibal Pouchard, professor de assuntos florestais da Universidade de Concepción, no Chile. Ainda há outro fator: especialistas aprenderam sobre a capacidade dessas plantas de filtrar elementos tóxicos na água, inclusive fertilizantes, o que aumentou sua demanda em todo o mundo. O que não levaram em conta foi a enorme capacidade invasiva que esta planta possui. O caso do Lago Vitória – localizado na fronteira de Uganda, Tanzânia e Quênia – é apenas um reflexo do que tem acontecido em dezenas de países onde a planta invasora está presente. Seus efeitos assumem diferentes formas. “Por conta da sua exuberância e capacidade de dominar os ambientes aquáticos onde vive, ela não permite a existência de outras plantas nativas, o que acaba afetando o equilíbrio do habitat onde invade”, afirma Pouchard. Também por esse motivo afeta a navegabilidade por rios e lagos. Além disso, a capacidade do aguapé de absorver e processar materiais tóxicos e metais pesados ​​faz com que ele emita grandes quantidades de dióxido de carbono e gás metano quando se decompõe, contribuindo para as alterações climáticas. Mas o problema não termina aí. Tanto Roy quanto Pouchard apontam que, para eliminar o aguapé, são necessários gastos milionários, muitas vezes insuficientes. “Outro problema do aguapé é que a semente dele pode durar anos sem germinar. Portanto, mesmo que todos os aguapés possam ser removidos, digamos, de um lago, ainda existe a possibilidade de que eles cresçam novamente, de forma rápida e exuberante, algum tempo depois”, observou Roy. A expansão de plantas invasoras é considerada crítica por cientistas e ambientalistas. “É uma situação que afeta toda a sociedade em diferentes níveis, independentemente da sua origem ou status: atacam o centro dos habitats e as cadeias de abastecimento que saem do ambiente”, explica Roy. A principal solução é a prevenção no manejo de plantas destinadas à exportação ou importação. “É preciso levar em conta que muitas dessas plantas que hoje são invasoras foram trazidas para proporcionar algum benefício às pessoas. O problema é que não se teve cuidado com os efeitos que isso poderia causar”, diz Roy. Por essa razão, tanto Roy como Puchard avaliam que a prevenção e o controle da flora e da fauna nas fronteiras é uma das medidas mais eficazes que podem ser implementadas para prevenir a chegada de espécies invasoras. “Nem todas as plantas que são levadas de um habitat para outro pelo homem são invasoras, mas temos de saber quais podem ter um efeito prejudicial na natureza desse novo local”, diz a pesquisadora. Segundo o relatório das Nações Unidas, os programas que avançam na erradicação de espécies invasoras têm funcionado de forma eficaz, especialmente quando essas plantas podem ser isoladas e quando a sua espécie nociva é detectada rapidamente. No caso específico do jacinto-de-água, estão sendo implementadas uma série de intervenções que têm conseguido controlar a sua expansão. “No caso do aguapé, existe um elemento biológico que é um inseto (Neochetina bruchi), que se parece com um besouro. Ele faz o trabalho de controlar o crescimento dessas espécies”, concluiu Roy.
2023-09-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c727vygjx8jo
brasil
G-77: Diante de plenária quase vazia, Lula condena embargo a Cuba e exalta cooperação Sul-Sul
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou seu discurso na cúpula G-77+China a uma plateia que deveria estar repleta de delegações de cem países e ao menos 16 chefes de Estado, mas que estava praticamente vazia na manhã deste sábado (16/9). Quando o anfitrião da cúpula, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel, o chamou ao púlpito, pouco depois das 9h local, não houve aplausos e Lula parecia nem entender que já estava com a palavra. Avisado por integrantes da delegação brasileira, ele caminhou ao palco para um discurso de cerca de 10 minutos no qual criticou o embargo americano a Cuba e a inclusão do país na lista de nações patrocinadoras de terrorismo, elogiou a diversidade do G-77, que corresponde a 79% da população mundial, apontou a falta de representatividade dos atuais mecanismos multilaterais, voltou a cobrar dos países ricos a conta pelas mudanças climáticas e exaltou a cooperação Sul-Sul, da qual disse que o Brasil era pioneiro. “O G-77 foi fundamental para expor as anomalias do comércio global e para defender a construção de uma Nova Ordem Econômica Internacional. Infelizmente, muitas das nossas demandas nunca foram atendidas”, afirmou Lula em seu discurso. Diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil defendiam que o evento mais importante de Lula em Cuba era justamente sua participação no fórum, e não a visita bilateral ao governo cubano. Fim do Matérias recomendadas Criado nos anos 1960, o bloco é composto por mais de 130 países do chamado Sul Global, mas historicamente tem tido pouca voz nas definições tomadas em ambientes geopolíticos centrais, como a ONU. “A governança mundial segue assimétrica. A ONU, o sistema Bretton Woods (em uma referência à primazia do dólar no comércio global) e a OMC (Organização Mundial do Comércio) estão perdendo credibilidade”, complementou o presidente brasileiro. Segundo um de seus auxiliares mais próximos, ao comparecer ao G-77 e, na próxima terça, 19/9, abrir a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, Lula terá concluído o processo de “devolver o Brasil a todos os tabuleiros internacionais mais importantes”. Neste ano, Lula também esteve no encontro do G-7, do G-20, dos Brics e da Celac/União Europeia. Durante a fala do líder brasileiro no Palácio de Convenções em Havana, a plateia foi aos poucos enchendo, mas ainda longe de completar 50% de sua capacidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além de Díaz-Canel, a BBC News Brasil presenciou apenas uma rápida troca de palavras entre Lula e Ralph Gonsalves, o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, um pequeno país da América Central com pouco mais de cem mil habitantes. Durante o discurso, não estavam presentes, porém, o presidente argentino, Alberto Fernandéz, o venezuelano Nicolás Maduro e nem mesmo o líder nicaraguense Daniel Ortega. Fernandéz e Ortega chegaram depois da fala de Lula e o cumprimentaram no período em que o líder brasileiro assistiu aos discursos de outros representantes diplomáticos. Lula defendeu justamente que as nações em desenvolvimento se unam para que tanto a transição energética quanto a revolução digital não sejam conduzidas por “um punhado de economias ricas” e contem com presença decisiva da América Latina, do Caribe e da África Subsaariana. “Não podemos nos dividir. Devemos forjar uma visão comum que leve em consideração as preocupações dos países de renda baixa e média e de outros grupos mais vulneráveis”, disse o brasileiro. Lula defendeu a inclusão de especialistas dos países em desenvolvimento nos painéis de discussões tecnológicas e sinalizou que há oportunidades de desenvolvimento no processo de combate às mudanças climáticas. “Vamos promover a industrialização sustentável, investindo em energias renováveis, na socio-bio-economia e na agricultura de baixo carbono”, afirmou o presidente para em seguida ressaltar que “faremos isso sem esquecer que não temos a mesma dívida histórica dos países ricos pelo aquecimento global”. “É por isso que o financiamento climático tem de ser assegurado a todos os países em desenvolvimento, segundo suas necessidades e prioridades. No caminho entre a COP-28 (conferência climática da ONU, agendada para novembro), em Dubai, e a COP-30, em Belém, será necessário insistir na implementação dos compromissos nunca cumpridos pelos países desenvolvidos”, afirmou Lula. Por fim, o mandatário sugeriu uma reedição da chamada Comissão do Sul, grupo de intelectuais de países em desenvolvimento, entre eles os brasileiros Celso Furtado e Paulo Arns, que se reuniu nos anos 1990 para criar uma visão comum sobre o caminho a seguir no pós-Guerra Fria. Além da participação no G-77+China, Lula teve um encontro com o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o chinês Qu Dongyu, que deixou a conversa sem falar com a imprensa. À tarde, o brasileiro uma reunião bilateral com Díaz-Canel no Palácio da Revolução. Na ocasião, os líderes assinaram protocolos de cooperação nas áreas de desenvolvimento de biofármacos e de trocas tecnológicas, especialmente focadas na agricultura familiar. O encontro, que durou cerca de uma hora, representa uma reaproximação dos países, que permaneceram distantes nos últimos sete anos. No fim da tarde, Lula deixou o Palácio da Revolução, mas em vez de ir ao aeroporto, conforme apontava sua agenda, fez um desvio de 40 minutos para visitar o líder revolucionário cubano Raúl Castro, de 92 anos, na residência privada dele. O avião presidencial partiu com uma hora e meia de atraso do aeroporto José Martí, em Havana, em direção a Nova York, onde o presidente permanecerá por cinco dias para participar dos eventos da ONU e de encontro bilateral com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
2023-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2kvlkd5zdo
brasil
Lula desembarca em Cuba com missão de reaver empréstimo do BNDES para porto de Mariel
"Quando a União Soviética colapsou, no início dos anos 1990, foi um tombo enorme para Cuba. Agora, porém, é muito pior. É como se Cuba estivesse rolando uma escada cujo fim não se vislumbra." A definição foi dada à BBC News Brasil por um economista da Universidade de Havana que pediu anonimato pela sensibilidade política do assunto. A opinião, porém, está longe de ser polêmica entre analistas da economia cubana. Em 2023, eles dizem, o país está mergulhado na maior crise econômica desde a vitória da revolução comunista liderada por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, em 1959. E é neste contexto que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou em Havana nesta sexta-feira (15/09), às 18h25, no horário local, para uma visita de menos de 24 horas na ilha. Com o presidente, além de seu assessor internacional Celso Amorim e do chanceler Mauro Vieira, estavam as ministras da saúde, Nisia Trindade, e da tecnologia, Luciana Santos. Fim do Matérias recomendadas Neste sábado, Lula terá uma reunião bilateral com o líder cubano Miguel Díaz-Canel. O líder brasileiro também discursará no G77+China, um fórum de mais de cem países do chamado Sul Global que Havana sediará neste sábado. No mesmo dia viaja para Nova York, para, na semana que vem, abrir a Assembleia Geral da ONU pela oitava vez na vida - e a primeira em seu terceiro mandato. Cuba ser a anfitriã do evento do G77 no sábado veio a calhar para Lula, que aproveitará a passagem em Havana para reaquecer relações políticas que ficaram praticamente congeladas nos últimos anos e, especialmente, reabrir as negociações com os cubanos para que eles retomem o pagamento de uma dívida bilionária que têm com o Brasil pelo financiamento da obra do icônico Porto de Mariel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Cuba que Lula visita enfrenta uma espécie de tempestade perfeita que tem levado à insegurança alimentar de boa parte da população.  Produtos básicos, como um único limão, podem custar valores extorsivos para os habitantes da ilha, como o equivalente a R$ 2,50. “Antes, era difícil fazer o salário chegar ao final do mês. Mas isso era quando estávamos bem. Agora o salário acaba na primeira semana”, relatou à BBC News Brasil um cubano de Havana que prefere não ser identificado. Os desabafos sobre as duras condições financeiras no país se multiplicam quando a reportagem comenta o assunto em uma mesa de restaurante com alguns cubanos. “A população agora precisa escolher: ou vai comer, ou vai colocar gasolina ou vai pagar o SIM card com 4G”, diz um outro. O homem faz menção a uma das mudanças recentes no país, a popularização da conexão à internet via redes de celulares, que relegou ao passado as famosas cenas de centenas de cubanos aglomerados ao redor de hotéis para se conectar à web, usando os sinais que até meados dos anos 2010 eram quase exclusividade destes empreendimentos. Primeiro, Cuba enfrentou o recrudescimento de uma série de sanções americanas impostas pelo governo republicano de Donald Trump, que voltou a adotar a política de máxima pressão econômica sobre a ilha depois do maior relaxamento nas relações entre Estados Unidos e Cuba em décadas, na gestão do democrata Barack Obama.  Depois, a pandemia de covid-19 derrubou o turismo na ilha, uma das principais fontes do produto interno bruto cubano. Se, em 2019, 4,2 milhões de turistas visitaram o país, agora Cuba patina para atrair ao menos metade deste número de volta a seus resorts estatais. O governo da ilha adotou restrições duras e longas à entrada de estrangeiros no país por um longo período, algo parecido com o que faz a China, e agora enfrenta as dificuldades de retomar o ritmo na indústria hoteleira. E, mais recentemente, a guerra na Ucrânia fez explodir os custos de alimentos e de energia no mercado internacional - ao qual Cuba tem que recorrer,  já que sua produção local é insuficiente.  Diante da necessidade de capital de giro, o governo comunista de Miguel Diaz-Canel acaba de impor limite aos saques dos cubanos às suas contas bancárias, mesmo quando há dinheiro disponível. O resultado é que o dinheiro sumiu do sistema bancário: boa parte da população têm optado por guardar os recursos em casa. E o câmbio negro do dólar explodiu. Como resultado, a ilha viu um êxodo histórico: apenas em 2022, 306 mil cubanos foram encontrados por agentes de migração americanos atravessando a fronteira sul dos Estados Unidos com México - isso equivale a mais de 2% de toda a população de Cuba. Há dois meses, o ministro da Economia e Planejamento, Alejandro Gil, fez um discurso no qual não escondeu a situação. Lamentou o quanto a inflação “afeta o povo”, revelando que em maio a alta de preços tinha alcançado 45% em relação a maio de 2022. Também admitiu que a entrada de turistas era 20% menor que a esperada no primeiro semestre e que a projeção do PIB, de crescimento de 1,8% para 2023, era insuficiente porque a ilha ainda estava oito pontos percentuais abaixo do nível econômico pré-pandêmico. Em meio à escassez e as dificuldades, Cuba se viu recém-envolvida em um escândalo: uma rede russo-cubana estaria cooptando cubanos - radicados na Rússia ou não - para atuar como soldados mercenários na guerra da Ucrânia. O governo cubano reagiu com energia à revelação: há 6 dias, 17 pessoas foram presas na ilha por relação com o caso de tráfico de pessoas para o front. O governo de Diaz-Canel reafirmou que o país “não é parte do conflito bélico na Ucrânia” e acusou os operadores da ação de mancharem a imagem de Cuba. Isolada pelas sanções americanas e fortemente dependente da China e da Rússia, a Cuba de Diaz-Canel viu na realização da Cúpula do G77+China uma chance de atrair uma centena de delegações de países estrangeiros à ilha e projetar para o mundo uma agenda positiva em meio ao caos econômico. Nem o líder chinês Xi Jinping nem o líder russo Vladimir Putin são esperados no encontro, que durará dois dias. Além de Lula, confirmaram presença os presidentes da Colômbia, Gustavo Petro, da Argentina, Alberto Fernández, da Venezuela, Nicolas Maduro, de Angola, José Lourenço, da Mongólia, Khurelsukh Ukhnaa, entre outros líderes do chamado Sul Global. Também comparecerá o Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres. Embora este seja um grupo antigo, criado nos anos 1960, e numeroso, com mais de cem países em desenvolvimento, o G77 não é tido como influente nos destinos da geopolítica mundial.  Mas para o projeto internacional de Lula, de liderar o Sul Global e propor reformas em mecanismos multilaterais, a participação no fórum fazia sentido. Segundo dois auxiliares do presidente, o G77 costuma funcionar como espaço de consenso entre países mais pobres para tentar influenciar em algumas áreas da ONU, como as discussões sobre mudança climática e meio ambiente, que interessam especialmente ao Brasil.  Além disso, para a diplomacia brasileira atual, depois de Lula sentar à mesa dos países ricos ao longo de todo o ano - como no encontro do G7, no Japão, do G20, na Índia, da Celac com a União Europeia, na França, e do próprio BRICS, na África do Sul, faltava ao presidente brasileiro fazer um aceno específico aos países mais à margem do poder. Para Lula também foi conveniente que Cuba fosse a anfitriã deste encontro. Depois de sete anos sem embaixador no país comunista, o Brasil voltou a ter um na ilha há dois meses e tenta reaquecer relações políticas e econômicas.  O Brasil já chegou a estar entre os três maiores parceiros comerciais de Cuba e o comércio bilateral entre os dois países atingiu o patamar dos 650 milhões de dólares no início dos anos 2010.  No início dos anos 2020, no entanto, o fluxo de trocas despencou para menos de um terço disso, em torno de 180 milhões de dólares.  Politicamente, as tensões também se acumularam. Cuba retirou às pressas milhares de médicos do Brasil no fim de 2018, quando o então presidente eleito Jair Bolsonaro condicionou a atuação dos profissionais cubanos no programa Mais Médicos a novas regras - como o fim da remessa salarial dos médicos ao governo de Cuba. O fim do contrato de prestação de serviços médicos com o Brasil representou um tombo equivalente à perda de toda exportação anual de charutos para o PIB cubano – mais de R$1 bilhão.  E ainda no governo Bolsonaro, pela primeira vez na história, o Brasil se posicionou favoravelmente ao embargo dos EUA em Cuba no âmbito da ONU - posição compartilhada apenas com os próprios americanos e com Israel. Mas o tema mais candente da reunião bilateral entre Lula e Diaz-Canel, a ser realizada neste sábado, 16, deve ser a reabertura de negociações para que Cuba volte a pagar as parcelas do financiamento de US$ 658 milhões dado pelo BNDES para a reformulação do Porto Mariel.  A obra, tocada pela empreiteira brasileira Odebrecht, prometia terminais portuários tão modernos quanto os do Canal do Panamá e uma zona capitalista especial para implantação de empresas nos moldes da adotada pela China. Parte do empresariado brasileiro se animou com a possibilidade de ter no porto um entreposto privilegiado para negócios com o Caribe e os Estados Unidos.  Até a Fiesp, federação da indústria paulista, chegou a apoiar publicamente o projeto, citando justamente o potencial de exportação do empreendimento. Mas, a partir do segundo semestre de 2018, Cuba deixou de pagar o empréstimo. O acumulado da dívida chega a estimados R$ 2 bilhões, segundo informações obtidas via lei de acesso pelo Estadão junto ao BNDES em 2021. A BBC News Brasil consultou o BNDES sobre a dívida, o banco se comprometeu a enviar uma resposta, mas não o fez até a publicação desta reportagem. Um novo cálculo da dívida terá que ser apresentado aos cubanos, que terão que concordar com o valor cobrado. O assunto virou um dos maiores pontos de disputa política entre esquerda e direita no Brasil nos últimos anos. Em postagens virais de internet, Lula foi acusado de - por afinidades ideológicas - optar por construir um porto em Cuba em vez de investir o dinheiro para “erguer 120 hospitais no Brasil”.  Em outubro de 2022, durante a campanha eleitoral presidencial, o então presidente Jair Bolsonaro disse que “em Belo Horizonte não tem metrô, mas dinheiro nosso do BNDES, Lula mandou para Caracas, capital da Venezuela, lá tem um metrô maravilhoso". Três auxiliares de Lula disseram à BBC News Brasil que o uso político pelos adversários da direita do tema dos empréstimos não pagos tornou a recuperação dos valores uma meta para Lula em seu terceiro mandato. Dos 15 países que contraíram empréstimos com o BNDES na gestão do petista, apenas Cuba, Venezuela e Moçambique não quitaram seus contratos.  No caso de Cuba, as condições especiais do contrato firmado - com o dobro de prazo para quitação em relação aos demais países contemplados  e a aceitação de garantias dadas em conta corrente cubana e em charutos - também geraram questionamentos sobre possíveis favorecimentos políticos ao regime cubano, o que o petista sempre negou. Agora, dizem integrantes do governo, Lula deve propor um reescalonamento da dívida, para que Cuba possa recomeçar a pagar seu débito aos poucos, com prazos mais elásticos, em parcelas mais suaves. Não se cogita do lado brasileiro, porém, um perdão financeiro aos cubanos.  Outra opção levantada por um diplomata brasileiro seria que o pagamento fosse feito por meio da cessão do controle ao Brasil de parte das operações do Porto Mariel. Um diplomata sênior que conhece de perto a história do terminal portuário afirma que depois de viabilizar o porto, cuja construção foi concluída em 2015, “o Brasil virou as costas e foi embora, e europeus e asiáticos são os que têm usufruído da infraestrutura criada com recursos brasileiros para fazer comércio na região”. Depois da visita presidencial, o Brasil espera inaugurar um diálogo técnico entre o Ministério da Fazenda brasileiro e o departamento financeiro de Cuba para avaliar condições e possibilidades de quitação do empréstimo. Mas, considerando a condição financeira de Cuba, não se espera um pagamento completo e rápido ao BNDES. O próprio governo brasileiro reconhece a dificuldade do momento e diz que não tomará qualquer ação draconiana em relação à Cuba. Para o governo Lula, no entanto, é preciso retomar espaços no país, incluindo as exportações, até para permitir que o país melhore de condições a ponto de pagar a dívida. Novas obras de infraestrutura estão descartadas, até porque o Brasil não poderia voltar a fazer financiamentos enquanto o governo cubano estiver inadimplente.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxd24kvqr0o
brasil
As razões por trás de ciclones cada vez mais fortes e frequentes no Sul, segundo especialistas
Um novo ciclone extratropical se formou na costa do Rio Grande do Sul nos últimos dias e causou preocupação. Mas apesar de registros de inundações na região, ele logo se afastou e seguiu em direção ao oceano. Pouco mais de uma semana antes, um ciclone já havia causado estragos no Estado e deixado 46 mortos, além de ter afetado milhares de moradores da região. Foi a maior tragédia natural do Estado nos últimos 40 anos, segundo o governo local. Em junho, um outro ciclone já havia deixado 16 mortos em sua passagem pelo Estado. As previsões apontam que outros ciclones extratropicais podem afetar o Sul do país nas próximas semanas. Isso não é incomum, dizem especialistas. A diferença, apontam, é que atualmente há maior chance de que esses fenômenos sejam mais intensos. O aquecimento global e a formação do El Niño, que deve ganhar força nos próximos meses, são os principais fatores apontados por pesquisadores para que esses ciclones possam causar mais estragos neste ano. Fim do Matérias recomendadas "O planeta está mais quente, os oceanos mais quentes e o El Niño está em evolução. Essa combinação faz com que a atmosfera torne os seus eventos meteorológicos mais intensos", explica o climatologista Francisco Eliseu Aquino, do Departamento de Geografia e Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Aquino frisa que esse cenário de fenômenos mais intensos é sentido em todo o mundo. Ele menciona, por exemplo, as enchentes devastadoras que atingiram a Líbia nesta semana e, segundo autoridades locais, deixaram cerca de 20 mil mortes, além de ter destruído bairros inteiros. "Com o aquecimento global, temos uma atmosfera e oceanos propícios a desenvolver eventos extremos. Isso se associa ao El Niño em desenvolvimento e se torna uma combinação que, não importa o hemisfério em que esteja, fará com que os eventos meteorológicos ganhem intensidade em cada região", declara Aquino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os ciclones extratropicais costumam se formar no extremo sul do país, entre a costa do Rio Grande do Sul e os países vizinhos Argentina e Uruguai. Eles são considerados comuns, têm ventos mais fracos e efeitos de menor duração em comparação aos ciclones tropicais. A climatologista Karina Bruno Lima comenta que eles são mais comuns principalmente no inverno, no outono e na primavera. "Esses são períodos em que surgem condições favoráveis, no caso o contraste de temperatura entre massas de ar quente e fria", pontua. A especialista ressalta que nem sempre é possível sentir os efeitos desses fenômenos, porque eles podem ser menos intensos ou estarem mais distantes da costa. No entanto, a climatologista explica que diante do cenário de aquecimento global e formação de El Niño, que aumenta a umidade na região sul do país, há mais probabilidade de que um ciclone extratropical cause desastres. Assim aumentam as chances de alagamentos, deslizamentos, enxurradas e tantos outros impactos que afetam duramente a população local. Aquino aponta que o inverno deste ano foi considerado atípico em relação aos ciclones. "Tivemos, em média, ao menos um ciclone se formando por semana no sul do país", comenta. "E alguns desses eventos foram extremos, como as inundações de junho ou no início de setembro", diz Ezequiel. Segundo o climatologista, os especialistas ainda estudam se o número de ciclones deve aumentar na região ao longo dos próximos anos e os impactos deles. Mas afinal, quais medidas podem ser tomadas para reduzir os efeitos desses fenômenos extremos? Para os especialistas, a principal alternativa é buscar formas para enfrentar as mudanças climáticas. "Para isso são importantes as ações dos indivíduos, mas mais importantes são as decisões dos tomadores de decisões, dos governantes", pontua Aquino. O climatologista cita que o governo deve investir cada vez mais em ações para combater o desmatamento e a queimada no país. "Se o Brasil se empenhar nisso, vai contribuir muito nacionalmente e globalmente para o enfrentamento das mudanças climáticas", declara. "É importante entender que a mudança climática é real", acrescenta. E o climatologista defende que as autoridades públicas deem mais atenção à Defesa Civil, que tem o objetivo de reduzir os riscos de desastres, além de prevenir e mitigar situações do tipo. "Cada município tem que ter a sua própria estrutura de Defesa Civil, com coordenação própria e espaço próprio. O Brasil tem uma boa previsão do tempo, que é acertada, mas é importante também que as pessoas sejam alertadas sobre os riscos desses fenômenos, como por meio da Defesa Civil ou de lideranças comunitárias", diz o climatologista. Além disso, ele lista situações que podem apoiar nessas situações de desastre, como cuidar das margens dos rios, evitar o assoreamento (acúmulo de terra, lixo e matéria orgânica), proteger as matas ciliares e avaliar profundamente cada via que é alargada em uma determinada região – para mensurar os impactos dessa medida em possíveis desastres ambientais.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qlypx3k1wo
brasil
Nipah: quais são as chances de vírus mortal chegar ao Brasil ou causar nova pandemia?
A Índia registrou mais um surto do vírus Nipah. Segundo as últimas informações divulgadas, os cinco casos e as duas mortes aconteceram no Estado de Kerala, no sul do país. Esse é o quarto episódio de infecções relacionadas a esse patógeno nesta região indiana desde 2018. Mas será que existe o risco de o vírus se espalhar para outros lugares e eventualmente chegar até o Brasil? Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a probabilidade de uma disseminação rápida do Nipah é pequena, ao menos por enquanto. Mesmo assim, é importante que as autoridades nacionais e internacionais fiquem em alerta, defendem eles. Fim do Matérias recomendadas "Atualmente, todos os casos relatados estão relacionados às regiões geográficas onde são encontrados morcegos que carregam o vírus. Por isso, o Brasil não tem um risco atual para a introdução do Nipah", diz a médica veterinária Helena Lage Ferreira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. O virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, pondera que o grande trânsito de pessoas e a globalização aumentam a probabilidade de vírus e outros patógenos viajarem de um canto do mundo ao outro — mas existem formas efetivas de lidar com o surto quando ele afeta uma região específica. "O mais importante está justamente em rastrear os pacientes e os contatos próximos deles, para evitar que uma pessoa com vírus se desloque para outros locais e crie novas cadeias de transmissão", aponta ele. Conheça a seguir os detalhes sobre o Nipah — e o que precisa ser feito para que ele não vire um problema de saúde pública ainda mais grave daqui em diante. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos últimos dias, escolas e escritórios foram fechados em algumas regiões no Estado de Kerala depois que cinco indivíduos testaram positivo para o vírus Nipah. As autoridades locais disseram na quarta-feira (13/9) que 706 pessoas foram avaliadas, incluindo 153 trabalhadores da área de saúde. Até o momento, foram confirmados cinco casos da infecção. Desses, dois indivíduos morreram e os outros três (incluindo uma criança) estão hospitalizados. Os pacientes foram identificados no distritito de Kozhikode, ao norte do Estado. As duas mortes ocorreram entre o final de agosto e o início de setembro. Pinarayi Vijayan, ministro-chefe de Kerala, pediu que as pessoas evitem aglomerações em Kozhikode pelos próximos dez dias. Ele ainda orientou que os moradores usem máscaras e só visitem hospitais em situações de emergência. Segundo Vijayan, não há motivo para pânico e todos os individuos que estiveram em contato com as vítimas estão sendo observados. O nome Nipah, aliás, vem da vila malaia onde o vírus foi isolado há 24 anos. O patógeno pertence à família dos paramixovírus, a mesma da qual fazem parte os causadores da caxumba e do sarampo. Outro integrante do grupo é o Hendra, agente infeccioso emergente que também preocupa os cientistas. "Na natureza, o Nipah circula em morcegos frugívoros que vivem principalmente na Ásia, mas também são encontrados na Indonésia e na Austrália", explica Spilki. A transmissão do Nipah para seres humanos acontece por meio do contato direto com os morcegos, bem como com os fluidos corporais deles (saliva, urina) ou por contato com as fezes. Outra forma de transmissão se dá pelo consumo de alimentos contaminados pelo animal. Há casos registrados da doença que ocorreram depois que os pacientes comeram frutos crus ou tomaram a seiva de palma que apresentava material orgânico advindo dos morcegos. Outras vítimas frequentes do Nipah são os suínos. E o vírus pode ser passado de porcos infectados para seres humanos. A transmissão de pessoa para pessoa também é possível. "Indivíduos que têm contato com esse vírus podem apresentar sintomas graves, como problemas respiratórios e encefalite [inflamação do cérebro]", resume Ferreira, que também é professora da Universidade de São Paulo (USP). "A letalidade chega a 70% entre os infectados", complementa ela. Para ter ideia, a covid-19 antes da disponibilidade de vacinas tinha uma letalidade que beirava os 3%. Já na gripe, causada pelo vírus influenza, essa taxa fica em 0,2 a 0,5%. Por ora, não existe imunizante ou remédio capaz de prevenir ou tratar a infecção pelo Nipah. "As vítimas recebem um tratamento de suporte, que tenta mitigar os sintomas conforme eles aparecem", acrescenta Spilki. Segundo a OMS, o tempo de incubação (período entre a invasão viral e o início dos sintomas) varia de 4 a 14 dias. Mas há casos registrados em que essa "espera" para o aparecimento dos incômodos levou até 45 dias. Entre os sintomas, a organização destaca que pacientes costumam apresentar inicialmente febre, dor de cabeça, dor muscular, vômitos e dor de garganta. "Isso pode ser seguido por tontura, sonolência, alteração de consciência e outros sinais neurológicos de uma encefalite", diz o texto. Alguns indivíduos ainda sofrem quadros de pneumonia e outros problemas respiratórios severos. Nos casos mais graves, a progressão para o coma leva entre 24 e 48 horas. Como mencionado anteriormente, o primeiro surto de Nipah aconteceu em 1999 numa fazenda de suínos na Malásia. À época, casos também foram identificados em Singapura. Para conter a crise antes que ela ganhasse proporções maiores, autoridades determinaram o sacrifício de mais de um milhão de porcos que viviam nas regiões afetadas, lembra a WOAH. A entidade destaca que o Nipah tem um "efeito zoonótico devastador". Dois anos depois, em 2001, o Nipah foi detectado em Bangladesh. Desde então, o país tem surtos com o patógeno praticamente todos os anos. A Índia é outro local que sofre com casos esporádicos. Desde 2018, o Estado de Kerala é acometido por episódios da doença. A OMS admite que outros países do Sudeste Asiático e da África apresentam risco de infecções pelo Nipah, uma vez que esse vírus foi observado em morcegos que habitam esses locais. É o caso de Camboja, Gana, Indonésia, Madagascar, Filipinas e Tailândia. Entidades apontam que o "pulo" do Nipah de morcegos para outras espécies pode estar relacionado com a destruição de recursos naturais pelo ser humano. "Talvez, como resultado do desmatamento, as criações de suínos na Malásia onde o surto se originou inicialmente possuíam algumas árvores frutíferas que atraíam os morcegos da floresta tropical, expondo assim os porcos domésticos à urina e às fezes contaminadas", especula a WOAH. Por ora, o risco de o Nipah se espalhar e se transformar em algo mais grave, como uma epidemia ou uma pandemia, é baixo, segundo os especialistas. Spilki destaca que a prevenção necessária para evitar esse cenário está em curso na Índia. "As autoridades indianas estão fazendo aquilo que foi realizado para lidar com os surtos anteriores: monitorar os casos e rastrear os possíveis contatos", destaca o virologista. "Para ter ideia, mesmo com duas mortes confirmadas até o momento, eles já testaram mais de 700 pessoas que tiveram algum contato direto ou indireto com as vítimas." "É justamente isso o que precisa ser feito para encontrar pessoas infectadas, para que elas sejam isoladas e devidamente atendidas. Isso evita a dispersão do vírus para outras regiões", conclui ele. Spilki ainda destaca que, além dessa ação local, é importante que as autoridades sanitárias e os governos de todo o mundo fiquem em alerta. "Principalmente para monitorar indivíduos que apresentam sintomas sugestivos e passaram pela região de surto", diz ele. O pesquisador aponta que o Brasil tem capacidade e estrutura para realizar essa contenção, se necessário. Lage concorda com a necessidade de manter um estado alerta por parte das autoridades, mas ressalta que o morcego que carrega esse vírus não está presente em nosso país — além disso, o fato de a transmissão de uma pessoa para outra não ser tão fácil assim representa um alívio. "Como fator de prevenção, aqueles que vão visitar áreas em que surto está ocorrendo devem sempre evitar contato com infectados", sugere ela. "Nesses locais, também é importante não comer frutas cruas ou outros produtos que possam ter contato com a saliva e as secreções dos morcegos", conclui a virologista.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1r5yp1p14lo
brasil
Porto de Mariel: com área 50% vazia, cubanos esperam ajuda de 'irmão' Lula para atrair empresas brasileiras
Às vésperas de completar dez anos do início de sua operação, a Zona Especial do Porto de Mariel está ao menos 50% vazia. É o que afirmou à BBC News Brasil a diretora-geral da área de 465 km2, Ana Teresa Igarza Martínez. Com capacidade para mais de cem empresas, apenas 44 estão instaladas ali e atuando em 100% de sua capacidade. Outras 20, estariam em diferentes etapas do processo de implantação. Projetado para ancorar navios do tipo New Panamax, que transporta até 12,5 mil contêineres de 6 metros de comprimento por viagem, o Porto de Mariel jamais recebeu uma embarcação desta envergadura em mais de nove anos de operação. Historicamente um ponto de onde milhares de cubanos se lançaram ao mar em todo tipo de barcos e botes para tentar escapar do regime comunista e chegar aos Estados Unidos, Mariel se converteu na maior obra de infraestrutura da história de Cuba nos anos 2010. Sua construção, feita pela empreiteira brasileira Odebrecht, contou com o financiamento de US$ 638 milhões do BNDES. Em plena capacidade operacional, o local prometia funcionar como um motor capitalista a sustentar o regime comunista cubano. Mas até hoje o complexo portuário de Mariel segue sendo uma promessa jamais inteiramente realizada. Fim do Matérias recomendadas Agora, com o retorno ao poder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem o governo cubano credita a viabilização da obra, Cuba estabeleceu a atração de empresários brasileiros para a zona especial de desenvolvimento de Mariel como uma estratégia primordial. Criada nos moldes das Zonas Econômicas Especiais da China, as ZEEs, a zona de Mariel prevê incentivos fiscais (como impostos zerados sobre mão de obra e sobre a produção nos dez primeiros anos), facilitações de infraestrutura, como o fornecimento de água e energia, e acesso fácil aos mercados do Caribe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2016, no auge do entusiasmo com o empreendimento, havia lista de centenas de empresas interessadas em se instalar ali graças à proximidade com o mercado consumidor americano. Naquele período, até mesmo o então presidente dos EUA Barack Obama autorizou a instalação de uma planta em Mariel de uma fábrica de tratores. Boa parte do entusiasmo se reverteu depois que a administração de Donald Trump voltou a apertar os torniquetes das sanções à Cuba. Sem poder produzir visando o mercado americano, boa parte das empresas - incluindo as brasileiras- desistiu da instalação em Mariel. “Sempre tratamos o Brasil como prioridade”, diz Martínez. Segundo ela, no entanto, na esteira dos processos políticos que retiraram Dilma Rousseff do poder e, mais tarde, com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro, tanto os políticos quanto a imprensa brasileira se tornaram “agressivos” à Cuba. Tempos que ela acredita estarem superados. Nesta semana, dois funcionários da Zona especial de Mariel desembarcaram em São Paulo, onde passarão alguns dias promovendo o Porto a empresários, especialmente os do setor agro-industrial, alimentar, petroleiro e energético. “Para o brasileiro, a decisão de investir agora se torna muito mais viável. Lembremos que há mais de cinco anos o BNDES não nos renova um empréstimo, que os financiamentos foram fechados, que os investimentos e as políticas mudaram, que houve maior controle sobre as saídas de capitais do Brasil e isso afeta a empresário brasileiro”, argumenta Martínez. De fato, desde o fim do governo Dilma, não houve renovação de empréstimos do banco de desenvolvimento brasileiro ao governo cubano. E a partir do segundo semestre de 2018, Cuba deixou de pagar as parcelas do financiamento conforme os contratos assinados entre 2009 e 2013. Por isso, a ilha foi incorporada a uma lista de inadimplentes, condição na qual o Conselho Cadastral do BNDES, responsável pela aprovação de crédito, tem por regra negar qualquer tipo de novo empréstimo. Segundo informado pelo BNDES à BBC News Brasil, a dívida atualizada de Cuba com o banco, contados os juros, chega a US$ 520 milhões - o equivalente a mais de R$ 2,5 bilhões. Questionada sobre as razões da inadimplência cubana, Martínez diz que o assunto foge ao seu escopo de atuação, mas demonstra esperança de que o banco brasileiro possa se tornar novamente uma fonte de recursos para o país. “Agora estamos em um momento melhor, com um amigo (Lula), até porque além de amigo ele é um irmão, alguém de quem gostamos, e há possibilidades dos empresários brasileiros retornarem a Cuba sem serem pressionados pelo governo em contrário. Acho que estamos no momento certo para fazer essa promoção, por isso nos esforçamos tanto no trabalho”, diz Martínez, enquanto avança os slides de uma apresentação de Power Point em língua portuguesa sobre o complexo de Mariel. Segundo ela, desde as eleições brasileiras de 2022, já repetiu a apresentação ao menos uma dezena de empresários brasileiros. Na semana passada, foi a vez do presidente da Apex, Jorge Viana, conhecer os slides. Questionado sobre qual o potencial de negócios e que empresários brasileiros estariam interessados em vir a Cuba, Viana não respondeu à BBC News Brasil até a publicação desta reportagem. Carlos Gabas, secretário-executivo do Consórcio Nordeste, foi outra das autoridades brasileiras que esteve recentemente em reunião com a diretora de Mariel. Martínez se nega a revelar os nomes dos empresários que disse ter recebido. Segundo ela, o embargo americano, que proíbe, por exemplo, que um navio atraque em qualquer porto nos EUA dentro de um período de 6 meses após atracar em Cuba, também inclui medidas de perseguição concorrencial às empresas que se instalam na ilha. Por isso, uma das cláusulas do contrato das empresas que se incorporam à zona de Mariel é o sigilo. O complexo não divulga as empresas que o compõem. Mas sabe-se que há ali a multinacional Unilever, a Nescor (associação da Nestlé com uma estatal cubana) e a espanhola Profood. O complexo divulga as nacionalidades das empresas que ali operam: são 17 espanholas, cinco vietnamitas, três italianas, três mexicanas. E somente uma, a BrasCuba, tem origem brasileira. Trata-se de uma associação entre a empresa de cigarros Souza Cruz e uma estatal cubana, a Tabacuba. Mas a Souza Cruz já atua em Cuba há 28 anos e apenas se transferiu para dentro da zona especial. Na prática, embora algumas companhias do Brasil tenham iniciado o processo de implantação, nenhuma nova empresa do país se instalou em Cuba após a conclusão do porto. Nos dias que antecederam a chegada de Lula ao país, nesta sexta, 16/9, veículos de imprensa cubanos ou hispânicos com circulação em Cuba, como a Rádio Havana e o Infobae, retrataram a expectativa de que a visita do presidente brasileiro represente uma nova leva de recursos a Cuba. Não há empresários na comitiva que parte hoje de Brasília. Mas assessores de Lula disseram à BBC News Brasil que o encontro com o líder cubano Miguel Diaz-Canel deve inaugurar uma renegociação da dívida com o BNDES. Não se trata de um perdão, mas de um “reescalonamento” para adequar o regime de pagamento a algo que Cuba possa cumprir. O país vive sua maior crise econômica desde a revolução comunista, de 1959, resultado do recrudescimento do embargo americano, da pandemia de COVID que derrubou o turismo na ilha, e da inflação de grãos e energia, que Cuba importa massivamente. “Aos cubanos interessa a renegociação e a retomada de pagamentos até para que possam pegar novos financiamentos”, disse à BBC News Brasil um diplomata brasileiro com conhecimento das negociações. Há dúvidas se uma mera formalização de renegociação entre os presidentes de Brasil e Cuba seria o suficiente para que o BNDES retirasse o governo cubano da condição de inadimplência e reabrisse linhas de crédito ao país. A BBC News Brasil consultou oficialmente o banco sobre isso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80y2grzpnqo
brasil
Os argumentos do STF para condenar 1º réu de 8 de janeiro a 17 anos de prisão
O STF (Supremo Tribunal Federal) condenou a 17 anos de prisão o primeiro dos réus julgados pela invasão e depredação dos prédios dos três poderes em 8 de janeiro. Preso em flagrante pela Polícia Legislativa no Senado após os atos em Brasília, o paulista Aécio Lúcio Costa Pereira, de 51 anos, foi condenado por 5 crimes: dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado, associação criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado. O tempo de cadeia foi proposto pelo ministro Alexandre de Moraes, que é relator do caso, e seu voto foi seguido na íntegra por sete ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin, Carmen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e a presidente da Corte, Rosa Weber. O ministro Cristiano Zanin acompanhou Moraes, mas sugeriu uma pena menor, de 15 anos. Já os ministros André Mendonça, Kássio Nunes e Luís Roberto Barroso votaram pela condenação por alguns dos crimes, mas não todos. André Mendonça e Kássio Nunes propuseram punições menos duras: 7 anos e 11 meses e 2 anos e meio, respectivamente. Fim do Matérias recomendadas Mendonça chegou a bater boca com Alexandre de Moraes quando questionou a segurança dos prédios públicos em Brasília, insinuando que a culpa pelas invasões teria sido do Ministério da Justiça comandado por Flávio Dino. Dos 17 anos de prisão aos quais foi condenado, Pereira deve cumprir 15 anos e seis meses inicialmente em regime fechado e mais 1 ano e seis meses em regime aberto. Ele também foi condenado a pagar uma multa de cerca de R$ 44 mil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pena de Pereira é maior do que alguns casos de homicídio qualificado - que pode ter condenação de 12 a 30 anos. O tempo atrás das grades e o valor da multa, no entanto, foram justificados pela maioria dos ministros por serem a combinação de penas dos cinco crimes pelos quais ele foi condenado. Os crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado são mais graves e, portanto, têm a possibilidade de punições maiores. Dos 17 anos: Para o relator do caso, Alexandre de Moraes, a pena se justifica porque as ações de Pereira no dia 8 de janeiro são extremamente graves. "Às vezes, o terraplanismo e o negacionismo obscuro de algumas pessoas faz parecer que no dia 8 de janeiro tivemos um domingo no parque", disse Moraes em seu voto. Ainda segundo ele, os atos foram "ações organizadas que se estenderam muito além do ingresso no edifício e não houve recuo, porque o objetivo era claro: obter uma intervenção militar, conseguir o golpe de Estado e derrubar o governo democraticamente eleito". Para o ministro, o réu participou de "concerto criminoso voltado a aniquilar os pilares essenciais do Estado Democrático de Direito, mediante violência e danos gravíssimos ao patrimônio". Os outros ministros - com exceção de Kássio Nunes e André Mendonça - concordaram com Moraes em relação à alta gravidade dos crimes cometidos por Pereira. Mesmo Barroso e Zanin, que não concordaram totalmente com o relator, reiteraram a gravidade dos atos cometidos. Zanin votou por condenar Pereira pelos 5 crimes, mas com uma pena de 15 anos. O ministro disse que é evidente que o réu "não entrou no Senado para um passeio, mas ingressou junto com a multidão que, com agressão física e patrimonial, buscava a destituição de um governo legitimamente eleito". Barroso votou por uma pena de 11 anos e pela condenação por 4 crimes - segundo o ministro, condená-lo por tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta seria puni-lo duas vezes pelo mesmo crime - algo conhecido no direito como bis in idem (duas vezes o mesmo, em latim). "Não tenho dúvida de que houve tentativa de golpe. (O réu) aderiu ao movimento que entrou de modo clandestino dentro do Congresso Nacional e fez discurso conclamando a população a ir às ruas por intervenção militar", disse Barroso. A fala pedindo por intervenção militar foi gravada pelo próprio Pereira em seu celular, que registrou boa parte de sua participação na invasão do Congresso. O julgamento mostrou que os ministros - com exceção de Kássio Nunes e André Mendonça - transcenderam suas diferenças "diante da destruição física e da ameaça de destruição institucional do tribunal", na análise do cientista político Rogério Arantes. "Os dois bolsonaristas demonstraram não ter essa mesma disposição", escreveu Arantes no X (antigo Twitter). A defesa de Pereira - feita pelo advogado Sebastião Coelho - argumentou que ele estava em uma "manifestação pacífica", exercendo seu direito à liberdade de expressão. Coelho também está sendo investigado por suspeita de incentivar e financiar atos antidemocráticos. Como ele é desembargador aposentado e teria cometido os crimes quando ainda exercia a magistratura, o caso está sendo investigado pelo CNJ (Conselho Nacional Justiça), que fiscaliza o Poder Judiciário. As teses da defesa foram rejeitadas pelo Supremo. Moraes afirmou que ficou claro que houve violência e que a liberdade de expressão não autoriza a violência e atentados contra a democracia. "Não existe aqui liberdade de manifestação para atentar contra a democracia para pedir ato institucional número 5, para pedir a volta da tortura, para pedir a morte dos inimigos políticos, os comunistas, para pedir intervenção militar. Isso é crime", disse Moraes Coelho havia usado seu tempo de fala na quarta (13) para atacar os ministros do STF, dizendo que eles são “as pessoas mais odiadas do Brasil”. Em seu voto nesta quinta-feira (14/09), Cármen Lúcia afirmou que é a democracia que garante que ele possa expressar essa opinião diante dos ministros do Supremo. "Bendita democracia que permite que alguém que, mesmo nos odiando, possa, por garantia dos próprios juízes, vir e dizer a eles sobre isso", afirmou a ministra. Embora façam parte do mesmo processo, cada um dos réus julgados pelos atos antidemocráticos tem as acusações analisadas individualmente pela Corte. Aécio Pereira foi o primeiro dos 1.345 réus no processo - a grande maioria dos casos não será decidida no plenário do Supremo. Os próximos a serem julgados devem ser os entregadores Matheus Lima de Carvalho Lázaro e Moacir José dos Santos, e o engenheiro florestal Thiago de Assis Mathar.
2023-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cedgp3jw5wgo
brasil
Danilo Cavalcante: como polícia americana capturou fugitivo brasileiro sem disparar um tiro
Sem nenhum disparo e sem nenhum agente ferido, o brasileiro Danilo Cavalcante, de 34 anos, condenado à prisão perpétua nos Estados Unidos, foi finalmente capturado na quarta-feira, encerrando uma megaoperação que envolveu diversas forças policiais e durou duas semanas. O desfecho positivo do caso contrasta com as estatísticas de violência policial nos Estados Unidos. A polícia americana, assim como a brasileira, é considerada uma das mais violentas do mundo. Fim do Matérias recomendadas Vale lembrar, contudo, que a polícia brasileira é também uma das que mais sofre com a violência. No ano passado, 173 perderam a vida. Já na Inglaterra e no País de Gales, a polícia matou apenas três pessoas no biênio 2022/2023. As polícias brasileira e americana também têm outra semelhança: o perfil da vítima. Em ambos os países, negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cavalcante foi encontrado graças à tecnologia de detecção de calor e chegou inicialmente a resistir à prisão. A polícia soltou um cachorro chamado Yoda, um pastor-belga-malinois. O animal mordeu e imobilizou o fugitivo até os policiais se aproximarem e algemarem o brasileiro. Havia tensão em relação ao desfecho porque os agentes estavam autorizados a usar força letal se Cavalcante não se rendesse voluntariamente. A polícia havia informado que ele estava armado e era "extremamente perigoso". Questionado por que a força letal não foi usada, o tenente-coronel George Bivens, da Polícia Estadual da Pensilvânia, disse a jornalistas em entrevista coletiva nesta quarta-feira que "essa opção serve apenas para evitar a fuga de um indivíduo muito perigoso." Segundo ele, o uso do cão policial, chamado em inglês de K-9, foi primordial para que os agentes não empregassem a força letal. "Os K-9 desempenham um papel muito importante, não só para rastrear, mas também para, tal como numa circunstância como esta, capturar alguém com segurança. É muito melhor que possamos libertar um cão policial como este e fazê-los subjugar o indivíduo do que usar força letal", disse Bivens. "Nossa preferência é sempre utilizar outros meios. Os K-9 desempenham um papel muito importante." Segundo Bivens, o cão foi trazido pelo Serviço de Alfândegas e Proteção das Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, em inglês). A equipe do CBP libertou o cachorro enquanto outros policiais da Polícia Estadual da Pensilvânia cercavam Cavalcante, disse Bivens na entrevista coletiva. "O cachorro o subjugou e os membros de ambas as equipes imediatamente avançaram. Ele continuou a resistir, mas foi levado sob custódia à força. Ninguém ficou ferido como resultado disso", disse Bivens. "Ele sofreu um pequeno ferimento por mordida. Tínhamos pessoal médico no local e eles analisaram isso", acrescentou. Os cães policiais são treinados para deter um indivíduo, disse Bivens, para não causar danos desnecessários. O objetivo é que os policiais dêem um comando ao cão, para que o cão possa recuar e os agentes avancem para prender o indivíduo. "Eles não ficam apenas mordendo e soltando ou tentando causar ferimentos adicionais. Eles simplesmente agarram e tentam manter a pessoa no lugar até que os policiais possam chegar lá", disse Bivens. "É por isso que eles nunca são soltos, você sabe, a uma grande distância ou sem supervisão. Há policiais por perto que podem então se mover. O treinador pode puxar o cão imediatamente para trás se eles lhe derem um comando, puxar o cão para trás e então os oficiais [se moverem]".
2023-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1r52193r4xo
brasil
Danilo Cavalcante: brasileiro foragido nos EUA é capturado após duas semanas de busca
O homem de 34 anos cumpria pena de prisão perpétua pelo assassinato de sua ex-namorada na prisão do condado de Chester, 50 quilômetros a oeste da Filadélfia. Imagens que circulam nas redes sociais mostram o brasileiro algemado com as mãos para trás sendo conduzido por policiais a uma viatura blindada. Cavalcante aparece caminhando nas imagens. A polícia ainda não informou se ele reagiu à prisão e se está ferido. Imagens das TVs locais mostram uma pilha de lenha e pedaços de madeira onde o brasileiro teria sido encontrado pelos policiais. Deb Ryan, equivalente a um promotor distrital do condado de Chester, diz que uma das primeiras ligações feitas após a captura foi para a família de Débora Brandão, mulher assassinada por Danilo. Fim do Matérias recomendadas Ele foi encontrado por um detector de calor instalado em uma aeronave da polícia. As equipes perceberam a movimentação do brasileiro e passaram a segui-lo até encontrá-lo por volta das 8h do horário local (9h do horário de Brasília). Quando a patrulha se aproximou do brasileiro, ele tentou se rastejar pela vegetação, mas a polícia soltou um cachorro. O animal mordeu e imobilizou o fugitivo até os policiais se aproximarem e algemarem Cavalcante. O brasileiro recebeu tratamento médico no local por conta da “mordida leve” e foi transportado para a prisão. Os policiais disseram que ele será automaticamente transferido para uma penitenciária “onde cumprirá sua prisão perpétua”. Imagens exibidas pela rede americana ABC mostram dezenas de pessoas filmando a passagem do comboio pelas ruas da Pensilvânia. A captura “acaba com o pesadelo das últimas duas semanas”, disseram os policiais do condado de Chester em um comunicado que agradece os agentes envolvidos na busca. Os policiais disseram ainda que “fizeram algumas mudanças imediatas para reforçar a segurança na prisão”, inclusive no pátio de exercícios onde Cavalcante iniciou sua fuga, e que irão melhorar a “comunicação com os residentes que vivem perto da prisão”. A polícia do Estado da Pensilvânia fornecerá detalhes da captura em uma coletiva de imprensa às 10h30 (horário de Brasília). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A caçada ao brasileiro envolveu mais de 500 agentes municipais, estaduais e federais, além de helicópteros e drones. Cavalcante, que foi condenado por assassinato de sua ex-namorada, Débora Brandão, em 2021, escapou da prisão do condado de Chester, em West Chester, no estado americano da Pensilvânia, na manhã do dia 31 de agosto. Ele escalou paredes separadas por um corredor de 1,5 metro de largura. Sua fuga viralizou nas redes sociais e virou notícia ao redor do mundo. Cavalcante foi visto diversas vezes desde então, por testemunhas e por câmeras de vigilância. A polícia também chegou a impor um toque de recolher em partes da cidade de East Nantmeal enquanto revistava a área, informou a emissora americana CBS, parceira da BBC nos Estados Unidos. Um morador disse que disparou contra Cavalcante, quando ele invadiu sua casa e roubou um rifle calibre 22. Segundo a polícia, o brasileiro viu a arma dentro de uma garagem aberta e aproveitou a oportunidade para roubá-la. Cavalcante foi flagrado sem camisa e usando calças azuis. O condado de Chester tinha aumentado a recompensa em US$ 5 mil na segunda-feira por qualquer informação que levasse à prisão de Cavalcante, elevando o valor total para US$ 25 mil, disse Bivens. Inicialmente, esse valor era de US$ 10 mil e já havia sido elevado para US$ 20 mil. Cavalcante roubou no sábado (9/9) uma van, que as autoridades descobriram abandonada em East Nantmeal Township mais tarde naquela noite, disse Bivens em entrevista a jornalista na tarde de domingo (10/9).
2023-09-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz70218d023o
brasil
Jesus motivacional: quem são os 'coaches evangélicos'
O escritor Tiago Brunet se define como "treinador de líderes", "mentor de grandes personalidades" e "especialista em pessoas". Ele tem seu próprio método de treinamento e vende cursos e palestras sobre liderança e aperfeiçoamento pessoal, para ensinar as pessoas a terem uma "vida de paz e prosperidade". Morador da Flórida, nos EUA, ele cobra R$ 2.977 reais pelo curso presencial de três dias em São Paulo. Mas ele não é um coach típico: Tiago é evangélico e seu método de treinamento é todo baseado em princípios religiosos cristãos. Em seu site, o consultor define seu curso como "o primeiro 100% baseado em princípios milenares.” Um dos três pilares do seu método, por exemplo, gira em torno da fé e de como ter "acesso à vida eterna", de como "agradar e Deus" e "ter uma relação íntima com Deus". Com 6,3 milhões de seguidores, Tiago faz parte de um grupo de influenciadores evangélicos que se diferencia de outros religiosos famosos nas redes sociais porque privilegia temas que poderiam facilmente ter saído de um livro de autoajuda. São os "coaches evangélicos": youtubers, cantores e pastores com pregações e conteúdo essencialmente motivacional. Fim do Matérias recomendadas Muitos não se definem como "treinadores" nem oferecem cursos pagos, mas fazem uso frequente de palavras como "autoconhecimento", "metas" e "superação". Quem descreve esse nicho dentro do universo cristão nas redes é a pesquisa Radar Evangélico, feita pela consultoria nosotros, que mapeou os 44 maiores influenciadores evangélicos do Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muitos deles são praticamente desconhecidos por quem não é protestante, explica o antropólogo Juliano Spyer, coordenador do estudo e fundador da nsotros; mas grandes celebridades no meio evangélico. Acumulam seguidores, mobilizam a atenção dos religiosos e pautam temas que ocupam a mente de milhões de brasileiros. Cerca de 30% deles têm um conteúdo que os coloca no grupo dos "coaches evangélicos", segundo a pesquisa. Há também os pregadores que a análise categoriza como mais políticos. Eles promovem nomes de direita e conservadores e fazem pressão para influenciar políticas públicas — eles são 25% dos maiores produtores de conteúdo protestante. E a maioria (45%) são os devocionais, que falam sobre religião em si, valores e orações. Nesse grupo, predominam "cantores e cantoras gospel que se fazem presentes em muitas igrejas a partir de hinos e louvores", diz o estudo. Para chegar a essa divisão, os pesquisadores usaram um método chamado Análise de Redes Sociais (ARS), que combina Matemática, Sociologia e Ciência de Dados. Os dados dos principais influenciadores evangélicos alimentaram um programa que mapeia as conexões entre eles e os grupos nos quais as pessoas estão densamente interligadas, explica Spyer. A partir dos resultados, os pesquisadores analisaram o que existe em comum entre os religiosos de cada grupo, ou seja, quais os temas prevalentes e comuns entre eles. Um dos maiores nomes citado pelo estudo é o youtuber Deive Leonardo, que tem 14,7 milhões de seguidores em sua rede social mais seguida — comparável ao número de seguidores do economista e ex-BBB Gil do Vigor, por exemplo. Diferentemente de Tiago Brunet, Deive Leonardo não se define como treinador e se apresenta somente como pregador religioso. No entanto, a análise do seu conteúdo pelo Radar Evangélico o coloca no mesmo grupo que Tiago. Deive faz pregações sobre temas como ansiedade, controle de emoções e processos de tomada de decisões. No vídeo de abertura de seu canal, ele fala como "abraçar cada etapa" e "cultivar uma mentalidade de crescimento", como "aceitar falhas como parte do caminho" e "exercitar o autoconhecimento". Esse tipo de vocabulário motivacional não é estranho ao ambiente religioso, explica o antropólogo Juliano Spyer, da nosotros. A novidade é uma espécie de "especialização" nesse tema da superação. "A gente já conhece a relação entre igreja e bem estar, igreja e saúde mental. O que a gente vem percebendo é uma especialização nesse assunto motivacional, como se ele emergisse a partir de um espaço mais complexo, que é a religião." "Ou seja, deixar de lado a questão mais teológica da religião — por exemplo, analisando versículos bíblicos — para escolher um determinado grupo de temas que falam especificamente sobre 'metas' ou sobre a melhora da situação financeira", explica o pesquisador. Em seu livro Colocando a Vida em Ordem (Editora Vida), por exemplo, Deive Leonardo propõe um caminho para o leitor organizar todas as áreas de sua vida e encontrar um propósito para ela em apenas 31 dias. "Somente os que não desistem mudam a história. Você só será lembrado e deixará um legado consistente nesta terra se não abandonar sua missão", escreve ele em um trecho do livro. A BBC Brasil tentou contato com Deive Leonardo e Tiago Brunet, mas não teve resposta. A semelhança dos influenciadores evangélicos mais motivacionais com coaches de sucesso profissional não é coincidência. De acordo com a análise de Spyer, os influencers que podem ser colocados no grupo dos "coaches", em geral, são mais ligados ao mundo empresarial e identificados com a teologia da prosperidade. A teologia da prosperidade é um conceito usado para falar sobre as igrejas que, influenciadas pelo televangelismo americano, têm como algo central a associação da religiosidade com conquistas materiais e melhoras no estilo de vida. Ele foi pesquisado no Brasil por nomes como o professor da USP Ricardo Mariano. "Às vezes, olhando de fora, as pessoas julgam esse grupo de igrejas de uma maneira muito cruel por conta da relação com dinheiro", afirma Spyer. "Mas é importante prestar atenção no quanto essa prosperidade está apresentada no sentido amplo: prosperidade familiar, no relacionamento entre as pessoas; prosperidade no sentido de ter acesso a bens ou serviços como planos de saúde, lazer." Ou seja, o ganho de patrimônio seria uma consequência ou uma espécie de recompensa por seguir uma série de preceitos e também permitiria que os seguidores sejam cristãos melhores, na visão do antropólogo. Como em outros grupos "temáticos" de influenciadores, entre os produtores de conteúdo mais motivacional as mulheres têm um papel de destaque. A atriz Bruna Hamú (que foi do elenco de Malhação), por exemplo, dá "dicas práticas" de como "encontrar o seu propósito" e fala em "superação de limites". A BBC tentou contato com ela, mas não teve resposta. Outros nomes citados pela pesquisa são as cantoras Gabriela Rocha e Priscilla Alcântara. O estudo também aponta que, nas redes sociais, os protestantes mais conhecidos fora do campo evangélico não são os mais importantes no meio religioso. "Quando se pensa em evangélicos, as pessoas pensam em nomes como Silas Malafaia, Edir Macedo ou Marco Feliciano como 'porta-vozes' da comunidade. Mas nossa análise mostra que, na verdade, essas figuras polêmicas estão de certa forma isoladas — têm bastante seguidores, mas não estão interconectadas com a rede mais ampla de comunicação", afirma Spyer. O deputado Marco Feliciano (PL-SP), por exemplo, é bastante "isolado": ele tem apenas 12 conexões que ligam seu perfil aos outros 44 influenciadores com mais de 2 milhões de seguidores. Já na outra ponta, a cantora e pastora Eyshila tem 66 conexões com outros influenciadores. Embora ela não tenha o maior número de seguidores (4,4 milhões), sua rede de contatos a coloca em uma das posições mais influentes. Ela é membro Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a mesma igreja de Silas Malafaia, mas tem um perfil bem diferente do pastor nas redes. Enquanto ele se encontra no grupo dos que fazem conteúdo político, Eyshila tem um perfil "devocional" e diplomático, evitando polarização e polêmicas. “A grande surpresa do estudo é o tamanho e a influência de produtores de conteúdo como o Deive Leonardo e Eyshila, que são enormes dentro da comunidade evangélica, mas praticamente desconhecidos fora dela", diz Spyer.
2023-09-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n879prr6do
brasil
Bolsa Família, 20 anos: 'Meus pais foram beneficiários, hoje sou engenheiro de software'
"Na nossa família, o ciclo de pobreza estrutural foi quebrado. Mas não foi fácil. Quando paro para pensar na minha história, sei o quanto de tempo levou para isso acontecer. Não é trivial, de maneira alguma", diz Dener Silva Miranda, de 31 anos e morador de Parnaíba, no Piauí. Dener é engenheiro de software e trabalha à distância para uma empresa de Los Angeles, nos Estados Unidos. A irmã dele, Vitória, de 23 anos, atualmente estuda Medicina em São Paulo com uma bolsa do Fies, programa de financiamento estudantil do governo federal. Não seria nada demais, se Dener e Vitória fossem filhos da classe média brasileira, mas esse não é o caso. Ou não era o caso na infância dos dois, no início dos anos 2000, quando a família de Dener e Vitória recebeu o Bolsa Escola e fez parte da primeira geração de beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda que completa 20 anos em outubro de 2023. Daquela primeira geração, apenas 1 em cada 5 filhos de beneficiários do programa continuava recebendo o Bolsa Família 14 anos depois, segundo levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social publicado em abril de 2022 (veja mais detalhes sobre o estudo abaixo). Dener e a irmã fazem parte do grupo de "filhos do Bolsa Família" que conseguiu deixar o programa na vida adulta. A BBC News Brasil ouviu também a experiência de quem precisou voltar a receber o benefício. Fim do Matérias recomendadas As trajetórias dessas famílias sugerem que a saída permanente da pobreza depende da combinação da transferência de renda com uma série de fatores, incluindo um conjunto maior de políticas públicas. "Dos meus avós, só um foi alfabetizado. Minha mãe estudou até a quarta série e meu pai nunca concluiu o ensino médio", conta Dener. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pernambucana Luzinete e o maranhense Francisco foram para São Paulo nos anos 1980, lembra o filho do casal. "Eles foram naquela última grande leva de imigrantes nordestinos – minha mãe, aos 15 anos, para ser empregada doméstica. E meu pai um pouco mais tarde, aos 18 anos, e foi lixeiro, porteiro, mecânico e operário industrial, mas sempre com vontade de voltar ao Nordeste." Depois de uma primeira tentativa fracassada, Luzinete e Francisco se instalaram em Parnaíba, no Piauí, no fim dos anos 1990, ela para trabalhar como cabeleireira e ele, como mecânico de motos. "Minha mãe cortava cabelo e cobrava R$ 2 por corte, mas tinha dia que cortava três, quatro cabelos, e tinha dia que não cortava nenhum, então não tinha uma estabilidade de renda", lembra Dener, observando que a situação do pai, como mecânico autônomo, era similar. "Foi quando surgiu o Bolsa Escola, ali em 2001, e a gente começou a receber esse benefício, que na época era de R$ 15", recorda. Criado durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o valor do benefício do Bolsa Escola era pago por criança entre 6 e 15 anos (até um máximo de R$ 45), às famílias com renda abaixo de R$ 90 por pessoa, com a contrapartida de manutenção das crianças na escola. Em 2003, logo no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a família passou a receber o Bolsa Família, lembra Dener. O Bolsa Família reuniu num só benefício quatro programas de transferência de renda do governo FHC (Bolsa Escola, Vale Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação). Inicialmente, o programa previa um benefício básico de R$ 50 para famílias com renda por pessoa de até R$ 50 e um benefício variável de R$ 15 (também até um limite de R$ 45) para famílias com crianças com renda per capita até R$ 100. "O Bolsa Família deu para a nossa família, naquele tempo, uma estabilidade, pelo menos para o básico do básico. Não salvava o mundo, obviamente, mas você sabia que tinha aquilo ali, que você ia receber e ir mantendo as coisas girando", diz o filho de beneficiários. Mas a vida não era fácil. Dener lembra, por exemplo, que nessa época recebeu uma bolsa parcial para estudar em uma escola privada, mas não havia dinheiro para o lanche. "Eu ficava com vergonha, e minha mãe usava o dinheiro do Bolsa Família para pagar parte da mensalidade da escola. Acho que era R$ 50 à época, mas eu sentia que esse dinheiro fazia falta", conta o hoje engenheiro de software. "Então pedi para eles me colocarem na escola pública, porque isso resolveria dois problemas – eles ficariam com o dinheiro e a escola pública tinha merenda, então eu não ia mais ter esse problema de ficar com fome às vezes durante as aulas." Assim, Dener estudou a maior parte do ensino fundamental em escola pública. Já a irmã mais nova, Vitória, num momento em que a vida da família já estava um pouco melhor, estudou no Sesi (Serviço Social da Indústria) e em escolas particulares de Parnaíba. "Recebemos o Bolsa Família até 2006 ou 2007, daí o Brasil começou a dar aquela melhora econômica, a atividade aqui em Parnaíba melhorou bastante e meus pais começaram a melhorar de vida." Dener conta que lembra quando a assistente social visitou a casa da família na época da renovação do benefício, e sua mãe disse a ela que não precisaria mais do auxílio. Mas, segundo ele, a "grande virada" para a família veio quando o pai se tornou professor de mecânica de motos do Pronatec, programa de estímulo ao ensino técnico criado durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT). Em 2007, Dener começou a estudar numa escola técnica estadual e depois foi inaugurado o Instituto Federal do Piauí em Parnaíba, onde ele também foi aluno e bolsista, e teve acesso a professores de programação com mestrado e doutorado. Com a expansão das universidades públicas, ele foi o primeiro da família ir para a faculdade, estudando Ciência da Computação na Universidade Federal do Ceará (UFC), e teve a experiência de ser bolsista no exterior pelo programa Ciência sem Fronteiras. Aos 23 anos, pouco mais do que a idade do programa Bolsa Família, Vitória segue o mesmo caminho, estudando Medicina em São Paulo graças a uma bolsa do Fies. "Eu sempre gosto de pontuar uma coisa: o Bolsa Família não veio sozinho, ele foi apenas uma das ferramentas empregadas na época", diz Dener. "Então se você olha o programa de transferência de renda e pensa que apenas ele resolve a situação, não resolve. Porque a transformação social e a saída da pobreza crônica exigem investimento em educação, em infraestrutura, em várias áreas." O que Dener conclui a partir da trajetória de sua família, o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), fundado pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner, constatou em uma série de estudos sobre o destino dos filhos de beneficiários do Bolsa Família publicados no ano passado e neste ano. Esses estudos mostram que 64% dos beneficiários dependentes de 7 a 16 anos do programa Bolsa Família em 2005 não se encontravam mais no Cadastro Único 14 anos depois, em 2019. Naquele ano, essas pessoas tinham entre 21 e 30 anos. Da parcela que permanecia no Cadastro Único (registro do governo das famílias de baixa renda do país), 20% continuavam recebendo o Bolsa Família no início da vida adulta, enquanto outros 14% constavam do cadastro, mas não recebiam o benefício – ou seja, conjunturalmente estavam acima da "linha de pobreza", mas ainda sob risco de voltar a ela a qualquer momento. Os dados revelam que a crítica de que o Bolsa Família criaria dependência para as famílias beneficiárias não se sustenta na prática, com a maioria encontrando a "porta de saída". Os estudos também mostram que 45% desses jovens acessaram o mercado de trabalho formal pelo menos uma vez entre 2015 e 2019, com esse acesso sendo mais frequente entre homens (51%) do que mulheres (39%) e entre brancos (55%) do que negros (45%) ou indígenas (31%). O nível de escolaridade dos pais também influencia, com o acesso ao mercado de trabalho mais frequente entre os filhos de pais com ensino médio completo (51%), do que entre aqueles com pais com os anos iniciais do ensino fundamental incompletos (38%), por exemplo. "A taxa de saída do Cadastro Único nos leva a entender que as condicionalidades do programa surtiram efeito, ou seja, a manutenção da criança na escola e os cuidados com sua saúde permitiram que essas crianças acumulassem capital humano que lhes garantisse um emprego formal que lhes tirasse da pobreza, embora um choque como a pandemia possa jogá-los novamente nessa condição", observa Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS. É um bom resultado, observa o economista, mas há determinantes que facilitam que as crianças beneficiárias consigam alcançar um emprego formal com uma renda suficiente para tirá-las da pobreza na vida adulta. Um desses elementos são as condições locais de onde estão essas crianças. "As crianças beneficiárias de municípios com melhor infraestrutura – com boa oferta de escolas, equipamentos públicos como praças, bibliotecas, centros de saúde – têm probabilidade de sair da pobreza bem maior." Outro fator são as condições familiares. Os "filhos do Bolsa Família" de famílias chefiadas por mulheres sem a presença masculina têm desempenho pior, em relação aos filhos de famílias com dois adultos. Isso acontece pois as mães sozinhas têm uma renda mais baixa e maior dificuldade de conseguir empregos que garantam a elas uma autonomia e permita-lhes investir nos filhos. "Se há boas pré-condições, que permitam a ascensão dessa criança e, além disso, você amplia as possibilidades de formação superior dela quando jovem adulto, isso amplia o horizonte dessas crianças. São políticas que vão muito além do Bolsa Família, complementares", diz Tafner. "O Bolsa Família em si tem um mérito de aliviar a pobreza no curto prazo, mas ele sozinho não é suficiente para tirar a criança do ciclo da pobreza, são necessárias outras políticas públicas." Roberto Calvelo, de 23 anos, é parte do outro grupo de "filhos do Bolsa Família" da primeira geração: aqueles que continuam como beneficiários do programa no início da vida adulta. Roberto conta que foi a única testemunha ocular do assassinato do pai, quando tinha quatro anos. O crime aconteceu na porta da casa da família, na entrada da favela da Tieta, região central de Fortaleza, no Ceará. "Minha infância foi bem complicada por essa questão do meu pai, que partiu de maneira trágica quando eu era muito pequeno", lembra ele. Após a morte do pai, a mãe ficou responsável pela criação dos dois filhos e pelos cuidados com o avô de Roberto, um idoso com a saúde debilitada após alguns AVCs (acidentes vasculares cerebrais). "Minha mãe, por conta dessa situação do meu avô, nunca conseguiu trabalhar fora de casa, e acabou se privando de muitas coisas da vida", afirma, lembrando ainda que a mãe engravidou do primeiro filho – o irmão mais velho de Roberto, hoje policial militar – aos 17 anos. Nesse cenário, a renda da família de quatro pessoas era composta à época apenas da aposentadoria do avô, em grande parte destinada à compra de remédios para o idoso, e do Bolsa Família. "Eu pequeno, não tinha essa perspectiva da importância do programa. Eu sabia que aquilo ajudava a gente, que tinha o dia de ir na Caixa sacar, mas o impacto desse dinheiro eu só fui perceber com o decorrer do tempo, quando vi que minha mãe tirava uma parte do valor para pagar o curso." O curso era de técnica de enfermagem, profissão que a mãe de Roberto exerce até hoje. "O Bolsa Família deu uma profissão à minha mãe", resume o jovem, lembrando que a primeira vez que ele comeu pizza na vida também foi com o dinheiro do programa. "Eu não consigo imaginar o que seria [de nós] sem aquela ajuda que muitos chamam de 'esmola'. Para quem recebe uma grana, o valor é pequeno, mas para nós foi determinante para minha mãe ter a profissão que tem até hoje." A família deixou o Bolsa Família quando a mãe de Roberto passou a trabalhar de madrugada como cozinheira num albergue da prefeitura, enquanto durante o dia terminava o curso. Em 2013, desempregada e em meio a um relacionamento abusivo, ela acabou voltando ao programa, mas conseguiu sair novamente ao voltar a trabalhar em hospital, seguindo fora do programa até hoje. Com a melhora de vida da mãe, Roberto e o irmão foram a primeira geração da família a entrar no ensino superior – assim como Dener e Vitória, no Piauí. O irmão mais velho de Roberto cursou Filosofia na UFC, fez pós-graduação e chegou a começar uma segunda graduação em Letras, até passar num concurso para a Polícia Militar de Alagoas, onde atualmente é tenente. Já Roberto começou uma graduação em Administração numa universidade privada, mas acabou trancando o curso no quinto semestre. Ainda no ensino médio, ele começou a trabalhar como bancário e seguiu trabalhando no setor financeiro até ficar recentemente desempregado. Casado, pai de duas filhas e até há pouco morando com os sogros, viu sua família novamente dependendo do Bolsa Família na vida adulta. "A ideia do programa era que as pessoas utilizassem, ascendessem e saíssem, e isso de fato aconteceu com muita gente – eu puder ver isso acontecer com a minha família. Mas faço um paralelo entre a minha história e a do Brasil – da mesma forma que, junto com o Brasil, a gente saiu da fome e desse processo de miséria, a gente junto com o Brasil também voltou", diz Roberto. "Acho que essas idas e vindas têm muito mais a ver com a situação política do país do que com o sucesso ou não do programa. Mas o aumento do valor [para R$ 600 mais benefícios variáveis] tem sido uma mão na roda." Para Laura Müller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, casos como o de Roberto, um "filho do Bolsa Família" que se viu de volta ao programa na vida adulta num momento de desemprego, não denotam um "fracasso" do auxílio. "Sempre vai ser necessário um programa de assistência de renda focalizado para quem mais precisa, é normal as pessoas precisarem [do benefício] em caráter temporário ao longo da vida." Machado lembra ainda que o valor de R$ 175 bilhões atualmente destinado ao programa é sem precedentes na história, vindo de um orçamento que antes era de cerca de R$ 30 bilhões. "Agora, em diversos outros aspectos, eu acho que andamos para trás", avalia a pesquisadora, sobre o novo desenho do programa após seu relançamento, depois do breve hiato em que a transferência condicionada de renda tornou-se "Auxílio Brasil" sob o governo de Jair Bolsonaro (PL). "As pessoas que deixaram o programa, como mostram as pesquisas, conseguiram por conta própria, mas o Bolsa Família não é orientado para tal. Então precisaríamos, junto à transferência, fazer algo como o Chile e o Paraná já fazem, que é ter uma orientação para a superação da vulnerabilidade." Machado também avalia que, ao determinar uma transferência de R$ 600 para todos, sem considerar o que a família já recebe através do trabalho, o Bolsa Família atualmente tem um resultado desigual para as famílias. Além disso, com a faixa de corte de renda de R$ 218 por pessoa para ser elegível ao programa, uma família que recebe R$ 216 por pessoa tem direito ao benefício de R$ 600, mas uma que recebe R$ 219 não teria direito a nada – outro fator de desigualdade. Para corrigir essas distorções, Machado defende um modelo similar ao do Benefício de Superação da Pobreza da época do governo Dilma Rousseff, que previa a complementação de renda das famílias até um certo patamar. Essa seria também, na visão da pesquisadora, uma forma de incentivar mais beneficiários a trabalhar, já que o afastamento do mercado de trabalho por períodos longos gera impactos negativos de longo prazo. Uma mudança feita nesse sentido na nova versão do Bolsa Família foi a introdução da chamada Regra de Proteção, que estabelece que, mesmo elevando a renda a partir da conquista de um emprego, ou pelo empreendedorismo, a família beneficiária não precise deixar imediatamente o programa. Em julho deste ano, por exemplo, das 20,9 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família, 2,18 milhões estavam na Regra de Proteção, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Machado também defende uma melhor focalização do programa nas famílias com crianças e o pagamento de um bônus para as famílias que se engajassem no programa de superação da pobreza por ela defendido. "Hoje o programa desincentiva a pessoa a declarar uma renda do trabalho – se ela declara, pode perder o benefício inteiro. Então precisamos que isso mude e que essas famílias sejam acompanhadas com um plano claro", afirma, defendendo um uso mais intensivo de tecnologia no processo de cadastro de beneficiários, para liberar as assistentes sociais para esse acompanhamento. É preciso visitar as famílias e entender os motivos da pobreza, diz Machado. "Tem mãe que não tem creche, têm famílias que não conseguem trabalhar porque têm um idoso que requer cuidado integral, têm pessoas de mais idade cuja profissão desapareceu e elas precisam de uma nova qualificação, ou às vezes a questão é apenas precisar de um emprego", enumera a pesquisadora. "Tem que ter alguém que avalie o problema e desenhe uma solução, conectando essa família com os serviços públicos e a sociedade." Já Roberto, o "filho do Bolsa Família" que voltou a depender do benefício na vida adulta, avalia que o programa hoje está muito melhor do que no passado, e defende outro caminho para a melhoria do auxílio. "O ideal seria uma renda básica", afirma, citando a proposta – historicamente defendida no Brasil pelo deputado petista Eduardo Suplicy – de um pagamento periódico em dinheiro feito pelo governo para todas as pessoas, independentemente do nível de renda ou do cumprimento de contrapartidas, com objetivo de garantir um nível de vida mínimo a todos os residentes do país. "Defendo um programa de renda básica extensiva, que dialogasse mais ainda com a população e trabalhasse o preconceito das pessoas, porque hoje há muito preconceito com quem é usuário do Bolsa Família." Com a colaboração de Caroline Souza e da equipe de Jornalismo Visual da BBC.
2023-09-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2kd3vrvp8o
brasil
Metas ambiciosas e polêmica com Putin: o que esperar da cúpula do G20 no Brasil em 2024
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o país vai criar duas forças-tarefas dentro do G20 no próximo ano, durante a presidência brasileira do grupo: uma para reduzir a fome no mundo e outra para enfrentar as mudanças climáticas. O anúncio foi feito neste domingo (10/9), durante o discurso de encerramento da cúpula de Nova Déli, na Índia, quando houve a transmissão simbólica da liderança do G20 — grupo que reúne as maiores economias do mundo. O governo brasileiro quer evitar que a guerra da Ucrânia, país invadido em 2022 pela Rússia, desvie a atenção das prioridades brasileiras. Uma potencial fonte de constrangimento para o Brasil será a participação do presidente russo Vladimir Putin, que é alvo de mandados de prisão do Tribunal Penal Internacional, acusado de crimes de guerra na invasão da Ucrânia. A jornalistas, o presidente brasileiro disse desconhecer o tribunal. Fim do Matérias recomendadas "Não estou dizendo que vou sair de um tribunal. Eu nem sabia da existência desse tribunal. Eu só quero saber por que os Estados Unidos não são signatários, por que a Índia não é signatária, por que a China não é signatária, por que a Rússia não é signatária e por que o Brasil é signatário", disse Lula em entrevista coletiva. Como o Brasil é signatário do acordo que criou o tribunal, em tese o país deveria cumprir os mandados caso o presidente russo vá ao país. No entanto, Lula disse em entrevista ao canal indiano Firstpost que não tem qualquer intenção de prender Putin. "Eu acho que o Putin pode ir tranquilamente para o Brasil. Eu posso lhe dizer, se eu for o presidente do Brasil e ele for ao Brasil, não há por que ele ser preso", afirmou. Entenda melhor a seguir em três pontos o que esperar da presidência brasileira do G20. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável" será o lema do G20 brasileiro. E haverá três focos principais, com objetivos ambiciosos. O primeiro será a inclusão social e o combate à fome. Segundo Lula, isso incluirá o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. A ideia é propor às maiores economias do mundo metas concretas de redução da insegurança alimentar. O segundo foco é a transição energética e o desenvolvimento sustentável, levando em conta três dimensões: social, econômica e ambiental — ou seja, o Brasil não quer que a agenda ambiental esteja separada da necessidade de geração de renda e redução das desigualdades. Nesse campo, Lula disse que vai criar a Mobilização Global contra a Mudança do Clima, mas não deu detalhes de como isso funcionaria. E o terceiro foco será a reforma das instituições de governança global, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Conselho de Segurança das Nações Unidas, para ampliar o espaço e o acesso a recursos de países em desenvolvimento. Para o Brasil, essas instituições têm formatos ultrapassados que não dão o devido espaço para as nações em desenvolvimento. "A arquitetura financeira global mudou pouco e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas. Novas urgências surgiram. Os desafios se acumularam e se agravaram", discursou Lula, em sua fala final. "Vivemos num mundo em que a riqueza está mais concentrada. Em que milhões de seres humanos ainda passam fome. Em que o desenvolvimento sustentável está ameaçado. Em que as instituições de governança ainda refletem a realidade de meados do século passado. Só vamos conseguir enfrentar todos esses problemas se tratarmos da questão da desigualdade", reforçou. A cúpula de líderes do Rio de Janeiro será precedida de dezenas de encontros setoriais, para as autoridades do G20 discutirem políticas em diferentes áreas, como saúde, educação e meio ambiente A intenção do governo brasileiro, segundo havia explicado o Itamaraty em uma conversa com a imprensa prévia à cúpula de Déli, seria realizar eventos nas cinco regiões do país, mas em dimensão bem menor que a indiana, que chegou a promover mais de 200 eventos do G20, em cerca de sessenta cidades. Lula, porém, disse na segunda-feira que sua intenção é "fazer muito debate". "Possivelmente, a gente vai fazer mais debate do que tem acontecido aqui na Índia. Nós queremos utilizar várias cidades brasileiras, para que a gente faça o maior número possível de eventos do G20. Tentar fazer um G20 popular. Ou seja, a sociedade se manifestar, a sociedade participar, para que a gente possa, nas conclusões, mostrar um pouco do retrato de um G20 mais participativo, de um G20 mais democrático", acrescentou. O presidente também elogiou os gastos da Índia na realização do G20 como um excelente investimento. Para críticos do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, ele usou a presidência do grupo para projetar seu governo internamente, de olho na eleição nacional do próximo ano. Durante a cúpula de Nova Déli, uma quantidade enorme de cartazes do G20 com a foto de Modi foram espalhados pela cidade, tornando o rosto do primeiro-ministro onipresente na cidade. A guerra da Ucrânia é foco de tensão no grupo, já que potências ocidentais condenam fortemente a invasão e adotaram sanções contra a Rússia. O Brasil, por sua vez, tenta manter uma posição de neutralidade: o país condenou a invasão em uma resolução da ONU, mas é contra retaliações econômicas. "Nós não podemos deixar que questões geopolíticas sequestrem a agenda de discussões das várias instâncias do G20. Não nos interessa um G20 dividido", disse Lula em Déli. Essa fala ecoa o discurso de outros países, como China e Índia, que defendem que o G20 não é o fórum adequado para discutir conflitos militares. Na visão desses países, o grupo deve focar em questões sociais, econômicas e ambientais. Ainda que Lula queira evitar o tema, a discussão sobre a possível prisão de Putin caso ele venha ao Brasil já está gerando desgaste para o presidente. "Lula, ao dizer que Putin não seria preso no Brasil, não só desafia o Tribunal Penal Internacional, como também dá um recado ao mundo democrático: o Brasil está ao lado dos autoritários que atentam contra o mundo livre", disse o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP). Já o professor de direito internacional da FGV Thiago Amparo disse, na mesma rede social, que há um debate jurídico sobre se chefes de Estado podem ter imunidade contra eventuais punições em caso de crime internacional. "Postura de Lula faz sentido diplomático: não fechar os canais com Rússia enquanto G20. Do ponto de vista da lei internacional, é mais complicado. Estados partes do Estatuto de Roma têm obrigação de cooperar", ponderou ainda. Será preciso aguardar até novembro de 2024 para saber o que vai acontecer. Pode ser que Putin nem queira ir ao Brasil. A Índia não é signatária do acordo. Mesmo assim o russo optou por não sair da Rússia em meio à guerra, tendo enviado seu ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, para representá-lo na cúpula de Déli.
2023-09-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66770437
brasil
Faustão recebe coração: quem pode ou não doar e outras perguntas sobre transplante de órgãos no Brasil
A notícia de que o apresentador Fausto Silva, mais conhecido como Faustão, necessitava de um transplante de coração suscitou debates sobre como funcionam a doação e o transplante de órgãos no Brasil. Símbolo da TV aberta aos domingos durante décadas, Faustão, de 73 anos, estava internado desde o início de agosto no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo (SP), e fazia um tratamento de compensação clínica de insuficiência cardíaca. Ele ficou sob cuidados intensivos, dependente de hemodiálise e precisava de medicamentos para ajudar no bombeamento do coração. No dia 27 de agosto, ele passou pela cirurgia de transplante, que durou cerca de 2h30 e foi bem-sucedida. No domingo (10/9), o apresentador recebeu alta médica. O boletim diz que Faustão "seguirá sob as orientações médicas e nutricionais necessárias para a reabilitação após o transplante cardíaco". Fim do Matérias recomendadas Em um vídeo gravado por seu filho João Guilherme Silva e compartilhado no Instagram em 19 de agosto, o apresentador disse: "Por sorte, eu ainda não morri! Estou preparado para as coisas da vida". "Estou ainda nesse tratamento. Eles [os médicos] vão decidir que tipo de cirurgia eu posso fazer, e eu peço que quem gosta de mim, que reze por mim." No mesmo vídeo, ele agradeceu à equipe médica e aos familiares pelo apoio e cuidado. E encerrou: "Quem decide é o chefe lá em cima". Confira abaixo uma lista de perguntas e respostas sobre a doação de órgãos no Brasil. Há dois tipos de doação de órgãos: em vida e após a morte. O doador vivo pode doar um dos rins, parte do fígado, parte do pulmão ou parte da medula óssea. Em todos os casos, a compatibilidade sanguínea é vital para a doação. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores em vida. Não parentes, somente com autorização judicial. Já o doador falecido terá seus órgãos doados após morte encefálica ou por parada cardiorrespiratória. No primeiro caso, pode doar coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões. No segundo, pode doar apenas tecidos para transplante (córnea, vasos, pele, ossos e tendões). A diferença tem a ver com o fato de que a circulação sanguínea influencia no funcionamento de alguns órgãos — tanto é que, se o paciente tiver morte encefálica, é necessário manter a circulação sanguínea até o momento da retirada do órgão a ser doado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A legislação brasileira exige o consentimento da família para a retirada de órgãos e tecidos para transplante. Por isso, o Ministério da Saúde recomenda que, se você quiser ser doador de órgãos, avisar aos familiares é o mais importante. Isso porque, apesar de pela lei não ser possível garantir efetivamente a vontade do doador, na grande maioria dos casos, quando a família tem conhecimento do desejo de doar do parente falecido, esse desejo é respeitado, acrescenta a pasta. Não é necessário deixar a vontade expressa em documentos ou cartórios, basta que a família atenda ao pedido e autorize a doação de órgãos e tecidos. Mas o desejo do doador, expressamente registrado, também pode ser aceito, caso haja decisão judicial nesse sentido. Um dos principais motivos para que um órgão não seja doado no Brasil é a negativa familiar. No ano passado, mais de 45% das famílias recusaram a doação de órgãos. Entre os motivos, segundo muitos estudos, está a falta de informação – por exemplo, de que os órgãos possam ser retirados de pacientes ainda em vida e sem seu consentimento. Não existe restrição absoluta, mas a doação de órgãos requer alguns critérios mínimos como o conhecimento da causa da morte, ausência de doenças infecciosas ativas, dentre outros. Também não poderão ser doadoras as pessoas que não possuem documentação ou menores de 18 anos sem a autorização dos responsáveis. É uma verdadeira corrida contra o tempo. O prazo entre a retirada do órgão do doador e o seu implante no receptor é chamado de tempo de isquemia. Os tempos máximos de isquemia normalmente aceitos para o transplante de diversos órgãos são: Coração: 4 horas Fígado: 12 horas Pâncreas: 12 horas Pulmão: 6 horas Rim: 48 horas Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 66 mil pessoas estão na fila de transplante de órgãos no Brasil, e esse número é um dos maiores nos últimos 25 anos. Referência mundial na área de transplantes, com o maior sistema público de transplantes do mundo, o Brasil é o segundo país do mundo que mais realiza esse tipo de procedimento, atrás apenas dos Estados Unidos. Todos os anos, cerca de 20 mil procedimentos são realizados, mais de 90% pela rede pública, por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). No passado, o número de transplantes foi de 23.516. Independentemente da forma como o transplante é pago (pelo SUS ou não), a chance de receber um órgão é a mesma. No Brasil, existe uma lista de espera única e informatizada para transplante de órgãos. Portanto, para receber um órgão, o potencial receptor deve estar inscrito nela, e seu lugar nessa "fila" é respeitado conforme a ordem de inscrição. No entanto, existem casos que podem ser priorizados nessa lista de espera. Isso vai depender as condições clínicas do paciente, como situações de extrema gravidade com risco de morte. Por exemplo: impossibilidade total de acesso para diálise, no caso de doentes renais; a insuficiência hepática aguda grave, para doentes do fígado; necessidade de assistência circulatória, para pacientes cardiopatas; e rejeição de órgãos recentes de transplantados, segundo o Ministério da Saúde. No caso de Faustão, como ele já estava fazendo tratamento para insuficiência cardíaca, com diálise, acabou priorizado. O apresentador ocupava o segundo lugar na fila de espera por um coração, segundo a Central de Transplantes do Estado de São Paulo. "A seleção gerada para a oferta do coração deste receptor, através do sistema informatizado de gerenciamento do sistema estadual de transplantes, trouxe 12 pacientes que atendiam aos requisitos. Destes, quatro estavam priorizados, sendo que o paciente (Faustão) ocupava a segunda posição nesta seleção", afirmou a Central de Transplantes do Estado de São Paulo. Faustão recebeu o coração após a equipe médica do paciente que ocupava a primeira posição decidir pela recusa do órgão. Outro critério é a compatibilidade entre doador e receptor, uma vez que nem sempre ela é possível. No Brasil, vender ou comprar órgãos humanos é crime, com penas de três a oito anos de prisão. Na doação em vida, sim. Na doação após a morte, nem o doador, nem a família podem escolher o receptor. Segundo o Ministério da Saúde, o sucesso depende de inúmeros fatores como o tipo de órgão a ser transplantado, a causa da doença, as condições de saúde do paciente, adesão aos medicamentos imunossupressores entre outras. A sobrevida do paciente tem sido cada vez maior devido aos novos medicamentos e às técnicas aprimoradas. O valor médio aproximado de sobrevida, depois de um ano, é de 70% para o enxerto e para o paciente, segundo o Ministério da Saúde. "Muito embora a compatibilidade entre doador e receptor seja testada antes de um transplante, a prescrição de medicamentos imunossupressores é obrigatória e de forma permanente, com o objetivo de evitar a rejeição do órgão." "Em casos de rejeição, poderá ser oferecido um novo transplante ao paciente. As consultas periódicas de acompanhamento pós-transplante são obrigatórias."
2023-09-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyjwmnmkjjdo
brasil
Como Brasil criou e mantém maior sistema público de transplantes do mundo
Aos 73 anos, ele estava internado desde o dia 5 de agosto no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e no dia 27 passou pela cirurgia de transplante. No domingo (10/9), o apresentador recebeu alta médica. O boletim diz que Faustão "seguirá sob as orientações médicas e nutricionais necessárias para a reabilitação após o transplante cardíaco". Mais de 65 mil brasileiros estão à espera por um transplante no país atualmente, segundo o Ministério da Saúde. Destes, cerca de 380 aguardam por um coração. O Brasil tem uma das maiores filas do mundo, mas também criou e mantém o maior sistema público de transplantes. Fim do Matérias recomendadas O país é o segundo que mais realiza esse tipo de procedimento, atrás apenas dos Estados Unidos, que é privado. Em 2022, foram quase 26 mil cirurgias de transplante no Brasil, entre os quais 359 de coração. O país tem ainda mais de 600 hospitais autorizados a fazer transplantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o sistema brasileiro é bastante completo e funciona bem, servindo inclusive de modelo para outros países. "O sistema de transplantes brasileiros é reconhecido internacionalmente por ser inteiramente público e oferecer serviços em um país gigantesco e muito povoado", diz Alcindo Ferla, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em saúde pública. "Além disso, também é reconhecido pela qualidade técnica e das políticas públicas envolvidas." Ainda assim, precisa de mais recursos financeiros para se tornar mais eficiente e menos desigual, diz o médico Leonardo Borges de Barros e Silva, coordenador da Organização de Procura de Órgãos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). "O processo de doação e transplante no Brasil é excelente, especialmente quando comparado a outras partes do Sistema Único de Saúde [SUS]. Mas, como todo o sistema, está subfinanciado e há desigualdade", diz. "A espera por um órgão pode variar conforme o Estado do Brasil em que o paciente está. Os índices de doação também variam muito entre as regiões do país." O primeiro transplante no Brasil foi realizado em 1968, mas o sistema brasileiro como conhecemos hoje só foi criado muito depois, em 1997. Ele foi inspirado, entre outros, no modelo da Espanha, considerado um dos mais eficientes do mundo. O atual sistema é regulamentado pela Lei 9.434 de 1997. A norma estabelece, entre outras coisas, a existência de dois tipos de doador: o vivo e o falecido. No caso do doador vivo, podem ser cedidos um dos rins, parte do fígado, parte dos pulmões ou parte da medula óssea. Nestes casos, a legislação brasileira permite que cônjuges e parentes de até quarto grau sejam doadores. Para pessoas que não são parentes, a doação só é possível com autorização judicial. No caso de doador falecido, tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento só podem ser retirados após o diagnóstico de morte cerebral e com autorização da família. Um doador falecido após morte cerebral que não tenha sofrido parada cardiorrespiratória pode doar coração, bem como pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões. Após a avaliação dos órgãos ou tecidos, as comissões dos hospitais cadastram dados relativos às partes do corpo em um programa informatizado que combina essas informações com os dados de possíveis receptores. Já os pacientes são separados de acordo com o órgão que será transplantado, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas, como peso e altura. Na hora de combinar o órgão com o receptor, leva-se em conta a posição na lista única, mas também esses critérios. "Pacientes em estado crítico podem ser atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica", explica o Ministério da Saúde em nota. Esse sistema computadorizado é de responsabilidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e gerenciado pela Central de Transplantes de cada Estado. Há também outras entidades envolvidas no processo de identificação e distribuição dos órgãos, tais quais as Organizações de Procura de Órgãos (OPO) e os Bancos de Órgãos e Tecidos. Após identificado um receptor, o órgão é enviado pela Central de Transplantes ao hospital onde está o paciente para que seja implantado pela equipe transplantadora que acompanha a situação clínica. Em geral, esses processos não levam mais do que algumas horas e, apesar de na maioria das vezes o transporte ser realizado por terra, em casos de mais urgência podem ser usados helicópteros ou aviões. Nesses casos, há colaboração da Força Aérea ou de companhias aéreas privadas que possuem convênio com o governo para transporte gratuito de equipes e órgãos em voos comerciais. Um coração pode demorar no máximo quatro horas para ser transplantado após a retirada do corpo do doador. Em contrapartida, um pulmão ou um fígado podem esperar até seis horas. Como chefe da OPO do Hospital das Clínicas, Leonardo Borges de Barros e Silva explica que há muitas etapas e pequenos entraves no processo que muitas vezes não são de conhecimento público. "A pessoa que se inscreveu há mais tempo para transplante vai estar no começo da fila. Mas há outros critérios que incidem no processo, como compatibilidade – no caso do rim se leva em consideração questões imunológicas genéticas, por exemplo – tamanho, peso e altura do doador e estado de saúde do receptor", diz. "Se o primeiro da fila está com covid, por exemplo, ele não poderá receber o órgão, e o sistema vai buscar o próximo mais compatível." Os órgãos geralmente são destinados a receptores em uma mesma região, já que há pouco tempo para transporte. Mas Barros e Silva explica que, por vezes, há transporte entre Estados. "Existem casos de priorização nacional, determinados pelo sistema", diz. "Mas também há casos de Estados que não realizam alguns procedimentos, como transplante de coração, e a equipe de outra região precisa ir até lá retirar o órgão e transportá-lo". Para Alcindo Ferla, um dos maiores trunfos do sistema brasileiro é sua transparência e justiça. "Nenhum médico ou autoridade pode decidir nada sozinho no processo, seja no momento da doação ou do transplante", diz. "E fatores como condições econômicas tampouco importam, todos têm que esperar sua vez seguindo os mesmos critérios". Qualquer cidadão também pode acompanhar a lista única de espera e ter acesso aos critéios de prioridade pelo site do Sistema Nacional de Transplantes ou das secretarias estaduais de saúde. O sistema de distribuição e organização da lista de espera é totalmente público no Brasil, e mais de 90% das cirurgias são feitas pelo SUS. Os pacientes recebem toda a assistência, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante A maioria dos planos privados de saúde não cobre este tipo de tratamento, cujo custo pode variar de R$ 4 mil a R$ 70 mil. No caso do SUS, o financiamento vêm do Ministério da Saúde e é gerenciado pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), um órgão da pasta. Para este ano, o investimento previsto no sistema é de R$ 1,33 bilhão, ante R$ 1,06 bilhão gasto no ano passado – um aumento de 31%. Mas Eraldo Moura, coordenador do Sistema Estadual de Transplantes da Bahia, explica que esse não é todo o financiamento disponível. "Na Bahia, por exemplo, temos um cofinanciamento estadual para um programa de incentivo ao transplante e à doação de orgãos, além dos aportes do Ministério da Saúde", diz. Além disso, o processo da cirurgia e o acompanhamento após o procedimento também contam com a participação e o financiamento dos Estados. A responsabilidade pela formação dos profissionais especializados também é dividida. Mas apesar de ser referência em termos de atendimento gratuito e justo, especialistas fazem críticas à eficiência do processo de busca de doadores e concretização da doação. O Brasil tem atualmente 13,8 doadores efetivos para cada 1 milhão de habitantes. Para efeito de comparação, Estados Unidos e Espanha, os dois países com melhores índices, tem respectivamente 41,6 e 40,8 doadores efetivos para cada 1 milhão, segundo os dados mais recentes do Registro Internacional de Doação e Transplante de Órgãos. Em contrapartida, o Brasil está na frente de outros países desenvolvidos, como Alemanha, Israel e Coreia do Sul. "Precisamos melhorar em termos de financiamento, não só para o processo em si, mas também para a formação de profissionais mais especializados e para a produção de conhecimento e pesquisa científica sobre o tema", diz Alcindo Ferla, da UFRGS. Segundo o pesquisador, a população brasileira ainda não é tão envolvida com a doação de órgãos como a de outros países, o que influencia muito no tamanho da fila de espera no país. Além disso, falta formação de profissionais totalmente preparados para lidar com as famílias de possíveis doadores em todo o território brasileiro, diz. "A mobilização da sociedade em torno desse tema é um fator importante. Criar uma cultura de doação entre a população e colocar o tema na agenda pública de debate." "A expectativa de algum familiar receber um órgão se houver necessidade em algum momento precisa ter como contrapartida a disponibilidade de fazer a doação e de se envolver mais", diz. Analistas consultados pela BBC News Brasil afirmam ainda que, apesar de o sistema brasileiro ser totalmente público, a desigualdade regional ainda é uma realidade. "O sistema nacional de transplantes é um reflexo da realidade do país. Os Estados com menor IDH ou PIB per capita são os que têm mais dificuldade com doação e transplante também", diz Barros e Silva, do HCFMUSP. Os Estados com maior número de transplantes por habitante são Paraná, São Paulo e Santa Catarina, segundo dados da ABTO. Já os com o menor número são Roraima, Alagoas e Maranhão. Enquanto no Paraná foram realizados 40,4 transplantes por milhão de habitantes em 2022, em Rondônia, a média foi de 2,2 procedimentos por milhão. O maior sistema de transplantes do mundo é atualmente o dos Estados Unidos. O país realizou mais de 42 mil procedimentos em 2022, segundo o governo americano. O sistema, porém, não é público. Em geral, o receptor do órgão ou seu convênio médico devem pagar pelo procedimento, enquanto a família do doador não é cobrada. Apesar de os Estados Unidos serem o país que mais realiza transplantes todos os anos, o modelo americano é bastante criticado internamente. Atualmente, 104 mil pessoas estão em listas de espera, e 17 pessoas morrem todos os dias à espera de um transplante, segundo a Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos, uma organização ligada ao Departamento de Saúde e que controla o sistema. Críticos afirmam que a gestão da instituição não é eficaz e que pacientes pobres e de minorias raciais são menos beneficiados pelo sistema. Já o sistema espanhol é considerado por especialistas como o mais eficiente. Os procedimentos são realizados pelo sistema público de saúde de forma gratuita. Mas diferente do Brasil, na Espanha todos os cidadãos pagam taxas periódicas de seguridade social que garantem seu acesso à saúde pública. Outro ponto que diferencia o sistema é a forma como as doações são conduzidas. Segundo a lei local, todo cidadão é um potencial doador: as famílias podem impedir a doação após o falecimento, mas se pressupõe que qualquer espanhol que tiver morte encefálica e estiver em condições de saúde terá seus órgãos doados. No entanto, o governo diz que não é esse modelo que garante o sucesso do sistema, mas sim as medidas de conscientização da população e o desenvolvimento das técnicas usadas. "A Espanha é a grande referência mundial para formação de equipes específicas para entrevistas com familiares de possíveis doadores", diz Eraldo Moura. "Mas independentemente de qualquer coisa, o cidadão espanhol é pró-doação de órgão. Esse tema já faz parte da cultura local", completa Barros e Silva. Segundo os especialistas, a implementação do modelo espanhol que considera todo cidadão como doador não necessariamente funcionaria no Brasil. O país, inclusive, testou por um curto período de tempo o chamado consentimento presumido, segundo o qual os órgãos de uma pessoa falecida só não seriam doados caso houvesse uma manifestação clara da família. A regra foi determinada pela própria Lei 9.434 de 1997, mas alterada pelo governo federal por meio de uma Medida Provisória em outubro de 1998. "De nada adianta uma lei assim se não há diálogo com a população sobre os verdadeiros propósitos e sobre a importância da doação", diz Alcindo Ferla. "Muitas pessoas acreditam que o corpo do ente falecido vai ser profanado ou têm crenças religiosas que as impedem de autorizar a doação. Essa falta de conhecimento sobre o tema e a falta de equipes especializadas para conversar com as famílias são os principais gargalos do sistema atualmente."
2023-09-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51qdpqxneno
brasil
De 'vira-lata' a aliança global no G20: biocombustível ganha força e deve gerar negócios para Brasil
A Aliança Global para os Biocombustíveis foi lançada neste sábado (9/9) durante a cúpula do G20, em Nova Déli, sob liderança de Brasil, Estados Unidos e Índia, os três maiores produtores nesse campo. A iniciativa, que conta com mais 16 países, busca promover a produção e consumo de combustíveis como o etanol no mundo, em especial em economias em desenvolvimento do Sul Global, dentro de uma agenda de transição energética para fontes menos poluentes. A iniciativa foi comemorada pelo Itamaraty e pelo setor privado brasileiro, que consideram que os biocombustíveis têm tido seu potencial pouco valorizado, frente a outras opções mais caras, como carros elétricos. “É como se fosse uma energia meio vira-lata e agora está recebendo uma chancela”, disse à BBC News Brasil um diplomata que acompanha o tema. Críticas têm partido historicamente, sobretudo, de países europeus, que questionam quão sustentáveis os biocombustíveis são de fato. Fim do Matérias recomendadas Desmatamento para abertura de novos campos de plantação e a ocupação de terras usadas para produção de alimentos são fatores apontados como problemas dessa produção. Já os defensores da nova aliança dizem que ela visa, justamente, promover a produção sustentável de biocombustíveis, com o compartilhamento de conhecimento e tecnologia de países como o Brasil, e o uso de terrenos já desmatados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma iniciativa brasileira que pode ser compartilhada, segundo fontes do Itamaraty, é o RenovaBio, programa criado pelo Ministério de Minas e Energia em 2016 que realiza a certificação da produção de biocombustíveis de acordo com suas reduções na emissão de gases do efeito estufa, permitindo aos produtores comercializarem créditos de carbono. Na visão desses diplomatas, a resistência histórica de países europeus contra biocombustíveis, em geral justificada na preocupação com o desmatamento, está também relacionada ao interesse desses países em vender suas tecnologias, como os carros elétricos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da cerimônia de lançamento ao lado do presidente americano, Joe Biden, e do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, mas não houve discursos devido à agenda corrida durante a cúpula. “Hoje, a necessidade do momento é que todos os países trabalhem juntos na área de mistura de combustíveis. Nossa proposta é tomar uma iniciativa em nível global para levar a mistura de etanol à gasolina a até 20%”, disse Modi, em outro momento da cúpula. No Brasil, a gasolina já tem 27,5% de etanol em sua mistura, e o governo estuda aumentar esse percentual para 30%. A ideia da aliança é que biocombustíveis sejam mais usados globalmente, não só no transporte automotivo, mas também em aviões e embarcações. A Organização Internacional da Aviação Civil já adotou metas ambiciosas de redução de emissões de carbono que começam a valer em 2027, enquanto o setor marítimo está finalizando o processo para isso. Os biocombustíveis líquidos já são um quinto (cerca de 20%) do consumo energético dos transportes do Brasil, mas no mundo esse percentual é de apenas 4%. Segundo a Agência Internacional de Energia, a produção global precisa triplicar até 2030 para que o mundo possa alcançar emissões líquidas zero de carbono até 2050. Um mercado mundial mais robusto pode render negócios ao Brasil, que é liderança na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar e poderá exportar carros flex (movidos a gasolina e etanol) e tecnologia, exemplifica Plinio Nastari, presidente da Datagro Consultoria e integrante do Conselho Nacional de Política Energética. “O mundo vai produzir mais, vai precisar de equipamentos. Qual é o maior produtor mundial de equipamento para produção de etanol? É o Brasil”, disse à reportagem. Nastari concorda que os biocombustíveis foram por muito tempos tratados como uma energia “vira-lata”. Ele ressalta que estão sendo desenvolvidos usos mais modernos dessa energia, como sua aplicação em carros movidos a hidrogênio. “Sendo um carregador de hidrogênio, o etanol permite que você faça a distribuição de hidrogênio na forma de um combustível líquido, de forma prática, econômica e segura. E a transformação desse combustível líquido etanol em hidrogênio ocorre no ato do consumo”, explicou. “O hidrogênio tem um conteúdo de energia muito concentrado. Então, a eficiência da motorização a hidrogênio é muito alta. Vamos poder ter um carro que vai fazer 25 quilômetros por litro de etanol, mas etanol na forma de hidrogênio, não na forma de combustível. Enquanto os carros utilizando o etanol (convencional) hoje fazem oito, onze, quatorze quilômetros por litro, no caso dos híbridos”, afirma Nastari. A tentativa de expandir o mercado mundial de etanol é uma agenda antiga do Itamaraty e do setor privado brasileiro, liderado pela Unica (União da Indústria de Cana de Açúcar). No seu segundo mandato presidencial, Lula chegou a assinar um acordo com o presidente americano George W. Bush em 2007, com objetivo de promover os biocombustíveis no mundo, mas os avanços foram tímidos. Naquele momento, Bush chegou a se referir a Lula como o “evangelizador do etanol”, devido à forte campanha do brasileiro em favor dessa opção energética. Para o Itamaraty, a aliança firmada na Índia é uma iniciativa que se encaixa perfeitamente nos objetivos da política externa brasileira de promover o desenvolvimento do Sul Global. Isso porque a adoção dos biocombustíveis é considerada uma alternativa mais barata de energia sustentável para o transporte do que, por exemplo, a eletrificação da frota. Além disso, também é mais intensiva em mão de obra, podendo gerar mais emprego e renda. O Brasil é o segundo maior produtor de biocombustíveis do mundo, atrás dos Estados Unidos. Já a Índia se tornou recentemente o terceira maior, após o governo Modi apostar com mais força nessa opção energética, processo que contou com o apoio do governo e do setor privado brasileiros por meio de acordos de cooperação. Devido à velocidade do avanço, o país inclusive antecipou de 2030 para 2025 a meta de adicionar 20% de etanol à gasolina, após atingir antecipadamente a meta de 10% do ano passado. A Índia é um grande produtor de cana de açúcar (uma das matérias-primas do etanol) ao mesmo tempo que é o maior importador de petróleo do mundo. Por isso, a ampliação do uso de biocombustíveis passou a ser vista como um importante trunfo para a segurança energética do país e economia de divisas. “O que no fundo essa aliança global vai fazer é justamente construir um processo de cooperação para que sejam acelerados os processos de adoção da bioenergia como substituto a fontes energéticas fósseis", disse à reportagem o presidente da Única, Evandro Gussi. “Essa ideia nasce de um exemplo concreto: o que os setores público e privado do Brasil têm feito com a Índia nesses últimos anos é compartilhar a nossa experiência na produção de bioenergia, especificamente de etanol”, reforçou.
2023-09-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3ll7zre1go
brasil
Sambaquis: as descobertas sobre as monumentais construções de 8 mil anos no litoral do Brasil
Por sete milênios, a costa litorânea do que viria a ser conhecido como Brasil foi habitada pelos sambaquieiros. Esses povos construíram os sambaquis, monumentos de até 40 metros de altura feitos a partir de conchas, ossos, areia e terra, onde até hoje é possível encontrar restos humanos. Mas a história desses ancestrais é cercada de mistérios. De onde eles vieram? E por que sumiram ou foram substituídos por tupis, jês e outros povos indígenas que habitavam o litoral quando as naus Pedro Álvares Cabral chegaram ao país em 1500? Uma equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e de uma série de outras instituições nacionais e internacionais fez o sequenciamento genético dos fósseis de 34 indivíduos que viveram em quatro diferentes regiões do país num passado longínquo — um deles tem 10 mil anos de idade. Fim do Matérias recomendadas Os resultados mostram, por exemplo, que os povos sambaquieiros eram heterogêneos — e o contato deles com outras populações do interior foi mais complexo do que se pensava. O arqueólogo André Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e um dos autores do trabalho, explica que os sambaquis são “grandes montes de conchas que estão dispersos pela costa brasileira, especialmente no Sul e no Sudeste”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Muitos deles têm proporções monumentais, de 30 a 40 metros de altura”, caracteriza ele. “Eles foram construídos pelas civilizações que ocuparam o litoral Atlântico entre 8 mil e 2 mil anos atrás.” Acredita-se que a subsistência dessas pessoas estava baseada numa economia mista, que combinava o consumo de peixes, frutos do mar e plantas. Também é possível que eles caçassem alguns animais terrestres e praticassem horticultura. “Os sambaquis são produto da deposição planejada e de longo prazo de conchas, restos de peixes, plantas, artefatos, restos de combustão e sedimentos locais, e foram utilizados como marcadores territoriais, moradias, cemitérios e/ou locais cerimoniais”, resume o artigo da Nature. Alguns deles, inclusive, trazem centenas ou até milhares de indivíduos enterrados. O sambaqui Capelinha, por exemplo, foi identificado à beira de um rio no Vale do Ribeira, em São Paulo, e tem 10,4 mil anos. Mas há outros monumentos do tipo que são mais recentes, com cerca de 1,3 mil anos. Para fazer a análise, os 34 indivíduos foram divididos em quatro grandes grupos, segundo a localização geográfica: a Baixa Amazônia (nas proximidades da Ilha de Marajó, no Pará), o Nordeste, a região de Lagoa Santa (em Minas Gerais) e a Costa Atlântica Sudeste/Sul, que concentra a maioria dos sambaquis. Lagoa Santa, aliás, é a terra de Luzia, o fóssil humano mais antigo já encontrado na América do Sul, com cerca de 13 mil anos. Vale destacar aqui que alguns dos 34 indivíduos estavam relacionados aos sambaquis, mas outros são mais antigos ou mais recentes — e ajudaram a fazer comparações entre os genes para entender as relações entre os diferentes povos ao longo da história. A partir da análise genética dos fósseis, os cientistas esperavam encontrar pistas sobre a origem dos sambaquieiros. “O estudo da história genética das populações da costa leste da América do Sul revelou que uma cultura temporalmente e geograficamente tão gigantesca quanto a associada aos sambaquis não foi praticada por um único povo”, resume o paleogeneticista Cosimo Posth, da Universidade de Tübingen, na Alemanha, e um dos autores do artigo. Na própria conclusão da pesquisa, os cientistas destacam essa heterogeneidade: entre sambaquieiros do Sul e do Sudeste da costa brasileira, há uma diferença genética entre os indivíduos analisados. E isso contraria o que é observado nos registros arqueológicos, que destacam similaridades entre esses grupos. “É importante mostrar que culturas e genes nem sempre andam juntos. Combinar arqueologia e pesquisa genética pode nos dar um cenário mais preciso de como eram esses indivíduos que habitaram a região costeira”, complementa Posth. Outra descoberta importante: os povos que moravam na costa brasileira há milhares de anos descendem dos mesmos ancestrais que vieram para as Américas cerca de 16 mil anos atrás. Esses indivíduos que chegaram ao continente a partir da Beríngia (uma ponte terrestre que se formou entre Ásia e América do Norte por causa da glaciação) e deram origem a todas as populações indígenas, como os próprios tupi. Os resultados da pesquisa recente reservaram ainda outras surpresas. “Um aspecto importante que observamos é o fato de o povo de Luzia [em Lagoa Santa] não ter desaparecido há 9 mil anos, como se imaginava. Para nossa surpresa, encontramos evidências em alguns sambaquis da sobrevivência, ainda que parcial, daqueles grupos que foram os primeiros brasileiros”, chama a atenção Strauss. “Essa permanência dos grupos relacionados à Luzia até 2 mil anos atrás era algo completamente inesperado que nosso trabalho acabou encontrando.” A geneticista Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, conta que um dos objetivos do estudo era detalhar melhor quem eram essas pessoas que habitavam a costa brasileira antes da chegada dos tupis e por que elas desapareceram. “E nós confirmamos que eles não eram uma população isolada do resto do continente. De alguma maneira, eles interagiam com os povos que viviam no interior”, destaca a especialista, que também assina o artigo. Strauss aponta que a pesquisa também baixou as expectativas sobre o tamanho desses povos ancestrais. “Antes, achávamos que os sambaquieiros eram extremamente densos e populosos do ponto de vista demográfico, mas tudo indica que a realidade não era bem assim.” “Há 2 ou 3 mil anos, essas populações tiveram números reduzidos, e nos perguntamos o que será que aconteceu para explicar esse fenômeno”, diz o arqueólogo. Hünemeier acrescenta que a chegada dos europeus a partir de 1500 também representa uma enorme barreira para conhecer mais sobre esse passado remoto da América do Sul. “Precisamos ter em mente que, a partir da colonização europeia, a população local foi reduzida em 98%. Com isso, muitas linhagens e variantes genéticas foram perdidas”, calcula ela. Para Strauss, ainda é necessário entender melhor a origem e o fim dos sambaquis. “Essas construções surgiram e esses indivíduos viraram os reis da costa. De repente, há 2 mil anos, eles desapareceram. O que aconteceu? Uma calamidade climática? Uma implosão social interna?”, questiona ele. Vale destacar aqui que, mesmo com a redução das expectativas sobre a densidade populacional, os sambaquieiros continuam a ser considerados o maior fenômeno demográfico da América do Sul pré-colonial, atrás apenas das civilizações andinas. O arqueólogo avalia que o trabalho recém-publicado apresenta algumas pistas. “Nossos dados mostram que, há 2 mil anos, começam a aparecer nos sambaquis uma assinatura genética típica dos grupos ancestrais jê, que habitavam o interior da região Sul, e se deslocaram até o litoral. É possível que isso tenha impactado de alguma maneira a existência dos sambaquieiros”, diz. Mais ou menos nessa mesma época, as construções monumentais da costa começaram a apresentar uma inovação: a presença de cerâmicas. Até então, elas traziam conchas e ossos — e essa nova tecnologia veio justamente desses povos interioranos ancestrais. Ou seja: em vez de uma substituição completa de sambaquieiros por outros povos, o que provavelmente ocorreu foi uma mudança gradual de práticas, com adoção de novas tecnologias, práticas e culturas. Para Hünemeier, a aliança entre genética e arqueologia permite juntar as peças desse intrincado quebra-cabeças. “Ainda existem muitos buracos e questões em aberto, mas aos poucos restauramos a história da chegada do ser humano na América do Sul.”
2023-09-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxegxkr04jvo
brasil
G20: por que Lula 'não é mais o cara', mas tem alguns trunfos
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega nesta sexta-feira (8/9) a Nova Déli, na Índia, para assumir a presidência do G20 (grupo que reúne as maiores economias do mundo) em uma cúpula tensa, marcada por atritos envolvendo o conflito da Ucrânia e pela ausência de dois líderes importantes – Vladimir Putin (presidente russo) e Xi Jinping (presidente chinês). O contexto é muito diferente de anos atrás, quando Lula atuava como importante liderança mundial nos esforços de superação da crise financeira de 2008 e chegou a ser chamado de "o cara" e o "político mais popular da terra" pelo então presidente americano, Barack Obama, durante o G20 de Londres, em 2009. Para analistas de política externa ouvidos pela reportagem, o aumento da polarização mundial entre Estados Unidos e China – que desafia a tradição brasileira de multilateralismo – e o enfraquecimento da imagem do Brasil nos últimos anos, após crises econômicas e políticas, deixam o cenário pouco favorável para Lula voltar ao bloco com o mesmo peso de antes. "Ele não é mais o cara. Acho que ninguém sustentaria isso, tanto porque, obviamente, o Brasil não está mais nadando de braçada em termos econômicos, quanto por tudo que o país passou: um impeachment, a prisão do próprio Lula [na operação Lava Jato] e a eleição de uma figura tão controversa e complicada em todos os âmbitos como é [o ex-presidente Jair] Bolsonaro", analisa Ana Saggioro Garcia, professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Por outro lado, nota Garcia, o retorno do petista ao G20 ocorre em um momento especial para o Brasil, já que o país é o próximo a assumir a presidência do grupo, com mandato entre dezembro deste ano e novembro de 2024, quando uma cúpula de líderes será realizada no Rio de Janeiro. Fim do Matérias recomendadas No encerramento da cúpula de Déli, no domingo (10/9), haverá uma cerimônia simbólica de transmissão da liderança do bloco, do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para Lula. A presidência do G20 é uma oportunidade de pautar a agenda mundial, segundo o professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Leonardo Ramos. A previsão é de que Lula use a liderança brasileira para convencer os países do G20 a adotarem metas concretas de redução da pobreza. Outros temas que ganharão destaque na presidência do Brasil serão o "desenvolvimento sustentável, em suas dimensões econômica, social e ambiental", e a reforma de instituições multilaterais como o Conselho de Segurança da ONU e o Banco Mundial, para dar mais peso a países em desenvolvimento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Ramos, esse momento especial para o Brasil, como sede de grandes encontros de líderes mundiais, cria um palco para Lula ser "o cara" novamente. Mas isso vai depender dos resultados alcançados, ressalta. "É um momento interessante [para o Brasil], nesse sentido ele tem um potencial. Vamos ver o que ele consegue negociar, por exemplo na agenda climática, ou em termos de apoio à reforma do Conselho de Segurança da ONU e a entrada permanente do Brasil", afirma, citando uma antiga reivindicação brasileira. Na avaliação de Ramos, Lula tem importantes trunfos para aproveitar essas oportunidades, como seu forte carisma pessoal, a experiência acumulada em seus dois primeiros mandatos presidenciais e a importância do Brasil na área ambiental e climática. "Gostemos ou não [de Lula], não vejo outra figura na política brasileira que poderia capitalizar melhor [a liderança desses grandes eventos]", diz. A cúpula de líderes do Rio de Janeiro será precedida de dezenas de encontros setoriais, para discutir políticas em diferentes áreas, como saúde, educação e meio ambiente. A intenção do governo brasileiro é realizar eventos nas cinco regiões do país, mas em dimensão bem menor que a indiana, que chegou a promover reuniões do G20 em mais de cinquenta cidades, numa tentativa de Modi de usar a presidência do grupo para projetar seu governo internamente. Os planos do Brasil para a presidência do G20, no entanto, podem ser atrapalhados pela continuidade da guerra na Ucrânia, país que foi invadido em fevereiro de 2022 pela Rússia. A própria reunião de Déli pode acabar sem um comunicado final devido às divergências sobre o conflito que opõe de uma lado as potências ocidentais e de outro Rússia, com apoio da China. Já o Brasil busca adotar uma posição de neutralidade e incentivar um acordo de paz, mas com baixa capacidade de influência no conflito, apontam os analistas entrevistados. O presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping decidiram, inclusive, não participar da cúpula, e serão representados por seus chanceleres. Enquanto a presença de Putin já era dúvida, devido a suas preocupações com a guerra e sua segurança pessoal, a anunciada ausência de Xi Jinping surpreendeu e não foi explicada por Pequim, mas pode ter sido influenciada pela crescente tensão com a Índia devido a disputas territoriais na fronteira dos dois países. Para Ramos, Xi Jinping parece ter querido esnobar a presidência indiana, boicotando a tentativa de Modi de usar a cúpula para se projetar para o mundo e para os indianos como líder do Sul Global. Às vésperas da chegada dos líderes à Nova Déli, a cidade está repleta de cartazes do G20 com imagens do primeiro-ministro indiano, numa clara personalização do evento. Por outro lado, outras lideranças de destaque estão confirmadas, como o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak. A anunciada ausência de Xi Jinping contrasta com sua forte influência na última cúpula do Brics, realizada em agosto na África do Sul, quando a expansão do bloco atendeu aos interesses chineses, numa indicação de que Pequim estaria priorizando fóruns em que tem mais condições de controle. Brasil e Índia por muito tempo resistiram à entrada de novos membros, uma reivindicação antiga da China e que, mais recentemente, obteve apoio da Rússia, numa tentativa das duas nações de construir para si espaços de influência global em contraponto a articulações das potências ocidentais, como o G7. O receio da diplomacia brasileira era que um Brics expandido diluiria a importância de membros originais como o Brasil, mas manteria a China forte, devido ao seu peso econômico hoje no mundo. Lula buscou afastar a percepção de que o novo Brics seria uma tentativa de antagonizar com o Ocidente. "A gente não quer ser contraponto ao G7. A gente não quer ser contraponto ao G20. A gente não quer ser contraponto aos Estados Unidos. A gente quer se organizar. A gente quer criar uma coisa que nunca teve, que nunca existiu", disse durante a cúpula do grupo. Para Kalout, o objetivo de manter neutralidade no conflito é correto e segue a tradição diplomática brasileira, mas a forma como o Brasil tem levado a questão na prática tem sido interpretada negativamente pelo lado ocidental e pode afetar a capacidade de liderança de Lula à frente do G20. "Na visão de parceiros estratégicos do Brasil no mundo ocidental, o Brasil tem sido uma voz ativa na construção de uma coalizão, digamos, antiocidental. Certa ou errada, não importa, mas é a visão que se tem. Cabe ao Brasil demonstrar que isso não é verdade", ressaltou Kalout. Leonardo Ramos, por sua vez, considera que o Brasil teve uma importante conquista na negociação para ampliação do Brics: em troca de aceitar a expansão pretendida por China e Rússia, o país conseguiu inserir na declaração final do encontro, pela primeira vez, um apoio explícito à entrada de Brasil, Índia e África do Sul no Conselho de Segurança da ONU. Esse órgão, responsável por zelar pela paz mundial e mediar conflitos, conta com apenas cinco membros permanente, todos com poder de veto: Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia (Estado sucessor da União Soviética) e a República Popular da China "Lula vai para o G20 para tentar negociar com o Biden [a entrada no Conselho de Segurança] com a carta da China junto: 'China e Rússia já liberaram, então agora falta vocês, Estados Unidos, Reino Unido', ele vai argumentar", acredita Ramos. Por enquanto, porém, nenhuma reforma concreta do Conselho está no horizonte. Entre os anúncios concretos aguardados para a Cúpula de Déli está a confirmação da ampliação do grupo para entrada da União Africana, algo que atende às reivindicações de países em desenvolvimento por mais espaço nos fóruns internacionais. Outra novidade esperada é a formalização da Aliança Global pelos Biocombustíveis, liderada por Índia, Brasil e Estados Unidos, e que deve contar com a adesão inicial de, ao menos, outros 16 países (não necessariamente membros do G20). A iniciativa busca expandir a produção e o consumo mundiais de biocombustíveis como o etanol, em especial em países em desenvolvimento, dentro de uma agenda de transição energética para opções menos poluentes.
2023-09-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6p0dpq2zgzo
brasil
Bolsonaristas silenciam diante de possível delação de Mauro Cid
Nos maiores grupos pró-Jair Bolsonaro no Telegram e no Facebook, a reação à proposta de delação premiada entregue pelo ex-ajudante de ordens do ex-presidente Mauro Cid ao Supremo Tribunal Federal (STF) é de silêncio. Agora que o tenente-coronel e ex-braço direito de Bolsonaro entregou, em 6 de setembro, um termo de intenção de acordo de delação premiada à Suprema Corte, a verborragia bolsonarista foi substituída pela quietude. Entre familiares e políticos aliados ao ex-presidente, a reação é semelhante. Fim do Matérias recomendadas Mauro Cid também é apontado como um dos articuladores de uma suposta trama para organizar um golpe de estado no Brasil após a derrota de Bolsonaro para o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nas eleições do ano passado. Segundo a PF, foram encontrados no celular de Cid uma minuta para um golpe e um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Após uma série de idas e vindas sobre a possibilidade de uma delação premiada que poderia encurralar o ex-presidente, a defesa de Cid esteve no gabinete do ministro Alexandre de Moraes na quarta-feira (6/9) e propôs colaboração com a Justiça. Os termos da delação ainda não são conhecidos, mas, segundo a Globonews e o portal UOL, a Polícia Federal informou que concorda com a proposta. Para ser confirmada, ela ainda depende de parecer positivo do Ministério Público Federal (MPF) e da aceitação de Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos envolvendo o tenente-coronel Cid. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um grupo com quase 300 mil bolsonaristas, as críticas do advogado de Cid à imprensa foram compartilhadas pelo menos 5 vezes em 24h, no dia 1º de setembro. Divulgadas nas redes sociais em texto, vídeo e áudio, inclusive por autoridades como as deputadas federais Bia Kicis (PL) e Carla Zambelli (PL), as falas do advogado geraram comoção. "A verdade sempre aparece. Deus no comando", escreveu um apoiador do ex-presidente. "Deus é fiel, parabéns doutor", disse outro. "Uma pessoa íntegra e de caráter , anda pela via correta com base na verdade. Parabéns ao advogado Dr. Cezar Bitencourt", publicou um terceiro. Na mensagem enviada à jornalista Camila Bonfim, da GloboNews, Bitencourt diz que "estão colocando palavras" e "acusações a Bolsonaro que não existem" na boca de Cid. "Cid assumiu tudo. Não colocou Bolsonaro em nada. Não tem nenhuma acusação de corrupção, envolvimento de Bolsonaro, envolvimento ou suspeita de Bolsonaro. A defesa não está colocando o Cid contra Bolsonaro", afirmou o advogado nas mensagens, publicadas no blog da jornalista no portal G1. Na mensagem, Bitencourt se declara "estarrecido" com a forma como o tema era abordado por jornalistas na televisão. Após divulgar a fala do advogado, um dos principais perfis de apoio a Bolsonaro, com 2 milhões de seguidores só no X (antigo Twitter), escreveu: "Quero capa da Veja com o novo áudio do advogado do Cid! Cadê?" O tom bolsonarista mudou, no entanto, quando a imprensa noticiou, nesta quinta-feira, que Mauro Cid procurou o STF para possivelmente apresentar evidências sobre um suposto envolvimento de Jair Bolsonaro em atividades ilegais. Bolsonaro nega veementemente qualquer ilegalidade. Para que uma delação premiada seja aceita, a Justiça exige a entrega de provas concretas e não aceita apenas falas e acusações. O tema, que passou em branco nos principais grupos de apoio ao presidente, tampouco mobilizou a defesa de bolsonaristas no mundo político. Tradicionais aliados, como Bia Kicis, Carla Zambelli, Nikolas Ferreira (PL), Ricardo Salles (PL) e Magno Malta (PL), além dos filhos do presidente, Carlos, Flavio e Eduardo Bolsonaro, não comentaram o anúncio de intenção de delação. No X (antigo Twitter), alguns apoiadores do ex-presidente comentaram uma suposta contradição entre o apoio de petistas e simpatizantes à delação premiada de Cid e as críticas de lulistas às delações da operação Lava Jato. A estratégia adotada pela grande maioria dos bolsonaristas, nas redes e grupos de apoio ao ex-presidente, foi apostar em outros temas. Os mais frequentes foram a primeira celebração do 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, após o fim do governo Bolsonaro, e a decisão do ministro do STF Dias Toffoli, que anulou "todas e quaisquer provas obtidas" a partir do acordo de leniência celebrado pela Odebrecht no âmbito da Operação Lava Jato. No Telegram, montagens supostamente mostrando imagens da celebração da independência em 2022 e 2023 sugeriam esvaziamento na gestão "comunista", segundo bolsonaristas, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo a Polícia Federal e o Exército, o desfile de 7 de setembro em Brasília reuniu cerca de 50 mil pessoas – 20 mil a mais que a estimativa do governo. Em seus perfis, Bolsonaro publicou imagens da celebração durante seu governo, seguido pelos filhos Flavio e Eduardo, pela esposa Michele, e por apoiadores como Nikolas Ferreira, que definiu a celebração como “171 de setembro”. Tofolli, por sua vez, vem sendo frequentemente chamado de "advogado do PT" em publicações contrárias a sua decisão de invalidar o acordo de leniência da empreiteira Odebrecht na Operação Lava Jato. Indicado por Lula ao STF em 2009, Toffoli foi de fato advogado do partido nas eleições de 1998, 2002 e 2006, além de ter trabalhado como assessor jurídico da sigla na Câmara dos Deputados entre 1995 e 2000. Na decisão, Toffoli definiu a prisão de Lula como um dos “maiores erros judiciários da história do país".
2023-09-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjk2vxk61deo
brasil
Ciclone no Sul: o que está por trás das tempestades devastadoras que já mataram mais de 40 pessoas
Inundações causadas por fortes chuvas e por um ciclone extratropical nos últimos dias deixaram ao menos 41 pessoas mortas no Rio Grande do Sul e uma em Santa Catarina, segundo informações das defesas civis dos Estados divulgadas nesta quinta-feira (07/09). Mais de 10 mil pessoas estão desalojadas ou desabrigadas no Rio Grande do Sul. Há registro de 25 pessoas desaparecidas, nas cidades de Arroio do Meio, Lajeado e Muçum. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem acompanhado os trabalhos de resgate e disse que esta é a maior tragédia climática que já atingiu o Estado. "Estamos consternados com a letalidade desse evento climático e mobilizados para salvar todos que ainda correm perigo", escreveu Leite nas redes sociais na terça (05). Fim do Matérias recomendadas Na quarta (06), o Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade, e nesta quinta-feira, o governo federal declarou o mesmo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) telefonou para Leite e enviou dois ministros — Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social da Presidência) e Waldez Góes (Integração e Desenvolvimento Regional) — ao Estado. Entretanto, em meio à celebração do Dia da Independência e ao embarque para a cúpula do G20 na Índia, o presidente não esteve presencialmente na região. No Rio Grande do Sul, óbitos foram registrados nos municípios de: Cruzeiro do Sul; Encantado; Estrela; Ibiraiaras; Imigrante; Lajeado; Mato Castelhano; Muçum; Passo Fundo; Roca Sales; e Santa Tereza. A tormenta também causou uma morte no Estado vizinho de Santa Catarina — a de um motorista cujo carro foi atingido por uma árvore durante a ventania e as chuvas. Por conta de alagamentos, dezenas de estradas e rodovias do RS estão bloqueadas. Cinco aeronaves — da Força Aérea, PM e Bombeiros — estão sendo utilizadas para auxiliar nos resgates nas cidades afetadas. A Defesa Civil do RS está alertando para a possibilidade de temporais, descargas elétricas, eventual queda de granizo e rajadas de vento até pelo menos a manhã dessa sexta-feira (08). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas o que está por trás, afinal, das chuvas devastadoras no Rio Grande do Sul? Segundo o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral de operações e modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o ciclone extratropical não foi a causa das fortes chuvas que atingiram a região, e sim sua consequência. "A causa da chuva foi uma frente fria estacionária, por isso choveu no fim de semana inteiro. Na segunda-feira, coincidiu uma área de baixa pressão na alta atmosfera. Essa combinação derivou na formação de um ciclone extratropical, que rapidamente se encaminhou para o oceano. Ou seja, ele foi a consequência e não a causa da chuva", explica Seluchi. Ciclones extratropicais como esse se formam praticamente todas as semanas no Oceano Atlântico, segundo meteorologistas. Eles são centros de baixa pressão atmosférica que se formam fora dos trópicos, em médias e altas latitudes, segundo explica Estael Sias, meteorologista da empresa MetSul Meteorologia. Comuns na história climática brasileira, esses fenômenos costumam se formar no extremo sul do país, entre o Rio Grande do Sul e Argentina e Uruguai, países vizinhos. "Ele é formado pelo contraste de massas de ar quente e frio. Parte da sua ação é sugar toda a umidade pra essa região do centro de baixa pressão e jogar para a atmosfera, resfriando e transformando a umidade em nuvens. É nesse processo que o fenômeno espalha chuva e vento", diz Sias. O problema é que, para alguns especialistas, as mudanças climáticas podem estar contribuindo para o surgimento de ciclones extratropicais atípicos, mais intensos, que podem se formar com mais rapidez e causar impacto maior. "Pela minha experiência de 20 anos de previsão de tempo, acredito que esse cenário das mudanças climáticas de alguma forma tem ajudado ou tem auxiliado na formação desses ciclones com características especiais", diz Sias. Para Marcelo Seluchi, do Cemaden, embora haja elementos para afirmar que sim, não existem dados conclusivos para confirmar com 100% de certeza que as mudanças climáticas estão deixando os ciclones extratropicais mais intensos. "Para afirmar isso precisaria ter uma análise de dados de ciclones por décadas. E por que não temos esses dados? Porque os ciclones se formam no oceano e precisamos de dados de satélites, e esses dados nós só temos faz uns 20 ou 30 anos. Então, não dá para fazer essa análise. A resposta honesta é 'não sei'", explica.
2023-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd10r9l3g7yo
brasil
O misterioso animal híbrido de 'raposa' e cão encontrado em estrada do RS
Em 2021, um animal parecido com um cachorro foi encontrado atropelado numa estrada localizada no município de Vacaria, no Rio Grande do Sul. A fêmea foi resgatada ainda com vida pelo biólogo Herbert Hasse Junior, em parceria com a patrulha ambiental da cidade. Numa primeira análise, o especialista identificou a vítima do acidente de trânsito como uma espécie silvestre. Ela foi encaminhada para o hospital veterinário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui uma equipe especializada em lidar com casos como esse. E foi aí que essa história ganhou uma primeira reviravolta. Ao retirar o bicho ferido da caixa de transporte, a pesquisadora Flávia Ferrari observou que ele era muito diferente do graxaim-do-campo. Fim do Matérias recomendadas Essa espécie, similar a uma raposa, tem pelagem bege e cinza e é endêmica da América do Sul, especialmente em áreas da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia e da região sul do Brasil. Vale destacar que, apesar de ser chamada popularmente de raposa, trata-se de uma espécie diferente. O animal foi então transferido para o canil, que trata de espécies domésticas. Foi aí que veio a segunda surpresa. O comportamento desse indivíduo não era nada semelhante ao de um cachorro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele se recusou completamente a comer ração, por exemplo. Os cuidadores, então, decidiram fazer um experimento e ofereceram pequenos roedores ao canídeo misterioso. E ele comeu sem pestanejar — como se espera de um graxaim-do-campo. Com a descoberta, a vítima de atropelamento foi enviada mais uma vez para o setor de animais silvestres. A dúvida se manteve mesmo quando o geneticista Thales Renato Ochotorena de Freitas, do Instituto de Biociências da UFRGS, foi convocado a dar um parecer. "A primeira coisa que me chamou a atenção foi a cor da pelagem, que era bastante escura. Ele também latia igual a um cachorro", lembra o cientista. Sabe-se que os graxains-do-capo emitem um ganido breve e agudo. Resumindo: o bicho comia como um graxaim-do-campo silvestre, mas latia feito cão doméstico. Afinal, a qual espécie ele pertencia? Para responder a essa pergunta de forma definitiva, Freitas escalou outros dois especialistas. O primeiro deles, o citogeneticista Rafael Kretschmer, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi incubido de vasculhar os cromossomos do animal. Vale lembrar aqui que os cromossomos são as estruturas que abrigam todo o material genético de um ser vivo. Eles são herdados diretamente dos genitores — metade da mãe, metade do pai. Se o bicho atropelado fosse um cachorro doméstico (Canis lupus familiaris), ele teria 78 cromossomos. Agora, caso fosse um graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus), contaria com 74 unidades dessa estrutura. "Fizemos uma biópsia da pele e uma cultura celular [cultivo de células em laboratório]. Ao fazer a análise, descobrimos que o animal tinha 76 cromossomos", relata Kretschmer. O único canídeo que aparece no Rio Grande do Sul com esse número de cromossomos é o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), mas os cientistas logo descartaram a ideia de o indivíduo pertencer a esta espécie pelas próprias características físicas dele. A partir desse trabalho, eles chegaram a uma outra conclusão: o animal não era um cachorro ou um graxaim-do-campo, mas, sim, uma mistura das duas coisas. O número inusitado de cromossomos poderia ser explicado pelo cruzamento entre representantes dessas duas espécies. Do cachorro, vieram 39 cromossomos (metade do total). Do graxaim-do-campo, 37. A combinação dos dois chega exatamente aos 76 cromossomos encontrados pelo laboratório gaúcho. Para confirmar o achado, a bióloga Bruna Elenara Szynwelski, da UFRGS, fez uma análise dos genes do híbrido. "A primeira coisa que olhamos foi o DNA mitocondrial, que é herdado exclusivamente da mãe" aponta a especialista. O DNA mitocondrial fica fora do núcleo da célula, separado do restante do DNA, numa estrutura responsável pela geração de energia — a mitocôndria. "E foi aí que observamos que a linhagem materna desse indivíduo era de graxaim-do-campo", informa Szynwelski. Ao analisar o DNA completo, os pesquisadores descobriram trechos de genes exclusivos dos cachorros, e outros que só aparecem nos graxains-do-campo. A partir disso, eles puderam concluir definitivamente que a vítima do atropelamento era um híbrido. Essa foi a primeira vez que esse fenômeno foi descrito em detalhes na América do Sul — há casos semelhantes registrados com outros canídeos na África, na Europa e na América do Norte. Após a recuperação das lesões do atropelamento, o canídeo foi castrado e enviado ao Mantenedouro São Braz, um santuário e zoológico sediado em Santa Maria, também em terras gaúchas. Os envolvidos na investigação suspeitam que esse mesmo animal fora flagrado em outras ocasiões no passado. Em 2019, Hasse Junior — o mesmo biólogo que realizou o resgate em 2021 — avistou um canídeo de aparência estranha na região de Vacaria. À época, ele gravou um vídeo, e a equipe acredita que se trata do mesmo animal. Isso porque, nos registros obtidos em 2019 e 2021, é possível ver uma mancha branca no tórax de ambos os animais. Mas a história reservou uma terceira surpresa a todos os envolvidos. Um dia depois da entrevista à BBC News Brasil, realizada em 29 de agosto, os pesquisadores da UFRGS enviaram um email com uma notícia inesperada. "Assim que terminamos a reunião, ligamos para o santuário [o Mantenedouro São Braz] para solicitar fotos atuais do híbrido", escreveram os autores do estudo. "Quem atendeu nos informou que o animal morreu há cerca de meio ano." Os cientistas confirmaram a informação numa segunda interação via WhatsApp com o mantenedouro, mas ainda estão tentando entender o que causou a morte do animal. A BBC News Brasil também tentou contato com o Mantenedouro São Braz por meio de mensagens de texto, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem. Enquanto ainda tentam descobrir o que está por trás da morte do híbrido, os especialistas envolvidos com a história avaliam os possíveis impactos que os cruzamentos entre espécies de canídeos podem ter. "Esse fenômeno pode ser bastante prejudicial, por diferentes aspectos", diz Szynwelski. "Um deles é a adaptação desse animal na natureza. O graxaim-do-campo tem uma coloração bem próxima do habitat, o que permite uma camuflagem para caçar e se esconder dos predadores. Já o híbrido, que nasceu com pelagem escura, não tem esse mesmo atributo", exemplifica ela. "E há uma possível troca de doenças entre espécies. Os cachorros domésticos podem passar certas condições para animais selvagens e isso virar um problema sério", antevê Freitas. "Quando a gente pensa na conservação de espécies, precisamos fazer projeções a longo prazo. E agora vamos explorar e estudar todas essas questões daqui em diante", conclui Szynwelski.
2023-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czqe8181nzzo
brasil
Como Londres reduziu mortes no trânsito com limite de velocidade de 30 km/h
Evidências científicas mostram que a redução da velocidade tem um impacto significativo na fatalidade associada a acidentes de trânsito. E Londres é um exemplo disso. A capital do Reino Unido viu uma redução de 25% (de 94 para 71 no período analisado) em colisões que resultaram em morte ou ferimentos graves depois que os limites de velocidade foram reduzidos para 20 milhas por hora (cerca de 30 km/h) nas principais ruas da cidade, em março de 2020. O período analisado compara dados dos 26 meses terminados em fevereiro de 2023 com igual intervalo de tempo anterior à implementação da medida. Fim do Matérias recomendadas Já as colisões envolvendo pedestres, ciclistas e motociclistas caíram 36% (de 453 para 290). A queda foi ainda mais acentuada envolvendo apenas pedestres: 63% (de 124 para 46). Atualmente, mais da metade das ruas de Londres têm um limite de velocidade de 20 mi/h. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No ano passado, acidentes de trânsito na região metropolitana de Londres (ou seja, envolvendo vias com diversas velocidades) deixaram 101 pessoas mortas e outras 3.873 gravemente feridas. Cerca de 23 mil ficaram levemente feridas. Limites de velocidade mais baixos são um dos principais objetivos da gestão do prefeito de Londres, Sadiq Khan, para eliminar mortes e ferimentos graves na rede de transporte da cidade.     Segundo a TfL, órgão de transporte da Prefeitura de Londres, pessoas atropeladas por um veículo a 20 mi/h (32 km/h) têm cerca de cinco vezes menos probabilidade de morrer do que a 30 mi/h (48 km/h). Dados mundiais mostram que a velocidade a que as pessoas conduzem é o fator mais importante para determinar se uma colisão ocorre e a gravidade dos ferimentos das pessoas envolvidas. Em 2020, a velocidade contribuiu para 48% das colisões fatais na cidade. Desde que os limites de velocidade de 20 mi/h foram introduzidos em Londres, houve reduções de 1,7 a 5 mi/h na maioria dos locais monitorados pela TfL. Segundo o órgão, a análise dos tempos de viagem, fluxos de tráfego e velocidades sugere que o limite de velocidade de 20 mi/h não aumentou o congestionamento. A TfL informou que vai realizar análises quantitativas adicionais para avaliar o impacto "na suavização dos fluxos de tráfego". Segundo a Prefeitura de Londres, "os novos limites de velocidade também tornaram uma grande parte de Londres mais segura para as pessoas viverem, trabalharem e se deslocarem, incentivando mais londrinos a abandonarem os seus carros para caminharem, andarem de bicicleta e utilizarem os transportes públicos". "Mais pessoas utilizam agora formas mais saudáveis e sustentáveis de transporte, o que é vital para reduzir o congestionamento e a poluição atmosférica", informou a Prefeitura em comunicado.    A Tfl também está trabalhando com a Met Police, a polícia metropolitana londrina, para aumentar sua capacidade de tomar medidas coercivas contra motoristas e passageiros que desrespeitam os limites de velocidade. No período entre 2021 e 2022, a Met aplicou 476.685 infrações por excesso de velocidade, um aumento de 72% em comparação com o ano anterior.       Em nota, Will Norman, comissário de Caminhadas e Ciclismo de Londres, disse que "reduzir a velocidade é uma das coisas mais importantes que podemos fazer para reduzir o perigo nas ruas e tornar mais fácil e seguro para as pessoas caminharem, andarem de bicicleta e usarem o transporte público, criando uma Londres mais segura e verde para todos." Para Penny Rees, da TfL, "os limites de velocidade de 20 mi/h (32 km/h) não apenas salvam vidas, mas também incentivam os londrinos a viajar de maneira mais ativa e sustentável. Esperamos ver a expansão do programa beneficiar mais áreas de Londres", disse em comunicado.    Londres não está sozinha em reduzir os limites de velocidade em suas vias; trata-se de uma tendência mundial. A capital da França, Paris, reduziu seu limite de velocidade de 50 km/h para 30 km/h em agosto de 2021. Em janeiro daquele ano, a capital da Bélgica, Bruxelas, já havia limitado a velocidade a 30 km/h nas ruas da cidade. Na Espanha, por exemplo, o limite de velocidade nas vias de sentido único em vilarejos e cidades é de 20 km/h, 30km/h em vias com uma faixa em cada sentido e 50km/h em vias com duas faixas em cada sentido. A medida foi tomada em maio de 2021 após números oficiais mostrarem que, pela primeira vez em 2019, a proporção de pedestres, ciclistas e motocilistas mortos nas vias espanholas excedeu os mortos em veículos. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade máxima permitida deve ser igual ou inferior a 50 km/h em vias urbanas. Segundo o DataSus, que compila dados do Sistema Único de Saúde, em 2021 morreram 33.813 mil pessoas em acidentes de trânsito no Brasil, um crescimento de 3,5% em relação ao ano anterior. O ator Kayky Brito foi atropelado na madrugada do último sábado (2/9), na avenida Lúcio Costa, na orla da Barra da Tijuca. Brito teve politraumatismo e traumatismo craniano. O artista segue internado em estado grave na UTI do Hospital Copa D’Or. Imagens de vigilância divulgadas posteriormente mostram que o motorista do veículo tentou frear e desviar do ator, mas acabou o atingindo de frente. A polícia constatou que o condutor não havia ingerido bebidas alcoólicas. Ele alegou à polícia que estava dentro da velocidade permitida no momento do acidente e prestou socorro. Uma perícia será iniciada para confirmar a versão do motorista.
2023-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg49knx45lo
brasil
Feminicídio: 4 mulheres são mortas por dia no Brasil — por que isso ainda acontece com tanta frequência?
Mariele Bueno Pires, de 20 anos, foi achada morta em casa, em Ponta Grossa, no Paraná, em 23 de agosto. Em seu corpo seminu, havia ao menos vinte perfurações feitas com uma faca. Inicialmente, a Polícia Civil acreditava se tratar de um latrocínio – roubo seguido de morte –, mas as investigações apontaram para um feminicídio. O principal suspeito do crime era seu companheiro, um rapaz de 26 anos. Imagens de câmeras de segurança de outras casas registraram que ele esteve no local e saiu pouco antes de o crime ser descoberto por vizinhos. Ele ainda teria colocado fogo em parte do imóvel na tentativa de esconder o crime. O rapaz foi preso no dia seguinte e confessou o assassinato. Fim do Matérias recomendadas A crueldade com que Mariele foi morta choca, mas não é uma situação isolada no Brasil. Em 18 de agosto, a médica Thallita da Cruz Fernandes, de 28 anos, foi assassinada com ao menos 30 facadas no apartamento onde morava em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, e colocada em uma mala. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Também foram câmeras de segurança que mostraram à polícia que o namorado de Thallita foi a única pessoa que saiu do imóvel no dia do crime. O rapaz foi preso no dia seguinte e confessou que matou a namorada. Segundo a Polícia Civil, o crime aconteceu depois que a médica tentou romper seu relacionamento de três anos. Mariele, Thallita e outras centenas de mulheres são mortas todos os anos no país em crimes de feminicídio. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, em 2022, uma mulher foi morta a cada seis horas no país. No total, foram 1.437 vítimas de feminicídio no ano passado, um aumento de 6,5% em relação aos 1.347 registrados em 2021. Esse alto índice de mulheres vítimas de feminicídio está relacionado a fatores como a crença de que as mulheres são subalternas aos homens e que suas vontades são menos relevantes, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Uma visão que faz com que mulheres sejam vistas por muitos homens como objetos de sua propriedade. "Ainda há muitos crimes devido à cultura machista e sexista que existe no país, que coloca o sexo feminino como um ser inferior, que não tem direito a ter suas próprias vontades e que está submissa à vontade do homem, devendo sempre fazer o que ele quer", explica Deíse Camargo Maito, professora de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) que pesquisou sobre violência contra a mulher. O anuário produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, em sete de cada dez femincídios no país, a vítima foi morta dentro da casa em que vivia. Na maioria das vezes, o autor do crime foi seu parceiro (53,6%) ou ex-parceiro (19,4%). Em 10,7%, a mulher foi morta por outro familiar, como filho, irmão ou pai, em 8%, por algum conhecido, e em 8,3% por uma pessoa desconhecida. "O agressor não aceita o término da relação ou ele não aceita a autonomia da mulher dentro dessa relação. Por isso que a maioria dos feminicídios é cometido por alguém muito íntimo", diz Maito. "Essa pessoa, tão próxima, é a que apresenta mais perigo, porque ela tem mais acesso a essa mulher." O assassino nem sempre se apresenta como uma pessoa violenta o tempo todo, explicam os especialistas, e isso pode confundir a vítima sobre o que ela está passando no relacionamento. Na maioria das vezes, ele tenta justificar a sua atitude agressiva colocando a culpa na vítima. "O agressor é uma pessoa de comportamento normal e carinhosa. Em um momento de tensão ele comete um ato de violência e logo em seguida ele se desculpa e o relacionamento vive um momento da lua de mel", afirma Juliana Fontana Moyses mestre em Direito pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto e doutoranda no Programa de Direitos Humanos. "Com isso, a tendência é que essa violência vá ficando pior, podendo se potencializar até chegar no feminicídio." Entre as vítimas de feminicídio no Brasil, 71,9% tinham entre 18 e 44 anos — o maior percentual se concentra na faixa entre 18 e 24 anos (16,1%). "Essas jovens estão no início da vida com menos conhecimento de que aquelas atitudes do parceiro é uma violência contra ela. Por não terem essa visão, elas pedem menos ajuda às suas famílias e ao seu entorno", diz Maito. O feminicídio é a forma de violência mais grave contra a mulher. Mas, antes de acontecer o crime, a mulher passa por outros tipos de violência como agressões, violência sexual, psicológica e ameaças. Por isso, dizem especialistas, é importante que todos que convivem com mulheres que podem estar em uma relação abusiva fiquem atentos aos sinais para ajudá-la a quebrar o ciclo de violência em que está inserida. "Os sinais são muito claros, tudo começa com desrespeito à opinião, depois o cerceamento do convívio dessa mulher com outras pessoas, a violência psicológica, verbal e moral, e por fim, o ponto mais crítico, a violência física", diz Lazara Carvalho, advogada especialista em resolução de conflitos e chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Justiça. No entanto, mudar essa realidade de comportamento e pensamento da sociedade, dizem os especialistas, exige uma mudança cultural, o que não é uma tarefa fácil e pode demorar décadas. "É necessária uma educação centrada no antimachismo, que ensine aos nossos meninos e meninas o valor das liberdades individuais, a garantia dos direitos humanos de todas as pessoas, independente do gênero, e a necessidade da construção de vínculos afetivos saudáveis baseados no respeito e na cooperação", avalia Carvalho. Em uma situação de emergência, é possível buscar ajuda em qualquer delegacia de polícia ou ligar para o 190, da Polícia Militar. Já em caso de suspeita ou violação dos direitos da mulher, a vítima ou qualquer pessoa pode pedir ajuda na Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180 ou pelo WhatsApp (61) 9610-0180. Dados do governo federal mostram que, no primeiro semestre de 2023, a central de atendimento registrou 51,78 mil denúncias e 267,76 mil violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres - uma denúncia pode conter mais de uma violação de direitos humanos. O Ligue 180 orienta sobre os direitos das mulheres e sobre os serviços da rede de atendimento em todo o Brasil, além de analisar e o serviço encaminha as denúncias para os órgãos competentes como: conselhos tutelares, CRAS, CREAS, delegacias de polícia e Ministério Público. "Por meio do atendimento integrado, buscamos oferecer apoio e solução para essa mulher conseguir deixar o ciclo de violência e se reestruturar", explica Denise Motta Dau, secretaria nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, do Ministério das Mulheres. "Além disso, as mulheres também podem procurar as Casas da Mulher Brasileira para receber ajuda e até mesmo abrigo por um dia, caso necessário. Os atendimentos também estão voltados para ajudar a essa vítima conseguir um emprego.”
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqqg2ezpk3po
brasil
Cartão de crédito: juros do rotativo podem cair?
Os juros do crédito rotativo — a modalidade mais cara do mercado e temor de muitos brasileiros endividados — podem passar a ter um limite. A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (5/9) o texto-base do projeto de lei que prevê limite para o total cobrado de juros e encargos sobre o valor original da dívida. O projeto segue para votação no Senado. Segundo o projeto, as instituições financeiras devem propor ao Conselho Monetário Nacional (CMN) limites para juros e encargos cobrados no parcelamento da fatura nas modalidades rotativo e parcelado. A autarquia terá 90 dias, a partir da proposta, para fixá-los. O CMN é o órgão superior do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e tem a responsabilidade de formular a política da moeda e do crédito. Se esses limites não forem aprovados dentro desse prazo, contados da publicação da futura lei, o valor cobrado em juros e encargos não pode ultrapassar o valor original da dívida. Fim do Matérias recomendadas Mas não é o que acontece hoje. Em julho, segundo o Banco Central (BC), a taxa média de juros cobrada pelos bancos de pessoas físicas no rotativo do cartão de crédito foi de 445,7% ao ano, alta de 8,7 pontos percentuais em relação ao mês anterior. No caso do parcelado, a taxa foi de 198,4%, acima dos 196,1% de junho. Por exemplo, alguém que tenha dívida de R$ 1.000 no rotativo, pagaria um ano depois R$ 4.457 em juros, além do valor inicial. No parcelado, seriam R$ 1.984 em juros, além do valor inicial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No início de agosto, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou que a solução para o problema dos juros elevados e da inadimplência do cartão de crédito no país deve passar pela extinção do crédito rotativo. Na ocasião, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o crédito rotativo é o "maior problema de juro" no país hoje. Como resultado, Fazenda, Febraban (Federação Brasileira de Bancos ) e parlamentares costuraram o texto do projeto de lei. Para a Febraban, contudo, a solução para os juros rotativos passa pelo redesenho das compras parceladas. "Defendemos que deve ser mantido o cartão de crédito como relevante instrumento para o consumo. Da mesma forma, deve haver o reequilíbrio da grande distorção que só o Brasil tem, com 75% das compras feitas com parcelado sem juros", informou a federação em nota divulgada no início de agosto. Apesar desse debate, o parecer preliminar de Santana não tratou de modificações no parcelamento de compras sem juros.
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5xljyyxk2o
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A longa viagem de Dom Pedro 1º que culminou no Grito do Ipiranga
*O texto foi publicado originalmente em 6 de setembro de 2018 Que "ouviram do Ipiranga as margens plácidas" você já sabe, então não é preciso dizer que o episódio que entraria para a história do Brasil como a Independência, em 7 de setembro de 1822, ocorreu em São Paulo — no hoje bairro do Ipiranga, às margens do córrego do Ipiranga — e não no Rio de Janeiro, sede do governo à época. Mas o que fazia o intrépido dom Pedro pelas bandas paulistas? Por que essa viagem, a cavalo e mula, do Rio até São Paulo, pelo Vale do Paraíba, culminou no Grito do Ipiranga? O que fez o jovem nobre pelo caminho, neste périplo que ele iniciou como príncipe e terminou como imperador? Em busca dessas respostas, o pesquisador Paulo Rezzutti refez o trajeto, baseado no relato escrito em 1864 por um dos membros da comitiva de Dom Pedro, o major reformado Francisco de Castro do Canto e Melo, irmão da Marquesa de Santos. "Foram seis dias em que percorremos 1,3 mil km", conta Rezzutti, que é autor, entre outros, de D. Pedro: A História Não Contada, biografia do primeiro imperador do Brasil. Fim do Matérias recomendadas A viagem de Dom Pedro — que se estenderia por quase um mês — era importante do ponto de vista político. A província de São Paulo vivia um momento conturbado, com um princípio de motim em que parte da elite ameaçava se recusar a cumprir ordens da capital. "Dom Pedro veio firmar alianças com os fazendeiros, apaziguar o cenário e preparar terreno para a Independência", afirma Rezzutti. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A vinda de Dom Pedro para a Província de São Paulo era estratégica. A união do Brasil era um tema que estava sendo muito pensado e discutido depois que Dom João 6º retornou a Portugal. O risco da fragmentação do Brasil em pequenas repúblicas, como ocorreu na América Espanhola, era possível", aponta o historiador Diego Amaro de Almeida, pesquisador do Centro Salesiano de Pesquisas Regionais e vice-presidente do Instituto de Estudos Valeparaibanos. "Para evitar a submissão do Brasil a Portugal ou a desfragmentação do território, Dom Pedro precisava se mostrar um líder capaz de realizar um plano ambicioso de independência de um território de proporções continentais. E ainda precisava de apoio financeiro." Na época, o Vale do Paraíba era um dos motores econômicos do País. "Todos aqueles que produziam o café prosperavam, e de maneira rápida", lembra Almeida. "Ou seja: era o lugar ideal para firmar alianças." O fato de Canto e Melo ter integrado essa comitiva é um sinal do momento complicado. O militar integrava o grupo chamado de "leais paulistanos", uma tropa de correligionários da província que foi montada em janeiro de 1822, na época do episódio histórico conhecido como Dia do Fico, para manifestar apoio ao então príncipe. No total, 1,1 mil homens participavam dessa guarda especial. "Não foi fácil para o jovem príncipe e futuro imperador do Brasil enfrentar os diferentes caminhos que os membros da elite do país pretendiam trilhar. As influências externas eram muitas, mas os brasileiros, a ampla maioria, não desejavam voltar a ser colônia de Portugal", afirma Almeida. Neste contexto, diz o historiador, havia três possibilidades apontadas por lideranças. Uma era formada por portugueses que desejavam que Dom Pedro 1º retornasse a Portugal e que todas as leis que possibilitavam ao Brasil algum tipo de emancipação fossem derrubadas. Outro grupo, liderado por Joaquim Gonçalves Ledo, queria que o Brasil se tornasse independente. Mas desejava, contudo, que o país seguisse o rumo da América Espanhola, e as províncias se tornassem repúblicas. Entretanto, o modelo que prevaleceu foi o defendido por José Bonifácio de Andrada e Silva, que propunha que o Brasil se separasse de Portugal, mas que mantivesse a manutenção do regime monárquico constitucional, com a finalidade de preservar a unidade política e territorial. O especialista contextualiza assim o cenário que pressionava Pedro 1º. "Ele herdava um país com inúmeros problemas financeiros, políticos e sociais. Precisava e ansiava por todo apoio que pudesse, o que também exigiu um certo esforço de alguém que começava a compreender o tamanho de suas responsabilidades", diz. O príncipe saiu da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822. Tinha uma comitiva de 30 homens e um roteiro pré-determinado, com paradas estratégicas ao longo da rota até São Paulo. "Entre os membros da comitiva, estava Francisco Gomes da Silva, também conhecido como o Chalaça ou a Sombra do Imperador", cita Almeida. A primeira parada, apenas para pernoitar, foi na Fazenda de Santa Cruz, de propriedade da família imperial, ainda no Rio. "Existia, mesmo que de forma precária, uma logística para essas viagens, nas quais eram levadas certas quantidades de alimentos e água para os períodos mais longos", afirma o historiador. "E, por meio de mensageiros que acabavam partindo dos lugarejos antes da comitiva real, a próxima 'parada' já era anunciada com certa antecedência." No dia seguinte, a comitiva adentrava terras paulistas. O futuro imperador visitou o capitão Hilário Gomes de Almeida em suas terras, a então Fazenda Três Barras, em Bananal. De acordo com Rezzutti, o aristocrata estava doente e acamado. A conversa com o imperador, portanto, teria ocorrido em seu próprio quarto. O casarão ainda existe, apesar de ter passado por muitas reformas que o descaracterizaram. No local hoje funciona um hotel-fazenda. Uma das suítes, exatamente a que, acredita-se, tenha abrigado Dom Pedro, chama-se "imperial", em homenagem ao passado histórico. A parada seguinte, na Fazenda Pau D'Alho, em São José do Barreiro, se tornaria folclórica. Isto porque Dom Pedro, conforme os relatos da época, teria apostado corrida com os demais membros da comitiva e chegado antes do previsto, sozinho, à fazenda, então do Coronel João Ferreira. Ele bateu palmas e, sem se identificar como príncipe, pediu comida para a proprietária da casa. Ela o atendeu, mas pediu para que comesse na cozinha "porque a sala de jantar estava sendo preparada com toda a pompa e circunstância para receber o príncipe regente", como conta Rezzutti. "Dom Pedro se fartou de assados e guisados, na companhia de escravas e mucamas", pontua o historiador Almeida. Este episódio teria ocorrido em 17 de agosto de 1822. No mesmo dia, a comitiva do príncipe chegou à casa do capitão-mor Domingos da Silva, em Areias. O imóvel ainda existe e, hoje, ali funciona um hotel. No dia seguinte, uma parada rápida, apenas para almoço, em Porto Cachoeira, hoje Cachoeira Paulista. Na noite do dia 18, Dom Pedro chegou a Lorena. Era um parada importante do ponto de vista político, pois ali o príncipe se hospedaria na casa do capitão-mor Ventura José de Abreu. O futuro imperador cumpriu uma espécie de agenda pública na cidade. Teria plantado uma palmeira no que se tornaria a rua das Palmeiras, no centro do município, visitado a antiga Casa de Câmara e Cadeia e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. No dia 19 de agosto, o grupo partiu para Guaratinguetá, onde Pedro foi hóspede do capitão-mor Manoel José de Melo. "O imóvel não foi preservado", conta Rezzutti. Ali, conforme apurou o pesquisador, a comitiva teria aumentado, com a adesão de novos seguidores, em uma espécie de guarda de honra. Dom Pedro tinha novo compromisso público: visitar a então capela de Nossa Senhora Aparecida, hoje no município de Aparecida. Tratava-se de um importante ponto de peregrinação católica, pois o pequeno templo havia sido erguido justamente para abrigar a imagem da santa, chamada de Nossa Senhora Aparecida, encontrada ali na região em 1717 e, depois, proclamada padroeira do Brasil. Rezzutti conta que antigos relatos afirmam que Dom Pedro teria rezado na igrejinha e feito uma promessa: se tudo corresse bem, ele faria de Nossa Senhora Aparecida a padroeira do Brasil independente. Na realidade, depois de se tornar imperador, Pedro 1º escolheu São Pedro de Alcântara como padroeiro. De lá, a comitiva partiu para Pindamonhangaba. Ali, o príncipe se encontrou com o influente major Domingos Marcondes de Andrade. "Dentre as muitas histórias registradas em diários, conta-se que Domingos Marcondes de Andrade estava montando em um garboso cavalo. Dom Pedro, ao ver o belo animal, começou a elogiá-lo, como que esperando a reação do proprietário", narra o historiador Almeida. "Quando mais o príncipe elogiava o cavalo, mais Marcondes de Andrade ficava mudo. Por fim, quando Dom Pedro foi mais incisivo, dizendo que lhe agradaria possuir um cavalo como aquele, Domingos Marcondes propôs um acordo." O major teria dito ao nobre que todos sabiam ser costume de Dom Pedro dar aos cavalos que ganhava o nome de seu proprietário anterior. "Mas, enfatizou o homem, nenhum Marcondes até aquela data tinha sido cavalgado por ninguém. Então ele daria, sim, o cavalo ao príncipe, desde que ele escolhesse outro nome para o animal", conta o historiador. Em Pindamonhangaba, dom Pedro se hospedou no sobrado do monsenhor Ignácio Marcondes de Oliveira Cabral, irmão do então capitão-mor. A residência não existe mais. Ali, foram tantos os que se ofereceram a integrar a comitiva, na chamada guarda de honra do príncipe, que há um monumento na praça central da cidade em alusão a este fato. E a igreja de São José guarda um panteão onde estão enterrados todos os pindamonhangabenses que integraram a guarda do nobre. No dia 21 de agosto, Dom Pedro chegou a Taubaté, onde seria recebido na casa do cônego Antônio Moreira da Costa – construção esta que não existe mais. Na cidade, visitou o convento de Santa Clara e a Igreja do Pilar. A parada seguinte seria Jacareí. Na época, havia uma balsa que ligava os dois municípios, em travessia pelo Rio Paraíba. "E então há uma outra anedota: a de que Dom Pedro, impaciente, não quis esperar a balsa e atravessou o rio a cavalo. Do outro lado, uma multidão o esperava, e ele, Pedro, sem pestanejar, saiu procurando alguém que usasse calças do mesmo tamanho que as dele, para propor a troca", relata o pesquisador Rezzutti. Conforme esses relatos, o "mérito" de ceder as calças ao futuro imperador teria ficado com um jovem pindamonhangabense, depois integrante da guarda de honra, chamado Adriano Gomes Vieira. Em Jacareí, Dom Pedro ficou hospedado na casa do capitão-mor Cláudio José Machado. Em Mogi das Cruzes, onde a comitiva chegou em 23 de agosto, Dom Pedro hospedou-se na casa do capitão-mor Francisco de Mello e assistiu à missa na então Igreja de Sant'Ana, hoje catedral homônima. Penha de França, hoje parte do município de São Paulo, foi a última parada antes da capital paulista. Dom Pedro dormiu ali uma noite, do dia 24 para o dia 25, e assistiu a outra missa na igreja matriz. O grupo chegou a São Paulo na manhã do dia 25 de agosto. Houve uma entrada oficial. Dom Pedro foi recebido por vereadores, religiosos e a população em frente à Igreja do Carmo. De acordo com Rezzutti, a Igreja da Ordem Terceira é a única coisa que restou dessa passagem do príncipe pelo local. Foram dias de muito trabalho até o 7 de setembro histórico. Na capital paulista, Dom Pedro convocou novas eleições e governou a província interinamente, recompondo o poder que andava ameaçado. Quando Dom Pedro saía em viagens, quem assumia o comando do País era a princesa – depois imperatriz – Leopoldina. Que, conforme o próprio Rezzutti detalha no livro D. Leopoldina: A História Não Contada - A Mulher Que Arquitetou a Independência do Brasil, biografia da primeira mulher de dom Pedro, não tinha nada da figura caricata e passiva que acabou sendo eternizada nos folhetins. Justamente enquanto Dom Pedro viajava pelo Vale do Paraíba, Leopoldina arquitetava a separação de Portugal. Em agosto de 1822, ela escreveu uma carta para sua irmã na qual dizia que "o Brasil é grande demais, poderoso e, conhecendo sua força política, incapaz de ser colônia de uma corte pequena". No mesmo período, remeteu também uma mensagem ao seu pai, na qual afirmou que "o nobre espírito do povo brasileiro se mostrou de todas as formas possíveis e seria a maior ingratidão e erro político crassíssimo se nosso empenho não fosse manter e fomentar a sensata liberdade e consciência de força e grandeza deste lindo e próspero reino, que nunca poderá ser subjugado pela Europa". Na correspondência, a princesa chamou Portugal de "pátria mãe infiel". "Leopoldina foi importante e brilhante no processo de Independência do Brasil. Fosse ao assumir o papel da regência enquanto o príncipe apaziguava os ânimos dos brasileiros, fosse na negociação para a separação de Portugal", acredita Almeida. "Nas poucas cartas que temos deste momento são evidentes a vontade e participação desta mulher que, juntamente com Dom Pedro I, tinham se unido no objetivo de separar o Brasil."
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw56kkzgnq6o