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Adesão à ata de registro de preços: sua criação e o que representa diante dos princípios que regem o procedimento licitatório
Resumo:O Sistema de Registro de Preços é um procedimento especial de Licitação, utilizado para registrar preços visando a contratação futura para a aquisição de bens e serviços. Foi introduzido no ordenamento jurídico pela lei nº 8.666/93, e regulamentado por decreto federal. Contudo, o decreto inovou ao permitir a adesão à ata de registro de preços por órgão não participante do procedimento licitatório, o que causa divergência entre doutrina e jurisprudência. Este trabalho, através de pesquisa bibliográfica, teve como objetivo realizar uma análise dos princípios que regem a administração bem como o procedimento licitatório e identificar as críticas, doutrinária e jurisprudencial, quanto à prática de adesão à ata de registro de preços conhecida como licitação “carona” em especial no que concerne ao surgimento da figura do “carona”. Conclui-se que, apesar de ser amplamente aceita no meio administrativo, esta prática contém vícios que a tornam ilegal, além de afrontar princípios da Administração Pública.
Direito Administrativo
1. Introdução A Administração Pública possui um regime jurídico que lhe confere prerrogativas e limitações. Dentre as limitações a que ela deve se submeter está o de realizar licitação para contratar, prática corriqueira dos órgãos da administração pública. Além disso, todas as atividades da Administração devem ser pautadas por princípios constitucionais implícitos e explícitos que norteiam a conduta administrativa, e no procedimento licitatório não é diferente. Este deve ser pautado por princípios que lhe garantam a lisura e o interesse público como finalidade maior a ser alcançada. Ademais, o procedimento licitatório também possui princípios próprios.  O Sistema de Registro de Preços (SRP), uma prática realizada entre os órgãos da Administração, está previsto no artigo 15, parágrafo 3º da Lei 8.666/93, lei geral de licitações. Este artigo deixa claro que esse sistema “será regulamentado por decreto”. Inicialmente o Decreto 3.931/01 regulamentou o SRP, até ser revogado, no ano de 2013, pelo Decreto 7.892/13, agora responsável pela regulamentação. O papel de um decreto no ordenamento jurídico brasileiro é dar fiel execução as leis. Ele está previsto no artigo 84, inciso IV da Constituição Federal, que trata das atribuições relativas ao Presidente da República. Os decretos não podem inovar no ordenamento, pois tratam-se de ato administrativo que veiculam o regulamento, servem apenas para especificar o que foi tratado pela lei. Acontece que tanto o decreto 3.931/01 quanto o atual decreto 7.892/13 prevêem que um órgão que não participou da pesquisa de preços possa contratar com o vencedor da licitação realizada por outro órgão através da adesão à ata de registro de preços. Esse órgão não participante ficou popularmente conhecido como “carona.” Isso é encarado como uma inovação ao ordenamento jurídico, pois a figura do “carona” em nenhum momento foi mencionada na lei geral de licitações ao criar o SRP, o que a torna uma figura ilegal para muitos. Assim, apesar de ser uma realidade, a prática da adesão à ata de registro de preços conhecida como “licitação carona” tem sido muito questionada pela doutrina devido ao modo como surgiu no ordenamento e, ainda, parece burlar alguns princípios da administração sendo tida por alguns como uma fraude à licitação, levantando posicionamentos diferenciados entre a doutrina e a jurisprudência sobre o assunto. Por isso, o tema torna-se relevante. O presente estudo pretende fazer uma análise dos princípios que regem a administração pública e, em especial, o procedimento licitatório, bem como, identificar as críticas realizadas à prática da adesão à ata de registro de preços, fazendo uma análise do surgimento do órgão não participante da licitação e de como a jurisprudência vem tratando o presente tema. Para tanto, será definido o que vem a ser licitação pública e identificado quais os princípios inerentes ao procedimento licitatório; em seguida, será explicado o SRP e definido o que vem a ser adesão à ata de registro e como esta surgiu no ordenamento, e feito um breve relato sobre o papel do decreto regulamentador no ordenamento jurídico brasileiro; após isso, serão identificadas as controvérsias que permeiam a prática da adesão à ata de registro de preços; e, por último, será identificado o posicionamento do Tribunal de Contas da União (TCU) a respeito do tema. A metodologia utilizada será a pesquisa bibliográfica por se tratar de uma apreciação realizada com a ajuda de livros, artigos científicos, legislação e pesquisa jurisprudencial a respeito do tema. Por fim, o trabalho será dividido nas seguintes partes: a primeira será destinada à licitação pública – definição, objetivos e princípios; a segunda tratar-se-á do Sistema de Registro de Preços, especificamente da adesão à ata de Registro e da figura do “carona”; a terceira tratará do Poder Regulamentar da Administração Pública; em quarto lugar trataremos das controvérsias relativas à prática da adesão à ata de registro de preços; e, por último, será exposto o posicionamento do TCU a respeito do tema em estudo. 2 Licitação: definição e finalidades A licitação é o procedimento administrativo prévio, na busca da melhor proposta, utilizado pela administração para a celebração de um contrato. Decorre do regime jurídico administrativo que estabelece prerrogativas e limitações à Administração Pública. Trata-se, assim, de uma limitação imposta pelo princípio da indisponibilidade do interesse público e de um dever da Administração Pública. A União tem competência para legislar sobre normas gerais de licitação de acordo com o artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal. A matéria tem ainda previsão em nossa Carta Magna no artigo 37, XXI; artigo 173, parágrafo 1º, III; e artigo 175. Além disso, é regulada por leis específicas. Em regra, a realização de licitação é obrigatória para os órgãos da administração direta e indireta, os fundos especiais, e demais entidades controladas, direta ou indiretamente, pelos entes federativos, conforme se observa pela leitura do parágrafo único do artigo 1º da lei geral de licitações, 8.666/93. Deve-se licitar sempre que houver a necessidade de contratação de obras, serviços, compras e alienações, além de concessão e permissão de serviços públicos. O artigo 3º da lei 8.666/93 estabelece as finalidades a serem alcançadas com o procedimento licitatório e cita alguns dos princípios que devem norteá-lo. Veja-se: “Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.” Dessa forma, conclui-se que todo o procedimento tem um fim seletivo e busca alcançar o interesse público. Para tanto, percebe-se a preocupação do legislador em realizar um procedimento pautado nos princípios que norteiam toda a conduta administrativa de forma a garantir sua lisura. Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, p. 309) define licitação como:“procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração do contrato.” 2.1 Princípios do procedimento licitatório Os princípios citados no artigo 3º da lei 8.666/93 estão explícitos ou implícitos no texto constitucional e na legislação administrativa como um todo. Existem ainda, princípios exclusivos do procedimento licitatório, tais como a vinculação ao instrumento convocatório, o julgamento objetivo, o sigilo das propostas e a adjudicação compulsória, entre outros, citados ao longo da referida lei. No caput do artigo 37 da CF/88 encontram-se os princípios nos quais a conduta administrativa deve ser pautada, e lá estão os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Todos, também, presentes no artigo 3º da lei que trata de licitações. Diante do princípio da legalidade, tem-se a obrigatoriedade da conduta administrativa coadunar-se com a lei. Dessa forma, só são consideradas aceitas condutas descritas em lei, de forma vinculada ou discricionária, mas sempre prevista legalmente.  Em relação ao princípio da impessoalidade, percebe-se que a administração deve agir de modo a não importar-se com quem será atingido pelo ato. Assim, deve existir uma ausência de subjetividade. Essa é uma das formas de garantir a isonomia. Já quanto ao princípio da moralidade, deve-se entendê-lo como uma busca a probidade, a honestidade, a boa-fé. Não se trata de uma moralidade moral, e sim, jurídica.  O princípio da publicidade busca facilitar o controle da administração por seus administrados, fazendo com que a atuação administrativa seja a mais transparente possível. Por outro lado, a publicidade também é necessária à eficácia dos atos administrativos, pois estes só são eficazes quando são publicizados. No caso do procedimento licitatório, esses princípios podem ser observados através dos atos que são praticados. A obediência às regras estabelecidas nas leis que tratam de legislação e a própria Constituição Federal espelha o princípio da legalidade, assim como a escolha do objeto e as regras da licitação para que qualquer pessoa que atenda àquelas exigências possa concorrer na licitação, coaduna-se com o princípio da impessoalidade. A moralidade deve permear o procedimento do início ao fim, e a publicidade é claramente observada nas regras de divulgação dos instrumentos convocatórios. Por outro lado: “Além da submissão aos princípios gerais do regime jurídico-administrativo, toda licitação está sujeita a determinados princípios irrelegáveis no seu procedimento, sob pena de se descaracterizar o instituto e invalidar seu resultado seletivo. Esses princípios resumem-se, para nós, nas seguintes prescrições: procedimento formal; publicidade de seus atos; igualdade entre os licitantes; sigilo na apresentação das propostas; vinculação ao edital ou convite; julgamento objetivo; adjudicação compulsória ao vencedor; e probidade administrativa.” (MEIRELLES, 2010, p. 31,32) O procedimento formal está intimamente ligado ao princípio da legalidade. Ele irá reger todo o procedimento licitatório fazendo com que tanto a administração quanto os licitantes obedeçam às mesmas regras procedimentais. Nesse sentido, o artigo 4º da lei 8.666/93 estabelece que todos os que participam da licitação “têm direito público subjetivo à fiel observância do pertinente procedimento”. Todavia, esse formalismo não deve ser exagerado a ponto de atrapalhar a seleção limitando a participação do número de licitantes e, assim, violar um objetivo básico da licitação que é a seleção da proposta mais vantajosa. A publicidade dos atos é inerente ao procedimento licitatório. Não existe licitação sigilosa de acordo com o parágrafo 3º da lei geral de licitações. Em casos onde deve ser observado o sigilo em virtude da segurança nacional, estes devem ser realizados com dispensa de licitação. A igualdade entre os licitantes tem como base o princípio da isonomia e, tanto proporciona à administração a possibilidade de realizar o melhor negócio, como assegura aos concorrentes, igualdade de condições. Contudo, não fica proibido à Administração estabelecer requisitos mínimos para os licitantes participarem da licitação. O que se veda é a discriminação, o favorecimento de uns em detrimento de outros, o que comprometeria o caráter competitivo do certame. O sigilo das propostas está intimamente ligado a manutenção do caráter competitivo do procedimento licitatório bem como do julgamento objetivo das propostas. Está previsto no artigo 3º, parágrafo 3º, da lei 8.666/93 e sua inobservância dá ensejo à nulidade do procedimento e é prevista como crime. A vinculação ao edital deixa administração e licitantes diretamente ligados ao instrumento convocatório, que deve conter todas as regras relacionadas ao procedimento licitatório e ao futuro contrato. Todavia, não é um princípio absoluto, devendo-se garantir que o exagerado formalismo não atrapalhe a busca pela melhor proposta como explicado anteriormente. De acordo com Hely Lopes Meirelles (2010, p. 51), “(…) estabelecidas as regras do certame, tornam-se obrigatórias para aquela licitação durante todo o procedimento licitatório e para todos os seus participantes, inclusive para o órgão ou entidade licitadora.” O julgamento objetivo é o critério utilizado para a escolha do vencedor. É explícito no instrumento convocatório. Não existe, aqui, discricionariedade por parte do administrador, portanto, este se encontra vinculado ao estabelecido no edital. A adjudicação compulsória é o direito subjetivo do vencedor de contratar com a administração caso esta assim o deseje. Não garante o contrato administrativo, apenas uma expectativa do contrato. Isso porque a administração pode revogar ou anular a licitação em caso de interesse público ou ilegalidade, respectivamente. O que fica proibido é a contratação da Administração com outro que não seja o vencedor do certame. Hely Lopes Meirelles (2010) alerta que além de obrigar a Administração a contratar com o adjudicatário, esse princípio veda a abertura de uma nova licitação enquanto válida a adjudicação anterior. A probidade administrativa é dever de todo administrador público, está prevista constitucionalmente, e sua não observância além de acarretar a nulidade da licitação coloca o servidor e o particular que incorreu em improbidade sujeitos as penalidades da lei 8.429/92. 3 O sistema de registro de preços (SRP) O Sistema de Registro de Preços está previsto no artigo 15, inciso II, da lei geral de licitações, 8.666/93, e no artigo 11 da lei nº 10.520/02, que regula o pregão. Na esfera federal foi inicialmente regulamentado pelo Decreto 3.931/01, que foi recentemente revogado pelo Decreto 7.892/13, atualmente vigente. De acordo com o artigo 15 da lei 8.666/93, “As compras, sempre que possível, deverão: (…) II- ser processadas através do Sistema de Registro de Preços”. Segundo Marçal Justen Filho (2010), a expressão “sempre que possível” não quer dizer que se trata de uma discricionariedade da administração, portanto, em casos onde a administração não optar pelo SRP é necessário fundamentar sua decisão, deixando claros os motivos de sua não utilização. O referido artigo lei 8.666/93 que trata sobre as compras realizadas pela administração tenta trazer para o setor público as vantagens dos negócios realizados no setor privado. “O artigo 15 evidencia que a contratação administrativa não deve ser mais onerosa e menos eficiente do que a do setor privado. Um dos meios fundamentais de obtenção da eficiência consiste no sistema de registro de preços. Através dele, a administração poderá efetivar aquisições de modo mais eficaz. (…)” (JUSTEN FILHO, 2010, p. 184) O Decreto 7.892/13, em seu artigo 2º, inciso I, define SRP como um “conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras”.   Ainda de acordo com o aludido Decreto, o SRP poderá ser adotado em casos de contratações freqüentes; aquisições de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou regime de tarefas; atendimento a mais de um órgão ou programas de governo; e, ainda, quando não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado. (art. 3º, Decreto 7.892/13) Será, ainda, precedido de ampla pesquisa de mercado e deverá ser realizada nas modalidades concorrência e pregão, de acordo com as leis 8.666/93 e 10.520/02, respectivamente. Excepcionalmente, poderá ser utilizado o julgamento por técnica e preço nos moldes do parágrafo 1º do atual decreto regulamentador, 7.892/13. Terá validade de, no máximo, 01 ano, e os preços registrados poderão ser impugnados por qualquer cidadão. A dotação orçamentária não precisa ser indicada na licitação para registro de preços, esta somente será exigida para a formalização do contrato. Ao final do procedimento licitatório tem-se a ata de registro de preços, definida como:“documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas.” (art. 2º, II, Decreto 7.892/13) Justen Filho (2010) enumera as vantagens do SRPcomparado às licitações comumente realizadas: economia de tempo, profissionais e dinheiro já que o SRP elimina a burocracia, os custos e os desgastes de uma grande quantidade de licitações, tornando-se mais eficiente; rapidez na contratação e melhor gestão dos recursos financeiros, pois se pode realizar a licitação sem dotação orçamentária; prazo maior de validade da ata de registro de preços, visto que na licitação comum se a administração não contratar dentro de 60 dias com o adjudicatário, este está liberado, não sendo mais obrigado a contratar e, assim, corre-se o risco da realização de uma nova licitação para o mesmo objeto; não obrigatoriedade de estimar exatamente a quantidade e qualidade a ser contratada, podendo contratar quantidades superiores ou inferiores a estimada no edital a depender da necessidade do órgão; e por fim, o fato da aquisição poder ser destinada a diferentes órgãos, em razão de uma mesma ata de registro poder ser utilizada para várias compras de vários órgãos. A licitação para o SRP é composta por um órgão gerenciador, assim definido como “órgão ou entidade da administração pública federal responsável pela condução do conjunto de procedimentos para registro de preços e gerenciamento da ata de registro de preços dele decorrente”, e por órgãos participantes, definidos como “órgão ou entidade da administração pública federal que participa dos procedimentos iniciais do Sistema de Registro de Preços e integra a ata de registro de preços”. (art. 2º, III, IV, Decreto 7.892/13) Além desses, é possível verificar a presença de órgãos não participantes, também pertencentes à Administração Pública que, apesar de não terem participado do procedimento de licitação, fazem adesão à ata de registro de preços, desde que atendam aos requisitos do atual decreto. Esses órgãos ficaram popularmente conhecidos como “carona”. 3.1 Adesão à ata de registro de preços: a figura do “carona” e sua previsão legal A adesão à ata de registro de preços se dá com a possibilidade de um órgão ou entidade que não participou do procedimento licitatório aderir à ata e adquirir os bens e serviços licitados por órgão diverso. Teve sua previsão inicialmente no artigo 8º do Decreto 3.931/01, que apesar de prever o “carona”, não regulava de maneira adequada a sua participação na ata nem impunha limites à adesão. Isso fez com que essa prática fosse alvo de críticas das mais diversas e culminou com a orientação do Tribunal de Contas da União (TCU)para que este Decreto fosse revisto e alterado no que fosse necessário a regulamentação da prática. Assim, em janeiro de 2013, foi aprovado um novo Decreto que revogava o anterior, trata-se do Decreto 7.892/13. Este novo Decreto continua fazendo previsão à figura do “carona”, no artigo 22, e agora o define como órgão não participante, dedica um capítulo inteiro para tratar do tema, regulando, assim, a maioria dos pontos controvertidos apontados pela doutrina e jurisprudência. “Art. 22 Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.” O atual Decreto regulamentador define o órgão não participante como aquele que “não tendo participado dos procedimentos iniciais da licitação, atendidos os requisitos desta norma, faz adesão à ata de registro de preços.” (art. 2º, V, Decreto 7.892/13). De início, fica claro que o órgão não participante da ata deve demonstrar a vantagem de aderir à ata de outro órgão ao invés de realizar uma licitação própria. Além disso, o fornecedor beneficiário da ata deve concordar com a adesão de modo a não prejudicar as obrigações assumidas com os órgãos gerenciador e participantes da licitação. Ademais, as aquisições ou contratações adicionais provenientes da adesão à ata não podem exceder a 100% dos quantitativos previstos no instrumento convocatório para os órgãos gerenciador e participantes. Aliás, no edital de licitação deve constar a estimativa das quantidades a serem adquiridas pelos órgãos gerenciador, participantes e não participantes, conforme artigo 9º do Decreto 7.892/13. Além do mais, deve constar no instrumento convocatório a previsão de que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder ao quíntuplo do quantitativo previsto para os órgãos que participaram da licitação, independente do número de órgãos não participantes que aderirem à ata. Por fim, o órgão não participante, em regra, só poderá aderir à ata de registro de preços após a primeira aquisição ou contratação realizada por órgãos integrantes da ata, sendo que depois de autorizado pelo órgão gerenciador terá 90 dias para realizar a aquisição ou contratação do bem ou serviço, observado o prazo de vigência da ata. 4. Do poder regulamentar da administração Os decretos 3.931/01 e 7.892/13 decorreram do poder regulamentar da administração. Para tratar deste poder, é interessante falar sobre as funções típicas dos Poderes Executivo e Legislativo. O Poder Legislativo inova a ordem jurídica, criando leis. Além disso, atua fiscalizando outros poderes conforme se infere da leitura dos artigos 58 e 70 a 75 da Constituição Federal. Enquanto isso, o Poder Executivo aplica a lei no caso concreto, seguindo o princípio da legalidade. Diferencia-se da aplicação da lei feita pelo Judiciário, pois, o Executivo aplica a lei para administrar a coisa pública, enquanto aquele a aplica para dirimir conflitos existentes. O chefe do Poder Executivo, no caso da União, o Presidente da República, é o responsável por colocar em prática o poder regulamentar. Ele acumula as funções de chefe de Estado e chefe de governo e tem suas atribuições previstas no artigo 84 da Constituição Federal, de forma exemplificativa. Entre essas atribuições está a de “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução” (inciso IV). Essa função está diretamente ligada ao processo legislativo e corresponde a função de chefe de governo. Trata-se de uma atribuição que não pode ser delegada. É necessário, para este estudo, que fique bem clara qual a diferença entre leis e decretos ou regulamentos. Leis são fontes primárias do Direito, normas gerais e abstratas de responsabilidade do Poder Legislativo. Estão previstas no artigo 59 da Constituição como espécie normativa e devem passar por um processo, chamado processo legislativo, para que sejam válidas e produzam efeitos. Trata-se de uma garantia do cidadão em virtude do Princípio da Legalidade estampado no artigo 5º, inciso II da CF que diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Já os decretos ou regulamentos são fontes secundárias, de responsabilidade do chefe do poder executivo, que com o objetivo de propiciar a fiel execução às leis, têm apenas a finalidade de detalhar, pormenorizar uma lei que já existe, assim, não passam pelo processo legislativo. Por esse motivo, não podem inovar o ordenamento jurídico. “A diferença entre lei e regulamento no Direito brasileiro, não se limita à origem ou à supremacia daquela sobre esta. A distinção substancial reside no fato de que a lei pode inovar originariamente no ordenamento jurídico, enquanto o regulamento não o altera, mas tão somente fixa as regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ele circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinada.” (MENDES, 2014, P. 930) Hely Lopes Meirelles (2010) entende o poder regulamentar como a faculdade que os chefes do executivo possuem de aplicar a lei para sua correta execução.  Em outras palavras, o chefe do Executivo irá emitir decretos ou regulamentos que visem dar operacionalidade a leis já existentes. Deste modo, conclui-se que o decreto não tem o objetivo de inovar no ordenamento, sendo até proibido fazê-lo. Só existem dois casos em que o decreto inova o ordenamento, eles estão previstos no artigo 84, inciso VI, da Constituição Federal, são os chamados decretos autônomos, contudo, não serão aqui detalhados por não fazerem parte desse estudo. Em síntese, é possível enumerar algumas características do Poder Regulamentar, são elas: é exercido pelo chefe do Poder Executivo; indelegável; exterioriza-se por meio de decreto (ato-forma); objetiva tão somente dar fiel execução à lei, não podendo inovar o ordenamento; surgem a partir de leis que possuem eficácia contida; e por fim, o Congresso Nacional pode sustar os atos normativos que exorbitem o poder regulamentar de acordo com o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal.  5. Controvérsias quanto a prática de adesão à ata de registro de preços O SRP possui inúmeras vantagens, já citadas anteriormente, e tem na participação de vários órgãos em torno de um mesmo procedimento licitatório e na não obrigatoriedade de contratar, talvez, suas maiores vantagens. A Administração ganha, assim, alguma flexibilidade diante de suas demandas e orçamento. Contudo, apesar das vantagens, o SRP gera algumas controvérsias quando se refere ao órgão não participante da ata, conhecido como “carona”. Essas controvérsias foram, inclusive, responsáveis pela revogação do Decreto 3.931/01 pelo Decreto 7.892/13, que melhor regula a atuação do órgão não participante da ata, após orientação do TCU. Parte da doutrina não vê com bons olhos a figura do “carona”. Não é incomum encontrar críticas à prática de adesão à ata, como se pode observar nas palavras de Lucas Rocha Furtado em sua obra Curso de Licitações e Contratos Administrativos (2010, p.343): “Não obstante a sistemática da carona se trate de medida que valoriza a eficiência e a economia processual, ela abre as portas à fraude e ao conluio” Marçal Justen Filho (2010), ao se referir ao carona diz: “O regulamento explicitamente admitiu a possibilidade de utilização do registro de preços por entidades não vinculadas originariamente à sua instituição (art. 8º). Posteriormente, foi introduzida inovação permitindo a superação dos quantitativos máximos previstos na licitação original, o que não apenas configura como ofensivo ao princípio da legalidade mas também infringe a essência da sistemática constitucional e legislativa sobre licitações e contratações administrativas.” (p.206) Continuando, o autor afirma que “a figura do carona é inquestionavelmente ilegal e eivada de uma série de vícios” (JUSTEN FILHO, 2010, p. 207). Para ele, existe infração ao princípio da legalidade, pois a figura do carona foi introduzida no ordenamento jurídico por meio de Decreto; infração ao princípio da vinculação ao edital; infração à disciplina da habilitação, pois os requisitos exigidos para habilitação dependem diretamente do objeto a ser licitado e sua quantidade. Segundo o autor supracitado, criou-se com a adesão à ata uma hipótese de dispensa de licitação e uma ofensa aos princípios da República e da isonomia. (JUSTEN FILHO, 2010) Gasparine (2012), ao se referir ao “carona” em sua obra, diz que “Sem nenhum apoio na Lei Federal Licitatória, o que torna de duvidosa legitimidade (grifo nosso), o art. 8º do Regulamento do Sistema de Registro de Preços introduziu a figura do carona” (p.559). Outro ponto que por vezes se discute em relação à adesão à ata é que por se tratar de uma discricionariedade do órgão não participante, e, por este de antemão já saber quem é o vencedor da licitação, ele estará escolhendo com quem contratar. Isso pode ser encarado como uma fraude ao procedimento licitatório, além de propiciar a corrupção. Nesse sentido Edgar Guimarães e Joel de Menezes Niebuhr citados por Helena Alves de Souza Dias, Juliana Cristina Lopes de Freitas Campolina e Juliana Gazzi Veiga de Paula, assentam: “O carona é o júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da corrupção, especialmente num país como o nosso, com instituições e meios de controle frágeis. Os lobistas e os corruptores não precisam mais propor o direcionamento de licitação; basta proporem o carona e tudo está resolvido.” (2008, p.124) Por outro lado, há doutrina que encontra aspectos positivos na adesão à ata de registro de preços, como é o caso de Jorge U. Jacoby Fernandes (2007), que ao se referir ao carona explica: “O carona no processo de licitação é um órgão que antes de proceder à contratação direta sem licitação ou a licitação verifica já possuir, em outro órgão público, da mesma esfera ou de outra, o produto desejado em condições de vantagem de oferta sobre o mercado já comprovadas. Permite-se ao carona que diante da prévia licitação do objeto semelhante por outros órgãos, com acatamento das mesmas regras que aplicaria em seu procedimento, reduzir os custos operacionais de uma ação seletiva. É precisamente nesse ponto que são olvidados pressupostos fundamentais da licitação enquanto processo: a finalidade não é servir aos licitantes, mas ao interesse público; a observância da isonomia não é para distribuir demandas uniformemente entre os fornecedores, mas para ampliar a competição visando a busca de proposta mais vantajosa.” Fernandes (2007) diz ainda que a Constituição Federal não vincula um contrato a uma única licitação. Além disso, a prática do carona pressupõe a realização de uma licitação onde foram observados os princípios da publicidade, isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública. Para Rafaela de Oliveira Carvalhaes, “O 'carona', também denominado Órgão Não Participante, constitui instrumento de gestão administrativa que privilegia os princípios da celeridade, economicidade e eficiência.” Como se pode perceber, o tema encontra defensores e opositores. As principais críticas à prática de adesão à ata são relativas à legalidade e a legitimidade da figura do carona e, também, à violação a princípios da Administração Pública bem como do procedimento licitatório. A criação de um novo Decreto corrigiu diversos pontos polêmicos que permeavam a prática de adesão à ata de registro de preços.  A principal mudança trazida foi em relação à limitação da adesão à ata. A obrigação de previsão no edital do quantitativo decorrentes das adesões à ata de registro e sua limitação ao quíntuplo do quantitativo de cada item conforme o parágrafo 4º, do art. 22, do Decreto 7.892/13, afasta as ofensas aos princípios da vinculação ao edital, da República e da isonomia, além da infração à disciplina da habilitação, todos citados por Marçal Justen Filho em sua obra e mencionados anteriormente. Sem dúvida, o que é mais questionável em relação à figura do “carona” é em relação a sua legalidade, e quanto a isso, de nada adiantou a edição de um novo Decreto. De fato, a Constituição Federal confere à Lei a tarefa de tratar sobre licitação. No âmbito Federal, a matéria é abordada principalmente na lei 8.666/93, além de outras que tratam de procedimentos específicos tais como o pregão e o regime diferenciado de contratações.    Em nenhum momento a lei que traça regras gerais, 8.666/93, menciona a possibilidade de adesão à ata de registro de preços. Assim, para muitos, o Decreto inovou no ordenamento jurídico extrapolando sua finalidade, que se restringe a pormenorizar a lei. Contudo, apesar dos aspectos negativos, são inegáveis os benefícios trazidos pelo SRP e também pela adesão à ata de registro, tais como a celeridade, a economia e a eficiência, que buscam trazer para o setor público as vantagens das condições estabelecidas no setor privado, quando realizados de maneira a atingir o interesse público. 6. O posicionamento do tribunal de contas da união (tcu) a respeito da adesão à ata de registros de preços A matéria Sistema de Registro de Preços, em especial, a adesão à ata por órgão não participante da licitação, sempre foi tema recorrente de processos nos Tribunais de Contas dos Estados e da União. O TCU mudou seu posicionamento no decorrer dos anos, admitindo a figura do carona, contudo, fazendo críticas a alguns pontos polêmicos, tais como a adesão à ata entre entes diversos da federação e a adesão ilimitada à ata de registro de preços. A Advocacia Geral da União (AGU) também se pronunciou a respeito da temática, e formulou a orientação de Nº 21 onde não recomenda aos órgãos federais aderirem às atas de órgãos estaduais e municipais. O caso mais emblemático que envolve o SRPanalisado pelo TCU foi o que deu ensejo ao acórdão 1.487/07. No caso em análise, o Ministério da Saúde realizou uma licitação através da modalidade Pregão e autorizou 62 órgãos e entidades a aderirem à ata de registro de preços. O valor estimado de contratações que, inicialmente, era de 32 milhões, poderia alcançar o valor de quase 2 bilhões, caso cada um dos 62 órgãos contratasse 100% do quantitativo previsto no edital, conforme autorizado pelo Decreto 3.931/01, em seu parágrafo 3º. Diante da situação em análise, o TCU considerou a prática ofensiva aos princípios da competição, da isonomia entre os licitantes, da vinculação ao edital, da economicidade e salientou que a administração perdia em economia de escala, haja vista não estar tirando proveito do quantitativo vendido pelo particular. Veja-se um trecho do voto do Relator do acórdão, Ministro Valmir Capelo: “8.Para além da temática principiológica que, por si só já reclamaria a adoção de providências corretivas, também não pode deixar de ser considerada que, num cenário desses, a Administração perde na economia de escala, na medida em que, se a licitação fosse destinada inicialmente à contratação de serviços em montante bem superior ao demandado pelo órgão inicial, certamente os licitantes teriam condições de oferecer maiores vantagens de preço em suas propostas.(…) 10.Vê-se, portanto, que a questão reclama providência corretiva por parte do órgão central do sistema de serviços gerais do Governo Federal, no caso, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, razão pela qual, acompanhando os pareceres emitidos nos autos, firmo a conclusão de que o Tribunal deva emitir as determinações preconizadas pela 4ª Secex, no intuito de aperfeiçoar a sistemática de registro de preços, que vem se mostrando eficaz método de aquisição de produtos e serviços, de modo a prevenir aberrações tais como a narrada neste processo.”(Acórdão 1.487/07) Após amplo debate a respeito do carona e da adesão ilimitada à ata de registro, determinou-se ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), no subitem 9.2.2 do acórdão, que reavaliasse as regras estabelecidas no decreto nº 3.931/2001, estabelecendo, principalmente, limites para a adesão à ata de Registro de Preços realizada por outros órgãos. Diante da decisão, o MPOG recorreu da decisão alegando que a adesão à ata era de extrema vantagem para a Administração e que o Decreto 3.931/01 apenas sistematizou a regra de dispensa de licitação prevista no art. 24, inciso VII, da Lei de licitações. O reexame deu ensejo ao acórdão 2.692/12 que teve como relator o Ministro Aroldo Cedraz que assim se pronunciou: “5.7 Assim, embora o instituto da adesão a ata de registro de preços possibilite, conforme salientou o recorrente, a redução dos custos com licitações e a desburocratização, sua utilização de forma ilimitada não pode ser aceita, por contrariar princípios básicos que vinculam a Administração Pública.” Ao analisar a figura do carona, encontra-se no acórdão a seguinte afirmativa: “Ora, não se desconhece a situação privilegiada conferida pelo Decreto nº 3.931/2001 à figura do “carona”, decisivamente favorecido pela flexibilidade e informalidade de que se reveste o procedimento de adesão às atas de registro de preços. Isso, contudo, não constitui razão suficiente para que se reconheça no instituto plena legitimidade, mormente nos moldes em que foi instituído. Ao contrário, a condição confortável do “carona”, ao que me parece, decorre da inobservância de princípios e procedimentos exigidos pelo ordenamento jurídico quando da celebração de contratos pela Administração, tendo por objeto compra ou contratação de serviços.” (Acórdão nº 2.692/12, relator Ministro Aroldo Cedraz) Mais adiante, tem-se que: “Ainda que seja extirpada a figura do “carona” do ordenamento jurídico, o SRP, por suas vantagens já consagradas, continuará a ser importante instrumento para que os órgãos e entidades públicas, na condição de participantes ou gerenciadores, alcancem a almejada economia, celeridade e eficiência.”(Acórdão nº 2.692/12, relator Ministro Aroldo Cedraz) Após discutir o que foi alegado pelo recorrente, foram abordados temas que exigiam a atuação de ofício do Tribunal. Dessa forma, foi decretada a nulidade da determinação contida no subitem 9.2.2 do acórdão 1.487/07 por entender a corte que a atribuição é constitucionalmente prevista como competência do Presidente da República, estando assim, por violar o princípio da separação dos poderes. Outrossim, foi abordada a inconstitucionalidade do instituto de adesão às atas de registro de preços por órgãos e/ou entidades não participantes da licitação. Veja-se: “Ao instituir a figura do “carona”, o decreto inovou na ordem jurídica, criando mecanismo novo de dispensa de licitação, matéria esta reservada à lei em sentido estrito. Não fosse por só este aspecto, penso que ainda que houvesse sido veiculado por lei, a normalização do instituto padeceria de inconstitucionalidade, visto que não foram estabelecidos limites, critérios, circunstâncias e/ou requisitos aptos a legitimar a dispensa de licitação. O argumento de que a ata de registro de preços é resultado de prévio processo licitatório não afasta a conclusão. A norma constitucional não se tem por atendida com o aproveitamento de licitação realizada por outrem (…)”(Acórdão nº 2.692/12, relator Ministro Aroldo Cedraz) Mais adiante, abordou também a ilegalidade do instituto: “Acaso não se vislumbre ofensa direta à Constituição Federal, a análise da matéria fica projetada para o plano da legalidade. Também aí, evidencia-se flagrante incompatibilidade entre o art. 8º, caput e parágrafos, do Decreto nº 3.931/2001 e a Lei Geral de Licitações. Sem adentrar no exame de todos os aspectos legais que se tem por violados, tenho por suficiente chamar a atenção para o fato de que o decreto ampliou as hipóteses de dispensa de licitação, taxativamente enumeradas na Lei nº 8.666/1993.”(Acórdão nº 2.692/12, relator Ministro Aroldo Cedraz) Ao final, o acórdão conheceu do pedido de reexame para, no mérito, negar-lhe provimento; tornou insubsistente, de ofício, o item 9.2.2 do acórdão 1.487/07; e, recomendou ao MPOG que empreenda estudos para aprimorar a sistemática do SRP. Após, o TCU, por meio do acórdão 1.233/12, estabeleceu que a adesão à ata não deveria ultrapassar os limites previstos no edital. Assim, ao permitir a adesão à ata, haveria abatimento do que fosse adquirido pelo “carona” do quantitativo total licitado. Isso gerou uma enorme polêmica, pois se dizia que a decisão inviabilizava a prática de adesão à ata. Com a edição do novo Decreto, em janeiro de 2013, grande parte dessa discussão se deu por encerrada, já que ele regulamentou aspectos controvertidos e supriu a falta de regulamentação que havia quanto a participação do órgão não participante da licitação, ainda assim, o tema continua freqüente nos Acórdãos do TCU. Por todo o exposto, é notória a importância do tema, sua implicação para a Administração Pública e a preocupação do TCU com a referida prática. Percebe-se que o TCU, apesar de toda a discussão sobre o assunto, é a favor da adesão à ata de registro de preços, contudo procura impor limites para que a prática não se desvirtue, deixando de ser vantajosa para a Administração. 7. Conclusão A realização de licitação é uma das práticas mais comuns e importantes do meio administrativo, isso porque é através dela que se concretizam os contratos. Ela é um reflexo da conduta da Administrativa, sendo, portanto, regulada por seu regime jurídico e pautada por princípios que norteiam a atividade administrativa. O SRP é uma forma especial de contração e trás inúmeras vantagens, procurando reproduzir na esfera pública os benefícios e a celeridade decorrentes das contratações da esfera privada. Tem na doutrina e na jurisprudência sua importância, incontestavelmente, reconhecida. O que se questiona é a prática de adesão à ata de registro de preços, conhecida como “licitação carona”, pois nela, um órgão que não participou do procedimento licitatório pode aderir posteriormente ao procedimento realizado por outro órgão, o que levanta discussões acerca da legalidade dessa conduta, principalmente, por ter surgido através de um decreto. A polêmica gerada culminou na criação de um novo decreto regulamentador, como uma tentativa de minimizar os aspectos falhos que davam ensejo a inúmeros questionamentos a respeito do tema. Como visto no decorrer desse trabalho, o tema desperta divergência tanto entre os doutrinadores quanto entre decisões judiciais. De fato, com a vigência do atual decreto, 7.892/13, houve uma melhora significativa na regulamentação da prática, contudo, não suficiente para colocar fim à polêmica. Apesar de amplamente aceito, não se pode ignorar que o surgimento do órgão não participante ou “carona” se deu através de um decreto e não por lei, como deveria ser, tornando assim, a figura ilegal. Também é difícil não observar que a prática desvirtua princípios importantíssimos da Administração Pública como a isonomia e a impessoalidade, já que o órgão não participante sabe, previamente, quem é o vencedor da licitação e assim contrata se quiser, com quem quiser (grifo nosso). É notório que essa discricionariedade dá margem para fraudes, conluios, corrupção e benefício de uns em detrimento de outros. A questão da ilegalidade e inconstitucionalidade levantada no Acórdão 2.692/12 deve ser ainda melhor discutida. Não podemos esquecer que é essencial que a Administração Pública atue não apenas pautada na legalidade, mas também, de maneira eficiente, eficaz, impessoal e razoável, e o que é, muitas vezes, visto quando analisamos contratos realizados através do SRP é que isso tudo não é observado. A criação de um novo decreto foi um importante passo na regulamentação da prática da adesão à ata, contudo ainda há muito o que ser discutido e implementado para que a Administração possa realmente usufruir das inúmeras vantagens trazidas pelo SRP sem ser prejudicada pelo mau uso dessa prática.
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Análise dos atos administrativos realizados pelas agências reguladoras frente ao poder judiciário
O presente trabalho tem por finalidade estudar e analisar a competência do Poder Judiciário de rever e invalidar atos administrativos discricionário das Agências Reguladoras. Para isto, tratou das características que tornam tais autarquias em regime especial. Aborda, ainda, suas funções (fiscalizadora, normativa e reguladora) como órgão regulador de setores econômicos e serviços públicos não estatais, e os atos discricionários técnicos editados pelas agências reguladoras. Desta maneira, conclui que todos os atos discricionários, técnicos ou não, das agências executivas são passíveis de apreciação judicial, em consonância com a Constituição Federal, quando ilegítimos, ilegais e quando lesam direitos dos administrados.[1]
Direito Administrativo
Introdução Em decorrência da globalização no Brasil, principalmente na década de 90, o Estado passou ainiciativa privada a prestação direta de alguns setores econômicos e de serviços públicos, a chamada desestatização. Houve a descentralização do Estado, que criou pessoa de personalidade jurídica de direito público e privado, para realização dos serviços por sua conta e risco, com fundamento no artigo 37, inciso XIX da Constituição Federal. Surgem neste período as primeiras agências reguladoras previstas na Lei Maior nos artigos 21, inciso XI e 177, §2º, inciso III, e na década de 2000 tem-se um boom com a criação de outras mais.São elas órgãos responsáveis pela execução, pela fiscalização, normatização, regulação, e em alguns casos, fomento, de setores econômicos e de prestação de serviços públicos que foram privatizados, com o objetivo de garantir o equilíbrio do mercado. Atuando, para isto, por meio de edição de atos administrativos, vinculados e discricionários, que mesmo diante da autonomia legal que possuem tais órgãos, deverão ser editados em conformidade com as normas legai, sob pena de serem invalidados ou anulados, pela própria administração pública (princípio da autotutela) ou pelo Poder Judiciário, quando provocado. 2. Objetivo Estudar as características gerais e específicas que tornam as Agências Executivas autarquias de regime especial, para verificar a possibilidade de apreciação de seus atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário. 3. Metodologia Este trabalho tem como método a pesquisa bibliográfica documental de doutrinas, artigos científicos e da legislação sobre o assunto. 4. Desenvolvimento A pretensão do Estado com a criação das agências executiva foi de disciplinar os setores econômicos, não os deixando ao bel prazer das concessionárias e prestadoras de serviços públicos. Nas palavras de Sundfeld (2000, apud ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 161), “Se o Estado abdicasse totalmente do poder se interferir na prestação de serviços públicos privatizados e na correspondente estrutura empresarial, correria o risco de assistir passivamente, ao colapso de setores essenciais para o País, como o setor elétrico e o de telecomunicações.” A verdade é que as agências reguladoras não são novidade no Brasil, o termo agência que é novo no país, copiado das famosas agências federais dos Estados Unidos, segundo o ilustre Celso Antonio Bandeira de Mello (2001, p. 133-134), “Apareceu no ensejo da tal “Reforma Administrativa”, provavelmente para dar sabor de novidade ao que é muito antigo, atribuindo-lhe, ademais, o suposto prestígio de ostentar a terminologia norte-americana (“agência”). A autarquia Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE, por exemplo, cumpria exatamente a finalidade ora irrogada à ANEEL, tanto que o art. 31 da lei transfere à nova pessoa todo o acervo técnico, patrimonial, obrigações, direitos ereceitas do DNAEE”. Estas entidades reguladoras possuem regime especial, o que lhes atribuem características peculiares e lhes garantem maior autonomia, se comparadas as autarquias comuns, proporcionadas pela sua lei instituidora. A primeira singularidade é que os dirigentes das Agências Reguladoras são nomeados pelo Presidente da República após aprovação do Senado, com mandatos por tempo determinado, de três ou quatro anos. Possuem estabilidade no cargo, ou seja, não podem ser despedidos conforme a conveniência dos governantes, mas somente se cometerem falta grave, apurada mediante devido processo legal (BARROSO, 2005). A característica mais expressiva destes entes públicos encontra-se na Carta Política de 1988no caput do artigo 174, quegarante ao Estado o poder normativo e regulador da atividade econômica, poder que, em geral, é exercido pelas agências reguladoras devido a descentralização administrativa. No exercício de seu poder normativo, estes entes administrativo, não poderão inovar primariamente a ordem jurídica, ou seja, não poderão regulamentar matéria da qual inexiste conceito genérico em sua lei instituidora, tão pouco poderá criar ou aplicar sanções que não estejam em lei(MORAES, 2003). Além da função normativa, as agências tem a regulatória, na qual fiscalizam, atuam na composição de conflitos e eventualmente aplicam as sanções, prevista em lei. A atividade regulatória tem por objetivos manter a competitividade no mercado ou garantir que não haja abuso do poder econômico sobre a sociedade. Para isto, as agências executivas controlam as tarifas, assegurando o equilíbrio econômico-financeiro; evitam a constituição de monopólios; fiscalizam os contratos de concessão e permissão de prestação de serviços públicos; e, arbitram os conflitos entre consumidores, concessionários, poder concedente, a comunidade como um todo, etc. (BARROSO,2005). Outra característica, que torna as agências reguladoras autarquias em regime especial, é que suas decisões não são submetidas à revisão por órgão hierarquicamente superior, isto quer dizer que possuem independência decisória. (BUENO FILHO, 2003). O ato administrativo é meio utilizado pela Administração Pública para realização de suas funções sociais, e podem ser vinculados ou discricionários, dependendo do tipo de atividade ou serviço que deverão desenvolver.Nas palavras do saudoso professor Helly Lopes (2006, p.149),“Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública, que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direito, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria.” Não é diferente para as Agências Reguladoras, mesmo sendo autarquias em regime especial, são parte da Administração Pública e, portanto, suas atividades, em geral, são feitas por meio de atos administrativos. “[…]os atos praticados pelas agências são administrativos, independentemente de sua substancia, pouco importando a forma. Tanto podem ser atos concretos e específicos, como podem assumir o aspecto normativo e expressar regras gerais e abstratas”.(BUENO FILHO, 2003 p. 29) Os atos administrativos praticados pelas agências reguladoras, muitas vezes, se fundam na discricionariedade técnica, fato que se deve por cada um destes órgãos trabalharem em setores específicos e diferentes da economia. A discricionariedade ocorre quando o agente público tem liberdade para determinar “se, quando e como” o ato administrativo deve ser realizado.Para professora Maria Sylvia (2007, p. 5): “[…] existem casos em que a referida apreciação exige a utilização de critérios técnicos e a solução de questões técnicas que devem realizar-se conforme as regras e os conhecimentos técnicos, como, por exemplo, quando se trata de ordenar o fechamento de locais insalubres […].” Os atos administrativos são considerados perfeitos, válidos e eficazes quando reúnem os cinco requisitos impostos pela norma, direta ou indiretamente,competência, finalidade, forma, motivo e objeto (FARIA, 2011). Porém quando algum destes elementos apresentarem defeito poderá ser revogado ou anulado. A Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal traz que a Administração Pública poderá revogar ou anular o ato administrativo de editou, pelo princípio da autotutela, com efeitos ex nunc. Contudo a referida Súmula não afasta a apreciação pelo Judiciário, quando houverindícios de ilegitimidade ou ilegalidade do ato praticado, que poderá anulá-lo, produzindo efeito ex tunc. Desta Forma, pautados no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, nossos Magistrados poderão apreciar atos administrativos, declarando ou não sua legalidade quando evidente que o ato lesa ou ameaça direitos. Os atos administrativos passíveis de serem analisados e serem anulados por nossos Tribunais são os discricionários, pois quanto aos vinculados basta que se verifique a inconformidade com a norma para que sejam declarados nulos. É a autonomia conferida ao administrador para praticar atos diante de casos concretos que pode gerar ilegitimidades e ilegalidades, que poderão ser arguidas perante o Poder Judiciário, que verificará os requisitos de validade do ato e os motivos de sua existência, podendo declará-lo nulo ou não (DO VAL; GIOSA, 2009). Logo, os atos discricionários técnicos ou não, normativos ou meramente de expediente, editados pelas agências reguladoras também estão sujeitos a apreciação pelo Poder Judiciário, quanto sua legalidade, legitimidade e motivação. Esta passou a ser exigida pelo controle judicial para verificação da racionalidade da decisão em relação aos fatos, pois em hipótese alguma, o Judiciário realizará juízo de oportunidade e conveniência, tão somente objetiva observar se a agência levou em consideração entre os fatos (motivo) e a limitação legal (DI PIETRO, 2007). Considerações finais Devido ao processo de descentralização administrativa estes entes públicos ficaram incumbidos de fiscalizar, normatizar e regular certos setores econômicos e de prestação de serviços públicos. Assim como os demais órgãos da Administração Pública, as agências executivas desempenham suas atribuições e funções por meio de atos administrativos vinculados e discricionários, em seus casos, há ainda, utilizam-se muito da discricionariedade técnica. Porém, a autonomia garantida a estas autarquias especiais não é prerrogativa absoluta, portanto, quando se verifica que um ato administrativo expedido por estas, discricionários ou não, é ilegítimo ou ilegal, e passível de lesar direitos, também estarão sujeitos ao controle jurisdicional, como defendido pela Constituição Federal vigente.
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Considerações sobre concessão e permissão de serviços públicos
Resumo:Apontamentos e considerações sobre os institutos de concessão e permissão de serviços públicos que se encontram na lei 8987/95 tais quais: a natureza jurídica do contrato de concessão e do contrato de permissão, a polêmica da contratualização ou não deste último a exigibilidade de licitação e as cláusulas exorbitantes.
Direito Administrativo
Introdução Inicialmente, cabefrisar que o tema, qual seja, “concessão e permissão de serviços públicos”, é por demais extenso, compreendendo vasta doutrina e assuntos a respeito. Nesse sentido, o presente artigo se propõe apresentar a matéria de maneira mais breve, envolvendo, contudo, as questões mais polêmicas e pertinentes sobre um assunto de tanta importância. Dessa forma, é mister salientar que a concessão e permissão de serviços públicos encontra esteio, principalmente na lei 8987/95, não obstante haja outros diplomas normativos que a regulamenta e que foram oportunamente citados no presente trabalho. Muitas questões de cunho eminentemente teóricos foram abordadas, tal como a natureza jurídica do contrato de concessão e do contrato de permissão, envolvendo a polêmica da contratualização ou não deste último. Por outro lado, outras questões, de cunho prático, foram salientadas, tal como a exigibilidade de licitação e as cláusulas exorbitantes. Outrossim, optou-se por trazer à lume o contrato de concessão de florestas, cuja regulamentação é recente e ainda há um vasto campo de incertezas. Por derradeiro, deu-se relevo aos princípios, tendo em vista que estes, sob a ótica do pós positivismo, e com a consequente normatização, vêm recebendo maior atenção por parte da doutrina e dos tribunais. 1. Concessão e permissão 1.1Aspectos gerais A concessão e permissão de serviços públicos está, basicamente, regulada pela Lei 8987/95, não obstante sua disciplina se estenda a outros diplomas normativos. A Carta Magna, por exemplo, aduz que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão e permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Note-se que o Estado gerencial brasileiro encontra assento constitucional. Mas, afinal, o que é concessão e permissão de serviço público? Flávio Amaral dispõe que “Os contratos administrativos são aqueles ajustes celebrados entre um ente público e um particular na consecução de um interesse público. Submetem-se a um regime jurídico próprio, que permite a utilização das cláusulas exorbitantes, que seriam consideradas ilícitas em uma relação contratual privada. A presença das cláusulas exorbitantes se dá em função da supremacia do interesse público sobre o interesse privado” (GARCIA, FLÁVIO AMARAL. Licitações e Contratos Administrativos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 225). Nesse contexto, a concessão e a permissão de serviço público apresentam-se como um dos principais contratos administrativos. O primeiro, segundo o ilustre doutrinador “é aquele em que a Administração Pública (Poder Concedente), titular do serviço público, delega a sua prestação a terceiros para explorá-lo, sendo o concessionário remunerado pelos usuários”[1]. Portanto, o aludido contrato se caracteriza pela parceria entre o Poder Público e o Mercado (ou iniciativa privada com fins lucrativos), exigindo-se sempre a licitação, até como forma de se garantir a impessoalidade (da escolha do parceiro), princípio expresso no caput do art. 37 da Lei Maior. Impõe-se salientar que o 2° setor é conveniente para o Poder Público, na medida em que a Iniciativa Privada faz os investimentos e tem maior facilidade de captar recursos junto a uma instituição financeira. A finalidade deste é meramente lucrativa, malgrado os limites estabelecidos em lei (em decorrência do princípio da modicidade tarifária). Vale ressaltar, também, que o 2° setor é uma característica marcante nos Estados modernos, em que o Estado deixa de ser executor e passa a ser gerenciador. Por outro lado, a permissão pode ser conceituada, com fulcro no art. 2°, IV da Lei 8987/95, como a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco. Permissão de serviço público, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, “é, tradicionalmente, considerada ato unilateral, discricionário e precário, pelo qual o Poder Público transfere a outrem a execução de um serviço público, para que o exerça em seu próprio nome e por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário”.São características marcantes da permissão: depende sempre de licitação, de acordo com o artigo 175 da Constituição; seu objeto é a execução de serviço público; o serviço é executado em nome do permissionário, por sua conta e risco; sujeita-se às condições estabelecidas pela Administração e à sua fiscalização; pode ser alterado ou revogado a qualquer momento pela Administração, por motivo de interesse público (por tal razão é precário). 1.2Competência para legislar: Segundo se extrai do art. 22 da Constituição Federal, todos os entes da federação podem legislar sobre concessão e permissão de serviço público, incumbindo à União criar normas gerais. O problema surge quando da definição de tal norma, posto que a Lei 8987/95 e a Lei 8666/93 silenciam a respeito. Nesse desiderato, cria-se um impasse hermenêutico. Alguns autores, como Toshio Mukay, apresentam a seguinte solução: ligar a norma a um princípio. Se for possível, trata-se de norma geral. 1. 3Natureza jurídica dos institutos: Antes do advento da lei 8.987/95, a doutrina diferenciava a concessão da permissão, em decorrência de que aquela era caracterizada como contrato administrativo, enquanto esta se tratava de ato administrativo. No entanto, conforme preceitua Carvalho Filho: “… a lei nº 8.987/95, de modo surpreendente e equivocado, atribuiu À permissão de serviço público a natureza de contrato de adesão (art.40), provocando justificável confusão sobre a forma de delegação. Com essa fisionomia, atualmente inexiste, na prática, distinção entre a concessão e a permissão de serviço público”[2]. Para este doutrinador, a distinção é tênue, sendo fixada em apenas dois aspectos, tendo em vista a nova conceituação dada por lei. Ademais, a idéia de revogação[3] como forma de extinção da permissão, manteve a controvérsia doutrinária acerca da natureza jurídica de ambos os institutos. Faz-se necessário, portanto, aduzir aos pontos de convergência primeiro. Os pontos convergentes entre esses consistem no fato de: 1) Ambos serem formalizados por contratos administrativos; 2) Terem o mesmo objeto: a prestação de serviços públicos; 3) Representam a mesma forma de descentralização – ambos são resultantes de delegação negocial; 4) Não dispensam licitação prévia; e, por fim 5) Recebem, de forma idêntica, a incidência de várias particularidades desta categoria de delegação, como, por exemplo, a supremacia do Estado, mutabilidade contratual, remuneração tarifária e etc. Por sua vez, os pontos distintivos consistem no fato de que enquanto a concessão pode ser contratada com pessoa jurídica, ou consórcio de empresas, a permissão, somente pode ser firmada com pessoa física ou jurídica. Isto significa que não há concessão com pessoa física, bem como não haverá permissão com consórcio de empresas, residindo a distinção na natureza do delegatário. O segundo reside no conceito de permissão, arrolado no art. 2º, IV, da referida lei: “Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:(…) IV – permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.” (Grifo nosso) Em suma, a lei atribui o caráter de precariedade ao instituto, indicando-se que o particular que firmou o ajuste com a Administração Pública, em caso de extinção contratual, não seria indenizável em perdas e danos. Destarte, a diferença singela entre os dois institutos dividiu inclusive o STF, no acórdão decidindo a ADIn nº 1.491-DF, que afastou qualquer distinção conceitual entre permissão e concessão, ao conferir àquelao caráter contratual desta, sendo ambos, contrato administrativo. 1.4 Exigência de licitação Sendo ambos, contratos administrativos, se submetem, obrigatoriamente, ao procedimento prévio de licitação.Além desta, a lei 8987/95 determinou que a modalidade licitatória para os institutos é a concorrência[4], sendo de observância obrigatória para Estados, Distrito Federal e Municípios. O procedimento é regulado pela lei 8.666/93, sendo constituídas das principais etapas discriminadas pela lei: fase interna, deflagração do procedimento, habilitação, julgamento de propostas, homologação e adjudicação compulsória. Tais etapas não serão aprofundadas por não serem escopo deste trabalho. Por derradeiro, impõe-se salientar que, consoante entendimento da Egrégia Corte Constitucional, bem como pela literalidade do art. 175 da Carta Magna, exige-se licitação anteriormente à celebração de um contrato administrativo. Com o entendimento da contratualização da permissão, esta, por conseguinte, também passa a exigir licitação. Contudo as modalidades são distintas. Enquanto a concessão se procede mediante a concorrência (art. 2º, II, da Lei 8987/95), a permissão não tem uma modalidade definida, conforme se subsume do art. 2°, IV da lei em epígrafe, admitindo, portanto, qualquer modalidade, salvo pregão, leilão e concurso. 1.5 Cláusulas necessárias: O artigo 55 da Lei de Licitações estabelece as cláusulas que devem constar obrigatoriamente nos contratos administrativos, segundo as disposições do edital. Segue-se o rol apresentado: A primeira cláusula enumerada se refere à definição do objeto e seus elementos característicos, isto é, a descrição do objeto deve ser clara e objetiva. A segunda se refere ao regime de execução ou a forma de fornecimento. O primeiro pode se dar por empreitada global, empreitada por preço unitário, tarefa e empreitada integral, todas elas previstas no art. 6°, inciso VIII da Lei 8666/93, nas alíneas “a”, “b”, “d” e “e”, respectivamente. O segundo, conforme dispõe Flávio Amaral[5], é exigido nos contratos de compra e venda, admitindo-se que a entrega seja integral, parcelada ou contínua. O inciso III enumera o preço e condições de pagamento; os critérios, data-base e periodicidade do reajustamento de preços; bem como os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento. Enfim, refere-se à remuneração do serviço. O inciso IV dispõe sobre os prazos de início de etapas de execução, de conclusão, de observação e de recebimento definitivo. Percebe-se que os prazos são preestabelecidos e definidos no contrato, podendo, contudo, ser prorrogados nas hipóteses previstas no art. 57, § 1º do aludido diploma normativo. O recebimento provisório e definitivo do objeto, por outro lado, são regulados pelos arts. 73 e 74 da lei de licitações. A quinta cláusula apresentada se refere ao crédito pelo qual ocorrerá a despesa, com indicação da classificação funcional programática e da categoria econômica. Em suma, a cláusula deve indicar o programa de trabalho do orçamento e a nota de empenho. As garantias oferecidas para assegurar sua plena execução representam o sexto ponto, ficando a critério da autoridade competente sua exigência, podendo o contratado escolher uma das modalidades de garantias previstas no art. 56, § 1°, da referida lei. Os direitos e responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis (art. 87) e os valores das multas vêm dispostos logo a seguir. O primeiro deve estar expressamente previsto no contrato, sendo que algumas das responsabilidades dos contratados se encontram disciplinadas nos arts. 68 ao 71 da lei de 1993. O segundo está disciplinado no dispositivo assinalado, valendo ressaltar que não cabe ao administrador acrescer outras além das já previstas, ao passo que o terceiro deve estar definido em contrato. A oitava cláusula se refere aos casos de rescisão, cuja previsão se encontra no art. 78 da Lei 8666/93. O inciso IX é uma conseqüência deste, tendo em vista que busca-se o detalhamento dos direitos da Administração nos casos de rescisão do contrato, conforme pode se observar no art. 80. A décima cláusula é indispensável quando a contratação envolver a importação de bens, uma vez que se refere às conduções de importação, a data e a taxa de câmbio para a conversão. A cláusula seguinte é de suma importância, uma vez que consagra o princípio da convocação conforme o edital. Dessa forma, o contrato administrativo não pode estar em desacordo com os atos anteriores. O inciso XII dispõe sobre a legislação aplicável à execução do contrato, que deve constar no preâmbulo deste. Por derradeiro, aduz o inciso XIII que é cláusula necessária a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação. Dessa forma, o contratado deve demonstrar, ao longo da execução, que as condições de habilitação perduram. 1.6. Cláusulas exorbitantes: As cláusulas exorbitantes são um corolário do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, conferindo à Administração Pública certas prerrogativas em relação ao particular. Tais cláusulas estão previstas no artigo 58 da lei de licitações, quais sejam: I – alteração unilateral do contrato; II – rescisão unilateral; III – fiscalização unilateral da sua execução; IV – aplicação de sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste; V – a inoponibilidade integral da execução de contrato não cumprido por parte do contratado. 1.6.1. Alteração unilateral: Não obstante os contratos privados sejam celebrados segundo a idéia de obrigatoriedade de seu cumprimento (ou pacta sunt servanda), aqueles pactuados com a Administração Pública gozam de certa maleabilidade, em decorrência da também flexibilidade do interesse público. Contudo não são todas as cláusulas que são passíveis de alteração, mas tão somente as regulamentares e as de serviço, que são aquelas que disciplinam a execução do objeto do contrato. Outrossim, permite-se a alteração das cláusulas econômicas, desde que com a expressa anuência do contratado (art. 58, § 1°), até porque tal cláusula se relaciona com a remuneração do particular. Nesse contexto, as alterações unilaterais podem ser qualitativas, consoante dispõe o art. 65, I, “a”, da lei 8666/93 ou quantitativas, segundo proclama a alínea “b” do mesmo dispositivo citado. A primeira se refere à modificação do projeto ou das especificações. A segunda estabelece que, malgrado se preserve o objeto do contrato, fica o contratado obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos e supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, desde que tais alterações não ultrapassem 25% ou 50 % destas, conforme ditames do § 1° do art. 65 da aludida lei. Esses limites só poderão ser ultrapassados na forma do § 2°, II deste artigo, isto é, caso as supressões resultem de acordo. Note-se que a referida limitação encontra esteio nas alterações quantitativas, sendo certo que as qualitativas envolvem polêmica discussão doutrinária. 1.6.2. Rescisão unilateral: As hipóteses de rescisão estão previstas no art. 78 da lei de licitações, valendo ressaltar que somente o ente público pode rescindir unilateralmente o contrato. Ao particular, em caso de inadimplemento da Administração Pública, cabe buscar a rescisão em juízo, consoante aduz o art. 79, III desta lei. Note-se que a este é assegurado o contraditório e a ampla defesa. Flávio Amaral salienta que nem todas as situações descritas no art. 78 são hipóteses de rescisão, apontando como exemplo a ocorrência de caso fortuito ou força maior ou a extinção do vínculo em virtude de razões de interesse público. 1.6.3. Fiscalização unilateral: A fiscalização encontra previsão no art. 67, caput, que assim aduz: A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição. Logo, a Administração Pública tem o poder-dever de fiscalizar o contrato, a fim de verificar se o particular está executando corretamente o ajuste. Por conseguinte, eventual paralisação ou retardamento na execução do pacto dá a possibilidade do administrador, como medida de urgência, recorrer à intervenção e proceder, quando for o caso, à interdição do contrato. 1.6.4. Aplicação de sanções administrativas: O art. 87 da lei de licitações estabelece quatro sanções: advertência; multa; suspensão temporária de participação em licitação e contratar com a Administração; e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública. Cumpre salientar que a aplicação de tais multas deve se compatibilizar com o princípio da proporcionalidade, aplicando-se sanções mais graves às faltas mais graves. A advertência é aplicada às faltas leves. Decorre, pois, da pouca gravidade da infração cometida pelo contratado. A multa tem a peculiaridade de poder ser aplicada cumulativamente com as demais sanções, devendo, contudo, estar fixada no contrato. A suspensão temporária é aplicada às faltas mais graves, tendo prazo máximo de 2 anos. Por fim, a declaração de inidoneidade é reservada às hipóteses de infrações gravíssimas. Sua duração não está adstrita a um lapso temporal, não obstante seja possível a reabilitação do contratado perante a própria autoridade que aplicou a sanção. O § 3º do art. 87 da lei de licitações estabelece que esta sanção é de competência exclusiva do Ministro do Estado, Secretário Estadual ou Municipal. 1.6.5. Exceção do contrato não cumprido: A referida cláusula tem aparente contradição com o princípio da continuidade dos serviços públicos. No entanto, com o advento da lei 8666/93, mitigou-se a impossibilidade do particular invocar a referida cláusula, uma vez que o inciso XV, art. 78 desta lei, dispõe que o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração assegura ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação. Essa suspensão deve estar amparada em decisão judicial, sendo imprescindível quando se tratar de serviço público essencial. 1.7 Extinção Sendo variáveis as causas de extinção, diversas são as formas de extinção previstas na legislação. Algumas com nomenclaturas próprias dadas pela lei. 1.7.1 Termo final do prazo Como esta é a forma natural de extinção da concessão e da permissão, seus efeitos são ex nunc, revertendo-se o serviço ao concedente, com seu termo final. É válido salientar que, malgrado tenha terminado o contrato, o concessionário ou permissionário, ainda responde pelos atos praticados enquanto o contrato ainda estava em vigor. 1.7.2 Anulação Esta ocorre quando o pacto firmado entre as partes está inquinado por vício de legalidade. A respectiva anulação pode advir tanto de decisão administrativa quanto judicial. No que concerne aos seus efeitos, à distinção do termo final, seus efeitos são ex tunc, retroagindo ao tempo da ocorrência do vício. Tal situação está prevista no artigo 35 da lei. Por força do artigo 40, parágrafo único, da lei 8987/95, aplicam-se à permissão as regras empregadas à concessão. 1.7.3 Rescisão No mesmo artigo, porém em seu inciso IV, está discriminada a rescisão. Esta se caracteriza pela ocorrência de fato, superveniente à celebração do contrato, idôneo para desfazer o vínculo firmado entre a concedente e o concessionário. O pressuposto desta é o descumprimento das normas legais ou contratuais pelo concedente, malgrado a lei fazer apenas menção à infrações legais. Haverá como salienta Carvalho Filho, hipóteses em que o poder público venha a incorrer nestas infrações, sendo a única via para a rescisão contratual ser a judicial. Nas palavras do eminente doutrinador: Ao contrário da Administração, o concessionário não poderá valer-se da exceptio non adimplementi contractus (exceção de contrato não-cumprido), prevista no art. 416 do Código Civil, segundo o qual, nos contratos bilaterais, nenhum dos pactuantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. Aduz, ainda ao art. 39, parágrafo único da lei 8987/95, sobre a vedação da paralisação dos serviços até o advento da decisão judicial transitada em julgado. Comenta, todavia que “a regra legal não deve ser levada à extremos, pois poderia ocasionar na ruína do concessionário, muitas vezes sem que tenha sido o causador da interrupção ou da paralisação”…”Recorrendo a este tipo de processo, o concessionário poderá obter medida cautelas que tenha por fim permitir a interrupção ou paralisação imediata do serviço, sem que na ação principal possa o concedente descumpridor atribuir-lhe culpa por tais providências”[6]. Outra vez, aduz-se ao artigo 40 da referida lei, para a aplicação das regras concernentes à concessão, à permissão. Somente ressalva-se que os bens do permissionário, com a encampação continuam, via de regra, sendo transferidos ao Poder Público se o valor da tarifa cobrir o prejuízo causado com a aquisição destes bens. Ademais, sendo o objeto da permissão o mesmo da rescisão, a medida de rescisão do contrato pelo permissionário também seria a mesma, recorrendo-se à via judicial. Aplica-se o princípio da continuidade do serviço público para a não-paralisação dos serviços. 1.7.4 Caducidade Este é a nomenclatura empregada pela lei quando a rescisão do contrato ocorre por inadimplemento do concessionário/permissionário, por sua atuação culposa.Existem diversas formas de inadimplemento que implicam na caducidade, como: a inadequação na prestação do serviço, seja por ineficiência, seja por falta de condições técnicas, econômicas ou operacionais; paralisação do serviço sem justa causa; descumprimento de normas legais; desatendimento de recomendação do concedente para a regularização do serviço; não cumprimento de penalidades; e sonegação de tributos e contribuições sociais, fixada em sentença transitada em julgado. A declaração de caducidades pressupõe atividade vinculada do Poder Público, recebendo o concessionário a comunicação de seu descumprimento, e a recomendação para que este venha a saná-lo em determinado prazo. Caso não o faça, será iniciado processo administrativo. Findo este, e constatada a inadimplência, será a caducidade declarada via decreto expedido pelo Chefe do Poder Executivo, sendo descontadas da remuneração do concessionário, as multas e os danos causados por este. 1.7.5 Encampação Ocorre quando o concedente deseja retomar o serviço concedido, estando em voga a prerrogativa do poder público de revogar unilateralmente o contrato. Há o simples interesse da administração pública, sem incidir o concessionário em culpa. Tem fulcro no artigo 37 da Lei de Concessões. Entretanto, o Poder Público fica atrelado à ocorrência do motivo que ensejou a encampação. Se inexistente, o ato é nulo. A encampação tem dois requisitos para ocorrer: a existência de lei autorizativa; e o prévio pagamento de indenização do concessionário pelo capital e bens aplicados para a realização do prescrito no contrato. 1.7.6 Reversão Trata-se do resgate do serviço público, delegado para o concessionário, ao concedente em decorrência da extinção do contrato. Todavia, o termo também é aplicado, erroneamente, com a conotação de transferência de bens, como bem é evidenciado no artigo 35, §1º: § 1º extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato. (Grifo nosso) A reversão pode ser onerosa ou gratuita. No primeiro, o concedente tem o dever de indenizar o concessionário, na medida que os bens foram angariados exclusivamente com seus recursos próprios. No segundo, o concedente tem a propriedade direta desses bens sem qualquer ônus, visto que o valor indenizatório foi descontado na respectiva tarifa. A lei de concessões somente admitiu que houvesse concessões na condição de que estas se submetessem a reversão, como bem explicita o art. 18, X, versando o instituto como objeto de regra especial de licitação, e como cláusula essencial de contrato (art. 23, X). 2 – Características dos contratos administrativos Segundo José dos Santos Carvalho Filho, em seu Manual de Direito Administrativo, os contratos administrativos se revestem das seguintes características: a) formalismo: não basta o consenso das partes, mas que se observem determinados requisitos, como os dos artigos 60 a 64 da Lei 8.666/93. b) comutatividade: há equivalência entre as obrigações a serem cumpridas, que são previamente ajustadas e conhecidas. c) confiança recíproca: em tese, o contratado é o que melhor comprovou condições de contratar com a Administração, fato que, inclusive, levou o legislador a só admitir a subcontratação de obra, serviço ou fornecimento até o limite admitido, em cada caso, pela Administração, isso sem prejuízo de sua responsabilidade legal e contratual (artigo 72 da Lei 8.666/93) d) bilateralidade: o contrato administrativo gera obrigações para ambas as partes. Além das características citadas acima, pode-se destacar a posição preponderante da Administração sobre o particular. Diferentemente do que ocorre com os contratos privados, em que as partes se situam no mesmo plano jurídico, a Administração, nos contratos administrativos, possui uma posição de supremacia em relação ao contratado. Esta supremacia é consequência direta do regime jurídico de direito público que regula os contratos administrativos (artigo 54 da lei 8.666/93), mesmo quando a contratação é realizada por pessoa administrativa de direito privado, como as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Faz-se necessário mencionar outras duas características: o sujeito administrativo e o objeto. Conquanto não sejam elementos que isoladamente caracterizem os contratos administrativos, é incontestável que neles sempre estarão presentes. Por sujeito administrativo entende-se que num dos pólos da relação contratual esteja uma pessoa federativa, seja um ente federativo, sejam outras entidades sob seu controle direito ou indireto. Por outro lado, o objeto do contrato deverá, direta ou indiretamente, trazer benefício à coletividade. A atividade a ser contratada deverá ser necessariamente revestida de interesse público. 3 – Princípios da administração pública e contratos administrativos Faremos aqui a relação entre os principios expressos que regem a Administração Pública – artigo 37 da CF/88 – e os contratos administrativos. O artigo 37 da CF/88 diz que: “Art.37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” 3.1) Legalidade Em relação ao principio da legalidade, exige-se que toda e qualquer atuação da Administração esteja previamente autorizada por lei, isto é, o administrador só pode fazer aquilo que a lei permite. Assim, a lei acaba por fixar os limites de atuação do administrador. Dessa forma, só é legítima a contratação se estiver condizente com o disposto na lei. 3.2)Impessoalidade De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, o princípio da impessoalidade “(…)objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados, que se encontrem em idêntica situação jurídica. Nesse ponto, representa uma faceta do princípio da isonomia. Por outro lado, para que haja verdadeira impessoalidade, deve a Administração voltar-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favorecidos alguns individuos em detrimento de outros. Aqui reflete a aplicação do conhecido principio da finalidade (…)”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 19/20). Assim, ao contratar, a Administração deve ser impessoal, não deve ter em mira um indivíduo em especial. Deve buscar, exclusivamente, o interesse público. 3.3) Moralidade Ainda de acordo com José dos Santos Carvalho Filho, “o princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniencia, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 20). Assim, obedecendo a esse princípio, ao contratar, deve o administrador, além de seguir o que a lei determina, pautar sua conduta na moral comum, fazendo o que for melhor e mais útil ao interesse público. 3.4) Publicidade O principio da publicidade “indica que os atos da Administração devem merecer a mais ampla divulgação possível entre os administrados, e isso porque constitui fundamento do princípio propiciar-lhes a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos. Só com a transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atose o grau de eficiência de que se revestem”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 24) Nos contratos administrativos, por exemplo, nota-se a aplicação desse princípio, tanto previamente, quando se verifica a necessidade de ampla divulgação do edital de licitação (§ 1º do artigo 40 da Lei 8666/93), abertura de envelopes em ato público (§ 1º do artigo 43 da Lei 8666/93), quanto na sua formação e execução (parágrafo único do art. 61 da Lei 8666/93). 3.5) Eficiência Para a professora Maria di Pietro, o princípio da eficiência “(…) apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público(…)”. (PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002). Relacionando o princípio da eficiencia e contratos administrativos, este principio orienta a atividade administrativa a alcançar os melhores resultados a menor custo possível, com base nos meios que possui. Dessa forma, ao contratar, a Administração deve fazê-lo na busca dos melhores resultados, coma máxima qualidade e o menor custo possível. 4 – Princípios específicos aplicados na prestação de serviço público Após esse breve introito acerca dos principios gerais aplicados à Administração Pública, passa-se à análise dos principios que incidem na prestação do serviço público, sob o prisma da Lei 8987/95. Consoante o magistério do professor Marcos Juruena, os principios adiante expostos (generalidade, continuidade, urbanidade ou cortesia, eficiência e modicidade das tarifas) são aplicáveis aos serviços prestados pela administração direta e indireta, bem como aos serviços públicos em regime privado, salvo o dever de modicidade e o de continuidade. O princípio da generalidade exige que os serviços públicos sejam prestados em benefício de todos os administrados, sendo vedada a distinção entre os usuários. Dessa forma, surge um elemento diferenciador entre o serviço público e a atividade econômica. Por oportuno, vale ressaltar que o aludido princípio é corolário do princípio da impessoalidade, acima mencionado. O segundo princípio mencionado, qual seja, da continuidade, exige a permanencia do serviço público, tendo em vista que as necesidades públicas são contínuas, devendo os serviços públicos atender tais necesidades. Contudo, há que se ressaltar que tal principio encontra-se mitigado pela regra insculpida no art. 6° da lei 8987/95, que modificou a orientação jurisprudencial anterior, explicitando que a interrupção do serviço por falta de pagamento não mais se caracteriza como violação do princípio da continuidade. Marcos Juruena, a seu turno, obtempera que deve-se fazer uma análise casuística, ou seja, não se deve estabelecer uma regra matemática para todos os casos. O princípio da urbanidade ou cortesia aplica-se a todos os que assumem função pública, importandono dever de bom trato destes para com o usuário de serviços públicos, bem como dotando-o de mecanismos para oferecer informações e petições contra a má prestação do serviço. A modicidade tarifária é corolário do princípio da generalidade, em que as tarifas devem ser o mínimo possível onerosas ao usuário. Nesse contexto, é comum, por exemplo, a instalação de painéis publicitários e postos de gasolina numa rodovia, podendo o concessionário cobrar preço acessório a fim de reducir a tarifa. O princípio da atualidade encontra esteio no art. 6,§ 2° da lei 8987/95, compreendendo a modernidade das técnicas, do equipamento, instalações, conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. Marcos Juruena, sobre o tema, assevera que: Para o seu atendimento, a Administração concedente poderá alterar unilateralmente as cláusulas de serviço do contrato de concessão ou dos atos de permissão e de autorização para que as novas necessidades ou as novas técnicas sejam incorporadas aos encargos do concessionário ou do permissionário, sempre ponderando o custo a ser repassado e, eventualmente, regulando o custo a ser internalizado (SOUTO, Marcus Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 221). Por derradeiro, tem-se o princípio da regularidade aduz que não é necessário que o serviço seja contínuo e eficiente, mister que conserve seus padrões de qualidade, de forma ininterrupta, cabendo ao órgão regulador a definição de parâmetros técnicos de sua prestação. Note-se que o referido princípio é complementar ao da continuidade. Juruena ainda menciona o princípio do livre acesso às redes, em que o titular de bem denominado essential facility (bens afetados à prestação dos serviços públicos ou para a produção de insumos), é obrigado a torná-lo disponível em bases não discrimináveis. Pode ser citado como exemplo a Resolução Conjunta n° 1 da ANATEL, ANEEL e ANP, de 25/11/1999. Vale ressaltar que dito princípio decorre do princípio da livre concorrência e da função social da propriedade. 5. Concessão de florestas A Lei 11.284, de 02/03/2006, tem como objetivo disciplinar o uso sustentável das florestas públicas brasileiras, além de criar o Serviço Florestal Brasileiro – SFB, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, e cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF (artigo 1º). De acordo com o inciso I do artigo 3º da referida Lei, considera-se floresta pública as “florestas, naturais ou plantadas, localizadas nos diversos biomas brasileiros, em bens sob o domínio da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou das entidades da administração indireta”. Tendo em vista que entre estas entidades estão a sociedade de economia mista e a empresa pública, pessoas jurídicas de direito privado, tal definição representa uma inovação, na medida em que considera-se patrimônio público as florestas que se situam nas áreas de domínio daquelas entidades. Para a administração da floresta, definida pela lei como “manejo florestal sustentável”, através do qual se obtém “benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo(…)” (artigo 3º, VI), a Lei instituiu a figura da concessão florestal, que permite a gestão das florestas pelo setor privado sob controle do Estado. A concessão florestal é conceituada pelo artigo 3º, VII da Lei: “delegação onerosa, feita pelo poder concedente, do direito de praticar manejo florestal sustentável para exploração de produtos e serviços numa unidade de manejo, mediante licitação, à pessoa jurídica, em consórcio ou não, que atenda às exigências do respectivo edital de licitação e demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”. Em relação à onerosidade, diferentemente do que ocorre nas concessões em geral, em que o usuário remunera o concessionário pela prestação de um serviço, na concessão de florestas o concessionário remunera o concedente pela outorga – existe, assim, uma relação concessionário-concedente, e não uma relação concessionário-usuário. Como determina a Lei, a concessão florestal será formalizada mediante contrato administrativo (artigo 7º) e terá prazo determinado (artigo 20, IV). O objeto da concessão é delimitado pelo artigo 14 da Lei: “a concessão florestal terá como objeto a exploração de produtos e serviços florestais, contratualmente especificados, em unidade de manejo de floresta pública, com perímetro georreferenciado, registrada no respectivo cadastro de florestas públicas e incluída no lote de concessão florestal”. E, com o objetivo de evitar o uso indevido das florestas públicas, o §1º do artigo 16 da Lei veda a outorga de alguns direitos a elas inerentes: “Art. 16. A concessão florestal confere ao concessionário somente os direitos expressamente previstos no contrato de concessão. § 1o É vedada a outorga de qualquer dos seguintes direitos no âmbito da concessão florestal: I – titularidade imobiliária ou preferência em sua aquisição; II – acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções; III – uso dos recursos hídricos acima do especificado como insignificante, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997; IV – exploração dos recursos minerais; V – exploração de recursos pesqueiros ou da fauna silvestre; VI – comercialização de créditos decorrentes da emissão evitada de carbono em florestas naturais.” Em relação ao processo de outorga da concessão florestal, algumas exigências devem ser seguidas. Primeiramente, “o poder concedente publicará, previamente ao edital de licitação, ato justificando a conveniência da concessão florestal, caracterizando seu objeto e a unidade de manejo” (artigo 12). Posteriormente, será realizada, de forma obrigatória, a licitação – de acordo com o §2º do artigo 13, “(…) é vedada a declaração de inexigibilidade prevista no art. 25 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993” – e esta será na modalidade concorrência – (§1º do artigo 13). A licitação observará as regras da Lei 11.284/2006 e supletivamente as a Lei 8.666, respeitando os princípios previstos neste diploma. 6 – Parceria público – privada 6.1- Definição: O conceito legal do instituto da parceria público-privada consta no art. 2º da Lei Federal 11.079/2004: “é o contrato administrativo de concessão na modalidade patrocinada ou administrativa”. Trata-se, basicamente, de contratos que estabelecem vínculo obrigacional entre a Administração Pública e a iniciativa privada visando à implementação ou gestão, total ou parcial, de obras, serviços ou atividades de interesse público, em que o parceiro privado assume a responsabilidade pelo financiamento, investimento e exploração do serviço, observando, além dos princípios administrativos gerais, os princípios específicos desse tipo de parceria. Tendo em vista a impossibilidade de maior arrecadação de capital do setor privado por meio de recursos tributários e a ausência de fundos por parte do Estado para investimento em infra-estrutura, se torna fundamental o estudo e o emprego das parcerias público-privadas (PPP) como forma de captação de recursos das esferas privadas na forma de investimentos. 6. 2- Modalidades: 6.2.1- Concessão patrocinada: Na parceria público-privada patrocinada o serviço é prestado diretamente ao público, com cobrança tarifária que, complementada por contraprestação pecuniária do ente público, compõe a receita do parceiro privado. Estando presentes a cobrança de tarifas aos usuários e a contraprestação pecuniária do concedente, estar-se-á diante de uma concessão patrocinada, ainda que o concessionário também receba contraprestação não pecuniária da Administração e outras receitas alternativas. 6.2.2- Concessão administrativa: Contrato de concessão cujo objeto é a prestação de serviços (público ou não) diretamente à Administração Pública, podendo o particular assumir a execução da obra, fornecimento de bens ou outras prestações. Há dois tipos de concessões administrativas: A concessão administrativa de serviços públicos, em que a Administração Pública é usuária indireta, tem por objeto os serviços públicos a que se refere o art. 175 da Constituição Federal; e a concessão administrativa de serviços ao Estado, que visa a prestar serviços ou fornecer utilidades diretamente à Administração. Em ambas modalidades de concessão administrativa, o Poder Público assume o ônus relativo ao pagamento do serviço prestado. 6.2.3- Distinção de “concessão comum”: §3º Não constitui parceria público-privada a concessão comum, assim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei 8.987/95, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.” (Lei8987/95) As parcerias público-privadas admitem somente as modalidades de concessão patrocinada e de administrativa; isso significa que a concessão comum, a qual tem por objeto os serviços públicos tratados na Lei nº 8.987/95, não é regida pela Lei Federal 11.079/04, mas pela Lei das Concessões e legislação correlata. Se ausentes os demais requisitos elencados na Lei específica das parcerias e a remuneração por parte da Administração Pública limitar-se à contraprestação não-pecuniária ou alternativa, caracterizar-se-á a concessão comum. 6.3- Características: 6.3.1- A tutela dos riscos na PPP brasileira: Uma característica inovadora dos contratos de parceria público-privada é a previsão legal da repartição objetiva dos riscos entre as partes, observando a capacidade do contratado. A transferência de riscos é fundamental para que o contrato alcance o objetivo principal de sua constituição, a eficiência econômica na prestação de serviços públicos. Ademais, se a repartição dos riscos é prevista pela Lei vigente e claramente explicitada no edital, e, ainda, respeitada as condições objetivas do particular de se responsabilizar por tais riscos, não há de se falar em quebra do equilíbrio econômico-financeiro, muito menos em desvirtuamento das condições efetivas da proposta. 6.3.2- Regime jurídico (art. 3º da Lei Federal 11.079/04): É importante salientar que o contrato de parceria público-privada não é um contrato privado da Administração Pública. O regime jurídico das concessões patrocinadas e administrativas não difere substancialmente do regime contratual da concessão comum, exceto por algumas peculiaridades previstas na Lei Federal 11.079 que determina, no art. 3º, a qual regime jurídico estão submetidas as respectivas modalidades de concessão. A necessidade da estipulação em contrato do prazo máximo do vínculo obrigacional, inciso I, art. 5º da Lei 11.079/04, e a previsão relativa à inadimplência pecuniária do concedente, inciso VI do mesmo artigo, são exemplos de exigências contratuais que se aplicam à concessão patrocinada mas não às comuns. Outros traços contratuais, como a previsão de garantias de adimplemento das obrigações pecuniárias do concedente (art. 6º) e a exigência de constituição de sociedade de propósito específico (art. 9º), são, também, aspectos exclusivos das concessões patrocinadas e administrativas, as quais são submetidas ao mesmo regimento, diferenciando-se apenas na matéria tributária, inexistente na concessão administrativa. 6.3.3- Distinção de privatização: Ao contrário do que ocorre nas privatizações, as parcerias público-privadas não importam em alienação definitiva do controle da política pública. Ademais, os contratos de parceria possuem maior abrangência em relação aos objetos cuja delegação é permitida. Portanto, privatização e parceria público-privada são contratos administrativos distintos e não se confundem. 6.4- Requisitos: A Lei Federal 11.079/04 fixou alguns requisitos para a contratação da parceria público-privada, diferenciando, portanto, no plano jurídico, as respectivas modalidades de concessão, afastando eventual confusão entre as concessões comum e patrocinada que possuem objetos similares. A contratação das parcerias tem como finalidade arrecadar investimento privado para setores de infra-estrutura pública, o que envolve custos elevados. Portanto, não se justifica a contratação do particular por meio de parceria público-privada cujo valor do objeto seja inferior a R$20 milhões. A prestação dos serviços deve perdurar no mínimo por 5 anos. Ainda em relação a prazo, o art. 5º da Lei das parcerias público-privadas exige a previsão nas cláusulas contratuais do termo final do vínculo obrigacional, assim a vigência do contrato de parceria público-privada não pode ter prazo inferior a 5 anos nem superior a 35. A previsão do prazo mínimo legal visa tanto a permitir à Administração Pública amortizar o investimento6, como a expor o responsável pela obra ou serviço (particular contratado) ao risco do prejuízo econômico da má execução da infra-estrutura. Não obstante, os demais elementos essenciais do contrato devem restar caracterizados. Portanto, em instituto distinto das parcerias público-privadas resulta o contrato que não estipular a repartição dos riscos entre as partes, nem delegar a responsabilidade e a gerência pela execução da obra. 6.5- Da impossibilidade de mera execução de obra pública como objeto das PPP: É necessário reconhecer a possibilidade ou não da contratação da parceria público-privada que tenha por objeto único a execução de obra pública. Essa dúvida resulta da interpretação extraída do confuso conceito legal de concessão patrocinada (“…a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei 8987, em face da limitação prevista no inciso III, §4º, art. 2º da Lei 11.079/04. Este dispositivo legal veda a celebração do contrato de parceria público-privada que tenha por objeto único a execução de obra pública. De conseqüência, visando a resolver o conflito, entende-se que a concessão patrocinada resta caracterizada na prestação de serviços públicos, precedida ou não do fornecimento de mão-de-obra, equipamentos ou da execução de obra pública. Dessa mesma idéia compartilham Maria Sylvia di Pietro, para quem as obras públicas seriam admitidas como preliminares da contratação de serviços públicos por meio da parceria público-privada, e Celso Antônio Bandeira de Mello, que considera nulo o contrato de parceria que estipule como objeto principal prestação de atividade que não seja serviço público. Justificativa diversa apresenta Marcos Barbosa Pinto, que ressalta a eficiência econômica dos contratos de parceria público-privada. Em decorrência, considera uma forma disfarçada de contrair dívidas, portanto, um meio de burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal, a celebração do contrato que tenha por objeto único a prestação de obra pública. Para Carlos Ari Sundfeld, a vedação da mera execução de obra pública por meio de parceria público-privada tem como finalidade prevenir o desinteresse econômico do particular pela boa execução do contrato, pois a contraprestação por parte da Administração Pública será obrigatoriamente precedida da disponibilização do serviço contrato (art. 7º), e, ainda, variável de acordo com o desempenho do parceiro privado, conforme metas e padrões de qualidade e disponibilidade fixadas (art. 6º, parágrafo único). Em resumo, é vedada a celebração de contrato de parceria público-privada que tenha como objeto único a execução de obra pública. Da interpretação do confuso texto legal do §1º, art. 2º da Lei 11.079/04, extrai-se que as obras públicas podem preceder ou não a prestação de serviços públicos, no entanto, na ausência da contratação destes estar-se-á diante de contrato diverso ao de parceria público-privada. 6.6- Princípios específicos: As diretrizes a serem observadas na contratação das parcerias público-privadas estão dispostas no art. 4º da Lei das Parcerias Público-Privadas. Além dos princípios gerais consagrados no ordenamento jurídico, a celebração do contrato deve observar alguns preceitos específicos. O diploma legal das parcerias público-privada não somente reforçou determinados princípios como o da eficiência, da responsabilidade fiscal e da transparência dos procedimentos e decisões, presentes em diversos textos legais vigentes, como inovou ao determinar a repartição dos riscos de acordo com a capacidade dos parceiros em gerenciá-los. Não obstante, na contratação deve ser observada a sustentabilidade financeira e vantagens sócio-econômicas do projeto de parceria (inciso VII, art. 4º). Isto quer dizer, o contrato celebrado entre o Poder Público e o particular deve tanto observar a viabilidade econômica e o retorno financeiro como atender ao interesse público. Por último, é necessário identificar a abrangência do contrato de parceria público-privada, ou seja, quais as funções que podem ser delegadas ao ente da iniciativa privada. Da leitura inciso III, art. 4º, da Lei 11.079/04, extrai-se que “a margem para atuação da iniciativa privada dependerá dos termos de cada contrato, o que expressamente permite delegar todas as funções, à exceção das funções de regulação, jurisdicional e do exercício de poder de polícia” e de outras atividades exclusivas do Estado. 7 – Conclusão Diante da elaboração do presente artigo, no qual procurei observar que o atendimento ao interesse público é finalidade de toda contratação firmada pelo Poder Público, não sendo possível, pois, nestes contratos, interpretar suas cláusulas de forma a atender interesses individuais do contratado. Este é o princípio fundamental voltado à interpretação dos contratos avençados com a Administração. Outrossim, é importante frisar que os contratos firmados com a Administração Pública seguem uma tendência moderno do neoliberalismo, em que é cada vez mais comum a celebração de contrato com um particular a fim de atender as necessidades dos administrados. Nesse sentido, consoante se tentou mostrar, faz-se mister que tais acordos estejam em consonância com os princípios que regem o ordenamento jurídico, sejam eles expressos, implícitos ou específicos de um determinado contrato. Dessa maneira, pretende a Administração Pública, cada vez mais, descentralizar suas atividades, com o intuito de melhor atender os interesses da população, impondo, para tal fim, que os mais variados serviços sejam prestados pelo particular. Por fim, cabe ressaltar que, não obstante tais contratos sejam um acordo bilateral, é reservado ao Estado certa prerrogativa, tendo em vista que deve sempre prevalecer o interesse público sobre o privado e, consequentemente, os interesses dos administrados.
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Da abrangência dos efeitos das sanções de suspensão temporária prevista no art. 87 da Lei 8.666/93
Durante muito tempo o posicionamento do Tribunal de Contas quanto a abrangência dos efeitos da sanção de suspensão temporária de licitar e contratar com a Administração era consolidado no sentido de ser esta restrita no âmbito no ente/órgão aplicador da penalidade; diversamente do que ocorre com a sanção tipificada no inciso IV do mesmo dispositivo legal, em que a limitação se dá perante toda a Administração Pública. Porém, uma nova corrente interpretativa, liderada pelo STJ tem tido reflexo em alguns recentes julgados do TCU, que vem decidindo de forma diversa da corrente tradicional, estendendo a abrangência dos efeitos da sanção do inciso III a toda a Administração Pública. A análise destas duas correntes será o estudo do presente trabalho.
Direito Administrativo
1.   INTRODUÇÃO O artigo 87 da lei 8.666/93 prevê as penalidades que podem ser aplicadas quando a empresa contratada deixa de executar, total ou parcialmente, o contrata firmado junto com a Administração Pública. Pois bem. Dentre as penalidades ali incertas a tipificada no inciso III será objeto do presente estudo, em especial quanto a extensão dos seus efeitos perante a Administração Pública, vejamos:   Art. 87.  Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: I – advertência; II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.  Quando a empresa é penalizada nos moldes do inciso III, está ela impedida de contratar com toda a Administração Pública ou somente com o ente sancionador? A jurisprudência do Tribunal de Contas da União vinha tendo entendimento consolidado de que a penalidade contida no inciso III do artigo 87 da lei 8666/93 se limitava tão somente ao ente que houvesse aplicado a sanção. Quanto à penalidade tipificada no inciso IV, do mesmo dispositivo legal, a abrangência refletia além do ente sancionador, alcançando também todas as demais esferas da Administração Pública. Esta diferenciação se dava principalmente pela interpretação literal dos dispositivos supracitados. Isto porque, o tratar da suspensão temporária (penalidade do inciso III), o legislador utiliza a palavra “Administração”; diferentemente, porém, quando trata da declaração de idoneidade (penalidade do inciso IV) quando o termo utilizado é “Administração Pública”. Levando em consideração os conceitos apresentados pelo legislador – interpretação autentica – estabelecida no artigo 6° da Lei 8666/93 em seus incisos XI e XII. Entretanto, uma nova corrente liderada pelo Superior Tribunal de Justiça – guardião maior da legislação infraconstitucional – trouxe uma nova interpretação quanto aos efeitos das sanções dos incisos III do artigo 87 da lei 8666/93, estendendo-os a todos os entes da Administração Pública, não se restringindo apenas ao ente sancionador. Corrente esta que vem refletindo nos atuais julgados do Tribunal de Contas da União é o que se observa no acórdão 2218/2011 proferido nos autos do processo n° 025430/2009-5. Tal posicionamento tem por base uma interpretação teleológica e sistemática da lei 8.666/93 com a Constituição Federal. Feita esta breve introdução passaremos a analise de cada uma das correntes ora citadas. 2.   CORRENTE TRADICIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU) Iniciaremos o estudo pela corrente tradicional adotada pela doutrina majoritária e que vinha sendo o entendimento consolidado do Tribunal de Contas da União: De acordo com esta corrente a suspensão temporária para a participação em licitação e impedimento para contratar com a Administração Publica, prevista no inciso II, do artigo 87 da lei 8666/93 tem seus efeitos restritos ao ente sancionador. Desta forma, a empresa penalizada não estaria impedida de participar de outros processos licitatórios e de contratar com a Administração Pública, desde que não fosse com entes/órgãos da mesma Administração Pública que aplicou a penalidade. Lado outro, quando a penalidade aplicada fosse aquela do inciso IV – “declaração da inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração pública”  radiava para toda a Administração Pública. Os defensores desta corrente sustentam que o legislador ao prever as sanções, o fez de forma diversa, de tal modo que diversos também seriam seus efeitos, pois, utiliza no primeiro caso o termo “Administração” e no segundo “Administração Pública”. E o próprio legislador conceitua tais termos no artigo 6° da Lei 8666/93, in verebis: “Art. 6° para fins desta lei considera-se:(…) XI- Administração pública – Administração Direta e Indireta da União, dos Estados, Distrito Federal, e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades de personalidade jurídica privada sob controle do Poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas; XII – Administração- órgão, entidade ou unidade administrativa, pelo qual a Administração Pública opera e atua concretamente.” Verifica-se, pois, que ao empregar o termo Administração o legislador o faz de forma mais restrita  enquanto o termo Administração Pública revela mais amplo. Outro argumento defendido por esta corrente, está no fato de tratar de norma sancionadora e que ao interpretar tais normas o exegeta deve fazê-la de forma restritiva uma vez que não se admite interpretação extensiva, pois atinge bens, patrimônio e atividade restringindo direitos individuais. Assim, não tendo o legislador previsto, não cabe ao intérprete faze-lo sob pena de incidir em ilegalidade. Por fim, encerram seus argumentos, apontando que não se pode dar o mesmo alcance às penalidades dos incisos III e IV, pois infringem a regra da dosimetria da pena já que as tais sanções apresentam diferentes graus de intensidade e ao igualar a abrangência de seus efeitos não haverá mais distinção entre as referidas sanções. Corroborando este entendimento o legislador ao prever a autoridade competente para aplicação da sanção o fez de forma distinta, que demonstra que a segunda sanção é mais rigorosa que a primeira já que para esta o competente é o órgão contratante, enquanto para a aquela é de competência exclusiva do Ministro de Estado, Secretário Estudo ou Município, dependendo do caso. Neste sentido são, a maioria, dos julgados proferidos pelo Tribunal de Contas da União, conforme se observa na coletânea abaixo selecionada:                            A sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/93 produz efeitos apenas em relação ao órgão ou entidade sancionador, enquanto a prevista no art. 7º da Lei 10.520/02 produz efeitos no âmbito do ente federativo que a aplicar. Representação versando sobre pregão eletrônico promovido pelo Serviço Federal de Processamento de Dados – Regional de São Paulo (Serpro/SP) apontara possível restrição à competitividade decorrente de disposição editalícia vedando a participação de empresas “que estejam com o direito de licitar e contratar suspenso com o SERPRO e/ou outros órgãos da Administração Pública, bem como tenham sido declaradas inidôneas pela mesma”. Em juízo de mérito, realizadas as oitivas regimentais após concessão da cautelar pleiteada pelo representante, o relator esclareceu que o Plenário do TCU vem “reafirmando a ausência de base legal para uma interpretação da norma que amplie os efeitos punitivos do art. 87, inciso III [suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a dois anos], da Lei 8.666/1993 a todos os entes e órgãos da Administração Pública (Acórdãos 3.243/2012, 3.439/2012, 3.465/2012, 842/2013, 739/2013, 1.006/2013 e 1.017/2013, todos do Plenário)”. A propósito, relembrou que o voto condutor do Acórdão 3.439/2012-Plenário sintetizou os elementos nos quais se funda a posição do TCU sobre a matéria: “a) as sanções do art. 87 da Lei 8.666/93 estão organizadas em ordem crescente de gravidade e, ao diferenciar aspectos como duração, abrangência e autoridade competente para aplicá-las, o legislador pretendia distinguir as penalidades dos incisos III e IV [declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública]; b) em se tratando de norma que reduz o direito de eventuais licitantes, cabe interpretação restritiva; c) o art. 97 da Lei de Licitações, ao definir que é crime admitir licitação ou contratar empresa declarada inidônea, reforça a diferenciação entre as penalidades de inidoneidade e suspensão temporária/impedimento de contratar, atribuindo àquela maior gravidade”. Noutro giro, versando agora sobre os limites de sanção correlata prevista na Lei do Pregão (Lei 10.520/02, art. 7º – impedimento de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios), e diante da possibilidade de que o Serpro/SP venha a conferir demasiado alcance a esse dispositivo, consignou o relator que “a jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos do Plenário 739/2013, 1.006/2013 e 1.017/2013) é firme no sentido de que tal penalidade impede o concorrente punido de licitar e contratar apenas no âmbito do ente federativo que aplicou a sanção, em consonância com o que dispõe o art. 40, inciso V e § 3º, da IN SLTI 2/2010”. Nesse sentido, e tendo em vista que as falhas verificadas não comprometeram efetivamente a competitividade do certame e tampouco frustraram o objetivo da contratação, o Plenário do TCU, acolhendo a proposta do relator, considerou parcialmente procedente a representação, revogando a cautelar expedida e cientificando o Serpro/SP de que “a sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/1993 produz efeitos apenas em relação ao órgão ou entidade sancionador, enquanto a prevista no art. 7º da Lei 10.520/2002 produz efeitos apenas no âmbito interno do ente federativo que a aplicar”. Acórdão 2242/2013-Plenário, TC 019.276/2013-3, relator Ministro José Múcio Monteiro, 21.8.2013. A sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666/93 produz efeitos apenas no âmbito do órgão ou entidade que a aplicou. Representação formulada por empresa apontou possíveis irregularidades na condução do Pregão Presencial nº 11/2011, promovido Prefeitura Municipal de Cambé/PR, que teve por objeto o fornecimento de medicamentos para serem distribuídos nas Unidades Básicas de Saúde e na Farmácia Municipal. Entre as questões avaliadas nesse processo, destaque-se a exclusão de empresas do certame, em razão de terem sido apenadas com a sanção do art. 87, III, da Lei nº 8.666/93 por outros órgãos e entidades públicos. Passou-se, em seguimento de votação, a discutir o alcance que se deve conferir às sanções estipuladas nesse comando normativo (“suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração”). O relator, Ministro Ubiratan Aguiar, anotara que a jurisprudência do Tribunal havia-se firmado no sentido de que a referida sanção restringia-se ao órgão ou entidade que aplica a punição. A sanção prevista no inciso IV do mesmo artigo, relativa à declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, produziria efeitos para os órgãos e entidades das três esferas de governo. O relator, a despeito disso, ancorado em precedente revelado por meio do Acórdão nº 2.218/2011-1ª Câmara, de relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues, e na jurisprudência do dominante do STJ, encampou o entendimento de que a sanção do inciso III do art. 87 também deveria produzir efeitos para as três esferas de governo. O primeiro revisor, Min. José Jorge, sustentou a necessidade de se reconhecer a distinção entre as sanções dos incisos III e IV, em função da gravidade da infração cometida. Pugnou, ainda, pela modificação da jurisprudência do TCU, a fim de se considerar que “a sociedade apenada com base no art. 87, III, da Lei nº 8.666/93, por órgão/entidade municipal, não poderá participar de licitação, tampouco ser contratada, para a execução de objeto demandado por qualquer ente público do respectivo município”. O segundo revisor, Min. Raimundo Carreiro, por sua vez, ao investigar o significado das expressões “Administração” e “Administração Pública” contidos nos incisos III e IV do art. 87 da Lei nº 8.666/1993, respectivamente, assim se manifestou: “Consoante se lê dos incisos XI e XII do art. 6º da Lei nº 8.666/93, os conceitos definidos pelo legislador para ‘Administração Pública’ e para ‘Administração’ são distintos, sendo o primeiro mais amplo do que o segundo. Desse modo, não creio que haja espaço hermenêutico tão extenso quanto tem sustentado o Superior Tribunal de Justiça nos precedentes citados no voto do relator no que concerne ao alcance da sanção prevista no inciso III do art. 87”. Mencionou, também, doutrinadores que, como ele, privilegiam a interpretação restritiva a ser emprestada a esse comando normativo. Ressaltou, ainda, que as sanções dos incisos III e IV do art. 87 da multicitada lei “guardam um distinto grau de intensidade da sanção”, mas que “referidos dispositivos não especificaram as hipóteses de cabimento de uma e de outra sanção …”. Segundo ele, não se poderia, diante desse panorama normativo, admitir que o alcance de ambas sanções seria o mesmo. Chamou atenção para o fato de que “a sanção prevista no inciso III do art. 87 é aplicada pelo gestor do órgão contratante ao passo que a sanção do inciso IV é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso”. E arrematou: “ … para a sanção de maior alcance o legislador exigiu também maior rigor para a sua aplicação, ao submetê-la à apreciação do titular da respectiva pasta de governo”. Acrescentou que a sanção do inciso III do art. 87 da Lei de Licitações não poderia ter alcance maior que o da declaração de inidoneidade pelo TCU (art. 46 da Lei nº 8.443/1992). Por fim, invocou o disposto no inciso XII do art. 6º da Lei de Licitações, que definiu “Administração” como sendo “órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente”, para refutar a proposta do primeiro revisor, acima destacada. O Tribunal, então, ao aprovar, por maioria, a tese do segundo revisor, Min. Raimundo Carreiro, decidiu: “9.2. determinar à Prefeitura Municipal de Cambé/PR que nas contratações efetuadas com recursos federais observe que a sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666/93 produz efeitos apenas em relação ao órgão ou entidade contratante”. Acórdão nº 3243/2012-Plenário, TC-013.294/2011-3, redator Ministro Raimundo Carreiro, 28.11.2012. Em síntese, conclui-se que os argumentos da primeira corrente estudada se resumem em: a) Termos empregados em cada inciso- Administração e Administração pública; b) Natureza sancionatória da norma que exige  interpretação restritiva; c) Gravidade das sanções; d) Competência para aplicação. 3.   CORRENTE MODERNA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ) Passemos para o estudo da segunda corrente liderada pelo Superior Tribunal de Justiça. Com vários precedentes[1] o Superior Tribunal de Justiça tem entendido diversamente, para esta Corte, a extensão dos efeitos da penalidade do inciso III, assim como a do inciso IV, deve ser alcançar toda Administração Pública e não somente ao ente aplicador da penalidade. Entendimento este que tem sido acolhido por alguns julgados do TCU. Tal corrente debate os argumentos apresentados pela primeira, com os seguintes argumentos: Os conceitos apresentados pelo artigo6°, XI e XII, de “Administração Pública” e “Administração” não tratam de conceitos diversos, mas sinônimos. Isto porque, de acordo com o STJ a Administração Pública é uma e que a descentralização da Administrativa nada mais é que uma forma de atuação do estado para melhor atender sua finalidade. Vejamos o que dizem alguns de seus julgados: “É irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras. A Administração Pública é una, sendo descentralizadas as suas funções, para melhor atender ao bem comum. A limitação dos efeitos da 'suspensão de participação de licitação' não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública” (REsp 151.567 / RJ, Relator: Ministro Peçanha Martins). “Como bem acentuado pela Insigne Subprocuradora-Geral da República, Dra. Gilda Pereira de Carvalho Berger, não há ampliação punitiva ao direito da Recorrente, tão-somente a irrepreensível aplicação da letra da lei: ‘(…) verifica-se que a sanção de suspensão prevista no inciso II, do art. 87, na forma com que foi disposta, aplica-se a todo e qualquer ente que, componha a Administração Pública, seja direta ou indireta, mesmo porque esta se mostra una, apenas descentralizada para melhor executar suas funções:’ (fl. 189) A Administração Pública é a acepção subjetiva de Estado-administrador e sua natureza executiva é única. Apenas as suas atribuições são distribuídas de forma descentralizada, para melhor gerir o interesse de sua comunidade.”  (STJ – RMS 9707 / PR, Relatoria: Ministra Laurita Vaz). Dentre os doutrinadores defensores desta corrente cita-se Marçall Justen Filho, que em sua obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 8ª edição, fls. 106 e 107 ao comentar sobre a distinção nos conceitos de Administração e Administração Pública, levantado pela primeira corrente ensina que: “é irrelevante e juridicamente risível". Marçall, na mesma obra, ao comentar a respeito das sanções dos incisos III e IV do artigo 87 esclarece em fls. 626/627: "11) A Supensão Temporária e a Declaração de inidoneidade As sanções dos incs. III e IV são extremamente graves e pressupõem a prática de condutas igualmente sérias. 11.1) Necessidade de precisar os pressupostos de sancionamento Como visto acima e como será reafirmado no comentário ao art. 88, a aplicação das sanções dos incs. III e IV depende de discriminação precisa, através de lei, dos pressupostos de sua aplicação. Não se admite escolha discricionária por parte da Administração Pública quanto a tais pressupostos. Enquanto uma lei não dispuser sobre o tema, não caberá aplicar essas sanções. 11.2) Distinção entre as figuras dos incs. III e IV A lei que regulamentar as figuras deverá distinguir a suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) da declaração de inidoneidade (inc. IV). Ambas as figuras acarretam consequências similares. Nos dois casos, veda-se ao particular a participação em licitações e contratações futuras. Seria possível estabelecer uma distinção de amplitude entre as duas figuras. Aquela do inc. III produziria efeitos no âmbito da entidade administrativa que a aplicasse; aquela do inc. IV abarcaria todos os órgãos da Administração Pública. Essa interpretação deriva da redação legislativa, pois o inc. III utiliza apenas o vocábulo 'Administração', enquanto o inc. IV contém 'Administração Pública'. No entanto, essa interpretação não apresenta maior consistência, ao menos enquanto não houver regramento mais detalhado. Aliás, não haveria sentido em circunscrever os efeitos da 'suspensão de participação de licitação' a apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão. Nenhum órgão da Administração Pública pode contratar com aquele que teve seu direito de licitar 'suspenso'. A menos que lei posterior atribua contornos distintos à figura do inc. III essa é a conclusão que se extrai da atual disciplina legislativa. Portanto, tem-se que, deve ser realizada uma interpretação teleológica e analítica dos princípios aplicados à Licitação. Neste sentido dispõe o artigo 3° da Lei 8.666/93, que reforça alguns princípios constitucional, que são de observância obrigatória tanto pela Administração Pública como também pelo Administrado, dentre eles o da moralidade administrativa: Art. 3o  A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos De acordo com a Lei de Licitações a licitação te por finalidade a obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública que consiste naquela que observa os princípios da eficiência, economicidade e moralidade. As penalidades tipificadas nos incisos III e IV visam afastar do procedimento licitatório aquelas empresas que tenham revelado atentatórias às diretrizes acima expostas. Sendo esta a finalidade primordial da penalidade, por qual razão defender a possibilidade de a empresa penalizada poder participar de licitações e realizar contratados com os demais entes da Administração Pública? A restrição da suspensão a apenas ao ente sancionador, vai de encontro com os demais princípios aplicáveis à Administração Pública e contra a própria lógica da sanção.  O Superior Tribunal de Justiça no REsp 151.567/RJ, quanto ao tema assim se pronunciou: ‘A premissa em que se fundamenta o julgado, ou seja, a diferença conceitual entre órgão da administração pública e órgão da administração, em que se assenta a conclusão de que a penalidade aplicada por este último tem a sua eficácia limitada à jurisdição administrativa do órgão sancionador, não se compadece com o sistema instituído pela lei de regência, até porque o princípio da moralidade administrativa, insculpido no art. 3º da Lei 8.666/93, não se harmoniza com a idéia de que a improbidade, decorrente da inadimplência do licitante no cumprimento do contrato, tenha por limite a jurisdição administrativa do órgão sancionador.’ No mesmo sentido, o já aludido RMS 9707 / PR, de relatoria da Ministra Laurita Vaz: ‘A garantia da honorabilidade e probidade dos licitantes é qualidade indissociável ao trato da coisa pública. O resguardo da Administração à regularidade da concorrência pública denota, sobretudo, o respeito ao interesse comum. Ora, se a lei exige do administrador que aja com probidade ao promover a licitação pública, com maior razão que também se prescreva ao particular essa exigência.’ Urge salientar que tramita no Congresso o projeto de Lei PL 7709/2009 que acrescenta o inciso IV ao artigo 28 da Lei 8666/93 a fim de que na fase de habilitação seja exigida do licitante declaração de que não está incurso nas sanções previstas nos incisos III e IV, e acrescenta parágrafo único ao dispositivo 28, nos seguintes termos: ‘Parágrafo único. Não poderá licitar nem contratar com a Administração Pública pessoa jurídica cujos diretores, gerentes ou representantes, inclusive quando provenientes de outra pessoa jurídica, tenham sido punidos na forma do § 4º do art. 87 desta Lei, nos limites das sanções dos incisos III e IV do mesmo artigo, enquanto perdurar a sanção.’ Outro ponto importante é que a extensão dos efeitos da penalidade do inciso III tem o proposito de preservar a Administração quanto à fraude e prejuízos ao erário. Visa, pois, dar efetividade a sanção anteriormente imposta. Em relação ao nível de gravidade a segunda corrente sustenta que, diferentemente do alegado pela primeira corrente, o fato de estender os efeitos da restrição a toda Administração Pública não tira a singularidade de cada penalidade, uma vez que tal fato não as iguala. Apontam-se as seguintes diferenças: A gradação das penalidades é diversa, independente, da extensão ou não do impedimento de licitação e contração a toda Administração Pública. Pois, de acordo com esta corrente a gradação das penalidades referem-se os aspectos acima expostos e não à extensão de seus efeitos. 4.   CONCLUSÃO Feitas estas considerações verifica-se que a segunda corrente- mais moderna- tem apontado no cenário jurídico com fortes argumentos, porém, apesar de liderada pelo STJ encontra grande resistência por parte do Tribunal de Contas da União, onde ainda predomina a primeira corrente conforme se observa nos julgados daquele tribunal.
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A integração dos princípios do processo administrativo ambiental para a consolidação do estado democrático de direito numa sociedade de risco
O trabalho investiga os princípios jurídicos e sua relevância na consecução do Estado Democrático de Direito ante a sociedade de risco. Neste sentido, destaca-se que a sociedade de risco em que se insere hoje a humanidade leva o gestor público a realizar escolhas em um cenário de incertezas, especialmente na área ambiental. O processo administrativo ambiental, neste contexto, é a ferramenta com a qual se pode alcançar da forma mais adequada os objetivos do Estado tal qual esculpido na Constituição Federal de 1988. Este processo administrativo, assim, será conduzido de modo apropriado com a atual sociedade de risco se permeado pelos contornos dos princípios jurídicos que embasam o direito ambiental, o direito administrativo e de outros ramos. Tais princípios, assim, devem ser vistos não isoladamente, mas como um todo harmônico sem o qual não se pode concretizar os ditames do Estado Democrático de Direito e nem se vislumbrar a consecução do idealizado Estado de Direito Ambiental.
Direito Administrativo
Introdução  A sociedade pós-industrial trouxe à humanidade problemas de âmbito global. Esta é a sociedade em que vive o ser humano atualmente, chamada “sociedade de risco” por seu maior estudioso, Ulrich Beck. Com a evidência desta sociedade de risco, percebe-se que os problemas ambientais a serem enfrentados necessitam de um posicionamento contundente, sobretudo para que não se ameace a própria existência de vida no planeta.  Neste contexto, fundamental é a adequada tomada de decisão do gestor público, que não pode encarar os desafios ambientais desta sociedade com o descaso e desconhecimento com que enfrentava os problemas ligados ao meio ambiente no século XIX e primeira metade do século XX. Por isto, necessário faz-se modificar a postura e encarar o processo de tomada de decisão como uma atitude que trará reflexos ao macro, ou seja, a toda a coletividade. Ademais, fundamental é sopesar os riscos que esta sociedade apresenta, o que torna ainda mais delicada e minuciosa as escolhas realizadas pelo gestor, que irá lidar com incertezas.  Para tanto, o administrador público deve se valer dos princípios de direito, verdadeiras balizas do processo administrativo ambiental, que conferirão a ele um norte em busca de decisões adequadas para um futuro incerto.  Deste modo, o trabalho está organizado em dois grandes eixos temáticos: o primeiro trata da relevância dos princípios do processo administrativo ambiental. O segundo, lida com a integração destes princípios para a consecução do Estado Democrático de Direito. No primeiro grande eixo, assim, será exposto o processo administrativo ambiental e sua relevância no atual modelo de Estado, enfocando o processo administrativo como verdadeiro paradigma da ação estatal. A posteriori, mas ainda neste primeiro eixo, serão analisados os princípios de direito de relevância para a consecução do Estado Democrático de Direito e aqueles primados fundamentais ao processo administrativo ambiental visto como ferramenta de utilidade ímpar na gestão de riscos.  No segundo grande eixo, evidencia-se a necessidade de integração destes princípios para se produzir eficiente processo administrativo ambiental e para se alcançar o almejado Estado Democrático de Direito trazido pela Lei Fundamental de 1988, em especial na sociedade de risco em que a humanidade se insere atualmente. I – Da relevância dos princípios do processo administrativo ambiental  O processo administrativo ambiental, assim como as demais modalidades de processo administrativo, não pode mais ser concebido tal qual era feito nos séculos XIX e XX. A tomada de decisão, atualmente, deve ser dotada de transparência e publicidade, e esta não pode ser efetivada ao alvedrio do gestor, considerado no passado o soberano absoluto que não cometia erros. Hoje o este necessita de auxílio e amparo de terceiros para tomar decisões, perfectibilizando o que se consubstancia no princípio da participação, do acesso à informação e, novamente, da transparência. Igualmente, não pode realizar escolhas na seara pública sem que se esclareça como houve a conclusão de que aquela deliberação é a mais adequada, necessitando o dirigente público obedecer ao princípio da fundamentação e, mais uma vez, ao princípio da informação e, em última análise, ao princípio do devido processo legal.  De tal forma, percebe-se que os princípios possuem singular papel na tomada de decisão do gestor público. Os princípios de direito ambiental, plenamente aplicáveis ao processo administrativo ambiental, estão consubstanciados em várias declarações internacionais do meio ambiente, a exemplo das Declarações de Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992).  O ilustre professor Guido Soares considera tais declarações como “uma notável consolidação de princípios gerais do direito […] por seu conteúdo e sua finalidade”. E completa aclarando que, se tais Declarações “são guias para a unificação ou uniformidade dos direitos internos dos Estados, estão presentes nestes e, portanto, são princípios gerais de direito, por um dos aspectos deste[1]”.  Do mesmo modo, relevantes são os princípios de direito administrativo, bem como os princípios de processo civil e de outras áreas do direito para o adequado desenvolvimento do processo administrativo ambiental, formando um rol tendente a auxiliar os gestores públicos em suas escolhas no que concerne ao meio ambiente. § 1º – Do processo administrativo e sua importância no atual modelo de estado  Não se concebe na atualidade um Estado que exerce o poder de forma isolada e autoritária[2]. Neste contexto, o processo administrativo, em especial em sede ambiental, não pode refletir o autoritarismo e a ausência de critérios objetivos que antes existia na seara pública.  O processo administrativo deve obedecer à exigência de proteção a uma série de princípios de direito, a fim de refletir o modelo de Estado brasileiro que se almeja. Dentre estes princípios está o da legalidade, entendida não como um conjunto de leis, mas como ordem jurídica, composta de princípios e regras, sendo os primeiros destinados à realização de algo da melhor forma possível e, in casu, destinados à consecução do bem-estar social.  Deste modo, não há como se dissociar o processo administrativo, hodiernamente, da obediência dos princípios para que este efetivamente albergue a dignidade e o direito à vida[3], direitos humanos fundamentais.  Assim, o processo administrativo adquire especial importância na defesa do Estado Democrático de Direito, na medida em que se traduz em grande ferramenta a disposição do agente público. A – Noções preliminares acerca do processo administrativo  O processo administrativo ocupa especial lugar para concretizar o Estado Democrático de Direito traçado na Constituição da República. Destaca a jurista Carla Amado Gomes que o procedimento é técnica que leva à decisão com eficácia e transparência, fatores de suma importância quando a deliberação envolve grandes consequências socioeconômicas quanto aos riscos[4]. Conforme elucida o eminente Antônio Herman Benjamin, diferente do modelo liberal de Estado, a crise ambiental vivenciada hoje em dia clama por uma maior intervenção Estatal, que deve ser preventiva e afirmativa[5]. O processo administrativo é, assim, a via mais adequada para estas intervenções. Pode-se dizer, desta forma, que o processo administrativo possui especial importância no atual modelo de Estado, pois o caminho que leva à decisão deve ser procedimentalizado. As posturas do gestor público frente aos problemas ambientais devem ser condizentes com a situação atual da humanidade, inserida em uma sociedade de risco. A mesma estudiosa supracitada assevera que: “A extensão quantitativa e qualitativa, do risco obrigou as autoridades públicas a assumir novas tarefas. O que se resolvia num plano puramente privativo (através da realização de contratos de seguro), passou a ter regulação pública com a criação legislativa da (especial) responsabilidade pelo risco, para hoje obrigar uma intervenção activamente preventiva do Legislativo, e sobretudo do Executivo[6]”. Ampliou-se, assim, o rol de responsabilidades estatais quando o assunto é meio ambiente. Neste diapasão, de suma importância é o processo administrativo para apoiar as ações do Estado. Os governantes, desta forma, devem se pautar não apenas na letra fria da lei, por muitas vezes maculada por vontades humanas alheias ao bem-estar da coletividade. Mais do que isto, o gestor deve se utilizar do processo administrativo e, por consequência, do rol de princípios de direito a sua disposição para a consecução de efetiva proteção ao bem-estar social e dos direitos fundamentais. B – Do processo administrativo como paradigma de ação estatal Os princípios de processo administrativo ambiental reforçam a ideia de que o procedimento é técnica propulsora de uma boa decisão tomada pelo gestor público. A aplicação dos princípios de direito ambiental e de outros ramos do direito no procedimento de tomada de decisão do gestor público, deste modo, são indispensáveis quando este lida com questões ambientais, tão delicadas e que, por muitas vezes, envolvem grave risco ou perigo para toda a sociedade.  Na tarefa de conduzir o Estado a escolhas que priorizem o bem-estar social, o processo administrativo possui características típicas do processo lato sensu, quais sejam: a finalidade e o dinamismo contínuo, até seu momento final, que é fase de equilíbrio e repouso, ou seja, quando há a solução da controvérsia. Sem o processo, o direito não atingiria as suas finalidades. Sem o direito, o processo é inócuo e sem sentido[7].  O processo administrativo, sob esta ótica, é paradigma para a atuação estatal, especialmente nos moldes em que deve se encontrar o Estado atualmente: verdadeiro Estado Democrático de Direito. O processo administrativo deve ser instrumento para concretizar os anseios da sociedade e seu projeto de existência, não se aceitando mais a fórmula clássica do “eu-contra-o-Estado” e nem a versão welfarista “nós-contra-o-estado” e sim uma dinâmica solidarista do “nós-todos-em-favor-do-planeta”. O processo administrativo, neste diapasão, deve ser utilizado em prol do solidarismo positivo que hoje se espera do ente público[8].  O Estado consolidará o direito fundamental à boa administração pública se utilizar de forma adequada o processo administrativo. Para isto, imprescindível é a obediência dos princípios neste trabalho mencionados: o agente público está obrigado a preservar o máximo dos direitos fundamentais, com todas as dimensões e eficácias dos princípios constitucionais[9].  Portanto, o Estado não mais satisfará o cidadão com uma bela Carta de direitos básicos, ou com normas de conteúdo programático que aguardam pacientemente por outras normas que tiraram aquelas do limbo. Mais do que isto, hoje as salvaguardas devem ser não apenas em face do Poder Público: “mas que também vinculem uma poderosa minoria de sujeitos privados que, em vários terrenos e no ambiental em especial, aparecem não exatamente como vítimas indefesas dos abusos estatais, mas como sérios candidatos à repreensão e correção por parte da norma (inclusive a constitucional) e de seus implementadores”.[10]  É esta a relevância e a missão do processo administrativo para o Estado, visto este como concretizador das políticas públicas e dos rumos que a sociedade irá trilhar. § 2º – Dos princípios do processo administrativo ambiental  São muitos os princípios do processo administrativo ambiental a serem obedecidos pelo gestor público. Cada um deles possui especial relevância e, juntos, fornecem o suporte necessário ao adequado processo administrativo ambiental que se busca em um Estado Democrático de Direito e mais, ao Estado de Direito Ambiental. A – Princípios de direito que norteiam o estado democrático de direito  Existem princípios que, ante a sua presença implícita ou explícita na Lei Fundamental, tornam-se de tal relevância que permeiam todo o ordenamento jurídico, constituem verdadeiros pilares do Estado Democrático de Direito e, por consequência, do Estado de Direito Ambiental. No presente trabalho não se pretende esgotar tal rol, mas selecionar alguns dos principais primados que o compõe.  Neste contexto, ganha ênfase o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal). É, no plano jurídico, primado que origina e fundamenta o respeito a uma série de direitos fundamentais, tais como: o direito à vida, à igualdade, à integridade física, moral e psíquica[11]. Este princípio representa um postulado primário para a compreensão do alcance dos objetivos do Estado proposto na Lei Maior, que antes eram associados a uma visão antropocêntrica de sociedade e atualmente não podem ser dissociados da imposição de certas restrições ao livre exercício da autonomia da vontade. Hoje deve prevalecer um Estado comprometido com tarefas sociais, econômicas e ecológicas. Deste modo, tal princípio deve condicionar a realização das tarefas estatais, ganhando significado diferenciado quando contextualizada numa sociedade plural, uma comunidade moral axiologicamente complexa[12].  O autor Patryck de Araújo Ayala ainda destaca que: “Somente se pode conceber dignidade a partir de uma referência deodôntica que considera a coletividade sob uma perspectiva de escala diferenciada, vinculada a uma noção de humanidade. Portanto, o dever estatal e os deveres fundamentais atribuídos a cada membro desta comunidade não se esgota, no projeto de sociedade delineados na Constituição brasileira, na garantia do bem-estar e na qualidade de vida destes mesmos membros, senão aponta para uma tarefa (estatal) e para deveres (estatais e sociais) perante a humanidade. O princípio da dignidade da pessoa humana impõe, nesta direção, deveres estatais e deveres fundamentais sujeitos a uma escala exigente de concretização”[13].  Avulta-se, ademais, o princípio do direito humano fundamental. Este decorre do texto da Constituição Federal (art. 225), que coloca o direito ao meio ambiente equilibrado com o status de bem jurídico, res communi omni, um verdadeiro Direito Humano Fundamental.  Neste ponto há que se frisar o papel fundamental do art. 225 da Carta Magna. Segundo Délton Winter de Carvalho: “Neste contexto pós-industrial, a tutela ambiental constitucional mostra-se não apenas preocupada com a tutela subjetiva e presente do meio ambiente, prevendo o controle da poluição em seus efeitos e causas, como também em constituir os aspectos globais e transtemporais dos riscos e danos ambientais como interesses juridicamente tutelados. Esta segunda geração de direitos ambientais, mais sistêmica e comprometida com os interesses ambientais das futuras gerações, encontra sustentação no próprio texto constitucional brasileiro, cujo conteúdo forma expectativas normativas de controle dos efeitos combinados de diversas fontes de riscos e degradações ambientais”[14].  Clarissa F. M. D’isep assevera que a Lei Fundamental esboçou um verdadeiro “Estado de Direito Ambiental”, evidenciando que a concretização dos valores ambientais é um macrojurídico sistêmico, formadores de microssistemas espalhados por toda a Lei Maior, tudo isto dentro da riqueza e pluralidade que formam o Estado Democrático de Direito[15]. Como princípio basilar do Estado Democrático de Direito destaca-se, ainda, o princípio do direito à sadia qualidade de vida, que está inserido nas Declarações de Estocolmo 72 e Rio 92. Este primado coloca que não basta viver ou conservar a vida, faz-se necessário buscar e conseguir a qualidade de vida.  Sobressai-se, outrossim, o princípio do acesso equitativo aos recursos naturais. Este dispõe que os bens que integram o meio ambiente devem satisfazer as necessidades de todos os integrantes do planeta. No entanto, não basta a vontade de utilizar estes bens, mas deve se estabelecer a razoabilidade desta utilização, isto pois nem sempre o homem ocupa o centro da política ambiental ou seja, os homens deverão usar estes bens na medida de suas necessidades, com a necessária razoabilidade. Deste modo, usuários potenciais das gerações vindouras também deverão ser resguardados. B – Princípios do processo administrativo e princípios de relevância para a gestão de bens ambientais Como princípio de importância incomum para o gestor público no controle dos riscos ambientais e, por consequência, na tomada de decisões, destaca-se o princípio da prevenção, que é primordial para se antecipar as consequências malévolas de eventos de ocorrência provável. Ele é, por conseguinte, estritamente ligado à imprevisibilidade do risco[16]. Embora não esteja expresso na Constituição Federal, ela estabelece um conjunto de medidas cuja essência é precaucional[17]. Já o princípio da prevenção strictu sensu, conforme Délton de Carvalho, pode ser resumido na máxima “é melhor prevenir do que remediar”. Para o jurista: “Este princípio, portanto, estabelece a prioridade da adoção de medidas preventivo-antecipatórias em detrimento de medidas repressivo-mediadoras e a necessidade de controle da poluição na fonte”[18].  Destaque-se, da mesma forma, o princípio da legalidade que se encontra explicitamente previsto na Constituição da República Federativa do Brasil no art. 5º, II.  Delicada é a questão da legalidade na seara ambiental. Isto se traduz pelo pensamento da autora Carla Amado Gomes que esclarece que “não há arrimos legislativos firmes para uma decisão sobre o risco[19]”. Isto pois o risco traz um estado de incerteza e a lei, muitas vezes, não consegue e nem pretende contemplar este estado. Por isso pode-se afirmar que o processo administrativo é ferramenta fundamental na tomada de decisão do dirigente público, visto que as escolhas do gestor hoje encontram-se atualmente pautadas por limites impostos pela ordem jurídica, mas dotado de certa liberalidade concedida por esta própria ordem para a consecução de eficientes políticas públicas[20].   Deste modo, o processo administrativo deve obedecer à legalidade entendida como ordem jurídica, composta de princípios e regras. Portanto, muitas vezes o arcabouço principiológico do país é que deverá dar suporte às decisões cuja solução não está explícita e, em muitos caso, sequer implícita na legislação. O princípio da participação, igualmente, é fundamental para a análise do risco e visa concretizar o cumprimento do dever de imparcialidade administrativa, trazendo todos os interesses envolvidos para a tomada de decisão, pois a autoridade administrativa poderá incorporar na decisão elementos relevantes que poderiam lhe escapar[21]. Encontra-se este princípio esculpido na Constituição Federal do Brasil no art. 37, modificado pela Emenda Constitucional no. 19 de 1998.  Sem a obediência a este mandamento, não se concretizam com a necessária eficiência os princípios da moralidade, publicidade e até da própria legalidade, pois a participação permite a tomada de decisão mais consciente, ante o acesso do gestor a muitos pontos-de-vista. Isto, ademais, permite que o gestor tome decisão mais imparcial, privilegiando, também, a observância do princípio da imparcialidade.  Este princípio, entretanto, não pode ser obedecido simplesmente para que se cumpra uma formalidade ou se transvista de legalidade procedimento de conteúdo ilícito ou imoral. De acordo com o pensamento da autora Carla Amado Gomes “a possibilidade de os potenciais atingidos pelos efeitos lesivos (cuja ocorrência não pode ser plenamente comprovada) fazerem ouvir as suas razoes deve ser efectiva, embora não deva ser encarada como co-constitutiva da decisão[22]”.  Portanto, o princípio da participação não vincula o gestor em suas decisões. Não necessita o administrador público decidir com a maioria, pois nem sempre a maioria tem a melhor consciência dos riscos e perigos da seara ambiental. Da mesma forma, frise-se que o princípio da participação não confere à decisão chancela de que esta foi a mais adequada ou justa. Este primado deve ser respeitado para que os mais diversos pontos-de-vista sejam trazidos à lume, sopesados e, por fim, a decisão seja tomada nem sempre tal qual deseja a maioria, mas com o máximo de informações disponíveis.  Neste sentido, o princípio da participação aproxima-se aos princípios da ampla defesa e do contraditório, que conferem aos cidadãos o direito de expor a defesa seu ponto-de-vista de todas as formas possíveis e legalmente admitidas, bem como de tomar conhecimento de todos os atos de um processo administrativo em que o cidadão seja parte ou interessado. Da mesma forma, não pode a autoridade pública eximir-se ou tentar se eximir de sua responsabilidade na escolha dos rumos do Estado sob o argumento de que foi a população quem assim escolheu, através do exercício do direito de se manifestar e opinar. A decisão, seja com aprovação popular ou da maioria dos cidadãos, é de responsabilidade do agente público competente para realizar determinada tarefa.  O princípio da proporcionalidade também é fundamental na análise do risco, na medida em que é estruturante da decisão. O estudioso Délton Winter de Carvalho destaca a importância de tal princípio, tanto para medir a intensidade dos riscos quanto para aplicação das medidas preventivas adequadas em relação aos riscos ambientais objeto de gestão. Para este autor, o princípio: “tem uma função sistêmica de formar um “equilíbrio de interesses”, mediante a análise de necessidade, adequação e proibição do excesso nas medidas adotadas. Esta ponderação acerca dos interesses em jogo deve observar, contudo, um nível de proteção elevado (padrão mínimo existencial ecológico), que a Constituição brasileira assegura sem deixar dúvidas em expressões tais como “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, “sadia qualidade de vida”, “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais”, “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”, etc”[23].  Para que o gestor tome a melhor decisão, terá que fazer aflorar seu juízo de ponderação ante os interesses trazidos à baila sobre problema ambiental exposto, devendo escolher qual solução melhor se amolda ao interesse público a ser defendido.  Embora este postulado não esteja explicitamente previsto na Lei Maior brasileira, atualmente ocupa espaço singular no ordenamento jurídico do país, sendo largamente aplicado nas esferas judiciárias e administrativas de governo.  Destaca-se, por oportuno, que as questões ambientais são muito difíceis de se resolver ante a margem de incomprovabilidade que rodeia a decisão. Assim, a administração pública deve se apoiar em todo o conhecimento técnico disponível para tomar a melhor decisão, destacando-se, no entanto, que o conhecimento técnico não substitui o juízo de ponderação do gestor[24].  Há que se destacar, da mesma forma, o princípio da fundamentação, que também possui explícita ligação com o princípio da imparcialidade, mas no que se refere ao seu aspecto formal. Isto pois é obrigação do administrador público motivar todos os atos que edita, sejam gerais, sejam de efeitos concretos.  Na Carta Magna brasileira está explícito no art. 93, IX, que trata especialmente da esfera judicial. No entanto, em toda a redação da Carta Política existe o imperativo de motivação das decisões na esfera pública, como corolário dos demais princípios assegurados pela República Federativa do Brasil.  Ora, para que se tome decisão em um determinado sentido, faz-se necessário que o gestor público demonstre a compatibilidade lógica de sua decisão com os fatos ocorridos, ou à gama de possibilidades expostas pois, lembre-se mais uma vez, lidar com questões ambientais na esfera pública é gerir riscos e perigos num quadro de incertezas. Por isso é que se sustenta que na seara ambiental a fundamentação na tomada de decisão é característica ainda mais relevante.  Certo é que uma decisão sem a fundamentação adequada padece de vício e pode ser anulada tanto pela própria Administração Pública, em sede de autotutela, quanto pelo Poder Judiciário. Assim, a fundamentação é parte integrante da decisão, sem a qual a mesma perecerá. Este princípio é pressuposto do próprio Princípio Democrático e dos princípios da transparência, da revisibilidade, da igualdade de tratamento perante a lei e da imparcialidade administrativa[25]. Há que se mencionar, ainda, dois princípios primordiais na gestão dos riscos ambientais: os princípios da adaptabilidade e da supervisão. O primeiro, também chamado de princípio da provisoriedade das decisões, consiste na introdução de mecanismos de moldabilidade que seriam exigidos ante as circunstâncias de incertezas que rodeiam a decisão na esfera ambiental.  Para Winter de Carvalho: “Numa dimensão temporal, a decisão tomada no presente apenas poderá representar o futuro por meio do modo da probabilidade e da improbabilidade, havendo assim uma previsão provisória, cujo valor não esta na segurança que esta decisão outorga, mas na rapidez e especificidade da adaptação a uma realidade (que pode ser distinta daquela esperada ou desejada previamente)”[26].  É sabido que a ciência não remove da esfera de atuação do gestor público as incertezas. Mas o conhecimento especializado deve ser empregado, e este conhecimento deve ser analisado de forma aberta, transparente, pluralista. O princípio da supervisão, da mesma forma, trata da gestão dos riscos ambientais e liga-se com a ideia de que a decisão do gestor público é sempre acerca de um futuro mais ou menos prolongado, e com contornos incertos, o que exige que as autoridades continuem a acompanhar os fatos ligados à esta decisão constantemente[27].  Suscite-se, igualmente, o princípio da precaução, pois este não exige que o gestor tenha certeza de que suas decisões são definitivas e imutáveis. Ao contrário, nem sempre o gestor possuirá certeza acerca da decisão que está tomando, mas deverá realizá-la sempre tendo em mãos todo o conhecimento científico e a participação ampla da sociedade. Este princípio é apontado por Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala como estruturantes do Estado de Direito Ambiental, e, com base nele, “sempre que houver perigo da ocorrência de um dano grave ou irreversível, a ausência de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para se adiar a adoção de medidas eficazes, a fim de impedir a degradação ambiental[28]”.  Enfim, muitos são os princípios que devem permear a atuação do gestor público na análise dos riscos e tomada de decisão em sede ambiental. Estes se encontram nas leis e doutrinas ambientais, administrativas, de processo civil, processo penal e na própria Carta Fundamental. O que convém ressaltar, no entanto, é que todo o arcabouço de princípios inserido no ordenamento jurídico pátrio deverá tecer a rede em que se deverão se acomodar as escolhas dos dirigentes públicos, especialmente no contexto ambiental. II – Da integração dos princípios e a consolidação do estado democrático de direito Conforme acima explicitado, o rol de princípios trazidos à lume no presente estudo formam um conjunto que está a disposição do gestor público para a adequada tomada de decisão no tocante às questões ambientais e por ele deve ser utilizado. Pelo exposto acima, percebe-se que nenhum princípio mencionado pode ser considerado sozinho, ao contrário, encontram-se sempre entrelaçados, não se podendo entender ou utilizar um deles sem que se reporte a outro ou muitos outros. Assim, estes irão formar um todo em que as partes devem conviver harmoniosamente. § 1º – A integração dos princípios para a conducão adequada do processo administrativo de cunho ambiental – demais princípios de relevância na tomada de decisão  Não há como um só princípio de direito resolver ou amparar uma tomada de decisão do administrador público, mormente quando este lida com questões tão delicadas como as que se encontram nos problemas ambientais. Portanto, o que existe não é a sobreposição ou a hierarquia de princípios, mas a integração dos princípios para que, de forma conjunta, possam oferecer ao gestor público um rol eficiente de ferramentas que, em conjunto, levarão o administrador à decisão mais adequada. Deste modo, percebe-se que os princípios já mencionados devem estar entrelaçados entre si e necessitarão de outros componentes deste ordenamento jurídico, que deverão ser utilizados conforme o caso concreto.  Como princípio de suma relevância para tanto destaque-se o princípio da similaridade ou da equivalência substancial, em que propõe, conforme esclarece Patryck de Araújo Ayala, “relações mais flexíveis entre o conhecimento científico e a decisão política e, portanto, abordagens de regulação menos sujeitas à admissão de dogmas e mais dependentes da demonstração de premissas com a finalidade de construção dos modelos de avaliação de riscos e dos processos de formação dessas decisões[29]”.  Outro princípio de especial relevância é o princípio do poluidor-pagador, chamado igualmente de princípio do preservador-beneficiário[30], que possui procedência econômica e surgiu como slogan político na década de 60[31], mas, de acordo com a doutrinadora portuguesa Maria A. de Sousa Aragão, somente foi internacionalmente reconhecido em 1972, numa recomendação da ODCE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, sobre política do Meio Ambiente na Europa, que definia o princípio proferindo que “o poluidor deve suportar os gastos com o cumprimento de medidas (de controle de poluição) elaboradas pelas autoridades públicas a fim de assegurar que o Meio Ambiente permanecerá em um estado aceitável[32]”.  Este princípio parte do pressuposto de que os recursos ambientais são parcos e que sua utilização na produção e consumo resultam na sua paulatina degradação e até mesmo extinção. Por isso, incumbe ao poluidor o dever de arcar com o dano que originou, além de pagar, igualmente, as expensas da prevenção de danos ambientais. Veja-se que este se diferencia do princípio da responsabilização, a ser cotejado mais à frente.  Não se pode deixar de mencionar, igualmente, o princípio da proibição de retrocesso. Este aponta para uma proibição de reversão no desenvolvimento dos direitos fundamentais, seria a proibição de reversibilidade dos níveis de proteção de várias realidades existenciais proporcionados a uma sociedade por iniciativa do Estado[33].  Ressalte-se, igualmente, o princípio de solidariedade ou de responsabilidade entre gerações, consubstanciando-se o dever de zelar pela restauração de estados ecológicos é função pública, dever afeto não apenas a esta geração, mas, especialmente, às gerações vindouras, que possuem direito de ter acesso aos recursos ambientais[34]. De grande valia, da mesma forma, são os princípios da cooperação e o da responsabilização, ambos estruturantes do Estado de Direito Ambiental. O primeiro é umbilicalmente ligado ao princípio da participação, e deve ser entendida como uma política solidária entre os Estados na premente necessidade de proteção do bem ambiental, construída na assistência e auxilio entre os países, bem como na obediência ao dever de informação entre os Estados. O segundo alude à efetiva punição, seja civil, penal ou administrativa, daqueles que agridam ou lesem o meio ambiente, inclusive e principalmente o próprio Estado[35].  A informação por si só consubstancia-se num princípio autônomo, e o dever de fornecê-la cabe ao Estado e ao cidadão, não apenas possibilitando-se o acesso à ela, mas, igualmente, fornecer dados específicos que afetem uma minoria das pessoas. Com ela, os cidadãos poderão efetivamente exercer a devida fiscalização dos atos da Administração Pública, bem como participar ativamente das decisões. Já ao cidadão cabe trazer todas as informações cabíveis, na medida em que é seu dever proteger a natureza[36].  Portanto, todos estes princípios mencionados nascem integrados entre si, formando um todo harmonioso em que a aplicação de um princípio não poderá ocorrer sem que o gestor se remeta a outro, a fim de bem estruturar sua decisão, para a concretização dos objetivos do Estado. § 2º – A sociedade de risco e a relevância dos princípios nesta sociedade Grande desafio colocado frente ao administrador público é a promoção de bem-estar de sua população em uma sociedade de risco. Esta sociedade surgiu após a sociedade industrial, baseada na distribuição de riqueza, na diferenciação em classes sociais. Insere-se no contexto da sociedade pós-industrial, cujos riscos são marcados pela sua globalidade, invisibilidade (científica e sensorial) e transtemporalidade[37]. Conforme expõe o autor Delton Winter de Carvalho: “A Sociedade de Risco ou Pós-Industrial traz consigo, além do desenvolvimento econômico e social inerente aos avanços tecnológicos, a globalização do risco. Esta globalidade e a transtemporalidade (efeitos intergeracionais), cada vez mais intensos nos riscos produzidos pela Sociedade Pós-Industrial, levam, necessariamente, a uma intensificação da função gerenciadora do Direito frente aos riscos ambientais, mediante a constante análise de sua tolerabilidade. Para tanto, a análise jurídica passa não mais a se voltar apenas para os efeitos ambientais já concretizados (passado), mas, sobretudo, lança seu foco ao horizonte futuro. Ainda, há também um aumento na complexidade causal, uma vez que diversos fenômenos, isoladamente inofensivos, quando combinados (num determinado contexto por um determinado período) apresentam repercussões de grande magnitude ambiental”[38]. Destaque-se que risco difere-se de perigo. Estes se diferem conforme o grau de previsibilidade: o risco em sentido estrito seria sinônimo de impresivibilidade, quando o perigo estaria no conceito de risco em sentido amplo e seria suscetível de previsão e que pressupõe uma demonstrabilidade do nexo causal entre fato e lesão. O risco seria uma possibilidade, enquanto o perigo seria uma probabilidade[39]. Na lição da professora Carla Amado Gomes, o risco “sempre foi associado ao desconhecido” e esse desconhecido está em quase todos os lugares, passando de excepcional para regra geral, em especial no que concerne ao meio ambiente[40]. Em direito público, o risco seria “um fator externo propulsor de acções e reacções da parte dos poderes públicos, que têm a seu cargo a salvaguarda de valores fundamentais da comunidade, tais como a saúde e a segurança públicas[41]”. Assevera, ainda, a ilustre jurista lusitana: “No Direito Público, máxime no Direito Administrativo, o risco irrompe do exterior, modificando a composição da relação jurídica administrativa, tradicionalmente caracterizada pela certeza quanto aos pressupostos e pela estabilidade dos efeitos. A incerteza associada ao risco confronta as autoridades públicas com uma necessidade de ponderação que sopesa o grau de (im)presivibilidade do ato lesivo, o grau de lesividade e o valor dos bens jurídicos afectados pela decisão, constituindo um elemento de perturbação da tomada de decisão pública”[42].  Ou seja, a sociedade de risco tal qual se apresenta traz às autoridades públicas a necessidade de ponderação com relação aos riscos, avaliando-se, com base neste juízo de ponderação a decisão mais adequada a ser tomada. A estudiosa aponta que a irreversibilidade deve ser analisada em um horizonte transgeracional, posto que para que o dano seja irreversível necessita da ação não apenas de uma, mas de várias gerações[43]. Neste sentido, os princípios, normas de natureza mais flexível que as regras, são dotados de uma eficiência incomum quando existe um estado de incertezas, como as que se enfrentam atualmente na seara ambiental. Este e outros aspectos revelam a importância dos princípios na gestão dos riscos ambientais, para fim de se concretizar os ditames inseridos na Lei Maior em busca de um efetivo Estado Democrático de Direito. A – O estado de direito ambiental – implicações principiológicas para a gestão dos danos ambientais futuros numa sociedade de risco  O Estado de Direito Ambiental consiste em um modelo organizatório em que, segundo Patryck de Araújo Ayala, se: “sugere tão somente consequências diferenciadas no plano de uma realidade, que tende a admitir que um projeto de sociedade e de vida para o futuro, e que adote como referência uma vida boa, digna e decente, não prescinde da consideração de variável ambiental, supondo esta em uma dimensão mais alargada”[44].  Como ressalta o estudioso, trata-se não apenas de se vislumbrar o meio ambiente em sua função meramente utilitária, mas considerar valores que se integram à ideia de proteção, traçadas por um conceito de abertura moral da comunidade política, que valorizaria a dignidade da pessoa humana e proteção da vida. Este Estado não seria mais amigo do meio ambiente do que de outros valores relevantes para a sociedade, mas seria: “um Estado ecologicamente sensível e capaz de assegurar a integração de uma ordem de valores complexa, que requer a comunicação entre a diversidade de projetos existenciais situados num contexto de um pluralismo moral e a afirmação de instrumentos compatíveis com a governança de expectativas dessa comunidade política moralmente plural, que convive diariamente sob a ameaça e a exposição a riscos existenciais emergentes de uma sociedade de riscos globais”[45]. O Estado de Direito Ambiental é, portanto, uma edificação abstrata que se precipita no mundo real tão somente como um devir. É paradigma para que se compreenda melhor as novas exigências da sociedade moderna, mormente ante a crise ambiental hoje vivenciada[46]. É conceito fictício com pressupostos de ordem política, social e jurídica, sendo parâmetro de Estado que destaca a crise ecológica atual, trazendo a necessidade de adoção de ferramentas para que haja um controle ambiental que alcance a dignidade humana, o equilíbrio dos ecossistemas e a gestão dos riscos[47]. De acordo com o pensamento de Delton Winter de Carvalho, ante a incerteza em determinar o futuro, fundamental é, pois, a importância de formação de critérios jurídicos para a configuração e a declaração da ilicitude dos riscos ambientais intoleráveis. Mesmo que o futuro seja incerto, deve-se dispor de um fundamento decisório seguro. Ainda conforme o autor: “Assim, tem-se a necessidade de estruturação de uma principiologia instrumentalizadora do gerenciamento jurídico dos riscos ambientais, a fim de desencadear esta racionalização das incertezas. Como se sabe, os princípios apresentam uma relevância singular na ciência jurídica, em razão de sua maior flexibilidade interpretativa; destes conterem uma dimensão de peso ou importância para ponderação dos interesses envolvidos ou em casos de conflitos entre vários princípios; destes fornecerem uma sistematicidade e organicidade a determinados ramos jurídicos; destas programações consistirem em idéias mais genéricas e abstratas, capazes, portanto, de orientar determinadas áreas ou matérias jurídicas”[48].  As situações de incertezas não eximem o gestor público de tomar decisões, mas tais decisões necessitam ser adequadas a esta realidade trazida no bojo da sociedade de risco, conformando a situação fáticas com soluções que mais de aproximem de realizar, de fato, o bem-estar social e a proteção dos valores protegidos pela sociedade. Como elucida a autora Carla Amado Gomes, em um panorama de risco generalizado como é o da sociedade atual, as autoridades públicas não podem se utilizar deste argumento para adiar uma decisão, mas deve, com sua atuação, tentar minimizar os riscos[49]. Apesar de não haver na lei e na jurisprudência um consenso acerca dos princípios a serem aplicados na gestão dos riscos ambientais, existe na doutrina pontos comuns que formam um sistema de princípios jurídicos orientadores do controle de tais riscos, conjunto este que já foi acima explicitado.  Certo é que hoje se vivencia o Estado em rede, que não contempla autonomia de padrões, os objetivos são atingidos a partir das diferenças, sendo estas o conflito o ponto de partida para as decisões[50]. Com isto ganha ênfase o princípio da participação, que traz justamente o conflito de opiniões à mão do administrador público, pra que, a partir dela, tome as decisões mais adequadas. De acordo com o pensador Gustavo Justino de Oliveira: “Com a ascensão dos fenômenos com o Estado em rede e Governança Pública, emerge uma nova forma de administrar, cujas referências são o diálogo, a negociação, o acordo, a coordenação, a descentralização, a cooperação e a colaboração. Assim, o processo de determinação do interesse público passa a ser desenvolvido a partir de uma perspectiva consensual e dialógica, a qual contrasta com a dominante perspectiva imperativa e monológica, avessa à utilização de mecanismos comunicacionais internos e externos à organização administrativa”[51].  Para que se desenvolva a forma de administrar consensual e dialógica trazida pelo pensador acima aludido, indispensável a aplicação dos princípios de direitos mencionados em todo este texto, aplicação esta que deve ocorrer analisando-se os princípios como um todo harmonioso, capaz de fornecer os subsídios adequados às escolhas públicas. B – Os princípios do processo administrativo ambiental como consolidadores do estado democrático de direito e do estado de direito ambiental  Tendo-se em vista a função precípua do Estado Democrático de Direito, que visa a realização da justiça social pela garantia da vigência e eficácia dos direitos fundamentais, bem como a superação de desigualdades, não há como se tratar o meio ambiente dissociado destas ideias[52]. Constatada a relevância do processo administrativo na tomada de decisão, há que destacar que este apenas se desenvolve em sua plenitude forem obedecidos os princípios jurídicos acima mencionados e tantos outros que compõe o arcabouço jurídico pátrio e até mesmo internacional. Isto pois os princípios devem ser, sobretudo, utilizados como concretizadores dos direitos fundamentais a serem respeitados pelo Estado Democrático de Direito, entre eles o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantia esta estampada na Carta Magna de 1988. Assim, para que se possa vislumbrar o Estado de Direito Ambiental no Brasil, faz-se imprescindível visualizar, igualmente, o rol de princípios acima alistado. Estes são o alicerce deste Estado de justiça ambiental, possibilitando uma política ambiental condizente com os problemas atuais[53].  O Estado atual se preocupa com uma série de questões, sejam sociais, econômicas, culturais e ecológicas. A obediência dos componentes deste Estado a um modelo predeterminado de desenvolvimento que não leva em consideração e nem assegura a existência de todas as formas de vida, é comportamento desleal ao que propõe a Carta Magna, inaceitável, portanto, ao que estabelece o Estado Democrático de Direito e, por consequência, ao Estado de Direito Ambiental[54].  Tal conduta pode plenamente ser evitada pela aplicação os princípios de direitos em todas as fases da tomada de decisão, conferindo a este ato do gestor público a eficiência, a transparência, a impessoalidade, a moralidade e a legalidade visadas. Conclusão  Vive-se hoje em uma sociedade de risco, em que os problemas ambientais são de nível global. Assim, não há como o gestor público decidir em sede de meio ambiente sem pensar nas implicações nacionais e internacionais de sua decisão. A própria Constituição Federal encontra seu fundamento em um dever geral de solidariedade com a humanidade, assim como um compromisso com as presentes e futuras gerações[55].  A comunidade moral axiologicamente complexa existente na atualidade inseriu o meio ambiente no conjunto de valores a ser protegido pelo atual Estado de Direito. E esta comunidade percebeu a necessidade de se proteger o meio ambiente como parte de um projeto político de sociedade que enfatiza o bem-estar coletivo.  As escolhas do gestor são nacionais, porém os compromissos, globais. Assim, atualmente faz-se necessária uma governança global dos riscos, pois a boa gestão destes traz consequências transfronteiriças e intergeracionais. Primando-se pelo macro consegue-se salvaguardar o micro. O direito tem especial relevância neste contexto e deve-se focar não mais no passado, mas no futuro, analisando probabilidades e possibilidades. Isto apenas ocorrerá com a transformação da cultura constitucional, que define o projeto de sociedade que as formas políticas e jurídicas devem viabilizar[56]. Destaca-se, assim, que toda a gama de princípios do direito que auxiliam na concretização do Estado Democrático de Direito são relevantes à construção do processo administrativo ambiental. De acordo com o que expõe Patryck de Araújo Ayala: “Nem todas as escolhas são toleráveis e admissíveis pelo projeto de sociedade (que neste caso, também é um projeto de futuro) definido pela ordem constitucional brasileira. Cumpre às funções estatais obstar excessos na definição das escolhas sobre como é possível e como se desenvolverá a existência da humanidade”[57]. O agente público, ao tomar decisões, não necessita sobrepor o meio ambiente sobre qualquer outro direito ou necessidade humana, sem qualquer ponderação. Deve, ao contrário, exercer seu juízo de ponderação, a fim de proteger os mínimos existenciais e buscar o bem-estar social.  Na proteção do meio ambiente, assim, o padrão de governança vem assumindo contornos globais, tendo em vista que o tema preocupa a toda a comunidade, posto ser a defesa do meio ambiente objetivo comunitário.  Emanam, assim, os princípios de uma visão de centralizar sua construção, aplicação e interpretação nos direitos e necessidades dos seres humanos. Em outras palavras, os princípios possuem na atual sociedade o papel de concretizadores de direitos fundamentais[58].  Ante as dificuldades do gestor em tomar decisões perante esta sociedade de risco, destaca-se a importância dos princípios aqui trazidos à lume, que fornecem racionalidade e critérios jurídicos para o processo de tomada de decisão. “[…] a afirmação e a elaboração de deveres para com as futuras gerações, a consideração destes interesses no contexto do conjunto das decisões políticas fundamentais de uma comunidade e o desenvolvimento de estruturas institucionais moralmente sensíveis, baseadas na concretização de princípios cujo sentido depende da consideração direta de juízos de decisão sujeitos a escala de tempo e a referências morais diferenciadas (desenvolvimento sustentável e a responsabilidade de longa duração), proporcionando que possa se justificar severas restrições e condicionamentos `as escolhas que poderão ser realizadas pelo Estados, para o fim de assegurar que sejam alcançados seus objetivos e concretizadas as tarefas que lhe foram reservadas”[59].
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/a-integracao-dos-principios-do-processo-administrativo-ambiental-para-a-consolidacao-do-estado-democratico-de-direito-numa-sociedade-de-risco/
A Guia de Utilização, que permite a extração mineral antes da concessão da lavra, sua pronta emissão prevista na lei e sua indevida regulamentação administrativa
Este artigo discorre sobre a  Guia de Utilização – GU, título que permite a extração mineral durante a vigência da autorização de pesquisa, antes da outorga da concessão de lavra, que deve ser emitida sem delongas pelo DNPM, quando requerida nos termos do § 2º do art. 22 do Código de Mineração1, vez que o legislador não delega competência ao Administrador para regulamentar a sua emissão.
Direito Administrativo
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito do autorizatário da pesquisa à obtenção da GU. 3. A ilegal e equivocada regulamentação administrativa da emissão de GU. 4. O Memorando Circular 22/2015, à margem da legislação. 5. Conclusões. 6. Referências.    1. Introdução A instituição da Guia de Utilização – GU foi demandada pela longa demora, muitas vezes superior a 10 anos, desde a protocolização do requerimento de autorização de pesquisa no Departamento Nacional da Produção Mineral – DNPM até a outorga da concessão de lavra, retardando o proveito dos recursos minerais presentes na área requerida, na contramão do interesse público, prejudicando a todos, não raro levando o requerente a desistir do seu pretendido empreendimento minerário. Sensível ao problema, o legislador tratou de minimizá-lo, determinando, na Lei 9.314/19962, nova redação para o § 2º do art. 22 do Código de Mineração1, para admitir a extração excepcional de substâncias minerais durante a vigência da autorização de pesquisa, antes da outorga da concessão de lavra, qual seja :: “Art. 22 – […] § 2º- É admitida, em caráter excepcional, a extração de substâncias minerais em área titulada, antes da outorga da concessão de lavra, mediante prévia autorização do DNPM, observada a legislação ambiental pertinente.” Essa extração excepcional de substâncias minerais de que trata a Lei é regulamentada pela Portaria DNPM 144/20073, com alterações determinadas pela Portaria DNPM 201/20154. O caput do art. 2º daquela Portaria atribui ao documento ou título que permite tal extração a denominação de Guia de Utilização – GU. 2. O direito do autorizatário da pesquisa à obtenção da GU O titular da autorização de pesquisa tem o direto de requerer ao DNPM e dele obter a GU referente à área titulada. Afinal, a titularidade de autorização de pesquisa é a condição imposta no § 2º do art. 22 do Código de Mineração1, em sua nova redação, para o requerente de GU fazer jus à sua obtenção, já que o dispositivo faz alusão à “área titulada, antes da outorga da concessão de lavra” e, antes desta concessão, a área é titulada pela autorização de pesquisa.  Essa condição, todavia, não é suficiente para a concessão da GU ao autorizatário da pesquisa, de vez que, para isto, deve ser “observada a legislação ambiental pertinente”, conforme dispõe a Lei. Ademais, a apresentação do plano de lavra – PL, “É condição necessária para o início dos trabalhos de desenvolvimento de uma mina”, conforme estabelecido no item 1.5.3 do Anexo I da Portaria DNPM 237/20015, em redação dada pela Portaria DNPM 266/20086. A despeito do subitem 1.5.3.1 daquela Portaria não incluir o requerimento de GU entre aqueles que demandam a apresentação do PL, entende-se que o DNPM poderá exigi-lo do requerente de GU. Uma vez instruído o requerimento de GU, isto é, sendo o requerente titular da autorização de pesquisa outorgada na respectiva área e estando o requerimento acompanhado de licenciamento ambiental, expedido pelo órgão competente, e de PL, ou já tendo sido apresentados estes documentos em atendimento a exigência formulada pelo DNPM, esta Autarquia deverá emitir decisão sobre o requerimento em até trinta dias, “salvo prorrogação por igual período devidamente motivada”, prazo fixado no art. 49 da Lei 9.784/19997. Contudo, nenhuma outra condição poderá ser imposta para fins de emissão da GU. Afinal, a “prévia autorização do  DNPM” a que se refere o § 2º do art. 22 do Código de Mineração1, na sua nova redação, não caracteriza delegação de competência do legislador ao DNPM para estabelecer situações excepcionais para efeito de emissão de GU. Tal prévia autorização nada mais é do que a indicação do DNPM para a emitir da GU, a fim de formalizá-la, à semelhança das indicações do mesmo DNPM para outorgar a autorização de pesquisa e do Ministro de Minas e Energia, para assinar a concessão de concessão de lavra, respectivamente, nos artigos 15 e 43 do citado Código1. Essas indicações transferem ao Diretor-Geral do DNPM e ao Ministro de Minas e Energia competências para outorgar, respectivamente, os títulos de autorização de pesquisa e de concessão de lavra, mas, não para imporem novos elementos de instrução aos respectivos requerimentos, além daqueles estabelecidos na Lei. Quando o legislador quer que a Administração regulamente determinado preceito da Lei, ele o declararia na própria Lei, como o faz, por exemplo, no inciso VI do art. 16, no § 1º do art. 20, no inciso III, alínea “a” do art. 22, no art. 25, no § 2º do art. 26 e em vários outros dispositivos do Código de Mineração1 e de outras leis minerárias. O administrador não pode agir a seu talante, sponte propria, devendo sempre fazer o que a lei determina, exatamente conforme nela é estabelecido. Enquanto o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, o administrador público somente pode fazer o que a lei manda. Não pode atuar de forma contrária à lei (contra legem), nem além da lei (ultra legem), mas exclusivamente de acordo com a lei (secundum legem). O art. 88 do Código de Mineração submete à fiscalização direta do DNPM todas as atividades concernentes à mineração, ao comércio e à industrialização de matérias-primas minerais, mas, ressalva, “nos limites estabelecidos em Lei”. 3) A Ilegal e equivocada regulamentação administrativa da emissão de GU.   É conferido à Administração o poder regulamentar, que lhe permite editar atos gerais para complementar as leis e possibilitar sua efetiva aplicação. Contudo, tais atos devem ter o caráter de norma complementar à lei; já que esta, a Lei, não pode ser alterada pela Administração sob nenhum pretexto. Se o fizer, o administrador cometerá abuso de poder regulamentar, invadindo a competência do Poder Legislativo. Afinal, o poder regulamentar é de natureza derivada (ou secundária): devendo ser exercido à luz das leis existentes, estas, sim, que são atos de natureza originária (ou primária), emanados diretamente da Constituição. Portanto, o Diretor-Geral do DNPM desafia a Lei ao indicar, situações excepcionais para fins de emissão da GU, no § 1º, complementado no § 2º, do art. 2º da Portaria DNPM 144/20073, em redação dada pela Portaria DNPM 201/20154. Ao fazê-lo, esta autoridade atua além da lei (ultra legem), de vez que o caráter excepcional citado na nova redação do § 2º do art. 22 do Código de Mineração1 diz respeito, tão-somente, à extração de substâncias minerais durante a vigência da autorização de pesquisa, antes da concessão da lavra, já que tal extração não era permitida antes da vigência desta nova redação e, por isto, demanda a excepcional emissão de GU.  É oportuno, pois, transcrever os §§ 1º e 2º do art. 2º da Portaria DNPM 144/20073, em sua nova redação, para melhor analisa-los : “Art. 2º – […] §1º – Para efeito de emissão da GU serão consideradas como excepcionais as seguintes situações: I – aferição da viabilidade técnico-econômica da lavra de substâncias minerais no mercado nacional e/ou internacional; II – a extração de substâncias minerais para análise e ensaios industriais antes da outorga da concessão de lavra; e III – a comercialização de substâncias minerais, a critério do DNPM, de acordo com as políticas públicas, antes da outorga de concessão de lavra. § 2º O Diretor-Geral do DNPM indicará quais as políticas públicas a serem observadas quando da análise do pedido de GU para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo.” Ademais de ser ilegal, conforme citado, essa indicação de situações excepcionais para efeito de emissão da GU é de todo inadequada. De fato, as situações referidas nos incisos I e II do § 1º já são previstas, como trabalhos de pesquisa, nada excepcionais, no § 1º do art. 14 do Código de Mineração1, na referência à “ensaios de beneficiamento dos minérios ou das substâncias minerais úteis, para obtenção de concentrados de acordo com as especificações do mercado ou aproveitamento industrial”. Vale lembrar que a autorização de pesquisa estará e permanecerá em vigência quando da outorga e da vigência da GU. Quanto ao inciso III do § 1º do art. 2º da Portaria DNPM 144/20073, este se refere à comercialização de substâncias minerais, “a critério do DNPM, de acordo com as políticas públicas”. A comercialização destas substâncias ocorrerá após a sua extração, etapa estranhamente omitida no dispositivo. Contudo, obviamente, tal extração deverá ser realizada, e será necessariamente coerente com critério do DNPM e estará de acordo com as políticas públicas. Afinal, a GU é requerida em área titulada por autorização de pesquisa, e o objetivo da pesquisa autorizada é bloquear reservas minerais na área titulada, a fim de permitir ao titular requerer e obter a concessão da lavra destas reservas, ou a concessão de extração mineral na área titulada. Obviamente, pois, ao outorgar a autorização de pesquisa, o DNPM o faz a seu critério e, ao fazê-lo, declara tacitamente que o ato está “de acordo com as políticas públicas”, pois, não poderia praticá-lo em contrariedade a estas políticas. Por conseguinte, a extração de substâncias minerais cuja presença na área titulada for eventualmente comprovada, estará coerente com tais políticas, de vez que a comprovação da presença em níveis econômicos destas substâncias é, exatamente, o objetivo da pesquisa autorizada “de acordo com as políticas públicas”. Considerando que a concessão de GU nada mais é do que a antecipação da concessão da lavra, conclui-se que, sendo a concessão da lavra adequada às políticas públicas, a concessão da GU também o será.    Vale observar ainda que as substâncias minerais extraídas legalmente pertencem àqueles que dispõem de concessão do Governo para extrai-las, aos quais cabe decidir sobre a sua comercialização, desde que também realizada legalmente. Neste caso, o DNPM não poderá interferir nesta comercialização, o que o colocaria fora dos limites da lei, ou fora dos seus limites de fiscalização, aos quais se refere o art. 88 do Código de Mineração1.   Realmente, após legalmente extraídas do solo e/ou do subsolo onde jaziam in natura, as substâncias minerais deixam de ser propriedade da União e passam a ser propriedade do concessionário, conforme declarado no caput do art.176 da Constituição Federal8, a saber :  “Art. 176 – As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”. A menção ao concessionário é extensiva a todos os titulares de direitos minerários cujos respectivos títulos lhes permitam lavrar substâncias minerais, sendo todos concessionários de direito real de uso da propriedade minerária para fins de lavra ou de extração mineral, já que as relações jurídicas deste instituto ajustam-se àquelas inerentes aos títulos de direitos minerários. O DNPM reconhece esta situação, tanto que realiza averbações de cessão e transferência de títulos de licenciamento e de permissão de lavra garimpeira, previstas na Portaria DNPM 199/20069. Isto equivale dizer que a referência à cessão ou transferência das concessões, feita no art. 176, § 3º, da Constituição Federal5, atinge todos os títulos que permitem a lavra, sendo todos, repita-se,  concessões de direito real de uso da propriedade minerária para fins de extração mineral. Portanto, a referência atinge também o título de GU. 4. O Memorando Circular 22/2015, à margem da legislação. O Diretor-Geral do DNPM expediu, em 06/10/2015, o Memorando Circular nº 22/2015-DIRE/DNPM/SEDE, destinado à circulação interna, não tendo publicidade no D.O.U., dirigida aos Superintendentes do DNPM., no qual define as políticas públicas a serem observadas para a emissão de guia de utilização – GU.. A despeito de não ser esse um ato geral para complementar a Lei, no exercício do poder regulamentar da Administração, tendo em vista o seu caráter “secreto”, não o expondo à ciência dos administrados, os Superintendentes do DNPM certamente fundamentar-se-ão no mesmo em suas decisões sobre a emissão de GU, tratando-se de recomendação superior, advinda da Diretoria-Geral da Autarquia.. É oportuno, pois, transcrever as situações de políticas públicas, indicadas no citado Memorando, para fins de emissão de GU. São elas : – Áreas em situação de formalização da atividade e fortalecimento das Micro e Pequenas Empresas de acordo com os objetivos estratégicos do Plano Nacional de Mineração – 2030; – Áreas que promovam o desenvolvimento da pequena e média mineração por meio de ações de extensionismo mineral, formalização, cooperativismo e arranjos produtivos locais; – Áreas que visem o aproveitamento de rejeitos em projetos de recuperação ambiental e de subprodutos da mineração, buscando promover a produção sustentável no setor mineral; – Áreas contendo Minerais Estratégicos (abundantes, carentes e portadores de futuro) de acordo com os objetivos estratégicos do Plano Nacional de Mineração – 2030; – Áreas que visem a garantia de oferta de insumos para obras civis de infraestrutura, para o desenvolvimento agrícola e da construção civil; – Áreas com investimentos em setores relevantes para a Balança Comercial Brasileira contendo substâncias necessárias ao desenvolvimento local e regional; – Áreas com projetos que promovam a diversificação da pauta de exportação brasileira e o fortalecimento de médias empresas, visando a conquista do mercado internacional, contribuindo para o superávit ds balança comercial. Como se vê, são vagas ou voláteis várias das situações supra listadas, podendo servir para “motivar” tanto o indeferimento dos requerimentos de GU quanto a sua aprovação. Isto é preocupante para os requerentes de GU, pois, é presumível que estas situações serão mencionadas principalmente com o objetivo de indeferir seus requerimentos, restringindo-os ao máximo, a considerar o aparente esforço do DNPM neste sentido, que extravasa dos termos dos ilegais §§ 1º e 2º do art. 2º da Portaria DNPM 144/20073, em redação dada pela Portaria DNPM 201/20154, e do “secreto” Memorando Circular nº 22/2015. A propósito, um tal esforço é inexplicável, já que o DNPM não logrou agilizar a tramitação dos processos de mineração, valendo lembrar que a demora para a obtenção da concessão de lavra, geralmente muito longa, foi o motivo que levou o legislador a instituir a GU. 5. Conclusões Considerando, repita-se ad nauseam, a ilegalidade que emana dos §§ 1º e 2º do art. 2º da Portaria DNPM 144/20073, em redação dada pela Portaria DNPM 201/20154, e do Memorando Circular nº 22/2015, aqui comprovada, suas disposições não poderão ser utilizadas para motivar a decisão do administrador sobre a emissão de GU requerida pelo administrado.   Desse modo, se a GU for requerida em área objeto de autorização de pesquisa e estiver completa a instrução do respectivo requerimento, a expedição da GU torna-se, para o DNPM, ato de ofício, a ser prontamente praticado. A omissão da realização deste ato ou seu injustificado retardamento, além do prazo fixado no art. 49 da Lei 9.784/19997, caracterizará ato de improbidade administrativa, que atenta contra os princípios da Administração Pública, nos termos do art. 11, inciso II, da Lei 8.429/199210, submetendo o agente público responsável às sanções previstas nesta Lei, além de legitimar o requerente da GU para pedir ao Poder Judiciário que ordene ao DNPM a emissão imediata de decisão sobre o requerimento de GU. .
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A Tipicidade dos efeitos jurídicos dos atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão
O presente artigo consiste em elucidar dúvidas a respeito da tipicidade dos efeitos jurídicos dos atos de concessão de aposentadoria, reforma e pensão, pois a única condição concebível para que esses atos fossem complexos e produzissem efeitos antes dos seus aperfeiçoamentos, com a homologação dos registros pelo Tribunal de Contas, seria se fossem atípicos, uma vez que os atos complexos, essencialmente, só produzem efeitos depois de aperfeiçoados, com a conjugação de todas as vontades que participam de suas formações ou existências.
Direito Administrativo
Introdução O objetivo deste artigo é demonstrar, fundamentado em doutrinas autorizadas, que, independentemente da tipicidade dos efeitos iniciais dos atos concessivos de aposentadoria, reforma ou pensão, estes configuram atos compostos, e não atos complexos. 1 O Tribunal de Contas e os atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão O Tribunal de Contas, no exercício do controle externo, tem a competência constitucional (artigo 71, inciso III) de apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos administrativos de admissão ou investidura de pessoal, aposentadoria, reforma e pensão. Assim, deduz-se do texto constitucional que tais atos já existem ou foram concebidos antes do pronunciamento dessa Corte de Controle, até porque não se valida ou invalida o que não existe.[1] Consequentemente, se já existem, não haverá que se falar da participação do Tribunal de Contas nas suas formações ou existências. A sua apreciação, verificando a legalidade ou validade dos atos administrativos de concessão dos benefícios previdenciários, como aposentadoria, reforma e pensão, praticados pela Administração Pública, tem natureza meramente declaratória, e não constitutiva desses atos. In Verbis: “EMENTA: RECURSO ESPECIAL. ANÁLISE DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. REVISÃO DO ATO DE APOSENTADORIA. DECADÊNCIA. OCORRÊNCIA. 1. Não é possível examinar violação a dispositivos da CF, ainda que para fins de prequestionamento sob pena de usurpar a competência do STF. 2. O STJ já decidiu que a decisão do Tribunal de Contas, no que toca à legalidade do ato de aposentadoria de servidores públicos, tem natureza jurídica meramente declaratória, e não constitutiva do ato referido. Precedente  3. A nova situação jurídica surge com a própria publicação do ato de aposentadoria, do que decorre a sua imediata, e não obstante precária, execução, nos termos em que foi concedida. Consequentemente, a partir deste momento inicia o prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei 9.784/99.  4. Agravo regimental improvido”. (BRASIL, 2010).   Por outro lado, a manifestação inicial da Administração Pública, nas concessões desses benefícios, constituirá um ato perfeito, de eficácia condicionada à aprovação ou ratificação pelo Tribunal de Contas, sendo o pronunciamento desta Corte ato complementar de controle de legalidade, de natureza homologatória ou suspensiva, tendo como função apenas tornar a eficácia precária ou provisória do ato principal em permanente, de modo que o mesmo venha obter execução definitiva, isto é, seja exequível. Em vista do exposto, a manifestação do Tribunal de Contas configurará somente condição de eficácia ou de executoriedade (ou de exequibilidade) do ato principal.[2] Dessa forma, o Tribunal de Contas, no âmbito de suas atribuições constitucionais de controle externo, somente aprovará ou não o ato concessivo de aposentadoria, reforma ou pensão, não o integrando para sua formação ou existência. Ao aprovar, homologando o registro, será mantido o ato, declarando-lhe, em definitivo, a sua legitimidade e executoriedade ou, num sentido mais amplo, a sua validade.[3] 2 O Supremo Tribunal Federal e os atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão O ato administrativo complexo, consoante unanimidade doutrinária, só produzirá efeitos jurídicos após o seu aperfeiçoamento, com a integração das vontades que participam de sua formação ou existência. Entretanto, os atos de concessão de aposentadoria, reforma e pensão, considerados complexos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já produzem os efeitos que lhes são inerentes desde as suas edições e publicações pela Administração Pública, independentemente da manifestação de vontade do Tribunal de Contas. Destarte, não haverá razão para a Corte Suprema classificar tais atos como complexos, pois não se integram as vontades da Administração Pública e do Tribunal de Contas para conceber esses benefícios, tampouco para a produção dos seus efeitos. Nessa linha de raciocínio, o insigne jurista Maffini (2005, p. 147-148) assinala: “A análise da doutrina brasileira sobre a classificação dos atos administrativos quanto à formação há de se iniciar pela compreensão dos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles. Para o renomado autor, ato simples seria "o que resulta da manifestação de vontade de um único órgão, unipessoal ou colegiado". Já o ato administrativo complexo seria "o que se forma pela conjugação de vontade de mais de um órgão administrativo". Assevera Hely Lopes Meirelles, ainda em relação aos atos complexos, que tal categoria possuiria como elemento essencial "o concurso de vontades de órgãos diferentes para a formação de um ato único", razão pela qual "só se aperfeiçoa com a integração da vontade final da Administração, e a partir deste momento é que se torna atacável por via administrativa ou judicial". Por fim, o ato administrativo composto seria aquele que "resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro, para se tornar exeqüível". Conclui, então, o autor que "o ato composto distingue-se do ato complexo porque este só se forma com a conjugação de vontade de órgãos diversos, ao passo que aquele é formado pela vontade única de um órgão, sendo apenas ratificado por outra autoridade. […] Ora, se ato administrativo complexo é aquele para cuja formação ou existência, apresentam-se necessárias várias vontades conjugadas, os atos administrativos dependentes de registro pelos Tribunais de Contas não podem ser considerados atos administrativos complexos. Isso porque todos os elementos de aperfeiçoamento de tais atos administrativos já são implementados quando da prática dos mesmos pela própria Administração Pública. […] Demais disso, ainda a contribuir para o não-enquadramento dos atos sujeitos a registro como atos complexos há de ser considerado um aspecto pertinente à sua produção de efeitos. Em efeito, tais atos sujeitos a registro (investidura, aposentadoria, pensionamento, etc.) embora tenha a sua legalidade (ou validade) apreciada ulteriormente à sua efetivação pelos Tribunais de Contas, já produzem desde sua expedição e publicação todos os efeitos que lhe são imanentes. Isso significa dizer que tais atos administrativos não dependem da apreciação e, ao final, do registro pelos Tribunais de Contas para produzirem a totalidade de seus efeitos, uma vez que os mesmos já são produzidos desde a sua perpetração pela própria Administração Pública”. Portanto, a única hipótese admissível para que esses atos sujeitos a controle pelo Tribunal de Contas fossem complexos e gerassem efeitos antes dos seus aperfeiçoamentos, com a homologação dos registros, seria se fossem atípicos, como observou o ministro César Peluso, do STF, quando da declaração do seu voto no MS nº 25116/DF. In Verbis: “[…] as concessões de reformas, aposentadorias e pensões seriam situações precárias, porquanto provisórias sob o aspecto formal geradas pelo implemento de ato administrativo que, embora, se complexo, seria atípico, não sendo possível negar, dada a especial natureza alimentar, a incorporação dos benefícios ao modus vivendi do pensionista ou aposentado”(BRASIL, 2011).   No entanto, mesmo atípicos, ainda assim, como será discorrido neste artigo, seriam atos administrativos compostos atípicos, e não atos administrativos complexos atípicos. 3 Da formação e efeitos do ato administrativo Este item acarretará uma melhor compreensão da matéria objeto do item 4, com relação à tipicidade dos efeitos jurídicos dos atos administrativos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão e suas naturezas jurídicas. A formação do ato administrativo diz respeito aos elementos que o compõem (perfeição, validade e eficácia). Alguns autores, em especial Hely Lopes Meirelles, adotam, além do plano de eficácia, o plano de exequibilidade para sua formação. Neste caso, o ato eficaz será o estiver apto a produzir os seus efeitos finais, e o ato exequível será o que estiver produzindo efetivamente os seus efeitos finais ou estiver disponível para sua operatividade. Celso Antônio Bandeira de Mello e a maioria dos doutrinadores modernos não fazem essa diferenciação. Para estes, se o ato administrativo for eficaz, já estará produzindo os efeitos que lhe são típicos ou próprios. Essa diferenciação só acontecerá em relação aos atos eficazes e exequíveis. Por conseguinte, os atos ineficazes serão obviamente inexequíveis. Elementos que compõem o ato administrativo:     1) perfeição – significa que o ato completou todas as etapas necessárias para sua existência, ou seja,  concluiu o seu ciclo de formação. Aqui não denota que o ato não possua vícios, apenas que se encontra concluído. A imperfeição configura que o ato ainda não concluiu o seu ciclo de formação. 2) validade – diz respeito à conformidade do ato com o ordenamento jurídico. Quando o ato se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica, em absoluta conformidade com as exigências do sistema normativo. Os inválidos possuem dissonância quanto ao sistema normativo. 3) eficácia – idoneidade que tem o ato administrativo para produzir os seus efeitos específicos. Ato eficaz – quando estiver produzindo os efeitos que lhe são típicos ou inerentes, não dependendo de condição ou evento posteriores (Celso Antônio Bandeira de Mello) ou quando estiver apto a produzir os seus efeitos finais (Hely Lopes Meirelles). 4) exequibilidade – disponibilidade que a Administração Pública tem para dar operatividade ao ato, ou a perspectiva de o mesmo ser colocado de logo em execução. Ato exequível – quando realmente produzir de imediato os seus efeitos finais ou estiver disponível para sua exequibilidade, não dependendo de condição ou evento futuros. Os inexequíveis não possuem esta disponibilidade. O autor abordará as duas correntes doutrinárias referentes à divisão ternária dos planos lógicos do ato jurídico, sendo a primeira dos seguidores de Celso Antônio Bandeira de Mello (perfeição, validade e eficácia); e a segunda dos adeptos de Hely Lopes Meirelles (validade, eficácia e exequibilidade). Atualmente, os doutrinadores modernos preferem se reportar a esses três momentos.  É essencial para o Direito a relação entre a perfeição, validade, eficácia e exequibilidade do ato jurídico, cujas hipóteses poderão ser: a) perfeito, válido e eficaz – quando o ato concluiu o seu ciclo de formação ou existência, encontra-se plenamente ajustado às exigências legais e está disponível para a deflagração dos efeitos que lhe são típicos; b) perfeito, inválido e eficaz – quando o ato concluiu todas as etapas do seu ciclo de formação ou existência, encontra-se em desconformidade com as exigências normativas e está produzindo os efeitos que lhe são inerentes; c) perfeito, válido e ineficaz – quando o ato concluiu o seu ciclo de formação ou existência, está adequado aos requisitos de legitimidade e ainda não se encontra disponível para a eclosão dos seus efeitos típicos, por depender de uma condição suspensiva ou termo inicial, autorização, aprovação ou homologação por uma autoridade controladora; d) perfeito, inválido e ineficaz – quando o ato concluiu todo o ciclo de formação ou existência, encontra-se em desconformidade com a ordem jurídica e os seus efeitos ainda não podem fluir, por se encontrarem na dependência de algum acontecimento previsto como necessário para a produção dos seus efeitos (condição suspensiva ou termo inicial, ou  aprovação ou homologação dependente de outro órgão); e) válido, eficaz e exequível – quando o ato provém de autoridade competente para praticá-lo e contém todos os requisitos necessários à sua eficácia; possui aptidão para a produção imediata dos seus efeitos e a efetiva concretização desses efeitos; f) válido, eficaz e inexequível – quando o ato provém de autoridade competente para praticá-lo e contém todos os requisitos necessários à sua eficácia; está apto a produzir os seus efeitos finais e ainda não é exequível, por lhe faltar a verificação de uma condição suspensiva ou a chegada de um termo, ou ainda a prática de um ato complementar (aprovação, visto, homologação, julgamento do recurso de ofício etc.) necessário ao início de sua execução ou operatividade;  g) inválido, eficaz e inexequível – quando o ato não provém de autoridade competente para praticá-lo e contém todos os requisitos necessários à sua eficácia; tem disposição para produzir os seus efeitos finais e ainda não é exequível ou operante, por lhe faltar a verificação de uma condição suspensiva ou a chegada de um termo,  ou ainda a prática de um ato complementar (aprovação, visto, homologação, julgamento do recurso de ofício etc.) necessário para sua exequibilidade ou operatividade. 4 Da tipicidade dos efeitos jurídicos dos atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão e suas naturezas jurídicas O ato administrativo será eficaz sempre que estiver apto a produzir os seus efeitos típicos ou próprios (específicos a certa classe ou categoria). Alguns atos, além dos efeitos típicos ou próprios (principais), poderão produzir efeitos atípicos ou impróprios (secundários). Os efeitos atípicos dividem-se em preliminares ou prodrômicos e reflexos (estes atingem terceiros estranhos às suas práticas). O nosso trabalho está relacionado ao efeito atípico preliminar ou prodrômico do ato, por compreender apenas as partes envolvidas na sua prática.          Para a doutrina, o efeito atípico preliminar ou prodrômico surgirá quando existir situação de pendência no ato administrativo, ou seja, quando um órgão se manifestar e, alheio a sua manifestação de vontade, haverá a obrigatoriedade de outro também se pronunciar.    Assim sendo, enquanto subsistir pendência, o efeito produzido pelo ato será atípico. Após o pronunciamento complementar (aprovação, homologação, visto etc.) proveniente de outro órgão, o ato passará a produzir os seus efeitos normais ou próprios. Nesse contexto, Bandeira de Mello (2009, p. 383) leciona: “Os efeitos atípicos podem ser de dupla ordem: efeitos preliminares ou prodrômicos e efeitos reflexos. Os preliminares existem enquanto perdura a situação de pendência do ato, isto é, durante o período que intercorre desde a produção do ato até o desencadeamento de seus efeitos típicos. Serve de exemplo, no caso dos atos sujeitos a controle por parte de outro órgão, o dever-poder que assiste a este último de emitir o ato controlador que funciona como condição de eficácia do ato controlado”. Desse modo, enquanto o ato sujeito a controle não for complementado por outro órgão, por meio da autorização, homologação, aprovação, ratificação, visto etc. (condição de eficácia para alguns doutrinadores ou condição de exequibilidade para outros), não estará produzindo efeitos jurídicos típicos ou próprios.  O doutrinador Carvalho Filho (2009, p. 126), dispondo sobre o plano de eficácia, já afirmava: “embora, nos atos compostos, uma das vontades já tenha conteúdo autônomo, indicando logo o objetivo da Administração, a outra vai configurar-se, apesar de meramente instrumental, como verdadeira condição de eficácia”. Nesse mesmo sentido, o mestre Pinheiro Madeira (2008, p. 219) também chancelava: “nos atos compostos há sempre dois órgãos realizando atos diversos. Sempre que o ato administrativo fique com sua eficácia dependente de uma condição, que vai ser atendida por outro órgão, este ato será composto”. Como no ato composto, o ato complementar consubstanciará somente condição de eficácia ou de exequibilidade do ato principal;[4] então, o ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão praticado pela Administração Pública pendente, para sua eficácia ou exequibilidade, de ratificação meramente instrumental pelo Tribunal de Controle, configurará ato administrativo composto atípico. Além do entendimento doutrinário apresentado, classificando o ato de concessão do benefício previdenciário como composto atípico, esse posicionamento também evidenciará a inviabilização desse ato como complexo atípico, uma vez que o ato pendente pressupõe um ato perfeito, isto é, ato que concluiu todas as fases necessárias para sua formação ou existência, embora dependente de condição ou termo futuros para sua exequibilidade ou operatividade (MEIRELES, 2011, p. 183). Se o ato de concessão do benefício fosse complexo, apenas após o pronunciamento do Tribunal de Contas, homologando o registro, aperfeiçoar-se-ia. Com fundamento nessas considerações, mesmo que o ato administrativo de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão sujeito a controle produza efeitos atípicos, por ser ato pendente de complementação provinda da Corte de Contas, ainda assim será enquadrado na categoria de ato administrativo composto, embora atípico. Nesse caso, o efeito jurídico produzido de início não será do conteúdo próprio ou específico do ato principal, mas sim do efeito atípico preliminar ou prodrômico, e o ato de concessão; na divisão ternária dos planos lógicos de Bandeira de Mello (2009, p. 384), será perfeito, válido e ineficaz, porque já concluiu o seu ciclo de formação ou existência; está adequado aos requisitos de legitimidade e ainda não se encontra disponível para a eclosão dos seus efeitos típicos, por depender de uma condição suspensiva ou termo inicial, ou autorização, aprovação ou homologação por uma autoridade controladora. Aqui, o ato de concessão do benefício estará sujeito à condição suspensiva de eficácia, que se implementará se não houver autorização, aprovação ou homologação pelo órgão controlador.[5] Por sua vez, o ato de concessão, na divisão ternária dos planos lógicos de Meirelles (2011, p. 167-181), será válido, eficaz e inexequível, tendo em vista que provém de autoridade competente para praticá-lo e contém todos os requisitos necessários à sua eficácia; está apto a produzir os seus efeitos finais e ainda não é exequível ou operante, por lhe faltar a verificação de uma condição suspensiva ou a chegada de um termo, ou ainda a prática de um ato complementar (aprovação, visto, homologação, julgamento do recurso de ofício etc.) necessário ao início de  sua execução ou operatividade. O ato complementar, conforme Meirelles (2011, p.185), será “o que ratifica ou aprova o ato principal, para dar-lhe exequibilidade. O ato complementar atua como requisito de operatividade do ato principal, embora este se apresente completo em sua formação desde o nascedouro”. Neste ponto, o ato de concessão do benefício estará sujeito à condição suspensiva de exequibilidade, que se implementará se não houver aprovação, homologação ou visto por um outro órgão.[6] Para o autor, o efeito produzido de início não será do efeito atípico preliminar ou prodrômico, mas sim do conteúdo próprio ou específico do ato principal ou ato de concessão do benefício praticado pela Administração Pública,[7] que estará sujeito à condição resolutiva (negativa) de eficácia ou de exequibilidade, que se implementará se houver a denegação do registro pela Corte de  Contas. Por esse ângulo, a negativa do registro pela Corte de Controle ocasionará a resolução do ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, com a interrupção imediata dos seus efeitos iniciais ou provisórios e, por consequência, a sustação do pagamento dos proventos. Em contrapartida, a homologação do registro, por essa Corte, acarretará a eficácia ou execução definitiva desse ato. De toda maneira, se considerarmos a concessão do benefício ato administrativo composto, a produção dos efeitos do ato inicial de concessão será imediata, independentemente de sua tipicidade. No ato administrativo composto, os efeitos imediatos produzidos pelo ato principal se conformam perfeitamente com a produção antecipada de efeitos causada pelo efeito atípico preliminar ou prodrômico. Na visão do autor, após a expedição e publicação, a concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão será um ato perfeito, válido e eficaz,[8] não dependendo de aprovação ou ratificação para produzir os efeitos que lhe são típicos ou próprios, visto que os mesmos já são produzidos, quando de sua formação ou existência a partir da prática do ato principal pela Administração Pública.[9] Não é outra a concepção do conceituado administrativista e procurador de Justiça/RJ aposentado Carvalho Filho (2009, p. 122), quando leciona que, “se o ato completou seu ciclo de formação, podemos considerá-lo eficaz, e isso ainda que dependa de termo ou condição futuros para ser executado. O termo e a condição podem constituir óbices à operatividade do ato, mas nem por isso descaracterizam sua eficácia”. (grifo nosso).    Inegavelmente, a inatividade do servidor público, o percebimento dos proventos, a declaração de vacância do cargo e até o seu provimento por outra pessoa concursada são efeitos típicos do ato inicial de concessão do benefício, após a sua edição e publicação, e não meros efeitos atípicos preliminares ou prodrômicos desse ato que implicam na obrigação de outro órgão se pronunciar. Na verdade, o ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão é um autêntico exemplo de ato administrativo composto,[10] no qual o ato acessório ou complementar de controle apenas ratifica ou aprova o ato de concessão inicial ou principal, tornando-o exequível.  Na concessão desses benefícios, o primeiro ato praticado pela Administração Pública será o principal, sendo o segundo, a homologação do registro pela Corte de Contas, realizado a posteriori, mera manifestação instrumental de regularidade do ato principal, não se constituindo em elemento essencial para a perfeição deste. Conclusão O ato administrativo composto é formado pela vontade de um órgão que pratica o ato principal. É uma vontade única condicionada à ratificação ou aprovação, cuja eficácia prevalecerá precariamente, mas dependerá de um ato acessório de verificação para que esteja apta a produzir os seus efeitos finais (condição de eficácia ou de exequibilidade). No entanto, o ato acessório em nada altera o conteúdo do ato principal, que carrega em si a vontade própria da Administração. No ato administrativo composto todos os elementos de seu aperfeiçoamento já se realizam, quando da sua formação ou existência a partir da prática do ato principal (é unânime, entre os doutrinadores, o entendimento de que a perfeição do ato coincide com sua existência). O ato acessório, por não ter autonomia, ou conteúdo próprio, nada acrescenta, somente ratifica ou não. No ato administrativo composto, os atos que o compõem têm relação de dependência. Já o ato administrativo complexo é aquele para cuja formação ou existência serão necessárias várias manifestações de vontade conjugadas ou integradas de órgãos ou sujeitos distintos da Administração Pública para a produção de um único ato. No ato administrativo complexo são duas ou mais vontades independentes entre si, com identidade de conteúdo e unidade de fins, que se integram ou se unem para sua formação ou existência, não havendo prevalência de vontades. A sua essencialidade ocorrerá com o aperfeiçoamento da última vontade de todas que se integrarão para sua formação e somente a partir deste momento, como um todo, passará a existir na ordem jurídica e estará disponível para a produção dos seus efeitos. No ato administrativo complexo, as vontades que o compõem têm relação de unidade.      Os atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão, tidos como complexos pelo STF, como já exposto, produzem os efeitos que lhes são pertinentes desde as suas práticas pela Administração Pública, independentemente da manifestação de vontade da Corte de Contas. A produção de efeitos desses benefícios possibilita constatar-se que não há integração ou união de vontades para a formação ou existência de um ato único, mas sim dois atos (um principal, o ato de concessão de inatividade praticado pela Administração, e o outro complementar ou secundário, o registro do referido ato pelo Tribunal de Contas), que não se unem ou se convergem em um ato único resultante, por possuírem efeitos, conteúdos e fins autônomos. Demais disso, o Tribunal de Contas, no exercício do controle externo, tem a competência constitucional (artigo 71, inciso III) de apreciar, para fins de registro, a legalidade do ato concessivo do benefício praticado pela Administração Pública, o que imputa essa manifestação como ato de controle a posteriori, e não manifestação volitiva conjugada à manifestação da Administração para a formação de um ato único complexo. Em face dessas ponderações, os atos de concessão de aposentadoria, reforma e pensão consubstanciam atos administrativos compostos, e não atos administrativos complexos, pois se encontram perfeitos e acabados (ou completos) desde o pronunciamento inicial da Administração Pública; as vontades dos órgãos partícipes não possuem a mesma identidade de conteúdo e unidade de fins e o Tribunal de Contas não participa de suas formações ou existências, apenas declara as suas legitimidades, registrando-os para efeito executório. Nessa ordem de pensamento, a doutrina moderna, praticamente de modo uniforme, tem-se manifestado.   Para o autor, editado e publicado o ato de concessão do benefício, seguirá a sua execução, embora precária, por ser condicionada à aprovação pelo Tribunal de Contas, mas com plena produção dos efeitos que lhe são inerentes. Por fim, cumpre consignar que, independentemente da tipicidade dos efeitos jurídicos dos atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão, estes serão compostos, e não complexos.
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O poder de investigação atribuído aos órgãos de controle no combate à corrupção em uma perspectiva comparada entre Brasil e Estados Unidos
Resumo:Este artigo tem o objetivo de apresentar as principais características identificadas pelo autor entre os poderes de investigação dos órgãos de controle nos Estados Unidos e o Brasil, durante a execução de curso de capacitação denominado “Anti-CorruptionProgram for BrazilianGovernmentOfficials”, realizado pela Controladoria-Geral da União – CGU, em parceria com o InstituteofBrazilianIssues da The George Washington University no ano de 2013. Sendo assim, foi realizado um comparativoentre a estrutura norte-americana e brasileiro de combate à corrupção apresentada no curso, bem como as ferramentas e estratégias bem sucedidasutilizadas para dar maior efetividade.[1]
Direito Administrativo
1. Introdução Antes de iniciarmos o assunto propriamente dito, cabe ressaltar algumas características relevantes identificadas na estrutura do Estado norte-americano que estão diretamente relacionadas ao combate à corrupção: 1.1. Poder Judiciário A federação norte-americana surgiu de um entendimento entre entidades políticas já constituídas e independentes, enquanto que no Brasil ocorreu processo inverso. Sendo assim, o federalismo norte-americano desenvolveu-se sem afetar as diferentes estruturas jurídicas estaduais existentes (direitos civil, mercantil e penal) preservando o que lhe era característico, a sua distinta organização jurídica. Diante do exposto, causa estranheza, a adoção de pena de morte ou a responsabilidade penal dos menores em alguns Estados federativos, enquanto que em outros não, ocasionando contrastes impressionantes no ordenamento jurídico daquele País.[2] Em relação ao Poder Judiciário, a Constituição dos Estados Unidos define os casos de jurisdição exclusiva dos Tribunais Federais. Nesta esfera, o Poder Judiciário americano é composto pela Suprema Corte, os Tribunais Regionais de Recursos e os Juízos Federais de 1ª Instância. Por outro lado, cada um dos 50 (cinquenta) Estados possui seu sistema judiciário próprio. Qualquer pessoa (cidadãos e imprensa) tem o direito de acesso aos processos penais. Estes são restringidos, apenas, quando envolverem a segurança nacional ou motivos consistentes, sendo devidamente justificados.  1.2. Poder Legislativo No que tange ao Poder Legislativo, além das comissões formadas para investigarassuntos específicos, tal qual ocorre no Brasil com as Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI, existeo GovernmentAccountability Office (GAO). Agência independente que tem como missão: “apoiar o Congresso, no cumprimento de suas responsabilidades constitucionais, e ajudar a melhorar o desempenho e garantir a prestação de contas do governo federal em benefício do povo americano.”[3] Atualmente, o GAO possui uma equipe de aproximadamente 2.800 pessoas. Com o propósito de obter independência,o seuChefe é escolhido conjuntamente pelo Presidente com aprovação do Congresso, para mandato de 15 anos, podendo ser removido somente por impeachment ou resolução do Congresso por razões específicas. Como estão vinculados diretamente ao Congresso, possuem certa semelhança com o Tribunal de Contas da União, embora apresentem diversas particularidades, tais como maior poder de investigação, assemelhando-se com as prerrogativas dos agentes policiais brasileiros. 1.3. Poder Executivo No âmbito do Poder Executivo, existem diversos órgãos e agentes especializados responsáveis pelo combate à corrupção, quais sejam: Inspetores Gerais –Conhecidos como os cães de guarda da Administração (whatdogs), estão presentes em 73 agências/departamentos e possuem um orçamento anual aproximado de 2.7 bilhões dólares. Instituídos pelo “The Inspector General Act”, em 1978, inicialmente eram apenas 12 escritórios nos principais departamentos. Como forma de lhes conceder independência, são designados pelo Presidente da República e têm o seu nome confirmado pelo Senado. Podem ser removidos pelo Presidente ou pelo chefe da agência, no entanto deve-se previamente comunicar ao congresso com antecedência mínima de trinta dias. Em suma, a missão dos Inspetores Gerais “é promover a economia, eficiência, eficácia e integridade na execução de programas dos departamentos e agências em que atuam.”[4] Departamento de Justiça – Considerado o “Ministério” mais relevante da estrutura do executivo no combate à corrupção, entre os seus membros estão os procuradores federais (advogados da União e defensores públicos), os membros do Ministério Público federal, a receita federal e diversas agências policiais entre elas as mais conhecidas no combate aos crimes estão o FBI (Federal Bureau ofInvestigation), U.S. Marshals, DEA (DrugsEnforcementAdministration) e a INTERPOL. Office andGovernmentEthics – órgão relativamente recente (criado na década de 90) foi criado com objetivo de evitar o conflito de interesses estabelecendo regras e procedimentos a serem seguidos por todos os servidores e particulares no trato com a Administração. SEC (US Securities and Exchange Commission) – é a entidade responsável pela regulação do mercado de ações norte-americano, com atribuições semelhantes às da CVM (Comissão de Valores Imobiliários). Sua missão é “proteger os investidores, manter os mercados justos, ordenados e eficientes facilitando a formação de capital.”[5] 2. O poder de investigação dos órgãos de controle no Brasil[6] Conforme entendimento de autores renomados como Mirabete e Tourinho, o ordenamento jurídico pátrio optou pelo sistema de persecução acusatório, que se caracteriza pelos agentes que investigam (delegados), que promovem a defesa (advogados), que acusam (membro do Ministério Público) e os que julgam (juiz) o crime[7][8]. No entanto, a função investigativa foi confirmada em julgamentos realizados pelo Superior tribunal Federal ao interpretar a função do Ministério Público inserida na Carta Magna. O art. 2º da Resolução nº 20/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP autoriza que o próprio MP realize investigações criminais.[9]Ademais, o Supremo Tribunal Federal– STF, em diversas ações, entende que o Parquet está autorizado pela Carta Magna a promover todas as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição. No entanto, esta atuação não pode ser exercida de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir os direitos fundamentais. “HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. POLICIAL CIVIL. CRIME DE EXTORSÃO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE CONCUSSÃO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL. DENÚNCIA: CRIMES COMUNS, PRATICADOS COM GRAVE AMEAÇA. INAPLICABILIDADE DO ART. 514 DO CPP. ILICITUDE DA PROVA. CONDENAÇÃO EMBASADA EM OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. DECISÃO CONDENATÓRIA FUNDAMENTADA. ORDEM DENEGADA. 1. Legitimidade do órgão ministerial público para promover as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição, inclusive o controle externo da atividade policial (incisos II e VII do art. 129 da CF/88). Tanto que a Constituição da República habilitou o Ministério Público a sair em defesa da Ordem Jurídica. Pelo que é da sua natureza mesma investigar fatos, documentos e pessoas. Noutros termos: não se tolera, sob a Magna Carta de 1988, condicionar ao exclusivo impulso da Polícia a propositura das ações penais públicas incondicionadas; como se o Ministério Público fosse um órgão passivo, inerte, à espera de provocação de terceiros. 2. A Constituição Federal de 1988, ao regrar as competências do Ministério Público, o fez sob a técnica do reforço normativo. Isso porque o controle externo da atividade policial engloba a atuação supridora e complementar do órgão ministerial no campo da investigação criminal. Controle naquilo que a Polícia tem de mais específico: a investigação, que deve ser de qualidade. Nem insuficiente, nem inexistente, seja por comodidade, seja por cumplicidade. Cuida-se de controle técnico ou operacional, e não administrativo-disciplinar. 3. O Poder Judiciário tem por característica central a estática ou o não-agir por impulso próprio (ne procedatiudexexofficio). Age por provocação das partes, do que decorre ser próprio do Direito Positivo este ponto de fragilidade: quem diz o que seja “de Direito” não o diz senão a partir de impulso externo. Não é isso o que se dá com o Ministério Público. Este age de ofício e assim confere ao Direito um elemento de dinamismo compensador daquele primeiro ponto jurisdicional de fragilidade. Daí os antiqüíssimos nomes de “promotor de justiça” para designar o agente que pugna pela realização da justiça, ao lado da “procuradoria de justiça”, órgão congregador de promotores e procuradores de justiça. Promotoria de justiça, promotor de justiça, ambos a pôr em evidência o caráter comissivo ou a atuação de ofício dos órgãos ministeriais públicos. 4. Duas das competências constitucionais do Ministério Público são particularmente expressivas dessa índole ativa que se está a realçar. A primeira reside no inciso II do art. 129 (“II – zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”). É dizer: o Ministério Público está autorizado pela Constituição a promover todas as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição. A segunda competência está no inciso VII do mesmo art. 129 e traduz-se no “controle externo da atividade policial”. Noutros termos: ambas as funções ditas “institucionais” são as que melhor tipificam o Ministério Público enquanto instituição que bem pode tomar a dianteira das coisas, se assim preferir. 5. Nessa contextura, não se acolhe a alegação de nulidade do inquérito por haver o órgão ministerial público protagonizado várias das medidas de investigação. Precedentes da Segunda Turma: HCs 89.837, da relatoria do ministro Celso de Mello; 91.661, da relatoria da ministra Ellen Gracie; 93.930, da relatoria do ministro Gilmar Mendes. 6. Na concreta situação dos autos, o paciente, na condição de policial civil, foi denunciado pelos crimes de formação de quadrilha (art. 288 do CP), extorsão (caput e § 1º do art. 158 do Código Penal) e lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei 9.613/1998). Incide a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o procedimento especial do art. 514 do CPP se restringe às situações em que a denúncia veicula crimes funcionais típicos. O que não é o caso dos autos. Precedentes: HCs 95.969, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; e 73.099, da relatoria do ministro Moreira Alves. Mais: a atuação dos acusados se marcou pela grave ameaça, circunstância que também afasta a necessidade de notificação para a resposta preliminar, dada a inafiançabilidade do delito. 7. Eventual ilicitude da prova colhida na fase policial não teria a força de anular o processo em causa; até porque as provas alegadamente ilícitas não serviram de base para a condenação do paciente. 8. O Tribunal de Segundo Grau bem explicitou as razões de fato e de direito que embasaram a condenação do acionante pelo crime de concussão. Tribunal que, ao revolver todo o conjunto probatório da causa, deu pela desclassificação da conduta inicialmente debitada ao paciente (extorsão) para o delito de concussão (art. 316 do CP). Fazendo-o fundamentadamente. Logo, a decisão condenatória não é de ser tachada de “sentença genérica”. 9. Ordem denegada”. (STF – HC: 97969 RS , Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 01/02/2011, Segunda Turma).Grifo nosso. “HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGADA FALTA DE JUSTA CAUSA PARA PERSECUÇÃO PENAL, AO ARGUMENTO DE ILEGALIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO INVESTIGATÓRIO PROCEDIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E DE NÃO-CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. FALTA DE JUSTA CAUSA NÃO CARACTERIZADA. ORDEM DENEGADA. 1. POSSIBILIDADE DE INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXCEPCIONALIDADE DO CASO. Não há controvérsia na doutrina ou jurisprudência no sentido de que o poder de investigação é inerente ao exercício das funções da polícia judiciária “ Civil e Federal“, nos termos do art. 144, § 1º, IV, e § 4º, da CF. A celeuma sobre a exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária perpassa a dispensabilidade do inquérito policial para ajuizamento da ação penal e o poder de produzir provas conferido às partes. Não se confundem, ademais, eventuais diligências realizadas pelo Ministério Público em procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E esta atividade preparatória, consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não interfere na relação de equilíbrio entre acusação e defesa, na medida em que não está imune ao controle judicial “ simultâneo ou posterior. O próprio Código de Processo Penal, em seu art. 4º, parágrafo único, dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. À guisa de exemplo, são comumente citadas, dentre outras, a atuação das comissões parlamentares de inquérito (CF, art. 58, § 3º), as investigações realizadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras “ COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela CVM, pelo TCU, pelo INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos administrativos no âmbito dos poderes do Estado. Convém advertir que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. O pleno conhecimento dos atos de investigação, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14 desta Corte, exige não apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento de provas e investigações, como também se formalize o ato investigativo. Não é razoável se dar menos formalismo à investigação do Ministério Público do que aquele exigido para as investigações policiais. Menos razoável ainda é que se mitigue o princípio da ampla defesa quando for o caso de investigação conduzida pelo titular da ação penal. Disso tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto de falta de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público. No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: “situações de lesão ao patrimônio público, […] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penal”. No caso concreto, constata-se situação, excepcionalíssima, que justifica a atuação do Ministério Público na coleta das provas que fundamentam a ação penal, tendo em vista a investigação encetada sobre suposta prática de crimes contra a ordem tributária e formação de quadrilha, cometido por 16 (dezesseis) pessoas, sendo 11 (onze) delas fiscais da Receita Estadual, outros 2 (dois) policiais militares, 2 (dois) advogados e 1 (um) empresário. 2. ILEGALIDADE DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL ANTE A FALTA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. NÃO OCORRÊNCIA NA ESPÉCIE. De fato, a partir do precedente firmado no HC 81.611/DF, formou-se, nesta Corte, jurisprudência remansosa no sentido de que o crime de sonegação fiscal (art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990) somente se consuma com o lançamento definitivo. No entanto, o presente caso não versa, propriamente, sobre sonegação de tributos, mas, sim, de crimes supostamente praticados por servidores públicos em detrimento da administração tributária. Anoto que o procedimento investigatório foi instaurado pelo Parquet com o escopo de apurar o envolvimento de servidores públicos da Receita estadual na prática de atos criminosos, ora solicitando ou recebendo vantagem indevida para deixar de lançar tributo, ora alterando ou falsificando nota fiscal, de modo a simular crédito tributário. Daí, plenamente razoável concluir pela razoabilidade da instauração da persecução penal. Insta lembrar que um dos argumentos que motivaram a mudança de orientação na jurisprudência desta Corte foi a possibilidade de o contribuinte extinguir a punibilidade pelo pagamento, situação esta que sequer se aproxima da hipótese dos autos. 3. ORDEM DENEGADA.”(STF – HC: 84965 MG , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 13/12/2011, Segunda Turma). Grifo nosso. Diante do exposto, verifica-se que o poder de investigação é inerente ao exercício das funções da polícia judiciária Civil e Federal, nos termos do art. 144, da CF. Entretanto, ao Ministério Público cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Deve, também, exercer o controle externo da atividade policial e formalizar a acusação criminal perante o Poder Judiciário, nas ações penais públicas.Sendo ainda, pacificado na suprema corte, o seu poder de investigação dentro dos limites do respeito aos direitos fundamentais. Salienta-se que o STF recentemente considerou as provas obtidas pelo Ministério Público como válidas,na ação penal 470,impetrada pelo MPF contra a compra de votos de parlamentares, mais conhecida como o esquema do “mensalão”. Por fim, além da atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI’sdisposta no art. 58, §3º, da Constituição, são permitidas as atividades de controle e fiscalização legalmente atribuídas a outros órgãos públicos que no exercício do desempenho de suas funções deparam-se com elementos indiciários de crime e de sua autoria, tais como a Controladoria-Geral da União – CGU (Lei nº 9.784/99 eDecreto nº 5.480/2005[10]), o Tribunal de Contas da União – TCU(Lei nº 8.843/92[11]), Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (Lei nº9.613/98)[12], Banco Central, Receita Federal (Lei nº 11.457/07)[13], Comissão de Valores Mobiliários – CVM (Lei nº 9.457)[14] e Agências reguladoras. Este é o entendimento do STF, ao informar em um de seus julgados[15], que o próprio Código de Processo Penal dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. No âmbito internacional, o Brasil visando a uma maior integração entre os países e por consequência maior efetividade no combate à corrupção ratificou três Tratados Internacionais relativos ao tema. A Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), a Convenção Interamericana contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC). 3. Comparativo com o modelo norte-americano. Não existe no Brasil um órgão semelhante ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Comparando com a estrutura administrativa do governo brasileiro, ele em um únicoministério (órgão) engloba a Polícia Federal, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a AGU, a Receita Federal, entre outros. Nota-se uma diversa gama de subdivisões com alto grau de especialização no combate à corrupção, tais como divisão antitruste; agência de controle de álcool, tabaco e explosivos; agência de assistência judiciária; Divisão civil; Divisão de direitos humanos; divisão criminal; Polícia de Combate às Drogas (DEA); Bureau de Investigação Federal (FBI); Bureau Federal de Prisões (BOP); INTERPOL; U.S. Attorneys; US Marshals, entre outros. Ressalta-se que procuradores e investigadores situam-se no mesmo departamento de justiça, não havendo uma estrutura separada como o Ministério público no Brasil. Nos EUA, os Investigadores e os promotores trabalham em equipe, desde o início das investigações, de forma a dar maior efetividade às ações impetradas. A investigação e o processo são realizados de forma eficaz dando resposta o mais rápido possível em relação a crimes financeiros complexos, tal como o “colarinho branco”. Consideram que “justiça atrasada é justiça negada”. Cabe destacar a atuação dos inspetores gerais nas agências. Além de exercerem as atividades de auditoria, inspeção e avaliação dos programas e atividades, realizam investigações de denúncias sobre irregularidades, podendo realizar diligências como cumprimento de mandados de busca e apreensão e interceptações.Sendo assim, os investigadores das agências têm atribuições semelhantes aos membros das Polícias, podendo solicitar escutas telefônicas e armar flagrantes em suas investigaçõespodendo realizar inclusive prisões. A confirmação de sua eficiência está representada nos resultados divulgados pelo órgão[16], relativos ao exercício de 2012, quais sejam: 84,8 bilhões de dólares em economias potenciais de recomendações de auditoria, 9,1 bilhões de dólares em cobranças de investigação, 6.525 acusações, 5.924 processos bem sucedidos, 963 Ações Civis de sucesso e 5.637 suspensões e exclusões. Uma questão a ser destacada é a divulgação dos resultados dos benefícios alcançados pelas instituições, prática pouco difundida no Brasil.[17] Fazendo um comparativo com a estrutura existente no Brasil, as agências seriam as CISET’s. Órgãos setoriais que integram o sistema de controle interno do poder executivo federal. Atualmente, estão presentes, apenas no Ministério das Relações Exteriores, no Ministério da Defesa, na Advocacia-Geral da União (AGU) e na Secretaria-Geral da Presidência da República (SG). Sendo a Controladoria-Geral da União (CGU/PR), como órgão central, responsável pelo controle interno em todos os demais órgãos do Poder Executivo Federal. Entre as principais diferenças identificadas estão: o nível de especialização (73 inspetores gerais), a estrutura (orçamento e número de servidores) e os poderes investigativos semelhantes aos dos membros da polícia federal. Outra importante diferença esta presente na nomeação e exoneraçãodos seus chefes. Conforme já apresentado neste artigo, deve-se comunicar ao congresso com antecedência de trinta dias sobre a exoneração apresentando os motivos. Ao contrário do que ocorre no Brasil, onde os órgãos de controle brigam pela exclusividade na investigação criminal[18], nos Estados Unidos existe um pensamento diferente. Entendem que quanto mais órgãos tiverem autonomia para investigar, mais crimes serão solucionados e o combate à corrupção serápor conseguinte mais eficaz. Salienta-se o respeito aos direitos fundamentais, com a possibilidade do contraditório e da ampla defesa, bem como o controle de toda esta atividade pelo Poder Judiciário, durante a análise na obtenção das provas obtidas. 4. Outros meios alternativos utilizados pelos órgãos norte-americanos que auxiliam as investigações e o efetivo combate à corrupção 4.1. Os sopradores de apito “Whistleblower” Nos Estados Unidos existe um programa de recompensas aos delatores, nos casos em que são aplicadas multas, em função da informação disponibilizada. Sendo assim, os órgãos podem premiar informantes que ajudem a desvendar casos de manipulação financeira. Salienta-se que o governo não requer que os denunciantes sejam cidadãos norte-americanos e existe um sistema de proteção ao denunciante eficiente. Salienta-se que esta prática foi instituída desde 1861, durante a guerra civil americana. Os denunciantes são conhecidos como os “sopradores de apito” (Whistleblower) podendo receber de 15 a 25% do valor total recuperado. Salienta-se que a legislação federal americana permite aos particulares a apresentação de ações privadas, alegando fraude contra a Administração Pública. Como exemplo desta atuação dos denunciantes nos Estados Unidos, temos o caso do ex-banqueiro Bradley Birkenfeld que ao sair da prisão recebeu 104 milhões por denunciar um esquema de evasão fiscal. A sua informação resultou em 780 milhões dólar em multas aplicadas contra o banco UBS. [19] 4.2. Responsabilização das empresas Nos Estados Unidos, ao contrário do que sempre ocorreu no Brasil, existe a possibilidade de se responsabilizar penalmente uma Pessoa jurídica em crimes não ambientais.[20] Ademais, estas podem ser proibidas de contratar com o governo americano, se for constatado que cometeram crimes relacionados à corrupção dentro ou fora dos Estados Unidos, tal como o pagamento de suborno. 4.3. Possibilidade do flagrante preparado Ao contrário do que ocorre no Brasil, nos Estados Unidos os órgãos de combate à corrupção podem realizar o flagrante preparado[21]e em processos criminais, após a fase de investigação, o Promotor tem a faculdade de negociar com a parte ré e evitar a ida ao Tribunal do Júri, caso o réu concorde em pagar multa antecipadamente. Esta punição inclusive é muito utilizada, pois as empresas têm medo de não poderem mais contratar com o governo, com quem tem contratos milionários. 4.4. Canais de comunicação Os meios de comunicações existentes nos órgão públicos para a realização de denúncias são muito eficientes e diversificados, existindo computadores nas prisões com acesso seguro aos presos de caixas de e-mails onde podem relatar fatos importantes na solução de crimes e na sua prevenção em troca de benefícios na pena. Mesmo não sendo considerados por alguns promotores como um meio ético, podem realizar pagamentos aos informantes como forma de obterem evidências de crimes relevantes e efetuarem prisões em flagrante. 4.5. Porta giratória “revolvingdoor” Existe nos Estados Unidos uma cultura de que as pessoas entram e saem do serviço público, conhecida como “porta giratória” (revolvingdoor), pois seus servidores não possuem a estabilidade concedida aos servidores no Brasil. Embora possa se apresentar com certa estranheza, a legislação é muito clara sobre as hipóteses nas quais estas atividades representam conflito de interesse e apresentam penas muito severas ao seu descumprimento.[22] 5. Conclusão Enquanto nos Estados Unidos diversos empresários foram condenados à prisão e ao pagamento de multas milionárias, no Brasil a justiça condena poucos crimes de corrupção. O levantamento foi feito em fevereiro deste ano e englobou dados do STJ, dos cinco tribunais regionais federais e dos tribunais das 27 unidades da Federação. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou, no dia 15/04/2013, pesquisa com dados de processos judiciais envolvendo corrupção, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa. Ainda incompleto, o levantamento revela que, em 2012, havia 25.799 processos sobre esses temas em tramitação na Justiça brasileira, mas apenas 205 réus foram condenados definitivamente.[23] Esta pesquisa reflete o sentimento de impunidade existente no Brasil e o reflexo que isto gera em toda sociedade civil. Embora a imprensa divulgue, diariamente, casos de corrupção levantados pelos órgãos de controle, poucos foram os casos nos quais os réus foram efetivamente para a prisão. Cabe ressaltar, a importância de um controle social eficaz, em função da incapacidade dos órgãos de controle possuírem a capilaridade necessária para combater à corrupção por toda sociedade. Dentro desta perspectiva, não se pode esquecer da importância do empoderamento da sociedade civil organizada, de uma imprensa livre, da efetiva aplicação da Lei de Acesso à Informação e do fortalecimento das ouvidorias como canal direto coma população e os próprios funcionários para a realização de denúncias, sugestões, etc. Como forma de atingir estes objetivos, não esquecendo sempre do pleno respeito aos direitos fundamentais,algumas práticas realizadas pelogoverno norte-americano poderiam ser replicadas no Brasil, como forma de dar maior efetividade ao combate à corrupção, tais como a recompensa aos denunciantes, ummaior intercâmbio de informação entre os órgãos, a ampliação do poder investigação dos órgãos de controle, pois neste jogo de vaidades só quem perde é a sociedade brasileira.
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A necessidade do controle jurisdicional nas questões de concurso público formuladas com erros
o presente artigo traz em seu bojo, de forma bem sucinta, a análise sobre a necessidade do Poder Judiciário interpretar e estender seu controle nas questões em que envolva bancas examinadoras de concursos públicos, mais precisamente, na discursão sobre o controle jurisdicional das questões formuladas com erros, não estando, observado as regras constitucionais pela Administração Pública.
Direito Administrativo
1 – Introdução Recentemente, no mês de maio, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº. 632853, com Repercussão Geral, decidiu que o Poder Judiciário não pode interferir em critérios fixados por banca examinadora de concursos. Na orientação técnica dos magistrados, segundo o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do acórdão, a jurisprudência do Supremo é antiga no sentido de que o Poder Judiciário não pode realizar o controle jurisdicional sobre o mérito de questões de concurso público. Na decisão, houve destaque, também, à reserva da administração, o que impede ao Judiciário a substituição das bancas examinadoras de concursos, por ser um espaço que não é suscetível de controle externo. Neste tema, o enunciado da repercussão geral, a ser adotado obrigatoriamente em casos similares, em todas as instâncias, é o seguinte: “Os critérios adotados por banca examinadora de concurso público não podem ser revistos pelo Judiciário”. Cabe razão aos ministros daquela Casa judiciária, realmente a jurisprudência formada pelos tribunais brasileiros como um todo, sempre foi na direção de se afastar da responsabilidade em discutir questões óbvias… Pode-se, inicialmente, sugerir que os nossos juízes deram a gerentes e responsáveis por bancas examinadoras o título de semideuses, pois não cometem erros, ou se cometem não cabe ao judiciário julgá-los. Veja porém que, apenas inicialmente se pode ter tal ideia… No entendimento dos ministros, a história jurisprudencial brasileira, permite, aos juízes, apenas que se verifique se o conteúdo das questões corresponde ao previsto no edital, sem entrar em qualquer questão que vislumbre questão de mérito, a não ser nos casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade. 2 – As provas objetivas: Nas provas chamadas objetivas, confeccionadas geralmente pelo método de múltipla escolha, pede-se que o candidato assinale a resposta certa ou a resposta errada. O certo ou o errado  será aferido pelo confronto da resposta com o estado atual das ciências, da técnica ou das artes, conforme a área de conhecimento em que tais provas se situam. O gabarito oficial deverá espelhar com fidelidade essa situação, indicando como alternativa certa a que assim for considerada pela atualidade dos estudos técnicos e científicos sobre o tema em análise. Se a resposta em conformidade com o gabarito oficial é a considerada certa, a que a ele não se ajustar é tida como errada. É tudo ou nada; não há meio termo, pois não há qualquer espaço para avaliação das respostas por critérios subjetivos, não sendo também necessário comparar as provas entre si. A comparação é apenas com o gabarito. Com tais considerações surge um questionamento óbvio: estando a resposta de uma questão, em avaliação de um determinado concurso, reconhecida pela banca examinadora como certa, apontando para direção completamente diversa ao que determina a ciência técnica específica como correto, não estaria tal entendimento administrativo eivado de ilegalidade? No entendimento inicial provavelmente: não! Essa não é uma ilegalidade passível de correção pelo judiciário, já que, sua competência deve se limitar ao exame da legalidade das normas instituídas no edital e dos atos praticados na realização do concurso, sendo vedada a análise dos critérios de formulação de questões, de correção de provas, atribuição de notas aos candidatos, matérias cuja responsabilidade é da Administração Pública. Ora, vejam, porém que o entendimento de legalidade é amplo e aponta para um prisma de análise mais complexo… Aceitar o raciocínio apenas de maneira abstrata é aceitar que um questionamento de concurso, no qual se pede o resultado da soma de dois mais dois [2 + 2], que, dentro da ótica matemática (lógica matemática1), qualquer resultado diferente de quatro, por lógica, estará errado; sendo assim, mesmo que a Banca Examinadora, do exemplo citado, aponte como resposta verdadeira o número cinco, este nunca será um resultado correto, e se assim o for, tal resultado, mesmo que afirmado pela seara administrativa, será ilegal e imoral. Neste tema, outro não pode ser o entendimento que, uma das atribuições do princípio da legalidade é justamente estabelecer paradigmas para que se realize o controle e a avaliação do funcionamento dos chamados “aparatos de poder”, desse modo: as ações administrativas, inclusive de bancas examinadoras de concursos, só têm, e gozam, de legitimidade quando estão em consonância com o estabelecido pelas regras legais. Instruir um ato decisório com respaldo de uma imaginada discricionariedade administrativa, e nessa senda, resvalar-se ao entendimento que trata-se de um campo ao qual jamais se permitiu que o Poder Judiciário tivesse acesso, pois, do contrário, restaria violado o princípio da separação das funções do Estado2, na ótica legalista não é a mais aceitável, estando ferindo a observância dos princípios constitucionais. 3 – Visão Constitucional: Por mais óbvio que seja, há certa resistência no judiciário em acatar a diplomação contida nos incisos XXXIV e XXXV, do artigo 5º – da Constituição Federal; em tais itens, se resume o ordenamento que ao cidadão – detalhadamente no caso aqui em análise –, enquanto candidato de um concurso, discordando de uma resposta apontada como correta pela banca examinadora, tem o direito de levar ao Poder Judiciário sua indignação, seu pleito. Por outro lado, ao judiciário cabe a apreciação da suposta lesão ao direito, e esta, estando demonstrada, cabe ainda desconstituir a decisão administrativa anterior que a sublinhou como correta, e não meramente se excluir de tal obrigação. Com tais considerações, pode-se observar que, mesmo na teoria tradicional, é aceito o controle da existência e adequação dos motivos, em relação ao objeto (conteúdo) do ato, matéria que, para esse fim, é transportada para o campo da legalidade. 4 – A Legalidade: Visto pelo âmbito da legalidade, então, o mérito dos atos administrativos estão, sim, sujeito a controle judicial, sob o critério de razoabilidade. A autoridade julgadora não deverá avaliar se o administrador, como é de seu dever, fez o melhor uso da competência administrativa, mas cabe-lhe ponderar se o ato conteve-se dentro de padrões médios, de limites aceitáveis, fora dos quais considera-se erro e, como tal, estando sujeito a anulação. O conceito de razoabilidade, pela valoração que envolve, não evita uma zona de penumbra – ponto de transição –, fenômeno que, ultrapassado o racionalismo, tornou-se típico das instituições jurídicas; assim, em caso de dúvida – e somente assim – sobre se um ato comporta-se, ou não, dentro de fronteiras razoáveis, deve o juiz optar pela sua confirmação. Sob tal critério, o julgador deve, pois, avaliar se houve erro na formulação de uma questão de prova de concurso, mediante instrução probatória ou, quando a prova for pré-constituída ou desnecessária, até em mandado de segurança3. O Tribunal Constitucional Federal alemão, ao julgar processo similar ao aqui em análise, sustentou a inexistência de margem de apreciação no tocante às questões de exame de natureza técnica ou científica e a existência dessa margem ou “área de apreciação”, quando se cogitar de prova, por exemplo, cuja avaliação não dispense a análise das provas de todos os demais candidatos. É o que sucede nas provas de natureza dissertativa nas quais, para a justa avaliação de uma delas, será indispensável o cotejo com as outras. A aplicação do princípio da legalidade tem como objetivo subordinar completamente tanto o processo administrativo, quanto o procedimento que vise à organização do concurso público aos ditames da lei, tendo, pois, como escopo principal, coibir arbitrariedades e excessos dos administradores públicos. Os tribunais superiores já substanciaram jurisprudência forte sobre tal tema, ressaltando que, a legitimidade de um processo administrativo – no caso o Concurso Público – está diretamente ligada à garantia de sua legalidade: “Ementa: REEXAME NECESSÁRIO – APELAÇÕES CÍVEIS – CONCURSO PÚBLICO – QUESTÕES OBJETIVAS – ERRO NA ELABORAÇÃO DE QUESTÕES DE MULTIPLA ESCOLHA QUE APRESENTARAM MAIS DE UMA RESPOSTA CORRETA – ANULAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO – EXCEPCIONALIDADE – SENTENÇA CONFIRMADA NO REEXAME NECESSÁRIO. – O concurso público é o meio legítimo, democrático, idôneo e eficiente de investidura no serviço público. Desta forma, excepcionalmente, é cabível a anulação de questão objetiva de concurso público, pelo Poder Judiciário, quando ocorre erro flagrante erro na elaboração de questões de múltipla escolha que apresentaram mais de uma alternativa correta, a fim de se ver garantida a idoneidade e a legitimidade do Concurso Público. [TJMG – Ap Cível/Reex Necessário AC 10024121792360003]” Cabe lembrar as palavras do mestre Hely Lopes Meirelles, de que, o administrador não tem vontade própria e por isso, só lhe é permitido fazer o que é autorizado por lei. 5 Na verdade, ao apontar e decidir sobre uma ilegalidade contida em questão de concurso – decidindo se a resposta dada foi ou não correta –, o Poder Judiciário não está, de forma alguma, substituindo a banca examinadora. Ora, está sim, respondendo a um claro afrontamento aos princípios maiores da Constituição Federal, qual seja: a legalidade e a moralidade; isso porque, o reexame dos critérios empregados pela banca examinadora na elaboração, correção e atribuição de notas em provas de concurso público é admissível – e dentro da legalidade que impõe ao judiciário um posicionamento – em algumas situações limítrofes, como, por exemplo: “I – se a questão impugnada pelo candidato apresentar-se dissociada dos pontos constantes do edital; II – se a questão revelar-se absolutamente teratológica – contrária à lógica da ciência em análise – em cotejo à resposta constante do gabarito oficial; III – se a questão objetiva – do tipo: múltipla escolha – apresenta duas, ou mais opções de resposta como corretas; estando o edital, determinando apenas uma.” 5 – Considerações Finais: Por fim, é importante destacar que, em matéria científica, técnica ou artística, não pode a banca examinadora reputar como certa resposta insustentável à luz da técnica ou da ciência ou, inversamente, considerar como errada posicionamento que, por aqueles padrões, é correta. Neste particular, o controle jurisdicional é, em princípio, total e irrestrito, só podendo ser limitado pelo próprio órgão julgador caso conclua que os elementos constantes do processo não lhe permitem afirmar que a solução tida como correta pela banca ou comissão examinadora é errada, ou vice-versa. Com tais considerações, cabe sim ao juiz ou tribunal reparar erro de banca examinadora, e decidir se a resposta dada a uma questão foi ou não correta, ou se determinada questão poderia ter mais de uma resposta dentre as oferecidas à escolha do candidato, desde que, a resposta dada como correta pela administração esteja claramente em divergência à ciência em estudo, ou ainda, que duas, ou mais, opções concretizem o que foi definitivamente pedido ao candidato; tal assertativa não vai contra o posicionamento do STF, e a sua Repercussão Geral.
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Transparência pública e o combate à corrupção no Brasil: A Lei nº 12.813, de 16.05.2013 e o conflito de interesses na Administração Pública Federal
Normas e regras a respeito do conflito de interesses na Administração Pública federal brasileira.
Direito Administrativo
Introdução. Era prática bastante usual na Administração Pública brasileira a utilização de informações públicas por alguns de seus agentes ou ex-agentes em proveito dos próprios negócios particulares com a obtenção de grandes e lucrativas vantagens.[1] Exemplos como na área tributária ou administrativa eram corriqueiros e se tornaram conhecidas práticas de antigas autoridades que deixavam o Poder Público para desenvolverem advocacia e/ou consultoria. A Lei nº 12.813, de 16/05/2013, surgiu para organizar disposições legais acerca do conflito de interesses de quem exerce cargo ou emprego no Poder Executivo Federal e dos impedimentos posteriores ao exercício dos mesmos. Ao fazer isto, revoga outras determinações legais e as previstas em medidas provisórias.[2] Além de tudo, destaca-se como ferramenta no combate à corrupção no Brasil ao incrementar o respeito ao princípio constitucional da impessoalidade. Este texto faz parte da pesquisa acerca da Lei de Transparência e o Combate à Corrupção no Brasil. Desde 2005, ou antes, nunca se falou tanto em corrupção no país. A pesquisa da qual este artigo faz parte buscará detectar afinal se o aumento das notícias de corrupção no Brasil é a consequência de sua intensificação na Administração Pública ou porque somente a partir de anos recentes é que a mesma foi pesquisada, combatida e julgada no país, com a punição de seus responsáveis. Em outras palavras, dentro de um contexto mais amplo de país, a pesquisa visa a descobrir se a corrupção nasceu agora ou somente está sendo combatida com maior frequência nos anos recentes. Também busca comparar o que acontece no Brasil e no exterior para se vislumbrar e esclarecer as eventuais tendências e realizações. O princípio da impessoalidade e a Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/1988. No capítulo que trata especificamente da Administração Pública, a partir do caput do art. 37, está expresso que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá, dentre outros, aos princípios de impessoalidade.[3] O princípio da impessoalidade é aquele segundo o qual o administrador não pode tirar proveito próprio para si ou para terceiros dos atos que promove na condução da estrutura administrativa. A razão de ser deste princípio administrativo é a de que administrar significa cuidar de um patrimônio que não lhe pertence sendo no caso público e direcionado a todos. A doutrina de Tobias de Oliveira Andrade explica que o princípio da impessoalidade seria um desdobramento do princípio da igualdade de todos perante a lei.[4] O autor cita Celso Antônio Bandeira de Mello para quem: “…a impessoalidade funda-se no postulado da isonomia e tem desdobramentos explícitos em variados dispositivos constitucionais como o artigo 37, II, que exige concurso público para ingresso em cargo ou emprego público, ou no artigo 37, XXI, que exige que as licitações públicas assegurem igualdade de condições a todos os concorrentes”. A página do Tribunal de Contas Municipal de São Paulo explica o tema. Todos os comportamentos da Administração Pública têm que ser impessoais. Reflexo ou faceta do princípio da igualdade, a obrigação de se tratar impessoalmente todas as pessoas, também significaria que tudo aquilo que a Administração Pública faz por meio dos seus agentes há de ser havido como feito por ela, retirando-se, portanto, qualquer conotação com o servidor autor direito do feito.[5] Em artigo doutrinário disponível na internet, Danielle Maciel Campos explica que, de acordo com o próprio dicionário, impessoal é o que não se refere ou não se dirige a uma pessoa em particular, mas às pessoas em geral. Demonstra a autora com base em diferentes doutrinadores que a impessoalidade busca a proteger os atos administrativos contra práticas que levem ao favorecimento de pessoas determinadas por meio de imposição à obediência apenas do fim legal. É o princípio também conhecido como princípio da finalidade. Este princípio estaria ligado à finalidade pública com a qual deve a Administração Pública agir sempre de forma geral, produzindo resultados que extrapolem os efeitos sobre pessoas ou grupos determinados. Especificação dos subordinados aos conflitos de interesses. O art. 1º da Lei 12.813, de 2013, determina que as situações configuradoras de conflitos de interesses envolvendo ocupantes de cargo ou emprego na Administração Pública Federal, os requisitos e restrições a ocupantes de cargo ou emprego que tenham acesso a informações privilegiadas, os impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego e as competências para fiscalização, avaliação e prevenção de conflitos de interesses serão reguladas pela mesma.[6] Sujeitos subordinados às determinações legais. Em seguida, o art. 2º determina que se submetem ao seu regime legal os que ocuparem os cargos e empregos: I – de ministro de Estado; II – de natureza especial ou equivalentes; III – de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e IV – do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes. Além dos agentes públicos mencionados nos incisos I a IV, sujeitam-se ao disposto na Lei os ocupantes de cargos ou empregos cujo exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro, conforme definido em regulamento. Glossário: conflito de interesses e informação privilegiada. O art. 3º serve de glossário da Lei 12.813/2013. Para os fins da mesma, conflito de interesses é a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função ou atividade pública. Já informação privilegiada é aquela que disser respeito a assuntos sigilosos ou aquela relevante ao processo de decisão no âmbito do Poder Executivo federal que tenha repercussão econômica ou financeira e que não seja de amplo conhecimento público. A este respeito, as informações fornecidas pela Controladoria Geral da União (C.G.U) são relevantes.[7] Do dever de agir do agente público. O ocupante de cargo ou emprego no Poder Executivo federal, de acordo com o art. 4º da Lei, tem o dever de agir de modo a evitar possíveis conflitos de interesses e a resguardar informação privilegiada. Em caso de dúvidas a respeito de como prevenir ou impedir situações que configurem conflito de interesses, o agente público deverá consultar a Comissão de Ética Pública, criada no âmbito do Poder Executivo federal, ou a Controladoria-Geral da União, sempre de acordo com o art. 8º, parágrafo único, da Lei 12.813.[8] A ocorrência de conflito de interesses independe da existência de lesão ao patrimônio público, bem como do recebimento de qualquer vantagem ou ganho pelo agente público ou por terceiro. Esta determinação aparentemente vaga e imprecisa pode representar uma obrigação ao agente público no sentido de obriga-lo a agir de forma tal que o mesmo esteja consciente do dever de evitar o conflito de interesses e paute a sua conduta no mais estrito dever de ação impessoal, conforme determinação constitucional do art. 37, caput da Constituição Federal de 1988.[9] Configuração do conflito de interesses durante o exercício de cargo ou emprego. O art. 5o determina quais as 7 (sete) situações em que se configura conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego no âmbito da Administração Pública Federal. Inicialmente, caracteriza o conflito de interesses a divulgação ou a utilização de informação privilegiada, em proveito próprio ou de terceiros, desde que obtida em razão das atividades exercidas pelo agente público. A segunda hipótese é a de o agente exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão sua ou de colegiado do qual participe. Em terceiro lugar, configura conflito de interesses o exercício, direta ou indiretamente, de atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas. A próxima situação que representa um conflito de interesses é a de o agente atuar, ainda que informalmente, como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A quinta hipótese em que se caracteriza o conflito de interesses é a pratica de ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão. A penúltima situação que será considerada como de conflito de interesse é a resultante do ato de o agente receber presente de quem tenha interesse em sua decisão ou de colegiado do qual participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento. Finalmente, será conflito de interesse a prestação de serviços, ainda que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo ente ao qual o agente público esteja vinculado. É importante ressaltar que as situações que configuram conflito de interesses estabelecidas neste artigo aplicam-se aos ocupantes dos cargos ou empregos mencionados no art. 2o mesmo que estejam em gozo de licença ou em período de afastamento. A determinação proveniente da redação do parágrafo único do artigo evita situações nas quais o agente propositadamente se desvincularia do exercício de sua função com o intuito de praticar livremente ações caracterizadas como conflitos de interesses, pretensamente sob o respaldo da lei. Cartilha publicada pela C.G.U também explica quais são as práticas vedadas a todos durante o exercício do cargo ou emprego público por configurarem conflito de interesses.[10] Inicialmente, a divulgação ou utilização indevida de informações privilegiadas obtidas durante o exercício do cargo, em proveito próprio ou de terceiros. A prestação de serviços ou negociação com pessoas físicas ou jurídicas interessadas na decisão do agente público ou de colegiado do qual participe. O exercício de atividades incompatíveis com as atribuições do cargo ou emprego que ocupa, inclusive em áreas ou matérias correlatas. A atuação, mesmo que informal, na qualidade de procurador ou intermediário de interesses privados em órgãos e entidades de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito federal e Municípios. A prática de atos que beneficiem pessoa jurídica em que participe o próprio agente público, seu cônjuge ou parentes (até o 3º grau). O recebimento de presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe, fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento. Finalmente, a prestação de serviços, mesmo que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo ente ao qual o agente público está vinculado. Configuração do conflito de interesses após o exercício de cargo ou emprego. Após o final do exercício de suas funções públicas, muitos ex-agentes utilizavam de informações a que tiveram acesso para usufruir de vantagens que os demais não possuiriam em razão de estar fora da área pública. As determinações do art. 6º da Lei 12.813/2013 revelam as configurações dos conflitos de interesses ocorridos após o término do exercício de cargo ou emprego na Administração Pública Federal. A primeira situação de conflito de interesses é aquela na qual a qualquer tempo, o ex-agente divulgue ou faça uso de informação privilegiada obtida em razão das atividades exercidas. Em seguida, dentro do período de 6 (seis) meses, contados da data da dispensa, exoneração, destituição, demissão ou aposentadoria, salvo quando expressamente autorizado, conforme o caso, pela Comissão de Ética Pública ou pela Controladoria-Geral da União, será considerada situação de conflito de interesses a prestação, direta ou indiretamente, de qualquer tipo de serviço a pessoa física ou jurídica com quem tenha estabelecido relacionamento relevante em razão do exercício do cargo ou emprego. Outra hipótese é a aceitação de cargo de administrador ou conselheiro ou o estabelecimento de vínculo profissional com pessoa física ou jurídica que desempenhe atividade relacionada à área de competência do cargo ou emprego ocupado. Também será configurado o conflito de interesses quando o ex-agente público celebrar com órgãos ou entidades do Poder Executivo federal contratos de serviço, consultoria, assessoramento ou atividades similares, vinculados, ainda que indiretamente, ao órgão ou entidade em que tenha ocupado o cargo ou emprego. A última hipótese de conflito de interesses será aquela pela qual o ex-agente intervenha, direta ou indiretamente, em favor de interesse privado perante órgão ou entidade em que haja ocupado cargo ou emprego ou com o qual tenha estabelecido relacionamento relevante em razão do exercício do cargo ou emprego. Fiscalização e avaliação do conflito de interesses. Os arts. 8º e 9º da Lei 12.813/2013 estabelecem regras para a fiscalização e a avaliação dos conflitos de interesses além de tratarem da Comissão de Ética Pública e da Controladoria Geral da União. De acordo com o art. 8º, a Comissão de Ética Pública, instituída no âmbito do Poder Executivo federal, e a Controladoria-Geral da União, conforme o caso, têm a competência para estabelecer normas, procedimentos e mecanismos que objetivem prevenir ou impedir eventual conflito de interesses. Além disto, são competentes para avaliar e fiscalizar a ocorrência de situações que configuram conflito de interesses e determinar medidas para a prevenção ou eliminação do conflito. Também poderão a Comissão de Ética ou a CGU orientar e dirimir dúvidas e controvérsias acerca da interpretação das normas que regulam o conflito de interesses, inclusive as estabelecidas nesta Lei. Outra competência da Comissão de Ética e da CGU é a de manifestar-se sobre a existência ou não de conflito de interesses nas consultas a elas submetidas. Podem também autorizar o ocupante de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal a exercer atividade privada, quando verificada a inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância. A Comissão de Ética e a CGU também são competentes para dispensar quem haja ocupado cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal de cumprir o período de impedimento a que se refere o inciso II do art. 6o, quando verificada a inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância. A Lei também confere à Comissão de Ética e à CGU disporem, em conjunto com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, sobre a comunicação pelos ocupantes de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal de alterações patrimoniais relevantes, exercício de atividade privada ou recebimento de propostas de trabalho, contrato ou negócio no setor privado. Finalmente, a Comissão de Ética e a Controladoria Geral da União fiscalizarão a divulgação da agenda de compromissos públicos, conforme prevista no art. 11 da Lei 12.813. O parágrafo único do art. 8º especifica que a Comissão de Ética Pública atuará nos casos que envolvam os agentes públicos mencionados nos incisos I a IV do art. 2o , ou seja, ministro de Estado; cargos de natureza especial ou equivalentes;  presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e IV – cargos do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes. A Controladoria-Geral da União atuará nos casos que envolvam os demais agentes, observado o disposto em regulamento. Já o art. 9o da Lei determina que os agentes públicos mencionados no seu art. 2o – os mesmos sujeitos à Comissão de Ética Pública – inclusive aqueles em gozo de licença ou em período de afastamento, deverão enviar à Comissão de Ética Pública ou à Controladoria-Geral da União, conforme o caso, anualmente, declaração com informações sobre situação patrimonial, participações societárias, atividades econômicas ou profissionais e indicação sobre a existência de cônjuge, companheiro ou parente, por consanguinidade ou afinidade, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, no exercício de atividades que possam suscitar conflito de interesses; e comunicar por escrito à Comissão de Ética Pública ou à unidade de recursos humanos do órgão ou entidade respectivo, conforme o caso, o exercício de atividade privada ou o recebimento de propostas de trabalho que pretende aceitar, contrato ou negócio no setor privado, ainda que não vedadas pelas normas vigentes, estendendo-se esta obrigação ao período a que se refere o inciso II do art. 6o. As unidades de recursos humanos, ao receber a comunicação de exercício de atividade privada ou de recebimento de propostas de trabalho, contrato ou negócio no setor privado, deverão informar ao servidor e à Controladoria-Geral da União as situações que suscitem potencial conflito de interesses entre a atividade pública e a atividade privada do agente. Disposições finais Registra o art. 10 da Lei que as disposições contidas nos arts. 4o e 5o e no inciso I do art. 6o estendem-se a todos os agentes públicos no âmbito do Poder Executivo federal. O art. 4º determina ao ocupante de cargo ou emprego no Poder Executivo federal deve agir de modo a prevenir ou a impedir possível conflito de interesses e a resguardar informação privilegiada. Ao abranger a obrigação legal a todos os agentes públicos da Administração Pública Federal, o art. 10 obriga também às determinações da Lei 12.813 os agentes temporários e os que exercem funções públicas, além dos ocupantes de cargos e empregos. O art. 5º, por sua vez, especifica as configurações dos casos de conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal. Por último, o art. 6º, I, trata dos conflitos de interesses após o exercício do cargo ou emprego pelo agente autoridade pública. De acordo com a redação do art. 11 da Lei 12.813, os ministros de Estado; os ocupantes de cargos de natureza especial ou equivalentes; presidentes, vice-presidentes e diretores, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e ocupantes de cargos do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes deverão divulgar, todos os dias, por meio da rede mundial de computadores – internet, sua agenda de compromissos públicos. O art. 12 determina que o agente público que praticar os atos configurados como de conflitos de interesses cometerão improbidade administrativa, por atentarem contra os princípios da Administração Pública, quando não caracterizada qualquer atentado à Administração Pública por enriquecimento ilícito ou prejuízo ao Erário. Sem prejuízo do disposto no caput e da aplicação das demais sanções cabíveis, fica o agente público que se encontrar em situação de conflito de interesses sujeito à aplicação da penalidade disciplinar de demissão, prevista no Estatuto dos Servidores Públicos Federais, ou medida equivalente. Em último lugar, o disposto na Lei 12.813/2013 não afasta a aplicação da Lei 8112/1990, ou seja, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais, especialmente no que se refere à apuração das responsabilidades e possível aplicação de sanção em razão de prática de ato que configure conflito de interesses ou ato de improbidade nela previstos. Conclusão A análise inicial é a de que a legislação estudada é instrumento que pode se revelar de importância relevante no combate à corrupção no Brasil por ser capaz de evitar o trânsito de informações públicas para setores privados por meio de agentes ou ex-agentes detentores de tais informações. Conforme exposto no início do texto, tal era uma situação relevante e de prática cotidiana na administração pública brasileira.   Anexo I Portaria Interministerial nº 333, de 19.09.2013. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão O DOU de 20/09/2013 (nº 183, Seção 1, pág. 80) publicou a Portaria Interministerial nº 333, de 19.09.2013, de autoria da Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Ministro de Estado Chefe da Controladoria Geral da União, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I e II do parágrafo único do art. 87 da Constituição e o art. 8º da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013. Determinações. (Art. 1º) Ficou resolvido que a consulta sobre a existência de conflito de interesses e o pedido de autorização para o exercício de atividade privada por servidor ou empregado público do Poder Executivo federal no âmbito da competência atribuída à Controladoria-Geral da União – CGU pelo § 1º do art. 4º [11] e pelo art. 8º [12] da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013, são disciplinados pela Portaria Interministerial nº 333, de 19/09/2013 do MPOG. Excluem-se do âmbito de aplicação da Portaria a consulta sobre a existência de conflito de interesses e o pedido de autorização para o exercício de atividade privada formulados pelos servidores ou agentes públicos mencionados nos incisos I a IV do art. 2º da Lei nº 12.813, de 2013.[13] (Art. 2º e parágrafo único) Para os fins da Portaria 333, considera-se: I – consulta sobre a existência de conflito de interesses: instrumento à disposição de servidor ou empregado público pelo qual ele pode solicitar, a qualquer momento, orientação acerca de situação concreta, individualizada, que lhe diga respeito e que possa suscitar dúvidas quanto à ocorrência de conflito de interesses; e II – pedido de autorização para o exercício de atividade privada: instrumento à disposição do servidor ou empregado público pelo qual ele pode solicitar autorização para exercer atividade privada. O servidor ou empregado público poderá formular a consulta e o pedido de que trata o caput em caso de superveniência de situação que configure potencial conflito de interesses. (Art. 3º e parágrafo único) A consulta sobre a existência de conflito de interesses e o pedido de autorização para o exercício de atividade privada deverão ser formulados mediante petição eletrônica e conter no mínimo os seguintes elementos: I – identificação do interessado; II – referência a objeto determinado e diretamente vinculado ao interessado; e III – descrição contextualizada dos elementos que suscitam a dúvida. Não será apreciada a consulta ou o pedido de autorização formulado em tese ou com referência a fato genérico. (Art. 4º e parágrafo único) A consulta sobre a existência de conflito de interesses e o pedido de autorização para o exercício de atividade privada deverão ser dirigidos à unidade de Recursos Humanos do órgão ou entidade do Poder Executivo federal onde o servidor ou empregado público esteja em exercício. Os servidores e empregados públicos cedidos ou requisitados e com exercício em outro ente federativo, esfera ou poder, como também aqueles que se encontram em gozo de licença ou afastamento, deverão enviar a consulta ou o pedido de autorização para as unidades de Recursos Humanos dos órgãos ou entidades de lotação. (Art. 5º, I a IV e parágrafo único) Cabe à unidade de Recursos Humanos: I – receber as consultas sobre a existência de conflito de interesses e os pedidos de autorização para o exercício de atividade privada dos servidores e empregados públicos e comunicar aos interessados o resultado da análise; II – efetuar análise preliminar acerca da existência ou não de potencial conflito de interesses nas consultas a elas submetidas; III – autorizar o servidor ou empregado público no âmbito do Poder Executivo federal a exercer atividade privada, quando verificada a inexistência de potencial conflito de interesses ou sua irrelevância; e IV – informar os servidores ou empregados públicos sobre como prevenir ou impedir possível conflito de interesses e como resguardar informação privilegiada, de acordo com as normas, procedimentos e mecanismos estabelecidos pela CGU. Os Secretários-Executivos e equivalentes, no âmbito dos Ministérios, ou os dirigentes máximos das entidades do Poder Executivo federal, poderão designar outra autoridade, órgão ou comissão de ética, criada no âmbito do referido órgão ou entidade, para exercer as atribuições previstas nos incisos II a IV do caput deste artigo. (Art. 6º, §§1º a 6º) Presentes as informações solicitadas no art. 3º, a unidade de Recursos Humanos ou a autoridade, órgão ou comissão competente terá o prazo de até quinze dias para analisar a consulta ou o pedido de autorização para o exercício de atividade privada. Havendo outra autoridade ou órgão designado nos termos do parágrafo único do art. 5º, a unidade de Recursos Humanos deverá fazer imediatamente o encaminhamento ao responsável. Na consulta, quando for verificada inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância, a unidade de Recursos Humanos comunicará o resultado da análise realizada pelo órgão ou entidade, devidamente fundamentada, ao interessado. Nos pedidos de autorização, a comunicação do resultado de análise preliminar que concluir pela inexistência de potencial conflito de interesses ou sua irrelevância deverá ser acompanhada de autorização para que o servidor ou empregado público exerça atividade privada específica. Verificada a existência de potencial conflito de interesses, a unidade de Recursos Humanos encaminhará a consulta ou o pedido de autorização à Controladoria Geral da União – CGU, mediante manifestação fundamentada que identifique as razões de fato e de direito que configurem o possível conflito, e comunicará o fato ao interessado. Nos pedidos de autorização, transcorrido o prazo previsto no caput, sem resposta por parte da unidade de Recursos Humanos, fica o interessado autorizado, em caráter precário, a exercer a atividade privada até que seja proferida manifestação acerca do caso. A comunicação do resultado de análise que concluir pela existência de conflito de interesses implicará a cassação da autorização mencionada no § 5º do artigo. (Art. 7º, parágrafo único) Cabe à CGU, nas consultas a ela submetidas pelas unidades de Recursos Humanos dos órgãos e entidades do Poder Executivo federal, analisar e manifestar-se sobre a existência ou não de conflito de interesses, bem como autorizar o servidor ou empregado público a exercer atividade privada, quando verificada inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância. Caso entenda pela existência de conflito de interesses, a CGU poderá determinar medidas para sua eliminação ou mitigação, levando em conta a boa-fé do servidor ou empregado público, com a possibilidade, inclusive, de concessão de autorização condicionada. (Art. 8º, §§ 1º a 6º) A CGU terá o prazo de quinze dias para manifestar-se sobre a consulta ou o pedido de autorização para o exercício de atividade privada encaminhado pela unidade de Recursos Humanos. Quando considerar insuficientes as informações recebidas, a CGU poderá solicitar informações adicionais aos órgãos ou entidades envolvidos no caso. O pedido de solicitação de informações adicionais suspende o prazo estabelecido no caput até o recebimento de manifestação do referido órgão ou entidade. O órgão ou entidade terá dez dias para enviar esclarecimentos adicionais à CGU, contados do recebimento do pedido. A CGU devolverá o resultado da análise, devidamente fundamentada, à unidade de Recursos Humanos correspondente, que o comunicará ao servidor ou empregado público interessado. Nos pedidos de autorização, a comunicação do resultado da análise que concluir pela inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância deverá ser acompanhada de autorização para que o servidor ou empregado público exerça atividade privada específica. O prazo mencionado no caput poderá ser prorrogado por igual período, com justificativa explícita. (Art. 9º, parágrafo único) O interessado, no prazo de dez dias contados a partir de sua ciência, poderá interpor recurso contra a decisão prevista no art. 8º que entenda pela existência de conflito de interesses. Autoridade ou instância superior, no âmbito da própria CGU, terá quinze dias para decidir o recurso e poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida. (Art. 10) Cabe à CGU criar o sistema eletrônico para envio das consultas e pedidos de autorização referidos nesta Portaria. (Art. 11) Até que seja criado o sistema referido no art. 10, as consultas e pedidos de autorização deverão ser formulados nos termos dos Anexos I e II desta Portaria.   Anexo I Portaria Interministerial nº 333, de 19.09.2013. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. MIRIAM BELCHIOR – Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão & JORGE HAGE SOBRINHO – Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União ANEXO I CONSULTA SOBRE A EXISTÊNCIA DE CONFLITO DE INTERESSES 1. IDENTIFICAÇÃO DO SERVIDOR OU EMPREGADO PÚBLICO Nome: Matrícula: Cargo ou Emprego efetivo: Cargo em Comissão ou equivalente: Órgão ou entidade de lotação: Órgão ou entidade de exercício: Unidade de exercício: Está em licença ou afastamento? ( ) sim ( ) não Em caso positivo, qual? Telefone: E-mail: 2. DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES DESEMPENHADAS NO ÓRGÃO OU ENTIDADE 3. DÚVIDA Estou ciente que prestar declaração falsa constitui crime previsto no art. 299 do Código Penal Brasileiro e que por ela responderei, independentemente das sanções administrativas cabíveis, caso se comprove a falsidade do declarado neste documento. Local e Data: Assinatura do Servidor ou Empregado Público ANEXO II PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE ATIVIDADE PRIVADA 1. IDENTIFICAÇÃO DO SERVIDOR OU EMPREGADO PÚBLICO Nome: Matrícula: Cargo ou Emprego efetivo: Cargo em Comissão ou equivalente: Órgão ou entidade de lotação: Órgão ou entidade de exercício: Unidade de exercício: Está em licença ou afastamento? ( ) sim ( ) não Em caso positivo, qual? Telefone: E-mail: 2. DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES DESEMPENHADAS NO ÓRGÃO OU ENTIDADE 3. DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE A SER DESEMPENHADA NO SETOR PRIVADO 4. IDENTIFICAÇÃO DO CONTRATANTE Nome: CPF/CNPJ: Endereço: Cidade/Estado: CEP: Telefone e E-mail: Anexar ao requerimento: documentação comprobatória das informações apresentadas quanto à atividade requerida. Estou ciente que prestar declaração falsa constitui crime previsto no art. 299 do Código Penal Brasileiro e que por ela responderei, independentemente das sanções administrativas cabíveis, caso se comprove a falsidade do declarado neste documento. Local e Data: Assinatura do Servidor ou Empregado Público
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O relevante papel social desempenhado pelas entidades do serviço social autônomo brasileiro
Este artigo visa divulgar o trabalho realizado pelas entidades integrantes do Serviço Social Autônomo Brasileiro, informando quais são e o que realiza cada uma das entidades do Sistema “S”, bem como demonstrar que atuam na busca dos direitos fundamentais, especialmente do direito à educação.
Direito Administrativo
Introdução: Os Serviços Sociais Autônomos trabalham paralelamente ao Estado na busca pela ampliação do acesso à educação. Atuam em diversos setores da economia, e busca, especialmente, a educação profissionalizante e o bem estar do trabalhador. Tanto a educação quanto o trabalho são direitos sociais consagrados na Constituição Federal Brasileira, de modo que é possível concluir que os Serviços Sociais cumprem papel fundamental ao desenvolvimento nacional. O trabalho tem o objetivo de apresentar o que faz cada entidade do “Sistema S”, demonstrando sua importância na qualificação da mão de obra de diversos setores da economia brasileira. 1. Da natureza jurídica das entidades paraestatais Também denominadas de “pessoas de cooperação governamental”, são todas aquelas entidades sem finalidade lucrativa que desempenham atividade de interesse público. São pessoas jurídicas de direito privado que exercem atividades que beneficiam determinados grupos ou categorias profissionais, conforme já mencionarou o professor Alexandre Mazza. Não integram a Administração Pública Direta ou Indireta, cujos órgãos desempenham atividade pública, privativa de Estado, mas atuam em cooperação com esse e recebem, por esse motivo, subvenção pública. Ao longo dos anos, essas entidades receberam algumas outras denominações, como Entidades Paraestatais e Terceiro Setor. As pessoas de cooperação governamental, Entidades Paraestatais ou Terceiro Setor compreendem as Organizações Sociais, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e os Serviços Sociais Autônomos, em cujo estudo ora nos debruçamos. Além da terminologia “paraestatal”, a denominação mais comum para essas pessoas jurídicas é “pessoas de cooperação governamental”, pois são aquelas entidades que colaboram com o órgão do Poder Público a que estão vinculadas, através de execução de alguma atividade caracterizada como serviço de utilidade pública. Helly Lopes Meireles foi o vanguardista dessa denominação, ao passo que, atualmente, algumas leis que autorizam a instituição de tais entidades também utilizam essa menção. Quanto à natureza jurídica stricto sensu das pessoas que atuam em cooperação governamental, são pessoas jurídicas de direito privado, embora no exercício de atividades de interesse público, relacionadas, em sua maioria, ao ensino profissionalizante. Sendo pacificado que são pessoas jurídicas de direito privado, recorro à lei civil (Código Civil Brasileiro) para estabelecer seu enquadramento: “Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações. IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos; VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada. (…) Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.(…) Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.(…) Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.(…)” Grifei. A fim de proceder ao enquadramento jurídico das entidades dos serviços autônomos, nos termos da lei civil, posso afirmar que não se tratam de fundação, uma vez que essa é a destinação de um patrimônio, por meio de escritura pública ou testamento, e que tem fins religiosos, morais, culturais ou de assistência. E, como já mencionado, as entidades do Sistema “S” recebem verba de natureza tributária (verba parafiscal) para subsidiar seu funcionamento. Não são sociedade, uma vez que essas demandam finalidade econômica. Quanto às duas outras espécies, partidos políticos e organizações religiosas, não é necessário tecer maiores comentários, uma vez que por óbvio as entidades dos Serviços Sociais Autônomos não podem se enquadrar nessas duas classificações. Está claro também que não se enquadram na espécie mais recente, inserida pela Lei 12.441, de 2011, as empresas individuais de responsabilidade limitada, pelo mesmo motivo da finalidade da sociedade – não visa lucro, não se encaixando nos conceitos do Direito Societário. Pela análise eliminatória, se já é pacifico que se tratam de pessoas jurídicas de direito privado, única classificação que resta é a Associação, cuja definição retro mencionada disposta na Lei Civil é a união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Assim, das espécies elencadas na Lei Civil, a Associação é a que melhor pode definir a natureza jurídica das entidades integrantes dos Serviços Sociais Autônomos – Sistema “S”. Embora tenha sido possível enquadrar as entidades aqui estudadas na classificação trazida pelo Código Civil de 2002, percebe-se que não se trata de uma Associação pura, nos termos do dispositivo colacionado acima, de forma que parece que as associações formadas pela criação das entidades integrantes do Sistema “S” detêm características sui generis, que serão a seguir citadas. Seu surgimento depende de lei autorizadora, tal como ocorre com as pessoas jurídicas de direito público interno da Administração Indireta, como as autarquias, as fundações públicas de direito privado e de direito público (essas últimas equiparadas a Autarquias), as sociedades de economia mista e as empresas públicas. É o que se infere do inciso XIX do artigo 37 da Constituição Federal de 1988 (abaixo). “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de atuação.” Assim, estamos diante de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que exercem atividades de interesse público e cuja formação depende de autorização legal. Encontra-se, na criação das entidades dos serviços sociais autônomos, uma mistura normativa entre os requisitos de formação determinados para as pessoas jurídicas de direito privado e para as de direito público, o que gera certa discussão doutrinária. Além da criação dever ser autorizada em lei, outra característica peculiar dessas Associações é que recebem recursos oriundos de contribuições pagas compulsoriamente por parte da sociedade, e tal obrigação deve estar prevista em lei, em razão do princípio da legalidade, que determina que ao particular somente é obrigado fazer aquilo que estiver determinado em lei. As entidades citadas no artigo 44 do CC/2002, acima transcrito, têm sua existência legal com a inscrição do seu ato constitutivo no respectivo registro (no caso, Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas). No caso das Associações ora estudadas, o registro dos atos constitutivos deve ser precedido de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se, no referido registro, todas as alterações ocorridas. Pelo exposto, devo registrar o entendimento de que o registro das pessoas jurídicas de direito privado no cartório competente tem natureza constitutiva, é que defende o Mestre Pablo Stolze. No caso das entidades sociais autônomas, a constituição ainda deve ser precedida de autorização legal. Outra característica que o estatuto das entidades sociais autônomas tem é que são delineados através de regimentos internos, normalmente aprovados por Decreto do Chefe do Executivo. Neles são desenhados a organização administrativa da entidade, os objetivos, os órgãos diretivos, as competências e as normas relativas aos recursos e prestação de contas. Pelo exposto até o momento, conclui-se que as entidades integrantes do Sistema “S”, paraestatais, Terceiro Setor ou pessoas em cooperação governamental têm natureza jurídica de direito privado, especificamente de Associação, nos termos da lei civil brasileira, trazendo, porém, regramento jurídico diferenciado daquelas, na medida em que exigem mais requisitos para sua criação, uma vez que o registro dos atos constitutivos deve ser precedido de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se, no referido registro, todas as alterações por que passarem o ato constitutivo. 2. Do papel exercido pelas entidades integrantes do Sistema “S” Para esclarecer qual é o papel das entidades do Serviço Social Autônomo e demonstrar sua relevância, vou elencar quais são as entidades atualmente e a que se prestam: 2.1) Serviço Social do Transporte – SEST e Serviço Nacional do Transporte – Senat Na área social, o Sest Senat é responsável por gerenciar, desenvolver e apoiar programas que prezam pelo bem-estar do trabalhador em áreas como saúde, cultura, lazer e segurança no trabalho. Na área educacional, o foco se volta a programas de aprendizagem, que incluem preparação, treinamento, aperfeiçoamento e formação profissional. 2.2) Serviço Social da Indústria – SESI O Serviço Social da Indústria (SESI) oferece soluções para as empresas industriais brasileiras por meio de uma rede integrada, que engloba atividades de educação, segurança e saúde do trabalho e qualidade de vida. Tem por objetivo preparar os jovens para o ambiente profissional e reforçar sua formação básica e continuada, utilizando modernas tecnologias educacionais. 2.3) Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – Sescoop Tem o objetivo de organizar, administrar e executar o ensino de formação profissional e a promoção social dos trabalhadores e dos cooperados das cooperativas em todo o território nacional, além de operacionalizar o monitoramento, a supervisão, a auditoria e o controle em cooperativas brasileiras. 2.4)  Serviço Social do Comércio – SESC Proporcionar o bem estar e qualidade de vida aos trabalhadores do comércio de bens, turismo e serviços. Promover ações no campo da educação, saúde, cultura, lazer e assistência. 2.5) Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – Senar Contribui para o avanço da produção nos campos brasileiros, com ações de formação profissional rural e atividades de promoção social. Atende, gratuitamente, um milhão de brasileiros do meio rural, todos os anos, contribuindo para sua profissionalização em aproximadamente 300 profissões no meio rural, sua integração na sociedade, melhoria da sua qualidade de vida e para o pleno exercício da cidadania. 2.6) Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) é um dos cinco maiores complexos de educação profissional do mundo e o maior da América Latina. Seus cursos formam profissionais para 28 áreas da indústria brasileira, desde a iniciação profissional até a graduação e pós-graduação tecnológica. 2.7) Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac Oferece, em larga escala, educação profissional destinada à formação e à preparação de trabalhadores para o comércio, atuando na aprendizagem comercial. 2.8)  Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae É um agente de capacitação e de promoção do desenvolvimento, criado para dar apoio aos pequenos negócios de todo o país. Trabalha para estimular o empreendedorismo e possibilitar a competitividade e a sustentabilidade dos empreendimentos de micro e pequeno porte. 2.9) Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX-Brasil A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) atua para promover os produtos e serviços brasileiros no exterior e atrair investimentos estrangeiros para setores estratégicos da economia brasileira, realizando ações diversificadas de promoção comercial que visam promover as exportações e valorizar os produtos e serviços brasileiros no exterior. 2.10) Agencia Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI Foi criada com o objetivo de promover a execução da política industrial, em consonância com as políticas de ciência, tecnologia, inovação e de comércio exterior. Atua como elo entre o setor público e privado, contribuindo para o desenvolvimento sustentável do país por meio de ações que ampliem a competitividade da indústria. 2.11) Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – ANATER É o mais novo ente do Sistema “S”, criado em 2013. Visa a consolidação da integração da Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural) com o Sistema Brasileiro de Pesquisa Agropecuária, do ensino e também potencializar a ação de um universo de mais de 30 mil agentes de assistência técnica e extensão rural. O Serviço Social Autônomo recebe fomento do Poder Público para realizar atividade social, a educação, que é um direito de todo cidadão, reconhecido como essencial em todo tipo de nação. Por esse motivo, está inserida na Constituição Federal Brasileira no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, especificamente no capítulo dos Direitos Sociais: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Além disso, a Lei Maior da República Federativa Brasileira dedicou uma sessão própria à educação, dispondo, dentre outros: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”            O Poder Público, ciente da importância da educação, tem procurado formas de prestar esse serviço da melhor maneira possível. Reconhecendo que poderia contar com o auxílio de algumas instituições trabalhando paralelamente a ele na educação, atribuiu a educação profissionalizante às entidades do serviço social autônomo, subvencionando a prestação desse serviço por meio das contribuições parafiscais. O Estado tem interesse na prestação do serviço de educação profissionalizante com qualidade, é uma atividade que conta com o interesse público, por esse motivo, além da contribuição econômica, fiscaliza a prestação do serviço e a aplicação dessa verba. Conclusão Observa-se que o “Sistema S” atua, predominantemente, na educação profissionalizante, realizando programas de aprendizagem, promovendo segurança, saúde no trabalho, além de qualidade de vida do trabalhador, preparando jovens para o ambiente profissional e fomentando promoção social dos trabalhadores. Atua desde a iniciação profissional até a graduação e pós-graduação tecnológica, capacitando ainda para o empreendedorismo e para a competitividade.Não se pode negar que as entidades integrantes do “Sistema S” prestam serviço de relevante valor social, que trabalham pelos fundamentos da República Brasileira, especialmente na busca pelos valores sociais do trabalho e fomento à livre iniciativa, sendo vetores essenciais na busca do cumprimento dos objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e o desenvolvimento nacional.
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Prescrição no âmbito das ações de ressarcimento ao erário
O presente artigo científico objetiva abordar a tese da prescritibilidade ou imprescritibilidade das ações de ressarcimentos por danos ao erário, expondo os entendimentos da doutrina acerca do tema, bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, do entendimento do Tribunal de Contas da União, para ao final defender a tese da imprescritibilidade, com base numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico, notadamente à luz da vigente Constituição Federal, invocando outros argumentos e aspectos que não os tradicionalmente abordados pela doutrina e jurisprudência para justificar a tese da imprescritibilidade de quaisquer ações de ressarcimento ao erário.
Direito Administrativo
Introdução Prescrição, de forma sucinta, pode ser conceituada como a perda do direito de ação por não ter sido exercido no tempo legalmente previsto para tanto, ou seja, fulmina-se a exigibilidade de certo direito material. Cuida-se de matéria de ordem pública, cujo fundamento é a segurança jurídica no âmbito das relações jurídicas das mais diversas naturezas, podendo ser reconhecida de ofício pelo juiz, com fulcro no art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil. Ensina a doutrina que a prescrição é um instituto próprio das ações de natureza condenatória. Nesse contexto, as ações de ressarcimento, sendo espécie do gênero ações condenatórias, também se submetem à prescrição. Todavia, surge enorme controvérsia jurisprudencial e doutrinária acerca da incidência ou não da prescrição em se tratando de ações de ressarcimento ao erário, uns defendo que as ações que buscam recompor o prejuízo econômico-financeiro causado ao patrimônio público são imprescritíveis, outros defendo sua prescritibilidade. É justamente sobre essa controvérsia que será elaborado o presente artigo, abordando os principais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema em epígrafe, o qual é de inegável relevância, bem como ressaltar o entendimento que soa mais adequado à luz de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Impende ressaltar, desde logo, que embora tecnicamente a doutrina distingua erário de patrimônio público, sendo o primeiro o patrimônio público estritamente sob o aspecto econômico-financeiro, já o segundo sendo todo e qualquer bem público, ainda que insuscetível de apreciação econômica, como, por exemplo, o meio ambiente, no presente trabalho tratamos como expressões sinônimas e no sentido amplo, abrangendo quaisquer bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, arqueológico, palentológico, ecológico, ambiental e cultural, uma vez que, ainda que não tenha conteúdo econômico imediato, os danos causados podem ser quantificados economicamentes para fins de recomposição. Nessa senda, pode ser invocado, por analogia, a definição contida no §1º do art. 1º da Lei de Ação Popular, Lei nº 4.717/65. Ademais, cumpre esclarecer que o Decreto-lei nº 20.910/32 regula a prescrição quinquenal das ações propostas contra o Poder Público, nada dispondo acerca das ações de ressarcimento, ajuizadas pelo Poder Público. 1. Prescrição no âmbito das ações de ressarcimento ao erário. Ressarcir o erário é recompô-lo do prejuízo sofrido por conta da prática de algum ato ilícito por parte de um agente, sendo a ação de ressarcimento o meio processual adequado para tanto. Nessa senda, dispõe o art. 37, § 5º, da Constituição Federal: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento” (grifo nosso). O § 6º do dispostivo supra, por sua vez, também trata do direito de regresso, sem, contudo, se referir à prescrição: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. À luz da Constituição e da legislação infraconstitucional pertinente, doutrina e jurisprudência extraem três entendimentos principais a respeito do tema, a saber: I) quaisquer ações de ressarcimento ao erário são imprescritíveis; II) não há previsão constitucional de imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário; e III) apenas as ações concernentes a danos ao erário decorrentes de ilícito penal ou ato de improbidade administrativa não prescrevem. 1.1. Imprescritibilidade de quaisquer ações de ressarcimento. Na doutrina, José dos Santos Carvalho Filho, adotando a tese da ampla imprescritbilidade das ações de ressarcimento de danos ao Patrimônio Público, expõe o seguinte: “De início, deve-se registrar não atinge o direito das pessoas públicas (erário) de reivindicar o ressarcimento de danos que lhe foram causados por seus agentes. A ação, nessas hipóteses, é imprescritível, como enuncia o art. 37, § 5º, da CF. Conquanto a imprescritibilidade seja objeto de intensas críticas, em função da permanente instabilidade das relações jurídicas, justifica-se sua adoção quando se trata de recompor o erário, relevante componente do patrimônio público e tesouro da própria sociedade[1]”. Esse é o entendimento majoritário na doutrina, defendido, dentre outros, por José Afonso da Silva; Maria Sylvia Zanella di Pietro; Celso Antônio Bandeira de Mello; Sérgio Monteiro Medeiros; Wallace Paiva Martins Júnior; Marcelo Figueiredo; José Adércio Leite Sampaio; José Jairo Gomes; Edilson Pereira Nobre Júnior; Waldo Fazzio Júnior; Diógens Gasparini; Celso Bastos; Alexandre de Moraes; Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves; e Fábio Medina Osório[2]. A maioria destes autores sustenta a tese da imprescritibilidade pelo simples fato de ser uma ressalva prevista constitucionalmente e, por isso, deve ser respeitada. Outrossim, é o entendimento predominante na jurisprudência do Pretório Excelso: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO. DANO AO ERÁRIO. ARTIGO 37, §5º, DA CF. IMPRESCRITIBILIDADE. PRECEDENTES. PRETENSÃO DE REJULGAMENTO DA CAUSA PELO PLENÁRIO E ALEGAÇÃO DE NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE DANO CONCRETO PARA SE IMPOR A CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO EM RAZÃO DO DANO CAUSADO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SUBMISSÃO DA MATÉRIA A REEXAME PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO, DETERMINANDO-SE O PROCESSAMENTO DO RECURSO OBSTADO NA ORIGEM. 1. O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência assente no sentido da imprescritibilidade das ações de ressarcimentos de danos ao erário. Precedentes: MS n.º 26210/DF, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, 10.10.2008; RE n.º 578.428/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe 14.11.2011; RE n.º 646.741/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe 22.10.2012; AI n.º 712.435/SP-AgR, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe 12.4.2012. 2. Agravo regimental. Pleito formalizado no sentido de submeter o tema a reexame do Plenário da Corte. Cabimento da pretensão, porquanto entendo relevante a questão jurídica e aceno com a necessidade de reapreciação da matéria pelo Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo regimental provido, determinando-se o processamento do recurso extraordinário obstado pelo Tribunal de origem. (AI 819135 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 28/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 16-08-2013 PUBLIC 19-08-2013). Na jurisprudência do STJ, também é o entendimento que atualmente prevalece: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Da leitura do art. 37, § 5º, da Constituição da República e do art. 23 da Lei 8.429/1992, infere-se que a prescrição quinquenal atinge os ilícitos administrativos e a punição contra os agentes públicos que lhe deram causa, deixando fora de sua incidência temporal as ações com vistas ao ressarcimento ao Erário, que, nos termos da jurisprudência desta Corte, são imprescritíveis. 2. Agravo regimental improvido. (grifou-se) (AgRg no AREsp 388.589/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/02/2014, DJe 17/02/2014). Neste mesmo sentido, impende colacionar o entendimento do Tribunal de Contas da União: “As ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis” (Súmula 282 do TCU). Portanto, constata-se que a doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que a pretensão da Administração Pública de reivindicar o ressarcimento dos danos causados ao erário é imprescritível, podendo a respectiva ação de ressarcimento ser ajuizada a qualquer tempo. Para tanto, invocam os princípios da indisponibilidade do interesse público, da supremacia do interesse público sobre o particular, bem como a própria interpretação literal do disposto na parte final do § 5º do art. 37 da CF, o qual ressalva as ações de ressarcimento do estabelecimento legal dos prazos de prescrição. 1.2. Prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário. Em sentido oposto ao acima exposto, há entendimento minoritário sustentando que a pretensão de ressarcimento dos danos causados ao erário também se submete aos prazos legais de prescrição. Aduzem que a parte final do disposto no §5º do art. 37 da CF/88 estaria pendente de regulamentação, de sorte que inexistente, até então, imprescritibilidade, devendo ser aplicado o prazo prescricional máximo previsto no Código Civil. Além do mais, sustentam que a tese da imprescritibilidade viola o princípio da segurança jurídica, que é uma garantia fundamental do cidadão, de sorte que a imprescritibilidade só poderia ser estabelecida expressa e taxativamente pela Constituição, a exemplo do estabelecido em relação ao racismo e à ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, incisos XLII E XLIV, da CF/88). Compartilham do entendimento supra, Ada Pellegrini Grinover; Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho; Clito Fornaciari Júnior; Elody Nassar; Marcelo Colombelli Mezzomo[3], dentre outros. Nesse sentido, o próprio Superior Tribunal de Justiça possui precedente antigo: “ADMINSTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINSTRATIVA. PRESCRIÇÃO. 1. A norma constante do art. 23 da Lei n. 8.429 regulamentou especificamente a primeira parte do §5º do art. 37 da Constituição Federal. À segunda parte, que diz respeito às ações de ressarcimento ao erário, por carecer de regulamentação, aplica-se a prescrição vintenária preceituada no Código Civil (art. 17 do C de 196)- REsp 601.961/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 21.08.07. (grifou-se) 2. Agravo regimental não provido.” (AgR no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 993.527 –SC, 2ª Turma, julgado em 19.08.2008). 1.3. Imprescritibilidade apenas das ações de ressarcimento concernentes a danos ao erário decorrentes de ilícito penal e/ou ato de improbidade administrativa. O terceiro entendimento invoca fundamentos sólidos para defender que a imprescritibilidade diz respeito apenas à pretensão decorrente de danos oriundos de ilícito penal ou improbidade administrativa. Um primeiro argumento é de que a reparação dos danos causados pelas infrações penais ou atos de improbidade administrativa não é uma sanção, mas sim um dever legalmente previsto, tanto na Legislação Penal e Processual Penal (art. 33, § 4º, e art. 91, inciso I, ambos do Código Penal; e art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal), como na Lei nº 8.429/92. No âmbito da improbidade, esclarece-se que a Lei nº 8.429/92 ao estabelecer em seu art. 23 os prazos prescricionais para as sanções pela prática de ato de improbidade não está em descompasso com o referido art. 37, eis que o ressarcimento é um consectário legal e lógico do dano causado e, reitere-se, não uma verdadeira sanção, não se lhe aplicando, portanto, os prazos de prescrição nela previstos para as respectivas sanções. Um segundo argumento, porém, ainda mais restritivo, é a posição topográfica do dispositivo que cuida da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, qual seja, logo após o dispositivo que se refere às sanções por ato de improbidade, ressaltando, ainda, a excepcionalidade das hipóteses de imprescritibilidade, de sorte que tão somente a pretensão atinente aos danos decorrentes de improbidade administrativa estaria acobertada pela imprescritibilidade. Nessa toada, expõe o i. Min. Teori Alvino Zavascki: “(…) Se a prescritibilidade das ações e pretensões é a regra – pode-se até dizer, o princípio -, a imprescritibilidade é a exceção, e, por isso mesmo, a norma que a contempla deve ser interpretada restritivamente. Nessa linha de entendimento, merece interpretação restritiva a excepcional hipótese de imprescritibilidade prevista no citado §5º do art. 37 da Constituição Federal. O alcance desse dispositivo deve ser buscado mediante a sua associação com o do parágrafo anterior, que trata das sanções por ato de improbidade administrativa. Ambos estão se referindo a um mesmo conjunto de bens e valores jurídicos, que são os da preservação da idoneidade da gestão pública e da penalização dos agentes administrativos ímprobos. Assim, ao ressalvar da prescritibilidade “as respectivas ações de ressarcimento”, o dispositivo constitucional certamente está se referindo não a qualquer ação, mas apenas às que busquem ressarcir danos decorrentes de atos de improbidade administrativa de que trata o § 4º do mesmo art. 37. Interpretação que não seja a estrita levaria a resultados incompatíveis com o sistema, como seria o de considerar imprescritíveis ações de ressarcimento fundadas em danos causados por seus agentes simples atos culposos”[4]. 1.4. Imprescritibilidade somente quando os danos decorrem diretamente da conduta do agente público. É de se notar, ainda, que há entendimento sustentando que as ações de ressarcimento de danos causados ao erário diretamente por agentes públicos seriam imprescritíveis, ao passo que em se tratando de danos causados por um agente público, dolosa ou culposamente, a um particular, pelos quais o Estado tenha respondido, a respectiva ação de ressarcimento contra o agente público prescreveria no prazo de 3 (três) anos, com fulcro no art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil[5]. Conclusão. Inegável, destarte, a diversidade de entendimentos e de argumentos utilizados para enfrentar a problemática ora estudada. A despeito disso, cumpre consignar que recentemente foi admitido pelo Pretório Excelso Recurso Extraordinário (RE 669069/MG), sob a sistemática da repercussão geral, cujo objeto é a presente problemática, o que levará em breve a consolidação do tema no âmbito das decisões judiciais, haja vista o caráter vinculante para o ordenamento jurídico nacional dos julgados do Supremo Tribunal Federal, sob a referida sistemática, delineada no art. 543-B do Código de Processo Civil. Enquanto isso não ocorre, cabe aos operadores do direito adotar a interpretação que confira a maior efetividade possível à Constituição e melhor tutele o patrimônio público, constantemente dilapidado, de modo a otimizar o atendimento das necessidades sociais. Nessa toada, o entendimento pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário é o mais adequado. Isso porque, o §5º, do art. 37 da CF/88, ao tratar da imprescritibilidade das ações de ressarcimento não faz nenhuma restrição acerca da natureza do ilícito causador do dano, se civil, penal ou administrativo, e tampouco exige regulamentação ao ressalvar expressamente as ações de ressarcimento, sendo, portanto, em sua parte final uma norma de eficácia plena. Ademais, soa equivocado o argumento de que seria imprescritível apenas as ações de ressarcimento ao erário relativas a danos decorrentes de atos de improbidade em razão da posição topográfica do citado § 5º, qual seja, logo após o § 4º, que trata dos atos de improbidade administrativa, uma vez que analisando os diversos parágrafos do art. 37, infere-se diversos temas distintos, mas todos dizendo respeito à Administração Pública. Logo, se for para interpretar por posição topográfica, deve-se levar em conta a imprescritibilidade das ações de ressarcimento de danos ao erário, num sentido amplo, considerando todos os danos decorrentes de quaisquer ilícitos contra a Administração Pública. Nada obstante, numa hipótese de dúvida quanto ao que realmente quis dizer o dispositivo constitucional em comento, considerar-se-ia o princípio “in dubio pro societatis” e os princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição, dada a relevância do erário para a viabilização de inúmeros direitos fundamentais e para o progresso social. Também não se pode desconsiderar que a imprescritibilidade das ações de ressarcimento de danos causados ao erário impede o seu malbaratamento e dilapidação em razão de inércia ou ação intempestiva, dolosa ou culposamente, dos agentes públicos responsáveis por buscarem o ressarcimento, bem como por conta do próprio trâmite burocrático existente na máquina estatal e das mudanças tulmutuadas de gestores públicos. Portanto, tal entendimento também é uma forma de concretizar o princípio constitucional da eficiência, que passou a ser previsto expressamente no caput do art. 37 por força da Emenda Constitucional nº 19/98. Dessa forma, pelo que se extrai do teor do §5º do art. 37 da CF/88 e tendo em vista o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, da supremacia e força normativa da constituição, da indisponibilidade do interesse público e da austeridade no trato do patrimônio público, a interpretação mais apropriada à efetiva e integral reparação dos danos ao patrimônio público é a de que toda e qualquer ação de ressarcimento por quaisquer danos causados ao erário é imprescritível, uma vez que a Constituição não estabeleceu restrição alguma na parte final do aludido dispositivo, seja em relação à natureza do ilícito cujos danos causados ensejariam pretensões imprescritíveis, seja quanto à exigência de lei regulamentando tal imprescritibilidade. Uma interpretação restritiva do aludido dispositivo constitucional, expressamente amplo e destinado à integral tutela do erário, contraria, outrossim, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, além dos princípios supramencionados, haja vista o relevante papel instrumental do patrimônio público para a implementação e concretização das políticas públicas previstas constitucionalmente, as quais são de fundamental importância para o gozo dos direitos fundamentais. Por fim, com base no princípio da convivência ou harmonização das liberdades públicas, é legítimo que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular mitigue o princípio da segurança jurídica em tais casos, haja vista sobressair o interesse da coletividade no ressarcimento dos danos causados ao erário, que certamente será beneficiada, não se tratando, portanto, de mero interesse secundário do Poder Público e sim de interesse primário. Ademais, nenhum direito fundamental é absoluto, o que permite a mitigação da segurança jurídica para assegurar a imprescritibilidade das ações de ressarcimento dos danos causados ao erário, por qualquer agente, servidor público ou não.
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O Processo Administrativo Disciplinar e as espécies procedimentais que instruem seu andamento
O presente trabalho visa analisar os institutos que a Administração Pública encontra para averiguar a responsabilidade sobre os atos de seus servidores. Estão entre os procedimentos disciplinares, os procedimentos investigativos: investigação preliminar, sindicância investigativa e sindicância patrimonial; e os procedimentos contraditórios: sindicância acusatória e os processos administrativos disciplinares ordinário e sumário. Verificando assim, as diversas especificidades desses institutos e sua aplicação no caso concreto.[1]
Direito Administrativo
Introdução O Processo Administrativo Disciplinar está inserido no ramo do Direito Administrativo chamado de Direito Administrativo Disciplinar. Este, por sua vez, possui a função de, através de uma série de regras de comportamento, organizar a relação existente entre a Administração Pública e seu quadro funcional. Constitui elemento essencial para que a Administração possa garantir o bom funcionamento de seu serviço mantendo a disciplina e ordem de seu corpo funcional. Os princípios que regem o Direito Administrativo Disciplinar são, basicamente, aqueles próprios do Direito Administrativo em geral, sendo eles: princípio do devido processo legal, segundo o qual qualquer ato a ser praticado deva ser previsto em lei; princípio da ampla defesa e do contraditório, que abre espaço para que o servidor justifique seus atos e se defenda; princípio do informalismo moderado, que desobriga o uso de procedimentos formais para o andamento do feito; princípio da verdade real, que exige da Administração atuação conforme os fatos tais como se apresentarem na realidade, e não como apresentados pelos sujeitos; princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade, exige a comprovação de culpa do servidor, e; princípio da motivação, que por sua vez, solicita da Administração a devida justificativa para a realização de suas condutas. No Direito Administrativo Disciplinar o servidor possui responsabilidade pelos seus atos, sendo que, esta responsabilidade se transformará de acordo com as condutas praticadas pelo funcionário. A Responsabilidade Administrativa corresponde àquelas condutas passíveis de punição decorrentes da ação ou omissão no âmbito das atribuições do servidor. A Responsabilidade Civil diz respeito aos danos causados pelo servidor decorrentes de seus atos, e o respectivo ressarcimento conseqüente desta conduta para que a Administração ou um terceiro prejudicado retornem ao estado em que se encontravam antes do dano causado por este servidor. Por fim, a Responsabilidade Penal deriva de condutas infringentes que consequentemente resultarão em sanções de âmbito criminal a este servidor e a respectiva condenação. Estas sanções poderão variar desde uma simples multa até uma pena privativa de liberdade. Com esta breve introdução a respeito do Direito Administrativo Disciplinar, avançaremos no tema deste artigo que visa a esclarecer as espécies de Procedimentos do Processo Administrativo Disciplinar. 1. Procedimentos Disciplinares São espécies comuns de Procedimentos Disciplinares que veremos neste item: os Procedimentos Investigativos, nos quais se faz meramente a investigação e averiguação de fatos ocorrentes na Administração Pública, sem que se faça necessário abrir espaço à ampla defesa e ao contraditório; e os Procedimentos Contraditórios, que em contraste com o procedimento anterior, realiza uma acusação ao servidor a fim de se aplicar uma punição, se constatada a conduta ilícita deste, devendo-se assim, obrigatoriamente, ocorrer a aplicação dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Vejamos estas espécies de Procedimento Disciplinares. 1.1. Procedimentos Investigativos Conforme breve análise anterior, os Procedimentos Investigativos correspondem, tão somente, à apuração se determinada conduta irregular veio a realmente acontecer ou não e, em caso afirmativo, constatar sua autoria. Pelo fato de não ocorrer nenhuma acusação nesta fase do processo, a Administração não deverá abrir espaço à aplicação dos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, visto que a finalidade primordial desta fase processual é a busca pelas reais informações. Ressalta-se que não se faz obrigatória a adoção de procedimentos investigativos por parte da Administração para que esta possa instaurar os procedimentos contraditórios. No entanto, a adoção de medidas investigativas na perspectiva de recolher o máximo de informações possíveis constitui efetiva ação da Administração na realização do Dever de Apurar, tendo em vista que estas informações constituirão elementos informativos prévios a uma possível sindicância contraditória. A consequência da adoção do Procedimento Investigatório será sempre a instauração de sindicância contraditória quando constatada a ocorrência de irregularidades suficientes para isto, ou o arquivamento do mesmo quando não for constatada nenhuma irregularidade. Outra peculiaridade do Procedimento Investigatório é que sua instauração não constitui interrupção do prazo prescricional concedido à Administração para que aplique as sanções administrativas as quais sejam cabíveis: “PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO. O processo administrativo disciplinar e a sindicância acusatória, ambos previstos pela lei nº 8.112/90, são os únicos procedimentos aptos a interromper o prazo prescricional”.[2] Passaremos agora a analisar os Procedimentos Investigativos em espécie, quais sejam: Investigação Preliminar, Sindicância Investigativa e Sindicância Patrimonial. 1.1.1. Investigação Preliminar A Investigação Preliminar é definida pela Controladoria-Geral da União como: “procedimento sigiloso, instaurado pelo Órgão Central e pelas unidades setoriais, com objetivo de coletar elementos para verificar o cabimento da instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar”.[3] Constitui Procedimento Preliminar com a finalidade de apurar desde já arquivamento ou abertura de um processo mais elaborado, como por exemplo, uma sindicância. A Investigação Preliminar terá prazo máximo de 60 dias para ser concluída, podendo ser tal período prorrogado por mais 60 dias. Finalizada, deverá ser arquivada mediante fundamentação dos pressupostos que motivaram tal ato, ou em caso de constatadas irregularidades, será aberto o inquérito disciplinar conveniente à continuidade do processo. Deverá ser conduzida por um ou mais servidores, sendo estes estáveis ou não, os quais deverão manter sigilo sob as atividades de investigação realizadas. Destaque para o fato de que não se exige Comissão Sindicante nesta modalidade, tendo em vista que sua função é evitar a abertura de um processo mais elaborado, qual seja uma Sindicância. Meireles explica melhor a situação: “Sindicância administrativa é o meio sumário de apuração ou elucidação de irregularidades no serviço para subsequente instauração de processo e punição ao infrator. Pode ser iniciada com ou sem sindicado, bastando que haja indicação de falta a apurar. Não tem procedimento formal, nem exigência de comissão sindicante, podendo realizar-se por um ou mais funcionários designados pela autoridade competente. Dispensa defesa do sindicado e publicidade no seu procedimento, por se tratar de simples expediente de apuração ou verificação de irregularidade, e não de base para punição equiparável ao inquérito policial em relação à ação penal”.[4] Havendo divergência nas conclusões, serão proferidos votos, através de relatórios, de modo que a autoridade competente tomará sua decisão a partir da avaliação destes relatórios. 1.1.2. Sindicância Investigativa A mesma portaria da CGU define a Sindicância Investigativa, Preparatória, ou Inquisitorial como sendo: “Procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar, sendo prescindível de observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa”.[5] Não existe um rito a ser seguido na Sindicância Investigativa, sendo assim, a autoridade instauradora e os sindicantes gozam de liberdade para desempenharem suas atividades como melhor entenderem. As únicas observações que devem seguir são as mesmas vistas no tópico anterior, deve-se manter sigilo perante as atividades que desempenharem e as informações que apurarem, deve-se manter caráter meramente investigativo, sem qualquer pretensão de punição, além disso, dispensa-se a aplicação constitucional dos princípios do contraditório e da ampla defesa. De forma semelhante à Investigação Preliminar, ocorrendo divergência de conclusões, serão proferidos relatórios que auxiliarão na decisão da autoridade competente. Aqui o prazo para conclusão dos relatórios é de 30 dias, prorrogáveis por igual período. A autoridade, com base nas informações e relatórios obtidos na Sindicância Investigativa, decidirá pelo arquivamento do feito, ou pela instauração de Sindicância Contraditória ou Processo Administrativo Disciplinar. 1.1.3. Sindicância Patrimonial A sindicância Patrimonial se assemelha aos demais Procedimentos Investigativos já analisados no que tange ao sigilo, à não punitividade, à precedência dos princípios da ampla defesa de do contraditório e à finalidade de reunir informações de modo a auxiliar na instauração de Processo Administrativo Disciplinar ou Sindicância Contraditória, ou em caso negativo, providenciar a baixa do feito. Diferencia-se dos demais procedimentos devido ao fato de possuir escopo delimitado, constituindo um instrumento preliminar de apuração de enriquecimento ilícito através de infração administrativa, mediante estrita análise do desenvolvimento patrimonial do agente público. De acordo com a Lei de Improbidade Administrativa, constitui enriquecimento ilícito: “adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público”.[6] Será instaurada a Sindicância Patrimonial a partir de portaria emitida pela Administração, constando dos servidores que irão compor a Comissão Sindicante, o prazo para conclusão do feito e o número do processo no qual estão os fatos meios pelos quais se realizará a apuração. O objeto a ser apurado através da Sindicância é eminentemente patrimonial, constatando-se suas rendas e dívidas, bens e valores que venham a ser inseridos no histórico patrimonial. Interessante destacar que a Administração poderá contar com o auxílio dos Cartórios de Registros Imobiliários, de Títulos e Documento, Departamentos de Trânsito, Juntas Comerciais, Capitania dos Portos, etc. A Comissão Sindicante deverá ser composta por dois ou mais servidores, podendo estes ser estáveis ou não. O prazo para conclusão do procedimento de Sindicância Patrimonial será de 30 dias, podendo ser prorrogado por igual período. É facultado à Administração dar voz ao sindicado para que este justifique o desenvolvimento patrimonial que resultou na instauração da Sindicância. A Administração Pública contará com o auxílio da quebra dos sigilos fiscal do sindicado, sem que seja necessário que se acione o Poder Judiciário para obtenção de tais informações. É o que dispões o Art. 198 do Código Tributário Nacional: “Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação ob-tida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. § 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. § 2o O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo”.[7] Quanto ao sigilo bancário, a Administração deverá contar com prévia autorização do Poder Judiciário, conforme Art. 3º, §1º, da Lei Complementar nº 105/2001: “Art. 3º Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide. § 1o Dependem de prévia autorização do Poder Judiciário a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada a apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido”.[8] A Comissão Sindicante deverá comprovar a necessidade e relevância da quebra do sigilo bancário do sindicado para que obtenha as informações que julgarem pertinentes. Ressalta-se que antes de solicitar a quebra dos sigilos do sindicado, recomenda-se que a Comissão Sindicante solicite do próprio sindicado a renúncia de seus sigilos fiscais e bancários, de modo que ele mesmo apresente as informações necessárias à Comissão. Reunidos todos os dados necessários para a apuração da ocorrência ou não do enriquecimento ilícito, a Comissão Sindicante deverá emitir relatório explicitando se o acréscimo constatado no patrimônio do sindicado decorreu de uma evolução natural ou de meios ilícitos. Deste relatório a autoridade competente decidirá se deverá ser instaurado Processo Administrativo Disciplinar, em caso de comprovação de enriquecimento ilícito, ou arquivamento do feito, na hipótese de negativa de enriquecimento ilícito e comprovação de evolução patrimonial natural. 1.2. Procedimentos Contraditórios 1.2.1 Sindicância Acusatória A sindicância acusatória, também chamada de sindicância punitiva, é o procedimento para apurar responsabilidade de menor gravidade, ou seja, de menor potencial ofensivo, devendo ser respeitado o princípio do devido processo legal, através da ampla defesa, do contraditório e da produção de todos os meios de provas admitidos em direito.[9] A Controladoria-Geral da União, através da Portaria-CGU nº 335/06, expõe sua definição no art. 4º: Art. 4° Para os fins desta Portaria, ficam estabelecidas as seguintes definições: III – sindicância acusatória ou punitiva: procedimento preliminar sumário, instaurada com fim de apurar irregularidades de menor gravidade no serviço público, com caráter eminentemente punitivo, respeitados o contraditório, a oportunidade de defesa e a estrita observância do devido processo legal.[10] Nos termos de José Cretella Júnior, a Administração do Brasil se utiliza da sindicância como meio sumário para apurar as ocorrências irregulares no serviço público, que caso sejam confirmadas, tem como finalidade a instauração do processo administrativo contra o funcionário público responsável, utilizando-se dos elementos concretos fornecidos pela sindicância.[11] Através de sua definição, resta clara que a sindicância se divide em dois tipos, a punitiva (acusatória) e a sindicância investigativa (preparatória). Para que se tenha o regular andamento do processo, se faz necessária a observância do tipo de sindicância utilizado na fase instrutória do procedimento, para que seja adequado conforme o instrumento utilizado. No caso do processo acusatório ou punitivo, se a comissão não respeitar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pode ocorrer a invalidade de seu relatório final por declaração de nulidade pela própria Administração Pública ou Poder Judiciário. Neste tipo de sindicância, deve-se observar as etapas do rito ordinário do processo administrativo disciplinar (inquérito administrativo: instrução, defesa e relatório), além da comissão ser composta por dois ou mais servidores estáveis. De forma diversa acontece na sindicância investigativa, a qual não possui etapas pré-definidas, não é assegurado o contraditório e a ampla defesa, admite-se a pluralidade de sindicantes e dispensa-se a existência de autoria e materialidade definidas. Este tipo de sindicância se configura como procedimento preparatório para a instauração de processo administrativo disciplinar ou sindicância punitiva ( constatado materialidade e possível autoria), ou até para propositura de arquivamento da denúncia (inexistindo indícios de irregularidades ou ausente suspeito). A primeira turma do STF ao julgar o RMS nº 22.798/DF, evidenciou a diferença dos dois tipos de sindicância, conforme: EMENTA: "[…] o processo administrativo não pressupõe necessariamente a existência de uma sindicância, mas, se o instaurado for a sindicância, é preciso distinguir: se dela resultar a instauração do processo administrativo disciplinar, é ela mero procedimento preparatório deste, e neste é que será imprescindível se dê a ampla defesa do servidor; se, porém, da sindicância decorrer a possibilidade de aplicação de penalidade de advertência ou de suspensão de até 30 dias, essa aplicação só poderá ser feita se for assegurado ao servidor, nesse procedimento, sua ampla defesa. (RMS 22789, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 04/05/1999, DJ 25-06-1999 PP-00045 EMENT VOL-01956-02 PP-00245)[12] Importante, lembrar que o art. 143 da Lei nº 8.112/90 assegura a apuração de irregularidades no serviço público por meio de sindicância ou processo administrativo disciplinar, estando assegurado a ampla defesa ao assegurado. Conforme: Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.[13] A sindicância não é pressuposto para o processo disciplinar, mas caso seja instaurado, deve se observar o princípio do contraditório e ampla defesa e caso não seja respeitado tais princípios, se configurará como mera sindicância investigativa, ou seja, mero procedimento preparatório do processo administrativo disciplinar. Nesta hipótese, as informações obtidas na sindicância servem para que seja instaurado o processo administrativo disciplinar, e caso haja possíveis defeitos da sindicância, esses defeitos não possuem o poder de macular a imposição da pena ao servidor, tendo em vista que a pena é atribuída através das provas colhidas no inquérito integrante do processo. A sindicância se exterioriza apenas como elementos informativos do processo disciplinar, e assim, a legalidade do processo disciplinar independe de sua validade, podendo até ser apensado aos autos do processo. As provas documentais ter-se-ão como válidas, uma vez ofertada a vista ao acusado. Diferentemente ocorre com as provas orais, pois só serão válidas se possibilitado a participação do acusado na tomada de depoimentos, senão deverão ser refeitos no processo. Cabe ressaltar que depende do conteúdo informativo da sindicância, ou seja, em caso de sindicância inquisitoriais ou patrimoniais que resultarem na instauração do processo administrativo disciplinas, os atos da instrução probatória deverão ser refeitos, pela não observância do princípio do contraditório e ampla defesa. Sendo assim, no caso de sindicância punitiva, se observado tais princípios, a comissão poderá ratificar os atos. 1.2.1.1 Fases da Sindicância Acusatória As fases da sindicância acusatória estão dispostas na Lei nº 8.112/90, seguindo as mesmas fases do processo administrativo disciplinar. A lei nada dispõe a respeito dos procedimentos específicos da sindicância, restando à doutrina e jurisprudência a premissa de estabelecer, uma vez necessário respeitar o princípio da legalidade. Como forma de solução, dividiram a sindicância em duas, entre sindicância investigativa e sindicância contraditória. Neste caso, cabe salientar apenas sindicâncias acusatórias, uma vez que a investigativa carece de rito definido, por inexistir caráter punitivo e pela inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O início do processo de sindicância acusatória se dá pela publicação de portaria de instauração por autoridade responsável. A portaria deve conter alguns elementos indispensáveis, como os nomes dos sindicantes, o prazo para a conclusão e o número do processo que remete aos fatos apurados; e não deve indicar os fatos sob apuração, nem os nomes dos investigados, para que não se restrinja a apuração, bem como para garantir o respeito à imagem dos acusados. Após publicação de portaria, a fase instrutória do processo terá inicio. A comissão conduzirá o processo e deverá notificar o acusado (sindicado), observando o princípio do contraditório e ampla defesa. Os membros da comissão deverão realizar suas atividades com independência e imparcialidade, evitando a aplicação de penalidade injusta ao acusado ao decorrer do processo e garantindo o sigilo para a elucidação do fato cometido. Na busca da verdade material e respeito ao art. 155 da Lei nº 8.112/90, a comissão deverá buscar elucidar os fatos através de provas materiais e testemunhais, utilizando-se da tomada de depoimentos, acareações, investigações e diligências cabíveis, e quando necessário, o uso de técnicos e peritos. A comissão deve registrar suas deliberações em ata e a fase instrutória terá seu fim na entrega do termo de indiciação ao sindicado ou com o relatório final, sugerindo o arquivamento. No caso de indiciação de uma pessoa, o prazo para apresentar defesa escrita será de dez dias, caso haja pluralidade de indiciados, o prazo será comum de vinte dias. Após apresentação da defesa escrita, há a elaboração do relatório final, devendo ser detalhado, conter os autos e indicar as provas pelas quais o relatório possui fundamentação, determinando assim, a inocência ou a responsabilidade do sindicado.[14] Após o relatório final, já em ultima fase, a autoridade deverá proferir decisão final, no prazo de vinte dias, contado do recebimento dos autos. Esta decisão será proferida por livre convencimento e será levado em consideração diversos elementos, tais como: enquadramento dos fatos, a tipificação do ilícito, as provas testemunhais e documentais, a defesa e o relatório. A decisão proferida pela autoridade poderá sofrer revisão, observado os termos do art. 182, da Lei nº 8.112/90. Conforme: Art. 182. Julgada procedente a revisão, será declarada sem efeito a penalidade aplicada, restabelecendo-se todos os direitos do servidor, exceto em relação à destituição do cargo em comissão, que será convertida em exoneração. Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento de penalidade. 1.2.1.2 Composição da Comissão O art. 149 da Lei nº 8.112/90 tem abertura para duas interpretações, tanto aquela que a comissão deverá ser composta por três membros estáveis, como aquela de que apenas o processo administrativos disciplinar traz a necessidade de três membros. A escassez de servidores para compor comissões de sindicância e de processo administrativo disciplinar, faz com que seja admitido a composição de comissões por apenas dois membros. A Controladoria-Geral da União já se manifestou quanto a contradição, pacificando a questão em seu art. 12, § 2º, da Portaria CGU nº 335/06: Art. 12. As comissões de sindicância e de processo administrativo disciplinar instauradas pelo Órgão Central e pelas unidades setoriais serão constituídas, de preferência, com servidores estáveis lotados na Corregedoria-Geral da União. § 2º No caso de sindicância acusatória ou punitiva a comissão deverá ser composta por dois ou mais servidores estáveis.[15] É necessário, também, que se respeite a regra da hierarquia funcional, dessa forma, o presidente do colegiado necessariamente terá que ter nível de escolaridade igual ou superior ao do servidor sindicado. 1.2.1.3 Prazos da Sindicância A sindicância deverá ser concluída em 30 dias, podendo ser prorrogada por igual período, conforme preceitua o art. 145, parágrafo único, da Lei nº 8.112/90. Nesse mesmo sentido converge o art. 15º, §5°, da Portaria CGU nº 335/06. Porém a comissão poderá prorrogar esse prazo, podendo designar novamente comissão, conforme achar necessário, podendo ser os mesmos ou novos membros, respeitando sempre os princípios da eficiência, economicidade, duração razoável do processo. A instauração da sindicância interrompe o prazo prescricional, assim como o processo administrativo disciplinar. Conforme art. 142, § 3º e § 4º, Lei nº 8.112/90.  Art. 142. § 3o A abertura de sindicância ou a instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, até a decisão final proferida por autoridade competente. § 4o Interrompido o curso da prescrição, o prazo começará a correr a partir do dia em que cessar a interrupção.[16] 1.2.1.3 Desnecessidade de Instauração da Sindicância Acusatória Previamente ao Processo Administrativo Disciplinar O processo administrativo disciplinar é gênero, que comporta as espécies de processo administrativo disciplinar e sindicância contraditória. A Lei n. 8.112/90 de que trata o processo administrativo disciplinar como espécie, nada diz respeito quanto ao rito específico da sindicância, utilizando de maneira análoga a do processo administrativo disciplinar. A sindicância possui o condão de resultar tanto em arquivamento do processo, quando em aplicação de penalidade de advertência ou suspensão por até 30 dias e instauração de processo administrativo disciplinar. Tanto a proposta de arquivamento, quanto a instauração do processo administrativo disciplinar pode se originar de sindicância investigativa ou de sindicância acusatória. A sindicância investigativa serve essencialmente para delimitar eventual autoria ou materialidade, ou seja, investigar o conteúdo denunciativo, enquanto a sindicância acusatória surgirá de um juízo de admissibilidade perante os indícios da materialidade do fato ou da possível autoria já presentes. Ambos os tipos de sindicância são autônomos e dependem do caso concreto para sua instauração, sendo assim, independe o processo administrativo disciplinar de sindicância contraditória prévia. Cabe ressaltar que a diferenciação quanto a sua utilização está na premissa de que a sindicância acusatória cabe na averiguação de fatos não graves e com penalidades que não se faz necessário processo administrativo disciplinar. Caso no curso da instrução probatória se verifique maior gravidade, a autoridade poderá de pronto requerer a instauração de processo administrativo disciplinar. 1.2.2 Processo Administrativo Disciplinar sob o Rito Sumário O acréscimo do rito sumário ocorreu com a Lei nº 9.527/97. Essa lei trouxe a previsão de uma terceira espécie de processo administrativo, o processo administrativo sumário, previsto nos arts. 133 e 140. Esta nova espécie de processo administrativo somente é aplicável nos casos de acumulação ilegal de cargos, abandono de cargo e inassiduidade habitual. O rito sumário possui algumas especificidades, tais como: prazos reduzidos, a prévia explicitação da materialidade do possível ilícito logo na portaria. Apesar de não previsto na lei produção de provas além das documentais, o STJ entende ser admissível, quando surja a necessidade do acusado produzir provas testemunhais ou periciais, pois se trata do respeito ao princípio da ampla defesa. As fases processuais também são diferentes da do rito ordinário. A fase inicial do processo recebe o nome de instauração e se dá pela publicação do ato, que constitui de pronto constitui comissão, composta por dois servidores estáveis, e já indicará a autoria e materialidade do possível ilícito administrativo. A fase de instrução sumária do processo comporta a indiciação do acusado, a defesa e o posterior relatório da comissão, sendo julgado posteriormente por autoridade competente, no prazo de 5 dia, contado do recebimento dos autos. A fase apuratória deverá se desenvolver em no máximo 30 dias, podendo haver prorrogação por mais 15 dias, conforme texto do art. 133, §7º da Lei nº 8.112/90. Importante ressaltar que as normas do processo disciplinar ordinário aplicam-se subsidiariamente ao procedimento sumário, assim expõe o art. 133, §8º, da Lei nº 8.112/90, e supletivamente a Lei nº 9.784/99. 1.2.3 Processo Administrativo Disciplinar sob o Rito Ordinário As fases do processo administrativo do rito ordinário estão divididas em: instauração, inquérito administrativo e julgamento. A instauração, se dá pela publicação da portaria pela autoridade que já designa os membros para comporem a comissão, estipula o prazo de conclusão, demonstra o processo do ilícito administrativo a se apurar, e a possibilidade de apurar fatos conexos. Não expõe de forma expressa os fatos sob apuração, nem os nomes dos investigados. O inquérito administrativo, é dividido em: instrução, defesa e relatório. Na instrução, a comissão realiza a busca de provas necessárias, como o documental e o testemunhal e indica ou forma sua convicção pela absolvição do acusado. Se for indiciado, realizará a citação, abrindo o prazo legal para apresentar a defesa escrita. Na produção, é emitido pela comissão o relatório final conclusivo, inocentando ou não o indiciado, de forma fundamentada e justificando a decisão. Estas etapas são realizadas pela comissão. A fase de julgamento, é realizado pela autoridade instauradora do processo, se a mesma não possuir competência, será realizado por quem a tiver, de acordo com a proposta de penalidade recomendada pelo colegiado. A autoridade competente tem o prazo de vinte dias para julgar, a contar da data do recebimento do relatório final, podendo assim, divergir ou não do entendimento da comissão, uma vez que é regido pelo livre convencimento, podendo motivadamente agravar, abrandar ou isentar o servidor da responsabilidade e penalidade prevista no relatório final. Conclusão Dessa forma, temos que os diversos institutos do Processo Administrativo Disciplinar, possuem a prerrogativa de manter o bom funcionamento da Administração Pública e a ordem de seu corpo funcional. Seguindo os princípios Constitucionais e do Direito Administrativo, a Administração Pública estabelece as formas de atribuição da responsabilidade dos servidores pelos seus atos. São diversos os procedimentos disciplinares, sendo eles os procedimentos investigativos (comportando a investigação preliminar, a sindicância investigativa, a sindicância patrimonial) e os procedimentos contraditórios (comportando a sindicância acusatória e os processos administrativos disciplinares ordinário e sumário). Conforme análise, resta demonstrado a especificidade de cada instituto, como a necessidade de ser observado os princípios do contraditório e ampla defesa nos procedimentos contraditórios, e a dispensa de tais princípios nos procedimentos investigativos, dispensando-se a abertura para o acusado apresentar defesa escrita. Por fim, a necessidade da adequação do procedimento depende exclusivamente do caso concreto, uma vez que diferem em suas peculiaridades, quanto as fases processuais, prazos e possibilidade de produção de provas. Além de depender da gravidade do ilícito administrativo para que seja necessário ou não a abertura de sindicância prévia para a instauração de processo disciplinar e o procedimento a ser adotado.
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A importância da participação popular através dos conselhos municipais na formulação e aplicação de políticas públicas no âmbito local
Este artigo analisa a Gestão Pública Municipal brasileira, a partir do enfoque da participação popular na formulação das políticas públicas, legitimada com o processo de democratização trazido pela Constituição Federal de 1988, em que se destacou a ampliação da cidadania e da própria democracia nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal). Através desta perspectiva, os Conselhos Municipais aparecem como espaços públicos que permitem a interação entre a sociedade civil e o Estado, proporcionando uma maior proximidade entre os cidadãos e seus gestores locais. As conclusões apontam para uma maior transparência na condução da administração pública local, por meio da co-gestão. [1]
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O Estado Democrático de Direito preconizado pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), criou espaços públicos em que a população participa do processo de formulação das políticas públicas brasileiras: são os conselhos gestores, que exercem o papel de um canal de ligação entre os anseios da população e os seus gestores locais, permitindo uma cooperação na definição das políticas públicas. Com a atuação da população nessas políticas, há um fortalecimento da autonomia dos municípios e da intervenção social, e um ambiente para mudanças no modo de pensar e agir dos cidadãos, que adquirem uma consciência da importância de sua colaboração na política do seu Município, tornando-se aptos para intervir na deliberação de seus interesses frente ao Estado. (ROCHA, 2011) Assim, com o pleno funcionamento dos Conselhos Municipais, empodera-se a governança local (interação entre o governo e a sociedade sob uma ótima democrática) e redefine-se a cultura política brasileira, sendo imprescindível o esforço da população em fazer parte do processo decisório nas políticas públicas, fortalecendo a cidadania, com tomada de decisões, controle dos recursos públicos, respeito aos princípios que regem a Administração Pública e defesa da qualidade de vida de todos os cidadãos. A participação social na gestão pública municipal deve ser utilizada como um meio de influenciar e contribuir na construção das políticas públicas locais, através da relação entre os diversos atores sociais e o Estado. Dessa forma, faz-se imprescindível analisar a importância da participação dos cidadãos na elaboração e aplicação das políticas públicas municipais, através dos Conselhos Municipais, evidenciar que todo indivíduo tem o direito de participar ativamente do processo de formulação e aplicação das políticas públicas de seu município e, por fim, avaliar os Conselhos Municipais como uma das formas de participação popular na gestão pública municipal. Essas avaliações foram realizadas a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental, com acesso a livros, periódicos, artigos científicos, sítios eletrônicos, etc, visando à construção de uma análise reflexiva a respeito. Além disso, foi realizado um levantamento nos registros do Município de Ilhéus, estado da Bahia, para verificação do estado atual de funcionamento dos Conselhos previstos em Lei Municipal. 1. GESTÃO PÚBLICA NO BRASIL E SUA TRAJETÓRIA HISTÓRICA A gestão pública brasileira contemporânea apresenta traços de quatro momentos históricos da administração pública: o modelo patrimonialista, o burocrático, o gerencial e o pós gerencial, sendo que, neste último, há uma valorização da democracia participativa. Esses modelos levam em conta as mudanças sociais ocorridas no país, buscando se aperfeiçoar de acordo com as necessidades e deficiências deixadas pelo modelo anterior, e destacando a real função do Estado e dos instrumentos adotados para a sua organização. (BRESSER-PEREIRA, 1996). O modelo patrimonialista, vigente no Brasil nos períodos colonial, imperial e em parte do republicano, tratava a gestão pública como um instrumento para atender as necessidades dos governantes, os quais consideravam o Estado como uma extensão do seu patrimônio, havendo uma confusão entre a coisa pública e a privada (patrimonialismo). Ele foi historicamente facilitado pelo coronelismo e pelas fraudes eleitorais, tornando o governo um patrimônio do governante, e não uma estrutura a serviço do interesse público. Ainda, o espaço público era utilizado como forma de troca de favores pessoais ou relações de clientela, o chamado clientelismo. (ROCHA apud ARRUDA NETO, 2010) A gestão pública, assim, foi tratada como assunto pessoal do gestor, exercendo-a em função de seus interesses privados, com a concentração de poder em sua figura, dando margem ao surgimento da corrupção e do nepotismo. Com o advento do capitalismo e das democracias, no século XIX, surge o modelo burocrático para suprir o patrimonialista, que apresentou como princípios a impessoalidade, a hierarquia funcional, o formalismo, o conceito de carreira pública, a profissionalização do servidor público, a separação entre bens públicos e privados, etc. Vindo depois de um histórico nepotista e clientelista, apresentou controles rígidos e prévios em todos os processos, como por exemplo, na contratação de servidores, na de produtos e serviços, e no atendimento ao cidadão. (WEBER, 2004) Após as duas guerras mundiais do século XX, que trouxeram recessão a muitos países, os Estados se viram na obrigação de se reestruturar política, econômica e socialmente. Assim, surgiu o Estado Social, que tinha como deveres o acesso da população à educação, saúde, moradia, etc. O modelo gerencial apareceu como uma forma de correção da burocracia, que não atendia às demandas da sociedade. Esse modelo propõe um aumento na qualidade dos serviços prestados à população, uma redução de custos públicos, uma descentralização dos serviços públicos, e, principalmente, um aumento da governança do Estado, isto é, da sua capacidade de gerenciar com efetividade e eficiência, obtendo o máximo de resultados concretos com a utilização do mínimo de recursos. O cidadão então passa de mero expectador, para ser parte integrante do Estado, o beneficiário dos serviços públicos. No Brasil, o marco legal desse processo foi a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/1998, baseada nos estudos do então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), Luiz Carlos Bresser-Pereira, que visava dar maior autonomia de decisão ao gestor público, distanciando-se das tendências autoritárias do modelo burocrático e consolidando a democracia dentro das organizações públicas. Dessa forma, o modelo gerencial destaca três dimensões de reforma: institucional, cultural e de gestão. A dimensão institucional é composta pelas mudanças necessárias à legislação voltada à administração pública, a cultural é baseada na mudança de valores burocráticos para valores gerenciais, e a dimensão gestão visa concretizar as ideias gerenciais, oferecendo à sociedade serviços públicos mais eficientes e mais baratos, controlados e com melhor qualidade. (SILVA, 2013). A reforma gerencial dividiu as atividades do Estado em duas categorias: atividades exclusivas e não exclusivas. As primeiras pertenceriam ao domínio do núcleo estratégico do Estado, composto pela Presidência da República e seus Ministérios, abrangendo a legislação, regulação, fiscalização e formulação das políticas públicas; já as não exclusivas seriam os serviços de caráter competitivo, como os serviços sociais (saúde, assistência social, educação) e científicos que seriam prestados tanto pela iniciativa privada como pelas organizações sociais. E as atividades auxiliares de apoio, como limpeza, transporte, serviços técnicos, seriam submetidas à licitação pública e terceirizadas. Desse modo, houve uma descentralização da execução de diversas atividades públicas, que acabou fragmentando o aparelho do Estado, levando o modelo gerencial à crise a partir do final dos anos 1990. (BRESSER-PEREIRA, 1996) A lógica de funcionamento gerencial revelou-se incompatível com o interesse público, pois para assegurá-lo, era preciso restringir o poder discricionário dos gestores e ainda determinar as responsabilidades gerenciais antes do processo de tomada de decisão. No modelo gerencial, houve uma manutenção do caráter autoritário do processo político, uma inadequação das técnicas utilizadas pela administração gerencial no setor público, um aumento de dificuldades e gastos relacionado à fiscalização e controle das atividades terceirizadas, violando o princípio da eficiência. Diante de tal cenário, surgiu a necessidade de se discutir um novo modelo de gestão pública, o denominado modelo pós-gerencial, societal, democrático e que valoriza a participação popular nos processos políticos. Tal modelo possui três fundamentos: o econômico-financeiro, relacionado aos problemas financeiros e aos investimentos estatais, abarcando questões de natureza fiscal, tributária e monetárias; o institucional-administrativo, que se relaciona com os problemas de organização e articulação dos órgãos estatais (dificuldades de planejamento, direção, controle e profissionalização dos servidores públicos); e o fundamento sociopolítico, que abrange a relação entre o Estado e a sociedade, os direitos de cidadania e, especificamente, o de participar da gestão pública. (PAES DE PAULA, 2005) O modelo pós-gerencial incorpora uma gestão dialógica, uma escuta recíproca, em que há trocas de experiências entre gestores e sociedade, a busca de um consenso e uma renovação do perfil desses gestores públicos, estruturando uma democracia participativa. Porém, o modelo burocrático, baseado no formalismo, na existência de normas e na rigidez de procedimentos, presente na Constituição Federal de 1988, ainda predomina atualmente na gestão pública brasileira, onde se verifica uma rigidez burocrática, inflexível diante das necessidades sociais mutáveis, mostrando, portanto, uma ineficiência desse modelo de gestão, o qual depende de coordenação e controle, nem sempre possíveis de serem concretizados, devido ao excesso de regulamentos e intervenções estatais, e que acarretam, portanto, uma morosidade na prestação dos serviços públicos. 1.1  A democracia participativa constitucional na atual gestão pública Na prática, a gestão pós-gerencial transfere a soberania do Estado para a Constituição, e devido a isso, deve ser compreendida como uma democracia participativa constitucional, sendo, portanto, compatível com o sistema normativo vigente no país. Ela abrange inúmeros instrumentos de participação da sociedade na gerência da coisa pública, a exemplo de fóruns temáticos, debates, conselhos gestores de políticas públicas, orçamento participativo, audiências públicas, etc. A democracia participativa, do ponto de vista normativo, está prevista no artigo 1º, parágrafo único, segunda parte da CF/88, que determina que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Como desdobramentos dessa determinação constitucional, citam-se os direitos políticos, definidos como o conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular, nos termos do artigo 14 da CF/88. Desse modo, tem-se como direitos políticos o direito de sufrágio, a alistabilidade, a elegibilidade, a iniciativa popular de lei, a ação popular, a organização e participação de partidos políticos, constituindo-se em elemento de democracia direta na produção legislativa. Segundo Vitale (2008), com base no artigo 1º da CF/88, surgiram diversas previsões acerca da democracia participativa: abordando o âmbito do Poder Executivo, pode-se afirmar que a CF/88 estabelece uma relação entre participação e direitos sociais. Na esfera da seguridade social, por exemplo, a Constituição prevê o “caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados” (art. 194, VII); na da assistência social, o texto constitucional refere-se à “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (art. 204, II). Na educação, estipula a “gestão democrática do ensino” como um princípio, acrescido da expressão “na forma da lei” (art. 206, VI). No setor da cultura, a “participação da comunidade” foi prevista para a proteção do patrimônio histórico e cultural (art. 216, § 1º). Além dessas políticas setoriais, a CF/88 trouxe ainda o envolvimento da sociedade civil nas políticas de natureza mais abrangente, como planejamento municipal, política urbana e gestão pública em geral. Há a determinação da participação do usuário na Administração Pública Direta e Indireta em seu art. 37, § 3º, e a cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII), o qual foi ampliado com a promulgação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que estabelece diretrizes gerais da política urbana. E, no âmbito do Poder Judiciário, a participação popular é garantida tanto no acesso a este poder, por meio da ação popular (art. 5º, LXXIII), como na competência que lhe é conferida para julgamento de determinados crimes, com o estabelecimento do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII). Esses instrumentos de participação poderão ser melhor visualizados no quadro 1: Dessa forma, o princípio da democracia participativa é amplamente amparado pela CF/88, não se tratando de um rol taxativo, e sim de um sistema aberto a outras formas de participação popular. A sociedade tem o direito de participar efetivamente da gestão da coisa pública, exteriorizando seus interesses e necessidades. A democracia participativa é um fator de legitimidade do poder político e estrutura do princípio da transparência, diminuindo a distância entre o bem comum e os seus destinatários. (PIMENTA, 2007) É natural que, sendo a coisa pública, aqueles que a administram prestem contas à sociedade, constituindo-se em direito de todos os administrados a legitimidade da exigência de que o bem público seja finalisticamente utilizado somente para o atendimento do interesse da sociedade. A qualidade da democracia pode ser medida pela participação popular encontrada em cada sociedade que permite ao cidadão comum inserir-se nos processos de formulação, decisão e implementação das políticas públicas, e desta forma, “quanto mais direto for o exercício do poder político, mais acentuada será a capacidade democrática das instituições políticas, cujas decisões estarão mais próximas de traduzir a genuína vontade popular”. (DIAS apud VIGLIO, 2004, p. 18) E, para se alcançar uma maior efetividade, os gestores públicos precisam viabilizar a integração entre o Estado e a coletividade, abrindo espaço para uma consciência política geral, tanto por parte dos próprios gestores como da população. O Estado vem, cada vez mais, deixando claro que necessita da colaboração da sociedade para superar problemas de políticas públicas. Novas mudanças são introduzidas com a democracia representativa e a necessidade de se aprofundar os processos de participação social e política, como expressa Gohn (2011): “(…) a dimensão e o significado desta mudança são enormes porque não se trata apenas de ‘introduzir o povo’ em práticas de gestão pública, como preconizava as propostas da democracia com participação comunitária nos anos 80, quando a idéia da participação vinculava-se à apropriação simples de espaços físicos. Trata-se agora de mudar a ótica do olhar, do pensar e do fazer; alterar os valores e os referenciais que balizam o planejamento e o exercício das práticas democráticas.” (GOHN, 2002, p. 07) Nesse contexto, a participação dos interesses coletivos passa a significar também participar do governo da sociedade, disputar espaços de definição e gestão das políticas públicas, questionar o monopólio do Estado como gestor da coisa pública, afirmando a importância do controle social sobre o Estado, pela democracia participativa, por meio de uma cogestão, promovendo a passagem da antiga cultura de favores (clientelismo) a uma cultura de direitos. Dessa forma, para a concretização dessa cultura de direitos, faz-se imprescindível o acesso do cidadão à informação da medida em seus direitos são protegidos pelo Estado e de que forma ele pode acionar o Poder Público na defesa desses direitos, apresentando e debatendo propostas, deliberando sobre elas, enfim, efetivando a cidadania e proporcionando a instalação de uma sociedade mais justa e igualitária. 2.  A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO PÚBLICA A participação popular na gestão pública é considerada um pressuposto do sistema democrático-participativo adotado pela CF/88, a qual trouxe inovações como proteção aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Essa participação é um princípio indissociável da democracia, garantindo, não só aos indivíduos, como também a grupos e associações, o direito à representação política, à informação e à defesa de seus interesses, possibilitando-lhes a atuação na gestão dos bens e serviços públicos. (DALLARI, 1996). Porém, essas inovações nem sempre são concretizadas, tendo em vista que a sociedade desconhece os seus direitos e o próprio Estado deixa de cumprir sua tarefa voltada à educação: a de possibilitar ao cidadão o acesso à informação de que forma ele pode acionar o Poder Público na defesa desses direitos. Leis infraconstitucionais ainda tratam do assunto. Tem-se o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90), que dispõe sobre a participação popular na discussão de políticas públicas voltadas à proteção de crianças e adolescentes, trazendo institutos como os Conselhos da Criança e do Adolescente, obrigatórios em nível nacional, estadual e municipal, e que deverão ter assegurados a paridade entre organizações representativas da população e os órgãos do governo (art. 88, I). Há também, na área da saúde, a Lei nº 8.142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do sistema único de saúde (SUS), mediante conferências e conselhos de saúde, cuja competência é a formulação de estratégias e o controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Ainda no âmbito federal, pode-se citar a Lei nº 9.394/96 que instituiu as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), e que trouxe a participação do cidadão na gestão democrática do ensino público conforme os seguintes princípios: 1) participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola (art. 14, I); e 2) participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (art. 14, II). Continuando na área da educação, a Lei nº 9.424/96 dispõe sobre o fundo de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do magistério (FUNDEF), assinalando que os recursos federais do FUNDEF serão objeto de controle social sobre a repartição, aplicação e transferência, junto aos respectivos governos, por conselhos a serem  instituídos em cada esfera governamental. Já as Constituições Estaduais e as Leis Municipais Orgânicas também trataram da participação popular em diversas áreas de políticas sociais, sendo que os municípios contemplaram a participação direta do cidadão no planejamento municipal, destacando-se os conselhos municipais, o orçamento participativo e as audiências públicas. Esses instrumentos de participação poderão ser melhor visualizados no quadro 2: A participação popular tem recebido diversas formas de interpretação. Segundo Di Pietro (2005), essa participação pode ser dividida em duas modalidades: formas de participação direta, como a iniciativa popular legislativa, o referendo, o plebiscito; e formas de participação indireta, como a participação por meio de ouvidorias, ou de conselhos. Já segundo Lima (1983), a participação popular pode ser encarada sob dois enfoques: o funcionalista e o histórico-cultural. De acordo com o primeiro, a participação da população seria considerada um meio de se obter apoio para programas oficiais de desenvolvimento social, vez que sem esta, o programa não poderia se concretizar, e também considerada como um meio de se aproveitar melhor os próprios recursos advindos da população. A participação, assim, é explicada pelas características culturais e sociais de indivíduos e grupos, que superariam a falta de participação através da organização e mobilização em programas de desenvolvimento, através da mudança de valores tradicionais para valores modernos. Por outro lado, o enfoque histórico-cultural privilegia a concepção de estrutura econômica, política e ideológica nas formações sociais concretas, buscando nas diferentes etapas históricas, as causas que provocam a marginalidade e a participação. As relações de produção, bem como as suas expressões ideológicas e políticas, são vistas como fundamentais para explicar as formas de participação social e cultural. Por fim, de acordo com Rocha (2011), as diversas concepções acerca da participação popular podem ser resumidas em: “a) participação popular comunitária: surgida no ínicio do século XXI, representa um novo padrão de relação entre o Estado e a sociedade no setor da educação, visando dar respostas ao problema do binômio pobreza-educação. Tem como características a assistência aos mais desamparados econômica e socialmente, através das escolas comunitárias, por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do coletivismo como meios para o progresso. Essa concepção definiu a comunidade como social e culturalmente homogênea, com identidade própria e com uma suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário; e ao Estado foi dado o papel de estimular a comunidade a se unir, organizar-se, enquanto solução em si mesma, passando esta a exercer um papel minimamente ativo e consciente. b) participação popular contestatória: na década de 1970, a participação passa a ter um sentido de reação e contestação contra as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas classes populares. Dessa forma, o espaço de participação ultrapassa o setor da educação, e alcança o conjunto da sociedade e do Estado. Para esse enfoque, qualquer aproximação com o Estado era encarada como manipulação, e o sentido da participação era o de acumular forças para a luta permanente pela mudança do modelo existente; e c) participação popular cidadã e o controle social do Estado: segundo esse enfoque, o Estado Democrático de Direito reconhece a necessidade de defender a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina administrativa estatal, por meio da divisão de função entre os poderes e os mecanismos de controle, em nome da sociedade”. A partir da Constituição de 1988 consolida-se a ideia de que esse controle seja feito pela sociedade através da sua presença e da sua ação organizada. O processo de redemocratização criou novos espaços públicos não-estatais de pactuação e de superação de obstáculos pelo diálogo e consenso, com a  universalização dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, na ampliação da dimensão de cidadania e de democracia. Essa dimensão de participação popular é a que garante o exercício da democracia para além dos espaços formais de poder e da representatividade eleitoral, levando em conta os interesses do conjunto da população, e possuindo uma visão abrangente e integrada do território, da sociedade e das questões do desenvolvimento. (ROCHA, 2011) A previsão da participação popular, conforme discorre Sundfeld (2006), em todos os atos decisivos no exercício do poder é a diferença crucial entre o Estado de Direito e um concreto Estado Democrático de Direito, em que há um controle do planejamento governamental pela sociedade. A participação social nas políticas do Estado pode ser incorporada a partir das Organizações Não Governamentais (ONG’s), grupos de debate políticos regionais, associações populares e demais interessados. Entre os canais de participação social nas políticas públicas tem-se: os conselhos gestores, em todas as instâncias da federação, que deliberam ou são consultados sobre as temáticas que representam saúde, educação, habitação, assistência social, etc (PAES DE PAULA, 2005). 3.  OS CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL Os conselhos gestores constituem-se na formalidade burocrática obrigatória da participação popular. Nesse sentido, é que se busca ampliar a ideia de democracia para além do sentido restrito da legalidade, com a organização de práticas que extrapolem a formalidade e materializem uma nova dimensão da efetiva participação popular na gestão pública. São instâncias criadas a partir de uma noção de democracia participativa (NAHRA, 2007). Logo após a promulgação da CF/88, foram criados vários dos principais conselhos gestores na área de políticas sociais, como o Conselho Nacional de Saúde (Lei nº 8.142/90), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.242/91) e o Conselho Nacional de Assistência Social (Lei nº 8.742/93) (VITALE, 2008). Segundo Tatagiba (2002, p. 47-103), os “conselhos gestores de políticas públicas são espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais”. Os conselhos foram criados com o objetivo de possibilitar a inclusão de amplos setores sociais nos processos de decisão pública, fornecendo condições para o fortalecimento da cidadania e para o aprofundamento da democracia. Sua composição deve incorporar representantes do governo e da sociedade civil, sendo que a indicação se faz, no primeiro caso, pelo chefe do poder Executivo, seja estadual ou municipal, e, no segundo caso, pelos pares eleitos de cada segmento representado da sociedade civil (como, por exemplo, entidades e organizações não governamentais, associações comunitárias, sindicatos, etc), conforme legislação de cada área de política específica. 3.1 Natureza e atribuições dos Conselhos Gestores Os conselhos gestores, segundo Nahra (2007), são canais institucionais, plurais, permanentes, compostos por representantes da sociedade civil e do Poder Público, cujas atribuições compreendem a propositura de diretrizes das políticas públicas, sua fiscalização, controle e deliberação, sendo órgãos vinculados à estrutura do Poder Executivo, mas que não são subordinados a ele, tendo como autônomas as suas decisões. Por se constituírem em espaços onde vários projetos e programas estão representados, os conselhos são instâncias de negociação, de pactuação e de compartilhamento de responsabilidades entre o Estado e diversos grupos sociais os quais representam divergentes interesses na formulação e execução das políticas públicas, levando em consideração cada realidade apresentada. Esses conselhos possuem atribuições importantes dentro da gestão pública participativa, uma vez que regulamentam as ações dos órgãos aos quais se encontram vinculados, deliberando acerca de reivindicações da população, possuindo, assim, uma natureza deliberativa e cogestora, e, ainda, viabilizando a transparência da gestão pública e servindo de instrumentos mediadores entre o Estado e sociedade (MARQUES E SOUZA, 2008). De acordo com a Controladoria Geral da União (CGU) (2008), podem-se destacar algumas atribuições dos conselhos gestores, como a fiscalizadora, a mobilizadora, a deliberativa e a consultora. A primeira, fiscalizadora, abrange o controle e o acompanhamento das ações dos gestores públicos. A atribuição de mobilização se configura pelo estímulo à contribuição da sociedade civil para formular e divulgar a importância da participação popular na gestão pública, seja através de reuniões, palestras, enfim, pela propagação da existência desses instrumentos de controle social. A função deliberativa constitui-se na participação efetiva dos conselhos nas decisões sobre estratégias a serem utilizadas pela administração pública. E a consultiva se expressa por meio da consulta sobre o direcionamento das políticas públicas, realizada pelo Estado, ao conselho correspondente ao setor em foco, marcada por sugestões e opiniões dos conselheiros e da população para os gestores. Cada conselho gestor elabora um regimento interno próprio, o qual, depois de aprovado em plenário, segue para apreciação do chefe do Poder Executivo, que o aprova por meio de decreto. Suas decisões possuem a forma de resoluções, devendo ser publicadas no Diário Oficial. É dever do Poder Público, em sua respectiva instância, tornar públicos alguns dados referentes a todos os conselhos gestores, como: número de membros; periodicidade, cronograma, locais e atas das reuniões; regulamento jurídico de criação do conselho; número de telefone e/ou e-mail, divulgados à população, para possível contato; lista de membros e respectiva representação, assim como o período de seus mandatos. Assim, diante da democracia participativa abraçada pela CF/88, os conselhos gestores são importantes instrumentos para o reordenamento das políticas públicas, tendo em vista a governança democrática, podendo realizar diagnósticos acerca de determinada situação social, elaborar proposições, denunciar questões que afetem o interesse público das políticas, rompendo a distância entre o Estado e a sociedade. 3.2 Os Conselhos Municipais como meio de participação popular na gestão pública local Os Conselhos Municipais são órgãos públicos destituídos de personalidade jurídica, constituindo-se em mediadores entre a população e o Governo local, com o objetivo de formular políticas públicas, as quais atenderão às necessidades sociais. Eles são instrumentos da democracia participativa, tendo como função o de trazer para o Governo os problemas reais da sociedade. Na construção dessa relação entre a sociedade e o Governo Municipal, existem desafios, como a dimensão política (composição dos conselhos e representatividade) e a dimensão gerencial (bom atendimento da Administração Pública, isto é, conhecer processos, competências, dinâmicas para tomada de decisões e para implementação de políticas públicas, de forma a construir um ambiente próprio para negociações). Porém, como ressalta Dagnino (2002), o potencial democratizante dos conselhos mostrou-se diferenciado, conforme cada caso específico. Ao lado do ideal democratizante dos conselhos, uma realidade prática muito mais problemática surgiu. Em muitos municípios sem tradição associativa e com uma configuração de poder bastante distorcida, os conselhos limitam-se a cumprir formalidades, quando não são manipulados pelas elites locais ou partidos políticos. Os governos muitas vezes adotam estratégias de esvaziamento desses espaços e, não raro, instrumentalizam os conselhos para seus objetivos específicos. Os conselhos gestores ainda são estruturas em construção, cuja efetivação enquanto órgãos de participação e de concretização da cidadania depende da correlação de forças que se estabelecem no interior da sociedade (ampliação da relação Estado x sociedade). Relembrando três características essenciais aos conselhos (composição plural e paritária, natureza deliberativa de suas decisões e seu objetivo de formular e controlar a execução das políticas públicas), atualmente nem sempre esses traços são verificados. Para que sejam considerados como um meio efetivo e concreto da participação popular na gestão pública local, é necessário superar alguns desafios apresentados na realidade das municipalidades, conforme lecionam Rover e Fogollari (2005). Um deles trata da cultura política autoritária e clientelista, ou seja, uma cultura baseada em privilégios particulares. Dessa forma, a sociedade deve compreender que a sua participação é necessária e eficiente na gestão pública, especialmente quando se estabelece uma boa relação entre os gestores locais e os cidadãos. Os Conselhos Municipais funcionam então como um espaço de convivência entre os diferentes atores sociais, vindo à tona a visibilidade de suas necessidades e de seus problemas, com a busca de soluções concretas para os mesmos. Outro desafio refere-se à composição paritária dos conselhos, que deve ser tanto numérica quanto qualitativa. Assim, devem ser banidos conselheiros que, por exemplo, exercem cargo de confiança na administração pública local, os chamados “apadrinhados”, e que priorizam serviços ditados pelos gestores, não representando, dessa forma, os interesses dos usuários, passando, muitas vezes, a agir individualmente, sendo suscetíveis a pressões políticas. Devem ser estabelecidos critérios para garantir uma igualdade de condições a todos os conselheiros. Quanto à composição qualitativa, faz-se imprescindível a capacitação continuada desses conselheiros, por meio de cursos, seminários, fóruns, etc, no intuito de coordenar as ações pertinentes a uma forma mais participativa de construir as políticas públicas, e também uma orientação, tanto para os conselheiros gestores como para os conselheiros usuários, acerca do desenvolvimento de todo o processo, tanto da política como da administração, desenvolvendo-se um comprometimento dos atores sociais nesse trabalho. O desafio ligado ao caráter deliberativo dos conselhos municipais encontra-se enraizado na já citada tradição clientelista do poder público, devendo ser superado com a compreensão, por parte dos gestores locais, de que a participação popular na definição e na efetivação das políticas públicas é essencial, criando-se um diálogo entre a sociedade civil e os gestores e também mecanismos de transparência e acessibilidade de todos às informações relativas aos processos. Assim, quanto maior for a diversidade de meios de comunicação atuantes no local e de cidadãos capazes de fazer uso desses meios, maior será o espaço aberto para os debates públicos, a transparência das decisões, a construção do exercício da cidadania. Outra questão a ser levantada é a da garantia dos mecanismos operacionais, ou seja, é preciso que se definam claramente as regras de funcionamento dos conselhos, a periodicidade e a dinâmica das reuniões, a forma de definição dos assuntos a serem tratados na pauta, etc., e também a existência de uma logística própria, com uma estrutura física, humana e orçamentária. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o processo de democratização trazido pela promulgação da Constituição Federal em 1988, houve a universalização dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, a ampliação da dimensão da cidadania e da democracia, e uma nova concepção do papel do Estado. Ganha destaque o princípio da participação popular na gestão pública, presente no parágrafo único do artigo 1º da CF/88, o qual afirma que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente. Essa participação popular direta passou a ser vista como uma forma de aproximação entre a sociedade e o Estado, levando em consideração a diversidade de interesses e, principalmente, o surgimento de espaços para o debate desses interesses coletivos. Desse modo, pode-se afirmar que a Constituição Federal de 1988 modificou a relação do Estado com a sociedade, tendo por base a participação de organizações civis na formulação e co-gestão das políticas públicas, através, por exemplo, de  espaços de participação direta nas decisões dos governos: os Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais. A partir desse processo de democratização, surgem, no âmbito dos municípios, os Conselhos Municipais, juntamente com Conferências e Audiências Públicas, todos visando à participação direta da população na promoção das políticas públicas. No tocante aos Conselhos, pode-se afirmar que são espaços públicos compostos por representantes da sociedade civil e do Estado, de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas, através de reuniões e debates periódicos. Cada conselho é estabelecido a partir de um projeto de Lei, que fixa as suas competências e os seus representantes. Os Conselhos Municipais estreitam a relação entre o governo e a população de determinada localidade na busca de soluções para os anseios sociais. Cabe ao gestor local a oferta de condições necessárias para essa participação popular, através de divulgação da existência desses espaços e, assim, da convocação da população para integrar-se nesse processo, legitimando a soberania constitucional, ao passar, necessariamente por algumas questões como: a transparência nas eleições dos conselhos, o próprio perfil dos eleitos (se representam a comunidade de forma igualitária), o processo de deliberação dos conselhos (ou seja, a real proporção entre as decisões tomadas entre conselheiros da população e conselheiros governamentais), a relevância ou própria existência do debate dentro desse aparelho. A participação deve ser vista sob o ponto da qualidade do participante, fazendo-se necessário que a população tenha um entendimento prévio sobre o que está proposto a participar, sendo que, muitas vezes, apenas o entendimento não basta. Imprescindível é o esforço de participar, a vontade de fazer parte do processo decisório. A tendência é que o  nível de participação evolua com o tempo e adquira-se qualidade na participação no decorrer da experiência participativa. Por isso, surge a importância da oferta dos meios para a participação popular, com a educação alçada à condição preponderante para uma comunidade se libertar da alienação e atingir um nível de “consciência crítica”, preparando-se para o exercício de sua soberania. Através dos Conselhos Municipais, a participação popular não deve ser vista como uma simples presença em grupos ou associações para defesa de interesses individuais, mas sim como uma intervenção positiva nas políticas públicas, um fortalecimento da cidadania, com tomada de decisões, controle dos recursos públicos, respeito aos princípios que regem a Administração Pública e defesa da qualidade de vida dos cidadãos. Assim, analisar os Conselhos Municipais implica observar na prática a soberania constitucional, institucionalizando a participação efetiva dos vários segmentos da sociedade em prol de interesses coletivos. A própria sociedade deve se conscientizar de seu direito e dever de participar da gestão pública municipal, uma vez que a sua participação é uma forma de se governar de modo interativo, equilibrando forças e interesses, e de se promover a democratização. De relevante importância, portanto, o estudo sobre impactos das ações dos Conselhos Municipais sobre a sociedade e o poder público para que se alcance o processo de construção da cidadania, assim como se avaliem as possibilidades de um aprofundamento da democratização da sociedade brasileira. Segundo pesquisa realizada no mês setembro/2015, por meio de documentos disponibilizados na Prefeitura de Ilhéus/BA e em sítios eletrônicos, pode-se ser ilustrada um pouco da realidade fática da eficácia dos conselhos municipais. Através da Lei Municipal nº 3.728/2015, que dispõe sobre a estrutura organizacional da Prefeitura de Ilhéus, contemplando em seu Capítulo II os órgãos comunitários, estão os conselhos comunitários, os quais, na teoria, constituem o número de 20 (vinte), porém, na prática, apenas 12 (doze) encontram-se ativos. Os vinte conselhos encontrados na Lei são: a) Conselho Municipal do Meio Ambiente – CONDEMA; b) Conselho Municipal de Educação – CME; c) Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA; d) Conselho Municipal de Assistência Social – COMAS; e) Conselho Municipal dos Portadores de Deficiência Física – COMDEF; f) Conselho Municipal de Alimentação Escolar – CAE; g) Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico – COMDEC; h) Conselho Municipal de Cultura – COMUC; i) Conselho Municipal de Transportes – COMTRANS; j) Conselho Municipal de Entorpecentes – COMENT; k) Conselho Municipal dos Esportes – COMES; l) Conselho Municipal dos Idosos – COMID; m) Conselho Municipal de Turismo – COMTUR; n) Conselho Municipal do FUNDEB – CMFUNDEB; o) Conselho Municipal da Mulher – CMDM; p) Conselho Municipal de Segurança Pública – COMSEG; q) Conselho Municipal de Trânsito – CONTRANS; r) Conselho Municipal de Saúde – CMS; s) Conselho das Cidades – CONCIDADE; e t) Conselho Municipal da Juventude – CMJ. Dentre os Conselhos Municipais presentes na lei, encontram-se inativos: o Conselho Municipal dos Portadores de Deficiência Física (COMDEF), o Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico (COMDEC), o Conselho Municipal de Entorpecentes (COMENT), o Conselho Municipal dos Esportes (COMES), o Conselho Municipal dos Idosos (COMID), o Conselho Municipal de Segurança Pública (COMSEG), o Conselho Municipal das Cidades (CONCIDADE), e o Conselho Municipal da Juventude (CMJ).         Esses dados reforçam a constatação dos desafios anteriormente enumerados, que precisam ser superados para que se concretize uma gestão pública participativa, em que há transparência no uso dos recursos públicos, decisões coletivas, incentivo à participação da sociedade civil na resolução dos problemas locais, integração de políticas e de unidades administrativas, predomínio dos interesses coletivos e uma gestão a favor do cidadão.
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O Controle jurisdicional das Políticas Públicas: ponderações sobre o pedido nas Ações Civis Públicas
Investiga a possibilidade da realização de um controle das políticas públicas por parte do Judiciário. Conceitua políticas públicas. Esclarece que o controle jurisdicional das políticas públicas não tem o condão de invadir as demais funções estatais. Verifica os limites para o pedido nas ações civis públicas quando estão envolvidas políticas públicas. Faz breves ponderações acerca do Código-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e a possibilidade de interpretação extensiva do pedido e da causa de pedir nas ações coletivas. Esclarece, por fim, que os limites da reserva do possível devem ser sopesados no momento da decisão judicial, devendo ser resolvida por um ativismo judicial cuidadoso, responsável e comprometido como a efetividade da Constituição.
Direito Administrativo
Introdução O distanciamento do pensamento positivista trouxe como conseqüência a supremacia da Constituição e o caráter vinculante dos direitos fundamentais. Desse modo, a Carta Magna passou a ser encarada como um sistema aberto de princípios, cujo especial destaque é a valorização dos direitos fundamentais. Sob essa nova ótica, chamada de pós-positivismo, o juiz deixa de ser mero aplicador da lei, se tornando um efetivo agente político. Quando enfrenta uma ação coletiva, o magistrado se depara com um conflito entre interesses coletivos relevantes, impondo que ele solucione a questão, pautando-se pela aplicação dos princípios constitucionais ao caso concreto. De acordo com a visão clássica, consubstanciada no princípio da demanda, o juiz não deve julgar além do pedido das partes: ne eat judex ultra petita partium. Deste brocardo, tem-se que, diante de um conflito de interesses, o juiz ficará adstrito à dimensão apresentada pelas partes. Com o presente trabalho, veremos que, nas tutelas coletivas, sobretudo na ação civil pública, dá-se ao juiz poderes que extrapolam as amarras do Estado Liberal. O objetivo é a efetividade do processo, de modo que, todo interesse posto em ação coletiva, uma vez qualificado como de relevância social, exige uma abordagem que objetive a verdade real, o que impõe um amplo conhecimento pelo magistrado. Desse modo, institui-se, quando necessário, um julgamento além daquilo que foi pedido pelo autor e resistido pelo réu, com vistas à satisfação de demandas dessa natureza. Dessa forma, o artigo que ora se apresenta, revela-se de extrema atualidade e importância, pois visa demonstrar, sem qualquer pretensão de esgotar o tema e, respeitando as inúmeras posições doutrinárias e jurisprudenciais em contrário, a supremacia da Constituição e a força normativa e vinculante dos direitos fundamentais. Para seu deslinde, tornar-se-á necessário enfrentar algumas questões, demonstrando amiúde que todos os óbices que se impõem ao supramencionado controle, podem ser superados em nome do papel que o Judiciário ocupa no Estado constitucional. 1. Conceito de políticas públicas Estabelecer um conceito preciso do que vem a ser políticas públicas não é uma missão singela. Há autores que reconhecem que se trata de uma expressão pleonástica, haja vista que a política é essencialmente pública. Nesse sentido é a lição de Guilherme Amorim[1]: “A utilização da expressão política pública é redundante, verdadeiro pleonasmo, mas em cuja utilização centramos nossos esforços, tendo em vista que desejamos ao fim social que se busca alcançar, qualquer atividade identificada na Constituição Federal, como meta a ser alcançada pelos grupos de competências outorgadas, a qualificação de públicas.” É possível perceber que se tratam de programas de ação governamental que nada tem a ver com política de governo, embora a confusão entre ambas as expressões seja bastante rotineira. Esta última guarda relação com um mandato eletivo, ao passo que a primeira, na maioria das vezes, pode ultrapassar vários mandatos. As políticas públicas estão sujeitas a uma variedade de formas, sendo impossível uma catalogação exaustiva. Inobstante tal impossibilidade, é possível afirmar que todas são meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, confirmando assim, o ideal pós-positivista. Segundo Valmir Pontes[2]: “Quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se ajustam aos princípios e diretrizes constitucionais ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes e, portanto, sujeitos ao mesmo controle jurisdicional de constitucionalidade a que se submetem as leis. Como igualmente ponderado é observar que a abstinência do governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente de violação de direitos subjetivos dos cidadãos.” A concepção trazida pelo autor é sustentada pela tese do novo constitucionalismo, para quem tais políticas, sejam elas elaboradas no seio do Legislativo ou pela própria Administração, tem por escopo a concretização dos direitos fundamentais positivos.  Nesse diapasão, nos parece claro que as políticas públicas apresentam uma dupla finalidade. Por um lado, têm o condão de minorar as desigualdades sociais, preservando a dignidade da pessoa humana e garantindo a todos os cidadãos as mesmas oportunidades. De outra banda, busca-se, com as políticas públicas, a realização dos direitos previstos na constituição, vale dizer, as obrigações positivas do Estado, chamados direitos de segunda dimensão. 2. Controle jurisdicional das políticas públicas Tarefa tormentosa e distante de uma pacificação é a temática que cuida da possibilidade do Judiciário exercer o controle das políticas públicas.  Inicialmente, cumpre destacar a relação do juiz com a lei.  Para o positivismo, haverá plena identificação entre o direito e a lei. A legitimidade do juiz se limita a dizer o direito no caso concreto, não lhe sendo franqueado decidir fora dos estritos termos da letra fria da lei. Já na visão pós-positivista, o juiz assume um papel pró-ativo, vez que, quando provocado, tem o poder-dever de, ao aplicar a norma, interpretá-la de maneira a garantir sua máxima efetividade. O juiz não é mais simples boca da lei, mas um qualificado intérprete da Constituição que se posiciona sempre que acionado. Contudo, uma postura mais ativa do Judiciário implica numa possível zona de tensão entre os outros Poderes (Funções). Nesse comenos, destacamos a lapidar lição trazida pelo mestre Américo Bedê[3]: “Não se defende, todavia, uma supremacia de qualquer uma das funções, mas a supremacia da Constituição, o que vale dizer que o Judiciário não é um mero carimbador de decisões políticas das demais funções. A eventual colisão de funções não é um argumento válido para refutar o aprimoramento da função judicial em prol da melhor aplicação possível da Constituição, posto que existem, em todas as constituições, critérios prévios para definição de soluções na hipótese de choques entre as funções, como, por exemplo, o controle de constitucionalidade.” Ao Judiciário cabe o papel de proteger a Constituição e suas instituições democráticas, controlando os atos legislativos e executivos contrários a Carta Magna. Tais atribuições não lhe garantem uma posição de superioridade frente às demais funções, mas destacam a supremacia da Constituição frente às leis e atos administrativos. Pelo exposto, não parece que o controle jurisdicional das políticas públicas afronta o princípio constitucional da separação das funções. Na verdade, torna-o efetivo, vez que tal controle busca garantir a implementação dos direitos constitucionais positivos. Ademais, a própria Constituição Federal de 1988, conferiu, no seu art. 5°, XXXIV, ao Poder Judiciário ampla função jurisdicional. Senão vejamos: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; Dessume-se que a legitimidade conferida ao Judiciário não decorre de princípio político democrático, mas do próprio texto constitucional, não devendo por isso encontrar nenhum óbice. Importante trazer à colação a decisão do Ministro Celso de Mello[4], assim resumida: “Ementa: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada a hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao STF. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento de preceito fundamental no processo de concretização das liberdades positivas”. Outro argumento contrário à possibilidade de controle é o de que a Administração é autônoma, possui discricionariedade e que os juízes não sabem interpretar conceitos indeterminados. Elucidando esse posicionamento, trazemos à colação, o seguinte julgado do STJ[5]: “Ementa: Ação Civil Pública. Poder discricionário. Administração. Trata-se de Ação civil pública em que o Ministério Público pleiteia que a municipalidade destine um imóvel para a instalação de abrigo e elaboração de programas de proteção à criança e aos adolescentes carentes, que restou negada nas instâncias ordinárias. A Turma negou provimento ao recurso do MP, com fulcro no princípio da discricionariedade, pois a municipalidade tem liberdade de escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e o que deve ter prioridade, não cabendo, assim, ao Poder Judiciário intervir”. Resta pontuar que, em razão do inafastável interesse público, não é possível dizer que as políticas públicas são atividades puramente discricionárias. Outro aspecto relevante que se observa, ocorre quando se vislumbra omissão total do Estado na implementação de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Não é difícil nos depararmos com operadores do direito que insistem em não observar o preceito constitucional da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Talvez por herança de um formalismo ditatorial de anos anteriores. O fato é que tal mentalidade não mais se coaduna com a força normativa que a Constituição deve assumir. Ademais, restou expressamente consagrado no § 1° do art. 5° da Carta Magna, a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Desse modo, destaca Américo Bedê[6]: “A omissão total não deixa de ser uma política pública negativa, que pode estar sendo praticada por uma minoria, a qual, maquiavelicamente, aprovou o texto constitucional consciente de que não haveria qualquer tipo de sanção pelo descumprimento da norma”. A omissão poderá ser parcial quando se descumpre um direito fundamental, não previsto expressamente na Constituição Federal. Quando, ao contrário, o direito encontra-se previsto, ainda que de maneira meramente programática, a sua não efetivação será considerada uma omissão qualificada. Extrai-se do art. 208, I da Constituição Federal, um exemplo clássico que ilustra bem o caso. Dispõe o dispositivo que é dever do Estado garantir o ensino fundamental obrigatório. O município X é modelo na área desportiva, muito se investe na construção de ginásios e em atividades esportivas de um modo geral. Entretanto, mesmo não existindo no município nenhuma escola, ainda assim, seu prefeito insiste em construir mais um campo de futebol. Como solução constitucional, caberá ao Judiciário impedir a construção do campo de futebol e determinar que, primeiramente, seja construída a escola, restando evidente que o controle realizado só visou corrigir a distorção almejada pelo governante e garantir a efetividade da Constituição. Esclarecemos, pois, que a finalidade do controle não é invadir funções estatais, não é estirpar a idéia de discricionariedade e mérito administrativo, nem tão pouco, transformar o juiz em legislador ou administrador público. Busca-se um Judiciário comprometido com a justiça normativa constitucional, visando preservar a Constituição de políticas públicas indevidas ou de sua falta. 3- A ação civil pública como instrumento para efetivação do controle jurisdicional das políticas públicas De acordo com o saudoso Hely Lopes Meirelles[7]: “A ação civil pública, disciplinada pela Lei n° 7.347, de 24.7.85, é o instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações da ordem econômica (art. 1°), protegendo-se, assim, os interesses difusos da sociedade. Não se presta a amparar direitos individuais, nem se destina à reparação de prejuízos causados a particulares pela conduta, comissiva ou omissiva do réu”. Dentre as ações coletivas, a ação civil pública merecerá um maior destaque no nosso trabalho, haja vista, ser ela a que mais facilmente permite que políticas públicas sejam determinadas em prol da Constituição. Almejando sanar a insuficiência do Código de Processo Civil e, visando à resolução de conflitos transindividuais, o legislador pátrio criou mecanismos chamados microssistemas, dentre os quais se destacam a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor. Mancuso[8] já anunciava na sua obra que “a ação civil pública apresenta um largo espectro social de atuação, permitindo acesso à justiça de certos interesses metaindividuais que, de outra forma, permaneceriam num certo ΄limbo jurídico`”. Percebe-se, então, que a introdução da ação civil pública no nosso sistema processual, permitiu uma maior socialização do direito, oferecendo condições de instrumentalizar o controle de políticas públicas de modo a oferecer à Constituição densidade suficiente para a tutela de direitos transindividuais. Gregório Assagra Almeida[9], defendendo a implantação de políticas públicas por meio da ação civil pública, sustenta que: “A Constituição Federal não restringe o objeto material da ação civil pública (arts. 5°, XXXV e 129, III), tanto que consagra expressamente, como já mencionado, o princípio da não taxatividade da ação civil pública. Depois porque a implantação de políticas públicas, especialmente as exigidas constitucionalmente, nunca pode ser considerada como questão pertencente à seara da mera conveniência e oportunidade do administrador. A implantação de políticas públicas é dever do administrador, que se não as realizar conforme manda a Constituição e a legislação respectiva poderá ser acionado jurisdicionalmente por qualquer legitimado coletivo interessado arrolado no arts. 5° da LACP e 82 do CDC”. Diante disso, é possível assentar que por meio das tutelas coletivas, sobretudo da ação civil pública, será concebível implantar ou corrigir políticas públicas, garantindo assim, a efetivação de direitos fundamentais e se tornando, por conseguinte, importante meio de concretização do controle jurisdicional de políticas públicas. 3.1- Os limites do pedido na ação civil pública e os novos contornos do princípio da demanda O princípio da demanda, dogma já cristalizado no processo civil clássico, vem sofrendo algumas mitigações e assumindo novos contornos, sobretudo, dentro da sistemática das ações civis públicas. Mesmo no âmbito das ações individuais, observamos que, no processo de investigação de paternidade, o legislador, em nome da garantia dos direitos fundamentais, admite que o magistrado conceda decisões extrapenais ou ultrapedido visando à observância de tais direitos e a efetivação da Constituição. Nesse sentido, é o disposto no art. 7° da Lei n° 8.650/1992: “Art. 7° Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.” Isso não quer dizer que nas ações coletivas a jurisdição irá se exercer espontaneamente. Tanto aqui, como nas ações individuais, será imprescindível a provocação da tutela jurisdicional em obediência ao disposto no art. 2° do Código de Processo Civil. A mudança de contorno que se sugere reside, sobretudo, na maior elasticidade dada na interpretação do pedido feito na ação civil pública. Tradicionalmente, o juiz deveria estar rigorosamente adstrito ao pedido formulado pela parte. O pedido funcionava como o máximo que se poderia obter na sentença. Nesse diapasão, houve consagração expressa da correlação entre o pedido e a sentença, materializada no art. 128 do Código de Processo Civil, sobre o qual comentam os insignes mestres Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[10]: “Deve haver correlação entre o pedido e a sentença (CPC 460), sendo defeso ao juiz decidir aquém (citra ou infra petita), fora (extra petita) ou além (ultra petita) do que foi pedido, se para isto a lei exigir a iniciativa da parte. Caso decida com algum dos vícios apontados, a sentença poderá ser corrigida por embargos de declaração, se citra ou infra petita, ou por recurso de apelação, se tiver sido proferida extra ou ultra petita. Por pedido deve ser entendido o conjunto formado pela causa (ou causae) petendi e o pedido em sentido estrito. A decisão do juiz fica vinculada à causa de pedir e ao pedido.” O princípio acima está adstrito à visão clássica e, mais comumente, às ações individuais. Na tutela coletiva o modelo é bem diverso. Busca-se com a ação civil pública assegurar uma maior efetividade ao processo, tendo em vista a relevância social do interesse abordado nesse tipo de ação. Assim, ao magistrado devem ser conferidos poderes que ultrapassam os limites da adstrição da sentença ao pedido. Deixa de ser um mero aplicador da lei e se torna autêntico intérprete da Constituição, interferindo diretamente nas políticas públicas. Para Alexandre Amaral Gsvronski[11]: “É imprescindível uma ativa, crítica e compromissada participação de juízes atentos aos escopos maiores da jurisdição, mormente o da pacificação social com justiça, o da educação da sociedade e o da atuação concreta da lei, garantindo efetividade a esta.” O juiz passa a conviver com situações que lhe impõe alto grau de discricionariedade, demonstrando, assim, uma tendência expansiva da função política dos Tribunais. Em vários momentos o magistrado é levado a fazer uma opção político-jurídica, a propósito de qual bem jurídico ou interesse social deverá prevalecer. Não ficará, portanto, jungido ao pedido formulado pelas partes e assumirá postura ativa, podendo decidir além, aquém ou fora do pedido formulado. Cumpre asseverar, entretanto, que a escolha da providência a ser adotada deverá ser adotada com critérios, sob pena de ser arbitrária. Nessa senda, caberá ao juiz a adoção do princípio da proporcionalidade, ou seja, a busca da providência que melhor proteja o bem jurídico coletivo. Esta construção que vem sendo observada pelas doutrinas e jurisprudências mais vanguardistas está instrumentalizada num importante documento – o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América – que, segundo Ada Pellegrini Grinover[12], participante da elaboração do projeto, “serve não só como repositório de princípios, mas também como modelo concreto para inspirar as reformas (…)”. O art. 10 do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, estabelece o seguinte: “Art. 10. Nas ações coletivas, o pedido e a causa de pedir serão interpretados extensivamente.” Embora o Código Modelo não tenha para nós a força de um ato normativo, em nada se torna incompatível com nosso regramento vigente, podendo ser utilizado como importante sistematizador das regras sobre ações coletivas, buscando, ao mesmo tempo, extrair uma maior efetividade de instrumentos constitucionais de direito processual. 4- A questão orçamentária e o limite da reserva do possível Para os que se posicionam de maneira contrária à judicialização das políticas públicas, esse tema configura mais um obstáculo à possibilidade de controle. Tradicionalmente o orçamento é compreendido como uma peça que contém apenas a previsão das receitas e a fixação das despesas para determinado período, sem preocupação com planos governamentais de desenvolvimento, tratando-se assim de mera peça contábil – financeira. Tal conceito não pode mais ser admitido, pois, a intervenção estatal na vida da sociedade aumentou de forma acentuada e com isso o planejamento das ações do Estado é imprescindível. Hoje, o orçamento é utilizado como instrumento de planejamento da ação governamental, possuindo um aspecto dinâmico, ao contrário do orçamento tradicional já superado, que possuía caráter eminentemente estático. Para Aliomar Baleeiro[13]: “O orçamento público é o ato pelo qual o Poder Executivo prevê e o Poder Legislativo autoriza, por certo período de tempo, a execução das despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei.” Os planos e programas sociais destinados à implementação de direitos fundamentais necessitam estar vinculados à elaboração e execução de leis orçamentárias. Inevitavelmente, a implementação de tais direitos demandam elevado dispêndio financeiro. Os recursos públicos, por sua vez, são escassos. A partir desta infeliz conclusão, indaga-se: quais políticas públicas devem ser implementadas diante da impossibilidade orçamentária do cumprimento integral dos direitos sociais constitucionalmente assegurados? Para responder a indagação, imprescindível recorrer ao argumento da reserva do possível, tema de reiteradas discussões no tocante à implementação de políticas públicas pelo Judiciário. Segundo Ana Paula Barcellos[14]: “A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível aqui significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta -, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos”. Extrai-se do exposto, que os indivíduos não têm direito subjetivo frente ao Estado senão nos limites da razoabilidade. Esse foi o entendimento da Corte Constitucional Federal da Alemanha, conforme BverfGE (coletânea das decisões do Tribunal Constitucional Federal), nr. 33, S. 333[15]: “Segundo o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, esses direitos a prestações positivas (Teilhaberechte) “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade”. Essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social; a Corte recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos”. Desse modo, poder-se-ia sustentar que alguém que pudesse subsidiar seus estudos numa universidade particular, sem prejudicar o seu sustento, não poderia impor ao Estado Alemão a obrigação, pois esta não seria razoável. A partir do exposto, Ingo Wolfgang Sarlet[16], sustenta que a reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, que acoberta: “a)- a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b)- a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c)- já na perspectiva(também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua razoabilidade. Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir, não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional”.   No Brasil, convivemos com um claro contraste: de um lado, é altíssimo o déficit de políticas públicas para o implemento de direitos fundamentais; de outro, é reduzido o orçamento, que se deve, sobretudo aos gastos advindos com pagamentos da dívida pública externa. Diante da discrepância, será imprescindível que a destinação dos recursos orçamentários seja feita de maneira responsável, exigindo assim, como apregoado pelo ministro Celso de Mello[17], verdadeiro ativismo judicial, “notadamente na implementação concretizadora de políticas públicas definidas pela própria Constituição que são lamentavelmente descumpridas, por injustificável inércia, pelos órgãos estatais competentes”. A Constituição é mola propulsora do Estado, é a norma fundamental que orienta a atuação do Poder Público. Enxergada dessa forma, a falta ou escassez de recursos como justificativa para a não concretização de políticas públicas constitucionalmente asseguradas merecem ser melhor investigadas. Como falar em falta de recursos para a Educação se, no mesmo orçamento, há destinação de recursos para o custeio de publicidade com o governo? Falta, no mínimo, razoabilidade à Administração onde essa prática se observa, merecendo por isso uma eficaz atuação do Judiciário. Por outro lado, cumpre destacar que, ainda que os recursos sejam insuficientes, as políticas públicas poderão ser iniciadas, não havendo óbice para que posteriormente se aloquem novos recursos para sua totalização. De um modo geral, ponderados todos os pontos trazidos, percebemos que, diante de um conflito estabelecido entre a regra do orçamento público e a observância dos direitos fundamentais devem ser prevalecidos os últimos. Com esse posicionamento, não queremos afastar a importância que deve ser dada as leis orçamentárias e ao direito financeiro. Só não podemos aceitar que o cumprimento da Constituição seja preterido pela observância de uma norma infraconstitucional, ou por um quadro político-econômico desfavorável. Dentro desse contexto, os limites da reserva do possível são elementos que devem ser sopesados no momento da decisão judicial, devendo ser resolvida por um ativismo judicial cuidadoso, responsável e comprometido como a efetividade da Constituição. Conclusão Buscamos com o presente trabalho, analisar o envolvente tema do controle jurisdicional das políticas públicas, dando especial ênfase aos pedidos feitos na ação civil pública. Tentamos destacar a existência de uma total releitura do papel da Constituição, vista não mais numa perspectiva estática, mas sim no seu caráter dinâmico e aberto. Destacamos que a separação das funções não constitui óbice à efetivação de tal controle. Não faz que o Judiciário se sobreponha às demais funções. Ao contrário, busca-se que a Constituição se sobreponha, fazendo do magistrado seu intérprete qualificado. Percebemos que as políticas públicas são meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, pois de nada vale o reconhecimento formal de direitos diante da ausência de instrumentos para efetivá-los. Sendo assim, a partir da força vinculante da Constituição, bem como da aplicação imediata das normas constitucionais, é possível falar em direito constitucional à efetivação da Constituição. Defendemos uma postura mais ativa do Judiciário, visando preservar a Constituição de políticas públicas indevidas ou de sua falta. Especial destaque foi dado à ação civil pública como forma de permitir que políticas públicas sejam determinadas em prol da Constituição. Realçamos a mitigação ao princípio da correlação entre o pedido e a sentença para fornecer ao juiz a maleabilidade necessária para produzir uma solução materialmente adequada à lide posta em suas mãos. Por fim, destacamos os problemas afetos à questão orçamentária e os limites da reserva do possível, que vem se concentrando como um dos principais óbices à efetivação das políticas públicas pelo Judiciário. A partir daí, notamos que se trata de um argumento que deve ser sopesado na hora da decisão judicial, visando uma forma de viabilização de uma Constituição compromissada com a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais.
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A licitação sustentável como forma de contribuição para uma gestão pública eficiente
O consumo desenfreado da sociedade consumista faz com que os recursos naturais se tornem cada vez mais escassos, tornando a preservação ambiental um requisito básico e desejável no bom desempenho da Administração Pública e de todo o elenco social. O presente trabalho analisa a atuação do Estado na preservação dos recursos ambientais, no processo de desenvolvimento sustentável com a implementação das ações necessárias às também chamadas licitações verdes. Através da visão holística do tema, constatou-se que a Administração Pública pode implementar, na marcha do desenvolvimento sustentável, critérios de salvaguardas ambientais no processo produtivo econômico.[1]
Direito Administrativo
1 Introdução O objetivo do presente trabalho é fazer uma reflexão crítica acerca do instituto da licitação sustentável. A problemática emerge da observação dos aspectos legais e gerais da lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. A partir dos critérios contidos na lei que regula as licitações, fez-se uma análise dos entendimentos doutrinário e jurisprudencial, objetivando encontrar-se um consenso, pertinente e juridicamente correto, sobre o que é ou o que deve ser a licitação sustentável / verde. Após a realização dessa apreciação doutrinária e jurisprudencial, buscou-se obter um entendimento de quais são as consequências, deveres, benefícios e direitos decorrentes da ocorrência de uma licitação sustentável. A metodologia utilizada foi a jurídico-dogmática, pois a análise da pesquisa teve foco na base legal, específica e geral, bem como no entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca do tema em pesquisa. Com o entendimento obtido a respeito da forma como a licitação sustentável deverá ser realizada, o objetivo deste artigo passou a ser a análise genérica dos efeitos das licitações sustentáveis nas diversas esferas do governo, tangente à forma que esta contribui para uma Gestão Pública eficiente e politicamente correta. 2 Princípios da Administração Pública Para se adentrar o assunto em comento, necessário se faz visitar os preceitos básicos concernentes ao tema. Pertinente aos ensinamentos do mestre Afonso Celso Rezende, no Dicionário Jurídico Especial, licitação é o processo administrativo ou em fase preliminar que precede a celebração do contrato entre o licitante e a Administração Pública. É um processo administrativo que tem como propósito assegurar igualdade de condições a todos que queiram realizar contrato com o Poder Público, disciplinada pela lei n. 8.666 de 1993. Assim, necessário será, também, relembrarmos o significado de “princípios”, como sendo aquelas regras harmonizadoras que auxiliam na interpretação das demais normas e no preenchimento das lacunas porventura existentes. Há que se enxergá-los através da lente de sua função primordial, que é a inspiração de todo o modus operandi da administração pública. A Constituição da República estatui, em seu artigo 37, in verbis: “Art. 37 – A administração Pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, e eficiência.” Destarte, todos os poderes da UNIÃO devem obedecer às imposições de competência, forma e finalidade do ato, mesmo quando há a liberdade administrativa, conferida pelo poder discricionário. Desobedecê-las é, conforme ensinamentos do ilustre doutrinador José Souto Maior Borges, muito mais danoso que a desobediência à própria Constituição: “Ora, a violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria Constituição, representando por isso mesmo uma inconstitucionalidade de conseqüências muito mais graves do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional” (B0RGES, 1975, p. 13-14). Porém, o poder constituinte derivado, inserido na Constituição da República pelo art. 25, permite aos Estados exigirem a obediência a outros princípios além daqueles elencados no art. 37. Também o Distrito Federal e os Municípios foram contemplados com a possibilidade de seus legisladores infraconstitucionais poderem estabelecer outros princípios, desde que defesos aqueles já estabelecidos no art.37 (art. 29 e 32, CR/88) (BRASIL, 1988). A seguir, em breve síntese, apresentam-se os principais princípios da Administração Pública: 2.1 Princípio da Legalidade Este princípio determina que a Administração Pública, tanto a direta quanto a indireta, somente possui poder de fazer o que for legalmente permitido, ao contrário das relações entre particulares, onde prevalece o princípio da autonomia da vontade. 2.2 Princípio da Impessoalidade As relações entre a Administração Pública e os administrados devem ser totalmente desprovidas de qualquer tipo de discriminação, em permanente estado de neutralidade, sob pena de configurar abuso de poder e desvio de finalidade (espécies de ilegalidade), a não ser em situações em que determinadas disparidades se justifiquem em face do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 2.3 Princípio da Moralidade A Administração Pública e seus agentes devem exercer suas atribuições em coincidência com os princípios éticos, de tal forma que o desprezo a esses princípios constituam violação ao próprio Direito, configurando, assim, ilegalidade sujeita a nulidade. 2.4 Princípio da Publicidade A Sociedade deve estar sempre ciente de todos os atos da Administração Pública relacionados aos seus interesses, sendo esta obrigada a manter a transparência em sua conduta, posto que o poder emana do povo e este tem o direito à informação incondicional, não sendo, porém, absoluto diante de informações que comprometam o direito pessoal à intimidade (art. 37, §3º, II da CF): “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X da CF) e quando o sigilo for imprescindível para a segurança da sociedade ou do Estado (art. 5º, XXXIII da CF) (BRASIL, 1988). 2.5 Princípio da Eficiência Por ser, a escolha da proposta mais vantajosa, o objetivo final da licitação, sempre aliado ao princípio da moralidade, o administrador deve estar convicto da sua obrigação de honestidade ao lidar com a coisa pública. Segundo Carlos Pinto Coelho, “[…] dever de eficiência é o que se impõe a todo o agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com a legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. (MOTTA, 1998, p.35).” 3 Licitação Toda contratação realizada por órgãos e entidades públicas tem, como escopo básico, a escolha da proposta mais vantajosa à Administração Pública. Porém, ao contrário da administração privada, esse procedimento deve obedecer a critérios rígidos, do qual o aspecto volitivo não participa. Deve obedecer a critérios definidos antecipadamente em ato próprio (instrumento convocatório), cuja regra inclui a igualdade entre os participantes interessados. Ao procedimento administrativo formal e isonômico, de observância obrigatória por toda a Administração Pública direta ou indireta, que visa a escolha da proposta mais vantajosa à Administração Pública, dá-se o nome de Licitação. 3.1 Conceitos e Modalidades de Licitação A doutrina nos oferece ampla conceituação acerca do tema. Apresentamos, dentro das possibilidades de nosso modesto trabalho, alguns desses conceitos: De Maria Sylvia Zanella Di Pietro,vem o ensinamento: “[…] o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato” (DI PIETRO, 2009, p. 350). Já o douto mestre Celso Antônio Bandeira de Melo assim define: “Licitação – em suma síntese – é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na ideia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir” (MELLO, 2009, p. 517). Como procedimento formal, a licitação tem que, necessariamente, se ater ao princípio doutrinariamente conhecido como “LIMPE”; ou seja, a Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, tem que estar presentes em todos os atos praticados pela Administração Pública, com a finalidade de facilitar a aquisição de alguns produtos e introduzir um fundamental item de segurança no processo licitatório.  Para tal, o legislador firmou, no artigo 22 da lei n. 8.666/93, de forma taxativa, o rol das modalidades de licitação e sua aplicabilidade. Assim, as modalidades de licitação que a legislação brasileira prevê, através da Lei 8.666/93, são as seguintes: – Convite: Meio célere de contratação, dispensa a publicação de edital. Os interessados, cadastrados ou não, são escolhidos e convidados em número mínimo de três licitantes. Os demais interessados que não forem convidados, poderão comparecer e demonstrar interesse com vinte e quatro horas de antecedência da apresentação das propostas; – Tomada de preços: necessita de certificado do registro cadastral (CRC). Ou seja, é necessário comprovação dos requisitos para participar da licitação até o terceiro dia anterior ao término do período de proposta; – Concorrência: na fase inicial, exige requisitos de habilitação (exigidos no edital), comprovados através de documentos. Ocorre quando se trata de concessão de direito real de uso, de obras ou serviços públicos – de engenharia ou não -, na compra e venda de imóveis (bens públicos) e licitações internacionais. A Lei 8666/93, em seu art. 23, assim define os limites de valores para esta modalidade: acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia; e acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços de outras naturezas; – Concurso: ocorrerá, nessa modalidade, a escolha de trabalho científico, artístico, ou técnico com premiação ou remuneração aos vencedores, cuja escolha será feita conforme o edital publicado na imprensa oficial, por uma comissão julgadora especializada na área e com antecedência mínima de quarenta e cinco dias; – Leilão: não se confunde com o leilão mencionado no Código de Processo Civil. Esta modalidade licitatória versa sobre a venda de bens inservíveis para a Administração Pública, de mercadorias legalmente apreendidas, de bens penhorados (dados em penhor – direito real constituído ao bem) e de imóveis adquiridos pela Administração por dação em pagamento ou por medida judicial; – Consulta: somente aplicável à tomada de preços. O caput do art. 3º da Lei n. 8.666/93 estabelece 3 (três) finalidades essenciais da licitação, in verbis: “Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos” (Redação dada pela Lei n. 12.349, de 2010). O art. 23 da Lei n. 8.666/1993, define os valores limites para cada modalidade, garantindo a aplicação plena do princípio da isonomia nas licitações, complementando no disposto no artigo supra citado: – para obras e serviços de engenharia: a) convite – até R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais); b) tomada de preços – até R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); c) concorrência – acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); – para compras e serviços não referidos acima: a) convite – até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); b) tomada de preços – até R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais); c) concorrência – acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais). Conforme entendimento de Bruno Aurélio Rodrigues Dias, nos casos em que couber convite, a Administração poderá utilizar a tomada de preços e, em qualquer caso, a concorrência. Esta modalidade destina-se aos interessados do ramo de atividade ligado ao objeto a ser licitado, cadastrados ou não no órgão promotor do certame, tendo como exigência principal, o convite feito pela Administração. Deverão ser, no mínimo, 03 (três) convidados; hoje em dia, porém, com as facilidades da informação tecnológica, muitos órgãos já estão expedindo seus editais por meios eletrônicos, permitindo um número maior de convocados, posto ser, o convite, um meio mais célere de licitação.[2] 3 Licitação sustentável O termo “Licitação Sustentável” deve ser entendido como o procedimento licitatório que ajusta as necessidades da Administração Pública ao inevitável consumo, porém conexo ao conceito de desenvolvimento sustentável. Recebe também outras denominações, a saber, “licitação verde”, “ecoaquisição”, “licitação positiva”, “licitação ambientalmente amigável”, etc. Ao apresentar a licitação sustentável na 6ª Conferência Anual de Compras Governamentais nas Américas, em Lima, Peru, o Ministério do Planejamento assim definiu: “As licitações verdes são aquelas que priorizam a compra de produtos que atendem critérios de sustentabilidade, como facilidade para reciclagem, vida útil mais longa, geração de menos resíduos em sua utilização, e menor consumo de matéria-prima e energia. Para isso, é considerado todo o ciclo de fabricação produto, da extração da matéria-prima até o descarte. Essas contratações abrangem, por exemplo, aquisição de “computadores verdes”, equipamento de escritório feitos de madeira legal, papel reciclável, transporte público movido à energia mais limpa, alimentos orgânicos para cantinas e sistemas de ar condicionado com soluções ecológicas mais evoluídas”.[3] Porém, como acautelam Fernanda Andrade e Jair Eduardo Santana, o conceito de sustentabilidade “abrange muito mais do que suprir as necessidades da geração presente, sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprirem as suas”, pois atingem setores socioeconômicos como “reeducação, conscientização quanto aos impactos do consumo desenfreado, proposição de novo estilo de vida, consumo racional e consciente dos recursos naturais, geração, processamento e descarte do lixo, estreitamento da relação indivíduo-planeta” (ANDRADE; SANTANA, 2011, p. 313). Para Biderman (2008), “A licitação sustentável é uma solução para integrar considerações ambientais e sociais em todos os estágios do processo da compra e contratação dos agentes públicos (de governo) com o objetivo de reduzir impactos à saúde humana, ao meio ambiente e aos direitos humanos. A licitação sustentável permite o atendimento das necessidades específicas dos consumidores finais por meio da compra do produto que oferece o maior número de benefícios para o ambiente e a sociedade” (BIDERMAN et al., 2008, p. 25). Estes posicionamentos doutrinários a cerca da Licitação nos mostram o tipo de posicionamento adotado pela doutrina brasileira cerca do tema em discussão. 3.1 A Necessidade da Licitação Sustentável A Constituição da República, conforme demonstrar-se-á a seguir, é clara quanto às obrigações dos entes públicos em preservar o meio ambiente: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: […] VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII – preservar as florestas, a fauna e a flora;[…] Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988). Neste ponto, buscamos o princípio da legalidade e, consequentemente, a vinculação às condições do edital para que sejam devidamente estabelecidas as condições de sustentabilidade e proteção ambiental no edital licitatório, o que possibilitará, ao Estado, cumprir os dispositivos dos artigos 23 e 225 da Constituição Brasileira quando da aquisição de bens e serviços. O processo licitatório, então, deverá cumprir rigorosamente os princípios constitucionais e os específicos da licitação. Porém, observando o princípio da dignidade humana, com fulcro no interesse público para a aquisição de bens e serviços para Administração Pública. A supremacia do interesse público deve, portanto, ser combinada ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que este princípio (art. 1º, inc. III, CF) [4] autentica a exigência de restrição a outros bens constitucionalmente protegidos, como critério seguro para solução de conflitos tangentes a este basilar princípio da Administração Pública. O processo licitatório deve ter, como ponto de fuga, a dignidade da pessoa humana, que é o maior bem tutelado pela Constituição, protegendo o interesse público e as necessidades da Administração Pública. 3.2 Princípios da Licitação Sustentável Os princípios básicos da Administração Pública, na Licitação Sustentável, devem ser necessariamente aplicados sob a ótica da sustentabilidade. Assim, os critérios de sustentabilidade deverão sempre ser aplicados de forma a não violarem os princípios constitucionais elencados no caput do artigo 37 da Constituição da República. Ou seja, após a definição do objeto a ser licitado, a licitação deve contemplar os requisitos da Administração Pública aliados aos requisitos de sustentabilidade ambiental, pois esta, sim, deve ser o princípio norteador do planejamento e execução dos projetos da Administração Pública para assegurar o desenvolvimento econômico baseado na sustentabilidade, pois a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” é a ordem expressa no artigo 170 da Constituição da República.[5] Além dos princípios que regem a Administração Pública, ao processo licitatório será imposto, ainda, outros princípios além daqueles inseridos no artigo 37 da Constituição, que deverão, necessariamente, ser aplicados sob o mesmo prisma da sustentabilidade. A saber, entre outros pertinentes ao ato administrativo, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo. 3.2.1 Princípio da Probidade Administrativa Estabelece a legitimidade e legalidade dos atos públicos. O § 4º do Art. 37/CF prevê que, aos atos de improbidade administrativa “importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.[6] “O caput do Art. 41º, da Lei n. 8.666/93 determina: "A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada". Assim, a inobservância desse princípio pode causar a nulidade do procedimento.[7] 3.2.3 Princípio do Julgamento Objetivo O legislador pode vedar a utilização de todo e qualquer elemento, fator de sigilo ou critério secreto que reduza a isonomia entre os licitantes, conforme os ditames da Lei n. 8.666, Art. 44 § 1º: “É vedada a utilização de qualquer elemento, critério ou fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que possa ainda que indiretamente elidir o princípio da igualdade entre os licitantes”[8]. Já o art. 45 da mesma lei, expressamente ordena: “O julgamento das propostas será objetivo, devendo a comissão de licitação ou responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle”[9]. 4 Licitação Sustentável como Instrumento para uma Gestão Pública Eficiente Ao criar e publicar a Instrução Normativa nº 1 de 19/01/2010, com força de lei, a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação formulou os critérios da sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal, complementada pela Medida Provisória n. 495 de 19 de julho de 2010, que alterou as Leis n. 8.666/1993, 8.958, de 20 de dezembro de 1994, e 10.973, de 2 de dezembro de 2004, e revogou o § 1º do art. 2º da Lei n. 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, com o objetivo de unir a licitação à promoção do desenvolvimento social. Após a implementação de conceito e legislação específica sobre o tema, não há mais que se falar simplesmente em menor preço, mas sim, em melhor compra. Sob este prisma, buscar-se-á sempre a obtenção de resultados positivos, via medições de qualidade e desempenho, com percepção homogeneizada de demanda e análise do ciclo de vida. Preço passa a ser um conceito relativizado, posto que nem sempre o mais barato significará melhor compra, tanto em questões de gastos como em cláusulas ambientais, sendo, então o objetivo da administração pública federal, na seleção da proposta mais vantajosa ao interesse público, não apenas o preço, mas principalmente a qualidade, o custo com a utilização e a coerência do dever do Estado de proteção ao meio ambiente, concernente à política de desenvolvimento sustentável. Destarte, a licitação sustentável surge como uma ferramenta inovadora na administração pública, “visando o incentivo à produção sustentável no país, agregando suporte ao desenvolvimento sustentável do mesmo, com políticas globais dirigida à proteção ambiental e a seguridade econômica e social da nação” (LEAL FILHO; ELOI, 2010, p. 1). Ao cumprir os critérios de análise das relações de custo/benefício, contratação justa e isonômica, além de manter sempre transparentes os critérios ambientais adidos à realização das licitações verdes, a Administração Pública jamais poderá frustrar a competitividade e nem discriminará participantes. Outrossim, a questão sobre uma possível abscisão  quanto ao aspecto competitivo da disputa licitatória é resolvida pela Lei Federal n. 12.349/2010 que alterou o art. 3º da Lei 8.666/93; quanto ao tratamento diferenciado, a justificativa tem base constitucional (art. 174), não ferindo o princípio da isonomia. Lembrando Raquel de Pinho, a inserção do conceito de sustentabilidade nas licitações trilha como forma de inserção dos critérios sociais e ambientais nos contratos celebrados pela Administração Pública, enxergando “a redução dos impactos ambientais e sociais e maximizando os valores almejados, tais como a satisfação do usuário, a contribuição para operações eficientes e a preservação da biodiversidade” (PINHO, 2010, p. 2) e, consequente e logicamente, transportando para o presente a responsabilidade e os benefícios que advêm desta conduta. Conclusão O presente estudo teve como norte, antes de tudo, os efeitos da licitação sustentável sobre as ações do poder público no seu ato de administrar recursos disponíveis cada vez mais escassos. A partir do entendimento doutrinário/jurisprudencial e da legislação específica, fica clara a contemporaneidade das preocupações do legislador, no que concerne à preservação do planeta, do consumo de recursos não renováveis, fornecendo o necessário fulcro legal da plena constitucionalidade. Destarte, a licitação sustentável cumpre seu papel de forte instrumento de metamorfose dos hábitos da iniciativa privada, posto que, por não ser ato discricionário, mas uma obrigatoriedade do administrador público frente aos preceitos constitucionais, impõe aos licitantes as iniciativas servis à finalidade de consumo/desenvolvimento sustentável e consequente preservação dos recursos necessários à sobrevivência e desenvolvimento das gerações futuras. Note-se, neste ponto, que a Administração Pública está entre as maiores contratantes do país, capaz de alvitrar novas práticas no mercado consumidor e instituir formas inovadoras de produção. O poder executivo federal, ao editar o fundamental Decreto n. 7.746 de 05/06/2012, que regulamentou os critérios e práticas de sustentabilidade nas licitações, cumpriu o seu papel de interventor estatal, posto que a intervenção nos casos de preservação do meio ambiente deve ser compulsória (BRASIL, 2012). Enfim, a Licitação Sustentável é o instrumento capaz de posicionar a Administração Pública em prol da sustentabilidade ambiental.
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Organizações sociais: aspectos controvertidos acerca da dispensa de licitação, artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93
As organizações sociais são entidades privadas, sem fins lucrativos, que integram o terceiro setor, e estão diretamente ligadas à necessidade do Estado em transferir funções para que terceiros prestem, por meio de convênio, serviços públicos não exclusivos do Estado. O objetivo da sua instituição foi encontrar um instrumento que permitisse a transferência de certas atividades que estavam sendo exercidas pelo Poder Público e que seriam melhor exercidas pelo setor privado. Trata-se de uma forma de parceria, com a valorização do chamado terceiro setor, ou seja, serviços de interesse público, mas que não necessitam ser prestados pelos órgãos e entidades governamentais. O principal objetivo é exercer um maior controle sobre as entidades privadas que recebem verbas orçamentárias para a consecução de suas finalidades assistenciais, através de metas e obtenção de resultados. Entende-se que a organização social não esteja submetida à licitação, tendo em vista que é formalizada por contrato de gestão.[1]
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO As organizações sociais são entidades privadas, sem fins lucrativos, que integram o terceiro setor, e estão diretamente ligadas à necessidade do Estado de delegar funções para que terceiros prestem, por meio do contrato de gestão, serviços públicos não exclusivos do Estado, como saúde, ensino e outras atividades previstas no art. 1º da Lei 9.637/98. Partindo-se da premissa de que entidades privadas receberão recursos públicos, entende-se que a organização social seja submetida à licitação, conforme prevê o caput do art. 116 da Lei 8.666/93, e o art. 37 da Constituição Federal. Porém, o art. 24, inciso XXIV da Lei 8.666/93 dispensa a Administração Pública de licitar para contratar a entidade, e também dispensa a entidade de licitar para as atividades contempladas no contrato de gestão. As organizações sociais surgem em um contexto de crise do Estado, portanto, será abordada sua origem, natureza jurídica, objeto e a reforma gerencial da administração pública, bem como o contrato de gestão, modalidade por meio da qual as entidades receberão recursos públicos, visando à parceria entre o Público e o Privado, com o mesmo objetivo, sendo, ainda, usado como estratégia para reforma administrativa do Estado. O Estado, por meio de convênio, transfere recursos públicos a instituições privadas. O art. 116 da Lei 8.666/93 preceitua que se aplicam, subsidiariamente, as disposições da lei supracitada aos convênios. O caput do art. 37 da Constituição Federal dispõe que essas entidades deverão obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Porém, o art. 24, XXIV, da Lei de Licitações dispensa as entidades de licitar para as atividades contempladas no contrato de gestão. Há grande divergência doutrinária, e o estudo visa a apontar a posição majoritária acerca da seguinte dúvida: as organizações sociais devem ou não licitar para as atividades contempladas no contrato de gestão? Há doutrinadores que defendem que as organizações sociais não estão obrigadas às regras da licitação, por se tratar de um contrato de gestão e ser celebrado através de convênio, que é diferente de contrato, uma vez que no contrato os acordos de vontades são divergentes e opostos, ou seja, para celebrar um convênio as partes devem ter os mesmo objetivos. O art. 24, XXIV, da Lei n° 8.666/93 também prevê a dispensa de licitação para as atividades previstas no contrato de gestão. Porém, outros doutrinadores defendem que as entidades contempladas no contrato de gestão devem observar as regras da licitação, tendo em vista que as despesas decorrentes da aplicação de recursos públicos, repassados mediante convênios, estão sujeitas às disposições da Lei nº 8.666/93, conforme estabelecido em seu art. 116, e às regras do art. 37 da Constituição Federal. A política do terceiro setor objetiva uma maior participação da sociedade no planejamento e execução de políticas públicas, nas atividades que não são exclusivas do Estado. As organizações sociais são entidades privadas, sem fins lucrativos, porém, recebem recursos do poder público. O Estado usa as OS como uma forma de suplementação das necessidades da coletividade, pois, a responsabilidade não é exclusiva do Estado. A dispensa de licitação, prevista no art. 24, XXIV, da Lei n° 8.666/93, deve observar os princípios constitucionais do art. 37 da CF. O supracitado artigo, presente na Lei de Licitações, dispõe sobre a não obrigatoriedade de se realizar um processo de licitação, observando, ainda, o entendimento do Supremo Tribunal Federal e de diversos doutrinadores que justificam sua formalização através do contrato de gestão, uma vez que se trata de uma forma diferenciada de contratação, pois ambas as partes apresentam o mesmo objetivo. Portanto, o objetivo geral é apontar se as Organizações Sociais estão ou não obrigadas a licitar, partindo-se da premissa de que o art. 24, XXIV, da Lei 8.666/93 prevê que elas estão dispensadas deste paradigma. O presente estudo visa a apontar, também, os principais questionamentos doutrinários acerca dos repasses contemplados no contrato de gestão, frente ao previsto no caput do art. 37 da Constituição federal de 1988. Assim sendo, o presente estudo pretende apresentar a necessidade da reforma administrativa, visto que o Estado, por enfrentar uma crise econômica, se viu obrigado a encontrar meios para reduzir os gastos públicos sem deixar a população à mercê dos serviços sociais. Partindo-se dessa premissa, foram várias as discussões acerca da instituição do contrato de gestão, modalidade diferenciada para repasse de recursos públicos. O estudo proposto será realizado na estrutura de artigo científico, e irá basear-se numa abordagem qualitativa, através de pesquisa bibliográfica, por intermédio de análise de doutrinas e jurisprudências. O método de abordagem é o dialético, pois visa a elaborar uma conclusão a partir da contradição de teses, que, no caso, têm por objetivo identificar se as organizações sociais estão obrigadas ou não a licitar, tendo em vista que há grande divergência jurisprudencial e doutrinária. 1. REFORMA GERENCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA As organizações sociais surgiram em um contexto de crise do Estado, por enfrentar uma crise econômica, pela qual o Poder Público viu-se obrigado a encontrar meios para reduzir os gastos públicos sem deixar a população desprovida dos serviços sociais fundamentais, que não são de competência exclusiva do Estado. (PEREIRA, 1999, p.6).  A Reforma Gerencial almejava a substituição do modelo de administração pública burocrática, misturada a práticas clientelistas ou patrimonialistas, por uma administração pública gerencial, focada em resultados através de avaliações de desempenho. As reformas administrativas na América Latina costumam ser apenas mudanças ad hoc no organograma da administração, que são implementadas no momento em que o novo governo toma posse. Essas são falsas reformas que não envolvem mudanças institucionais significativas. (PEREIRA, 1999, p.6). O objetivo dos autores dessa “Reforma do Estado”, com a criação da figura das organizações sociais, foi encontrar instrumento que permitisse a transferência para elas de certas atividades exercidas pelo Poder Público e que melhor seriam executadas pelo terceiro setor, sem necessidade de concessão ou permissão. Trata-se de uma forma de parceria, com a valorização do chamado terceiro setor, ou seja, serviços de interesse público, mas que não necessitam ser prestados pelos órgãos e entidades governamentais. Além dessa, existe outra intenção subjacente, que é a de exercer maior controle sobre as entidades privadas que recebem verbas orçamentárias para a consecução de fins assistenciais, mas estão sujeitas a controle interno, pela entidade responsável pelo contrato, e externo (CF. arts. 9 e 10 da Lei 9.637), mesmo porque estão sujeitas aos princípios de Direito Público. (MEIRELLES, 2013, p. 437). Importante ressaltar que a qualificação de entidade privada como organização social é ato administrativo discricionário. 1.1. Terceiro Setor A noção de terceiro setor está diretamente ligada à necessidade do Estado em delegar funções para terceiros de serviços não exclusivos do Estado. Com as dificuldades do Estado em executar diversas de suas funções, o terceiro setor começou a ajudar nas questões sociais. O terceiro setor é composto por entidades da sociedade civil que exercem atividades de interesse público e não lucrativas, e coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e o segundo setor, que é o mercado. (DI PIETRO, 2012, p. 259) O terceiro setor caracteriza-se por prestar atividade de interesse público, por iniciativa privada, sem fins lucrativos e, para receber essa ajuda, deve atender a determinados requisitos impostos por lei e, normalmente, celebram convênio com o poder público para formalizar a parceria. (DI PIETRO, 2013, p. 555) As organizações sociais integram o terceiro setor, nos termos da Lei federal n. 9.637, de 18.5.1998. O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sociais sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos os requisitos previstos nesse mesmo diploma. Instituída pela Medida Provisória nº 1.591, de 09 de outubro de 1997, e posteriormente convertida na Lei Federal nº 9.637, de 15 de maio de 1998, as organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que integram o terceiro setor, assim qualificadas pelo Poder Executivo. Para melhor esclarecimento, temos o seguinte posicionamento acerca do objeto da instituição da OS: “O projeto das organizações sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não exclusivos, nos quais o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto de que esses serviços serão mais eficientes realizados se, mantendo o financiamento de Estado, forem realizados pelo setor público não estata”l. (DI PIETRO, 2012, p. 271). As OS não são um novo ente administrativo, e sim um título que a administração outorga a uma entidade privada, sem fins lucrativos, para que ela possa receber determinados benefícios do Poder Público (dotações orçamentárias, isenções fiscais etc.) (MEIRELES, 2013, p. 437). No que tange aos requisitos para sua qualificação, temos o seguinte posicionamento: “A Lei 9.637, de 15/05/98, fixou requisitos específicos para que a entidade privada possa ser qualificada como organização social OS) ou entidade semipública. O art. 12 § 3o da citada lei já admitia que bens públicos fossem destinados a essas entidades, dispensada a licitação. A lei 9.648/98, por sua vez, inseriu, no teor do art. 24 da LNL, o inciso XXIV, versando sobre análoga dispensa, voltada para a prestação de serviços pertinentes a atividades contempladas no contrato de gestão, relacionadas no art. 1 da Lei 9.637/98, como dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e à preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde.” (MOTTA, 2011, p. 330) Seguindo o posicionamento do aludido autor, Di Pietro (2012, p 271), entende-se por “organizações sociais” as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e, assim, ter direito à dotação orçamentária. O objetivo é exercer um maior controle sobre as entidades privadas que recebem verbas orçamentárias para a consecução de suas finalidades assistenciais, através da programação de metas e obtenção de resultados, ou seja, de instituir-se um modelo gerencial. Quanto à sua natureza jurídica, as organizações sociais, segundo a Lei nº 9.637, de 15/05/98, são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que visam a cooperar com o Poder Público na realização de atividades específicas previstas na lei. As entidades qualificadas como organizações sociais, nos termos da Lei supracitada, são entidades sem fins lucrativos. Pereira Junior (2009, p. 331) ensina que “nem por isso passam a integrar a estrutura formal da Administração Pública, direta ou indireta, mas poderão receber recursos orçamentários, bens públicos e até servidores”. Quanto à natureza jurídica, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1923, tem o seguinte posicionamento: “Por fim, ainda no tema das licitações, cabe apreciar se as organizações sociais, em suas contratações com terceiros, fazendo uso de verbas públicas, estão sujeitas ao dever de licitar. As organizações sociais, como já dito, não fazem parte da Administração Pública Indireta, figurando no terceiro setor. Possuem, com efeito, natureza jurídica de direito privado (Lei nº 9.637/98, art. 1º, caput), sem que sequer estejam sujeitas a um vínculo de controle jurídico exercido pela Administração Pública em suas decisões. Não são, portanto, parte do conceito constitucional de Administração Pública. No entanto, o fato de receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos há de fazer com que seu regime jurídico seja minimamente informado pela incidência do núcleo essencial dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput), dentre os quais se destaca a impessoalidade.” As organizações sociais, portanto, não fazem parte da administração pública direta nem da indireta, elas integram o terceiro setor, sendo classificadas como de natureza jurídica de direito privado. 2 REPASSES DE RECURSOS PÚBLICOS Inicialmente, a ideia de se criar a nova modalidade de contrato foi para formular a parceria entre os setores público e privado, tendo em vista a semelhança de objetivos. O contrato de gestão fixaria metas a serem cumpridas pelas entidades, através do plano de trabalho apresentado pela própria entidade, que seriam avaliadas através dos resultados. “O contrato de gestão tem sido considerado como elemento estratégico para a reforma do aparelho administrativo do Estado. Ele não apresenta uniformidade de tratamento nas várias leis que o contemplam, mas sua finalidade básica é possibilitar à Administração Superior fixar metas e prazos de execução a serem cumpridos pela entidade privada ou pelo ente da administração indireta, a fim de permitir melhor controle de resultados”. (MEIRELLES, 2013, p. 282). Di Pietro (2012, p. 261) assevera que são grandes as dificuldades encontradas para os estudiosos do direito, em face de um direito constitucional rígido, que praticamente fecha todas as portas para qualquer tipo de flexibilização. “A expressão é utilizada tanto para designar parcerias do Poder Público com órgãos da própria Administração Direta e com entidades da Administração Indireta, como parcerias com entidades do terceiro setor, no caso, as chamadas organizações sociais”. (DI PIETRO, 2012, p. 260). O art. 5o da Lei 9.637/98 preceitua ser o contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o. Importante ressaltar que convênio é um acordo de vontades, em que pelo menos uma das partes integra a Administração Pública, por meio dos quais são conjugados esforços e (ou) recursos, visando a disciplinar a atuação harmônica e sem intuito das partes, para o desempenho de competências administrativas. Convênio é diferente de contrato, uma vez que no contrato os acordos de vontades são divergentes e opostos (JUSTEN FILHO, 2012. p. 1.086). Há também o entendimento de que as duas formas sejam distintas. Para Meirelles (2013, p. 464): “Convênio é acordo, mas não é contrato. No contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio os participes têm interesse comum e coincidentes”. A atual jurisprudência entende que contrato e convênio são diferentes, porém, o contrato de gestão tem natureza jurídica de convênio. Importante demonstrar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1923/ DF: “12. A figura do contrato de gestão configura hipótese de convênio, por consubstanciar a conjugação de esforços com plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: a realização de serviços de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, meio ambiente e ciência e tecnologia, razão pela qual se encontram fora do âmbito de incidência do art. 37, XXI, da CF.” Como a figura do contrato de gestão é, em sua configuração jurídico-normativa, bastante próxima à conhecida figura dos convênios, não haveria, a princípio, razões suficientemente fortes para descaracterizá-lo como um instrumento materializador de um acordo de vontades, para fins de formalização de uma parceria entre o Estado e uma organização social. Está-se diante da denominada administração por acordos, sendo os acordos, como o contrato de gestão, um dos possíveis instrumentos para o desenvolvimento da ação administrativa. (OLIVEIRA, 2006. p.12­) Conforme demonstrado acima, o contrato de gestão possui características de convênio, devendo assim ser tratado pelos operadores do direito nos atos que precedem a sua formalização, bem como no acompanhamento de sua execução. Portanto, entende-se que o contrato de gestão tem natureza jurídica de convênio. 3 LICITAÇÃO O Art. 3o da Lei Federal 8.666/93 preceitua que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. “A licitação é um procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse, inclusive o da promoção do desenvolvimento econômico sustentável e fortalecimento de cadeias produtivas de bens e serviços domésticos. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculantes para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos. Tem como pressuposto a competição.” (MEIRELES, 2013, p.290) Cumpre ao Estado garantir o desenvolvimento social e econômico. Com a crescente demanda por bens, obras e serviços em todo o país, tornou-se imprescindível a adoção de procedimentos e mecanismos de controle, que garantam a aplicação do grande volume de recursos disponíveis, com eficiência e transparência.  O art. 37 da Constituição Federal preceitua que: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” Por outro lado, o art. 24, XXIV da Lei 8.666/93 prevê a hipótese da dispensa de licitação: “Art. 24. É dispensável a licitação: […]  XXIV – para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”. Quanto à licitação, entende-se que não se faz necessária a realização de tal procedimento, tendo em vista que, quando o contrato de gestão é celebrado entre pessoas integrantes da Administração Pública, existe uma conjunção de esforços para o cumprimento de funções comuns e, mesmo que algum particular participe do convênio, a licitação não se faz necessária porque as partes do convênio não visam a extrair algum beneficio pessoal a partir da execução da avença; porém, entende-se que é devida a licitação caso existam instituições privadas em situação equivalente, devendo, assim, tornar-se obrigatório que estas instituições passem por um processo seletivo. 4 DA EXECUÇÃO DE RECURSOS POR MEIO DO CONTRATO DE GESTÃO As organizações sociais não estão obrigadas a licitar, porém, devem atender aos princípios constitucionais previstos no art. 37 da CF. Assim entende o STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1923, apresentando o seguinte posicionamento: “As dispensas de licitação instituídas no art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 e no art. 12, §3º, da Lei nº 9.637/98 têm a finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas, fomentando a atuação de organizações sociais que já ostentem, à época da contratação, o título de qualificação, e que, por isso, sejam reconhecidamente colaboradoras do Poder Público no desempenho dos deveres constitucionais no campo dos serviços sociais. O afastamento do certame licitatório não exime, porém, o administrador público da observância dos princípios constitucionais, de modo que a contratação direta deve observar critérios objetivos e impessoais, com publicidade de forma a permitir o acesso a todos os interessados.” Carvalho Filho (2010, p. 303) segue o supracitado posicionamento: “A celebração de convênios, por sua natureza, independe de licitação prévia como regra. É verdade que a Lei nº 8.666/93 estabelece, no art 116, que é ela aplicável a convênios e outros acordos congêneres. Faz, entretanto, a ressalva de que a aplicação ocorre no que couber. Como lógico, raramente será possível a competitividade que marca o processo licitatório, porque os pactuantes já estão previamente ajustados para o fim comum a que se propõem. Por outro lado, no verdadeiro convênio, existe perseguição de lucro, e os recursos financeiros empregados servem para cobertura dos custos necessários à operacionalização do acordo. Sendo assim, inviável e incoerente realizar a licitação.” Entretanto, outros doutrinadores fundamentam que deve ser necessária a licitação. Melo (2006, p. 502) tem o seguinte posicionamento: “Não se imagine que, pelo fato de o art. 37, XXI, mencionar a obrigatoriedade de licitação, salvo nos casos previstos em lei, o legislador é livre para arredar tal dever sempre que lhe apraza. Se assim fosse, o princípio não teria envergadura constitucional, não seria subordinante, pois sua expressão só se configuraria ao nível das normas subordinadas, caso em que o disposto no preceptivo referido não valeria coisa alguma. A ausência de licitação, obviamente, é uma exceção que só pode ter lugar nos casos em que razões de indiscutível tomo a justifiquem, até porque, como é óbvio, a ser de outra sorte, agravar-se-ia o referido princípio constitucional da isonomia. Por isto mesmo é inconstitucional a disposição do art. 24, XXIV, da Lei de Licitações (Lei 8666, de 21.6.93), ao liberar de licitação os contratos entre o Estado e as organizações sociais, pois tal contrato é o que ensancha a livre atribuição deste qualificativo a entidades privadas, com as correlatas vantagens; inclusive a de receber bens públicos em permissão de uso sem prévia licitação”. Justen Filho (2012, p. 391) entende que, após selecionada uma organização social e avençado o contrato de gestão, os futuros contratos de prestação de serviços serão realizados diretamente. “O contrato de gestão não é uma espécie de porta aberta para escapar das limitações do direito público. Portanto, e até em virtude da regra explícita do art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, o Estado é obrigado a submeter seus contratos de gestão ao princípio da prévia licitação.” (JUSTEN FILHO, 2012. p. 391) Di Pietro (2012, p. 275) também entende que, para que a organização social se enquadrasse adequadamente nos princípios constitucionais que regem a gestão do patrimônio público, seria necessária exigência de licitação somente para escolha da entidade, pois as atividades contempladas no contrato de gestão deveriam apenas submetê-las aos princípios da licitação, e outros demais. “A Lei nº 9.648, de 27-05-98, que alterou a Lei nº 8.666, de 21-06-93 (Lei de licitações e contratos), privilegiou as organizações sociais ao prever, entre as hipóteses de dispensa de licitação, a “celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão” (DI PIETRO, 2012, p. 274). Portanto, entende-se que, quando houver mais de um interessado, com o mesmo objeto a ser executado no contrato de gestão, deve-se escolher a proposta mais vantajosa, pois a administração não está livre para esta escolha; porém, se houver apenas um interessado, a licitação para o contrato de gestão seria dispensada. “Cumpre notar que, a despeito da previsão normativa aludida, foi editado o Decreto n. 5.504/05, tornando obrigatória a submissão das organizações sociais ao princípio licitatório (art. 1º, § 5º). No mesmo sentido, o Tribunal de Contas da União entendeu que “as organizações sociais estão sujeitas às normas gerais de licitação e de administração financeira do poder público” (Acórdão n. 601/2007, 1ª Câmara, Min. Rel. Aroldo Cedraz).” (OLIVEIRA, 2006. p. 18­) Quanto às atividades contempladas no contrato de gestão, a organização social está dispensada de licitar porque já tem sua autonomia restrita, uma vez que o principal objetivo é que as OS cumpram as metas estipuladas e obtenham os resultados, apresentando sua produtividade. CONCLUSÃO Conforme apresentado, o STF e alguns doutrinadores entendem que as organizações sociais não estão obrigadas a seguirem as regras da licitação, por se tratar de um contrato de gestão, celebrado através de convênio. Tornou-se ainda evidente que o convênio é diferente de contrato, uma vez que nesse, os acordos de vontades são divergentes e opostos, e naquele, as partes devem apresentar objetivos análogos.  O art. 24, XXIV, da Lei 8.666/93 também prevê a dispensa de licitação para as atividades previstas no contrato de gestão. Entretanto, outros doutrinadores entendem que as atividades contempladas no contrato de gestão devem observar as regras da licitação, tendo em vista que as despesas decorrentes da aplicação de recursos públicos são repassadas mediante convênios e estão sujeitas às disposições da Lei nº 8.666/93, conforme estabelecido no art. 37 da Constituição Federal.  Diante do tema bastante controvertido, seguindo-se o posicionamento do STF, entende-se que as OS estão dispensadas das regras da Lei nº 8.666/93, porém, devem observar os princípios do art. 37 da CF, ou seja, para contratação de pessoal, a entidade não precisa realizar concurso público, mas, baseando-se no princípio da impessoalidade, deve realizar, pelo menos, um processo seletivo. Para as compras, por exemplo, dispensa-se a realização de licitação, e exige-se, apenas, o levantamento de três cotações, objetivando a busca pelo menor preço.  Por fim, o principal objetivo da dispensa de licitação, prevista no art. 24, inciso XXIV da Lei 8.666/93, é a flexibilização, para que as OS possam desempenhar serviços sociais com maior eficiência, através de um modelo gerencial, sendo submetidas a um regime especial mais flexível e dinâmico, possibilitando, assim, um melhor desenvolvimento de atividades não exclusivas do Estado, previstas no contrato de gestão.
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Imprescritibilidade das ações de ressarcimento por prejuízos ao erário à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O presente trabalho tem por objetivo analisar ao disposto no art. 37 § 5º da Constituição Federal, sobre o qual existe grande divergência doutrinária e jurisprudencial acerca das pessoas às quais o dispositivo se aplica, bem como sobre a (im)prescritibilidade das ações de ressarcimento por prejuízos ao erário. O método aqui utilizado consiste na análise do dispositivo constitucional supramencionado e da doutrina especializada sobre a matéria à luz do entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Observou-se a existência de grande divergência doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, a qual somente será pacificada após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 669.069, afetado pela repercussão geral – tema nº 666. Por fim, chegou-se a conclusão de que o § 5º do art. 37 da Carta Magna aplica-se a todo e qualquer agente, seja agente público ou particular, que praticando ilícito, cause prejuízos ao erário, bem como concluiu-se que a parte final do dispositivo em questão consagra a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, tendo em vista a ressalva à possibilidade de restrição do prazo prescricional por norma infraconstitucional.
Direito Administrativo
Introdução Grande é a divergência, tanto doutrinária quanto jurisprudencial, acerca da correta interpretação ao disposto no art. 37 § 5º da Constituição Federal, que assim dispõe: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:[…] § 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. (Grifo nosso)”. Inicialmente, a controvérsia se concentra sobre o vocábulo “agente” constante na norma supra transcrita. Há quem defenda que o texto constitucional, ao dispor desta forma, quis se referir aos agentes públicos, conceituados pelo art. 2º da Lei nº 8.429/1992 como “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função”, seja no âmbito da administração direta ou indireta. Desta forma, o dispositivo em questão só abrangeria os ilícitos praticados pelos agentes públicos, sendo espécies destes, consoante classificação majoritária da doutrina especializada, os agentes políticos, os particulares em colaboração com o poder público e os servidores estatais, subdividindo-se estes em servidores temporários, estatutários e empregados públicos. Doutro modo, há defensores da tese de que a Constituição Federal, ao dispor sobre “qualquer agente, servidor ou não”, estaria abarcando a todos que porventura pudesse praticar atos ilícitos que ensejassem prejuízos ao erário, sejam estes agentes causadores dos danos agentes públicos ou não, ou seja, que se trate de particulares. Noutro sentido – e este é o ponto central deste trabalho -, consiste em buscar a real intenção do Constituinte Originário ao dispor no art. 37 § 5º, parte final, da Carta Magna, a expressão “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. A controvérsia, neste ponto, consiste no fato de a maioria dos doutrinadores modernos defenderem que o referido trecho trata-se de uma ressalva constitucional à edição de leis que visem normatizar o prazo prescricional das ações de ressarcimento por prejuízos ao erário, logo, seriam estas imprescritíveis. Mesmo assim, apesar de se tratar de corrente minoritária, nomes importantes como Ada Pellegrini Grinover, Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho, Elody Nassar, dentre outros, defendem a prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, suscitando como argumento a proteção ao princípio da segurança jurídica, que visa garantir a estabilidade das relações em decorrência do tempo[1].  Registre-se que as controvérsias ora suscitadas tiveram sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, tendo por leading case o Recurso Extraordinário nº 669.069, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki[2].    No recurso em comento, interposto pela União em face da Viação Três Corações Ltda., empresa de ônibus do Estado de Minas Gerais, busca o Recorrente a declaração de imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário, com vistas a reformar o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que, confirmando a sentença, extinguiu a ação de ressarcimento ajuizada pela União, que tem por causa de pedir um acidente de trânsito em que foi danificado um automóvel de sua propriedade. Ao julgar o recurso, decidirá o Supremo Tribunal Federal sobre a correta interpretação do art. 37 § 5º da Constituição Federal, pacificando o entendimento acerca da (im)prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, bem como sobre a abrangência do referido dispositivo, ou seja, se apenas será aplicado aos atos de improbidade administrativa, ou se será aplicado a todo e qualquer ato ilícito que gere prejuízos à Administração. Estabelecidas tais premissas, passamos à análise do tema propriamente dito. 1. Da abrangência do vocábulo “agente” Como dito alhures, existe divergência acerca da abrangência do vocábulo “agente” previsto no art. 37 § 5º da Constituição Federal, sendo tal matéria objeto do Recurso Extraordinário nº 669.069, que será julgado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral. A título de exemplo, vejamos alguns doutrinadores que defendem que o dispositivo em questão se aplica apenas aos agentes públicos: “Ora, o artigo 37, § 5º, da Constituição apenas afirma que as ações de ressarcimentos decorrentes de prejuízos causados ao erário não estarão sujeitas ao prazo prescricional a ser estabelecido em lei para ilícitos praticados por agentes públicos (grifo nosso). (TOURINHO apud RAMOS, 2011, p. 22)”.  “[…] a redação do § 5º do art. 37 da Constituição Federal indica que foi conferida atribuição para lei infraconstitucional estabelecer prazo de prescrição apenas no que tange aos ilícitos praticados por qualquer agente público, não se lhe determinando, de outro lado, que viesse a dispor sobre o prazo para o ajuizamento das ações de ressarcimento (grifo nosso). (FORNACIARI JÚNIOR apud RAMOS, 2011, p. 22)”. “São, contudo, imprescritíveis, as ações de ressarcimento por danos causados por agente público, seja ele servidor público ou não, conforme o estabelece o artigo 37, § 5º, da Constituição. Assim, ainda que para outros fins a ação de improbidade esteja prescrita, o mesmo não ocorrera quanto ao ressarcimento dos danos (grifo nosso). (DI PIETRO apud RAMOS, 2011, p. 30)”. Registre-se que apesar do texto constitucional em nenhum momento dispor sobre “agentes públicos”, vários doutrinadores de renome entendem por restringir o alcance da norma ora em análise apenas àqueles que prestam serviços à Administração Pública, excluindo-se, portanto, os particulares que eventualmente venham gerar prejuízos ao erário. Entretanto, também há quem defenda a aplicação do art. 37 § 5º aos particulares também, a saber: “Nos termos do § 5º, do art. 37 da Constituição Federal, a lei deverá estabelecer os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, conforme se verifica no art. 23 da presente lei. A própria Constituição da Republica, porém, ressalva as ações de ressarcimento que serão imprescritíveis, cabendo sempre seu ajuizamento em face do agente público ou terceiro que por ação ou omissão, dolosa ou culposa, cause lesão ao patrimônio publico (grifo nosso). (DE MORAES apud RAMOS, 2011, p. 34)”. Analisando o dispositivo constitucional em comento, entende o Autor ser esta segunda corrente a mais correta e a desejada pelo Constituinte Originário. Com efeito, o § 5º do art. 37 da Constituição Federal dispõe que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não”. Ao tratar sobre os ilícitos praticados por qualquer agente, entendemos que a norma determina sua incidência sobre qualquer agente lesivo, ou seja, qualquer pessoa, agente público ou particular – servidor ou não, respectivamente – que cause prejuízos ao erário. Pensamento diverso ao aqui exposto ensejaria grave violação ao princípio da isonomia, pois, seria possível aplicação de normas e efeitos distintos a agentes lesivos que gerem prejuízos ao erário, em razão apenas de sua vinculação, ou não, com a Administração, ou seja, aqueles classificados como agentes públicos poderiam ter tratamento mais grave do que aqueles que, agindo com o mesmo grau de lesividade, não possuem vínculo com o Estado. O Supremo Tribunal Federal, através de seu órgão Plenário, nos autos do Mandado de Segurança nº 26.210, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, cujo acórdão, até então, é considerado um leading case sobre a matéria objeto deste trabalho. Neste mandamus, impetrado por Tania Costa Tribe, ex-bolsista do Conselho Nacional de Pesquisas -CNPq, insurge-se a impetrante contra decisão do Tribunal de Contas da União, por meio da qual fora condenada ao pagamento do valor integral da bolsa percebida pela mesma para obtenção de doutorado no exterior, a título de devolução de valores, acrescido de juros de mora e correção monetária, em decorrência do descumprimento da obrigação de retornar ao País após o término da concessão da bolsa de estudos. Dentre outros argumentos, sustentou a impetrante a aplicação do § 5º do art. 37 da Carta Magna apenas aos agentes públicos, entretanto, decidiu de forma diversa o Supremo Tribunal Federal, conforme se vê no voto do Ministro Relator, in verbis: “Ademais, não se justifica a interpretação restritiva pretendida pela impetrante, segundo a qual apenas os agentes públicos estariam abarcados pela citada norma constitucional, uma vez que, conforme bem apontado pela Procuradoria-Geral da República, tal entendimento importaria em injustificável quebra do princípio da isonomia. Com efeito, não fosse a taxatividade do dispositivo em questão, o ressarcimento de prejuízos ao erário, a salvo da prescrição, somente ocorreria na hipótese de ser o responsável agente público, liberando da obrigação os demais cidadãos. Tal conclusão, à evidência, sobre mostrar-se iníqua, certamente não foi desejada pelo legislador constituinte. (MS 26.210, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 04 set. 2008, Plenário, DJE de 10 out. 2008) – (grifo nosso)”. Sendo assim, amparado no leading case do Supremo Tribunal Federal, bem como no princípio da isonomia, previsto no rol dos direitos e garantias fundamentais da Carta Magna, entendemos que o vocábulo “agente” previsto no § 5º do art. 37 abrange não só aos agentes públicos, mas, também, aos particulares que, de alguma forma, praticar atos ilícitos que gerem prejuízos ao erário. 2. Da imprescritibilidade das ações de ressarcimento por danos ao erário A segunda controvérsia, e a mais importante, diz respeito à imprescritibilidade ou não das ações de ressarcimento por danos ao erário, ante a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da correta interpretação da parte final do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, que dispõe: “Art. 37. Omissis.[…] § 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. (Grifo nosso)”. Como dito em linhas anteriores, diversos doutrinadores de renome defendem a prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, com vistas a garantia do princípio da segurança jurídica, o qual tem por fim garantir a estabilidade das relações jurídicas conforme a decorrência do tempo. Dentre aqueles que defendem a tese da prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, destacamos o entendimento de Rita Tourinho (apud RAMOS, 2011, p. 22): “Observe-se que toda vez que o texto constitucional estabelece a imprescritibilidade o faz expressamente. Assim, quando trata do crime de racismo estabelece que “constitui crime inafiançável e imprescritível” (art. 5º, XLII). Da mesma forma, afirma que “constitui crime inafiançável e imprescritível” a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV). Ora, o artigo 37, § 5º, da Constituição apenas afirma que as ações de ressarcimentos decorrentes de prejuízos causados ao erário não estarão sujeitas ao prazo prescricional a ser estabelecido em lei para ilícitos praticados por agentes públicos. Em momento algum afirmou que estas ações de ressarcimento seriam imprescritíveis. Argumentar-se, em favor da imprescritibilidade do ressarcimento dos danos decorrentes de ato de improbidade administrativa, a proteção ao erário e, em conseqüência, ao interesse publico, não procede. Como vimos, os prazos prescricionais estão a serviço da paz social e da segurança jurídica, valores primordiais a coletividade, que não podem ser suplantados por interesses de cunho patrimonial, mesmo que estes pertençam ao Estado. Observe-se que a preocupação com tais valores é tamanha em nosso ordenamento jurídico que ate o crime de homicídio, que atenta contra a vida – bem maior, passível de proteção – prescreve em 20 anos”. Entretanto, com a devida vênia, não compartilhamos deste entendimento. Com efeito, conforme clássica interpretação das normas constitucionais de José Afonso da Silva (2008, p. 116), entendemos tratar-se o § 5º do art. 37 da Carta Magna de norma de eficácia contida, que: “São aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados”.   Dito isto, verifica-se que na norma ora em análise, o legislador constituinte deixou em aberto o prazo de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente que causem prejuízos ao erário, permitindo, entretanto, que lei ordinária restrinja a eficácia deste dispositivo, fixando prazo de prescrição aos ilícitos nela mencionados.  Por outro lado, no que concerne a parte final da norma em questão, vê-se que o Constituinte Originário estabeleceu uma ressalva às “respectivas ações de ressarcimento”, ou seja, a Constituição Federal foi clara ao dispor que no que tange às ações de ressarcimento ao erário, seu prazo de prescrição não poderá ser restringido mediante lei. Desta forma, tendo em vista a impossibilidade de restrição legal do prazo prescricional destas ações, ante a expressa vedação do texto constitucional, clara está a imprescritibilidade das ações de ressarcimento por prejuízos causados ao erário. Nesse sentido, foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no leading case MS 26.210, o qual foi reafirmado em outros julgados da Primeira e Segunda Turma da Suprema Corte, vejamos: “1. O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência assente no sentido da imprescritibilidade das ações de ressarcimentos de danos ao erário. Precedentes: MS n.º 26210/DF, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, 10.10.2008; RE n.º 578.428/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe 14.11.2011; RE n.º 646.741/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe 22.10.2012; AI n.º 712.435/SP-AgR, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe 12.4.2012. […] (AI 819135 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 28/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 16-08-2013 PUBLIC 19-08-2013) – (grifo nosso)”. No entanto, apesar dos diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal acerca da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, a palavra final será dada quando do julgamento de mérito do Recurso Extraordinário nº 669.069, afetado pela repercussão geral – tema nº 666 – cujo relator, o Ministro Teori Zavascki, negou provimento ao recurso da União, tendo sido acompanhado pelos Ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Apesar do indício de mudança de posicionamento da Suprema Corte sobre o tema, restam os votos de sete Ministros, dentre os quais estão os Ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Gilmar Mendes que, no leading case MS 26.210, firmaram o entendimento acerca da imprescritibilidade das ações de ressarcimento por prejuízos ao erário. Conclusão Por todo o exposto, conclui-se que o art. 37 § 5º da Constituição Federal se aplica a qualquer agente, seja agente público ou particular, que praticando ilícito, gere prejuízos ao erário. Tal posicionamento visa garantir o respeito ao princípio da isonomia, impedindo que seja dispensado tratamento distinto às pessoas que incorrem na prática dos mesmos atos lesivos ao erário apenas em função de sua vinculação com a Administração Pública. Tal entendimento é o que se mostra mais consentâneo com os princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e o da indisponibilidade do interesse público, princípios basilares do regime jurídico administrativo. Doutro modo, chegou-se a conclusão acerca da imprescritibilidade das ações de ressarcimento por prejuízos ao erário, ante a ressalva constante na parte final do § 5º do art. 37 do texto constitucional, que impede que norma infraconstitucional restrinja o prazo prescricional destas ações, logo, por via transversa, consagrou-se a imprescritibilidade de tais demandas.
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A autarquização das estatais frente ao direito ao desenvolvimento e ao pacto federativo
trata-se de uma avaliação da tendência jurisprudencial de dar tratamento semelhante às autarquias para as empresas estatais, o que vem sendo chamado de “autarquização das estatais”. A finalidade é trazer considerações sobre a adequação desta postura jurisprudencial frente ao direito fundamental ao desenvolvimento e seus impactos no pacto federativo.
Direito Administrativo
O Supremo Tribunal Federal vem conferindo sistematicamente prerrogativas típicas de Fazenda Pública para as empresas estatais que prestam serviços públicos, e a este fenômeno jurisprudencial tem se dado o nome de “autarquização das estatais”, pelo fato de que acabam por deixar tais entidades com o regime jurídico muito semelhante ao das autarquias. Este trabalho se propõe verificar, ainda que de forma modesta e sumária, se tal tendência se legitima por buscar a promoção do direito ao desenvolvimento, escolhendo-se justamente este direito fundamental pelo fato de ele possuir um espectro extremamente amplo, a fim de que se facilite o reconhecimento desta legitimação, caso o desenvolvimento esteja sendo promovido de alguma forma, ao menos em alguma de suas facetas. Além disso, apesar de reconhecer que este movimento jurisprudencial acaba por trazer profundos impactos em vários aspectos, tais como no regime jurídico dos servidores, nas prerrogativas processuais, na impenhorabilidade de seus bens etc., este trabalho se limitará a uma destas prerrogativas, que diz respeito à imunidade recíproca dos entes públicos em relação ao pacto federativo. No primeiro capítulo, entretanto, será abordado brevemente como se apresenta o regime jurídico administrativo brasileiro, passando pelo exemplo mais emblemático do problema que é a situação dos Correios, para ao final tratar mais especificamente do fenômeno jurisprudencial da autarquização das estatais. Feito isto, no segundo capítulo será abordado de forma um tanto mais minuciosa o assunto referente ao direito fundamental ao desenvolvimento, pois apesar de seu amplo reconhecimento no cenário internacional, internamente ainda é um tema pouco desenvolvido, pelo fato de que a doutrina mais desatualizada ainda acredita que se trata de um direito que serve aos exclusivos interesses típicos da época do liberalismo mais excludente. O terceiro capítulo não destoa ao final da análise em relação ao importantíssimo direito fundamental ao desenvolvimento, mas destina-se a tratar com mais especificidade do tema referente ao federalismo fiscal, pois o movimento de autarquização das estatais acaba impactando na segurança orçamentária e no planejamento financeiro de todos os entes públicos que possuem expectativa de arrecadar impostos de todas as empresas estatais. Toda esta investigação se baseou em estudos realizados após coleta de dados bibliográficos que pudessem apresentar alguma pertinência com o tema. A metodologia utilizada se preocupa em empregar o rigor necessário a uma produção científica, sem culto extremo ao método, pois há variações na metodologia ao longo do trabalho, o que é possível que se faça dentro de certos limites sem pôr em risco a sua higidez[1]. Este capítulo trará ao final noções sobre autarquização das estatais, mas antes disso é necessário trazer brevemente algumas noções sobre a organização da Administração Pública no Brasil, abordando-se as concepções clássicas e modernas sobre o tema, a fim de que se possa entender do que se trata o fenômeno que vem sendo chamado de “autarquização das estatais”. Primeiramente é importante esclarecer que a Administração Pública brasileira é a gestora dos interesses do povo, que corresponde aos interesses de todos os brasileiros e das pessoas residentes no Brasil, que são titulares de todo poder, nos termos do art. 1º, parágrafo único da CF. Diante deste fato de o poder se originar do povo, como primeira decorrência lógica, conclui-se que os interesses deste povo são superiores enquanto coletividade, em relação aos interesses individuais, por isso, em caso de conflito entre aqueles interesses, chamados de “interesse público” e os interesses particulares, aqueles devem prevalecer, logicamente, desde que não sejam violadores de direitos fundamentais dos indivíduos. A segunda decorrência lógica é que sendo a Administração Pública mera gestora dos interesses da coletividade, ela não pode dispor destes interesses, isto é, não pode aliená-los e nem os colocar a serviço de particulares, e nem mesmo dos interesses pessoais das próprias pessoas que exercem a atividade administrativa. A primeira decorrência lógica dá origem ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular[2], e a segunda dá origem ao princípio da indisponibilidade do interesse público, os quais são tratados por Celso Antônio Bandeira de Mello como verdadeiras pedras de toque[3] do Direito Administrativo[4]. Todos as normas de Direito Administrativo decorrem destes dois princípios, por exemplo: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, finalidade, presunção de legitimidade, autotutela, continuidade dos serviços, obrigatoriedade de licitação, concurso público etc. Para o desempenho da nobre função de gestão do interesse público, são asseguradas prerrogativas, que são verdadeiros “poderes”, os quais servem para ajudar a Administração Pública a bem curar os interesses do povo, tais como o poder de execução da maioria de suas próprias decisões, o poder de autotutela, cláusulas exorbitantes, prerrogativas processuais, execução por meio de precatórios etc. Conforme será demonstrado, o Estado pode também agir como se fosse particular, agindo como empresa, intervindo assim na ordem econômica por razões de relevante interesse coletivo, ou quando tal intervenção se faz necessária aos imperativos da segurança nacional (art. 173 da CF). Nestes casos, o Estado não terá prerrogativas de ente público, tendo inclusive que pagar tributos como qualquer empresa particular (art. 173, § 2º da CF). O Brasil adota uma forma federativa peculiar, possuindo três níveis de entes políticos, que são a União, os estados e os municípios, cada um com suas competências definidas constitucionalmente. Para o desempenho destas atribuições, estes entes políticos podem agir de forma direta, ou seja, por meio de seus próprios órgãos e agentes, ou indiretamente, por meio da criação de pessoas jurídicas distintas e autônomas. Cada ente pode escolher a forma de atuação, podendo ser de maneira concentrada, caso em que todas as distribuições são realizadas pelo próprio ente político, sem distribuição de tarefas entre órgãos, ou de forma desconcentrada, por meio da criação de órgãos especializados em cada matéria. O ente político poderá também atuar de forma centralizada, por meio de uma só pessoa jurídica que se confunde com o próprio ente, ou, de forma descentralizada, criando-se assim outras pessoas jurídicas, com maior autonomia e especialidade para o desempenho da atividade de gestão de interesses públicos específicos. Estas pessoas jurídicas, de acordo com a Constituição de 1988, podem se revestir da forma de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações (art. 37, XIX) e consórcios públicos (art. 241). As autarquias nada mais são do que pessoas jurídicas detentoras de parcelas de competências administrativas de gestão do interesse público do ente que a criou. São criadas por lei específica para exercer serviços públicos em caráter especializado, e com prerrogativas de poder[5]. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, também chamadas genericamente de “empresas estatais” ou somente de “estatais”, embora criadas pelo ente público para atender aos imperativos da segurança nacional, relevante interesse coletivo (art. 173 da CF), e para a prestação de serviços públicos (art. 175 da CF)[6], são pessoas jurídicas de direito privado, e sua atuação se materializa pelo desempenho de atividade econômica. As fundações e os consórcios públicos podem assumir a forma de pessoa jurídica de direito público ou pessoa jurídica de direito privado, caso em que terão o regime equiparado, mutatis mutandis, ao das autarquias e das estatais, respectivamente. A maioria dos entendimentos clássicos se mantém incólume à evolução doutrinária e jurisprudencial em matéria de organização e regime jurídico administrativo, entretanto, a maior discussão que vem sendo travada recentemente diz respeito às estatais prestadoras de serviços públicos. A doutrina clássica sempre entendeu que seria possível a criação de estatais para a exploração de atividade econômica em sentido estrito e serviços públicos, as quais são espécies do gênero “atividade econômica” em razão de envolverem administração de recursos escassos[7]. Por outro lado, esta doutrina moderna apregoa que existe um ente que serve especificamente para o desempenho de serviços públicos em caráter especializado, e, em tese, de maneira muito melhor para o Estado e para a coletividade, que é a autarquia, pois para tanto, possui prerrogativas inerentes ao Poder Público. Essa doutrina não nega que a prestação de serviços públicos tenha natureza de atividade econômica, mas afirma categoricamente que a prestação de tais serviços pelo Estado não constitui propriamente “intervenção na ordem econômica”, mas sim, nada mais que o Estado atuando em área de sua titularidade e que, portanto, faz jus ao regime de Direito Público[8]. Na prática existem muitas estatais que prestam serviços públicos, e diante do entendimento abstrato de que o regime de autarquia seria mais vantajoso para o interesse público, recentemente tem se manifestado uma tendência de dar tratamento cada vez mais semelhante ao das autarquias às estatais prestadoras de serviços públicos. Entre as prerrogativas que vem sendo conferidas às estatais prestadoras de serviços públicos estão as prerrogativas processuais, tais como o prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (art. 188 do CPC), a impenhorabilidade dos bens, com execução pelo regime de precatórios (art. 100 da CF), desnecessidade de pagar impostos em razão da imunidade recíproca (art. 150, VI, “a” e § 2º da CF). Este entendimento moderno conclui que o regime de Direito Privado somente é compatível com o desempenho de atividade econômica em sentido estrito, constituindo-se, ao que para os que assim entendem, verdadeira atecnia a prestação de serviços públicos por intermédio de empresas públicas ou sociedades de economia mista, sendo que existe ente com muito mais vocação para tanto, que são as autarquias. Reconhecem, entretanto, vagamente, que tal entendimento é capaz de criar impactos na arrecadação de receitas tributárias pelos entes públicos, além de muitos conflitos jurídicos em várias matérias, tais como no regime de pessoal. O exemplo mais emblemático desta situação é o da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), o qual, diante de sua importância, será tratado em item próprio. A ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, é sem dúvida a estatal a quem mais se tem conferido regime jurídico de Direito Público, mesmo que tenha sido constituída sob a forma de empresa pública. A jurisprudência do STF tem dado tratamento diferenciado aos Correios, conferindo-lhe todas as prerrogativas de ente público, como se fosse uma autarquia, e não uma empresa pública, garantindo-lhe, por exemplo, impenhorabilidade de bens e pagamento das dívidas judiciais pela via dos precatórios, responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º da CF), dispensa dos empregados só com motivo e motivação; imunidade tributária. O caso mais recente trouxe a consolidação de uma evolução do entendimento no que se refere à imunidade recíproca, a qual foi estendida até mesmo para as atividades que os Correios desempenham sob o regime de concorrência. O art. 150, VI, a da CF prevê a imunidade tributária recíproca nos seguintes termos: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;” Portanto, não é possível instituir impostos sobre a administração direta entre os entes da Federação sobre patrimônio (IPTU, IPVA e ITR), renda: (IR) e serviços (ICMS e ISS) e o § 2º do art. 150 da CF traz uma norma que amplia esta imunidade para além da administração direta: “§ 2º A vedação do inciso VI, a, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.” Este dispositivo estende a imunidade às autarquias e às fundações públicas, que são pessoas jurídicas de direito público, que integram a administração indireta, e servem para prestar serviços públicos. Não menciona as outras entidades da administração indireta: empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado e servem para atuar em atividade econômica. De acordo com a Constituição, a regra não é o Estado atuar diretamente na economia como se fosse mais uma empresa. A atuação do Estado se dá normalmente como regulador e fiscalizador da atividade econômica, e por isso mesmo, existem muitas agências reguladoras. O art. 173 da CF, no entanto, abre a possibilidade para o Estado atuar diretamente na economia, por intermédio de empresas estatais, o que somente pode ocorrer em situações excepcionais, quando presentes imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo. Ocorre que neste caso, o Estado estará atuando como se fosse uma empresa, e isto impõe a ele se adequar ao regime privado, sob pena de violar o sistema capitalista adotado pela Constituição, pois acabaria por dar privilégio a um ente estatal, com capacidade de abusar desta posição e acabar “quebrando” as empresas concorrentes que não teriam condições de competir. A partir do art. 170 da CF estão as normas sobre a ordem econômica, sendo que o próprio art. 170 traz princípios da ordem econômica, e entre eles está o inciso IV, que fala da livre concorrência, que significa igualdade de tratamento no âmbito econômico. Pelo fato de o Brasil ter adotado este sistema econômico, quando o Estado age como empresa, ele deve se submeter às mesmas regras que se submetem os particulares e as empresas privadas, e como decorrência disso, não pode ter privilégios, sob pena de quebra do sistema de livre concorrência e a livre iniciativa, cujo valor social é reconhecido no art. 1º, III da Constituição como fundamento da República, por isso, no art. 173, § 2º, está previsto: “§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.” Como as pessoas jurídicas de direito privado não possuem imunidade tributária, as empresas públicas e as sociedades de economia mista também não podem ter imunidade, caso contrário, tal beneplácito acabaria por criar privilégio odioso para a estatal, o qual teria o potencial de gerar distorções no respectivo segmento econômico. A partir da interpretação do § 1º do art. 173 da Constituição, pode-se concluir com tranquilidade que é plenamente possível a adoção da forma de empresa pública ou de sociedade de economia mista com a finalidade de prestação de serviços públicos. Entretanto, a atual jurisprudência do STF se apega às seguintes premissas: Premissa 1: autarquias e fundações públicas prestam serviço público e possuem imunidade tributária; Premissa 2: empresas estatais desenvolvem atividade econômica e não possuem imunidade tributária; Um dos principais expoentes deste entendimento é o ex-Ministro do STF Eros Roberto Grau, segundo o qual, se existir uma empresa estatal que, na prática, presta serviços públicos, ela deverá ter tratamento de pessoa jurídica de Direito Público. Na prática, existem empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviço público, e o STF tem se apegado às duas premissas acima expostas, e atribuído o regime jurídico em conformidade com a natureza das entidades, ou seja, se a estatal presta serviços públicos, deve ter regime jurídico de direito público. Esta discussão ganhou relevo no caso da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – a qual foi criada sob a forma de “empresa pública”. A ECT deixou de pagar alguns impostos, o que gerou discussão no STF sobre a natureza jurídica da atividade dos correios. Eros Grau entendia que o serviço de postagens era “serviço público”. Como consequência, o STF passou a dar à ECT o tratamento de pessoa jurídica de Direito Público. O informativo 353 do STF noticiou a origem a esta discussão, em processo que restou assim ementado: “EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C. F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. – As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C. F., art. 150, VI, a. II. – R. E. Conhecido em parte e, nessa parte, provido. (RE 407099, Relator (a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22/06/2004, DJ 06-08-2004 PP-00062 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297)” Os correios, na época, tinham como principal fonte de renda o serviço público de postagens, com as clássicas correspondências pagas pela compra de selos, mas atualmente os correios praticam diversos serviços de natureza bancária, além de outras atividades de natureza econômica, a exemplo da intensificação do serviço de envio de encomenda (Sedex), que deve ser desenvolvida pelo regime de concorrência. A questão foi levada mais uma vez ao STF e, por 6 × 5, estendeu-se a imunidade para todos os serviços e atividades desenvolvidas pela ECT. O raciocínio foi no sentido de que o constituinte, no art. 21, X, tratou apenas dos serviços de postagem porque na época (1988) não havia este desenvolvimento tecnológico (e-mail, redes sociais, WhatsApp etc.), que enfraqueceram o serviço postal, relegando-o à beira da obsolescência. Se a ECT dependesse só dos serviços de postagem, não haveria lucro, mas sim, prejuízo, por isso, não havia outra saída a não ser buscar outras atividades. Os serviços bancários, previstos na LC 116/2003 como passível de incidência do ISS, fizeram com que vários municípios lançassem ISS contra a ECT, mas o STF entendeu que este serviço bancário desenvolvido pelo correio é mera atividade secundária que serve de fonte alternativa de custeio dos serviços dos Correios, servem para subsidiar os serviços de postagens, por isso, estendeu a imunidade a estes serviços, adotando a teoria do subsídio cruzado. O serviço de postagens é um serviço público previsto na CF, e que deve ser mantido pela União: “Art. 21. Compete à União: (…) X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional”. Diante deste dispositivo constitucional, a União deve encontrar fontes financeiras para manter este serviço. Fontes estas que merecem a mesma imunidade tributária que a atividade fim, já que funcionam como um “meio”, servindo a um “fim”, que é a manutenção de um serviço público de natureza constitucional. Nesta esteira, sobreveio, então, o RE 627.051, o qual versou sobre a incidência de ICMS sobre os serviços de encomenda, o qual é um serviço de transporte e, por via de regra, atrai esta incidência tributária, mas foi afastado em razão de ter sido aplicada a tal tese do subsídio cruzado, afastando-se o princípio da livre concorrência. O processo restou assim ementado: “EMENTA Recurso extraordinário com repercussão geral. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Peculiaridades do Serviço Postal. Exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com particulares. Irrelevância. ICMS. Transporte de encomendas. Indissociabilidade do serviço postal. Incidência da Imunidade do art. 150, VI, a da Constituição. Condição de sujeito passivo de obrigação acessória. Legalidade. 1. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade econômica. 2. As conclusões da ADPF 46 foram no sentido de se reconhecer a natureza pública dos serviços postais, destacando-se que tais serviços são exercidos em regime de exclusividade pela ECT. 3. Nos autos do RE nº 601.392/PR, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, ficou assentado que a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, CF, deve ser reconhecida à ECT, mesmo quando relacionada às atividades em que a empresa não age em regime de monopólio. 4. O transporte de encomendas está inserido no rol das atividades desempenhadas pela ECT, que deve cumprir o encargo de alcançar todos os lugares do Brasil, não importa o quão pequenos ou subdesenvolvidos. 5. Não há comprometimento do status de empresa pública prestadora de serviços essenciais por conta do exercício da atividade de transporte de encomendas, de modo que essa atividade constitui conditio sine qua non para a viabilidade de um serviço postal contínuo, universal e de preços módicos. 6. A imunidade tributária não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias. A condição de sujeito passivo de obrigação acessória dependerá única e exclusivamente de previsão na legislação tributária. 7. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento, reconhecendo a imunidade da ECT relativamente ao ICMS que seria devido no transporte de encomendas. (RE 627051, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-028 DIVULG 10-02-2015 PUBLIC 11-02-2015)” Diante disso, é de se concluir que a ECT (Correios), mesmo que tenha sido constituída sob a forma de "empresa pública", para o STF, embora não afirmado expressamente possui natureza jurídica de “autarquia”, devendo ser tratada como tal e, por isso, goza da imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a da CF, mesmo no desempenho de atividades típicas do regime concorrencial, em razão do fato de que as receitas decorrentes destas atividades servem para custear o serviço público previsto no art. 21, X da Constituição, conforme a tese do subsídio cruzado. Autarquização é o “apelido” que vem sendo dado pela doutrina a esta tendência jurisprudencial de conferir tratamento idêntico ao de autarquia às empresas estatais prestadoras de serviços públicos. Não se trata da transformação formal das estatais em autarquias, mas tão somente de um tratamento jurisprudencial conferido recentemente às estatais, que as fazem se aproximar do mesmo regime jurídico das autarquias. No RE 627051, Gilmar Mendes chegou a mencionar expressamente: “Esses dias até participei de um seminário coordenado pelo professor Paulo Modesto, onde estava também o professor Marçal Justen Filho, e se discutia exatamente que nós estamos caminhando, a partir da jurisprudência dos Correios, que tem uma situação específica, mas que também vai se manifestando em outras áreas, com outros Poderes, outras empresas que exercem atividades assemelhadas, em que vai se desenhando um modelo que os administrativistas estão chamando de autarquização das empresas públicas, quer dizer, todas aquelas que são prestadoras de serviços, ainda que parcialmente.” A Constituição de 1988, em sua redação original não deixava clara a possibilidade da aplicação do regime jurídico de Direito Privado às estatais prestadoras de serviços públicos, especialmente no § 1º do art. 173, que dispunha: “§ 1º A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias.” Na época do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual foi confessadamente marcado pela ideologia neoliberal entabulada no famoso “Consenso de Washington”[9] e pela prematura crença no fim da história[10], foi editada a EC 19/98 na onda da política nacional de desestatização, onde se partia da premissa de que os serviços públicos prestados pelo Poder Público eram ruins e que os prestados pela iniciativa privada seriam bons, o qual trouxe a seguinte redação ao § 1º do art. 173 da CF: “§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.” A partir desta Emenda passou-se a se admitir com mais clareza a submissão de empresas estatais prestadoras de serviços públicos ao regime jurídico de Direito Privado. Ocorre que a ideologia neoliberal não prevaleceu na jurisprudência nacional, a qual, vem ignorando este dispositivo, e aplicando sistematicamente o regime jurídico de Direito Público às estatais prestadoras de serviços públicos. No subtítulo anterior foi mencionado a título ilustrativo o exemplo do reconhecimento da imunidade tributária da ECT, mas esta tendência vem se confirmando para outras prerrogativas e para outras estatais, cita-se como exemplo mais alguns casos julgados: a) STF, RE 363412 AgR; RE 363412 AgR: reconhecimento da imunidade tributária recíproca à Infraero; b) STF, RE 485000 AgR: regime de precatórios para a Companhia de Abastecimento d’Água e Saneamento do Estado de Alagoas – CASAL; c) STF, RE 433666 AgR: tratamento trabalhista e tributário idêntico ao de autarquias para a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola S/A – EBDA; d) STF, RE 589998: necessidade de motivação para dispensa de empregados da ECT; e) STJ, EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 1416337: prerrogativa de prazo em dobro para a ECT. Os poderes executivos nacionais sempre se basearam na doutrina clássica que reconhecia a possibilidade de conferir regime jurídico de empresa para todas as exploradoras de atividade econômica, seja a atividade econômica em sentido estrito, seja a prestadora de serviços públicos. A opção pela empresarialidade na prestação de serviços públicos, em tese, tem por finalidade a busca da mesma dinâmica e do mesmo modelo gerencial inerente ao setor privado, além de ser um fator de melhor distribuição de impostos, pois os estados e municípios teriam direito aos impostos de sua competência relativos a tais atividades, não se aplicando o art. 150, VI, “a” da CF. Ocorre que para essa doutrina moderna e para a jurisprudência atual, pelo fato de que os serviços públicos são atividades de titularidade do Estado, seu regime jurídico deve ser o de Direito Público e não aquele típico das empresas privadas. Entendimento este que acabou por acarretar grandes impactos na economia nacional e, até mesmo, no pacto federativo, tendo em vista que promove maior centralização tributária, notadamente no que concerne às estatais da União. Desde já pode-se adiantar que reconhecer a imunidade tributária recíproca às estatais, por exemplo: da União, significa uma agressão à segurança orçamentária dos estados e dos municípios, tendo em vista que estes entes contam com as receitas provenientes de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços das empresas públicas e sociedades de economia mista instalados em seus respectivos territórios. Atualmente, portanto, a tendência é pela indiferenciação no tratamento jurídico entre empresas estatais que prestam serviços públicos e as autarquias, persistindo apenas diferenças meramente formais, tais como o modelo de constituição, e algumas diferenças pontuais, assim como, os limites de dispensa de licitação[11]. Por outro lado, tem se reconhecido tratamento mais próximo do regime jurídico de Direito Privado para as estatais que desempenham atividade econômica em sentido estrito, que participam do mercado em regime de concorrência, salvo na hipótese de estas atividades servirem para custear a atividade fim consistente em um serviço público, aplicando-se assim, a tese do subsídio cruzado. Aqui cabe fazer uma observação: a rigor, toda entidade criada pelo Estado possui natureza instrumental, servindo como meio para a consecução de um fim público, o que enfraquece a tese do subsídio cruzado. Mesmo as estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito são criadas para buscar algum interesse público, especialmente quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, assim, se vingar a tese do subsidio cruzado, logo todas as estatais fazem jus às prerrogativas do regime jurídico de Direito Público. Diante disso, deve ficar claro que a tendência de autarquização das empresas estatais é fenômeno ainda restrito às empresas públicas e às sociedades de economia mista que prestam serviços públicos, superando-se a visão da doutrina clássica e atribuindo tratamento jurídico de direito público conforme a natureza da atividade econômica desenvolvida, ou seja, se desempenha serviços públicos, atribui-se regime jurídico de direito público; se desempenha atividade econômica em sentido estrito, aplica-se o regime jurídico de direito privado, ressalvada a aplicabilidade da fraca tese do subsídio cruzado, a qual sendo aplicada ao pé da letra, acarretará na autarquização de todas as estatais, por todas atendem finalidade pública. Diante da intenção declarada do presente trabalho no sentido de investigar a possibilidade de a busca pela promoção do direito fundamental ao desenvolvimento servir de substrato legitimador do recente movimento jurisprudencial de autarquização das estatais, se faz necessário apresentar este direito fundamental com um pouco mais de profundidade, pois é um tanto desconhecido pela comunidade jurídica, a qual ainda o vincula a concepções marcadamente liberais. O professor Robério Nunes dos Anjos Filho se debruçou sobre o assunto e publicou recentemente[12], pela editora Saraiva um livro intitulado Direito ao Desenvolvimento, o qual enfrentou a questão de maneira minuciosa, concluindo que o direito ao desenvolvimento é um direito humano internacionalmente reconhecido, e direito fundamental incorporado à nossa Constituição, consistindo em um direito de amplíssimo espectro, podendo se manifestar de alguma forma nos direitos de todas as gerações (ou dimensões). A partir do conceito de economia, que será apresentado neste capítulo, é possível perceber a íntima relação que o Direito tem com a Economia. Por exemplo, é sabido que o Custo Brasil é muito alto, os tributos são muito altos, a burocracia para abrir uma empresa é muito grande. Isso é o “Direito que produz”. É um Direito que atrapalha o desenvolvimento. O Direito também pode trazer ajuda ao desenvolvimento. Passa-se a falar, então do Direito “do” Desenvolvimento, o qual não é um direito humano. Nasce na década de 1960 no bojo das conferências das nações unidas sobre o comércio. Criou-se o Direito Internacional do Desenvolvimento. Os países subdesenvolvidos podem exportar seus produtos com vantagens. Exemplo: Brasil pode vender laranjas para a França pagando alíquota menor do que se tivesse comprado dos EUA. Não é um direito humano, é um direito comercial entre Estados[13]. Já o Direito “ao” desenvolvimento, nascido também no âmbito da ONU, fruto da observação do fenômeno do desenvolvimento por um viés jurídico, o que deu ensejo ao surgimento desse direito humano, que, de acordo com a classificação de Karel Vasak, trata-se de um direito de terceira geração (hoje entende-se que o termo mais apropriado é dimensão). A expressão “Direito ao Desenvolvimento” deve-se ao jurista senegalês Etiene Keba M’Baye, que a utilizou em 1972 na conferência inaugural do Curso de Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo, publicada com o título de “O direito ao desenvolvimento como um direito do Homem”[14]. A ONU reconheceu oficialmente o direito ao desenvolvimento como um direito humano pela primeira vez em uma resolução da sua Comissão de Direitos Humanos, em 1977. Posteriormente, em 04 de dezembro de 1986, foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre Direito ao Desenvolvimento (Res. 41/128)[15], a qual teve voto favorável do Brasil. A declaração define o Direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos têm o direito de participar, de contribuir e de desfrutar de um desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados[16]. A Resolução estabelece ainda que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que essa política de desenvolvimento deve assim fazer do ser humano o principal participante e beneficiário do desenvolvimento, e que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações. Portanto, resta superada a visão estritamente liberal do direito ao desenvolvimento, passando-se a assimilá-lo com uma visão democrática e democratizante, compatível com o Estado Democrático de Direito que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana. O Direito ao Desenvolvimento ocupa hoje um lugar central no Sistema Internacional de Direitos Humanos, sendo de observância obrigatória para todos os Estados, entendido ainda como integrante do chamado jus cogens, que é o conjunto de normas imperativas de direito internacional, as quais não podem ter sua observância negada sequer pelos Estados vencidos em votações não unânimes[17], vinculando, ainda, Estados não participantes de sua formação, pois já é superada a doutrina voluntarista do Direito Internacional[18]. Flávia Piovesan[19] adverte, ainda, que inclusive no setor privado, no contexto da globalização econômica, faz-se premente a incorporação da agenda de direitos humanos. A CF de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas, já incorporou o desenvolvimento como um direito fundamental. Não há previsão expressa no rol do art. 5º, como existe no dispositivo correspondente da Constituição de Portugal de 1976, entretanto, o art. 5º, § 2º da CF não exclui outros direitos decorrentes de tratados internacionais. O professor Robério Nunes dos Anjos Filho demonstra que o Direito ao Desenvolvimento está consagrado na CF como direito fundamental. Salienta que, a começar pelo preâmbulo, já se fala no desenvolvimento como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O preâmbulo não é norma jurídica, mas é um vetor de interpretação da CF. No art. 3º se encontra o desenvolvimento como um dos objetivos fundamentais da República. É dever do Estado garantir o desenvolvimento nacional[20]. O fato de o preâmbulo da CF tratar do desenvolvimento como um “valor supremo” reforça a ideia central deste trabalho no sentido de que o direito fundamental ao desenvolvimento, além de princípio jurídico, é um grande vetor axiológico do Brasil, sociedade e Estado: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifos nossos)” O autor sustenta, ainda, que sendo dever do Estado a garantia do direito fundamental ao desenvolvimento, ele não é apenas um direito coletivo, mas um direito individualmente exigível, ou seja, é um direito que qualquer cidadão tem de exigir. Lembrando-se que não significa exigir o crescimento (aumento da riqueza), mas sim, exigir condições para o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, sendo o Mandado de Injunção um dos instrumentos. A ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos a dignidade, conforme os ditames da justiça social. O art. 219 fala que a geração de riqueza no Brasil tem por finalidade garantir o desenvolvimento humano. Também o sistema financeiro tem esta finalidade (art. 192). A riqueza serve para melhorar a qualidade de vida de todos, e não apenas de alguns[21]. O pleno desenvolvimento nacional é atingir de forma mais plena possível os objetivos do art. 3º da CF, disso os profissionais e intelectuais do Direito jamais podem esquecer e nem esmorecer, pois se trata de uma norma jurídica, que se revela como verdadeira diretriz conformadora[22], pois sendo a sociedade perfeita um sonho impossível ou muito distante, a persecução destes objetivos é o que nos torna solidários, humanos, menos selvagens. O desenvolvimento, em suas diversas manifestações, é a única forma de um ser humano ser verdadeiramente livre, com vida digna. O art. 2º, §3 da Resolução 41/128 da ONU estabelece que “Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa, e no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.” Em suma, diante do exposto, adota-se integralmente o posicionamento do professor Robério Nunes dos Anjos Filho como premissa categórica de onde se deduzirá o tema central do trabalho, tomando-se por verdade que o direito ao desenvolvimento é um direito da pessoa humana reconhecido no plano internacional com status de jus cogens, e que é um direito fundamental reconhecido na Constituição de 1988, e que, além de norma jurídica, é um “valor supremo” da nossa República, interpretação esta que resulta de toda a construção do tema no plano do Direito Internacional, e da posição de destaque que ele encontra no texto da nossa Lei Fundamental, a qual teve o cuidado, inclusive, de deixar expresso em seu preâmbulo. Diante do comprovado caráter de fundamentalidade que possui o direito ao desenvolvimento, de sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, de sua manifestação como norma jurídica do plano internacional e do plano interno constitucional, e também, diante de sua manifestação enquanto valor supremo da nossa República, é de se concluir que é uma norma principiológica, que serve como vetor axiológico vinculante para qualquer atuação do Estado, ou seja, tudo que o Poder Público faz, por qualquer de seus órgãos e entidades, deve passar pela prova da compatibilidade com este valor supremo. A Convenção da ONU de 1986 traz em seu preâmbulo: “Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes;” Isso somado à norma prevista já em seu art. 1º: “Artigo 1º. §1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.” Somando-se, ainda às disposições do seu art. 2º: “Artigo 2º. §1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. §2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos.” E art. 6º: “Artigo 6º. (…) §2. Todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. §3. Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.” Diante destes dispositivos selecionados já se pode adiantar que fica evidente que o direito ao desenvolvimento se concretiza com a intervenção do Estado na ordem econômica, pois, conforme será demonstrado em linhas posteriores, o mercado, por si só, não se mostrou capaz de promover o desenvolvimento, considerado como o conjunto de condições indispensáveis à liberdade e à vida digna das pessoas. Para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento e de sua função legitimadora da intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive por intermédio do Poder Judiciário, faz-se necessário dar um passo atrás para compreender aspectos básicos sobre estes institutos, o que se passa a fazer no próximo subcapítulo. O presente trabalho revela uma certa interdisciplinaridade, especialmente entre o Direito e a Economia, o que de fato se confirmará no decorrer de seu desenvolvimento. Isso tende a trazer um plus de complexidade para a compreensão do tema, o que ora pretende-se minorar com a apresentação dos conceitos e noções básicas que são de assimilação necessária por aqueles que não possuem afinidade entre estas ciências. A apresentação destes conceitos e noções neste capítulo tem por finalidade demonstrar o seguinte enunciado básico[23]: “o direito ao desenvolvimento, como norma que se espalha por todo o ordenamento jurídico, é também princípio da ordem econômica”. Para conduzir a esta compreensão, é importante mencionar que, com base em Sartre, Eros Roberto Grau[24] diferencia conceito de noção. Para ele, “conceito” é algo atemporal. Pode-se estudar como os conceitos se engendram uns aos outros no interior de categorias determinadas. Nem o tempo e nem a história podem ser objetos de um conceito. Já “noção”, para o mesmo autor, é a ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas. A doutrina jurídica quando se refere a um “conceito jurídico indeterminado” quer, na verdade, se referir a uma noção. Os conceitos e noções que aqui serão apresentados podem ser entendidos como “paradigmas” que, salvo leves digressões úteis à sua compreensão, não terão a pretensão de investigar os “primeiros princípios”, tarefa esta que se deixa para os livros especializados em cada matéria pertinente, sob pena de tornar muito extenso e desvirtuar o objetivo deste trabalho[25]. Assim, sem pretender desenvolver com muita densidade os conceitos e noções que serão abordados neste capítulo, apresentam-se a seguir alguns tópicos selecionados[26], com intuito de que eles induzam a uma compreensão mais abrangente do problema proposto. Logicamente tais tópicos não são de leitura necessária para aqueles já versados nas noções introdutórias de Direito e de Economia. Para tomar como premissa o direito ao desenvolvimento como um direito fundamental, é preciso primeiramente saber o que é um direito fundamental, para que se possa entender em que sentido e em que contexto se faz esta afirmação. Falar sobre direitos fundamentais, entretanto, é tarefa impossível sem noções propedêuticas, portanto, primeiramente é importante esclarecer, especialmente para a comunidade não vinculada especificamente às ciências jurídicas, que “direito” é uma palavra plurissignificativa, Montoro[27], sem pretender exaurir, apresenta cinco significações possíveis: a) norma: significa a norma, a lei, a regra social obrigatória. Exemplo: “o ‘direito’ não permite o duelo; b) faculdade: “direito” significa a faculdade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Exemplo: “o Estado tem o ‘direito’ de legislar”; c) justo: “direito” significa o que é devido por justiça. Exemplo: “a educação é ‘direito’ da criança”; d) ciência: significa a ciência do direito. Exemplo: “cabe ao ‘direito’ estudar a criminalidade”. Como tal, convencionou-se escrevê-lo com letra maiúscula “Direito”, bem como, as suas subespécies: “Direito Constitucional”, “Direito Administrativo”, “Direito Econômico”, “Direito Civil”, “Direito Penal” etc.; e) fato social: o “direito” é considerado como fenômeno da vida coletiva, ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc. Exemplo: “o ‘direito’ constitui um setor da vida social”. Nader[28], após demonstrar minuciosamente a celeuma em torno do tema, se abstém de apresentar um conceito definitivo, limitando-se a mencionar os mais variados conceitos conforme diversos pontos de vista, o que serve para concluir que o Direito não possui um conceito que possa ser dado como absoluto, existindo sobre ele apenas as mais variadas noções, levando em conta diversos enfoques. Destes, o enfoque normativo é o que interessa para este trabalho. Sob o enfoque normativo, Direito é “a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores”[29]. Importante trazer à tona o ensinamento de Norberto Bobbio, no livro “Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito”[30] o qual traz uma nova ideia orientadora do estudo do Direito, no sentido não de buscar saber o que é o Direito, mas para que ele serve, pois adiante será visto que, se a chamada “autarquização das estatais” servir para alguma coisa, especialmente para promover algum direito fundamental, ela passa a ser defensável. Sobre “direitos fundamentais”, da mesma forma, seria possível a criação das mais variadas teorias, sob diversos pontos de vista, como teorias históricas, filosóficas ou sociológicas[31]. Diante dessa dificuldade, a noção de direitos fundamentais, aqui apresentada, se limitará ao seu enfoque normativo. Ingo Wolfgang Sarlet[32] ensina, com base em Canotilho, que o que torna um direito fundamental é a circunstância de que esta fundamentalidade é simultaneamente formal e material. A “fundamentalidade formal” diz respeito a posição constitucional do direito em questão: a) como parte da Constituição escrita, os direitos fundamentais se encontram no ápice do ordenamento, ou seja, com supremacia hierárquica; b) formas rígidas para a mutabilidade ou, até mesmo, imutabilidade (cláusulas pétreas); c) possuem eficácia e aplicabilidade direta e imediata, vinculando tanto as entidades públicas quanto as relações privadas. A “fundamentalidade material”, para o autor, diz respeito ao conteúdo desses direitos, ou seja, para ser fundamental o direito precisa tratar das decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, e, especialmente, aqueles que se ligam a questões existenciais da pessoa humana. A noção de fundamentalidade material torna a noção de fundamentalidade meramente formal insuficiente, pois traz à tona o fato de que podem existir direitos fundamentais não necessariamente expressos no texto da Constituição. Partindo-se desta premissa, quando este trabalho afirmar que o direito ao desenvolvimento é um direito fundamental, está-se falando em sentido normativo, com força jurídica formal e materialmente constitucional, inclusive invocável perante o Poder Judiciário. Com base em Norbert Rouland, Robério Nunes dos Anjos Filho[33] afirma que a palavra “desenvolvimento” teve origem entre os séculos XII e XIII, quando significava revelar, expor, sendo que somente por volta de 1850 a palavra passou a significar “… a progressão de estágios mais simples, para outros mais complexos, superiores…”. O mesmo autor explica que é muito difícil encontrar uma definição unívoca da palavra, pois a depender do prisma em que é analisada, pode vir acompanhada de adjetivos que a tornam muito específica, v.g., desenvolvimento: social, político, humano, econômico, ambiental, infantil, nacional, regional, equilibrado, sustentável, dentre outros. Aponta, ainda, a variação de concepções de acordo com a “… heterogeneidade cultural das mais diversas nações e Estados…” e a constante ampliação de seu conteúdo, o qual acompanha a evolução histórico-social (caráter dinâmico), como fatores que tornam a palavra “plurívoca”. A noção de desenvolvimento – aqui já se fala em desenvolvimento econômico – foi desenvolvida pelos economistas clássicos associada à ideia de poder econômico. Eis um excerto do livro Uma Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações[34] que bem exemplifica este momento histórico: “Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio da maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de esperar, acontecerá em tempos futuros.” Esta noção associa o desenvolvimento ao crescimento, ou seja, desenvolver-se significaria simplesmente elevar o Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado. Esta noção está há muito ultrapassada, pois a ideia de desenvolvimento está atrelada a uma gama extremamente variada de fatores que deixam de compreender o desenvolvimento como um dado meramente quantitativo e passam a qualificá-lo sob aspectos qualitativos, ligados à qualidade de vida das pessoas[35]. Amartya Kumar Sen[36] é o precursor da ideia e foi prêmio Nobel de economia em 1988. Desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais dos indivíduos e da sociedade. Para que as pessoas sejam plenamente livres é preciso que tenham acesso aos bens. A riqueza é um instrumento que pode ser usada para o bem e para o mal[37]. Isso remete à filosofia de Kant, na diferenciação entre pessoas e coisas: a) pessoas: a pessoa é um fim em si mesmo, tem dignidade, autonomia, é insubstituível; b) coisas: são instrumentos para realizar a dignidade, possuem preço econômico ou afetivo. Dizer que o crescimento é importante e o desenvolvimento não, equivaleria a dizer que as coisas são mais importantes que as pessoas[38]. Por isso, a medida do desenvolvimento deixa de se basear exclusivamente no PIB e passa a se basear no IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. A explicação extraída do site do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – bem explica esta transição: “O conceito de desenvolvimento humano nasceu definido como um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser. Diferentemente da perspectiva do crescimento econômico, que vê o bem-estar de uma sociedade apenas pelos recursos ou pela renda que ela pode gerar, a abordagem de desenvolvimento humano procura olhar diretamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades. A renda é importante, mas como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim. É uma mudança de perspectiva: com o desenvolvimento humano, o foco é transferido do crescimento econômico, ou da renda, para o ser humano. O conceito de Desenvolvimento Humano também parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana. Esse conceito é a base do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicados anualmente pelo PNUD”[39]. Dentre as diversas manifestações possíveis do desenvolvimento, como forma de desde já ressaltar a fundamentalidade do tema, destacam-se o desenvolvimento econômico, social, cultural e político dos povos. Admita-se, ainda, com especial destaque o exemplo de espécie de direito ao desenvolvimento denominado “desenvolvimento sustentável”, que nada mais é do que a manifestação do direito ao desenvolvimento no direito ambiental, pois “… o crescimento econômico, calcado na mutilação do mundo natural e na imprevisão das suas funestas consequências…” pode acabar por tornar inócuas todas as demais concepções de desenvolvimento, pois sem ambiente sadio, não haveria lugar para nenhum outro bem da vida, por ser ele condição indispensável não somente a uma vida digna, mas para a própria “vida na terra” em todas as suas formas[40]. Toda norma jurídica tem por base um valor, valor este que enquanto tal, não tem força jurídica, mas se for escolhido pelo Legislador para fazer parte do conjunto de normas que regulam a vida humana em sociedade, não deixa de ser valor, mas assume uma nova roupagem, que é a de norma jurídica[41]. O presente trabalho tem como premissa o fato de o direito fundamental ao desenvolvimento ser tido como um forte “vetor axiológico” para intervenção do Estado na ordem econômica, mas não como um simples valor exortativo, e sim, como valor presente na estrutura de um princípio jurídico. Para tanto, é preciso saber qual a significação que é dada para que a compreensão do trabalho não reste comprometida. Em matemática, “vetor” é uma grandeza determinada em quantidade, direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha[42]. O significado de vetor é apropriado por este trabalho como forma de identificar o sentido, o objetivo a ser tomado pelo Estado em suas diversas formas de atuação na ordem econômica. “Axiologia”, por sua vez, é tida como a "teoria dos valores". Já fora entendida como parte importante da filosofia ou mesmo como toda a filosofia pela chamada "filosofia dos valores" e por outras tendências radicais[43]. A palavra “vetor” adjetivada com a palavra “axiológico” quer reforçar a ideia de que o sentido das ações estatais tem como fundamento um valor. A noção que será aqui apresentada de que o direito fundamental ao desenvolvimento se baseia em um axioma (valor), inclusive internacionalmente reconhecido e cogente para o Brasil[44], reforça o caráter de sua juridicidade, pois, conforme será demonstrado, este direito fundamental está positivado em nosso ordenamento, e mesmo que não estivesse, ele comporia o nosso ordenamento com status constitucional e exigibilidade jurídica como decorrência de uma série de fatores que não convém adentrar agora. O que se pretende reforçar é a utilidade da noção moderna de desenvolvimento como “valor” a ser perseguido pelo Estado como agente da atividade econômica, valor este positivado constitucionalmente em uma norma principiológica cogente, o que será tratado em seção própria. Antes de adentrar nos temas seguintes, notadamente na noção de ordem econômica, é importante trazer de maneira sintética o que se entende por Economia, pois este conhecimento é uma premissa lógica para o entendimento daquele. Etimologicamente, economia vem do grego oikos (οικοσ), que significa casa e de nomos (νόμος), que significa lei, considerando-se “casa” no sentido mais antigo, onde o pater familias era responsável por gerir o consumo e a produção no âmbito de sua propriedade, em que participavam todos os membros da família, escravos e demais dependentes. É importante trazer à tona a etimologia da palavra porque desde já se destaca a afinidade que o Direito tem com a Economia. Além disso é notável que quanto mais escassos os bens e mais aguçados os interesses sobre eles, maior a quantidade de conflitos e maior a necessidade de normas para regrar a situação[45]. Filosoficamente a palavra “Economia” é frequentemente associada à conquista do máximo com o mínimo de esforço. Avenarius e Mach[46] chegam a afirmar que “Os métodos pelos quais se constitui o saber são de natureza econômica.” Segundo Mach, é esse princípio que orienta à elaboração dos conceitos, “… que nascem da situação de desequilíbrio entre o número das reações biologicamente importantes, que é bastante limitado, e a variedade, quase ilimitada, das coisas existentes.” Isso permite enfrentar essa grande variedade de forma econômica, isto é, “… com o mínimo de esforço”. Importante mencionar que a designação “Economia Política” caiu em desuso como designativo de uma ciência. Ela surgiu quando ainda não tinha sido desenvolvida a ciência econômica tal como é vigente, não havendo, na época, portanto, uma nítida separação entre os fenômenos econômicos e os políticos. Isso apesar de que no livro Política[47], escrito há mais de dois mil anos, já se podia concluir que tarefa da Política seria outra: investigar qual a melhor forma de governo e instituições capazes de garantir a felicidade coletiva Pode-se dar como exemplo desta fusão entre economia e política o pensamento David Ricardo, no livro Princípios de Economia Política e Tributação[48], donde pode-se colacionar o seguinte excerto que bem exemplifica esta fusão entre economia e política: “Não existe na Economia Política questão melhor estabelecida do que aquela que sustenta que um país rico não pode aumentar sua população à mesma taxa que um país pobre, devido à sua crescente dificuldade na obtenção de alimentos.”. Marx sempre desdenhou a Economia Política na visão clássica: “Se o capitalista quer vos alimentar com batatas, em vez de carne, ou com aveia, em vez de trigo, deveis acatar a sua vontade como uma lei da economia política e vos submeter a ela”[49]. Marx enxergava no Estado um mero instrumento de repressão da burguesia (o capitalista) contra o proletariado, o qual desapareceria naturalmente com a ascensão do proletariado ao poder[50]. O livro Esboço de uma Crítica da Economia Política[51] focalizou as obras desses economistas como expressão da ideologia burguesa da propriedade privada, da concorrência e do enriquecimento ilimitado. Ao enfatizar o caráter ideológico da Economia Política, negou-lhe significação científica, tendo prevalecido a ideia de economia e política como fenômenos autônomos, embora não estanques. Pede-se vênia para citar diretamente concepção atual de Economia extraída de um dicionário especializado na matéria, o qual chama atenção pela precisão: “ECONOMIA. Ciência que estuda a atividade produtiva. Focaliza estritamente os problemas referentes ao uso mais eficiente de recursos materiais escassos para a produção de bens; estuda as variações e combinações na alocação dos fatores de produção (terra, capital, trabalho, tecnologia), na distribuição de renda, na oferta e procura e nos preços das mercadorias. Sua preocupação fundamental refere-se aos aspectos mensuráveis da atividade produtiva, recorrendo para isso aos conhecimentos matemáticos, estatísticos e econométricos. De forma geral, esse estudo pode ter por objeto a unidade de produção (empresa), a unidade de consumo (família) ou então a atividade econômica de toda a sociedade. No primeiro caso, os estudos pertencem à microeconomia e, no segundo, à macroeconomia. A palavra “economia”, na Grécia Antiga, servia para indicar a administração da casa, do patrimônio particular, enquanto a administração da polis (cidade-estado) era indicada pela expressão “economia política”. A última expressão caiu em desuso e só voltou a ser empregada, na época do mercantilismo, pelo economista francês Antoine Montchrestien (1615); os economistas clássicos utilizavam-na para caracterizar os estudos sobre a produção social de bens visando à satisfação de necessidades humanas no capitalismo. Foi somente com o surgimento da escola marginalista, na segunda metade do século XIX, que a expressão “economia política” foi abandonada, sendo substituída apenas por “economia”. Desde então, é a denominação dominante nos meios acadêmicos, enquanto o termo “economia política” ficou restrito ao pensamento marxista. Modernamente, de acordo com os objetivos teóricos ou práticos, a economia se divide em várias áreas: economia privada, pura, social, coletiva, livre, nacional, internacional, estatal, mista, agrícola, industrial etc. Ao mesmo tempo, o estudo da economia abrange numerosas escolas que se apoiam em proposições metodológicas comumente conflitantes entre si. Isso porque, ao contrário das ciências exatas, a economia não é desligada da concepção de mundo do investigador, cujos interesses e valores interferem, conscientemente ou não, em seu trabalho científico. Em decorrência disso, a economia não presenta unidade nem mesmo quanto a seu objeto de trabalho, pois este depende da visão que o economista tem do processo produtivo”[52]. Conclui-se, portanto, que Economia é a ciência que estuda o comportamento humano e os fenômenos dele decorrentes, que se estabelecem em sociedade permanentemente confrontada com a escassez[53]. Neste tópico cumpre apenas mencionar que na concepção de Eros Grau[54], “atuação” é um vocábulo mais lato que “intervenção”. “Intervenção” é a atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito. “Atuação” é a atuação do Estado na atividade econômica em sentido amplo. O vocábulo “intervenção” tem um sentido forte, “como atuação na esfera alheia”, pressupondo-se que a atividade econômica em sentido estrito é do domínio econômico (domínio do mercado), ou seja, não é uma área própria do Estado. Contudo o autor defende que o Estado não é e não deve ser um mero observador do mercado, mas sim, um ator muito ativo e com extensas responsabilidades como promotor do desenvolvimento. Apenas para esclarecer, Eros Grau trata atuação do Estado como gênero, dos quais são espécies, de um lado, a já mencionada atividade econômica em sentido estrito (o mercado) e, de outro, o serviço público, que não deixa de ser uma atividade de administração de recursos escassos. Observa-se que quando se fala em Economia, costuma-se aparecer no mesmo contexto a palavra “mercado”. Mas o que ele é? Em sentido geral, o termo significa um grupo de compradores e vendedores cujas negociações afetem os negócios de terceiros, influenciando em preço e demais condições[55]. O mercado é típico dos sistemas de autonomia (capitalista). Nusdeo[56] ensina que o mercado (que significa troca) sempre existiu e existiu, ao menos informalmente, inclusive nos outros sistemas (tradição e autoridade), o que o torna uma instituição natural, que surge naturalmente, conforme as necessidades humanas existentes em qualquer sociedade. O sistema de mercado é que é algo diferente, pois faz do mercado o sistema vigente. Aqui reside uma grande divergência entre o entendimento de Fábio Nusdeo e Eros Grau[57], pois este entende que o mercado é uma “instituição jurídica” constituída pelo direito positivo, o direito posto pelo Estado Moderno. Antes, porém, deve ser compreendido como uma instituição social, produto da criação histórica da humanidade, e uma instituição política, destinada a regular e manter determinadas estruturas de poder que asseguram a prevalência de certos grupos sobre outros, como princípio de organização social. Segundo o autor o mercado não é uma instituição espontânea, mas uma instituição "operando com fundamento em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam…" O mercado, para o ex-ministro do STF, é, ainda, uma ordem, no sentido de regularidade e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência, pelos agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa regularidade se pode assegurar apenas por critérios objetivos, daí porque se exige um sistema de normas jurídicas uniformes e um sistema de decisões políticas integrado em relação a determinado território. "O fato é que (…) a burguesia apropriou-se do Estado e é a seu serviço que este põe o direito, instrumentando a dominação da sociedade civil pelo mercado". Basicamente é aí (no mercado) que ocorre a chamada “intervenção do Estado na ordem econômica”, a que é comumente citado como fundamento para tanto, o cumprimento do art. 170 da CF, no qual também encontraria seu limite[58]. Inicialmente, é de se esclarecer que, conforme ensina Eros Grau[59], a expressão ordem pública é o conjunto de normas imperativas que prevalece sobre o universo das normas dispositivas de direito privado (ordem privada). É nítida expressão da ideologia liberal, a qual considerava que a ordem econômica pertencia exclusivamente à ordem privada, apartada de qualquer ingerência estatal (laissez faire, laissez passer…). No entanto, o mesmo autor ensina que a ordem econômica, embora consagrada como uma ordem “pública” econômica, na verdade é um conjunto de “normas de intervenção por direção”, o que é diferente de normas de ordem pública no seguinte sentido: a) Normas de ordem pública: aplicam-se de imediato às situações às quais se voltam, fatos futuros e fatos pendentes. Estão voltadas para a preservação das condições que asseguram e sobre as quais repousa a estrutura orgânica da sociedade. São o núcleo da ordem jurídica liberal. São voltadas ao estabelecimento de um regime de segurança social, mediante a vedação de comportamentos que afetem o status quo, prevalente na organização social, incidem sobre a generalidade dos agentes, setores e atividades econômicas, de modo indistinto. Compreendem uma norma de exceção, de conteúdo proibitivo, negativas, externas ao direito privado. Não superpõe a ordem pública e o Direito Público de um lado, e de outro, a ordem privada e o Direito Privado b) Normas de intervenção por direção[60]: aplicam-se somente aos fatos futuros. Instrumentam políticas públicas cuja dinamização envolve não meramente a paz social, mas a perseguição de determinados fins, nos mais variados setores da atividade econômica. Conduzem a transformação da ordem jurídica liberal. Preenchem o conteúdo funcional de determinadas situações jurídicas, distinguindo-as de outras. Não expressam noção de exceção, compõe ordenação concorrente com a definida pelo direito privado, respeitando à regulação das obrigações, em geral, e dos contratos, de modo a configurá-los como verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados menos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia nacional. Para Vital Moreira[61], a "ordem econômica" tem três sentidos: a) "modo de ser empírico de uma determinada economia concreta, (…) um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é o conceito do mundo do ser, portanto)"; b) "expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos"; c)"ordem jurídica da economia". Abstendo-se de fazer digressões históricas, traz-se a baila o fato de que Constituição de 1988 trouxe em seu Capítulo VII a ordem econômica para dentro de seu texto. Convém aqui destacar que ela não se limitou a institucionalizar o mundo do ser, isto é, consolidar positivamente o que existe no mundo fático, mas foi além, trazendo mandamentos que a caracterizam a como do tipo dirigente[62]. O art. 170 da CF diz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”. Conforme o ensinamento acima declinado[63], o dispositivo deveria estar tratando de uma parcela da ordem jurídica (ordem econômica), isto é, do mundo do ser, mas na verdade, conforme o autor, deve ser relido o art. 170 de maneira adequada, com caráter normativo, do mundo do dever ser, nos seguintes termos: “As relações econômicas – ou atividade econômica – deverão ser (estar) fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim (fim delas, relações econômicas ou atividade econômica) assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.” Ressalte-se, “ordem econômica” possui significado polissêmico que pode dar a entender se tratar de uma realidade do mundo do ser, harmônica, autorregulada e auto-ordenada, e que prescindiria de qualquer outra ordenação ou regulação (mundo do ser). Um outro significado de “ordem” é o conjunto ou sistema de normas, neste sentido, ordem econômica é uma parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser). No entendimento de Bernardo Gonçalves Fernandes, a palavra “ordem” utilizada pelo constituinte de 1988 quer designar “uma estrutura organizada, uma seleção de elementos integrantes de um conjunto que se destina a uma finalidade específica”, e conclui dizendo que esta noção de “ordem” visa “um lançar-se ao futuro”, o seja, uma busca por constante melhoria ou progressão, entendimento este que reforça o caráter desenvolvimentista da Constituição[64]. O domínio econômico ou ordem econômica, no sentido adotado por este trabalho, é o campo de atuação próprio dos particulares, tendo como fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre-iniciativa.  O Estado somente pode interferir no domínio econômico como agente normativo e regulador. A exploração direta de atividade econômica pelo Estado, “ressalvados os casos previstos na Constituição Federal” (Existem apenas dois casos desse tipo “ressalvados” na CF: a) inciso XXIII do art. 21 – atividades nucleares – são atividades econômicas em sentido estrito e não serviços públicos – por isso se fala em “monopólio”; b) art. 177 – monopólio sobre explorações de petróleo), só será possível quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou à relevante interesse coletivo (art. 173). Nessas hipóteses, a atuação estatal na exploração direta de atividade econômica ocorrerá por meio das empresas públicas e sociedades de economia mista[65]. Por fim, cumpre mencionar que as disposições constitucionais sobre a ordem econômica não se limitam ao Título VII da CF, estando elas espalhadas por todo o seu texto, das quais se destaca o art. 3º, cujo conteúdo econômico é indubitável, o qual se configura em um rol de objetivos que vinculam tanto o Estado agente normativo e regulador da atividade econômica, quanto à própria sociedade civil, no qual o mercado se enfatiza, não podendo ele deixar de se vincular a tais responsabilidades, sendo este ideal chamado de “eficiência de mercado”, que importa na busca da maximização dos ganhos, mas também de uma solidariedade, equivalência e distribuição equitativa, justa e segura destes recursos[66]. A Constituição de 1988 é um centro irradiador e marco da reconstrução do direito privado de um Brasil mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade[67]. Isto é, inclusive, uma característica que marca o rompimento com a ordem liberal clássica, a qual é amplamente conhecida como “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”[68]. A crença na capacidade coordenadora do mercado com liberdade para os indivíduos e abstenção do Estado, junto com o princípio hedonista (lei da maximização dos resultados com o menor esforço) aliados, ainda, ao utilitarismo (crença de que certas tendências da natureza humana, como a ambição, o desejo de desfrutar dos bens do mundo, a procura por ascensão social, devidamente canalizadas poderiam ser úteis a todos, desde que elaboradas as instituições próprias ao seu adequado equacionamento), como pressupostos psicológico-comportamentais do liberalismo clássico formaram um ingênuo otimismo acerca deste sistema[69]. A tal liberdade na ordem econômica garantida pelo Estado surtiu efeito contrário, mostrando-se como uma verdadeira forma de “… alargar os abismos entre as classes sociais tornando o pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais abastado…”. Isto gerou, na prática, uma verdadeira escravidão para as classes desfavorecidas. O Estado, diante disso, não poderia ficar inerte, assistindo silente o crescimento alarmante das desigualdades sociais, e a constante prática das empresas de capitalizar as externalidades positivas e socializar as externalidades negativas. Daí surge a ideia de legitimá-lo a intervir, a fim de corrigir estas distorções[70]. O ideário do liberalismo pressupunha uma situação de equilíbrio real e constante, algo abstrato e ilusório, equivalente a conceitos físicos como o vácuo ou a inexistência de atrito, ou seja, algo que serve como simplificação da realidade para a elaboração de modelos científicos, mas sem existência prática[71]. A propósito, Keynes já preconizava: “Argumentarei que os postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral, pois a situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as suas conclusões aos fatos da experiência”[72]. Esta atribuição de poder de intervenção ao Estado inaugurou a chamada fase do “dirigismo econômico”, em que o Poder Público age com base em planos estratégicos, sistematicamente, sobre fatos econômicos[73]. Houve quem entendesse que a Constituição de 1988 restringiu as possibilidades de interferência do Estado na ordem econômica[74], mas prevalece o entendimento de que a Constituição é um dinamismo[75], podendo os autorizativos constitucionais de atuação do Estado poderem assumir feição ora mais, ora menos ortodoxos, sem que para isso seja preciso a mudança formal de seu texto. A esta abertura interpretativa se dá o nome de mutação constitucional. Sobre o tema Inocêncio Mártires Coelho observa: “Consequência dessa abertura para o mutante, toda interpretação é apenas um ‘experimento em marcha’, assim como a ideia de uma interpretação definitiva é uma contradição nos termos, na sempre oportuna lição de Hans-Georg Gadamer. Afinal, se tudo se transforma, ‘se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio’ – com [sic] se aprende com Heráclito –, seria uma excrescência que só a vida do direito escapasse ao ‘panta rhei’ da eterna transformação”[76]. Foi declinado supra (item 1.5) a posição de Eros Grau no sentido de que a atividade econômica pode ser tida em sentido amplo, como gênero, dos quais são espécies a atividade econômica em sentido estrito e os serviços públicos. Cumpre mencionar a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello[77], para o qual, além destas duas espécies há uma terceira, que são as atividades que podem ser prestadas tanto por um (setor público) quanto pelo outro (setor privado). Eros Grau[78] distingue 4 modalidades formais pelas quais os Estados se fazem presentes no modelo econômico dual: a) por direção: normas que impõem determinada conduta. Ex. quota de importação, tabelamento, filtros antipoluentes, depósitos obrigatórios pelos bancos no BACEN; b) por absorção: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado através de monopólio; c) por participação: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado, misturando-se com as demais, exercendo poder de influência (obs. neste livro estas também serão chamadas de “por absorção”); d) por indução: o estado não impõe e nem absorve, mas induz determinados comportamentos ou decisões mediante sanções premiais (no dizer de Bobbio) ou “punições”. Ex. eleva impostos para desestimular determinada atividade como a produção de cigarro. Isenção de impostos em determinadas regiões para reduzir as desigualdades. Ressalte-se que a exploração da atividade econômica é uma prerrogativa dos particulares, diante da adoção do sistema capitalista pela Constituição de 1988. Entretanto, extrai-se do texto constitucional a adoção do princípio da subsidiariedade, o qual autoriza o Estado a intervir no domínio econômico[79]. Esta possibilidade de intervenção encontra limites no texto constitucional, principalmente nas regras e princípios contidos no art. 170 da CF, de modo que se o Estado extrapolar estes limites, poderá ser responsabilizado civil e objetivamente com base no art. 37, § 6º da CF[80]. Já se pode, neste ponto, adiantar que é aí que reside a questão que serve de premissa para a resposta final deste trabalho, ou seja, que o direito fundamental ao desenvolvimento deve servir como mais um princípio jurídico de forte carga axiológica para nortear a intervenção do Estado na ordem econômica, mesmo não expressamente positivado no referido art. 170, e como tal, deve servir como fundamento também no caso em que esta intervenção provenha do Poder Judiciário, sob pena de se traduzir em uma profunda antijuridicidade. A Constituição de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas Sobre o Direito ao Desenvolvimento tratou de positivar a Dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa nação, já em seu art. 1º e como um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil, no seu art. 3º, a garantia do desenvolvimento nacional[81]. Não é apenas este dispositivo que trata expressamente do direito fundamental ao desenvolvimento, apenas ele está aqui mencionado a título de exemplo. O direito ao desenvolvimento é extremamente amplo, tendo, além das diversas convenções internacionais que visam assegurá-lo[82], muitos dispositivos constitucionais que a ele se referem[83], podendo-se afirmar categoricamente que toda a elaboração da Constituição de 1988 foi influenciada pela noção de Direito ao Desenvolvimento, sob esta concepção democrática. Diante de tal constatação, se mostra de suma importância o aprofundamento do estudo em torno do direito ao desenvolvimento, tendo em vista que somente é possível afirmar-se conhecedor da Constituição de 1988 aquele que compreender a visão desenvolvimentista que serviu de vetor axiológico para a sua elaboração. Não se trata de um direito em disputa entre visões privatistas ou estatizantes, mas sim, de um direito fundamental que serve ao fortalecimento da democracia e à promoção da igualdade e da dignidade da pessoa humana. A Constituição indica que o direito ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana, é um princípio de forte carga valorativa, e que se manifesta ao menos implicitamente em todos os dispositivos materialmente constitucionais, despontando como se fizesse um corte transversal sobre todos os ramos do Direito, vinculando-os aos seus ditames. O já citado art. 170 da CF, menciona a ordem econômica tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Está aí o vínculo com o direito ao desenvolvimento, pois conforme já demonstrado, não se pode falar em vida digna sem a plena igualdade de acesso aos bens escassos e à liberdade que disso é decorrente. Dentre os princípios da ordem econômica destaca-se o caráter desenvolvimentista nos dispositivos que tratam da defesa do consumidor (V); da defesa do meio ambiente (VI); da redução das desigualdades regionais e sociais (VII); e da busca do pleno emprego (VIII). O art. 173 diz o seguinte: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.” Até mesmo este caso de intervenção por absorção (ou participação), conforme a classificação de Eros Grau (op. cit.), não pode olvidar de sempre ter em mente a eterna busca pelo desenvolvimento, pois isto impera sobre todo o ordenamento, e não apenas sobre fragmentos dele. Segundo as palavras dele, “Não se interpreta a Constituição em tiras”. O art. 174 também é de suma importância: “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º – A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.” Nota-se que o § 1º se mostra como um verdadeiro vetor interpretativo do caput. Em outras palavras: sempre que o Estado normatizar, regular, fiscalizar (intervenção por direção) incentivar e planejar (intervenção por indução) a atividade econômica – sendo o planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado – não poderá ter por norte critérios arbitrários, políticos, ideológicos ou de compadrio, mas sim, sempre deverá ter em mente o que consta no § 1º que trata do direito ao desenvolvimento. É inegável a influência do ideal de desenvolvimento desatrelado do mero ideal de crescimento em toda a elaboração do texto constitucional. Diante disso, é de se concluir que, apesar de não estar expressamente previsto no art. 170 o direito ao desenvolvimento como diretriz informadora de toda e qualquer intervenção do Estado na ordem econômica, isso não significa que esta atividade estatal não esteja vinculada a ele. É importante que esta conclusão seja afirmada com veemência, de maneira clara. Diante de todo o exposto neste trabalho até aqui, resta demonstrado que o direito fundamental ao desenvolvimento, como norma do tipo principiológico que deve servir de mandamento de otimização a ser cumprido na maior medida possível[84], é vetor axiológico da intervenção do Estado na ordem econômica. E vai-se adiante, pode-se dizer que não é apenas mais um valor a ser perseguido pelo Estado e pela sociedade, mas sim, um dos mais importantes princípios da atual ordem constitucional, pois nele estão inseridas todas as condições indispensáveis para que se possa falar em existência digna, por isso, inegável a presença de uma forte carga axiológica, que deve ser observada em todas as espécies de intervenção do Estado na ordem econômica, sob pena de ilegitimidade, inconstitucionalidade e de inconvencionalidade da medida. Não há liberdade, não há sustentabilidade, não há vida digna sem que haja desenvolvimento, o que o torna um direito fundamental, não apenas coletivo, mas também exigível individualmente. Trata-se de um direito ao desenvolvimento condizente com o Estado Democrático de Direito, e não como atrelado a uma noção singela de “crescimento”, típica do Estado liberal. Estas são as premissas categóricas das quais se deduz a resposta para a questão proposta por neste capítulo. O tema do direito ao desenvolvimento tem especial atenção na ordem jurídica internacional. Além disso, conforme foi demonstrado, a Constituição de 1988 foi elaborada com destaque profundo que ao assunto. É de se concluir, portanto que as disposições acerca da intervenção do Estado na ordem econômica não escapam de uma vinculação normativa principiológica com forte carca axiológica com o dever de busca pelo desenvolvimento, cujo próprio preâmbulo constitucional brasileiro o adjetiva como “valor supremo”. Esta conclusão afasta do poder público qualquer possibilidade de tomada de decisões, que se traduzam em intervenções na ordem econômica, que não sejam decorrentes da diretriz fundamental da busca pelo desenvolvimento. Assim, cumpre ao Estado assegurar o desenvolvimento, como direito fundamental de todos os indivíduos, devendo este ser o fundamento para toda e qualquer intervenção na ordem econômica, afastadas todas as formas de arbitrariedades e subjetivismos. Nota-se que mesmo se apegando às premissas do eminente Eros Grau, há de se concluir que a autarquização das estatais é flagrantemente uma intervenção na ordem econômica pelo Poder Público, feita pela via do Poder Judiciário, à revelia dos demais poderes da República, portanto, se faz necessário investigar se tal “intromissão” se legitima à luz do direito fundamental ao desenvolvimento, e para isto resta assentada a premissa de que este direito fundamental é extremamente amplo, sendo princípio de observância obrigatória para sempre que o Estado quiser intervir na ordem econômica. Ressalte-se: o direito fundamental ao desenvolvimento, enfim, é o grande vetor axiológico positivado em um princípio jurídico de fonte interna e internacional, que vincula a intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive quando for praticada pelo Poder Judiciário. Deve ser observado que mesmo isto não estando expressamente previsto topograficamente no art. 170 da Constituição, ali está implicitamente quando se fala em “existência digna”. Diante da premissa assentada no sentido de que, em que pese discussões doutrinárias, a Constituição permite a criação de empresas estatais para a prestação de serviços públicos, pode-se concluir desde já que o fenômeno jurisprudencial chamado de autarquização das estatais contraria a Constituição. Entretanto, essa tendência de dar regime jurídico de Direito Público às estatais poderia ser dada como “salva” se servissem à promoção de direitos fundamentais, caso se estivesse diante de um extreme case onde fosse possível a ocorrência da chamada defeasibility, que diz respeito a casos raros em que regras devem ceder diante de princípios[85]. Não há nenhuma argumentação nesta jurisprudência no sentido de que estão praticamente transformando empresas estatais em autarquias de fato para atender algum direito fundamental, portanto, faz-se uma análise com base em um direito fundamental extremamente amplo como o Direito ao Desenvolvimento, para ver se há alguma razão, mesmo de ordem pragmática, que fundamente a autarquização das empresas estatais via Poder Judiciário. Não é possível afirmar, a priori, que os serviços públicos prestados pelo setor privado ou pelo setor público são mais eficientes por ser submissos a este ou àquele regime. Tal constatação somente se mostra possível em cada setor, e em cada caso concreto, com base em fatos concretamente demonstráveis, e isto não foi demonstrado em nenhum dos julgados do Poder Judiciário brasileiro. Existem concepções ideológicas que defendem os dois regimes jurídicos como forma mais eficiente de prestação de serviços públicos. Há aqueles que entendem que um serviço é mais eficiente quando prestado sob o regime jurídico de Direito Público, e há aqueles que entendem que o serviço mais eficiente é aquele prestado sob o regime jurídico de Direito Privado. Despiciendo declinar aqui os fundamentos de uma ou outra concepção, pois este trabalho é jurídico, e sob esta ótica não interessam correntes de pensamento que se valem exclusivamente de teses ideológicas. O Direito, por seu turno, deve investigar os fatos frente ao ordenamento jurídico, e o que se tem de fato, é que nenhuma decisão jurisprudencial decidiu pela autarquização das estatais pelo fato de assim promover o direito ao desenvolvimento, ainda que indiretamente, com base em fatos concretamente demonstráveis. Portanto, limitando e confundindo, de certa forma, neste caso, o direito ao desenvolvimento, com melhor desempenho e eficiência dos serviços públicos, não há como afirmar abstratamente que a autarquização das estatais promove de alguma forma este direito fundamental. Além disso, para uma decisão judicial ser dada com base neste fundamento, deve haver provas no sentido de que “autarquizando” a estatal, o serviço público será mais eficiente, caso contrário, deve prevalecer a vontade legítima do Legislador e do Administrador. Além de tudo isso consequências da autarquização das estatais é a impossibilidade de cobrança de impostos destas, uma das principais entidades prestadoras de serviços públicos, o que limita ou impede, em tese, que os entes prejudicados promovam o desenvolvimento de outros serviços públicos, cada um em seu âmbito. Esta consequência é mais marcante no que se refere às estatais da União, tendo em vista que os Estados perdem altas receitas de ICMS, os municípios perdem altas receitas de IPTU e de ISS etc., as quais acabam ficando integralmente nas mãos da administração indireta da União. Tirar as receitas destes impostos dos estados e dos municípios e centralizar nas estatais da União promove de alguma forma o direito ao desenvolvimento? Não há nenhum dado empírico que indique que a resposta possa ser dada positivamente, o que induz a se pensar que o STF está anulando decisões políticas sem razão alguma, o que pode ser interpretado como uma espécie de discriminação dos entes prejudicados, e uma predileção pelos entes beneficiados, o que é incompatível com o espírito de igualdade que deve nortear a relação entre os entes da federação, não podendo haver qualquer hierarquia entre eles. Diante destas constatações, pode-se concluir que mesmo se apegando em um direito fundamental extremamente amplo como o direito fundamental ao desenvolvimento, não é possível concluir que, com a autarquização das estatais, o Judiciário estaria superando regras postas na Constituição para a sua promoção. Como dito anteriormente, o STF se apega nas premissas de um mundo que seus ministros consideram “ideal” onde autarquias prestam serviços públicos e estatais desempenham atividade econômica, mas tal entendimento não é jurídico, mas sim, ao que parece, meramente estético, pois jurídico é o que prevê a Constituição, e esta diz que podem existir estatais prestadoras de serviços públicos (§ 1º do art. 173), e que estas não podem ter privilégios não extensíveis às empresas privadas (§ 2º do art. 173). Diante da sensibilidade do tema, o Poder Judiciário não pode tomar decisões levianas, desprezando-se ao mesmo tempo: o texto constitucional; a autonomia administrativa do Poder Executivo; e a vontade política do Poder Legislativo, sem que isto possua, ao menos, a finalidade nobre de promover algum direito fundamental. O que se pode afirmar até aqui, é que o direito fundamental ao desenvolvimento não está sendo promovido pela via dessa autarquização das estatais, não existindo nenhum dado concreto a este respeito, a não ser ranços ideológicos de toda ordem. Agindo assim, o Poder Judiciário aparece como o mais forte ator de nossa ordem jurídica, capaz de intervir na ordem econômica, à revelia das demais instituições democráticas, podendo para tanto desprezar a vontade do Administrador e do Legislador, violar a constituição, e sem precisar observar o direito ao desenvolvimento como principal fundamento axiológico para a intervenção do Estado na ordem econômica. Toda esta argumentação traçada até aqui não pretende colocar um ponto final sobre o tema, mas sim, quem sabe, criar uma discussão, no sentido de que se for possível comprovar que a autarquização das estatais promove, de alguma forma o direito fundamental ao desenvolvimento, tal medida se justificaria por este fundamento, e aqui, humildemente abre-se margem ao falseamento de todo o sobredito. A autarquização das estatais é fenômeno extremamente problemático, uma espécie de reforma administrativa antineoliberalismo promovida “à força” pela via do Poder Judiciário. Existe uma série de problemas acarretados por tal tendência jurisprudencial, mas neste capítulo, quer se dar especial destaque para o aspecto atinente aos impactos fiscais de tal entendimento. A expressão “pacto federativo” possui muitas facetas, pois diz respeito a qualquer aspecto que interfira na distribuição nacional de competências, atribuições e prerrogativas inerentes à cada ente político brasileiro, e isso se dá porque como o próprio nome diz, ele é pactuado, ou seja, deve ser fruto de um consenso profundo entre todos os entes da federação. O Brasil é uma federação singular, tendo em vista que é composta pela União, pelos estados e também pelos municípios, conforme estabelece a Constituição de 1988, logo em seu art. 1º, possuindo cada um destes entes autonomia política e administrativa, ou seja, capacidade de auto-organização, autonormatização, autogoverno e autoadministração. Entretanto, o aspecto que se quer destacar neste trabalho é o pacto federativo em seu viés tributário, ou seja, é o denominado “federalismo fiscal”, que diz respeito exatamente à distribuição da arrecadação tributária entre os entes da federação, para que cada um deles possa exercer estas autonomias. O pacto federativo, neste aspecto, é exaustivamente tratado no texto da Constituição, a qual é pródiga no tratamento da matéria, disciplinando tributos que são de competência da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, o qual possui cumulativamente a competência dos estados e dos municípios. Este trabalho não tratará de fazer a demonstração das repartições de competências tributárias e das receitas dos tributos, mas sim, apenas referirá esta noção genérica sobre o federalismo fiscal para que se possa fixar a seguinte premissa fundamental: qualquer mudança no pacto federativo é extremamente complicada, pois impacta na própria autonomia dos entes federativos, o que sempre atrairá ao debate, a regra prevista no art. 60, § 4º, I da Constituição. A Constituição faz expressa menção às pessoas políticas, às autarquias e às fundações como beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição, c/c o § 2º do mesmo dispositivo. O STF, contudo, avançou no sentido de que o beneplácito deve ser estendido às empresas públicas e às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público. Por último, o STF tem reconhecido a imunidade até mesmo para atividades típicas do regime concorrencial, desde que o lucro auferido seja revertido para a manutenção do serviço público para o qual serve a respectiva estatal, aplicando-se o que tem se denominado “tese do subsídio cruzado”[86], ou seja, a imunidade se estende às atividades econômicas que servem para financiar o serviço público. Quando da criação das estatais, existe um debate de natureza política no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo de cada ente público. É de se considerar a possibilidade de que no âmbito da União, por exemplo, o debate sobre a modalidade institucional, após muita negociação política, passa pela melhor técnica de repartição de receitas tributárias. Em que pese a EC 19/98 ter sido introduzida por um governo de ideologia neoliberal, existe previsão constitucional que claramente ampara a possibilidade de criação de estatais prestadoras de serviços públicos, e o § 2º do art. 173 da Constituição é taxativo: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”, não trazendo nenhuma diferença de tratamento. Diante destes fundamentos jurídicos, há legítima expectativa no sentido de que os entes federativos possuem o direito de cobrar impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços das empresas públicas de outros entes, e este entendimento que vem se consolidando no STF acaba por impactar gravemente a segurança orçamentária de todos os entes da federação, pois acabam perdendo fatia significativa de sua receita tributária. Esta preocupação foi objeto de manifestação do Ministro Gilmar Mendes no RE 627051 nos seguintes termos: “… só para que a gente analise também do ponto de vista de consequência, inclusive de distribuição de ônus no plano federativo, porque, quando retiramos determinada área de incidência do ICMS, nós estamos afetando de forma forte a tributação dos Estados. Quando tratamos do ISS, municípios, o IPTU igualmente, e não se pensa em nenhum modelo de compensação, quer dizer, enquanto estivermos falando isoladamente dos Correios, talvez tenhamos uma dimensão (…) veja, por exemplo, o caso do IPTU numa área portuária, caso de uma cidade como Rio de Janeiro, ou cidades menores, o porto de Santos, e a repercussão que isto tem em todo o sistema. E, infelizmente, é difícil encontrar meios de compensação.” As estatais são criadas mediante autorização de lei, e esta lei tem como substrato legitimador o fato de ter sido produzida por representantes do povo, e se estes representantes optaram por criar estas entidades na forma de empresas, podem tê-lo feito assim para facilitar a distribuição de receitas de impostos, ou seja, justamente para fugir da imunidade recíproca. Pode ser que o STF tenha adotado uma concepção contábil, econômica, ideológica ou, até mesmo, de mera estética, ao simplesmente dar tratamento típico de autarquias para as estatais, à revelia do texto constitucional, pois, data venia, não há juridicidade na fundamentação, a qual se deu, inclusive sem considerar os impactos no federalismo fiscal, acabando por centralizar ainda mais as receitas nas mãos da União, no que se refere às estatais federais, vindo por enfraquecer os demais entes. Ocorre que o STF não é órgão escolhido pelo povo, e não possui legitimidade democrática para subverter as opções políticas tomadas no âmbito dos demais poderes, salvo nos casos de defesa dos direitos fundamentais das minorias, onde a Corte Constitucional possui legitimidade constitucional para agir de forma contramajoritária, fora isso, não pode o STF subverter o pacto federativo entabulado pelos legítimos representantes do povo, em que pese o atual cenário de falta de credibilidade destes. Não reside nenhuma violação a direitos individuais ou coletivos de ordem civil, política, econômica, social e nem cultural que legitime a atuação do STF no sentido de desprezar a escolha do regime jurídico das entidades da administração indireta, o que faz concluir que a decisão tem como fundamento exclusivamente premissas não jurídicas que não são idôneas para subverter o pacto federativo. O direito até pode ser construído com base em axiomas não juridicizáveis, mas isto no momento de sua elaboração, em sede legislativa. Ao aplicador, o norte que cabe seguir é pelo caminho a partir do caso concreto, investigando-se e aplicando-se o que de direito existe no ordenamento jurídico, não sendo lícito ao Judiciário de um Estado Democrático de Direito que possui constituição, se basear em ideologias, filosofias, religiões ou simples razões estéticas para fundamentar suas sentenças, podendo tão somente fundamentar suas decisões nas leis, na Constituição e nas normas decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Para além disso, carece de legitimidade democrática. A tendência de autarquização das estatais prestadoras de serviços públicos somente se legitimaria se previamente houvesse uma emenda constitucional que deixasse esta situação muito clara, sob pena de criar grave insegurança orçamentária e desequilíbrio financeiro em diversos entes da federação, os quais contam de boa-fé com os recursos dos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades. Portanto, conclui-se que, data venia, a autarquização das empresas estatais é inconstitucional por violar o pacto federativo, não existindo amparo jurídico para conferir regime jurídico de Direito Público para as empresas estatais, notadamente no tocante aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades, receitas estas que podem fazer muita falta na hora da aquisição de remédios e merenda escolar para as crianças carentes, falando-se apenas a título de exemplo. O STF acabou violando as normas constitucionais que se referem à autonomia administrativa, as quais permitem que os entes públicos possam promover a descentralização pela forma mais oportuna e conveniente para o interesse público. E quanto a este expansionismo de privilégios às empresas estatais, acabou promovendo uma espécie de “mutação constitucional inconstitucional”[87], por desprezar, dentre outros, o previsto no art. 173, §§ 1º e 2º da CF. Diante da abrangência e da fundamentalidade do direito fundamental ao desenvolvimento, faz-se necessária uma breve manifestação acerca da possibilidade de superação (defeasibility) das regras relativas ao pacto federativo, quando tal medida, na prática, se revela como ingrediente de promoção concreta e materialmente demonstrável do direito fundamental ao desenvolvimento. Quer-se deixar ressalvado o entendimento no sentido de que na hipótese em que seja cabal e concretamente demonstrada a promoção fática do direito fundamental ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais – tal direito, que hoje tem uma abrangência extremamente ampla, abrangendo todas as espécies de avanço de natureza civil, política, econômica, social e cultural –, nesta estrita hipótese, pode-se cogitar na derrotabilidade de regras, mesmo tão sensíveis quanto às atinentes ao pacto federativo. Assim como a supremacia e a indisponibilidade do interesse público são, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello, “pedras de toque” do Direito Administrativo, o direito fundamental ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, se mostra como verdadeira pedra de toque de todos os ramos do Direito brasileiro, assim, se uma atitude passar pela prova da promoção inequívoca do direito ao desenvolvimento, sopesando-se todos os demais fatores, é possível de se cogitar na superação de regras constitucionais e de opções políticas e administrativas legítimas advindas dos demais poderes da República. Todavia, atitudes judiciais de tal ordem só podem ser tomadas em casos extremos, onde haja prova manifesta de uma profunda transformação social pela via da autarquização das estatais, caso contrário, não existe legitimidade em uma postura que subverte todo o sistema constitucional, a fim de satisfazer concepções de ordem extrajurídica, advindo dos recônditos da consciência dos ministros do STF, o que não é compatível com um Estado que se diz Democrático de Direito[88]. Antes de apresentar a conclusão se faz necessária uma advertência: o motivo da realização deste trabalho é trazer uma modesta contribuição, ainda que a título de provocação no sentido de se desenvolver mais o debate sobre esta autarquização das estatais via STF, não pretendendo de maneira alguma colocar um ponto final nesta temática, e nem menoscabar o trabalho do STF nos processos referidos, consistindo os eventuais excessos de linguagem em meras críticas advindas de um cidadão preocupado, portanto, desde já, pede-se escusas. Passando-se as conclusões, é importante sublinhar que após uma breve apresentação do regime jurídico administrativo brasileiro, já no primeiro capítulo ficou demonstrado que a autarquização das estatais acaba por ferir a literalidade do texto constitucional que permite a criação de empresas estatais para a exploração de atividade econômica, especialmente o art. 173, §§ 1º e 2º da Constituição. Depois disso, passou-se a uma apresentação mais detalhada do direito fundamental ao desenvolvimento, apresentando-se até mesmo as noções mais básicas, pois parte-se do pressuposto de que é um direito que foi por muitos anos negligenciado pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, portanto, de pouca popularidade, merecendo maiores aprofundamentos, sempre que aparecer esta oportunidade. Ao final do capítulo sobre o direito ao desenvolvimento não se chegou a nenhuma conclusão mais substancial sobre a dúvida a respeito de estar-se ou não promovendo o direito fundamental ao desenvolvimento pela via dessa autarquização das estatais, pois não foram encontrados dados empíricos a este respeito e, além disso, não é correto lastrear um trabalho pretensamente útil ao Direito em concepções ideológicas. Isto não significa, entretanto, que não tenha havido avanço, pois diante da fundamentalidade do direito ao desenvolvimento, o qual se apresenta como valor supremo da República, concluiu-se pela possibilidade, ainda que remota, para casos extremos, de haver derrotabilidade das regras constitucionais para a promoção deste nobre direito fundamental, o qual se apresenta inclusive como princípio implícito da ordem econômica brasileira. Esta investigação se fez útil principalmente por ter acarretado a conclusão de que a autarquização das estatais, mesmo contrariando os dispositivos constitucionais mencionados, pode se justificar em casos extremos, onde seja cabalmente demonstrada a promoção inequívoca do direito fundamental ao desenvolvimento, abrindo-se esta via de justificação para casos futuros. No terceiro capítulo o trabalho apresentou uma especial preocupação com os impactos deste movimento jurisprudencial no pacto federativo, tendo em vista as consequências que acarreta para os entes tributantes, que perdem o direito de cobrar impostos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, o que se apresenta como uma questão muito delicada, por acabar desprezando decisões legítimas da Administração Pública e do Poder Legislativo. Neste ponto concluiu-se que a autarquização das estatais viola o pacto federativo, mas mesmo assim, acabou se ressaltando o valor fundamental do direito ao desenvolvimento, tendo em vista que em hipóteses raras e extremas, é possível até mesmo o federalismo fiscal ceder lugar a promoção deste valor supremo, o qual legitimaria, desde que concretamente demonstrável, toda intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive esta nova modalidade pela via do Poder Judiciário. A conclusão derradeira só pode ser no sentido de ressaltar o protagonismo que assume o direito fundamental ao desenvolvimento, caso seja reconhecido pelos juristas brasileiros o seu especial valor, superando-se a visão liberal clássica, e avançando-se rumo a uma concepção mais democrática e abrangente de tal instituto, o qual precisa funcionar como substrato legitimador de toda atuação do Estado, inclusive em suas intervenções na ordem econômica.
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Análise Do Princípio do Interesse Público sobre o Privado no Direito Administrativo Brasileiro
O presente trabalho tem como objetivo analisar os diversos posicionamentos doutrinários a cerca do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, perpassando pelo posicionamento da doutrina tradicional e atual, além das diversas críticas de doutrinadores que sustentam o uso da ponderação como melhor forma de resolução de conflitos de interesses. Uma vez que também visa respeitar o texto constitucional de 1988 em conformidade ao Estado Democrático de Direito. [1]
Direito Administrativo
Introdução O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, nas palavras de Alexandre Mazza, estaria implícito na atual ordem jurídica, e seria a demonstração de que os interesses da coletividade são mais importantes que os interesses individuais, fazendo com que a Administração, defensora dos interesses públicos, receba da lei poderes especiais, situando-a em uma posição de superioridade diante do particular. Assim, uma desigualdade jurídica entre a Administração e administrado.(MAZZA, 2012) Na doutrina administrativa tradicional a existência do princípio em questão é reconhecida, estabelecendo que em caso de conflito entre interesse público e interesse privado, o interesse público prevalecerá.(CARVALHO FILHO, 2012) No mesmo sentido se posiciona Maria Sylvia Zanella di Pietro, no qual expõe: “princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais”.(DI PIETRO, 2012). A doutrina moderna em conformidade com o atual direcionamento do direito acredita que os princípios e regras do Direito Administrativo estão sujeitos à constitucionalização do Direito, onde a Constituição passa a estabelecer os valores, fins públicos e comportamentos em seus princípios e regras, condicionando a validade e sentidos das normas presentes no direito infraconstitucional.(BARROSO, 2005). Nesse sentido, a constitucionalização do Direito Administrativo sofre influência dos princípios gerais e específicos consagrados no sistema jurídico constitucional. Sendo assim, o Direito Administrativo tem fundamento em seu regime jurídico próprio e também na Constituição, estando o primeiro, obrigatoriamente, em conformidade com o segundo. Dessa forma, surge diversas questões e críticas quanto ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, pois a Constituição estabelece diversos Direitos Fundamentais (Direitos Individuais), que possuem caráter essencialmente privado, sendo incompatível a prevalência do interesse público sobre o privado quando este se configurar como direito fundamental. 1. O princípio do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo O princípio do interesse público sobre o interesse privado, também chamado de princípio da rinalidade pública (DI PIETRO, 2012), princípio do interesse público ou finalidade pública (MAZZA, 2012), é princípio que não se radica em dispositivos específicos da Constituição Federal, pois é a condição da própria existência da sociedade e pressuposto lógico do convívio social. Apesar de divergências existentes entre autores quanto alocar em manifestações concreta, como o art. 170, III, V e VI (respectivamente, princípio da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente).(MELLO, 2009) Para Maria Silvia Zanella di Pietro, esse princípio se encontra tanto no momento da elaboração da lei, quanto no momento de sua execução em concreto pela administração pública.(DI PIETRO, 2012) Esse princípio se expõe como base para a atuação tanto do legislador como da autoridade administrativa no desempenho de seus atos. Serve também como fundamento para todo o direito público e vincula a Administração em todas suas decisões. Além disso, se inclui como norma de direito público, por serem normas do interesse público, mesmo que ocorra de reflexamente proteger interesse individual. Possui como sede principal o direito público, mais precisamente no direito constitucional e administrativo, sendo o princípio inspirador do legislador ao editar as normas de direito público, como também de vinculação da Administração Pública na aplicação da lei no exercício de sua função.(DI PIETRO, 2012) Surge a premissa que era necessário o Estado abandonar a posição passiva e atuar também no âmbito das atividade privadas. Nessa trajetória houve o primada do interesse público, ocorrendo a ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas. Ao exemplo temos, a ampliação do conceito de serviço público, a imposição não só de obrigações negativas (não fazer), mas também positivas para resguardar a ordem pública, além de ampliar sua atuação para a ordem econômica e social. Com esse princípio surgiu novas formas de interferência do Estado na vida econômica e no direto da propriedade, permitindo a intervenção do poder público no funcionamento e na propriedade das empresas, com o intuito de harmonizar o uso da propriedade com o bem-estar social, como no caso de desapropriação para justa distribuição da propriedade, a reserva de minas e riquezas do subsolo ao Estado. Também cabe ao Estado tutelar e se preocupar com os interesses difusos, aqueles como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a manifestação da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se manifesta através da possibilidade de a Administração, nos termos da lei, e através de atos unilaterais, constituir terceiros em obrigações. Esses atos estatais são classificados como atos imperativos, sendo exigíveis com a previsão de sanções ou providências indireta que façam com que o administrado o cumpra. Há também a possibilidade de a administração executar sua previsão, sem antes necessariamente recorrer às vias judiciais, essa possibilidade recebe o nome de auto-executoriedade dos atos administrativos. Tal possibilidade está condicionada mediante duas hipóteses, a expressa previsão legal do comportamento e quanto a urgência da providência, por podê-lo demandar de imediato uma vez que não há outra via de igual eficácia e há o risco de perecimento do interesse público. Alice Gonzalez Borges leciona que a auto-executoriedade se faz necessário, pois se não houvesse a possibilidade de a Administração Pública, no exercício de sua função, em circunstâncias especiais urgentes delimitados pela lei, usar da imperatividade, exigibilidade e presunção de legitimidade dos seus atos, instauraria se o caos devido a falta de segurança jurídica, configurando em uma sociedade anárquica.(BORGES, 2007) Outra expressão dessa supremacia ocorre pela possibilidade de revogação, pela própria Administração, dos próprio atos inconvenientes ou inoportunos, assim como o dever de anular ou convalidar os atos inválidos que haja praticado (manifestação do princípio da autotutela dos atos administrativos).  Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, para se atingir a o interesse da coletividade, é necessário que a Administração Pública, tenha suas finalidades legalmente instituídas e objetificadas. Agindo em nome do interesse público e em conformidade com a lei (intentio legis). Para esse autor, há diferenças entre o interesse público e o interesse meramente das pessoas estatais, sendo eles respectivamente o interesse público propriamente dito, também chamado de interesse primário, e o interesse secundário. O interesse público ou primário seria aquele pertinente à sociedade como um todo, sendo o interesse que a lei consagra e confere ao Estado como seu representante. Já o interesse secundário é aquele que diz respeito ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada, só pode ser validamente perseguido pelo Estado quando coincide com o interesse público primário. Para esse autor, qualquer forma de excesso decorreria em extralimitação da competência, configurando em abuso que pode ser considerado inválido mediante o Judiciário a requerimento do interessado. 2. Desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado Diferentemente dos autores antes apresentados, em conflito com a doutrina majoritária, Humberto Bergmann Ávila realiza uma desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado demonstrando o conceito vazio que o mesmo se expõe, não podendo ser entendido como norma-princípio, seja sob a face conceitual, normativo ou postulado normativo.(BINENBOJM, 2005) Para esse autor, diferentemente do que determina o princípio (preferência em caso de colisões entre o interesse privado e o interesse público, prevaleceria o interesse público), haveria a aplicação de ponderações. Há em sua obra a análise da falta de respaldo normativo de tal princípio, por não decorrer de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, por não admitir a dissociação do interesse privado, e por demonstrar-se incompatível com os postulados normativos erigidos pela ordem constitucional. Em relação ao conteúdo constitucional, Ávila se presta a negar a colisão entre os interesses públicos e os privados, pois haveria uma conexão estrutural entre eles, e não sua contradição. Conforme expões: "O interesse privado e o interesse público estão estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado."(ÁVILA, 2001) O autor descreve como a "indissociabilidade do interesse privado", pela presença de um ordenamento pautado por garantias e direitos individuais que o Estado deve se submeter, afirmando que a realização de interesse particular quando em conflito com interesse público não configura desvio de finalidade para a Administração, pois também se configurariam em fins públicos. Os interesses privados também estariam constitucionalmente assegurados, e podem, mesmo que parcialmente, realizar interesse público. Humberto Ávila, também afirma a incompatibilidade da caracterização como norma-princípio através da incompatibilidade do mesmo frente ao postulados normativos da proporcionalidade e da concordância prática, que buscam uma exata medida da realização máxima de bens jurídicos contrapostos. Nesse sentido, afirma que o princípio que direciona a solução em prol do interesse público, não se harmoniza com a ponderação, excluindo-se os interesses privados. O princípio da proporcionalidade, através da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, se direciona na análise casuística, distanciando da premissa da prevalência do interesse público. Assim também, se distância da concordância com o caso prático com a ponderação. Ávila se posiciona no sentido que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não se configura em postulado normativo, devido vários fatores como a impossibilidade de um princípio do Direito Administrativo se apresentar como regra de preferência, a dissociabilidade entre interesses públicos e privados apesar de sua irresistível vinculação, a relação bipolar entre Estado e cidadão enquanto objeto central do direito administrativo, apesar de na prática inexistir tal contradição entre público e privado, e pelo eventual reconhecimento do princípio como postulado normativo do Direito Administrativo, apesar de não ser possível pela falta de determinação objetiva e abstrata do conceito de interesse público, que só seria possível pela concretização das normas constitucionais e legais vigentes. Dessa forma, para Humberto Ávila, não é reconhecido a prevalência do direito público sobre o privado, por razões de ordem normativa e lógica, negando a existência de um princípio, seja ele norma-princípio ou postulado normativo, como guia do direito administrativo brasileiro. Sendo ele, congruente ao uso da ponderação devido a pluralidade de interesses em jogo. Na obra de Gustavo Binenbojm, ele analisa a constitucionalidade, bem como a necessidade do princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os privados. Para ele, as descriminações e benefícios do Estado (supostamente da coletividade) sobre os interesses individuais só seriam aceitáveis a medida que não forem arbitrários e servirem para compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais. Benefícios esses, como as prerrogativas processuais em favor do Estado (exemplo: maiores prazos de resposta e recurso, duplo grau obrigatório, dilação de prazo para propositura de ação).(BINENBOJM, 2005) A discrepância de benefícios processuais em favor do Estado frente aos particulares estariam em desconformidade com os princípios da isonomia, razoabilidade, proporcionalidade. Afirmando não dever existir a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, nem do estatal sobre o particular, mas uma ponderação entre os interesses no caso concreto. A visão de Daniel Sarmento sobre o tema também se converge na ideia da desconstrução do princípio da supremacia e valorização do exame do caso concreto diante do princípio da proporcionalidade, semelhante às obras de Humberto Ávila e Alexandre Santos, porém faz uma ressalva, afimando que "a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum".(SARMENTO, 2007) Alice Gonzalez Borges também apresenta crítica em sua obra, não focando na problemática do princípio em si, mas em sua aplicação prática, o reconstruindo através de nova noção inserido no contexto constitucional, para que possa ser defendido e aplicado pelo Poder Judiciário. Critica-se a forma como os administradores públicos utilizam o princípio da supremacia para justificar todos seus atos, e assim, desvalorando a supremacia do interesse público.(BORGES, 2007) 3. Poder de Polícia e a restrição de direito individuais O poder de polícia está entre um dos poderes da Administração Pública, o qual pode ser considerado como manifestação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado devido a restrição de direitos individuais sob a justificativa da defesa da necessidade e aspirações da coletividade. Para Gustavo Binenbojm, o uso da justificativa de superioridade do interesse coletivo sobre o interesses individuais dos particulares seria inconsistente, sendo elas restrições administrativas a direitos fundamentais devidamente impostos pelo sistema de princípios e valores constitucionais. Ou seja, ocorre a restrição a direitos fundamentais como forma de garantia e proteção de outros direitos igualmente ou mais relevantes. A Constituição Federal de 1988 estabelece uma série de reservas e restrições a fim de garantir a proteção e promoção de outro direito fundamental ou de interesse da coletividade, estando legitimado no sistema constitucional. O problema se encontra na ausência da completa ponderação dos interesses conflitantes na lei e na Constituição, restando ao administrador público promover a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito a fim de encontrar uma ponderação adequada entre o interesse coletivo e individual. Na visão desse autor, é patente que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se demonstra de forma autoritária, mesmo que seja usado como fundamento e princípio normativo do direito administrativo, apresenta incompatível com o sistema constitucional dos direitos fundamentais. E de acordo com Humberto Ávila, convergem na ideia de que essa supremacia não deve ser qualificada como princípio, e que o postulado da proporcionalidade, também chamado de ponderação, seria o mais racional na defesa de interesses. Para finalizar, Binenbojm reafirma que tal princípio foge a isonomia entre as partes, coferindo tratamento diferenciado ao Poder Público em relação aos particulares, pois para que seja válido, teria que ser instituído por lei, determinando a discriminação em desfavor dos particulares, o grau ou medida (extensão) dessa discriminação, além do grau ou medida do sacrifício imposto à isonomia frente a importância e utilidade para a coletividade. Conclusão A Administração Pública justifica seus atos e poderes, ao exemplo do poder de polícia, através do princípio implícito da supremacia do interesse público sobre o privado, justificando toda o exercício da ação administrativa, existindo a prerrogativa de que o interesse publico se prevaleceria sobre o privado antes mesmo da análise do conflito de interesses. Com o advento do constitucionalismo, através do Estado democrático de direito, passa a possuir a Constituição como referencial para as normas infraconstitucionais, submetendo o Direito Administrativo aos princípios basilares da Constituição. Nesse cenário, busca-se a concreta manifestação dos direitos fundamentais, sejam eles de interesse coletivo ou privado, porém quando privado, enseja diversas discussões da constitucionalidade de tal princípio, além de abrir discussão para diversas críticas quando ao sua constitucionalidade, conceito, classificação, e existência de fato na atualidade. Ocorre assim, a divisão doutrinária quanto a compatibilidade desse princípio com a harmonia entre interesses públicos e privados, sendo sugerido por muitos, o uso da ponderação, ou seja, da aplicação do princípio da proporcionalidade a cada caso concreto. Por fim, resta a crítica quanto a supremacia do interesse público, quando nem explícito no texto constitucional e muito se discute sua legitimidade, o qual abalaria a efetivação dos direitos fundamentais, ou até mesmo sua violação diante de uma prerrogativa que tão pouco analisa o conflito de interesses. Se mostrando mais adequado o uso da ponderação para encontrar a justa harmonia de interesses em cada caso concreto.
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A corrupção e os mecanismos de defesa
Trata o artigo da corrupção e seus mecanismos de defesa.
Direito Administrativo
Introdução Em 1807 no Brasil Colonial era comum e natural a simplicidade, mas com a chegada da corte houve a substituição da simplicidade pela ostentação de riquezas. Os historiadores descobriram que tesouros começaram a sumir já na viagem da corte de Portugal para o Brasil. Os exemplos de corrupção viam do alto escalão, Don João adquiria propriedades e riquezas e em troca oferecia títulos de nobreza de ordem religiosa. Com isso, a corrupção espalhou-se pela sociedade e continua evoluindo de forma rápida e contagiosa. É nesse sentido que Oliveira menciona em sua obra: “Em livro sobre o poder e a ética na sociedade brasileira, Oliveira (1995, p. 95 – 96), tratando da corrupção nos campos da Saúde e da Previdência Social, refere-se à corrupção no Brasil como algo que se difundiu mediante contágio.1” Plácido e Silva (2012, p.183), conceitua corrupção da seguinte forma: “Derivado do latim curruptio, de corrumpere (deitar a perder, estragar, destruir, corromper), etimologicamente possui o sentido de ação de depravar (corrupção de menores), de destruir ou adulterar (corrupção de alimentos).2 Para Bobbio (1998, p. 291), a corrupção:  “Designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura estadual. […] Corrupção significa transação ou troca entre quem corrompe e quem se deixa corromper. Trata-se normalmente de uma promessa de recompensa em troca de um comportamento que favoreça os interesses do corruptor; raramente se ameaça com punição a quem lese os interesses dos corruptores. […]”3 É notório que há muito tempo sofremos deste mal antes mesmo da Democracia existir no Brasil 1 – Democracia como mecanismo de defesa. Segundo professor José Afonso da Silva democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo “Democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história. “  “No âmbito do direito público, a questão da participação vincula-se estritamente à interferência na realização e controle das funções estatais e na própria elaboração do direito positivo (MODESTO, 1995). Nesta direção embora de forma mais especifica, KELSEN definia os direitos políticos como “ as possibilidades abertas ao cidadão de participar do governo, da formação da vontade geral. Livre de metáfora, isso significa que o cidadão pode participar da criação da ordem jurídica “ (KELSEN, 1990:91) “ Como advento das normas jurídica constitucionais surgiu os mecanismos de defesa do patrimônio público. Atualmente temos vários instrumentos e formas para denunciar atos de corrupção (verbal ou formal), bastando procurar o órgão competente, uma vez O Poder Público dispõe de diversas instituições de controle e fiscalização da atividade governamental, como o TCU (Tribunal de Contas da União), os Tribunais de Contas dos Estados e de vários Municípios, e a CGU (Controladoria Geral da União), e principalmente o Ministério Público, sendo que a Constituição Federal de 1988 trouxe mais autonomia para a intervenção do Ministério Público no combate a corrupção. Vianna (1999, p. 83) salienta que "o novo Ministério Público foi concebido como um personagem cujo ativismo institucional deve dedicar-se à defesa das leis e da sociedade, como nos casos dos interesses sociais e individuais indisponíveis, imprimindo à sua ação um caráter ético-pedagógico e induzindo a sociedade, com a liderança conferida pelo seu papel, a um maior envolvimento com a coisa pública."4 O Ministério Público (MP) é uma instituição que envolve inúmeras áreas e atua de forma preventiva ou corretiva, sendo essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem juridica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis por força do artigo 127, CF/88. Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Na hipótese de conhecimento de violação ao patrimônio público: Fraudes em licitação, irrequecimento ilicito os cidadãos devem pedir representação . A Constituição Federal de 1988 trouxe mais autonomia para a intervenção do Ministério Público no combate a corrupção 1.1                – Plano normativo: Fiscalização do controle Estatal. Em síntese as principais leis infraconstitucionais que surgiram para fiscalizar e limitar atuação do Poder Público foram: Lei 8.666/1993 –que regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Determina obrigatoriedade de processo de licitação visando a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública e que todo ente público passa a ter um limite para compras, serviços e obras. Lei Complementar de nº 101, de 4 de maio de 2000 regula limites e deveres relacionados a verba pública. Lei 10.520/2002 – Lei do Pregão É uma ferramenta de controle no que tange as aquisições de maior valor na administração pública. Lei nº 12 846, de 1 de agosto de 2013 que “Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas pela pratica de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências” 1.2– Aspectos relevantes da “ Lei Anticorrupção”. Esta lei é trouxe grandes avanços no tema corrupção e merece maiores considerações, uma vez que responsabiliza de forma objetiva as pessoas jurídicas envolvidas em irregularidades que responderão agora administrativamente e civilmente pela prática de ilícitos contra administração pública em âmbito nacional ou internacional. Em síntese esta lei trouxe a responsabilização no âmbito administrativo e judicial, da seguinte forma: No âmbito administrativo as sanções são de multa e publicação extraordinária da decisão condenatória. No âmbito Judicial há diversas sanções como perdimentos de bens, suspensão ou interdição das atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica, proibição de adquirir empréstimos em instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público. As sanções estabelecidas por esta norma são estabelecidas no artigo 6º: I – Multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e II – Publicação extraordinária da decisão condenatória. O artigo 30 prevê ainda a aplicação conjunta de sanções previstas nas Leis de nº (s) 8.429 /1992, 8.666. /1993 e 12.462 /2011. O escopo das sanções é coagir o agente público a não violar a legislação e atuar de forma ética e a honesta na administração pública. 1.3 – Principio da moralidade É notório que a Lei Anticorrupção aproximou –se do foco do problema, mas tendo em vista que a corrupção no Brasil é sobretudo cultural, vinculado ao nosso passado colonial é necessário que o Poder Público adote outras medidas para que as normas jurídicas de fato tenham eficácia. Isto porque a Administração Pública tem o dever de obedecer aos princípios constitucionais implícitos e explícitos entre eles o princípio da moralidade administrativa, nos termos do artigo 37, caput, da CF/88. “Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)” A propósito, segundo a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro o escopo da inclusão do princípio da moralidade na CF/88 é o próprio combate a corrupção. A inclusão do princípio da moralidade administrativa na Constituição foi um reflexo da preocupação com a ética na Administração Pública e com o combate à corrupção e à impunidade no setor público. Pag 886  DI PIETRO Com efeito, o professor Celso Antônio Bandeira de Melo menciona que a violação dos princípios éticos, implica a própria violação do Direito. “O princípio da moralidade administrativa e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los, implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do seu art. 37 da Constituição. ”5 A Lei nº 9.784/1999 prevê o princípio da moralidade no artigo 2, caput, e no parágrafo único inciso IV, exige “ atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, enfatizando os fundamentos do princípio da moralidade administrativa. Ainda neste aspecto o princípio da moralidade deve ser observado no âmbito do particular, uma vez que a incidência é maior nos negócios públicos. É nesse sentido que leciona mais uma vez a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Além disso, o princípio deve ser observado não apenas pelo administrador, mas também pelo particular que se relaciona com a Administração Pública. São frequentes, em matéria de licitação, os conluios entre licitantes, a caracterizar ofensa a referido princípio. ” 2 – Mecanismos de Defesa Processuais de combate à corrupção: Ação Popular. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 consagra mecanismos de defesa na violação ao princípio da moralidade. Que pode ser combatido por duas ações judiciais: Ação Popular e Ação de Improbidade Administrativa. A ação popular é o meio pelo qual qualquer cidadão pode buscar a anulação de determinado ato que tenha lesado o patrimônio público, entidade de que o Estado participe ou à moralidade administrativa, desde que esteja em pleno gozo dos seus direitos políticos. É, portanto, a garantia constitucional dos cidadãos de controlar a atividade da Administração Pública, como está disposto no artigo 5, inciso LXXXIII, da CF/88 e Lei n° 4.717/1965 (Lei da Ação Popular. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência Cumpre ressaltar que é cabível ação popular para anular atos de corrupção, uma vez que constitui um instituto de democracia participativa e o cidadão que o intenta, o faz em nome próprio, na defesa de direito próprio, que é de sua participação na vida política do Estado, fiscalizando a gestão do patrimônio público e dos interesses difusos, conforme prevê o & único do artigo 1 a Constituição Federal de 1988. Parágrafo Único: Todo Poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Nesse sentido, cumpre ressaltar as considerações sobre ação popular pelo Professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “A Lei Magna, em sua dicçãoz, são requisitos cumulativos da ação popular a invalidade e a lesividade do ato que se pretende atacar. Para qualificar como impugnável por ação popular, o ato atacado deve incidir em conduta passível de ser havida como gravosa ao patrimônio público e só apresentará dita lesividade se implicar prejuízo econômico. Assim, se a conduta impugnada não apresentar lesividade à moralidade administrativa, ficará a margem do âmbito de incidência da ação popular ainda que seja clara sua invalidade. ” 2.1 – Ação de Improbidade Administrativa A ação de improbidade administrativa é promovida pela Lei nº 8.429/1992 trata-se da regulamentação do dispositivo constitucional previsto no artigo 37, & 4, da CF/88 Art. 37. § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível O artigo 11º da Lei 8.429/1992 exemplifica o que constitui o ato de improbidade: “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I – Praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III – Revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV – Negar publicidade aos atos oficiais; V – Frustrar a licitude de concurso público; VI – Deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço. VIII – XVI a XXI – Havendo constatação de improbidade administrativa é cabível ação de improbidade que será proposta diretamente pelo Ministério Público e mediante representação por qualquer cidadão ou Pessoa Jurídica Interessada A improbidade administrativa segundo a doutrina é:  “à corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, Democrático e Republicano) revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo "tráfico de influência" nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos.” Importante destacar as principais diferenças nos dois mecanismos processuais são: Ação Popular: Só pessoa física cidadão em pleno gozo dos seus direitos políticos e a sentença promove a anulação do ato lesivo à moralidade, assim como a condenação do réu de perdas e danos. Ação de Improbidade Administrativa: Só pode ser promovida pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada e a sentença tem os seguintes efeitos: Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente; Ressarcimento integral do dano Perda da função pública Suspensão dos direitos políticos Multa Civil Proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. Cumpre ressaltar que é também possível à propositura simultânea de ambas ações com apenas uma conduta lesiva ao patrimônio público. 2.2-  A hermenêutica das normas. Em que pese existir mecanismos de defesa do patrimônio público, cumpre esclarecer que o legislador não definiu de forma clara o que venha a ser “improbidade administrativa”, tornando o dispositivo legal sujeito às mais variadas interpretações. Nesse sentido, se todos os argumentos expostos não forem suficientes para justificar a validade da regra prevista, resta atentar para as bases do direito administrativo e para a correta compreensão do sistema constitucional vigente. Isto porque Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “Uma das principais funções das normas jurídicas de direito administrativo é evitar a corrupção. Sendo assim, é possível afirmar que: o direito administrativo é um ramo dogmático elegido para impedir a corrupção de quem exerce função pública. ” Como os 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, definem de forma genérica os atos de improbidade administrativa, em uma eventual dúvida de interpretação o interprete deve escolher a menos favorável a corrupção. Com o mesmo entendimento Martins define a interpretação das normas de direito público: “A correta compreensão das normas de direito público exige a assunção de alguns preconceitos, dentre eles a percepção de que o direito administrativo foi construído para servir de arma e de escudo do cidadão e, por conseguinte, para evitar a corrupção dos agentes públicos. Trata-se segundo a doutrina de Friedrich Muller, de um preconceito necessário à correta compreensão das normas de direito público. Desse preconceito técnico, dessa pré-compreensão jurídica extrai-se uma regra fundamental de hermenêutica das normas de direito público. Diante de duas interpretações possíveis, o interprete deve escolher a menos favorável a corrupção. ” No mesmo sentido, preconiza Juarez Freitas: “A concretização hermenêutica do princípio constitucional da probidade administrativa precisa superar, ao menos em parte e observados os limites do sistema, as apontas as falhas normativas, dado que a Lei 8.429/1992 mostra-se passível, apesar dos pesares, dos requeridos reparos mediante uma temperada interpretação saneadora. Faz –se, pois, imperativo examinar a referida lei com a necessária prudência, a qual torna imprescindíveis em casos menos graves, a aplicação tão só parcial das sanções, designadamente para as espécies de improbidade dos arts. 10 e 11, tendo claro que a melhor exegese – a mais eficaz e equitativa – do disposto no art. 12, é a que determina ao juiz considera a extensão do dano causado e o proveito patrimonial obtido pelo agente, inclusive na eleição das penalidades, não apenas na dosimetria. ” Há, contudo, quem discorde dessa afirmação Marcelo Harger: “Os moldes traçados pela Constituição para a improbidade administrativa impedem que com a modalidade culposas sejam punidas pela Lei de improbidade. ” Em relação a distinção de moralidade administrativa e probidade administrativa. A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro enfatiza que também não é uma tarefa muito fácil: PAGINA 885 “ A rigor pode-se dizer que são expressões que significam a mesma coisa, tendo em vista que ambas se relacionam com a ideia de honestidade na Administração Pública. Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos, de legalidade, de boa-fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna da Administração Pública. Conclusão A corrupção no Brasil é cultural vinculado ao nosso passado colonial. O Ministério Público atua diretamente ou mediante representação tanto de forma preventiva ou corretiva na defesa do interesse público. A maioria dos seus membros são imunes à contaminação pela cultura da corrupção, uma vez são selecionados pelo concurso público. Além disso, a ação popular proposta diretamente pelo cidadão e ação de improbidade administrativa mediante representação no Ministério Público são mecanismos processuais que visam proteger o patrimônio público de forma preventiva e repressiva. Podemos afirmar que a ordem jurídica brasileira não é carente de instrumentos normativos para operacionalização da participação popular, todavia, a participação popular continua muito escassa tanto na via judicial como na via administrativa Contudo, não adianta nada a existência de normas jurídicas e mecanismos de defesa do patrimônio público se a não houver a participação popular no controle e fiscalização da verba pública. A democracia só irá de fato mitigar a corrupção se houver uma cidadania plena. “Indubitavelmente, a eticidade somente torna-se à um bem universalizado, gerando o afastamento do improbus administrador e de seus comparsas, se vivificada – sem ingenuidade – a noção de cidadania plena e adulta, antes pela formação contínua do que repressão desproporcional (…). Apenas desse modo a Administração Pública, nas suas múltiplas dimensões, reunirá as forças necessárias para atuar com previsibilidade e segurança, numa concretização honesta, revolucionariamente transparente, eficaz e efetiva dos princípios constitucionais, relidos e vivenciados numa dimensão moral superior. ” Sendo assim, só haverá de fato combate a corrupção, quando houver uma mudança na cultura da nossa sociedade, quando os cidadãos brasileiros exercerem a cidadania plena defendendo a ética,  a reforma política, fiscalizando os agentes políticos por meio de acompanhamento da vida pregressa dos candidatos, denunciando irregularidades, abusos de poderes, desvios de verbas públicas e votando de forma consciente, ou seja, quando houver a conscientização dos brasileiros que exercer cidadania não é só um direito, mas também um dever de todos.
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O gargalo do judiciário e os tribunais administrativos fiscais
Este artigo visa apresentar um panorama a respeito do assoberbado número de ações fiscais que estrangulam a eficiência do Judiciário em contraponto a contribuição que os Tribunais Administrativos Fiscais podem dar para minorar essa situação. Para tanto, porém, é preciso desmistificar o dogma da jurisdição una, dotando as instâncias administrativas de meios capazes de absorver o maior número de litígios fiscais, deixando para o Judiciário de Segundo Grau apenas aquelas causas que requeiram a discussão e definição de teses jurídicas a serem aplicadas aos processos em curso e as futuras demandas entre a Administração Fiscal e o contribuinte.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O Judiciário Brasileiro há muito tempo é consciente da sua ineficiência (para não dizer mais) ante o número sempre crescente de demandas que lhe são apresentadas em vista, entre outras causas, de sua prerrogativa (dogma) de ditar a última palavra no que diz respeito à lei e ao direito. Concentrando excessivamente competências que, o mais das vezes, lhe dificultam (quando não o impedem) de cumprir a bom termo e, sobretudo, a contento sua função precípua – distribuir justiça à população brasileira. Grande parte desse drama decorre do assoberbamento de trabalho causado pela enxurrada de ações aforadas pelo seu maior cliente – o Estado (rectius, Fazenda Pública). Que acabam congestionando a já insuficiente (e o mais das vezes precária) rede de serviços judiciais instalados em nosso país. A análise radiográfica da problemática, feita pelos mais variados órgãos e entidades públicas e privadas, vista de diferentes ângulos, converge para uma mesma constatação. Parte considerável dos serviços judiciais/jurisdicionais brasileiros detém-se em administrar as causas fiscais dos diferentes entes da federação[1], com inevitável comprometimento do atendimento, que deveria priorizar a massa da população e fomentar a economia, e não ser mais uma variável a compor a equação do denominado “Custo Brasil”. 1 VAMOS AOS NÚMEROS! “E os dados são aterradores. O número de execuções fiscais equivale a mais de 50% dos processos judiciais em curso no âmbito do Poder Judiciário. No caso da Justiça Federal, esta proporção é de 36,8%, e retrata crescimento vegetativo equivalente ao da Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Consoante o relatório ‘Justiça em Números’, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2005, a taxa média de encerramento de controvérsias em relação às novas execuções fiscais ajuizadas é inferior a 50% e aponta um crescimento de 15% do estoque de ações em tramitação na 1ª instância da Justiça Federal. O valor final aponta para uma taxa de congestionamento médio de 80% nos julgamentos em 1ª instância”.[2] “Dos 86,6 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira no ano de 2009, 26,9 milhões eram processos de execução fiscal, constituindo aproximadamente um terço do total. Vale destacar que 89% desses processos de execução fiscal (ou seja, 23,9 milhões) tramitavam apenas na Justiça Estadual, colaborando para congestionar esse ramo da justiça. É importante mencionar que, dos 50,5 milhões de processos pendentes da Justiça Estadual, aproximadamente 20,7 milhões (o equivalente a 41%) eram execuções fiscais”.[3] Luiz Fux indaga-se sobre “como vencer o volume de ações e recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito” [4]. Diante disso, mais uma vez, o governo se mobiliza e apresenta anteprojeto de Lei, transformado no PL 5.080/2009, que dispõe sobre a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, tendão de Aquiles da gigantesca máquina judiciária. Com o intuito de desafogar o Judiciário, o referido projeto de lei dota a Administração Fazendária de mecanismos que, em tese, racionalizarão a cobrança fiscal, encaminhando-se ao Judiciário apenas as execuções fiscais que possuam maior margem de êxito (solvabilidade). Apesar de representar mais um passo na jornada secular do Estado em dar racionalidade, presteza e segurança ao sistema de justiça em nosso país, olvidou-se, no entanto, da também centenária discussão do papel e relevante contribuição que pode ser (e já é) dada pelos Tribunais ou Conselhos de Contribuintes nessa quase que insolucionável questão. Com o fito de propor alternativas, não apenas quanto ao contributo a ser dado pelo fortalecimento da instância administrativa fiscal, seguem-se ponderações e colocações que, no mínimo, devem ser levadas em consideração na formulação de soluções político-legislativas ante o gigantesco problema vivido pelo Estado brasileiro no desempenho de suas funções administrativo-jurisdicional. 2 Primórdios do Contencioso Administrativo brasileiro e o Princípio da Jurisdição Una Quanto aos também denominados Tribunais Administrativos Fiscais, o Brasil não desfruta dos mesmos ganhos de conformação, face ao déficit do Judiciário, como visto em outros países, sobretudo pelo enfraquecimento, e subsequente, esvaziamento historicamente dispensado a eles no que diz respeito à eficácia de suas decisões, precipuamente pela importação enviesada do princípio constitucional norte-americano da jurisdição una, feita pelo constituinte da então nascente República dos Estados Unidos do Brasil. O Contencioso Administrativo, entendido em sentido formal, onde os “tribunais administrativos são órgãos jurisdicionais, por meio dos quais o Poder Executivo impõe à administração o respeito ao direito”[5] existiu no regime imperial brasileiro[6] [7]. Proclamada a república, a CF/1891 proclamou a unicidade da jurisdição, declarando expressamente, no art. 60, que competia aos juízes federais o julgamento das causas fazendárias, atribuindo-lhes a competência para a solução das lides fiscais que eram julgadas pelo extinto Conselho de Estado e eliminando o contencioso administrativo no Brasil[8]. O processo administrativo foi extremamente limitado, subsistindo pouco mais do que o julgamento de processos administrativos disciplinares (PAD’s) e recursos hierárquicos, sem que a decisão tivesse a força da coisa julgada[9]. Apesar desta enorme limitação da Administração, o mérito da decisão administrativa era imune à apreciação judicial nos termos do disposto no art. 13, § 9º, “a”, da Lei 221 de 1894[10]. No entanto, apenas com o advento da Constituição de 1946 consagrou-se o princípio de que “A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judicial qualquer lesão de direito individual” (art. 141, § 4º), redação assemelhada à encontrada na Constituição de Weimar que dizia que “ninguém poderá ser subtraído do seu juízo legal”[11]. O referido parágrafo visaria impedir que uma disposição legislativa ou regulamentar excluísse da competência do judiciário interesses ou pessoas, sem estabelecer qualquer outro processo para o mesmo caso ou indivíduo. A garantia visaria, igualmente, impedir que uma norma ordinária tornasse insuscetível de revisão, pelo Poder Judiciário, um ato de Governo ou da Administração, enquanto dissesse respeito ou se contrapusesse a direito individual. Carlos Maximiliano refere que o princípio constante do § 4º do art. 141 da CF brasileira de 1946 seria uma expressão do Estado de Direito, contrapondo-se ao Estado ditatorial de 1937 a 1946 que teria retirado da esfera da apreciação judicial uma série de atos. Tal princípio foi mantido na Constituição de 1967, com as alterações dadas pela Emenda nº 1, de 1969, até o advento da Emenda Constitucional nº 7, de 1977, que alterou a redação do § 4º do art. 153, que passou a admitir a mitigação do princípio da inafastabilidade do judiciário nos seguintes termos: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.”  (negritamos) Esclarece o Desembargador Rubens Ferraz de Oliveira Lima[12], em artigo para o Jornal O Estado de São Paulo, edição de 24 de junho de 1984, que “Vemos, pois, que sempre haverá a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário, mesmo na hipótese de criação de contenciosos administrativos previstos nos atuais arts. 111 e 203 da Constituição” [1967, com a Emenda 1/69]. Contudo, a disposição em comento foi derruída ante a redação do inciso XXXV do art. 5º da Constituição garantista de 1988[13], característica marcante nos diplomas constitucionais surgidos após períodos de excessiva concentração de poder no Executivo (Estado Totalitário). Assim, pode-se argumentar que o referido princípio da inafastabilidade do controle judicial surgiu do receio do ressurgimento de regimes de exceção. Sendo redigido em uma fórmula excessivamente ampla, muito mais abrangente do que a vigente nos Estados Unidos. Este princípio, embora não expresso nas Constituições de 1891 e de 1934, era “intrínseco à sistemática constitucional”[14] tendo sido enunciado em termos abrangentes buscando expressar não o controle judicial mas o controle do poder. Ocorre que, há leitura constitucional, conforme veremos a seguir, que reconhece a possibilidade de mitigação da propensão exclusivista dada ao texto constitucional, permitindo depreender, via Legislador (infra) constitucional, a possibilidade de realinhamento dos papéis institucionais desenhados pelo Constituinte originário (redundância consagrada) que devem considerar os atuais rumos dos movimentos democráticos. Nessa esteira, mostra-se oportuno trazer à baila a compreensão externada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 2160-MC, em que, por maioria, deferiram parcialmente a cautelar para dar interpretação conforme a Constituição Federal relativamente ao art. 625-D da CLT, introduzido pelo art. 1º da Lei nº 9.958, de 12 de janeiro de 2000, para entender que é facultativa, não obrigatória, a submissão das demandas trabalhistas as Comissões de Conciliação Prévia. Restando a ementa assim redigida: “JUDICIÁRIO – ACESSO – FASE ADMINISTRATIVA – CRIAÇÃO POR LEI ORDINÁRIA – IMPROPRIEDADE. Ao contrário da Constituição Federal de 1967, a atual esgota as situações concretas que condicionam o ingresso em juízo à fase administrativa, não estando alcançados os conflitos subjetivos de interesse. Suspensão cautelar de preceito legal em sentido diverso.” (ADI 2160 MC, Relator(a):  Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13/05/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-01 PP-00129 RIOBTP v. 21, n. 250, 2010, p. 18-47) O Relator para o voto, Ministro Marco Aurélio, posicionou-se no sentido de que a eliminação na Constituição atual da previsão, existente na Carta decaída [1967], da possibilidade de exigência da exaustão da instância administrativa, significa sua limitação às hipóteses que o legislador constituinte de 1988 enumerou (§ 1º do art. 217 e § 2º do art. 114 – certo que a alteração desta última norma pela EC 45/04 não prejudica o raciocínio desenvolvido). Expõe sua compreensão nestes termos: “A Carta dita decaída pelo Ministro Sepúlveda Pertence remetia ao legislador ordinário a fixação de fases prévias. A atual esgotou a matéria e disciplinou as situações reveladoras de necessidade de esgotamento no campo administrativo.” Seu raciocínio foi seguido de perto pelo Ministro Ayres Britto, que assim se colocou: “Mas parece que o Ministro Marco Aurélio, quando do seu voto inicial, também fez uma observação que me parece absolutamente procedente. É que, quando a Constituição quer excluir da apreciação do Poder Judiciário uma demanda, o faz expressamente, a propósito da Justiça desportiva. No que o Ministro Marco Aurélio replicou: “Exato. E inclusive fiz uma interpretação sistemática, considerada a Carta anterior. O artigo 143 (sic), § 4º, abria margem ao legislador ordinário à introdução de outras situações concretas em que o ingresso em juízo dependeria de negociação prévia, que deve ser estimulada, não tenho a menor dúvida.” E, por fim, o Ministro Britto pontuou: “Quer dizer, sentando praça desse princípio regente do ingresso em juízo, porque o fato é que a Constituição diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário. É um comando constitucional raríssimo, porque implica bloqueio à função legislativa, ou seja, a Constituição proíbe o exercício da função legislativa, que não pode impedir o acesso das partes ao Poder Judiciário.” Já o Ministro Cezar Peluso, voto vencido, declinou compreensão afinada com a realidade vivida pelo Judiciário, bem como as experiências bem sucedidas em outros países na resolução de conflitos, in verbis: “Acho que, com o devido respeito, a postura da Corte em restringir a possibilidade de tentativa obrigatória de conciliação está na contramão da história, porque em vários outros países, hoje, se consagra a obrigatoriedade do recurso às chamadas vias alternativas de resolução de conflitos, até porque o Poder Judiciário – e não é coisa restrita à experiência brasileira, mas fenômeno mais ou menos universal – não tem dado conta suficiente da carga de processos e com isso tem permitido a subsistência de litígios que são absolutamente contrários à paz social.” Em vista da manutenção da jurisdição una, sem quase nenhum temperamento, convive-se com uma prestação jurisdicional pouco racional no Judiciário brasileiro, sobretudo no tocante as causa fiscais, que perpassam novamente, a despeito de qualquer apreciação administrativa anterior, o mesmo itinerário fático-jurídico-probatório para se chegar, o mais das vezes, as mesmas conclusões obtidas ou dadas pelas instâncias administrativas. 3 Proposta: Supressão da 1ª instância judicial em processos julgados pela 2ª instância administrativa fiscal com poderes judicantes O IPEA constatou, em estudo denominado “Custo unitário do processo de execução fiscal da União”, ano 2011, que “Somente 4,4% dos executados apresentam objeção de preexecutividade, a qual é julgada favoravelmente ao devedor em 0,3% dos casos. Já os 6,5% de executados que apresentam embargos obtêm ganho de causa em 1,3% dos casos. Logo, a taxa de sucesso das objeções de preexecutivadade é de 7,4%, enquanto a dos embargos é de 20,2%”[15]. O referido estudo considerou, afinal, que “Os mecanismos disponíveis para defesa são pouco acionados pelo devedor. Em regra, este prefere efetuar o pagamento, ou aguardar a prescrição do crédito. Logo, a simplificação dos procedimentos e o aumento da celeridade do processo de execução fiscal não comprometeriam as garantias de defesa do executado, mas resultariam em melhoria na recuperação dos valores devidos”[16]. Logo, revela-se contraproducente, com todas as suas consequências, a revisão judicial por inteiro; e, sobretudo, sem critérios, das causas fiscais que não logram, em quase sua totalidade, como visto, o êxito/resultados que obtiveram/obteriam junto aos órgãos da Administração Pública, mormente os Tribunais Administrativos Fiscais. Nesse cenário, deve-se reconhecer o alto nível de resolutividade alcançado pelos Tribunais Administrativos Tributários no exercício da jurisdição; devendo-se, por conseguinte, evitar o moroso e antieconômico retrabalho assumido pelas instâncias ordinárias do judiciário no revolvimento de todo o contexto fático-probatório já, quase sempre, exaustivamente enfrentado pelas Cortes Administrativas. Essa questão seria facilmente contornada caso a jurisdição administrativa substituísse o papel das instâncias judiciais de piso (rectius: Juízos de Primeiro grau), onde se avulta a análise do fato jurídico. Deixando-se para os tribunais a revisão, e a palavra final, no tocante às teses jurídicas. Essa função seria cometida, quanto aos Estados, Municípios e Distrito Federal, respectivamente, aos Tribunais de Justiça e do Distrito Federal. No que diz respeito à União, essa responsabilidade caberia ao Superior Tribunal de Justiça. A presente proposta pode, à primeira vista, como é de se esperar, sofrer resistência de parte considerável do Judiciário, mas como nos lembra Pontes de Miranda, ao comentar a Constituição de 1967/69, o Brasil já caminhou outrora nesse sentido quando, v. g., inseriu a então Justiça Administrativa Trabalhista no Judiciário: “O Estado contemporâneo, quando começou a ter de dar soluções a problemas que saíam do âmbito da mantença da ordem e da defesa externa, teve de procurar informar-se e resolver controvérsias… Para isto, dotou os seus quadros de funcionários públicos com pessoas especializadas… A princípio, faltava ao Estado o pessoal especializado, e a atribuição da competência conciliatória arbitral, ou interventiva, ao Poder Judiciário, encontrava dois óbices: a) a inespecialização dos funcionários públicos, que eram os juízes, mais afeitos à aplicação de velhas ou novas regras jurídicas sistematizadas; b) a necessidade de decisões rápidas… Assim, por exemplo, exsurgiu a Justiça do Trabalho… A inserção da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário afastou grande parte das possíveis invocações do então art. 141, § 4º; porque a Justiça do Trabalho aprecia “judicialmente”, no sentido do art. 153, § 4º.”[17] Talvez seja o caso de criarmos uma justiça especializada em matéria fiscal[18], como existe em vários países, dos quais sobressai a Alemanha, transformando constitucionalmente as Delegacias de Julgamento e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em uma Justiça Federal Tributária, a exemplo do que ocorreu em 1946 com a Justiça do Trabalho. A integração com a Receita facilitaria o acompanhamento da matéria de fundo, com a elaboração de cálculos, etc. Os dados deste artigo parecem apontar no sentido de que o Poder Judiciário tradicional não está aparelhado para lidar com as demandas tributárias. 4 CONCLUSÃO A eliminação da duplicidade da discussão (administrativa e judicial) das questões fiscais e a atribuição do julgamento a um órgão célere, dotado de critérios equitativos e uniformes e aparelhado para a análise e a compreensão das questões tributárias aumentaria a confiança do cidadão na tributação e a eficiência da cobrança, permitindo a redução dos impactos tributários.[19] Maria de Fátima Pessoa de Mello Cartaxo[20], citando Rubens Gomes de Souza, registrou que: “O ordenamento do processo fiscal entre nós, tal qual hoje se encontra, com seu desenvolvimento através de duas jurisdições (administrativa e judicial), constitui, no entender do eminente tributarista, Dr. Rubens Gomes de Souza, ‘…uma simples duplicação de atos e medidas processuais, substancialmente idênticas e apenas formalmente diversas – e não um ordenamento sistemático de jurisdição, cuja diversidade de funções seja regulada em razão de uma delimitação substantiva de poderes e atribuições’.”
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Anotações ao instituto da desapropriação urbanística: ponderações às limitações urbanísticas à propriedade
Em sede de comentários introdutórios, cuida colocar em realce que a desapropriação, enquanto instituto constituinte da rubrica limitações urbanísticas à propriedade, afeta, de maneira direta, o aspecto de perpetuidade que caracteriza a propriedade particular. Com efeito, dada à proeminência do instituto em debate, é possível salientar que os demais aspectos caracterizadores da propriedade, quais sejam: absoluto e exclusivo, são afetados pelos feixes que dele irradiam. A doutrina dá a denominação de desapropriação urbanística ou desapropriação para fins urbanísticos ao instituto de desapropriação quando utilizado como instrumento de execução da atividade urbanística do Poder Público. Sobreleva evidenciar que o instituto em comento sofreu maciça alteração, sendo utilizado como instituto jurídico da política urbana pela Lei N° 10.257, de 10 de Julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Em essência, é concebido como um instrumento pelo qual o Poder Público determina a transferência da propriedade particular (ou pública de entidades menores), para o seu patrimônio ou de seus delegados, usando como âncora a necessidade ou a utilidade pública ou mesmo a satisfação do interesse social, mediante prévio e justo adimplemento da competente verba indenizatória em dinheiro, ressalvada a previsão constitucional de pagamento em títulos da dívida pública.
Direito Administrativo
1 Limitações Urbanísticas à Propriedade: Notas Introdutórias Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. Com espeque em tais premissas, cuida hastear, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados. Ainda neste substrato de exposição, com o necessário destaque, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos axiomas mencionados, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, tal como os institutos neles insculpidos. Nesta senda, ao se estruturar um exame concernente às limitações à propriedade, em especial as contidas na Lei N°. 10.257, de 10 de Julho de 2001[4], que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, é observável que essas se interferem com os aspectos e caracteres do direito de propriedade privada. Imperioso se faz rememorar que a propriedade, enquanto direito subjetivo civil, está revestido de três faculdades basilares, quais sejam: a) faculdade de uso; b) faculdade de gozo; e, c) faculdade de disposição, conforme estabelece, em claros alaridos o artigo 1.228 do Código Civil de 2002[5]. “Pela primeira se reconhece ao proprietário a possibilidade de usar o bem para a satisfação de suas próprias necessidades; pela segunda ele pode auferir os frutos que a coisa produzir”[6]. A terceira faculdade básica está assentada no poder de dispor do bem, consistente em realizar atos de domínio de distintas índoles, como, por exemplo, venda e doação. Ao lado disso, o direito à propriedade consubstancia três caracteres, a saber: é absoluto, exclusivo e perpétuo. É considerado direito absoluto, uma vez que assegura ao proprietário a liberdade de dispor das coisas, adquiridas de maneira legítima, do modo que aprouver àquele. Igualmente, é direito exclusivo, porquanto respeito ao proprietário e a nenhum outro, cabendo, a princípio, tão somente a ele. Por derradeiro, é dito direito perpétuo, vez que não desaparece com o fim da vida do proprietário, passando, por sucessão hereditária, ao sucessor do proprietário, significando que tem duração ilimitada, não se perdendo pelo não-uso. As limitações ao direito de propriedade, enquanto conjunto de institutos jurídicos que afetam, de maneira direta, qualquer dos aspectos característicos desse direito, encontram, in casu, substrato nas normas e princípios que orientam o Direito Municipal e Urbanístico, porquanto servem de instrumento de atuação e materialização urbanística. As limitações urbanísticas, assim como as administrativas, devem embasar-se no artigo 170, inciso III, da Constituição Federal de 1988[7], que condiciona a utilização da propriedade a sua função social. Cuida-se de limitação ao uso da propriedade e não da propriedade em sua substância. São limitações ao exercício de direitos individuais e não aos direitos em si mesmos. Nesta esteira, ainda, são limitações dotadas de essência administrativa, voltadas à realização da função urbanística do Poder Público. Desta feita, as limitações à propriedade privada constituem, portanto, gênero do qual são espécies as restrições, as servidões e as desapropriações. É observável que as restrições limitam o caráter absoluto da propriedade; as servidões, o caractere exclusivo; e, a desapropriação, o aspecto perpétuo. 2 A Desapropriação e a Atividade Urbanística Em sede de comentários introdutórios, cuida colocar em realce que a desapropriação, enquanto instituto constituinte da rubrica limitações urbanísticas à propriedade, afeta, de maneira direta, o aspecto de perpetuidade que caracteriza a propriedade particular. Com efeito, dada à proeminência do instituto em debate, é possível salientar que os demais aspectos caracterizadores da propriedade, quais sejam: absoluto e exclusivo, são afetados pelos feixes que dele irradiam. “A doutrina dá a denominação de desapropriação urbanística ou desapropriação para fins urbanísticos ao instituto de desapropriação quando utilizado como instrumento de execução da atividade urbanística do Poder Público”[8], como evidencia Silva. Sobreleva evidenciar que o instituto em comento sofreu maciça alteração, sendo utilizado como instituto jurídico da política urbana pela Lei N° 10.257, de 10 de Julho de 2001[9], que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Nesta toada, ainda, é possível realçar que a acepção conceitual de desapropriação vem sofrendo, de maneira paulatina, evolução, notadamente em razão das novas finalidades que o instituto vem albergando. “Em essência, é concebido como um instrumento pelo qual o Poder Público determina a transferência da propriedade particular (ou pública de entidades menores), para o seu patrimônio ou de seus delegados”[10], usando como âncora a necessidade ou a utilidade pública ou mesmo a satisfação do interesse social, mediante prévio e justo adimplemento da competente verba indenizatória em dinheiro, ressalvada a previsão constitucional de pagamento em títulos da dívida pública. Com o escopo de fortalecer o acimado, cuida destacar a visão apresentada por Carvalho Filho, ao esmiuçar o instituto em destaque, em especial quando sublinha que “desapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização”[11]. Em mesmo sentido, o festejado Hely Lopes Meirelles anota que “a desapropriação é o moderno e eficaz instrumento de que se vale o Estado para remover obstáculos à execução de obras e serviços públicos; para propiciar a implantação de planos urbanos”[12], bem como para preservar o meio ambiente contra devastações e poluições e para realizar a justiça social, por meio da distribuição de bens inadequadamente utilizados pela iniciativa privada. Desta forma, é verificável que a desapropriação é a forma conciliadora entre a garantia da propriedade individual e a função social dessa mesma propriedade, que reclama a utilização compatível com o bem-estar da coletividade. Superadas estas ponderações, insta destacar que a desapropriação urbanística distancia-se do conceito geral formulado por publicista, para caracterizar-se como um instrumento de realização da política do solo urbano, em função da execução do planejamento urbanístico. Nesse aspecto, mister se faz reconhecer que a desapropriação se consolida enquanto instrumento de execução da atividade urbanística do Poder Público, que tem no planejamento seu axioma mais rotundo. “Ora, esse planejamento, ao estabelecer as bases da ordenação da realidade urbana, importa conformar e configurar a propriedade imóvel e o direito de construir, atuando, no plano prático, o princípio constitucional da função social da propriedade”[13]. Além disso, é fato que nem sempre os proprietários estarão dispostos a aceitar as ordenações provenientes dos planos urbanísticos para as suas propriedades, por tal motivo compete a Municipalidade fazer com que essas propriedades sejam direcionadas para a utilização neles previstas. Destarte, a desapropriação urbanística não materializa propriamente um instrumento de transferência de imóveis de um proprietário privado a outro, público ou não, mas sim um instrumento destinado a obter específica utilização positiva desses bens, na forma pré-estatuídas pelas normas norteadoras do plano urbanístico. Com efeito, essa função decorre do atual sistema da disciplina jurídica dos bens, que não se estrutura apenas por limitações, mas também por um conjunto de disposições normativas orientadas à sua utilização vinculada, porquanto não seria possível impor ao proprietário a realizar, em seus imóveis, um uso positivo que não seja de sua eleição, tal como não se pode estabelecer ao empresário que desenvolva atividade oposta à sua vontade. É verificável uma oposição, aparente, de interesses, consistente no conflito entre o interesse coletivo à ordenação coletiva do espaço físico, para melhor habilitar, trabalhar, recrear e circular, e os interesses do proprietário, manifestados na pretensão de que sejam aproveitados os lotes, a fim de neles edificar da maneira máxima possível. O conflito de interesses urbanísticos, constituído por normas de direito urbanístico e materializado nos planos da mesma natureza, será solucionado por meio da desapropriação daquelas propriedades envolvidas. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já colocou em evidência que “o pressuposto para a imissão prévia do ente público no imóvel expropriando é a consistência e relevância da alegação de urgência, verdadeira e única justificativa para, em nome do interesse público, permitir que o ente expropriante, antes do pagamento do preço justo e integral do bem expropriado, venha a apossar-se do bem do particular”[14]. Nesta senda de exposição, é observável que, em ocorrendo conflito com o interesse do particular, o interesse público usufruirá de maior relevância, no que concerne à destinação da propriedade, a fim de assegurar a materialização dos preceitos norteadores dos planos urbanísticos. “Os procedimentos para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, encontram assento constitucional e infraconstitucional”[15].  Doutro modo, a desapropriação tradicional detém caráter casuístico e individualizado, eis que alcança bens isolados para promover a transferência, em cada situação concreta, de maneira definitiva, para o Poder expropriante ou os seus delegados. De modo distinto, a desapropriação urbanística é compreensiva e generalizável, compreendendo áreas e setores completos, retirando os imóveis, aí abrangidos, do domínio privado, com o escopo de realizar a afetação ao patrimônio público, para, posteriormente, serem devolvidos ao setor privado, uma vez urbanificados ou reurbanizados, em atenção ao denominado dever de reprivatização. Meirelles pontua que a desapropriação para urbanização ou reurbanização tem seu axioma estruturado na premissa de “implantação de novos núcleos urbanos, ou para fins de zoneamento ou renovação de bairro envelhecidos e obsoletos, que estejam a exigir remanejamento de áreas livres, remoção de indústrias, modificação do traçado viário e demais obras públicas ou edificações”[16]. Neste sentido, com o escopo de robustecer as ponderações tecidas, é possível frisar que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já firmou entendimento que: “Ementa: Expropriatória – Municipalidade de São Paulo – Área destinada à "Adequação do Sistema Viário do Entorno do Viaduto Itaim" – Ação procedente – Decisão mantida – Recursos não providos, com observação.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Quarta Câmara de Direito Público/ Apelação Cível N° 240.133.5/6/ Relator: Desembargador Aldemar Silva/ Julgado em 28.02.2002). Ao lado disso, é observável que se busca conferir funcionalidade compatível com a nova destinação dada ao complexo da cidade. Em tal situação, a desapropriação tem como utilidade pública a própria urbanização ou reurbanização e, uma vez realiza na conformidade dos planos urbanísticos correspondentes, comporta a alienação das áreas e edificações que sejam excedentes das necessidades públicas e particulares, sendo concedida preferência aos desapropriados. Assim, o Poder Público confere as propriedades desapropriadas, para fins urbanísticos, novos usos, promovendo, comumente, edificações e instalações urbanísticas que propiciem a materialização dos preceitos elencados nos planos diretores urbanos. 3 Pressupostos Autorizadores da Desapropriação Urbanística A expropriação para fins urbanísticos, em uma primeira plana, ostenta como fundamento maciço, o requisito da utilidade pública e não do interesse social, como equivocadamente, pode transparecer. Tal fato se dá, com efeito, uma vez que a desapropriação urbanística não visa solucionar os denominados problemas sociais, ou seja, aqueles diretamente relacionados às classes pobres, aos trabalhadores e à massa do povo, objetivando a atenuação das desigualdades sociais. “A utilidade pública, que a fundamenta, acha-se precisamente na ordenação dos espaços habitáveis, na sistematização do solo ou, mesmo, nas operações de edificação julgadas desejáveis no interesse geral”[17], conforme determinações de planos urbanísticos. Ademais, ao se considerar que a atividade urbanística é uma função pertencente ao Poder Público, é plenamente denotável que a desapropriação urbanística cumpre uma tarefa de utilidade pública. Neste sentido, inclusive, remansosa é a jurisprudência ventilada pelos Tribunais Pátrios, conforme se inferem dos arestos colacionados, oportunamente: “Ementa: Agravo de instrumento. Posse. Ação de manutenção de posse. Liminar deferida. Imóvel declarado de utilidade pública. Jockey Clube de Uruguaiana. Local de interesse da coletividade. Decisão agravada reformada. Em que pese tenha a ação de desapropriação sido ajuizada após a de manutenção de posse e a concreta tomada da área, o agravante demonstra o verdadeiro interesse do Município em efetivar a expropriação, visando a defesa dos interesses da coletividade, para devolver à população da cidade e da região da fronteira um tradicional local de cultura e entretenimento. Decisão agravada reformada para indeferir o pedido liminar de reintegração de posse à agravada. Agravo provido. Unânime. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Sétima Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº 70045701521/ Relatora: Desembargadora Liege Puricelli Pires/ Julgado em 12.04.2012). Ementa: Desapropriação – Utilidade Pública – Descaracterização – Constrição da Propriedade Privada – Impossibilidade. A desapropriação é procedimento expropriatório que deve ser adotado apenas em casos excepcionais, quando o interesse público exigir tal providência, justificando a intervenção no direito de propriedade, constitucionalmente garantido aos cidadãos. Não obstante o caráter discricionário do ato administrativo consubstanciado no decreto de utilidade pública, seu fim deve estar vinculado ao interesse público. Ausente tal requisito, impõe-se o controle do ato pelo Poder Judiciário, tendo em vista que a desapropriação somente se legitima quando realizada em consonância com os preceitos legais e constitucionais que a justificam. Restando faticamente demonstrada a ausência de interesse e prioridade do Município na adoção de medidas para se imitir na posse da área pretendida na demanda desapropriatória, efetivando o objetivo inicialmente visado pelo administrador, descaracteriza-se a utilidade pública declarada no decreto, não sendo razoável permitir a constrição da propriedade do particular em vão.” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Quarta Câmara Cível/ Apelação Cível N° 1.0672.98.008062-2/001/ Relator: Desembargador Dárcio Lopardi Mendes/ Julgado em 03.08.2006/ Publicado em 05.09.2006). A partir das ponderações tecidas até o momento, é denotável que a desapropriação urbanística tem como pressuposto a aprovação de um plano diretor urbanístico ou, ainda, projeto de urbanificação, quer para transformar áreas urbanizadas e já edificadas, promovendo suas renovações, dando-lhes nova destinação; quer preparando terrenos rústicos para convertê-los em solo urbano destinado à edificação para os múltiplos usos previstos nas leis de zoneamento. Ainda que a expropriação tenha por objeto imóveis isolados, prevalece o entendimento que a natureza urbanística se, com isso, está cumprindo ordenações de planos ou projetos urbanísticos. Desta maneira, não é possível reputar como urbanísticas as desapropriações que não apresentarem uma causa exclusiva, direta e imediata, em qualquer documento que verse sobre execução urbanística, sendo inviáveis quando inexistirem planos ou estes não estejam carecidamente aprovados ou não, ainda, passíveis de execução. Ao lado, não é considerada urbanística quando a desapropriação é alheia a propósitos de desenvolvimento urbano e que não estejam relacionadas com obras e aspectos de uma ordenação urbanística. Ademais, conquanto exista o adequado planejamento devidamente aprovado, não é possível considerar que a desapropriação seja urbanística quando se refira à aquisição de solo ou imóveis necessários à execução de determinada obra ou mesmo implantação de serviço que não se encontre expressamente previsto no plano, única causa que legitima esta espécie de desapropriação. Não se pode olvidar que a utilidade pública, enquanto causa expropriandi, não se predica em abstrato da urbanificação, mas sim em uma concreta e determinada urbanificação refletida no acervo documental apropriado. Caso a situação em comento não encontre respaldo no planejamento urbanístico, a execução não é possível por meio da desapropriação urbanística, sendo imperiosa a utilização da desapropriação ordinária, eis que não materializa obras urbanísticas, mas sim ordinárias. 4 Hipóteses de Desapropriação Urbanística A desapropriação urbanística pode se materializar em três situações distintas, a saber: a) desapropriação como sistema de atuação de planos urbanísticos; b) desapropriação urbanística subsidiária, para as situações em que os particulares atuem desacordo com as previsões do plano ou, ainda, quando requeiram trabalhos de urbanificação em terrenos destinados a futuros núcleos urbanos; c) desapropriação-sanção, prevista para punir o não-cumprimento de obrigação ou ônus urbanístico estabelecido ao proprietário de terrenos urbanos. O primeiro caso é o que materializa, de maneira fundamental, a acepção da desapropriação para fins urbanísticos, porque consubstancia o próprio conceito como instrumento de execução de planos urbanísticos, os quais podem se apresentar como gerais, particularizados, parciais ou setoriais, sendo requerido tão somente que sejam aprovados e dotados de eficácia. Ao lado disso, em estando diante dessa situação, o imóvel desapropriado é indenizado em dinheiro e está condicionada tão somente à ocorrência de necessidade ou utilidade pública (desempeno de atividade pública). Nesta esteira de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal já explicitou manifestação na qual obtempera: “Ementa: Município de Salto. Imóvel urbano. Desapropriação por utilidade pública e interesse social. Acórdão que declarou a sua ilegalidade, por ausência de plano diretor e de notificação prévia ao proprietário para que promovesse seu adequado aproveitamento, na forma do art. 182 e parágrafos da Constituição. Descabimento, entretanto, dessas exigências, se não se está diante da desapropriação-sanção prevista no art. 182, § 4º, III, da Constituição de 1988, mas de ato embasado no art. 5º, XXIV, da mesma Carta, para o qual se acha perfeitamente legitimada a Municipalidade. Recurso conhecido e provido”. (Supremo Tribunal Federal – Primeira Turma/ Recurso Especial N° 161.552/ Relator: Ministro Ilmar Galvão/ Julgado em 11.11.1997). Nesta esteira, ainda, é possível lançar mão do substrato ofertado por Meirelles, em especial quando destaca que “outra hipótese de permissibilidade de alienação de áreas desapropriadas ocorre nas expropriações para formação de distritos industriais, desde que a Administração expropriante planeje a área e promova a urbanização necessária à sua destinação”[18]. Ora, não seria viável a implantação de qualquer núcleo industrial, em área desapropriada para esse fim, caso não fosse admitida a possibilidade de alienação, pelo Poder Público, de glebas aos empresários que satisfaçam as exigências da Administração expropriante. O que não pode ocorrer são as desapropriações de áreas individualizadas e a subsequente transferência a interesses certos para eventual instalação de indústrias, sem qualquer planejamento e urbanização do local destinado à zona industrial nem mesmo observância dos requisitos autorizadores. Ao lado do expendido, com o escopo de ilustrar as ponderações arvoradas, mister se faz trazer à colação o entendimento jurisprudencial que acena: “Ementa: Agravo de instrumento. Desapropriação. Decreto N° 3.775/2011. Ausência de verossimilhança na alegação de que o ato está eivado de nulidades. Imissão provisória na posse. Município de vera cruz. Instalação de parque industrial. Interesse público. Urgência. Indenização que deve considerar todas as benfeitorias existentes no local. Considerando os documentos trazidos pelo Município, depreende-se que a desapropriação visa a instalar parque industrial, em atenção ao estabelecido no Plano Diretor, sem direcionamento na doação das terras à empresa privada. Evidenciado o interesse público de promover o desenvolvimento socioeconômico com a geração de emprego e renda. Agravo de instrumento desprovido.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Quarta Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº 70041646548/ Relator: Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl / Julgado em 04.05.2011). A denominada desapropriação urbanística de caráter subsidiário tem por escopo principal fazer atuar atividade urbanificadora por alguém em substituição ao proprietário do imóvel que deixou de cumprir especificações positivas do plano ou projeto urbanístico, estando alcançado por tal situação o reparcelamento de áreas urbanizadas, edificadas ou não; as de urbanificação considerada prioritária; as de renovação urbana; as de reserva do solo em previsão de expansão das aglomerações urbanas, para ordenação dos espaços naturais em torno dos núcleos populacionais e para a criação de novas cidades ou bairros ou mesmo estâncias turísticas. “Pode-se incluir aqui, também, a desapropriação de imóveis de interesse histórico, paisagístico, artísticos e arqueológico”[19]. Por derradeiro, a nomeada desapropriação-sanção é a modalidade prevista para o restabelecimento da legalidade urbanística, quando esta for vulnerada ou, ainda, para evitar o descumprimento das normas que estabelecem obrigações aos proprietários. A sua nomenclatura decorre do fato de que a privação forçada da propriedade em função do descumprimento dos deveres e ônus urbanísticos comporta a redução da justa indenização. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 182, §4°[20], estabelece desapropriação de terreno não edificado, subutilizado ou não utilizado, quando seu proprietário não cumpre determinação emanada pelo Poder Público para sua adequada utilização, observados os requisitos ali indicados. “A sanção está nessa forma de reprimenda, mas se completa com a forma de indenização mediante títulos da dívida pública”[21], como bem evidencia Silva em suas robustas lições. A espécie em comento reclama, como pressuposto, além da existência de plano diretor urbano, a edição de lei específica contendo exigência, nos termos da lei federal, do adequado aproveitamento do imóvel. Em tal situação, a indenização será, como pontuado preteritamente, em títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos.
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Marco regulatório do terceiro setor (lei 13.019/2014): principais novidades e consequências
Principais novidades e consequências do Marco Regulatório no mbito do Terceiro Setor. Uma análise técnica prática e crítica à nova legislação que entra em vigor em 27/07/215 e já gera inúmeras discussões em torno da sociedade.
Direito Administrativo
1.  Introdução. 1.1.Realidade atual do terceiro setor e advento da lei 13.019/2014. Publicada em 31/07/2014, a Lei nº 13.019/2014, antes mesmo de entrar em vigor, traz inúmeros questionamentos em torno da sociedade. Em que pese o campo infinito de discussão acerca da nova lei, o objetivo do presente texto é esclarecer e inserir os leitores nas principais novidades da legislação. Em primeiro lugar, cumpre apontar a problemática instalada com o passar dos anos nas parcerias entre as entidades privadas e Poder Público: repasse público de recursos às instituições privadas sem licitação e ausência de controle eficaz das prestações dos serviços por elas oferecidos. O sistema de controle estabelecido pela Constituição Federal através dos Tribunais de Contas e Procuradorias e Controladoria do Poder Público não tem funcionado efetivamente como deveria e o surrupiamento dos recursos públicos virou realidade. Diante da problemática, a elaboração da lei buscou a valorização das OSCs (Organizações da Sociedade Civil) por meio da segurança jurídica, transparência na aplicação de recursos e efetividade das parcerias para atendimento à população, com ampla previsão de sua avaliação e monitoramento, inclusive com manifestação do público alvo das ações sociais acerca da boa execução das atividades pelas instituições. Abriu-se uma nova era na relação entre o Poder Público e as organizações sociais no tocante à realização de parcerias em prol do bem comum, sendo a legislação de aplicação em âmbito nacional, atingindo todos os entes da Federação. A partir da elaboração da lei, os questionamentos variam desde o termo inicial de vigência da legislação e seus efeitos nas parcerias já vigentes até as grandes novidades advindas com o texto legal, entre outras, o procedimento de chamamento público para a seleção de parcerias com o Poder Público,  procedimento de manifestação do interesse social, os termos de colaboração e de fomento, novos requisitos previstos para as organizações da sociedade civil. 1.2.  Vigência e efeitos da legislação. A legislação foi publicada em 31/07/2014, com vacacio legis de noventa dias para a então produção de seus efeitos, entretanto, levando-se em consideração as grandes consequências que causará no Terceiro Setor, a pedido da CNM (Confederação Nacional dos Municípios), a Medida Provisória nº 658  alterou a sua vigência para produção de efeitos apenas 360 (trezentos e sessenta) dias após sua publicação oficial. Há ainda quem ache possível nova prorrogação de vigência da lesgilação em face do seu impacto na sociedade, tendo sido realizado novo pedido, nesse sentido, em uma atuação conjunta da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo, Federação  do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo, Ordem dos Advogados do Brasil- Seção de São Paulo, FECOMERCIO e REBRATES- Rede Brasileira do Terceiro Setor. A grande crítica do Setor e especialistas da área é sobre a ampla interferência do Poder Público no desenvolvimento das atividades das instituições, a exemplo da previsão do art. 37 acerca da responsabilidade solidária de, ao menos, um dirigente da instituição pela obrigação integral constante da parceria independente de processo judicial,  bem como da disposição do inciso XVIII do art. 42 que obriga inserção de cláusula no contrato com fornecedores de bens e serviços que permitirá o livre acesso dos servidores dos órgãos para fiscalização aos documentos contábeisda empresa contratada, dentr outros dispositivos legais, sendo considerável o argumento da área no tocante à probabilidade de inviabilização de ações, programas e projetos em execução. O fato é que, até última ordem, em 27/07/2015, a lei entrará em vigor e as instituições estarão obrigadas a aplicar as novas regras. Nesse sentido, muito se pergunta acerca da aplicação da novata lei sobre as parcerias já em andamento, é o que se denomina pelos juristas de Normas de Transição do Marco Regulatório do Terceiro Setor. E, foi pensando nisso, que o novo diploma traz previsão expressa, no seu art. 83, de que as parcerias existentes no momento da entrada em vigor permanecerão regidas pela legislação vigente ao tempo de sua celebração, ressalvando a incidência de suas regras, no que for cabível, desde que em benefício do alcance do objeto da parceria. A orientação da Secretaria da Presidência da República em todo o período de elaboração e discussão  da norma é de que, de um lado, tratando-se de parcerias com prazo determinado segue a aplicação da lei vigente ao tempo de sua realização até o seu vencimento; por outro lado, tratando-se de parcerias com vigência por tempo indeterminado, de igual forma, permanecem regidas pela lei ativa no tempo de sua formalização, recomendando-se que após um ano em curso, sejam repactuadas com a observância do Marco Regulatório. No campo prático, o importante será a interpretação e aplicação das normas de transição em cada caso concreto visando sempre a continuidade do serviço ofertado pela parceria considerada bem como o melhor alcance do objeto da parceria e do interesse público envolvido. 2. Fundamentos jurídicos da legislação. Traz o Marco Regulatório como fundamentos a Gestão Pública Democrática, a Participação Social, o Fortalecimento da Sociedade Civil e a Transparência na aplicação dos recursos públicos, fundamentos esses decorrentes da sociedade democrática assegurada pela Constituição Federal de 1988 e que auxiliam na melhor compreensão do conteúdo da legislação. A Gestão Pública Democrática traduz-se na participação popular na gestão da cidade e nas tomadas de decisões, visando o comprometimento social com o próprio desenvolvimento sociológico, garantindo a legislação ampla publicidade dos atos da Administração Pública e Organizações da Sociedade Civil no processo de seleção pública das parcerias, com possibilidade de interferência da sociedade no julgamento das propostas e acompanhamento da execução das parcerias firmadas. A Participação Social é vislumbrada desde a elaboração da legislação com ampla participação da população, através de realização de audiências públicas junto a Secretaria da Presidência da Republica (há levantamento de participação de cerca de 250 gestores públicos e diversos seguimentos da sociedade com contribuição efetiva na elaboração da lei)  até todo o procedimento previsto para celebração de parcerias das OSC com o Poder Público, com garantias, entre outras, de apresentação de propostas por qualquer cidadão comum e movimentos sociais para que este avalie a possibilidade de realização de um chamamento público objetivando a celebração de parceria. O Fortalecimento da Sociedade Civil é reflexo exato dos fundamentos anteriormente expostos, consubstanciada, entre outras,  na obrigação da Administração Pública de divulgar nos meios de comunicação campanhas de publicidade e programações desenvolvidas pelas OSC no âmbito das parcerias firmadas, além da criação do Conselho Nacional de Fomento e Colaboração, de composição paritária entre representantes governamentais e organizações da sociedade civil cuja finalidade de divulgar boas práticas e de propor e apoiar políticas e ações voltadas ao fortalecimento das Relações de fomento e de colaboração. A Transparência na Aplicação dos recursos públicos, também grande objetivo do Marco Regulatório, vem no sentido de publicizar toda e qualquer alocação do dinheiro público nas instituições, podendo ser citada nesse contexto a previsão legislativa da Administração de divulgar nos meios oficiais os valores aprovados na lei orçamentária anual para a execução de programas e ações do plano plurianual em vigor, além da obrigação da Administração e OSC de manter nos seus respectivos sites a lista com as parcerias celebradas. 3. Novos requisitos das organizações da sociedade civil. Visando a valorização das instituições que trabalham no desenvolvimento de trabalho voluntário bem como o resultado final a ser por elas alcançado, inova a lei com a nomenclatura das hoje conhecidas como ONG ( Organização Não Governamental) para se chamar Organizações da Sociedade Civil (OSC), exigindo expressamente para a realização de parcerias com o Poder Público o preenchimento de três requisitos cumulativos, conforme previsão do  art. 24, VI: -a) no mínimo, 3 (três) anos de existência, com cadastro ativo, comprovados por meio de documentação emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, com base no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica; – b) experiência prévia na realização, com efetividade, do objeto da parceria ou de natureza semelhante; – c) capacidade técnica e operacional para o desenvolvimento das atividades previstas e o cumprimento das metas estabelecidas. Analisando a realidade prática atual dessas instituições, pode-se afirmar com segurança que a sua grande maioria, no desenvolvimento de suas atividades há tantos anos, já atende aos requisitos mencionados, cabendo aos seus representantes legais se preparar para a demonstração do seu efetivo preenchimento, inclusive a título de documentação comprobatória. É evidente a intenção da legislação de tonar mais eficiente o controle pelo Poder Público do cumprimento das finalidades propostas pelas parcerias celebradas, exigindo-se para tanto a prova de capacidade técnica e operacional da instituição para desenvolvimento de suas atividades bem como experiência prévia no mesmo objeto pretendido pela parceria ou semelhante, o que pode ser comprovado através de seus Estatutos, Planos de Trabalho e Relatórios de Atividades devidamente atualizados com a respectiva demonstração do desenvolvimento prático dos serviços ofertados à população. E, ainda, o comprovante existência da instituição de, no mínimo, de três anos, requisito facilmente atestado através da certidão emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil com o número do CNPJ da empresa. 4.Principais novidades e consequências do marco regulatório. Inova a legislação com novos instrumentos específicos para celebração das parcerias entre a OSC e Poder Público, pondo fim aos convênios. A nomenclatura convênios ficará apenas para os ajustes e parcerias realizados entre os entes estatais internos, ou seja, entre os próprios integrantes da estrutura da Administração Pública. Surge o Termo de Fomento e o Termo de Colaboração, representando, respectivamente, as parcerias celebradas a partir de iniciativa das OSC e as parcerias celebradas a partir da iniciativa da própria Administração, com previsão expressa nos arts. 16 e 17 da lei. Com vistas a valorização da participação popular, introduz a legislação o Procedimento de Manifestação de Interesse Social como instrumento por meio do qual as organizações da sociedade civil, movimentos sociais e cidadãos poderão apresentar propostas ao poder público, nos moldes do art. 19, para avaliação da possibilidade de realização de um chamamento público objetivando a celebração de parceria, devendo tal procedimento ser precedido da ouvida da sociedade e não dispensa a seleção pública correlata, conforme a seguir delineado. Como grande novidade do Marco Regulatório, o Chamamento Público, previsto no art. 23 e seguintes da lei, reflete o processo seletivo obrigatório, por meio de chamada pública de parcerias das instituições com a Administração Pública, selecionando, com base em critérios objetivos e previamente expostos no Edital de Chamamento Público, a organização da sociedade civil que torne mais eficaz a execução do objeto proposto, afastando-se qualquer privilégio ou apadrinhamento político em qualquer nível. No campo de aplicação desse novo processo, a Administração Pública deverá adotar procedimentos claros, objetivos, simplificados e, sempre que possível, padronizados, de forma a orientar os interessados e facilitar o acesso direto aos órgãos da administração pública, independentemente da modalidade de parceria prevista na Lei, devendo o edital ser amplamente divulgado em página do sítio oficial do órgão ou entidade na internet bem como o resultado final do julgamento. O grau de adequação da proposta aos objetivos específicos do programa ou ação em que se insere o tipo de parceria e ao valor de referência constante do chamamento público é critério obrigatório de julgamento pela Comissão de Seleção que é o órgão colegiado da administração pública destinado a processar e julgar chamamentos públicos, sendo composta por agentes públicos, designados por ato publicado em meio oficial de comunicação, com, pelo menos, 2/3 (dois terços) de seus membros servidores ocupantes de cargos permanentes do quadro de pessoal da administração pública realizadora do chamamento público. E, no âmbito do Chamamento Público, traz a legislação a possibilidade de Atuação em rede pelas entidades que nada mais é que a agregação de projetos, com valorização da integração do acesso às parcerias, mantida a integral responsabilidade da organização celebrante do Termo de Fomento ou de Colaboração. Para tanto, conforme art. 25 da lei, é necessária a previsão no edital de chamamento público bem como no Plano de Trabalho da instituição, sendo exigida que a OSC responsável tenha, entre outros requisitos, mais de cinco de inscrição no CNPJ, mais de três anos de experiência em atuação em rede  e capacidade técnica e operacional para supervisionar e orientar diretamente a atuação da organização que com ela estiver atuando em rede, além da comprovação regularidade jurídica e fiscal de todas as entidades envolvidas, nos termos do regulamento. Salienta-se que apenas nas hipóteses expressamente previstas na Lei e, com base em justificativa detalhada, a Administração Pública poderá dispensar a realização do chamamento público, quais sejam ,em caso de urgência decorrente de paralisação ou iminência de paralisação de atividades de relevante interesse público realizadas no âmbito de parceria já celebrada, nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem pública ou quando se tratar da realização de programa de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer a sua segurança. É, ainda, o Chamamento Público inexigível nas hipóteses de inviabilidade de competição entre as organizações da sociedade civil, seja em razão da natureza singular do objeto do plano de trabalho, seja quando as metas buscadas para fins de alcance do interesse público somente puderem ser atingidas por uma entidade específica. Na prática, em que pese a publicação da lei desde 31/07/2014 e com previsão de incidência a partir de 27/07/2015, para fins de efetivação desse novo procedimento, urge a adequação interna da Administração Pública tanto no tocante a capacitação do corpo técnico de funcionários que participarão direta e indiretamente da seleção pública quanto na estruturação interna física e procedimental que atenda o Marco Regulatório, realidade essa ainda distante no país às vésperas do termo inicial de incidência da legislação. Nesse sentido, destaca-se que a lei prevê que a União, em coordenação com os Estados, Distrito Federal, Municípios e organizações da sociedade civil, instituía programas de capacitação para gestores, representantes de organizações da sociedade civil e conselheiros dos conselhos de políticas públicas, e, em que pese a ressalva de não constituir a participação nos referidos programas condição para o exercício da função, na prática é evidente a necessidade da sua implementação pelo Poder Público para fins de efetivação do Marco Regulatório no âmbito do Terceiro Setor da sociedade. A legislação traz, ainda, a possibilidade de remuneração da equipe de trabalho da instituição com os recursos vinculados à parceria, desde que aprovadas no plano de trabalho, ressalvado que a inadimplência da organização da sociedade civil em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à administração pública a responsabilidade por seu pagamento nem poderá onerar o objeto do termo de fomento ou de colaboração ou restringir a sua execução, são previsões expressas respectivamente dos arts. 46, I e 47 § 7º. Dada a importância das atividades desenvolvidas pelas OSC na sociedade e o impacto das ações desempenhadas pelos seus dirigentes, a lei alterará os artigos 10  e 11 da Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992)  para inserir como atos de improbidade que causa lesão ao erário e que atenta contra os princípios da Administração Pública condutas contrárias ao disposto na Lei 13.019/2014. Nesse sentido, haverá incidência de sanções que variam de acordo com a gravidade do fato, entre outras, ressarcimento integral do dano; perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos; pagamento de multa civil; proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário. 5.Conclusão. Paralelamente às críticas dos especialistas, conforme já delineado, pode-se afirmar que a legislação, em que pese o grande campo de novidades a ser aplicado no Terceiro Setor, é, em quase a sua totalidade, didática, com previsão ampla dos requisitos para celebração dos Termos de Colaboração e Termos de Fomento,  desde as exigências do Estatuto e Plano de Trabalho das instituições até os documentos necessários para apresentação perante Poder Público de modo a viabilizar as parcerias. Por outro lado, ainda se encontra pendente de regulamentação diversas matérias abordadas em prima facie pela legislação, entre eles,  a forma de divulgação nos meios públicos de comunicação por radiodifusão de sons e de sons e imagens de campanhas publicitárias e programações desenvolvidas por OSCs (art.14); a composição e o funcionamento do Conselho Nacional de Fomento e Colaboração (art. 15,§1º); os prazos e regras do Procedimento de Manifestação de Interesse Social (art. 18);  a Atuação em rede (art. 25, IV); o Monitoramento e avaliação (art. 58); o registro em plataforma eletrônica das prestações de contas rejeitadas ou aprovadas com ressalvas (art. 69,§6º). A expectativa é de que, quando da entrada em vigor da legislação, seja publicado decreto regulamentador de todas essas matérias a fim de viabilizar e, até mesmo, facilitar a implementação do Marco Regulatório pela Administração Pública, Organizações da Sociedade Civil e sociedade em geral. É perceptível o avanço legislativo do país com a elaboração da norma em questão, sendo o seu escopo maior realizar o interesse público de forma segura, justa e eficaz, de forma que urge a sua regulamentação bem como a adequadação da Administração Pública e instituições aos seus imperativos, viabilizando-se, assim, a sua aplicação sempre em favor da socidade.
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Utilização dos bens particulares pela administração pública e a aplicabilidade da teoria da aparência
O presente trabalho aborda a aplicação de uma nova Teoria aos bens particulares, de modo a demonstrar que esses quando utilizados para uma finalidade pública, quando afetados a um serviço público adotam características próprias dos bens públicos. Tais características são a alienabilidade condicionada e a impenhorabilidade. Assim, quando o simples cidadão utiliza ou frequenta o bem privado na busca do serviço público, obrigação do Estado, ele tem intrinsecamente, em seu subconsciente que tal é público. Temos aqui a manifestação da Teoria da Aparência, daquilo que parece que é, mas não é.
Direito Administrativo
Introdução: É fato que, costumeiramente, a Administração Pública utiliza bens de pessoas particulares para o exercício de suas atividades, mascarando-os de forma tamanha que os tornam, na maioria das vezes, imperceptíveis àqueles que se beneficiam da prestação de tais serviços. Essa imperceptibilidade deriva, sutilmente, do manto administrativo que se encontra por trás da força estatal, que resulta dos Princípios mestre que regem todo o sistema administrativo: Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e Indisponibilidade do Interesse Público. Portanto, a utilização dos bens particulares pela Administração Pública faz com que estes tenham uma aparência de bens públicos, isto é, quando utilizados pelo Estado eles se tornam afetados e possuem certas características que são próprias aos bens públicos: Inalienabilidade Condicionada e Impenhorabilidade. Temos ai à aplicação de uma Teoria ainda pouco discutida no sistema normativo brasileiro e até mundial, é a Teoria da Aparência, é a discussão no direito daquilo que parece ser, mas não é!  O que se deve ter em mente é que tal teoria não se encontra expressamente no nosso sistema de normas, mas que não pode está distante de um ordenamento que preza pela democracia e boa-fé social. Neste ínterim, o presente estudo se debruçará sobre os três princípios mestres do Direito Administrativo: Supremacia do Interesse Público, Indisponibilidade do Interesse Público, Continuidade do Serviço Público, bem como o da Eficiência. Também o conceito de Bem e de bens públicos virá à tona no transcorrer do presente, bem como será explicado o significado do Domínio Público, que pode ser em seu sentido estrito, amplo e até eminente. Serão explicitadas, ainda, as diversas formas de utilização desses bens particulares pela Administração Pública. E, por fim, apreendido a cerca da Teoria da Aparência, uma teoria recente no Direito Brasileiro que normalmente é aplicada no Direito Civil, mas no presente será aplicada no Direito Administrativo no tocante à aparência pública que os bens particulares adquirem quando utilizados pela Administração. 1 – Conceito e classificação dos bens: O Código Civil não conceituou bens, fazendo apenas suas devidas classificações, portanto, tal ordenamento não traz um conceito preciso, exato, deixando nas mãos da doutrina essa árdua tarefa.  Assim, para Silvio Rodrigues “Bens são coisas que por serem úteis e raras são suscetíveis de apropriação e contém um valor econômico” [1]. Desta forma, podemos afirmar que todos os bens são coisas, mas nem todas as coisas são bens, ou seja, estes são espécie daquelas. Ainda no que se refere aos bens, o Código Civil os divide em privados e públicos. Esses são os pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno. Já aqueles são bens pertencentes às pessoas físicas ou jurídicas de Direito privado, atendendo os interesses dos seus proprietários, desse modo, o artigo 98 do mesmo diploma legal fez um trabalho de exclusão, ou seja, o que não é bem público é privado. Na IV Jornada de Direito Civil, os doutrinadores concluíram que o rol constante no referido artigo 98 do Código Civil é meramente exemplificativo, quando afirma que “o critério de classificação de bens indicado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classificado como tal o bem pertencente à pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado a prestação de serviço público”. Com essa conclusão percebe-se que são bens públicos todos aqueles pertencentes à pessoa jurídica de direito público interno e externo, inclusive os das pessoas jurídicas de direito privados que estejam prestando algum serviço público. No que toca a classificação dos bens alguns estudiosos afirmam que teve início com o Código Civil de Napoleão, em 1804, no qual declaravam-se públicos alguns bens como os rios, estradas, praças e etc., como sendo do Estado, não podendo ser adquiridos pelo particular. Só que segundo Maria Silva Zanella Di Pietro[2] deve-se a Pardessus a primeira classificação de bens: de domínio nacional, suscetível de apropriação privada; de domínio público, que eram o de domínio de todos. O Código Civil Brasileiro disciplinando o tema (bens públicos) de forma geral, prevê, em seu artigo 99, a seguinte classificação de tais bens: a) os de uso comum do povo ou de uso geral, que são aqueles utilizados pela população em geral e são utilizados pelo povo indistintamente, são exemplos os rios, as praças, ruas, estradas, jardins, etc.; b) os de uso especial, que são aqueles utilizados pelo Estado para prestação/execução de um serviço público, isto é, são bens destinados ao povo só que utilizados pela Administração para prestação de serviço, tais como o prédio da prefeitura, os hospitais, etc., é importante destacar que esses não são utilizados pelo povo indistintamente; c) os bens dominicais ou dominiais , que são os bens sem nenhuma destinação pública, são aqueles das pessoas jurídicas de Direito Publico por força de direito real, portanto, esses podem ser, e são, disponíveis e alienáveis, são eles as terras devolutas, os terrenos de marinha, os bens desafetados, entre outros. 2 – Domínio público (sentido estrito, amplo e eminente) e a inaplicabilidade de conceitos de direito privado É de suma importância para compreensão de alguns elementos norteadores dos bens públicos o estudo do domínio público que por ter um conceito abstrato tal expressão se torna imprecisa, uma vez que ela pode ser utilizada com abordagens diferentes, isto é ora o enfoque é o Estado, ora a coletividade quando utiliza alguns bens públicos, e assim sucessivamente. Assim, podemos dividir o domínio público em sentido amplo e em sentido estrito. Aquele é o poder que o Estado tem de domínio e regulamentação sobre os bens do seu próprio patrimônio, ou em face aos bens privados importantes para a coletividade, ou, ainda, quando a Administração Pública atinge as coisas que não são apropriáveis individualmente, mas de fruição comum da sociedade. E este se refere aos bens que são destinados ao uso da coletividade, individualmente ou em geral, são os classificados como bens públicos de uso comum do povo, cuja definição já fora abordada. Não se pode esquecer que ainda temos o domínio público em sentido eminente, que é derivado da Teoria do Domínio Eminente na qual, na antiguidade, afirmava que todos os bens, especialmente os de titularidade dos particulares, eram tidos como propriedade derradeira da Coroa, isto é mediante simples decisões do monarca tal propriedade poderia ser afastada do domínio útil do verdadeiro proprietário, que teria apenas um domínio limitado, podendo ser abolido a qualquer momento se assim desejasse o Estado. É por causa dessa concepção que o professor Marçal Justen Filho[3] rejeita a Teoria do Domínio Eminente afirmando que esta não se coaduna com o atual sistema de normas, in verbis: “A teoria do domínio eminente tem suas origens no período anterior a afirmação do Estado de Direito. Não traduz corretamente a relação política e jurídica entre Estado e a sociedade. Não se pode admitir perante o vigente regime constitucional o domínio eminente do Estado sobre os bens privados”. Só que com o novo ordenamento jurídico tal teoria tomou contornos diferentes e, modernamente, é aplicada e aceita pela doutrina majoritária, só que com raciocínio diferenciado. Atualmente, o domínio eminente é interpretado no sentido de necessidade da Administração, isto é da coletividade. É quando o Estado utiliza o seu poder de polícia para promover a desapropriação, para requisitar ou ocupar temporariamente bens particulares, mas sempre precedidos por indenização caso haja dano, o que não ocorria no passado. Com segurança é possível registrar que o domínio eminente, hodiernamente, abarca tanto os bens públicos, quanto os bens privados, e, ainda, os bens não sujeitos ao regime normal da propriedade, como, por exemplo, o espaço aéreo e as águas não se confundindo com o conceito de bem público, que são aqueles titularizados pelas pessoas jurídicas de direito público.  Outrossim, o domínio eminente não tem relação alguma com o domínio de caráter patrimonial, tal expressão é derivada do poder  soberano do Estado, sobre o que se encontra nos seus limites  territoriais. Não se quer dizer que a Administração é proprietária, dona de tudo. Longe disso. O que se quer dizer é que por ser detentor do poder político, soberano, de uma forma geral, ele tem o poder de submeter a sua vontade todos os bens situados em seu território. Isso é derivado da previsão Constitucional expressa no artigo 1º, inciso I. Nesse sentindo é o que nos demonstra, em suas sábias palavras, o professor José dos Santos Carvalho Filho, in verbis: “Desse aspecto político, que é inerente ao sentido de domínio eminente, defluem todas as formas de investida que o Estado emprega em relação à propriedade privada. Com efeito, pode o Estado transferir a propriedade privada, por meio da desapropriação, quando há utilidade pública ou interesse social; estabelecer limitações administrativas gerais à propriedade; criar regime especial de domínio em relação a algumas espécies de bens, ainda que não sendo proprietário de todos os bens, o Estado pode instituir regimes jurídicos específicos que afeta fundamentalmente o domínio”[4]. Desta forma, pode-se afirmar sem receios, que existe um aparente domínio do Estado, um domínio mitigado, um domínio respeitador da lei que utiliza a razoabilidade e proporcionalidade, que coloca na balança o interesse do particular e do Estado, deixando prevalecer sempre o interesse público sobre o privado perante toda e qualquer propriedade. Ainda, sem delongas, é importante deixar claro que o regime de direito público é incompatível, quase que na totalidade, com os institutos do direito privado, quais sejam, os institutos da propriedade e da posse. É inadmissível e incorreto que diante do arsenal principiológico e de um ordenamento jurídico democrático que rege o direito administrativo que um bem público seja de propriedade do Estado para o reconhecimento dos efeitos de usar, gozar e dispor da coisa livremente, como ocorre no Direito Civil. Tais efeitos são utilizados, mas com certas limitações. É certo que a Administração para cumprir sua função de prestação de serviços usa seus bens ou autoriza essa utilização por terceiros; tem, também, o direito de gozar recebendo todos os frutos deles derivados; e de dispor desde que o bem seja previamente desafetado, que o bem não tenha uma destinação pública, aqui se encontra a diferenciação no tocante aos bens regidos pelo Direito Civil. Insta salientar que o vínculo entre a Administração Pública e os bens não se identificam com a relação típica de direito privado, existem diversas características de cunho meramente coletivo que dão aos bens públicos qualidades diversas dos bens privados, ou seja, com a afetação os bens públicos adquirem características próprias, que em regra, não são aplicados aos bens privados. 3 – Os princípios do direito administrativo na aplicação dos bens públicos e as respectivas características/regras de tais bens. Como todo o ordenamento jurídico tem por alicerce princípios, nos quais estrutura todo o sistema de normas, no Direito Administrativo não poderíamos encontrar diferenciação, inclusive no tocante aos bens públicos, uma vez que ele, o Direito Administrativo, é carreado de um vasto arsenal principiológico que deve ser respeitado por todo e qualquer administrador público. Dessa forma, temos três princípios mestre que regem o Direito Público, em especial o Direito Administrativo, que são aplicados diretamente a todo regime jurídico dos bens públicos, são eles: o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, a Indisponibilidade do Interesse Público e a Continuidade do Serviço Público.    Pelo Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado entende-se que na busca do interesse da coletividade o Estado pode e deve mitigar o interesse privado. Esse princípio é o fundamento da existência das prerrogativas e dos poderes da Administração Pública. É por esse princípio que a Administração pode limitar o direito de propriedade dos administrados, pode requisitar bens, ocupar temporariamente, limitar a utilização de bens e, inclusive promover a desapropriação. No da Indisponibilidade do Interesse Público parte-se da ideia que tal interesse é indisponível, de que o administrador não pode abrir mão e nem é proprietário da coisa pública, mas sim o povo. Portanto, o papel do Estado é simplesmente administrativo, sendo que esse princípio é uma limitação ao princípio acima. Aqui aquele que administra deve obedecer a critérios impostos pela lei para aquisição, utilização e venda de bens, aqui não existe vontade da administração, mas sim da lei, que é o instrumento tradutor da vontade do povo. Pelo princípio da Continuidade do Serviço Público, temos a ideia de que a atuação do Estado deve ser contínua e ininterrupta, de forma a cumprir seu papel na prestação dos serviços da melhor forma possível. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, citado por Fernanda Marinela[5], esse é um subprincípio, derivado do princípio da obrigatoriedade do desempenho de atividade pública que é oriundo do princípio fundamental da indisponibilidade. Nesse ínterim, é por causa desses princípios que surgem as características/regras próprias dos bens públicos: a imprescritibilidade, impenhorabilidade, onerosidade e alienabilidade condicionada. É importante demonstrar, em primeiro lugar, que os bens públicos são inalienáveis, sendo que essa regra não é absoluta. A alienabilidade condicionada é um misto da regra com pitadas de relatividade, de exceções, isto é, preenchidas certas condições os bens públicos podem ser alienados, assim, é importante frisar que mesmo havendo possibilidade de alienação o administrador deve obediência às condições exigidas por lei. Desse modo, o primeiro requisito para alienação de bens públicos é a sua desafetação, quando perdem a sua destinação pública, por ato ou fato administrativo ou por lei; sem esquecer que quando são desafetados, eles se tornam bens dominicais, podendo ser alienados conforme o artigo 100 do Código Civil. O segundo requisito é a existência de interesse público, deve haver um interesse do povo na alienação dos bens. O terceiro requisito é a necessidade de avaliação prévia. Tendo como quarto e ultimo requisito a obrigatoriedade de licitação. É o que nos mostra a dicção do artigo 17 da Lei 8.666/1993. Vale ilustrar, ainda, que quando a alienação for de bens imóveis dependerá de autorização legislativa e a licitação será na modalidade concorrência. Para bens móveis, são satisfatórios os requisitos gerais acima citados, podendo a licitação versar sob qualquer modalidade a depender da escolha do administrador e do cabimento ao caso concreto, segundo a lei. Não se pode esquecer dos bens imóveis que foram adquiridos pela administração pública por procedimentos judiciais ou dação em pagamento – que é um acordo de vontade entre os sujeitos da relação obrigacional no qual pactuam a substituição do objeto obrigacional por outro -, no qual também poderão ser alienados desde que preenchidos os requisitos que já foram citados, com a diferenciação que há necessidade de autorização legislativa podendo ser alienado por ato da autoridade competente e o procedimento licitatório poderá ser na modalidade concorrência ou leilão. A outra regra é a impenhorabilidade dos bens públicos, isto é, a proteção de tais bens no que tange a penhora, o arresto e o sequestro, sendo que a alienação somente ocorrerá na forma comum. Essa regra, que não comporta exceção, decorre da alienabilidade condicionada: os bens não podem ser alienados de forma livre, podendo ser unicamente com observância das condições legais, por isso a penhora, o arresto e o sequestro perdem sua razão de ser quando se fala em bens públicos. Nessa mesma linha de raciocínio temos, ainda, como característica a onerosidade ou impossibilidade de oneração dos bens públicos, afastamento de tais bens da possibilidade de serem gravados por direitos reais de garantia, ou seja, proibição do penhor ou da hipoteca. Não onerar é a impossibilidade de deixar o bem como garantia para o credor, que no caso de ajuizada Ação de Execução e com o eventual inadimplemento surgiria o direito de alienar esse bem ou converter esse ato em penhora, só que não é demasiado salientar que como esses bens não são de livre alienação tais garantias também não se justificam. Por outro lado, o credor da Administração Pública não pode ficar desamparado diante de um ordenamento jurídico democrático que visa o interesse de um povo, sendo que a garantia dos credores não recairá diretamente no que tange aos bens públicos, e sim no que toca ao regime de precatório, segundo o artigo 100 da Constituição Federal. Por fim, temos a ultima características dos bens públicos, segundo a doutrina majoritária, que é a imprescritibilidade. Nesse caso, temos a impossibilidade de tais bens serem adquiridos pelo decurso do tempo, é a chamada prescrição aquisitiva, denominada usucapião. Desse modo, os bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião. Esse entendimento é em regra legalista, uma vez que se pode extrair da dicção do artigo 102 do Código Civil,  a seguinte prescrição: os bens públicos não estão sujeitos a usucapião, e isso independe da destinação, ou seja, pode ser ele dominical ou não, incluindo os bens imóveis ou móveis, estando todos eles incluídos. Ainda temos os artigos 183 e 191, parágrafo único da Constituição da Republica, no qual protege os bens imóveis e afasta inclusive o usucapião pro labore. Nesse mesmo sentido, o artigo 200 do Decreto-Lei nº 9760/46 nos traz a proteção dos bens imóveis da União, independente de sua natureza. Mas não é apenas isso! O Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de sanar qualquer dúvida existente a essa proteção da imprescritibilidade dos bens públicos, editou a Sumula de nº 340 que assegura que “desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não pode ser adquiridos por usucapião”. Deste modo a Corte Suprema bateu o martelo confirmando a regra absoluta de que os bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião. 4 – Considerações acerca da teoria da aparência Foi em meados dos séculos XIX e XX, com as transformações impulsionadas pela Revolução Industrial que surge ideia clássica da Teoria da Aparência. A expansão do comércio nessa época fez com que o ordenamento jurídico, atendendo a necessidade de prevê mais segurança e celeridade a tal comércio, adotasse a aparência, reconhecendo como válidos alguns atos e fatos aparentemente verdadeiros. Assim, aparência seria uma circunstância de fato que se manifesta como real em uma circunstância não real. Só que esse aparecer sem ser, coloca em confronto interesses humanos proeminentes que a lei não pode e nem deve desconhecer. De tal modo, a aparência no Direito é um fenômeno existente e real que manifesta um outro fenômeno jurídico aparente que não é existente e, por isso, não é real. E esses outros, novos, fenômenos se verificam, se manifestam por meio de símbolos, fatos, sinais e circunstâncias, tudo com base em um comportamento normal e habitual. Corroborando com tal entendimento são as sabias palavras de Álvaro Malheiros, citado pelo Advogado Luiz Carlos Iorio, em seu artigo publicado pela Revista Conteúdo Jurídico, in verbis: “Podemos, agora tentar descrever e dar um conceito mais preciso da aparência de direito. Nela, um fenômeno materialmente existente e imediatamente real, manifesta um outro fenômeno – não existente materialmente nem imediatamente real – e o manifesta de modo objetivo, através de sinais, de signos aptos a serem apreendidos pelos que dele se acercarem; não através de símbolos, mas pelos próprios fatos e coisas, com base num comportamento prático, normal. Manifesta-o como real, conquanto não o seja, porque essa base de relações e de ações, abstratamente verificável na generalidade dos casos, vem a falhar no caso concreto”[6]. Não são raras as vezes que diante dos eventos cotidianos nos deparamos com coisas que parecem ser, mas na realidade não são! E quando descobrimos que o que parecia ser na verdade não é, cria-se um estado caótico de coisas, um estado de transtornos emocionais e sentimentais, e até, muitas das vezes patrimoniais. Por isso o direito não pode e não deve deixar a mercê às relações jurídicas não reais, que são os negócios jurídicos travados entre pessoas, e que na cabeça de uma ou algumas delas eram tidas como verdadeiras.  Só que tal Teoria ainda é tímida nos ordenamentos jurídicos dos mais diversos países, encontrando-se precedentes no direito italiano, alemão, francês, americano e alguns outros poucos. No Brasil, não poderia ser diferente, tal teoria é pouco discutida na doutrina e jurisprudência, que segundo o artigo publicado na Revista Conteúdo Jurídico pelo Advogado Luiz Carlos da Cruz Iorio[7], essa teoria é analisada, com mais profundidade por Pontes de Miranda e Orlando Gomes, além do professor Arnaldo Rizzardo, sem esquecer-se dos raros livros e poucos artigos que tratam do assunto, de um modo, como não poderia ser diferente, ainda superficial e específico. No direito Brasileiro a teoria se mostra com mais força na seara civilista como no instituto da posse, que é uma aparência de propriedade; um pagamento por erro justificável a um credor putativo, desde que qualquer pessoa na mesma condição viesse a ser enganada; o mandatário praticando certos atos sem ter mais competência para tanto ou extrapolando tal competência; no caso de herdeiros aparentes ou excluídos da herança que geraram prejuízo ao espólio antes da sentença de exclusão; tanto no direito civil, como no direito comercial, e também no direito administrativo do indivíduo que pratica atos sem ser legitimado para tanto. Não pode esquecer-se da aplicabilidade da teoria, que é o tema em debate, no direito administrativo, na aparência de bem público que os bens privados têm quando afetados a uma finalidade pública. Em todas as hipóteses em que são possíveis prevê a manifestação da teoria da aparência deve-se levar em conta o respeito a terceiros de boa-fé, que por terem uma falsa percepção da realidade, enganável por qualquer homem médio, devem ser protegidos pela legislação vigente, nem que seja de forma comparada. Como se vê não é forçoso nem arriscado dizer que apesar de não estar, nem explicita nem latente, na codificação brasileira a teoria da aparência pode ser entendida como um princípio do ordenamento jurídico, uma vez que o direito foi construído para o homem e existe, a todo instante, uma necessidade de ordem coletiva de se conferir segurança as operações jurídicas, dando guarida para aqueles que agem de boa–fé, garantindo o principio básico do ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana. Certo é que a complexidade cada vez maior das relações sociais e jurídicas que a vida moderna nos impõe dificulta a estrada para chegarmos ao fundo das coisas e dos enigmas, nos limitando a uma feição externa daquilo que é real com a qual nos defrontamos diariamente. Por isso, a necessidade de um princípio, de uma teoria que resolva tais problemas relacionados à aparência de realidade com a qual enfrentamos no dia-dia, que no final das contas era uma falsa realidade. Por tudo que fora exposto é possível afirmar, que de certa forma, a teoria da aparência foi aceita no direito brasileiro, de forma tímida, tanto no aspecto doutrinário quanto na esfera jurisprudencial (ex: REsp. 12592/SP; REsp. 276025/SP; REsp. 276025/SP; REsp. 135306/SP; REsp. 50841/RJ; REsp. 147030/AM;  REsp. 12811/MS; AgRg no AG 18784/PR; REsp. 113012/MG; REsp. 2584/ES[8] e etc.). Só que na jurisprudência percebe-se que a aquiescência e aplicação da referida teoria, ainda, é insegura, prendendo-se muito mais aos juízos críticos valorativos pessoais de cada magistrado do que a uma sistematizada e metódica teorização da matéria, que asseverasse a identidade dos julgados. O que se percebe é que não há uma unanimidade, um consenso entre os doutrinadores e os jurisconsultos na aplicação da referida teoria, uma vez que ora é fundamentada na proteção da boa-fé de terceiros, ora na do erro comum e invencível ou escusável, ora na exteriorização da publicidade. Mas o que se deve levar em consideração é que o direito não pode desamparar uma sociedade que clama por justiça, devendo o operador de tal ciência utilizar da Teoria da Aparência de forma a suprir os anseios daquele que foi lesado por uma falsa percepção da realidade. 5 – Aplicabilidade da teoria da aparência aos bens particulares utilizados pelo estado para prestação de serviço público O ordenamento jurídico brasileiro, em sua organização administrativa, é dividido em pessoas jurídicas que compõe a administração indireta que são: as pessoas jurídicas de direito público (autarquias[9], agências reguladoras[10] e executivas[11], e fundações públicas[12]); e as pessoas jurídicas de direito privado (empresas públicas[13] e sociedade de economia mista[14]). No que tange ao tratamento legislativo dos bens das pessoas jurídicas de direito público o tema é pacífico perante a doutrina, já que eles consideram tais bens como públicos. Questão tormentosa é no tocante aos bens das pessoas jurídicas de direito privado, o que torna a discussão de uma grande complexidade. O professor Jose dos Santos Carvalho Filho[15] ao conceituar bens públicos afirma que são somente aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito públicos, sejam elas federativas, como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas, sejam eles de qualquer natureza e a qualquer título. Desse modo, para o renomado professor os bens das empresas públicas e das sociedades de economia mista não podem ser havidos como bens públicos, já que as mesmas tem natureza jurídica de direito privado, portanto, seus bens são privados. Só que para o mestre Celso de Antonio Bandeira de Mello[16] todos os bens que estiverem submissos à atividade pública devem ser assim considerados, devem ser tidos e devem estar incluídos na noção de bens públicos, in verbis: “A noção de bem público, tal como qualquer outra noção em Direito, só interessa se for correlata a um dado regime jurídico. Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão ser havidos como bens públicos. Ora, bens particulares quando afetados a uma atividade pública (enquanto estiverem) ficam submissos ao mesmo regime dos bens de propriedade pública. Logo tem que estar incluídos no conceito de bens públicos.” Porém a doutrina moderna, com mais sensatez, vem adotando uma posição intermediária, não excluindo por completo nenhum dos dois conceitos, mas sim os adaptando. A exclusão absoluta dos bens privados do conceito de bens públicos podem causar danos irreparáveis para a segurança do patrimônio e para os serviços públicos nas mais variadas circunstâncias. Já a inclusão absoluta de tais bens como públicos poderá gerar privilégios e formalidades exageradas, uma vez que são pessoas jurídicas de direito privado. Portanto, o mais coerente é o raciocínio de uma posição intermediária. Nem totalmente público, nem absolutamente privado, isto é, híbrido, desde que tais bens estejam vinculados à prestação de serviços públicos. A nível didático, seguindo a posição doutrinaria hodierna, é importante mencionar que tanto as empresas públicas, quanto as sociedades de economia mista estão sujeitas a um regime de direito privado, mas que não é absolutamente privado, é híbrido, misto, isto é, ora público em razão das diversas regras e princípios do ordenamento jurídico, se eles estiverem ligados à prestação dos serviços públicos, ora privado quando exploradoras de atividades econômicas. Também, não gera grandes discussões, nos doutrinadores modernos, a afirmação que essas empresas quando prestadoras de serviço público gozam de um regime mais público do que privado, sofrendo, dessa forma, uma limitação nas regras de direito privado. Nessa linha de raciocínio, é importante salientar, com precisão que os bens das Empresas Estatais são bens privados, como é de clareza solar a previsão do Código Civil. Contudo, não se pode ter a ideia de que tais bens seguirão um regime absolutamente privado, uma vez que é possível identificar em diversas leis esparsas o tratamento público dessas empresas quando prestadoras de serviço público ou quando seus bens estiverem ligados à prestação do serviço público. Além do mais, o Estado quando descentraliza uma atividade continua sendo responsável indireto pela prestação do serviço público, portanto, não teria sentido a adoção de um regime totalmente privado diante de uma finalidade pública. Desse modo, nada mais justo que um tratamento diferenciado, uma maior proteção a tais bens quando vinculados à prestação de um serviço público. É nesse ponto onde se desdobra a Teoria da Aparência. Quando os entes privados, no caso em questão as Empresas Estatais, prestam serviços públicos à sociedade, coletividade, refletem no sentido que aqueles bens são públicos, que estão amparados por prerrogativas dos bens públicos, que não pode ser alienados livremente ou penhorados. A sociedade tem a ideia de que o serviço prestado não sofrerá, em tese, interrupções por causa de eventuais dívidas da empresa privada, eles professam, em aparência, que tais bens são públicos. Por isso tudo devem tais bens ter a proteção similar dos bens públicos. Importante mencionar que todo esse raciocínio não pode ser adotado para as pessoas jurídicas de direito privado quando exploradora de atividade econômica, porque estão fora da ideia de que serviço público é um dever do Estado, podendo tal serviço ser prestado diretamente ou não, o que de maneira alguma afasta a responsabilidade de que o serviço seja oferecido. Atualmente é perceptível e latente a necessidade da Administração na utilização de bens particulares, sejam eles de pessoas físicas ou jurídicas. Tal utilização é desdobrada por meio de intervenção na propriedade privada como a ocupação temporária e requisição, por meio de contrato como o de locação, a utilização de bens pelas pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, concessionárias, entre outros. É evidente que para o alcance da eficiência no serviço público há a necessidade da administração em celebrar contratos que serão regulados pelo direito privado, no qual o Estado se situa no mesmo plano jurídico, não tendo nenhuma prerrogativa que fuja do sistema contratual comum. Entre eles se encontram o contrato de locação, que é utilizado diariamente pela Administração Pública, no qual o Estado loca do particular algum bem para a prestação de um serviço público. A partir daí podemos perceber mais uma vez a manifestação da Teoria da Aparência. Ao celebrar o contrato locatício e consequentemente prestar um serviço público a sociedade acredita intrinsecamente que tal bem é público, que a partir daquele momento o ente locador é o novo dono, isso deriva da supremacia que o Estado tem sobre o interesse privado. Um exemplo latente dessa aparência pública que o bem privado tem quando locado pela Administração, é da prefeitura ou órgão do município que não tenha sede própria para prestação de suas atividades habituais. Os cidadãos ao frequentarem esse bem entenderão que este é público, e que o serviço administrativo indispensável aos anseios sociais não serão interrompidos por quaisquer inconveniências. O segundo exemplo, também perceptível no seio da Administração é a locação de carros, caminhões, caçambas que serão também utilizados para servir a sociedade nos seus serviços essenciais, uma vez que o Estado não tem recursos financeiros suficientes para adquirir tais bens móveis em tempo suficiente para não deixar a sociedade à mercê da própria sorte. Desse modo, no contrato de locação se mostra a manifestação mais clara da Teoria da Aparência, uma vez que quando tais bens são afetados para a prestação de serviços públicos eles passam a adquirir uma aparência pública, e por isso contraem características próprias dos bens públicos, tais como alienabilidade condicionada, impenhorabilidade. Em função do princípio da continuidade não é razoável que um carro utilizado para prestar serviço ao hospital público de certa localidade no transporte de passageiros com enfermidades em tratamento ou um imóvel no qual o Município instalou uma escola sejam penhorados por causa de dívidas do verdadeiro proprietário. Não é coerente que as crianças fiquem sem estudar ou os idosos sem o tratamento adequando que irá estender seu tempo de vida, por causa de uma simples dívida. É a manifestação do interesse público sobre o privado. Outro exemplo da manifestação da Teoria da Aparência se mostra nos bens da Concessionária de serviço público. A concessionária é uma empresa de natureza privada que celebra contrato, por meio de licitação, com Administração para a prestação, por sua conta e risco, de serviços públicos. A licitação será sempre na modalidade concorrência, com a pequena/grande diferenciação que o edital pode estabelecer uma inversão de fases, os procedimentos para a licitação se encontram na Lei 8987/95.  É sabido que o Estado ao contratar uma empresa para prestação de serviço, esta será remunerada pelo próprio usuário do serviço, ou seja, a própria população que utiliza do serviço da concessionária remunerará diretamente a empresa contratada. Outro ponto importante é o que diz respeito às pessoas que podem celebrar o contrato de concessão, que somente pode ser pessoa jurídica ou consórcio de empresas, inadmitindo a contratação de pessoa física. Portanto, os bens de tais empresas são bens privados. Só que, quando a concessionária utiliza dos seus bens para prestação de serviços essenciais tais bens devem ser amparados pela Teoria da Aparência adquirindo características próprias dos bens públicos. Um exemplo que pode ser citado é da empresa de transporte coletivo. Os ônibus utilizados para a condução de passageiros não podem ser vendidos pela empresa livremente, a concessionária deve garantir o mínimo indispensável para a locomoção da população, que, na maioria das vezes, é auferido por critérios discricionário do poder judiciário, variando entre 30%[17] a 80%[18].  É coerente que a concessionária pode vender ou ter como objeto de penhora um ou outro bem, o que não pode, de maneira alguma, é a venda absoluta ou constrição completa dos veículos que prestam o serviço de locomoção da coletividade. O que não se pode esquecer é que as prerrogativas, nos casos citados a impenhorabilidade e alienabilidade condicionada, só devem ocorrer enquanto o bem estiver vinculado ao serviço público. Caso a Administração venha adquirir seu próprio veículo para o transporte dos enfermos, ou venha a construir uma sede para escola, ou se ainda a empresa concessionária tiver rescindido ou o contrato tiver vencido, o bem estará livre das prerrogativas próprias dos bens públicos, voltando a ter apenas as prerrogativas privadas que lhe são de direito. Aqui temos o desaparecimento da Teoria da Aparência. No que toca às características públicas que os bens privados adquirem em função da sua utilização ao serviço público, e consequentemente a manifestação da Teoria da Aparência, tais características não podem ser interpretadas, na mesma proporção, que são aplicadas aos bens públicos, uma vez que tais bens continuam sendo bens privados, não perdendo essa característica. Destarte, os bens privados cobertos pelo manto da aparência ao adquirir a característica da alienabilidade condicionada o verdadeiro proprietário, o particular, não pode vender tal bem enquanto este estiver prestando o serviço público, afetado a atividade pública. Pela característica da impenhorabilidade tal bem não pode ser objeto de penhora, interrompendo, com isso, a prestação do serviço público. Os bens privados não adquirem com a manifestação da Teoria da Aparência as outras duas características comuns aos bens públicos: da onerosidade e imprescritibilidade. No que toca à onerosidade não há impedimento que um bem particular aparentemente público seja onerado na execução, só que tal bem não poderá ser penhorado enquanto estiver afetado, prestando o serviço público. No que diz respeito à imprescritibilidade essa não faz sentindo existir, já que para um bem ser usucapido ele tem que ser utilizado por outra pessoa por um lapso de tempo, se isso acontece tal bem não estará servindo a coletividade e por isso não estará amparado pelos efeitos da Teoria da Aparência; o que pode acontecer é a própria Administração usucapir o bem privado, mas para isso ele já estaria afetado ao serviço público. 6- Possíveis limites do direito administrativo à teoria da aparência (Princípio da Legalidade e entendimento jurisprudencial)  Apesar de todo o raciocínio e da maestria da aplicação da Teoria da Aparência aos bens privados quando utilizados pela administração pública, esta não encontra amparo nas normas administrativista, encontrando amparo apenas a partir de conceitos doutrinários e algumas jurisprudências, o que não retira por completo o encanto de tal teoria. No que toca a precária jurisprudência versando sobre o tema, apesar de atrasada, temos algumas que vão de encontro ao aproveitamento da teoria, como podemos analisar: “Execução de sentença. Nomeação de bens à penhora recusada, sem que tenha havido recurso. Devolução da indicação ao credor. Penhora de elevadores. Possibilidade. C.B.T.U. Empresa privada cujos bens podem ser disponibilizados e, portanto, afetados pela penhora, sendo absolutamente infundada o argumento de que, prestando serviço público, os seus bens são impenhoráveis. Recurso manifestamente protelatório. (Agravo de Instrumento n.° 2001.002.11891, Des. Fabrício Bandeira Filho, Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgamento em 01.11.2001). (grifos nosso) Empresa concessionária de serviço público: penhora de seus bens – penhora de dinheiro. 1. As empresas concessionárias de serviço público não têm patrimônio afetado e pode o mesmo sofrer penhora. (…) (Recurso Especial n.° 241683, Rel. Eliana Calmon, Segunda Turma do STJ, julgado em 06.04.2000).” (grifos nosso) Mas como se sabe, jurisprudência tem para todo o gosto e no referido tema não poderia ser diferente. Apesar de, ainda, ser tímida os novos entendimentos jurisprudenciais já estão envergando no sentido de adotar a Teoria da Aparência aos bens privados quando utilizados pelo Estado, mesmo que de forma implícita, vejamos: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. BENS. IMPENHORABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. Cuida-se de Agravo em Recurso Especial interposto contra acórdão que afastou a penhora, no atual estágio do procedimento, uma vez que nem sequer houve a liquidação, além de assentar a impenhorabilidade dos bens de sociedade de economia mista que sejam necessários à continuidade do serviço público. 2. Pretende a recorrente o reconhecimento da impenhorabilidade dos valores depositados em conta-corrente, que, segundo ela, são destinados exclusivamente à execução do serviço público. (…) 4. No que tange à questão da impenhorabilidade dos bens afetados ao serviço público, o julgado recorrido não diverge da orientação do STJ, segundo a qual são impenhoráveis os bens de sociedade de economia mista prestadora de serviço público, desde que destinados à prestação do serviço ou que o ato constritivo possa comprometer a execução da atividade de interesse público (cf. AgRg no REsp 1.070.735/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 18.11.2008; AgRg no REsp 1.075.160/AL, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 10.11.2009; REsp 521.047/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20.11.2003). (…) 6. Recurso Provido”. (AgRg no AREsp 37.545/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 13/04/2012) (grifos nosso) “TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO FISCAL. PÓLO PASSIVO OCUPADO POR CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. PENHORA DE IMÓVEIS. SUBSTITUIÇÃO DE IMÓVEIS POR VEÍCULOS. IMPOSSIBILIDADE. RAZOABILIDADE. ART. 678 DO CPC. 1. A aplicação dos arts. 10, 11 e 15 da Lei n. 6.830/80 e 656 do CPC deve ser feita com razoabilidade, especialmente quando está em jogo a consecução do interesse público primário (transporte), incidindo na espécie o art. 678 do CPC. 2. Por isso, esta Corte Superior vem admitindo a penhora de bens de empresas públicas (em sentido lato) prestadoras de serviço público apenas se estes não estiverem afetados à consecução da atividade-fim (serviço público) ou se, ainda que afetados, a penhora não comprometer o desempenho da atividade. Essa lógica se aplica às empresas privadas que sejam concessionárias ou permissionárias de serviços públicos (como ocorre no caso). Precedentes. 3. O Tribunal de origem, soberano para avaliar o conjunto fático-probatório, considerou que eventual restrição sobre os bens indicados pela agravante comprometeria a prestação do serviço público, o que é suficiente para desautorizar sua penhora. 4. Agravo regimental não provido.” (AgRg no REsp 1070735/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/11/2008, DJe 15/12/2008) (grifos nosso) “PROCESSO CIVIL. BILHETERIA DE EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO – TRANSPORTE PÚBLICO COLETIVO. COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO – METRÔ. PENHORA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA ESTADUAL. POSSIBILIDADE. A receita das bilheterias que não inviabilizam o funcionamento da devedora sociedade de economia mista estadual pode ser objeto de penhora, na falta de vedação legal, e desde que não alcance os próprios bens destinados especificamente ao serviço público prestado, hipótese que é diversa daquela da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, amparada pelo Decreto-lei n. 509/69.” (REsp 343.968/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2002, DJ 04/03/2002, p. 255) (grifos nosso) Pelo simples fato de não ter uma legislação versando sobre o tema a Teoria se esbarra, encontrando um limite, no Princípio da Legalidade, no qual afirma que os atos da administração devem ser seguidos em conformidade com a lei, bem como em alguns antigos julgados e na doutrina administrativista que não se debruça sobre o tema com mais afinco, de forma direta. Eis o grande problema da aplicação da Teoria da Aparência no Direito Administrativo. Só que a teoria deve ser interpretada de maneira ampla, de forma que resolva com magnetismo os eventuais problemas surgidos durante sua aplicação, em especial no que tange a prestação eficaz do serviço público. Deve-se buscar uma exegese de acordo com um conjunto de princípios que regem todo o direito administrativo, qual seja o da Supremacia do Interesse Público, Continuidade do Serviço Público e, principalmente, da Eficiência. No caso teríamos um “conflito de princípios”, de um lado um Princípio da Legalidade e do outro os princípios na busca de uma melhor prestação de serviço público, que atenda a todos continuamente e de maneira eficiente. Qual/quais deles devem/deveriam prevalecer? É para se pensar os novos rumos da jurisprudência e até mesmo da lei no que toca ao tema, uma vez que nos dias atuais o povo clama por serviços de qualidade e de forma eficiente. E como o Direito é uma ciência mutável, passível de transformações a todo instante, não se pode ficar preso à interpretação de único princípio para aplicação de todo um sistema administrativo, que é muito mais amplo do que se possa imaginar. Destarte, a ideia mais coerente é adotar a impenhorabilidade e alienabilidade condicionada aos bens privados quando afetados ao serviço público, unificando a jurisprudência, para que, somente assim, se possa alcançar, mesmo que de forma indireta, os anseios sociais que clamam por uma prestação de serviço público o mais próximo do ideal. Conclusão Como fora discorrido nos tópicos acima, é possível concluir que a Teoria da Aparência se desenvolve quando se encontra uma situação de fato que leve um indivíduo ao equívoco consciente, segundo a ordem geral e normal das coisas e situações, e pela impossibilidade do homem médio em saber que realmente aquilo que era não é.  Isto é, a aparência se dá quando um acontecimento manifestante faz aparecer como real aquilo que é irreal, ou seja, quando não há uma coincidência entre o fenômeno manifestante e a realidade manifestada. É por causa dos acontecimentos cotidianos que tal Teoria não deve ser esquecida quando a Administração utiliza os bens privados para a prestação dos seus serviços. Tais bens para o homem médio são bens públicos, apesar de não serem, de terem apenas aparência pública. É por isso, que tais bens privados adquirem duas características dos bens públicos, a alienabilidade condicionada e a impenhorabilidade. É certo que, em função do Princípio da Supremacia do Interesse Público tudo que a Administração toca se publiciza, por isso, quando ela toca nos bens particulares para a prestação de um serviço essencial esses bens adquirem prerrogativas públicas, eles se tornam aparentemente públicos. Assim a noção de aparência dos bens públicos manifesta a ideia ético-jurídica de um ordenamento que preza pelo coletivo em prol do individual.  Da ideia de um ordenamento jurídico que tem um fundo material de justiça de acordo com a necessidade geral de nosso tempo, de acordo com os anseios de uma coletividade, impendido, com a aplicabilidade da Teoria da Aparência, que os serviços públicos não ocorram ou ocorram sem eficiência. É com a aplicação da Teoria da Aparência aos bens privados quando utilizados pela Administração que conseguiremos, em linhas tênues, uma maior eficiência na prestação dos serviços públicos, uma vez que com mais prerrogativas teremos em menor proporção a descontinuidade do serviço público e consequentemente a satisfação dos anseios sociais.
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Apontamentos ao Exercício da Polícia Sanitária: Ponderações sobre a Polícia Administrativa
O objetivo do artigo científico está assentado em discorrer acerca do poder de polícia sanitária, bem como seus aspectos caracterizadores e premissas de atuação. Cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. A partir de tais ideários, a pesquisa desenvolvida está assentada no método de revisão bibliográfica, conjugado, no decorrer do artigo, da legislação nacional pertinente, com vistas a esmiuçar os requisitos enumerados.
Direito Administrativo
1 Poder de Polícia: Ponderações Introdutórias Em sede de comentários introdutórios, cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; “o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público”[1]. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Neste sedimento, tal como dito acima, em que pese a inexistência de expressa menção do postulado em comento pelo texto constitucional, é impende destacar, com o realce que o tema carece, que “as atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público”[2].  Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. Ao lado do exposto, a locução poder de polícia abarca dois sentidos, um amplo e um estrito. Em uma acepção ampla, poder de polícia assume significação de toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Especial relevância assume a função do Poder Legislativo incumbido do ius novum uma vez que apenas as leis, organicamente consideradas, têm o condão de delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. Trata-se, pois, de reafirmação do corolário da legalidade, expressamente consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[3]. Em uma fisionomia mais estrita, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que materializa verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. Substancializa, dessa maneira, atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores cominam a disciplina e as restrições aos direitos. Neste sentido, Celso de Mello explicita que: “A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa[4].” À luz das ponderações aventadas, com espeque na concepção de José dos Santos Carvalho Filho[5], o poder de polícia materializa a prerrogativa de direito público que, assentada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade. Segundo Celso de Mello[6], o poder de policia, em uma conotação mais restrita e assentada em função precípua administrativa, materializa atividade da Administração Pública, sendo expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com arrimo em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, por meio de ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, cominando coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere), com o escopo de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo em vigor.  Trata-se, em linhas conceituais, do modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por escopo evitar que sejam produzidos, ampliados ou generalizados os danos sociais que os diplomas legais procuram prevenir. No que tange ao benefício resultante do poder de polícia, materializa fundamento dessa prerrogativa do Poder Público o interesse público. Logo, a intervenção do Estado no conteúdo dos direitos individuais somente encontra amparo ante a finalidade que deve sempre orientar a ação dos administradores públicos, qual seja: o interesse da coletividade. Noutro ângulo, a prerrogativa em si está alicerçada na supremacia geral da Administração Pública, ou seja, aquela mantida em relação aos administrados, de modo indistinto, flagrante superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos poderes do Estado, interesses públicos. No que pertine à finalidade, salta aos olhos que o poder de polícia objetiva promover a proteção dos interesses coletivos, o que explicita umbilical conotação como próprio fundamento do poder, ou seja, se o interesse público é o axioma inspirador da atuação restritiva do Estado, há de constituir alvo dela a proteção do mesmo interesse. Cuida anotar que este deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando todo e qualquer aspecto. Em sede de âmbito de incidência, cuida reconhecer que é bastante amplo o círculo em que se pode fazer presente o poder de polícia. Em tal alamiré, qualquer ramo de atividade que possa contemplar a presença do indivíduo possibilita a intervenção restritiva do Estado. Em outros termos, não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas, ao reverso, deverão estar subordinados aos interesses coletivos. Daí é possível dizer que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, eis que se sujeitam às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público. “É esse o motivo pelo qual se faz menção à polícia de construções, à polícia sanitária, à polícia de trânsito e de tráfego, à polícia de profissões, à polícia do meio ambiente”[7]. Em todos esses segmentos aparece o Estado, em sua atuação restritiva de polícia, com o escopo de assegurar a preservação do interesse público. 2 Competência do Poder de Polícia A competência para exercer o poder de polícia é, em um primeiro momento, da pessoa federativa à qual a Constituição Federal conferiu o poder de regular a matéria. Com destaque, os assuntos concernentes ao interesse nacional ficam sujeitas à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional estão condicionadas às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local estão subordinados aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal. Com destaque, o sistema de competências constitucionais é responsável por afixar as linhas básicas do poder de regulamentação das pessoas federativas, não sendo, entretanto, possível esquecer que as hipóteses de poder concorrente ensejarão o exercício conjunto do poder de polícia por pessoas de nível federativo diverso, consoante se extrai dos artigos 22, parágrafo único, 23 e 24 da Constituição Federal[8]. Carvalho Filho[9] explicita que será inválido o ato de polícia praticado por agente de pessoa federativa que não tenha competência constitucional para regular a matéria e, portanto, para impor a restrição. Igualmente, só pode ter-se por legítimo o exercício de atividade administrativa materializadora do poder de polícia se a lei em que estiver calcada a conduta da Administração encontrar guarida no Texto Maior. Caso a lei seja inconstitucional, os atos administrativos, que com fundamento nela sejam praticados, serão considerados ilegítimos, caso sejam voltadas a uma pretensa tutela do interesse público, substancializada no exercício do poder de polícia. Destarte, conclui-se que só há poder de polícia legítimo se legítima for a lei que o sustenta. Ao lado disso, imprescindível faz-se anotar que, como o sistema de partilha de competências constitucionais envolve três patamares federativos – o federal, o estadual e o municipal -, e tendo em vista o contraste de competências privativas e concorrentes, salta aos olhos que, dada a complexidade da matéria, comumente surgem hesitações na doutrina e nos Tribunais quanto à entidade competente para a execução de certo serviço ou para o exercício do poder de polícia. Com o escopo de fortalecer o acimado, cuida transcrever o paradigmático entendimento: “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Distrital N. 3.460. Instituição do programa de inspeção e manutenção de veículos em uso no âmbito do Distrito Federal. Alegação de violação do disposto no artigo 22, inciso XI, da Constituição do Brasil. Inocorrência. 1. O ato normativo impugnado não dispõe sobre trânsito ao criar serviços públicos necessários à proteção do meio ambiente por meio do controle de gases poluentes emitidos pela frota de veículos do Distrito Federal. A alegação do requerente de afronta ao disposto no artigo 22, XI, da Constituição do Brasil não procede. 2. A lei distrital apenas regula como o Distrito Federal cumprirá o dever-poder que lhe incumbe — proteção ao meio ambiente. 3. O DF possui competência para implementar medidas de proteção ao meio ambiente, fazendo-o nos termos do disposto no artigo 23, VI, da CB/88. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 3.338/ Relator:  Ministro Joaquim Barbosa/ Relator p/ Acórdão:  Ministro Eros Grau/ Julgado em 31.08.2005/ Publicado no DJe em 05.09.2007).” À luz do exposto, incumbe ao intérprete promover detida análise da hipótese concreta, buscando estabelecer uma adequação pertinente ao sistema estabelecido no Texto Constitucional. Oportunamente, convém explicitar que o poder de polícia, sendo atividade que, em algumas hipóteses, acarreta competência concorrente entre pessoas federativas, enseja sua execução em sistema de cooperação calcado no regime de gestão associada, encontrando respaldo no artigo 241 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[10]. Ao lado disso, em tais hipóteses, os entes federativos interessados firmarão convênios administrativos e consórcios públicos destinados ao atendimento dos objetivos do interesse comum. 3 Poder de Polícia Originário e Delegado Ao se empregar o princípio de que quem pode o mais pode o menos, é viável atribuir às pessoas políticas da federação o exercício do poder de polícia, porquanto se lhes compete editar as próprias leis limitadoras, conferindo a coerência propicia e permitindo, em decorrência, o poder de esmiuçar as restrições. Trata-se, aqui, do poder de polícia originário, que alcança, em sentido amplo, as leis e os atos administrativos provenientes de tais pessoas. Entrementes, o Estado não age somente por seus agentes e órgãos, eis que varias atividades e serviços públicos são executados por pessoas vinculadas àquele. Neste aspecto, repousa o questionamento quando tais pessoas terão idoneidade para o exercício do poder de polícia. Ora, ao se perfilhar ao entendimento apresentado por Carvalho Filho[11], salta aos olhos que tais entidades são o prolongamento do Estado e recebem deste o suporte jurídico para o desempenho, por delegação, de funções públicas a ele cometidas. É indispensável, entretanto, para a validade dessa atuação é que a delegação seja feita por meio de lei formal, originaria da função regular do legislativo. Ao lado disso, é denotável, ainda, que a existência da lei é o pressuposto de validade da polícia administrativa exercida pela própria Administração Direta e, dessa forma, nada impediria que servisse também como respaldo da atuação de entidades paraestatais, ainda que elas sejam dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Neste quadrante, o importante é que haja expressa delegação a lei pertinente e que o delegatário seja entidade integrante da Administração Pública. Ao lado disso, é possível, ainda, colacionar o entendimento jurisprudencial no sentido que: “Ementa: Administrativo e Processual Civil. Conselho Regional de Enfermagem. Ação civil pública. Pretensão de obrigar hospital a contratar e manter profissional de enfermagem. Exercício das funções de polícia administrativa. Princípio da inafastabilidade da jurisdição. Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Interesse processual. Utilidade e necessidade. Caracterização. 1. O fato de os estabelecimentos hospitalares cuja atividade básica seja a prática da medicina não estarem sujeitos a registro perante o Conselho de Enfermagem não constitui impeditivo a que sejam submetidos à fiscalização pelo referido órgão quanto à regularidade da situação dos profissionais de enfermagem que ali atuam. Porém, mesmo reconhecendo o poder de polícia administrativa ao Conselho de Enfermagem, este não afasta a utilidade-adequação da presente ação civil pública. 2. Revestido ou não de prerrogativa executória aos atos administrativos das autarquias de fiscalização, estas e qualquer das partes é dado recorrer à tutela jurisdicional, porque assim dispõe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que  pode ser extraído do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 3. Na espécie, nota-se que as condições da ação estão presentes. O interesse processual, única condição em destaque, é composto pelo binômio utilidade-necessidade do provimento. A utilidade pode ser facilmente demonstrada pela necessidade de ordem judicial para a obrigar o hospital recorrido a contratar e manter durante todo o período de seu funcionamento profissionais de enfermagem. Por outro lado, a caracterização da necessidade pode ser extraída dos princípios da jurisdição, especialmente, a imparcialidade e a definitividade. 4. Na esfera administrativa dos conselhos profissionais a relação processual não possui a característica da imparcialidade bem definida, até porque o Conselho de fiscalização ocupa, também, a função de "julgador". Ademais, as decisões proferidas nesta seara não ostentam caráter definitivo, imutabilidade, presente apenas nos provimentos jurisdicionais. Dessa forma, pode a administração buscar no Poder Judiciário que o Estado-Juiz, dentro da relação processual, promova a solução definitiva da controvérsia, atento às alegações de cada parte. […]. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.398.334/SE/ Relator: Ministro Mauro Campbell Marques/ Julgado em 17.10.2013/ Publicado no DJe em 24.10.2013) Ementa: Processual Civil. Execução Fiscal. Conselho de fiscalização profissional. Autarquia. Fazenda Pública. Representante Judicial. Intimação Pessoal. Prerrogativa prevista no art. 25 da Lei 6.830/1980. […] 5. O STF já decidiu que os conselhos de fiscalização profissionais possuem natureza jurídica autárquica, a qual é compatível com o poder de polícia e com a capacidade ativa tributária, funções atribuídas, por lei, a essas entidades (ADI 1.717 MC, Relator: Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 25.2.2000). 6. A Lei 6.530/1978, que regulamenta a profissão de corretor de imóveis e disciplina seus órgãos de fiscalização, dispõe, em seu art. 5°, que o Conselho Federal e os Conselhos Regionais são autarquias, dotadas de personalidade jurídica de direito público, vinculadas ao Ministério do Trabalho, com autonomia administrativa, operacional e financeira. 7. Em razão de os conselhos de fiscalização profissional terem a natureza jurídica de autarquia, seus representantes judiciais possuem a prerrogativa de, em Execução Fiscal, serem intimados pessoalmente, conforme impõe o art. 25 da Lei 6.830/1980. […] (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.330.190/SP/ Relator: Ministro Herman Benjamin/ Julgado em 11.12.2012/ Publicado no DJe em 19.12.2012).” Para tanto, concretamente, é necessário verificar o preenchimento de três condições: (i) a pessoa jurídica deve integrar a estrutura da Administração Indireta, isso porque sempre poderá ter a seu cargo a prestação de serviço; (ii) a competência delegada deve ter sido estabelecida por lei; e (iii) o poder de polícia há de restringir-se à prática de atos de natureza fiscalizatória, partindo-se do primado que as restrições preexistem e de que se cuida de função executória e não inovadora. No exercício da função delegada, os atos praticados são caracterizados como administrativos, não materializando nenhuma novidade em sede de direito administrativo. 4 Polícia Administrativa e Polícia Judiciária Ao examinar o tema central do presente, o poder de polícia, doutrinariamente, costuma ser dividido em dois segmentos distintos, quais sejam: a polícia administrativa e a polícia judiciária. Antes de traçar a linha diferencial entre cada um desses setores, impende anotar que ambos se enquadram na órbita da função administrativa, materializando atividades de gestão de interesses públicos. Em tal aspecto, a polícia administrativa consiste em atividade da Administração que se exaure em si mesma, isto é, inicia e se completa no âmbito da função administrativa. Contudo, o mesmo não é verificado com a polícia judiciária, que, conquanto seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional, o que a faz norteada pela Legislação Processual Penal e executada por órgãos de segurança, compreendendo a polícia civil e a polícia militar, ao passo que a polícia administrativa é exercida por órgãos administrativos de caráter mais fiscalizador. Em mesmo sentido, oportunamente, Celso de Mello, em seu escólio, explicita ainda que: “Costuma-se, mesmo, afirmar que se distingue a polícia administrativa da polícia judiciária com base no caráter preventivo do primeiro e repressivo da segunda. Esta última seria a atividade desenvolvida por organismo – o da polícia de segurança – que cumularia funções próprias da polícia administrativa com a função de reprimir a atividade dos delinquentes através da instrução policial criminal e captura dos infratores da lei penal, atividades que qualificariam a polícia judiciária. Seu traço característico seria o cunho repressivo, em oposição ao preventivo, tipificador da polícia administrativa[12].” Outra diferença repousa na circunstância de que a polícia administrativa incide essencialmente sobre atividades dos indivíduos, ao passo que a polícia judiciária preordena-se ao indivíduo em si, ou seja, aquele a quem se atribui o cometimento de ilícito penal. Dessa maneira, pretendo evitar a ocorrência de comportamentos nocivos à coletividade, reveste-se a polícia administrativa de caráter eminentemente preventivo: pretende a Administração que o dano social sequer logre êxito em ser consumado. Já a polícia judiciária tem natureza predominantemente repressiva, porquanto é destinada à responsabilidade penal do indivíduo[13]. Celso de Mello[14], em magistério, explicita que o que efetivamente diferencia a polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades antissociais, ao passo que a segunda preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica. Tal distinção, porém, não pode ser considerada como absoluta, eis que os agentes da polícia administrativa também agem repressivamente, quando, a título de exemplificação, interditam um estabelecimento comercial ou apreendem bens obtidos por meios ilícitos. Doutro vértice, os agentes de segurança têm a incumbência, comumente, de atuar de forma preventiva, para o fim de ser evitado o cometimento de delitos. 5 Atuação da Administração Pública 5.1 Atos Normativos e Concretos No exercício da atividade de polícia, a Administração pode atuar de duas formas. Primeiramente, pode editar atos normativos, os quais têm como característica o seu conteúdo genérico, abstrato e impessoal, qualificando-se, por consequência, como atos dotados de amplo círculo de abrangência. Em tais situações, as restrições são materializadas por meio de decretos, regulamentos, portarias, resoluções, instruções e outros de conteúdo igual. Além desse, pode criar, ainda, atos concretos, estes preordenados a determinados indivíduos plenamente identificados, como são, exemplificativamente, os estabelecidos por atos sancionatorios, como a multa, e por atos de consentimentos, como as licenças ou autorizações. Caso o Poder Público pretende regular determinada matéria, tal como o desempenho de profissão ou edificações, deverá editar atos normativos. Contudo, quando interdita um estabelecimento ou concede autorização para porte de arma, pratica atos concretos. 5.2 Determinações e Consentimentos Estatais Os nomeados atos de polícia possuem, no que toca ao objeto que visam, dupla qualificação, a saber: ou materializam determinações de ordem pública ou substancializam consentimentos dispensados aos indivíduos. “O Poder Público estabelece determinações quando a vontade administrativa se apresenta impositiva, de modo a gerar deveres e obrigações aos indivíduos, não podendo estes se eximir de cumpri-los”[15]. Neste jaez, os consentimentos personificam a resposta positiva da Administração Pública aos pedidos formulados por indivíduos interessados em exercer determinada atividade, que careça do mencionado consentimento para ser considerada legítima. Em tal quadrante, a polícia administrativa resulta de verificação que fazem os órgãos competentes sobre a existência ou inexistência de normas restritivas e condicionadas, relativas à atividade pretendida pelo administrado. Aludidos atos de consentimento são as licenças e as autorizações. A primeira espécie são atos vinculados e, como regra, definitivos, ao passo que a segunda espécie reflete atos discricionários e precários. Instrumentos formais de tais atos são os alvarás, porém documentos distintos podem formalizá-los, a exemplo de carteiras, declarações, certificados e outros congêneres que tenham idêntica finalidade. Concretamente, cuida explicitar que o importante é o consentimento exprimido pela Administração. Sem embargos, insta pontuar que a Administração, de maneira equivocada, tenta, ocasionalmente, cobrar taxas de renovação de licença por suposto exercício de poder de polícia em atividade de fiscalização. Ademais, cuida anotar que tal conduta é revestida de ilegalidade, porquanto somente em que a Administração atua efetivamente do poder de polícia é que encontra respaldo a cobrança de taxa. Nesta esteira, ainda, órgãos e entidades que prestam serviços públicos por delegação sujeitam-se ao poder de ordenamento municipal quanto à localização de seus estabelecimentos. É carecido, portanto, que se sujeitem ao poder de polícia municipal e que obtenham a necessária licença para instalação. Isso ocorre com os cartórios notariais ou de registro, que, conquanto estejam sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário, só podem instalar-se legitimamente mediante a expedição de alvará de licença. 5.3 Atos de Fiscalização Não adiantaria deter o Estado o poder de impor restrições aos indivíduos se não dispusesse dos instrumentos necessários à fiscalização da conduta destes. Assim, o poder de polícia vindica do Poder Público uma atuação de agentes fiscalizadores da conduta dos indivíduos. A fiscalização apresenta duplo aspecto, qual seja: um preventivo, por meio do qual os agentes da Administração procuram obstar um dano social, e um repressivo, que, em face da transgressão da norma de polícia, redunda no emprego de uma sanção. Neste último caso, é inevitável que a Administração, deparando a conduta ilegal do administrado, comina-lhe alguma obrigação de fazer ou não fazer. 6 Características do Poder de Polícia 6.1 Discricionariedade e Vinculação No que concerne à caracterização do poder de polícia, cuida reconhecer que subsiste alguma discussão se é discricionário ou vinculado. Quando tem a legislação em vigência, a Administração pode estabelecer a área de atividade em que vai aplicar a restrição em favor do interesse público e, depois de escolhê-la, o conteúdo e a dimensão das limitações. Em tal situação, é forçoso o reconhecimento de que a Administração age no exercício do seu poder discricionário. Ademais, cuida salientar que é nessa valoração do órgão administrativo sobre a conveniência e a oportunidade da transferência que está a discricionariedade do poder de polícia. Assim, evidentemente, o que é vedado à Administração é o abuso do poder de polícia, algumas vezes processado por excesso de poder ou por desvio de finalidade. Celso Mello, em seus ensinamentos, preleciona ainda que: “Em rigor, no Estado de Direito inexiste um poder, propriamente dito, que seja discricionário fruível pela Administração Pública. Há, isto sim, atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Poder discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação administrativa é coisa que não existe[16].” O reverso ocorre quando já está fixada a dimensão da limitação, sendo que a Administração terá de cingir-se a essa dimensão, não podendo, contudo, sem alteração da norma restritiva, ampliá-la em detrimento dos indivíduos. Em tal cenário, a atuação, por via de consequência, estará caracterizada como vinculada. Carvalho Filho[17] esclarece que a doutrina tem dado ênfase, com cores quentes e sublinhados fortes, à necessidade do controle dos atos de polícia, mesmo que se trate de determinados aspectos, pelo Poder Judiciário. Há que se anotar que aludido controle inclui os atos decorrentes do poder discricionário para evitar-se o cometimento de excessos ou violências da Administração em face de direitos individuais. Ao lado disso, o que é vedado ao Judiciário é sua atuação como substituto do administrador, porquanto, em tal cenário, estaria invadindo funções que constitucionalmente não lhes foram atribuída. 6.2 Autoexecutoriedade A Administração pode tomar as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, cominando, desde logo, obrigações aos particulares, com o escopo de atender ao interesse coletivo. Assim, diante de tal primado, não pode a Administração ficar à mercê do consentimento dos particulares. Em situação distinta, cumpre-lhe agir de imediato. “A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a autoexecutoriedade”[18]. Ao lado disso, tanto é autoexecutório a restrição cominada em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao individuo, quando, à guisa de citação, comete transgressões administrativas. O sentido da autoexecutoriedade repousa na premissa de que, uma vez verificada a presença dos pressupostos legais, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Ao exemplificar, Celso de Mello esclarece, oportunamente que: “Assim, uma ordem para dissolução de comício ou passeata, quando estes sejam perturbadores da tranquilidade pública, será coativamente assegurada pelos órgãos administrativos. Estes se dispensam de obter uma declaração preliminar do Judiciário, seja para declaração do caráter turbulento do comício ou da passeata, seja para determinar sua dissolução. A interrupção de um espetáculo teatral, por obsceno, será procedida do mesmo modo, pela Administração Pública, sem que esta obtenha prévia declaração judicial reconhecendo e autorizando a paralisação da exibição teatral. A apreensão de gêneros alimentícios impróprios para o consumo, por deteriorados ou insalubres, também é medida coativa passível de ser posta em prática pelo Executivo, sem recurso às vias judiciárias, tão logo constate a irregularidade[19].” Outro ponto que merece ser considerado faz alusão à autoexecutoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a legislação autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata. Assim, acertada é a decisão segundo a qual, no exercício do poder de polícia administrativa, não depende a Administração da intervenção de outro poder para torná-lo efetivo. Quando a lei estabelece o exercício do poder de polícia com autoexecutoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira está assentada no fato de que existem atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, a exemplo do que ocorre com as multas, cuja cobrança só é efetivamente materializada pela ação própria na via judicial. A outra repousa no ideário de que a autoexecutoriedade não deve integralizar objeto do abuso de poder, de maneira que deverá a prerrogativa guardar compatibilidade com o princípio do devido processo legal para o fito de ser a Administração Pública obrigada a respeitar as normas legais. 6.3 Coercibilidade A característica em comento explicita o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia, porquanto, como é natural, a polícia administrativa não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Destarte, se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperi estatal, há de ser desempenhada de maneira a obrigar todos a observarem os seus comandos. Oportunamente, urge explicitar que é intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de empregar a força, quando necessária para vencer eventual recalcitrância. Celso de Mello[20], em seu escólio, oportunamente, frisa que é natural que seja na seara do poder de polícia que se manifesta de modo frequente o exercício da coação administrativa, pois os interesses coletivos defendidos frequentemente não poderiam, para assegurar a eficaz proteção, depender das demoras advindas do procedimento judicial. Ora, tal situação renderia ensejo ao perecimento dos valores sociais resguardados por meio de polícia, observadas, evidentemente, porém, as garantias individuais do cidadão constitucionalmente estabelecidas. 7 Sanções de Polícia Sobre o tema ainda, cuida elucidar que a sanção administrativa materializa ato punitivo que o ordenamento jurídico prevê como resultado de uma infração administrativa, passível de ser aplicado por órgãos da Administração.  Por seu turno, a infração administrativa resta configurada como comportamento típico, antijurídico e reprovável idôneo a ensejar a aplicação da sanção administrativa, no desempenho de função administrativa. Mais que isso, se a sanção é o resultado do exercício do poder de polícia, será qualificada tal reprimenda como sanção de polícia. “O primeiro a ser considerado no tocante às sanções de polícia consiste na necessidade observância do princípio da legalidade”[21]. Assim, é possível explicitar que apenas a lei pode instituir tais sanções com a alusão do rol de condutas que possam materializar infrações administrativas. Logo, atos administrativos subsidiam apenas meio de possibilitar a execução da norma legal sancionatória, mas não podem, por si mesmos, dar origens a apenações, ainda que seja em âmbito administrativo. Acerca das ponderações aventadas, o Supremo Tribunal Federal, em paradigmático julgado, explicitou robusto entendimento que: “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigos 5º, 8º, 9º, 10, 13, § lº, e 14 da Portaria nº 113, de 25.09.97, do IBAMA. Normas por meio das quais a autarquia, sem lei que o autorizasse, instituiu taxa para registro de pessoas físicas e jurídicas no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, e estabeleceu sanções para a hipótese de inobservância de requisitos impostos aos contribuintes, com ofensa ao princípio da legalidade estrita que disciplina, não apenas o direito de exigir tributo, mas também o direito de punir. Plausibilidade dos fundamentos do pedido, aliada à conveniência de pronta suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados. Cautelar deferida. (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 1.823 MC/ Relator:  Ministro Ilmar Galvão/ Julgad em 30.04.2008/ Publicado no DJ em 16.10.1998).” Há que se anotar, oportunamente, que as sanções refletem a atividade repressiva advinda do poder de polícia. Com efeito, estão elas substancializadas nas diversas leis que norteiam atividades sujeitas a esse poder, sendo inclusive possível citar a multa, a inutilização de bens privados, a interdição de atividade, o embargo da obra, a cassação de patentes, a proibição de fabricar produtos. Na verdade, são sanções todos os atos que representam a punição aplicada pela Administração pela transgressão de normas de poder de polícia. Sobre o tema, inclusive, é possível colacionar o entendimento jurisprudencial, apresentado pelo Tribunal de Justiça Gaúcho, que acena: “Ementa: Execução. Termo de ajustamento de conduta. Obrigação de fazer. Interdição de estabelecimento. Oficina mecânica e chapeamento. Licença. […] Aliás, a interdição de estabelecimento clandestino é sanção administrativa que deve ser aplicada pela Administração Pública. […]. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Vigésima Segunda Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº 70060813789/ Relatora: Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza/ Julgado em 28.07.2014).” Contemporaneamente, tem sido feita a distinção entre sanções de polícia e medidas de polícia. As sanções são aquelas que refletem uma punição efetivamente aplicada à pessoa que houver infringido à norma administrativa, ao passo que as medidas de polícia são as providências de cunho administrativo que, conquanto não representem punição direta, decorrem do cometimento de infração ou do risco em que esta seja praticada. Em algumas situações, a mesma conduta administrativa pode materializar como uma ou outra modalidade, sempre considerando o que a legislação tenha previsto para enfrentar a referida situação. A título de fortalecimento do expendido, é possível citar a interdição do estabelecimento, eis que tanto pode materializar ato punitivo direto pela prática de infração grave, como pode ser medida administrativa, adotada em razão de cometimento de infração para a qual a lei previu sanção direta. Não se deve olvidar, ainda, que as sanções devem ser aplicadas em observância ao devido processo legal, a fim de assegurar a observância do princípio da garantia de defesa aos acusados, supedaneado no artigo 5º, incisos LIV e LV, do Texto Constitucional[22]. Dessa maneira, caso o ato sancionatório de polícia não tiver propiciado ao infrator a oportunidade de rechaçar a acusação e de produzir provas necessárias às suas alegações, estará contaminado de vício de legalidade, devendo, portanto, ser sanado na via administrativa ou judicial. Ao lado disso, insta pontuar que, como se trata de processo acusatório, imprescindível faz-se o reconhecimento da incidência, por analogia, de alguns princípios norteadores do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça já assentou entendimento que: “Ementa: Agravos regimentais. Recurso especial. Administrativo e Processo Civil. Súmula 284/STF. Não incidência no caso. Devido processo legal. Lei nº 9.784/99. Matéria infraconstitucional. Servidor público. Supressão de adicional. Ausência de ampla defesa e contraditório. Ilegalidade. Precedentes. […] 2. Conforme reiterados precedentes do Supremo Tribunal Federal, a análise de suposta violação do devido processo legal, quando dependente do prévio exame de normas infraconstitucionais, envolve ofensa apenas reflexa ao texto constitucional. 3. É pacífico o entendimento desta Corte Superior de Justiça de que todo ato administrativo que repercuta na esfera individual do administrado, no caso, servidor público, tem de ser precedido de processo administrativo que assegure a este o contraditório e a ampla defesa. Trata-se de mitigação do enunciado da Súmula 473/STF, com intuito de conferir segurança jurídica ao administrado, bem como resguardar direitos conquistados por este. […] (Superior Tribunal de Justiça – Sexta Turma/ AgRg no REsp 1.131.928/RS/ Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura/ Julgado em 10.04.2012/ Publicado no DJe em 23.04.2012). Ementa: Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental. Pensão de servidor público. Ilegalidade. Autotutela. Supressão dos proventos. Devido processo legal. Ampla defesa e contraditório. Obrigatoriedade. Precedentes do STJ. 1. Esta Corte Superior, de fato, perfilha entendimento no sentido de que a Administração, à luz do princípio da autotutela, tem o poder de rever e anular seus próprios atos, quando detectada a sua ilegalidade. 2. Todavia, quando os referidos atos implicarem invasão da esfera jurídica dos interesses individuais de seus administrados, é obrigatória a instauração de prévio processo administrativo, no qual seja observado o devido processo legal e os corolários da ampla defesa e do contraditório. 3. Agravo regimental não provido. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ AgRg no REsp 1.253.044/RS/ Relator: Ministro Mauro Campbell Marques/ Julgado em 20.03.2012/ Publicado no DJe em 26.03.2012).” Em órbita da esfera da Administração Pública federal, direta ou indireta, a ação punitiva, quando se tratar do exercício do poder de polícia, prescreve em cinco anos, contados da data da prática do ato ou, em se tratando de infração permanente ou continuada, do dia em que estiver cessado. Contudo, caso o fato subsuma crime, o prazo prescricional será o mesmo atribuído pela legislação penal pertinente. Com efeito, a Lei nº 9.873, de 23 de Novembro de 1999[23], que estabelece o prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta e dá outras providências, comina prazo contra o Poder Público e a favor do infrator, de maneira que, consumada, fica este garantido contra qualquer sanção de polícia a cargo da Administração. “A prescrição incide também sobre procedimentos administrativos paralisados por mais de três anos na hipótese em que se aguarda despacho ou julgamento da autoridade administrativa”[24]. Oportunamente, o processo deverá ser arquivado de ofício ou a requerimento do interessado, porém caberá à Administração apurar a responsabilidade funcional do agente pela omissão no sobredito prazo[25]. No caso de sanções de polícia, obtemperar faz-se oportuno que a prescrição da ação punitiva da Administrativa se interrompe: a) pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital; b) por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato; c) pela decisão condenatória recorrível; d) por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal. Ademais consoante o artigo 5º da legislação em comento[26], a prescrição regulada pelo diploma em comento tem incidência específica para as infrações relacionadas ao poder de polícia, sendo, por conseguinte, inaplicável em processos administrativos funcionais e de natureza tributária. 8 Apontamentos ao Exercício da Polícia Sanitária: Ponderações sobre a Polícia Administrativa Tecidos os comentários gerais acerca do poder de polícia, ao analisar o exercício da polícia sanitária, impende realçar que o campo de atuação daquela é imensurável. Hely Lopes Meirelles[27], ao esmiuçar a polícia sanitária, explicita, oportunamente, que aquela possui um elastério muito amplo e necessário à adoção de um conjunto normativo e medidas específicas, vindicadas por situações de perigo presente ou futuro que lesem ou ameacem lesar a saúde e a segurança dos indivíduos e da comunidade. Em decorrência de tal aspecto, o Poder Público goza de largo discricionarismo na escolha e imposição das limitações de higiene e segurança, em prol da defesa da população. No sistema constitucional brasileiro, os assuntos pertinentes à saúde e à assistência pública ficam condicionados à tríplice regulamentação federal, estadual e municipal, eis que se trata de interesses simultaneamente a todas as entidades estatais. Neste diapasão, as normas gerais de defesa e proteção da saúde substancializam as prescrições federais impostas tanto à União como ao Distrito Federal, Estados-membros e Municípios, visando orientar a polícia sanitária nacional, em um sentido unitário e pautada na coesão, a fim de possibilitar a ação conjugada e uniforme de todas as entidades estatais em prol da salubridade pública. “A generalidade da norma não é a do conteúdo da regra, mas a da sua extensão espacial”[28]. Sem embargo, inexiste obstáculo à União, ao editar normas sanitárias gerais, para que: especifique providências e medidas higiênicas e profiláticas; especialize métodos preventivos e curativos; imponha ou proíba o uso de determinados medicamentos ou substâncias medicinais; fiscalize a fabricação, importação e distribuição de produtos e insumos que coloquem em xeque a saúde da comunidade; estabeleça determinado processo de saneamento ou exija requisitos mínimos de salubridade para as edificações e demais atividades que se vinculem à higiene e segurança das populações. Com efeito, encontra justificativa, oportunamente, a competência predominante da União em temas referentes à higiene e à saúde pública, porquanto, na contemporaneidade, não há moléstia ou doença que esteja restrita apenas a determinada região ou cidade, em decorrência dos rápidos meios de transporte. Ainda em relação ao tema, quadra esclarecer que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária foi criada como entidade executiva do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, estando, pois, vinculada ao Ministério da Saúde. Neste talvegue, insta sublinhar que o escopo básico da agência supramencionada repousa na proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, abarcando, inclusive, os ambientes, os processos, os insumos e as tecnologias a eles adstritos, tal como o controle de portos, aeroportos e fronteiras. Denota-se, desta feita, que a competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária é extensa e para a concreção de seu exercício dispõe de amplo poder de polícia para autorizar e interditar o funcionamento de empresas; anuir ou proibir a importação e exportação de produtos; fiscalizar laboratórios de serviços de apoio diagnóstico; monitorar a evolução dos preços de medicamentos e serviços de saúde, além de várias outras atividades relacionadas com a proteção da saúde da população. “A Agência possui inclusive poderes normativos, especialmente nas áreas técnicas, que exigem conhecimento especializado da matéria”[29]. Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária estabelecer padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam risco à saúde. É oportuno anotar que a Agência foi criada como autarquia sob regime especial, dispondo de independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira, integrando o rol de agências reguladoras que vêm sendo instituídas pela União para a regulamentação e a fiscalização de serviços públicos e atividades de interesse coletivo. Em sede de polícia sanitária, há que reconhecer que a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no cenário existente, substancializou inegável progresso para o desempenho do poder de polícia da União. A abertura da importação de medicamentos e outros produtos destinados ao consumo da população, a introdução de novas tecnologias e produtos cujas consequências no futuro ainda são desconhecidas, a proliferação de serviços de saúde como negócios lucrativos, todo este leque, acompanhado de enorme pressão publicitária, colocava em risco a saúde da população brasileira, rendendo ensejo à constituição de uma entidade administrativa independente para promover a regulamentação e fiscalização da área.
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Inclusão de pessoas com deficiência na administração pública
Este trabalho tem como meta analisar questões práticas envolvendo o ativismo judicial e o papel do Ministério Público na concretização das políticas públicas.[1]
Direito Administrativo
Introdução O Direito do Trabalho possui alguns princípios que são verdadeiras linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram, direta ou indiretamente, uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver casos não previstos. Os arts. 7º e 8º da CF/88, que relacionam os direitos fundamentais do trabalhador, ditam alguns princípios constitucionais de relevo. Um dos principais é o da não discriminação, que proíbe diferença de critério de admissão, de exercício de funções e salário por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7º, XXX), ou de critério de admissão e de salário em razão de deficiência física (art. 7º, XXXI) e, bem assim, que se distinga, na aplicação das normas gerais, entre os respectivos profissionais (art. 7º, XXXII). Esse princípio, consagrado pelo Direito Internacional, deve, entretanto, ser aplicado tendo em conta que não fere a isonomia tratar-se desigualmente situações desiguais. Não há dúvidas de que a vedação à discriminação está intrinsecamente ligada ao princípio cardeal da dignidade humana, tal qual previsto no art. 1º, inciso III da CF/88. Desse modo, cabe ao Estado e a toda a sociedade zelar pela sua efetividade. Sendo assim, à Administração Pública também incumbe o papel crucial de admitir em seus quadros servidores que sejam pessoas com deficiência (PCDs), uma vez que o legislador constitucional previu claramente a proibição de discriminação de qualquer espécie. Nos últimos anos tem-se visto algumas discussões a respeito da inclusão das PCDs no mercado de trabalho, e em especial, no âmbito do serviço público. Além do que a Carta da República estabeleceu claramente uma política de inclusão de PCDs no serviço público, prevendo, em seu art. 37, VIII, que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Nesse diapasão, em julgamento paradigmático, o Supremo Tribunal Federal, no RE n. 676.335/MG, conforme se vê do voto da Ministra Relatora Carmen Lúcia, consignou acerca da obrigatoriedade da destinação de vagas em concurso público às PCDs, nos termos do inc. VIII do art. 37 da Constituição.  De fato, em algumas situações bem subjetivas e específicas, é possível que determinada PCD possa ser qualificada como “inapta” para o exercício de determinados cargos, sob pena de violação ao próprio princípio constitucional da eficiência. Contudo, ao nosso ver, a análise de tal situação deverá se dar não de forma “apriorística”, e sim, de acordo com o caso concreto. Essa é realmente uma das grandes dificuldades encontradas pelo gestor administrativo, ou seja, verificar critérios para avaliação da compatibilidade da função com a deficiência do candidato. O art. 43 do Dec. n. 3.298/1999 dispõe acerca da criação das chamadas “equipes multiprofissionais” como método de tentar sanar essas dificuldades. Cabe salientar que esse mesmo diploma, em seu art. 38, inciso II, dispõe que não se aplica a reserva de vagas para candidatos com deficiência nos casos de provimento de “cargo ou emprego público inerente de carreira que exija aptidão plena do candidato”. Porém, partindo do entendimento consignado no § 2º do art. 43 do decreto, de que a aptidão deve ser verificada durante o estágio probatório, a conclusão a que se chega, em atendimento aos princípios da razoabilidade e da não discriminação, é de que até mesmo em carreiras “policiais”, o edital de abertura do certame deve prever vagas para PCDs, sendo que mesmo nas fases posteriores (teste de aptidão física e curso de formação profissional) deverá a Administração Pública se encarregar de adaptar os meios necessários para que o candidato com deficiência possa concorrer com certa igualdade de condições. A intenção do legislador e do intérprete e aplicador do direito deve se dar sempre com base no princípio da proteção a essas pessoas, devendo o Estado se adequar para receber tais pessoas. Portanto, diante de um aparente conflito entre princípios fundamentais, in casu, o livre acesso aos cargos públicos por PCDs de um lado, e o princípio da eficiência administrativa do outro, à luz da jurisprudência, resolve-se pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da dignidade humana, de modo que um não anule o outro.
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O impeachment e a crise de legitimidade das instituições
Passados 26 anos da Constituição de 1988 a democracia brasileira vive um impasse. Como efetivar os direitos fundamentais? O golpe de 1964 e o tortuoso processo de redemocratização revelam algo mais que um tempo de lutas pela liberdade. A Justiça Social parece cada dia mais distante do povo. Ao mesmo tempo a classe dominante não vislumbra desenvolver o país a partir das premissas de oportunidade e capacidades humanas que permitam a superação da pobreza, a educação de qualidade, e o combate à miséria e ao debate profícuo. Prefere-se apostar em ações de pobreza de espírito, sem que se ofereça alternativas de unam norte e sul, leste e oeste em torno do projeto nacional que contemple a diversidade. Portanto a política como campo de legitimidade e ética está contaminada por grupos econômicos e clãs financiadores e beneficiários de campanhas milionárias que ajudaram a eleger representantes hoje ilegítimos. Assim a fonte da corrupção está na raiz da simbiose público-privado que mantém os “donos do poder” com o status quo do passado e do presente. Ao mesmo tempo em que se aposta no impeachment como instrumento de manter as desigualdades. Portanto como campo jurídico-político trata-se de mecanismo imediatista, os que apostam na medida extrema sem que se comprove a materialidade de atos praticados lesivos ao patrimônio público no exercício do mandato e se observe a lei 1079/50, §4º, § 9º e seguintes, bem como a Constituição Federal de 1988. Nesse diapasão analisaremos neste artigo a relação entre o impedimento e a crise de legitimidade das instituições relacionado aos interesses de grupos em detrimento das regras democráticas.
Direito Administrativo
1. INTRODUÇÃO  A crise ronda os poderes pelo País adentro, desde a famigerada lista de políticos investigados por supostos atos de corrupção, empresários ligados à empreiteiras. Ao mesmo tempo se apontam culpados, se discute a extensão da responsabilidade por atos de improbidade administrativa ao longo de décadas de governos de direita, centro e esquerda. Indaga-se até onde se vai a culpa daqueles que prometem “maravilhas” em períodos eleitorais e acabada a eleição demagogicamente buscam culpar até mesmo os santos pela crise. Não reconhecem a mentira política como um mal que aflige nossa democracia. Ao mesmo tempo descontentes ávidos por mudança para manter seu poder econômico querem trocar “seis por meia-dúzia” num fulminante impeachment e como se fosse possível passando pela soberania popular num passe de mágica se colocaria no trono o seu candidato preferido mas que nem sempre próximo do desejo da maioria. Ou seja, primeiro se retira quem não se deseja depois se volta ao velho “Pão e Circo” dos domingões e do futebol. 2. O IMPEACHMENT COMO INSTRUMENTO POLÍTICO-JURÍDICO À luz da questão em análise vejamos inicialmente o entendimento do significado do termo impeachment:  “[…] processo político-criminal instaurado por denúncia no Congresso para apurar a responsabilidade, por grave delito ou má conduta no exercício de suas funções, do presidente da República, ministros do Supremo Tribunal ou de qualquer outro funcionário de alta categoria.  […] este mesmo processo, no nível estadual, em que é apresentada denúncia à Assembleia Legislativa com o fim de destituir o governador do seu cargo;  […] processo semelhante, no nível municipal, em que se apresenta denúncia à Câmara de vereadores com a finalidade de destituir o prefeito. […] na verdade, segundo seus matizes semânticos, corresponde a: desacreditamento, descredenciamento, despojamento, apeamento etc, e na acp. Jur impedimento, destituição […]”.  (HOUAISS, 2001, p. 1578) A lei 1079/50 dispõe sobre os crime de responsabilidade: “Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: […] V – A probidade na administração; Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: […] não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; […] proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo”. (BRASIL, Lei 1079/50). A administração pública é regida pelos princípios do art. 37, caput da carta Magna entre os quais a impessoalidade, publicidade, legalidade, moralidade e eficiência. No entanto a crise de legitimidade institucional se revela próxima da “cordialidade constitucional” que aposta mais na prática da lei para o povo e as benesses aos amigos do Rei. Especialmente pela cultura patrimonialista, personalista, e clientelista que regem as relações público-privadas nos negócios. (HOLANDA, 1995). Assim, moralidade e eficiência se tornaram palavras utópicas na história republicana e na vida política brasileira.  Mas vejamos mais a fundo acerca do instituto do impeachment e seus desdobramentos a partir dos artigos seguintes: 51, inciso I; 85, I a VII e parágrafo único; 86, § 4º e 102, I, b. Todos da Constituição Federal de 1988: “Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I. autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado. Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I. a existência da União; II. o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III. o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV. a segurança interna do país; V. a probidade na administração; VI. a lei orçamentária; VII. o cumprimento das leis e das decisões judiciais. § único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por 2/3 da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o STF, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade; § 4º – O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções Art. 102. Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. (BRASIL, CRFB/1988) Assim uma vez admitida os crimes praticados à luz da lei 8.429/92 por agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional conforme previsão dos art. 1º, 2º, 3º, 9º, 10 e 11 da lei especial supracitada estaria por exemplo o Presidente sujeito a abertura, processo e julgamento de Impeachment pela violação as normas e regras norteadoras do exercício da função. O que não configura materialidade para o impeachment a responsabilidade por atos praticados anteriormente ao exercício do mandato. No entanto diante da crise de legitimidade que assola ás instituições e começa no financiamento privado de campanha, como discernir hoje quem é beneficiário de campanhas milionárias e quem é santo para depois de eleito não agradar seus padrinhos e apadrinhados? Só a Justiça pode ajudar a desvendar esse mistério. Mas certamente não são poucos os beneficiários, é aguardar o listão do Ministério Público Federal e as investigações para que quem for “santo” que atire a primeira pedra.  3. O CONFLITO DE CLASSES: AUTORITARISMO X DEMOCRACIA Enquanto se discute os culpados e possíveis crimes de corrupção na Petrobrás. Observa-se uma tendência de setores organizados em fazer um julgamento sumário pelo descontentamento com o resultado das eleições e rapidamente fazer a justiça com as próprias mãos típico do passado autoritário que permanece presente na sociedade brasileira fruto da ditadura civil-militar de 1964-1985. Ao invés de deixar que o Judiciário faça sua parte sem pressão e dentro da legalidade. Aposta-se no Impeachment como saída rápida para se possível alimentar o ódio de classes, especialmente culpando os pobres pelas escolhas democráticas nas urnas, como se o povo democraticamente não fosse capaz de avançar nas mudanças que o País precisa. No entanto esses setores descontentes não estão preocupados em dar oportunidades e capacidades aos desprovidos  dos direitos fundamentais básicos. E alimenta-se o velho ódio entre riqueza e pobreza, numa utopia entre “civilidade e barbárie” nos trópicos. CONCLUSÃO Certamente se a mesma classe dominante com seus fartos recursos apostassem em educação de qualidade nosso país teria outra realidade social e política. Mas os “donos do poder” colhem hoje justamente os frutos da sua opção por manter e perpetuar a velha política do “Pão e Circo”. Especialmente nos domingões e meios de semana e tudo acaba em “cerveja e futebol”. Portanto vislumbram a solução “coelho na cartola” como caminho para manter seus privilégios. Ao mesmo tempo em que se fala no impeachment não se discute um plebiscito sobre a reforma política que ponha fim inclusive ao financiamento privado de campanha fonte da corrupção. Curiosamente a indignação com a corrupção de setores da sociedade não parece ser a mesma quanto aos envolvidos com mandato no legislativo, centra-se muito mais na figura do executivo. Portanto a questão da crise de legitimidade da representação e das instituições é que está em debate. Ao mesmo tempo em que o STF poderia sinalizar com mudanças por meio do julgamento da ADI 4650 que discute a disciplina do financiamento privado de campanha está suspenso devido a pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes há cerca de um ano.  Em síntese as instituições não representam o povo.
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Da mutabilidade do serviço publico
o presente trabalho pretende analisar a constitucionalidade, legitimidade e legalidade de ato da administração pública que reorganiza os quadros de servidores públicos, alterando, escalonando e delegando funções.
Direito Administrativo
Definição: Hely Lopes Meirelles define: "Serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado." [MEIRELLES Hely Lopes, Direito Administrativo. São Paulo: RT, 2003, p.131.] Marçal Justen Filho define: “Serviço público é uma atividade publica administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinadas a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito publico”. [JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 31.] Para o legislador: Incumbe ao Poder Publico a prestação de serviços públicos. Estes podem ser prestados diretamente pelo Poder Público e, por particulares, sob o regime de concessão ou permissão, através de licitação (Art.175.Constituição Federal). DA MUTABILIDADE DO SERVIÇO PUBLICO Os servidores possuem direito adquirido de prestar sempre o mesmo serviço público? Em outras palavras, o servidor pode exigir somente prestar o serviço que estava definido no edital do concurso publico em que foi aprovado? Princípio da mutabilidade: Ao princípio da mutabilidade é submetido o usuário de serviço público e o servidor, o que implica na alteração unilateral pelo poder concedente das cláusulas do contrato para atender razões de interesse público. Entretanto, o que não pode haver é imposição de atividades incompatíveis com a natureza do cargo público, já que o equilíbrio deve ser mantido. Ainda, o princípio da mutabilidade do regime de execução do serviço público autoriza a sua alteração sem que disto decorra violação ao direito adquirido dos respectivos servidores. Sempre relevante é o entendimento de Marçal Justen Filho “A mutabilidade retrata a vinculação do serviço público à necessidade a ser satisfeita e às concepções técnicas de satisfação. É da essência do serviço público sua adaptação conforme a variação das necessidades e a alteração dos modos possíveis de sua solução.” [Ob cit] Assim, para este autor é dever da Administração a atualização do serviço público com base em modificações técnicas, jurídicas e econômicas. DECISOES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS Para aqueles que ainda discordam da possibilidade de mutabilidade do serviço público, nos valemos das decisões mais recentes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Sobre a mutabilidade do serviço nos valemos da jurisprudência do Tribunal de Justiça Mineiro: “Relator: CAETANO LEVI LOPES – Data do Julgamento: 12/01/2010 – Data da Publicação: 03/02/2010 – Ementa: Apelação cível. Ação de cobrança. Prevenção inexistente. Professora municipal. Jornada de trabalho. Horas atividade. Horas extras. Distinção. Sobrejornada inocorrente. Recurso não provido. 1. A mera identidade dos fatos não gera prevenção por conexão. 2. A Administração Pública está adstrita ao princípio da legalidade, por isso não pode criar distinções onde a lei não o faz. 3. As relações jurídicas entre o servidor público e a administração são mutáveis. Portanto, podem sofrer modificações de modo a atender o interesse público e as peculiaridades do serviço prestado. Há de se respeitar, entretanto, a irredutibilidade de vencimentos e o direito adquirido. 4. A jornada de trabalho dos professores inclui um período de horas aulas e outro de horas para atividades extraclasse, sendo que estas já estão incluídas na jornada total. 5. São inconfundíveis a hora de atividade extraclasse e a hora extra. A primeira constitui um período da jornada normal, destinado à preparação e avaliação do trabalho didático, ao estudo, à colaboração com a atividade da escola, às reuniões pedagógicas, à articulação com a comunidade e ao aperfeiçoamento profissional , e está incluída na jornada legal. A segunda constitui jornada de trabalho além da carga normal prevista em lei. 6. Ausente a comprovação da efetiva prestação de serviço em sobrejornada de trabalho, são indevidas as horas extras reclamadas. 7. Apelação cível conhecida e não provida, mantida a sentença rejeitou a pretensão inicial. Súmula: NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.  (Acessível em http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?palavrasConsulta=mutabilidade+servi%E7o+publico&acordaoEmenta=acordao&tipoFiltro=and&resultPagina=10&submit=Pesquisar) CONCLUSÃO Neste sentido, não nos parece haver qualquer vício de legalidade ou inconstitucionalidade no ato da administração pública que reorganiza os quadros de servidores públicos, alterando, escalonando e delegando funções.     Tratando-se de uma lei que disciplina instrução de serviço, não há como alguém se recusar a realizar as atribuições ali definidas.
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Da mutabilidade do serviço publico
o presente trabalho pretende analisar a constitucionalidade, legitimidade e legalidade de ato da administração pública que reorganiza os quadros de servidores públicos, alterando, escalonando e delegando funções.
Direito Administrativo
Definição: Hely Lopes Meirelles define: "Serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado." [MEIRELLES Hely Lopes, Direito Administrativo. São Paulo: RT, 2003, p.131.] Marçal Justen Filho define: “Serviço público é uma atividade publica administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinadas a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito publico”. [JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 31.] Para o legislador: Incumbe ao Poder Publico a prestação de serviços públicos. Estes podem ser prestados diretamente pelo Poder Público e, por particulares, sob o regime de concessão ou permissão, através de licitação (Art.175.Constituição Federal). DA MUTABILIDADE DO SERVIÇO PUBLICO Os servidores possuem direito adquirido de prestar sempre o mesmo serviço público? Em outras palavras, o servidor pode exigir somente prestar o serviço que estava definido no edital do concurso publico em que foi aprovado? Princípio da mutabilidade: Ao princípio da mutabilidade é submetido o usuário de serviço público e o servidor, o que implica na alteração unilateral pelo poder concedente das cláusulas do contrato para atender razões de interesse público. Entretanto, o que não pode haver é imposição de atividades incompatíveis com a natureza do cargo público, já que o equilíbrio deve ser mantido. Ainda, o princípio da mutabilidade do regime de execução do serviço público autoriza a sua alteração sem que disto decorra violação ao direito adquirido dos respectivos servidores. Sempre relevante é o entendimento de Marçal Justen Filho “A mutabilidade retrata a vinculação do serviço público à necessidade a ser satisfeita e às concepções técnicas de satisfação. É da essência do serviço público sua adaptação conforme a variação das necessidades e a alteração dos modos possíveis de sua solução.” [Ob cit] Assim, para este autor é dever da Administração a atualização do serviço público com base em modificações técnicas, jurídicas e econômicas. DECISOES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS Para aqueles que ainda discordam da possibilidade de mutabilidade do serviço público, nos valemos das decisões mais recentes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Sobre a mutabilidade do serviço nos valemos da jurisprudência do Tribunal de Justiça Mineiro: “Relator: CAETANO LEVI LOPES – Data do Julgamento: 12/01/2010 – Data da Publicação: 03/02/2010 – Ementa: Apelação cível. Ação de cobrança. Prevenção inexistente. Professora municipal. Jornada de trabalho. Horas atividade. Horas extras. Distinção. Sobrejornada inocorrente. Recurso não provido. 1. A mera identidade dos fatos não gera prevenção por conexão. 2. A Administração Pública está adstrita ao princípio da legalidade, por isso não pode criar distinções onde a lei não o faz. 3. As relações jurídicas entre o servidor público e a administração são mutáveis. Portanto, podem sofrer modificações de modo a atender o interesse público e as peculiaridades do serviço prestado. Há de se respeitar, entretanto, a irredutibilidade de vencimentos e o direito adquirido. 4. A jornada de trabalho dos professores inclui um período de horas aulas e outro de horas para atividades extraclasse, sendo que estas já estão incluídas na jornada total. 5. São inconfundíveis a hora de atividade extraclasse e a hora extra. A primeira constitui um período da jornada normal, destinado à preparação e avaliação do trabalho didático, ao estudo, à colaboração com a atividade da escola, às reuniões pedagógicas, à articulação com a comunidade e ao aperfeiçoamento profissional , e está incluída na jornada legal. A segunda constitui jornada de trabalho além da carga normal prevista em lei. 6. Ausente a comprovação da efetiva prestação de serviço em sobrejornada de trabalho, são indevidas as horas extras reclamadas. 7. Apelação cível conhecida e não provida, mantida a sentença rejeitou a pretensão inicial. Súmula: NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.  (Acessível em http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?palavrasConsulta=mutabilidade+servi%E7o+publico&acordaoEmenta=acordao&tipoFiltro=and&resultPagina=10&submit=Pesquisar) CONCLUSÃO Neste sentido, não nos parece haver qualquer vício de legalidade ou inconstitucionalidade no ato da administração pública que reorganiza os quadros de servidores públicos, alterando, escalonando e delegando funções.     Tratando-se de uma lei que disciplina instrução de serviço, não há como alguém se recusar a realizar as atribuições ali definidas.
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O terceiro setor na reforma do aparelho de estado e a Lei nº 13.019/2014
Este artigo analisará o terceiro setor na reforma do aparelho de Estado em paralelo com a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, a chamada lei sobre as ONG's. Será analisada a regulamentação das parcerias do Poder Público com as entidades do terceiro setor dada pela Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, bem como a ADI nº 1.923/DF ajuizada em face desta lei. Assim, serão avaliados os argumentos que ensejaram o ajuizamento da ADI levando em consideração os debates realizados no bojo da Reforma do Aparelho do Estado e os questionamentos ao chamado terceiro setor, como aqueles que ensejaram a elaboração da Lei nº 13.019, de 2014.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A expressão “terceiro setor” possui origem sociológica não se encontrando positivada no ordenamento jurídico brasileiro. Ao lado do terceiro setor, coexistem o primeiro setor, entendido como o próprio Estado, o segundo setor como sendo a iniciativa privada voltada à exploração da atividade econômica e o terceiro setor composto por entidades da sociedade civil de natureza privada sem fins lucrativos que exercem atividades de interesse público. No Brasil, costuma-se utilizar o termo “entidades paraestatais” para designar aquelas que integram o terceiro setor e atuam em colaboração com o Estado ao exercerem atividades de interesse público, muitas vezes recebendo recursos estatais destinados pelo Estado quando exercendo atividade de fomento. Atualmente, são abrangidos dentro da denominação entidades paraestatais os serviços sociais autônomos, as entidades de apoio, as organizações sociais (OS’s) e as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP’s). Em relação às OS’s, sua atuação é disciplinada pela Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, que “Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.” O Partido dos Trabalhadores – PT e o Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizaram a ação direta de inconstitucionalidade – ADI nº 1.923/DF buscando a declaração de inconstitucionalidade na íntegra da Lei nº 9.637/98. Neste trabalho, serão avaliados os argumentos que ensejaram o ajuizamento da ADI levando em consideração os debates realizados no bojo da Reforma do Aparelho do Estado e os questionamentos ao chamado terceiro setor, como aqueles que ensejaram a elaboração da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. 1. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado surgiu como resposta à chamada crise do Estado que no Brasil se tornou clara a partir da segunda metade dos anos 80.[1] Esta reforma foi proposta pelo Plano basicamente de duas formas: por meio de um processo de privatização que, em suma, consistiu em “transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado”[2]; e por meio de um processo chamado de “publicização” no qual se descentraliza para o setor público não-estatal (denominação utilizada no Plano Diretor) a execução de serviços que não envolvem o exercício do poder de Estado, mas que devem ser subsidiados por ele, “estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle.”[3] A previsão das OS’s com a edição da Lei nº 9.637/98 é decorrência deste processo de publicização acima descrito. Cumpre ressaltar, ainda, que este processo está inserido na ideia que serviu de pilar na formulação do Plano Diretor que é a implementação de uma administração pública gerencial como resultado da evolução de uma administração pública burocrática. Um dos atributos da administração pública gerencial é justamente a descentralização que no caso das OS’s tem por objetivo permitir que serviços não-exclusivos nos quais não existam o exercício do poder de Estado, possam ser prestados pelo setor público não-estatal. Tomando como base estes conceitos, o Plano Diretor propôs o processo de “publicização” dos serviços não-exclusivos do Estado consistente na “transferência do setor estatal para o público não-estatal, onde assumirão a forma de ‘organizações sociais’”.[4] A professora Di Pietro apresenta de forma resumida as características principais das OS’s: "a. é definida como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos; b. criada por particulares, deve habilitar-se perante a Administração Pública, para obter a qualificação de organização social; ela é declarada, pela lei (art. 11), como ‘entidade de interesse social e utilidade pública’; c. ela pode atuar nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde; d. seu órgão de deliberação superior tem que ter representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral; e. as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social são definidas por meio de contrato de gestão, eu deve especificar o programa de trabalho proposto pela organização social, estipular as metas a serem atingidas, os respectivos prazos de execução, bem como os critérios objetivos de avaliação de desempenho, inclusive mediante indicadores de qualidade produtividade; f. a execução do contrato de gestão será supervisionada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada; o controle que sobre ela exerce é de resultado; g. o fomento pelo poder público poderá abranger as seguintes medidas: destinação de recursos orçamentários e bens necessários ao cumprimento do contrato de gestão, mediante permissão de uso, com dispensa de licitação; cessão especial de servidores públicos, com ônus para a origem; dispensa de licitação nos contratos de prestação de serviços celebrados entre a Administração Pública e a organização social; h. a entidade poderá ser desqualificada como organização social quando descumprir as normas de gestão[5]" 2. A Lei nº 9.637/98 e a ADI 1.923/DF Na ADI nº 1.923/DF, a alegação principal dos autores reside no questionamento da validade do processo de publicização, ou seja, a descentralização/transferência de determinados serviços públicos. Segundo alegam, a Lei nº 9.637/98 ofende os deveres de prestação de serviços públicos de saúde, educação, proteção ao meio ambiente, patrimônio histórico e acesso à ciência (CF, arts. 23, 196, 197, 199, § 1º, 205, 206, 208, 209, 215, 216, § 1º, 218 e 225), uma vez que a transferência de responsabilidade pela atuação nos setores apontados, do Poder Público para os particulares, representaria burla aos deveres constitucionais de atuação da Administração Pública. Além disso, a Lei das OS’s acaba transferindo recursos, servidores e bens públicos a particulares, o que configuraria verdadeira substituição da atuação do Poder Público. Essa fraude à Constituição interfere imediatamente no regime da atividade a ser prestada: enquanto exercida pelo Poder Público, a natureza seria de serviço público, submetida, portanto, ao regime de direito público; quando prestada pelo particular, tal atividade seria atividade econômica em sentido estrito, prestada sob regime de direito privado. Deste modo, conforme alegado na referida ADI, a criação das OS’s configuraria apenas uma tentativa de escapar do regime jurídico de direito público. Além deste argumento, os autores sustentam outros decorrentes desta ideia de fuga ao regime jurídico de direito público: a) descumprimento do dever de licitação (CF, arts. 22, XXVII, 37, XXI, e 175), pois ao receberem recursos públicos, as OS’s deveriam observar as regras da licitação. No entanto, os arts. 4º, VIII, e 17 da Lei nº 9.637/98, preveem que tais entidades editarão regulamentos próprios para contratação de obras e serviços com dinheiro público. No mesmo sentido, o art. 12, § 3º, da mesma Lei prevê que a permissão de uso de bem público poderá ser outorgada à Organização Social, pelo Poder Público, com dispensa de licitação. Além disso, a Lei nº 9.648/98, em seu art. 1º, alterou a Lei nº 8.666/93 para instituir dispensa de licitação (Art. 24, XXIV) para que o Poder Público contrate a OS para a prestação de serviços relacionados às “atividades contempladas no contrato de gestão”, o que quebra a lógica isonômica que preside o certame licitatório. Por fim, a própria execução das atividades da OS, através da celebração do contrato de gestão, violaria, segundo os autores, a regra constitucional de licitação para a delegação de serviços públicos (CF, art. 175, caput); b) ofensa aos princípios da legalidade e do concurso público na gestão de pessoal (CF, art. 37, II e X, e 169): a Lei das OS’s prevê que a própria entidade, como condição para a celebração de contrato de gestão, fixará, por seu Conselho de Administração, a remuneração dos membros de sua diretoria, a estrutura de seus cargos e, através de regulamento, o plano de cargos, salários e benefícios de seus empregados (art. 4º, V, VII e VIII). Caberá, ainda, ao contrato de gestão estabelecer limites e critérios para as despesas com pessoal (art. 7º, II). Tais normas desconsideram a exigência de lei formal para o regime jurídico dos servidores públicos, além de tomarem como pressuposto a desnecessidade de concurso público para a contratação de pessoal nas Organizações Sociais; c) insubmissão a controles externos (CF, art. 70, 71 e 74): o caput do art. 4º da Lei, ao listar as “atribuições privativas do conselho de administração”, conduz à interpretação de excluir o controle do Tribunal de Contas da União sobre a aplicação dos recursos públicos. Quanto a estas questões acima expostas e previstas na Lei nº 9.637/98, as ideias principais do Plano Diretor justificam sua adoção. De uma forma geral, todas estas medidas resultam da tentativa de evoluir de uma administração pública burocrática para uma administração gerencial. A administração pública burocrática possui como princípios básicos a ideia de carreira, hierarquia funcional, impessoalidade, formalismo. É um modelo de administração muito preocupado em estabelecer controles na atuação administrativa visando evitar corrupção, desvios de poder, etc. Por tal motivo, são realizados controles rígidos dos processos relacionados à admissão de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas. A crítica à administração pública burocrática reside no fato de que o excesso de controle transforma-se na própria razão de ser do Estado e, por consequência, este acaba voltando-se para si mesmo, deixando de lado sua função básica que é servir a sociedade. Por isso, se diz que no paradigma burocrático o controle do processo é efetivo, mas há ineficiência no resultado que é a prestação do serviço à sociedade. Por outro lado, o modelo de administração pública gerencial busca flexibilizar alguns destes princípios básicos da burocrática. Entre eles, está a forma de controle que deixa de basear-se nos meios para concentrar-se nos resultados, buscando maior eficiência nestes. Seguindo este raciocínio, o Plano Diretor tem como base a ideia de que a descentralização é essencial para alcançar maior eficiência nos resultados por meio de maior participação dos agentes privados e/ou organizações da sociedade civil. É possível observar esta ideia no trecho do documento que trata das Organizações Sociais e Publicização: "O Projeto das Organizações Sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal.[6]" Portanto, as disposições da Lei nº 9.637/98 impugnadas na ADI nº 1.923/DF, em especial a descentralização de serviços estatais não-exclusivos, a flexibilização das regras de licitação e a gestão de pessoal das OS’s, refletem a ideia do Plano Diretor de uma administração pública gerencial em que se busca transferir a ênfase nos procedimentos para os resultados a fim de se obter serviços mais eficientes. 3. A Lei nº 13.019/2014 Ocorre que dada a mínima fiscalização, em alguns casos, na transferência de recursos públicos para estas entidades começaram a surgir escândalos envolvendo estas parcerias, pois muitas vezes a entidade recebedora dos recursos sequer existia de fato. Neste cenário é que foi editada a Lei nº 13.019/2014 a fim de estabelecer regras claras nas parcerias entre Poder Público e as organizações da sociedade civil. Uma das regras impostas é a necessidade de realizar procedimento de chamamento público prévio para escolha da entidade parceira. Antes da Lei nº 13.019/2014 não era indispensável a realização deste procedimento, podendo a Administração Pública celebrar a parceira com qualquer entidade sem fins lucrativos. Daí que saíam parcerias com entidades inidôneas nas quais em muitas delas figuravam como administradores pessoas ligadas aos dirigentes de órgãos públicos, partidos políticos, etc. Além disso, a entidade que postula parceira deverá demonstrar experiência, capacidade técnica, operacional e tempo de existência mínimo, requisitos estes que por serem dispensáveis ensejava, não raro, a celebração de parcerias com entidades com interesses escusos. A lei também determina a publicação anual dos valores orçamentários destinados às parcerias entre Estado e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos no intuito de atribuir mais transparência ainda a estas parcerias nas quais há repasse de significativos recursos orçamentários. A última medida a ser destacada é a exigência prevista no inciso VI do art. 35 de “emissão de parecer jurídico do órgão de assessoria ou consultoria jurídica da administração pública acerca da possibilidade de celebração da parceria, com observância desta lei e da legislação específica”. Cuida-se de disposição que se assemelha ao parágrafo único, do artigo 38, da Lei 8.666/93. Todavia, a Lei 13.019/2014, em seu artigo 35, parágrafo 2º vai um pouco além da mera exigência de emissão de parecer jurídico prévio ao dispor que caso “o parecer jurídico conclua pela possibilidade de celebração da parceria com ressalvas, deverá o administrador público cumprir o que houver sido ressalvado ou, mediante ato formal, justificar as razões pelas quais deixou de fazê-lo” (artigo 35, parágrafo 2º). Por fim, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária do dia 16 de abril de 2015, julgou parcialmente procedente a ADI 1.923/DF, dando interpretação conforme a Constituição às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as organizações sociais para a prestação de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação ao meio ambiente, cultura e saúde. A decisão da Corte Suprema vai ao encontro da regulamentação dada pela Lei nº 13.019/2014. O voto condutor do julgamento proferido pelo Ministro relator Luiz Fux, foi no sentido de afastar qualquer interpretação que restrinja o controle da aplicação de verbas públicas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas. Salientou-se, também, que tanto a contratação com terceiros como a seleção de pessoal pelas organizações sociais devem ser conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, e nos termos do regulamento próprio a se editado por cada identidade. CONCLUSÃO Diante destes pontos acima destacados, observa-se a preocupação do Poder Público em moralizar estas parcerias estabelecendo maior controle e mais rígidos critérios para a celebração dos acordos. De certa forma, cuida-se de um retorno em dar maior ênfase nos procedimentos prévios (meios) sem se esquecer dos princípios do modelo de administração pública gerencial de eficiência e qualidade na prestação de serviços não-privativos. Em suma, é a busca de equilíbrio dos meios, mediante o controle prévio de ilegalidades, e os fins, para garantir eficiência e qualidade na prestação de serviços. Em conclusão, parece que o desafio atual da Administração Pública é adequar um modelo de gestão que abarque as vantagens de uma administração pública burocrática e as vantagens de uma administração pública gerencial.
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O ato de desapropriação no ordenamento jurídico pátrio
O artigo em tela tem a crucial função de apresentar o real desempenho do instituto da desapropriação no ordenamento jurídico pátrio atrelado as remoções compulsórias que ocorrem no âmbito de mega eventos, como, por exemplo, os ocorridos na Copa do Mundo de futebol da FIFA de 2014. Tais remoções ocorrem como subterfúgios à viabilização de obras destinadas a mobilidade das urbes, associadas aos institutos do interesse social e da utilidade pública. Assim sendo, apresenta-se o contraste e a discrepância entre o instituto da desapropriação no arcabouço das normas e princípios nacionais, para com as desapropriações de fato ocorridas no grande evento futebolístico anteriormente mencionado, as quais foram reflexos de um campo de batalha realçado por sua desigualdade e exclusão social.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O trabalho em questão aborda as diretrizes gerais traçadas pelo ordenamento jurídico pátrio no tocante ao procedimento de desapropriação, sobretudo sobre as desapropriações de imóveis urbanos, que foram fomentados pela Copa do Mundo FIFA de futebol 2014. No entanto tais remoções tiveram como subterfúgios a viabilização de obras destinadas a mobilidade da urbe, associadas aos institutos do interesse social e da utilidade pública. Desta feita o compêndio em questão tem o desígnio de denotar o contraste e a discrepância entre o instituto da desapropriação no arcabouço das normas e princípios nacionais, para com as desapropriações de fato ocorridas, tendo como arrimo as remoções realizadas no âmbito do grande evento futebolístico ocorrido nos meses de junho e julho do presente ano de 2014. A priori traz-se a baila a legalidade da desapropriação, não apenas na contemporaneidade, mas o desenvolvimento do instituto tanto em razão do decorrer do lapso temporal quanto do lapso territorial, ao ser analisado sob o prisma de outros Estados, haja vista que o direito evolui e se desenvolve com as mudanças que ocorrem no tempo e no espaço. Ato contínuo, é necessário a análise da função social da propriedade, principalmente pela temática abraçar o direito da propriedade que teve sua inexorabilidade abalada pela função social. Nesse viés, prossegue o artigo a inquirir a desapropriação sob o respaldo do principio da supremacia do interesse público sobre o particular ao balizar as desapropriações por utilidade pública e por interesse social. Por conseguinte, tem-se o ato da desapropriação  no seu viés procedimental, seja sob o rito judicial, seja sob a ótica administrativa, a depender de cada caso concreto. Em remate, é abordado a situação das remoções ocorridas na capital mineira, que enfatizam os conflitos fundiários urbanos no Brasil e colocam em voga um cenário de exclusão social que se mostra preocupante para a Organização das Nações Unidas e demais organismos internacionais de direitos humanos. Com efeito, o ledor estará apto a fazer uma leitura crítica desta temática urbanística contemporânea e retirar suas conclusões. 1. DESAPROPRIAÇÃO FRENTE À LEGISLAÇÃO BRASILEIRA É sabido que o Código Civil regula o direito a propriedade privada de maneira absoluta, exclusiva, e em consonância com o preceito constitucional disposto no artigo 5º, inciso XXII, da Carta de 1988. Assim sendo, assegura ao proprietário de certo bem, poderes atinentes ao uso, gozo, fruição, bem como permite ao proprietário, dispor do seu bem e reavê-lo de quem quer que injustamente o possua ou detenha. Sob este prisma, o ius utendi, fruendi et abutendi[1], exprimem, de modo sucinto, a faculdade de colocar a propriedade à serventia do seu titular, extraindo dela, as vantagens e benefícios, facultando ao proprietário, o ato de consumir o bem, no sentido de aliená-lo ou gravá-lo. Dessa feita, faz-se imperioso, demonstrar o caráter absoluto e exclusivo da propriedade.  No que concerne a condição absoluta da propriedade, cabe dizer que o proprietário de certo bem, pode usar e dispor da maneira que lhe achar conveniente e oportuno. Ao passo que o caráter absoluto, que perfaz característica intrínseca do direito de propriedade, está relacionado ao exercício da propriedade sozinho, ou seja, sem a intervenção de outrem. Contudo, quando o direito de propriedade, regulado pelo direito civilista privado esbarra em certos interesses de cunho público, fica certo que a marca absoluta e exclusiva da propriedade, não mais pode ser oponível erga omnes. Neste cenário, cabe ao Poder Público propor medidas de restrições sobre a propriedade privada, a fim de ingerir nas situações em que o direito privado colida com o direito público. Em sendo assim, merece destaque, o conceito de intervenção na propriedade, apresentado por Fernanda Marinela[2], in verbis: “A intervenção na propriedade pode ser conceituada como toda e qualquer atividade estatal que, amparada em lei, tenha por objetivo ajustá-la à função social à qual está condicionada ou condicioná-la ao cumprimento de uma finalidade de interesse público. Em regra, o Poder Público não intervirá na propriedade do particular, só sendo isso possível excepcionalmente, nas hipóteses autorizadas pelo ordenamento jurídico.” São variadas as hipóteses de intervenção pelo Estado na propriedade privada, entretanto a doutrina subdivide as modalidades de intervenção em restritiva e supressiva, embora o uso de tais terminologias sejam alvo de divergência entre os estudiosos do ramo. Nesse ínterim, cabe dizer que na intervenção supressiva, o Poder Público age coercitivamente ao transferir a propriedade de um terceiro para si, segundo disposição prevista em lei. Ao passo que na intervenção restritiva, conforme o próprio nome já sugere, o Estado usa de restrições e condiciona a utilização da propriedade, sem todavia, retirá-la do proprietário original. Com efeito, são tipos de restrição do Estado em face da propriedade privada, os institutos a seguir dispostos, quais sejam: as limitações administrativas, a ocupação temporário, o tombamento, a requisição, a servidão administrativa, a desapropriação e o parcelamento e edificação compulsórios. De certo que o presente artigo não tem o escopo de esgotar a temática, portanto será objeto  de estudo o instituto da desapropriação, modalidade de ingerência restritiva de caráter perpétuo, no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Neste diapasão, Hely Lopes Meirelles[3] assevera que: “Desapropriação é a mais drástica forma de manifestação do 'poder do império', ou seja, da soberania interna do Estado no exercício de seu 'domínio iminente' sobre todos os bens existentes no território nacional.” Cumpre salientar que a desapropriação, como ciência do direito, é alvo de constante evolução no direito brasileiro, por esta razão faz-se necessário manifestar singelo desenvolvimento do instituto, no ordenamento jurídico. A priori, DI PIETRO, assevera que "uma lei de 21-5-1821 prescreveu que a ninguém se tirasse a propriedade, quaisquer que fossem as necessidades do Estado, sem que previamente se ajustasse o preço a pagar ao interessado pelo erário, no momento da entrega[4]". Neste viés, a Constituição Imperial de 1824, em seu artigo 179, inciso XXII, assegurava a garantia do onusto direito de propriedade, de modo que "se o bem público legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, ele será previamente indenizado do valor dela[5]". Além disso, estipulou que lei ordinária determinasse, os casos fáticos de desapropriação, que por sua vez foram regulados pela Lei número 422 de 9 de setembro de 1826. A Constituição de 1891, também assegurou o direito a propriedade em sua plenitude, ao estabelecer em caráter de exceção,  em seu artigo 72, parágrafo 17 "salvo desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante indenização prévia[6]". Por seu turno, a Constituição do ano de 1934, também trouxe mudanças no instituto da desapropriação, ao retirar o termo expresso em sua redação, o qual constava, em toda sua plenitude, quando garante ao indivíduo o direito a propriedade. Outrossim, a indenização justa, soma-se a indenização prévia, já então assegurada. Com a Carta Magna de 1946, fica instituído que a desapropriação exige indenização prévia, justa e em dinheiro. Não obstante a função social da propriedade a época ainda não  ter sido consagrada no ordenamento jurídico pátrio, foi aqui que a desapropriação por interesse social teve seu ápice. Em 25 de Abril de 1969, com o Ato Institucional número 9, não se pode negar que houve um certo retrocesso, na medida em que a indenização, no que concerne a desapropriação para reforma agrária, deixou de ser prévia. Com o advento da Bíblia Política consolidada em 5 de outubro de 1988, a propriedade não mais era considerada no seu sentido clássico patrimonialista, houve portanto, uma ruptura com os fundamentos do absolutismo, influenciado principalmente por filósofos como Marx e Engels (1848) e Comte (1850). Dessa feita, a atual Constituição da República Federativa do Brasil, elenca em seu texto cinco espécies de desapropriação, sendo, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, e a desapropriação por interesse social, dispostas no artigo 5º, inciso XXIV, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, consoante artigo 184, a desapropriação por interesse social urbano, segundo artigo 182, parágrafo 4º, inciso III, e por derradeiro, a desapropriação/expropriação de glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, disciplinadas pela Lei número 8.257 de 26 de novembro de 1991. De certo, que cada modalidade de desapropriação é legítima e apresenta suas peculiaridades e características, as quais devem ser exercidas desde que balizadas nas garantias constitucionais. Contudo, será objeto de análise no presente trabalho, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, a desapropriação por interesse social, assim como a desapropriação por interesse social urbano, as quais serão objetos de estudo em capítulo próprio. Mas independente da modalidade de desapropriação configurada, resta cristalino que a desapropriação é forma de aquisição originária da propriedade. Isso significa dizer que, não há necessidade de relação direta com o antigo proprietário, uma vez que o título anterior é desprezado. Portanto, cabe aqui, importante elucidação apresentada pelo renomado civilista Sílvio de Salvo Venosa[7]: “A desapropriação não se confunde com compra e venda, porque se trata de transferência compulsória, por ato unilateral da Administração. Distingue-se do confisco em que existe a ocupação da propriedade sem indenização. Do ponto de vista civilístico, a desapropriação é o oposto de apropriação, ou seja, como está no Código, é a modalidade de perda da propriedade. Essa é a sua natureza jurídica. Do ponto de vista publicístico, caracteriza por um procedimento administrativo pelo qual o Estado, ou poder delegado, adquire a propriedade mediante indenização. Em síntese, cuida-se de modalidade e aquisição coativa da propriedade pelo Estado”. 2. A PRINCIPIOLOGIA ATINENTE NO ATO DA DESAPROPRIAÇÃO Sumariamente, é importante terçar alguns pontos sobre o contemporâneo Estado Democrático de Direito, que possui, como norma suprema positivada, a atual Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, esta que traz, desde o preâmbulo, os mandamentos nucleares principiológicos do sistema brasileiro hodierno, mandamentos estes que são decisões políticas-sociais de caráter fundamental, concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional pós-positivismo. Neste compêndio, urge detalhar o principiológico Preâmbulo Constitucional Brasileiro: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” Noutro horizonte, Jorge Miranda[8] afirmar que “não se afigura plausível reconduzir a eficácia do preâmbulo (de todos os preâmbulos ou de todo o preâmbulo, pelo menos) ao tipo de eficácia própria dos artigos da Constituição. O preâmbulo não é um conjunto de preceitos, é um conjunto de princípios que se projetam sobre os preceitos e sobre os restantes setores do ordenamento”, ou seja, o modelo constitucional brasileiro, desde o seu preâmbulo, é basilar de principiologia valorativa – axiológico – que sobrepõe aos preceitos normativos. Em continência a este ditame teórico e científico, não poderíamos deixar de destacar os ensinamentos do mestre Lenio Luiz Streck[9], que explica, em obra ímpar de parceria com juristas brasileiros e portugueses, como os princípios afloram de tamanha importância no sistema normativo brasileiro. Lenio ensina que o apreço à integridade e à coerência das ações frente aos princípios é matéria de observância obrigatória, como, por exemplo, o princípio da concordância prática entre as normas, uma vez que o respeito a determinados nortes fundamentais deverão ser sempre atentados, ao passo que os princípios são dotados de valores e razões, caminhando nas evoluções das normas positivas[10]. Galgado, perfunctoriamente, a matéria anterior, em somatório aos substantivos principiológicos do preâmbulo da CF/88, foca-se, agora, nos princípios atinentes ao Direito Administrativo, em que pese às atividades da Administração Pública, pois, a principiologia deste ramo do Direito Público constitui “postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da Administração Pública […] norteando a conduta do Estado quando no exercício de atividades administrativas[11]”. Nesta caminhar argumentativo, destacamos, entre vários outros incluídos na molécula do Direito Administrativo, alguns importantes princípios expressos na Constituição Federal que devem caminhar em conjunto ao ato subjetivo e público da desapropriação. Passo a passo, em concernência aos princípios expressos na constituição, evidenciasse o que o legislador derivado destacou (com atualização da Emenda Constitucional nº 19/1998) no art. 37 da Carta Maior: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” Vislumbra-se, de plano, que a atual Constituição Federal destaca as palavras “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” como princípios que devem ser utilizados obrigatoriamente por todos os membros da Administração Pública, direta ou indiretamente, bem como seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), tanto da camada Federal, Estadual ou Municipal. No que pese à desapropriação como ato único e exclusivo da Administração Pública, trabalharemos com quatro princípios expressos, quais sejam, o da legalidade, moralidade, publicidade e da eficiência[12]. O princípio da legalidade, com todo o seu esplendor e importância com os demais ramos da ciência jurídica, é a linha mestre dos agentes da Administração Pública como um todo, reflexo de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, assegurador do princípio basilar da segurança jurídica, este muito bem redigido no preâmbulo da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Bem destaca o já então Professor Enrique Sayagués Laso[13]: “A Administração deve atuar em ajuste estritamente em harmonia com o direito. Caso venha a transgredir as regras, a atividade administrativa se caracteriza como ilícita e uma eventual responsabilidade”[14]. (Tradução Livre) Marco Aurélio Greco[15], na mesma linha, afirma que o princípio da legalidade é um limitador de ações que “implica estabelecer parâmetros que – se afastados – geram inconstitucionalidades da lei, ato normativo ou mesmo do ato concreto que os agredir”. Podemos muito bem observar a obrigatoriedade pela atenção do princípio da legalidade no art. 5º, XXIV da CF/88 que prevê, como regra geral sobre a matéria, que apenas “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. O princípio em estudo também é dotado de previsão ao observar, por exemplo, o art. 2º, §2º e art. 3º, todos do Decreto- lei nº 3.365/1941, que dispõe sobre os casos de desapropriação por utilidade pública: “Art. 2º Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. […] § 2º Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.[…] Art. 3º Os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas de poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato” Qualificando-se, agora, o princípio da moralidade, o doutrinador José dos Santos Carvalho[16] Filho, de forma clara e objetiva, dita que: “O princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto. Acrescentamos que tal forma de conduta deve existir não somente nas relações entre a Administração e os administrados em geral, como também internamente, ou seja, na relação entre a Administração e os agentes públicos que a integram”. Noutro giro, com o fito de maior concretude ao princípio da publicidade, no ano de 2011 foi publicada a Lei nº 12.527, dispondo sobre a regulamentação ao acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; alterando a Lei no 8.112/90; revogando a Lei no 11.111/05, e alguns dispositivos da Lei no 8.159/91. Em seu art. 1º, parágrafo único e seus incisos, a dita Lei prescreve quais pessoas estão subordinadas a ela, senão vejamos: “Art. 1º […] Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei: I – os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; II – as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios”. Conceitualmente, o princípio da publicidade, em relação ao procedimento de desapropriação, tem o condão obrigatório do qual a Administração Pública, havendo interesse fundamentado, tem que, de forma prévia e pública, manifestar o desejo e a necessidade de expropriar determinada área, formalizando o ato futuro em um Decreto, o que, na sequência, fica autorizado à penetração da localidade desapropriada: “Art. 6º A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito. Art. 7º Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.” No que tange ao princípio da eficiência, este, que não caminhou como ideia originária do legislador constituinte e vindo à tona apenas com a Emenda Constitucional nº 19/1998, é, por maioria doutrinária, um dos mais elogiáveis e essenciais princípios constitucionais incrementados ao ato Público como um todo. Seu objetivo geral é tornar que as ações serviçais da Administração Pública sejam sinônimos de “presteza, perfeição e rendimento funcional”, além de respeitarem a “produtividade e economicidade, qualidade e celeridade”. O ato de desapropriação, em discórdia com a legislação e ao próprio princípio da eficiência, está sujeito ao controle judicial que avaliará todos os atos cometidos pelo administrador público, salvo o “exame de conveniência e oportunidade que inspiraram o administrador à escolha de certo bem para o efeito da desapropriação[17].” Numa consideração final, invoca-se o pensamento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto[18], que, com todo conhecimento que lhe é peculiar, contempla que “não basta aplicar a lei, pura e simplesmente, mas aplicá-la por um modo impessoal, um modo moral, um modo público e um modo eficiente”, ou seja, com irmana com a própria legislação, “as primeiras condições ou os meios constitucionais primários de alcance dos fins para os quais todo poder administrativo é legalmente conferido”. 3. DA RELEVÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A propriedade é consagrada em sua plenitude como forma de direito real. Direito Real por seu turno, consoante explanação de Venosa[19], deriva da expressão "res, rei, que significa coisa". Neste ponto, cumpre ressaltar, que a etimologia do vocábulo coisa, remete a uma acepção mais abstrata, e até mesmo subjetiva, e que os direitos reais, no entanto, são por sua essência, uma esfera da ciência jurídica que implica em um sentido de completa objetividade. Em sendo assim, a propriedade, como espécime de direitos reais evoluiu ao longo dos séculos, de uma matriz individual para uma matriz social e coletiva. Esta evolução da propriedade pode ser percebida, quando se traz a baila a superação ao regime feudal, que conduziu a propriedade por séculos a uma intensificada percepção extremamente individualista. Nesse ínterim, a propriedade privada foi paulatinamente, sofrendo ingerências por parte do Poder Público, desde meados do século XIX. Uma curiosidade remete, portanto, a dois diplomas legais, são eles: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e o Código Napoleônico de 1804. Enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão apresentava uma conotação mais individual da propriedade privada, ao aclamar a propriedade em seu artigo 17 como "direito inviolável e sagrado[20]".  O Código de Napoleão, por seu turno, que pelo menos, tinha uma pretensão para com a individualidade, legitimou a intervenção do Estado em face da propriedade privada, quando disciplinou o artigo 544, "la propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la maniére la plus absolue, pourvu qu' o' en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les réglemeus[21]". Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[22], o alento que inspirou a consolidação do instituto da função social da propriedade adveio da Doutrina Social da Igreja, uma vez que as Encíclicas Mater et Magistra (1961) do Papa João XXII, e Centesimus Cennus (1991) do Papa João Paulo II, suscitaram o sentido de função social na propriedade, sobretudo, por servir de substrato para o surgimento de bens fundamentais à subsistência e a manutenção de toda a humanidade. De fato que nesta época, a ingerência do Poder Público sobre a propriedade se limitava a disciplinar tão somente o direito de vizinhança. Mas esta vertente foi se expandindo, de modo que o pleno exercício do direito de propriedade foi condicionado ao bem estar social. O bem estar social é fundamentado através do princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, segundo o qual, o Estado, mediante sua posição privilegiada em relação aos particulares, alcança a solidez e firmeza necessárias para oportunizar condições de segurança e sobrevivência ao indivíduo, assim como para corroborar a ordem geral na nação. Com efeito, em uma eventual situação, onde os interesses de um particular colidam com os interesses de toda a sociedade, resta inarredável que os interesses da coletividade devem prevalecer. (DUGUIT, p. 180-181) brilhantemente, ensina o real sentido da função social da propriedade, quando menciona que: “Em que consiste pois, esta noção de função social? Reduz-se ao seguinte: o homem não tem direitos, a coletividade tão pouco os tem. Falar de direitos do indivíduo, de direitos da sociedade, dizer que é preciso conciliar os direitos do indivíduo com os da coletividade, é falar de coisas que não existem. Mas todo indivíduo tem na sociedade uma certa função que desempenhar, uma certa tarefa que executar, essa tarefa, porque de sua abstenção resultaria uma desordem ou quando menos um prejuízo social. De um lado, todos os atos que realizasse contrários a função que lhe incumbe serão socialmente reprimidos. Mas, ao contrário, todos os atos que realizasse para cumprir a missão, que lhe corresponde, em razão do lugar que ocupa na sociedade, serão socialmente protegidos e garantidos. E aqui aparece muito claramente o fundamento social da regra de Direito, do Direito objetivo. É ao mesmo tempo realista e socialista: realista porque repousa sobre o fato da função social, observado e comprovado direitamente; socialista, porque repousa nas condições mesmas da vida social.” Dessa forma, o Poder Público, tem a tarefa de blindar os interesses da coletividade, e não permitir que a satisfação da vontade privativa de um único indivíduo, venha a interferir ou prejudicar os interesses de toda uma coletividade. Em miúdas palavras, é cristalino que o corolário da supremacia conferida ao Estado simboliza um dos pilares da intervenção do Estado na propriedade privada. No que pese a função social da propriedade, é evidente que tal princípio foi consolidado, tendo em vista que está no bojo do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Diante disso, faz-se oportuno o entendimento de Celso Ribeiro Bastos (1999, p.125), consoante redação a seguir apresentada: “O pressuposto constitucional, contudo, não afasta nem suprime o direito em si. Ao contrário, o sistema vigente procura conciliar os interesses individuais e sociais e somente quando há o conflito é que o Estado dá primazia a estes últimos. A função social pretende erradicar algumas deformidades existentes na sociedade, nas quais o interesse egoístico do indivíduo põe em risco os interesses coletivos. Na verdade, a função social visa a recolocar a propriedade na sua trilha normal”. Assim sendo, o que se percebe é o repúdio do Poder Público à propriedade improdutiva, que não apresenta sentido de utilidade geral e riqueza para a coletividade como um todo. Trata-se na verdade de uma via de mão dupla, de modo que a lei está para proteger o proprietário, sendo que este percebe as benfeitorias e o enriquecimento advindo do seu trabalho, e também da atuação do Poder Público. Mas tem, no entanto, a obrigação de não tornar a propriedade improdutiva, ou um fardo para a sociedade. Cabe aqui, portanto, relevante justificativa da função social disposta na emenda ora apresentada pelo Senador Ferreira de Souza: “Como seu de forma absoluta, aqueles bens necessários à sua vida, à sua profissão, à sua manutenção e à de sua família, mesmo que constituem economias para o futuro. Mas além desse mínimo, a propriedade tem uma função social de modo que o seu proprietário a explora e a mantém dando-lhe utilidade, concorrendo para o bem comum, ou ela não se justifica. A emenda não chega ao extremo de negar a propriedade, mas, superpondo o bem comum ao bem individual, admite a expropriação das propriedades inúteis, das que poderiam ser cultivadas e não o são, daqueles cujo domínio absoluto chega a apresentar um acinte aos outros homens.” Hodiernamente, a dimensão da função social da propriedade já seguiu muito avante, na medida em que não significa mero constrangimento de obrigação de não fazer, reitera-se neste ponto as medidas de direito de vizinhança, uma vez que com os preceitos sociais, dispostos na Constituição de 1988, abrangem também as obrigações de fazer, quando disciplina o uso adequado  e o aproveitamento do solo urbano. Esta concepção da evolução do instituto da função social da propriedade, foi inclusive, ressaltado por Dromi, ao dispor que "a concepção individualista já foi há muito abandonada, porque predomina atualmente a visão de que o instituto, muito mais que um fim, se configura como um meio para alcançar o bem estar social".[23] Deste modo, "não custa lembrar que o princípio da função social da propriedade reflete o ponto de convergência resultante da evolução do direito de propriedade. Assim deve ser aplicado lado a lado com os interesses da coletividade".[24] Dessa feita, o renomado constitucionalista, José Afonso da Silva[25], assevera acerca da função social da propriedade, quando manifesta-se "conforme as hipóteses, seja condição de exercício das faculdades atribuídas, seja como obrigação de executar determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas". Cumpre salientar, que a função social da propriedade não permite a limitação ao mínimo essencial da propriedade privada, sem que haja justa e devida indenização. A Bíblia Política[26] de 1988 em sua magnitude, revela a coexistência de um direito, a propriedade, atrelado a um dever jurídico, que se exterioriza na sua função social[27]. De modo que dispõe em seu artigo 182, §2º, Título VII, Da ordem econômica e financeira, no Capítulo II, Da Política Urbana, sobre a função social da propriedade urbana, consoante redação ora apresentada: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.[…] § 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” Sob este prisma, percebe-se de fato, a preocupação do legislador, ante o crescimento populacional alarmante das cidades, com a função social no âmbito urbano, embora a literalidade do dispositivo remonte a  um aspecto de certo modo muito formal[28]. O que faz revelar-se de suma importância, outro diploma legal, que é o Estatuto da Cidade, Lei Federal de número 10.257 de 10 de Julho de 2001. Evidente, que faz-se imperioso uma abordagem do artigo 2º da supracitada Lei, in verbis: “Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:[…]” Contudo, merece destaque a opinião de uma parte da Doutrina, que defende a ideia de ser necessário uma materialidade no artigo 182 em seu §2º da CF/88 , no sentido de que houvesse uma abrangência específica do enfoque da função social, para que tal definição não fosse possível somente a cargo do plano diretor, e fosse independente das peculiaridades de cada Município. "Esse texto (art. 182 §2º da CF/88)  amesquinha o conceito de função social. Reduz esta a mera legalidade. Não se coaduna por exemplo, com o que está no art. 170, III".[29] Destarte, a renomada jurista Odete Medauar (2002, p. 17), em obra que se propõe a comentários do Estatuto da Cidade, onde esmiúça brilhantemente os dispositivos da Lei nº 10.257/2001, testifica a respeito do artigo 2º do Estatuto da Cidade, ao manifestar-se que: “O caput do art. 2º fixa como objetivo da política urbana o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Nas funções sociais da cidade, se entrevê a cidade como locus não somente geográfico e de mera reunião de pessoas, mas como o espaço destinado à habitação, ao trabalho, à circulação, ao lazer, à integração entre os seres humanos, ao crescimento educacional e cultural. Ao mencionar as funções sociais da propriedade urbana, com base certamente no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, o dispositivo ressalta o direcionamento da propriedade urbana a finalidade de interesse geral, com as quais há de se conformar ou conciliar o direito individual de propriedade, não mais dotado de caráter absoluto.” Nesta direção, não há que negar que a função social da propriedade, respalda a ingerência do Poder Público na propriedade privada, o que não implica em supressão ao sagrado direito a propriedade, uma vez que o proprietário não arranja a propriedade, aos preceitos constitucionais pautados fundamentalmente no interesse coletivo e geral. 4. DESAPROPRIAÇÃO POR NECESSIDADE OU UTILIDADE PÚBLICA E POR INTERESSE SOCIAL Após as linhas pretéritas em que se explicou o caminhar legislativo do instituto da desapropriação, sua principiologia e a relevante função social da propriedade, explica-se, agora, a diferenciação entre o ato de desapropriar como sendo por necessidade ou utilidade pública e por interesse social. Tais diferenciações foram instituídas pelo constituinte originário, respeitando o direito de terceira dimensão[30] e a disposição do preâmbulo da Carta de 1988[31], ao passo que foi resguardado a proteção da utilidade da função social da propriedade para com a coletividade frente aos indivíduos com “amplo campo social, econômico e políticos[32]”. Contudo, faça-se, agora, um viés comparativo entre institutos, pois, internacionalmente, o direito adquirido pela não violação da propriedade privada, direito este que fica em cheque com o instituto da desapropriação, é previsto, por exemplo, no Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 21[33], na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, no art. XXIII[34], na Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 17[35], e na Constituição Portuguesa, art. 62[36]. A atual Constituição da República Federativa do Brasil trata, no art. 5º, XXVI, sobre os antecedentes para implementar a desapropriação, pois “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. Nisto, Maria Sylvia Zanella [37]Di Pietro explica que, conforme a doutrina, a necessidade e a utilidade pública e o interesse social, mencionados no inciso supramencionado, surgem, respectivamente, quando: “[…] a Administração está diante de um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável incorporar, no domínio do Estado, o bem particular; Há utilidade pública quando a utilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo, mas não constitui um imperativo irremovível; Ocorre interesse social quando o Estado esteja diante dos chamados interesses sociais, isto é, daqueles diretamente atinentes à camadas mais pobres da população e à massa do povo em geral, concernentes à melhoria nas condições de vida, à mais equitativa distribuição da riqueza, à atenuação das desigualdades em sociedade.” Na seara do ordenamento jurídico, doutrina Maria Sylvia Zanella Di Pietro que em qualquer das modalidades para instituir a desapropriação, o Poder Executivo não poderá, por livre e espontânea vontade, atrelar determinada situação de domínio da propriedade particular ao seu bem querer, ou seja, ao decretar que certa propriedade particular é vista como necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, limites taxativamente legais deverão ser obrigatoriamente respeitados. A hipótese de necessidade pública não se encontra mais redigido na legislação hodierna, pois, com o fim da validade do antigo Código Civil de 1916, que prescrevia o art. 590, §1º e seus incisos[38], foi instituído um vaco sobre aquela modalidade de desapropriação. Atualmente, por meio do Decreto-lei nª 3.365/1941, “fundiu em uma só categoria – utilidade pública – os casos de necessidade pública e utilidade pública indicados no referido dispositivo do Código Civil[39]”. É o que prevê o art. 5º, alínea “p” do supramencionado Decreto-lei. O jurista Fábio Bellote Gomes[40], sobre o assunto necessidade e utilidade pública, explica, em sua opinião, o seguinte: “A necessidade ou utilidade pública se justifica pelo próprio interesse público que legitima a atuação da Administração e decorre, no caso concreto, da discricionariedade do ente expropriante que, a partir de um juízo próprio de conveniência e oportunidade, irá escolher o bem a ser desapropriado.” Em face da desapropriação por interesse social, como muito bem explicado anteriormente, tal modalidade engloba os itens de desenvolvimento urbano coletivo e a descaracterização do então direito absoluto individual, resguardando os pilares principiológicos existentes desde o preâmbulo da Constituição de 1988, passando pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88) e indo até o princípio da erradicação da pobreza (art. 3º, III do mesmo Códex Supremo). O primeiro caso para se decretar a desapropriação por interesse social são as hipóteses dos incisos do art. 2º da Lei 4.132/1962, que prevê: “Art. 2º Considera-se de interesse social: I – o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico; II – a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola, VETADO; III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola: IV – a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias; V – a construção de casa populares; VI – as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas; VII – a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais. VIII – a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas.” Por outro lado, prescreve o art. 182 da Constituição Federal: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem‑estar de seus habitantes.[…] § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: […] III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.” Como bem determinou o constituinte originário, a Administração Pública municipalista, com determinação imposta em lei ordinária específica para o fim de desapropriação, poderá, numa área incluída em seu Plano Diretor[41] e nos limites impostos em lei federal (no caso em tela são as especificações da Lei Federal nº 10.257/2001 [Estatuto das Cidades] especificamente em seu art. 8º), instituir a desapropriação sob propriedade de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, realizando o pagamento mediante títulos da dívida pública, o que é diferente da modalidade geral indenizatória de pagamento prévio em dinheiro. Outra situação de desapropriação por interesse social é enquadrada no art. 184 da Carta Magna. O capítulo III que institui a Política Agrícola e Fundiária e a Reforma Agrária, traz a seguinte autorização: “Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.” Instituída pela primeira vez no Brasil pela Emenda Constitucional nº 10 de 1964, a modalidade de desapropriação por interesse social visando à reforma agrária, teve o fim de quebrar o monopólio proprietário de grandes fazendeiros que, à época, possuíam a maioria dos bens imóveis rurais do centro-oeste, norte e nordeste do país, propriedades estas que ficavam à mercê de utilizações produtivas ou finalistas de domicílios, ao passo que a miserabilidade tomava conta do país. A EC nº 10/64 determinava que, escolhido a área que seria desapropriada, a Administração Pública deveria indenizar o desapropriado previamente por meio de títulos da dívida pública, contudo, no ano de 1969, o Ato Institucional nº 9 previu que não seria mais necessário a prévia indenização. No mesmo ano, com a vigência do Decreto-lei nº 554/1969, houve uma regulamentação própria à reforma agrária. Por outro lado, a Lei Complementar nº 76/1993, que sofreu alterações com a Lei Complementar nº 88/1996, é o diploma legal que regula a modalidade desapropriatória por interesse social para fins de reforma agrária. Em quaisquer das modalidades, vimos que o Ente Público, através da Administração Pública, está engessado pela legislação contemporânea, haja vista que suas atividades (especificação da espécie de desapropriação; rito e prosseguimento a serem utilizados; tipos indenizatórios; ações frente ao bem desapropriado, entre outras atividades) são taxativamente expressas em lei, leis estas que devem respeitar, sempre, os ditames legais do art. 5º, XXIV, art. 182 e 184, todos da Constituição Federal de 1988. 5. PROCEDIMENTO DE EXPROPRIAÇÃO Sabe-se que a aquisição de um determinado bem pode ser classificada em aquisição originária e aquisição derivada. De modo que na aquisição originária, cabe a transferência da propriedade, sem que haja, todavia, nenhuma relação sequer a respeito de um eventual título jurídico relativo ao bem. Não há que se falar, em conexão do proprietário atual com o proprietário anterior. São os clássicos exemplos de aquisição originária, os caçados e os pescados[42]. Por seu turno, a aquisição derivada acarreta a necessária atuação das partes, ensejando a efetiva participação dos elementos do transmitente e do adquirente, assim como a manifestação volitiva das partes, que se exteriorizam em negócios jurídicos bilaterais, como por exemplo, os contratos. Fato é, que a aquisição da propriedade por meio de desapropriação, é uma forma de aquisição muito peculiar em toda sua essência. Não obstante, não se pode negar que sua forma de aquisição se dê mediante a modalidade originária, como já oportunamente ressaltado. “A desapropriação assim, é considerada o ponto inicial da nova cadeia casual que se formará para futuras transferências do bem”.[43] Por esse motivo, fica certo a impossibilidade de irreversibilidade da transferência, e a extinção de quaisquer direitos reais de terceiros que recaiam sobre a coisa. O instituto da desapropriação de bens decorre de uma engrenagem de atos, de certo estipulados em lei, que implicam na incorporação de um bem, propriedade de um particular, ao patrimônio público. Ressalta-se mais uma vez, a necessidade de previsão expressa em lei. Nesse viés, cumpre observar que de fato, a desapropriação constitui instituto, na medida em que: “Instituto, na terminologia jurídica, é a expressão utilizada para designar o conjunto de regras e princípios que regem certas situações de direito, sendo, portanto, um complexo ordenado de normas configurando um todo coerente em torno de uma parte específica de um objeto de um ramo do Direito. Miguel Reale afirma que "os institutos representam estruturas normativas complexas, mas homogêneas, formadas pela subordinação de uma pluralidade de normas ou modelos jurídicos menores a determinadas exigências comuns de ordem ou a certos princípios superiores, relativos a uma dada esfera da experiência jurídica[44]". No que concerne ao sui generis procedimento para desapropriação, cabe salientar, que a doutrina dominante, no qual se destacam os entendimentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro e José dos Santos Carvalho Filho, consideram que se constitui por duas fases, são elas, a fase Declaratória e a fase Executória, sendo que a fase Executória se ramifica em uma fase administrativa e outra fase denominada judicial.  Lados outro, existem entendimentos minoritários, mas não menos relevantes, que tratam do procedimento de desapropriação, sob um prisma diferente das clássicas abordagens já consolidadas, dentre as quais merece respeito o posicionamento adotado pela professora Fernanda Marinela. Em relação à fase Declaratória, tem-se que esta consiste na manifestação da vontade do Poder Público na eventual desapropriação de certo bem de propriedade de um particular. A declaração expropriatória deve preceder a atuação concreta do Estado na transferência do bem para sua posse. “Verifica-se facilmente que a declaração expropriatória expressa uma vontade administrativa; e essa vontade, a seu turno, estampa a intenção de promover a transferência do bem”.[45] Igualmente, a declaração expropriatória, não somente pode ser realizável pelo Poder Executivo através de decreto, como também cabe ao Poder Legislativo apresentar declaração expropriatória, neste caso, mediante lei[46], onde cabe no entanto, ao Poder Executivo as medidas necessárias para concretizar a desapropriação. Há certas condições que devem ensejar o ato declaratório, seja ele proposto pelo Poder Executivo ou Legislativo, de maneira que indique claramente a descrição do bem objeto de desapropriação, com todas suas características; o sujeito passivo da desapropriação; a modalidade de desapropriação, sejam elas, por utilidade pública ou por interesse social; juntamente com a destinação certa que será dada ao bem; a base legal, pois como dito, as hipóteses de desapropriação são taxativamente expressas em lei; e por derradeiro, os recursos orçamentários hábeis ao atendimento das despesas atinentes a execução da desapropriação da coisa. De certo que a simples declaração de utilidade pública já manifesta seus efeitos, consoante explanado por Celso Antonio Bandeira de Mello[47], sendo que: “a) submete o bem à força expropriatória do Estado; b) fixa o estado do bem, isto é, suas condições, melhoramentos, benfeitorias existentes; c) confere ao Poder Público do direito de penetrar no bem a fim de fazer verificações e medições, desde que as autoridades administrativas atuem com moderação e sem excesso de poder; d) dá início ao prazo de caducidade da declaração.” Em que pese ao prazo de caducidade no procedimento de desapropriação, na fase Declaratória, Fernanda Marinela[48] assevera no sentido de que: “No que tange ao prazo de caducidade, esse corresponde ao prazo entre a decretação e o acordo final ou a interposição da ação judicial, quando não for possível a composição. Esse prazo busca proteger o proprietário que, tendo sua propriedade sofrido inúmeros restrições, aguarda a indenização e a perda definitiva do bem, que só acontece na fase seguinte, a executiva, impedindo que ele fique no prejuízo por muitos anos. Esse intervalo é diferente em cada modalidade.” Dessa forma, o prazo de caducidade da desapropriação por utilidade e necessidade pública é de 5 anos[49], sendo que não há previsão legal que regule acerca do prazo para providências. Na modalidade de desapropriação por interesse social, tanto o prazo de caducidade, quanto o prazo para providências é de 2 anos[50]. Na desapropriação do Plano Diretor, conforme a regulamentação dada pelo Estatuto da Cidade não há prazo de caducidade embora esteja previsto o prazo de 5 anos[51] para providências. Por conseguinte, parte-se para análise da Fase Executória também denominada de Fase Executiva, onde irá ocorrer de fato a consumação da desapropriação, de maneira que é nesta fase que se concretiza a transferência do bem do patrimônio particular para o patrimônio do Estado. É na fase Executória que ocorre a transmissão do bem desapropriado ao expropriante, o que, por sua ordem, oportuniza o direito a indenização ao proprietário a quo. Esta etapa da desapropriação pode seguir dois caminhos distintos, a depender de haver convergência entre as parte, no que refere-se a indenização. De modo que havendo harmonia entre as partes acerca da indenização, será seguido um procedimento administrativo. A não composição entre expropriante e expropriado, no que pese a indenização, enseja a necessária interferência do Poder Judiciário, para solucionar a lide. Quando a fase executória segue via administrativa, fica evidenciado que houve entendimento entre as partes, no tocante a devida indenização, e que é de suma importância para a corporificar a desapropriação, a observância de certos procedimentos e formalidades, como por exemplo, a escritura no Registro de Imóveis nos casos de bem imóvel, ou mediante outro procedimento que seja solicitado por lei.[52] Nesse ínterim, surge oportuno, a averbação de Diógenes Gasparini no tocante a via administrativa na fase executória: “[…] esse negócio alienativo só pode ser ajustado se houver certeza quanto ao domínio e quanto aos documentos que comprovam. A administração, em consequência, precisa cercar-se de todas as cautelas para celebrar negócio jurídico válido e evitar que seja inquinado de vício na vontade ou na forma, proporcionando futuramente sua anulação.” Em não havendo convergência entre as partes sobre a indenização, não há outro caminho que não seja a via judicial. Outrossim, também implica via judicial, caso em que  o proprietário do bem for desconhecido, de modo que por óbvio, fica humanamente impossível oportunizar uma conciliação, requisito indispensável para o tráfego da desapropriação pela via administrativa. A ação de desapropriação tramita por rito especial, e as normas são disciplinadas, mediante a modalidade da desapropriação, que são, desapropriação por interesse social e utilidade pública[53] e desapropriação para reforma agrária[54], o que importa na aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. O juiz pode conceder ao expropriante, o benefício de entrar na posse do bem, durante a tramitação do processo, desde que configurada a urgência[55] e depositada a quantia arbitrada pelo juízo, tal situação denomina-se imissão provisória na posse, que inclusive já teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal através da Súmula 652. Cumpre ressaltar que a jurisprudência dominante admite a imissão provisória na posse, até mesmo sem que haja pagamento anterior e total a título de indenização. Isso porque, o depósito não tem o fito de resguardar a perda do bem expropriado, mas sim compensar a diligência excepcional que se manifesta na antecipação da posse ao expropriante. Nesse sentido manifestou-se o Supremo Tribunal Federal na seguinte decisão: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE. EXIGÊNCIA DO PAGAMENTO PRÉVIO E INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 15 E PARÁGRAFOS DO DECRETO-LEI Nº 3.365/41. PRECEDENTE. 1. O Plenário desta Corte declarou a constitucionalidade do art. 15 e parágrafos do Decreto-lei nº 3.365/41 e afastou a exigência do pagamento prévio e integral da indenização, para ser deferida a imissão provisória na posse do bem expropriado. 2. Recurso Extraordinário conhecido e provido.” (STF – RE: 216964 SP , Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 10/11/1997, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 16-02-2001 PP-00140 EMENT VOL-02019-03 PP-00479). Assim também foi o entendimento deslindado pela corte do Superior Tribunal de Justiça de São Paulo: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. ART. 535, II, DO CPC. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. IPTU. COBRANÇA. SUJEITO PASSIVO. PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL. INVASÃO DA PROPRIEDADE POR TERCEIROS. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO NA POSSE PELO PODER PÚBLICO APÓS O FATO GERADOR. ARTIGO 34 DO CTN. EXAÇÃO INDEVIDA. POSSE DO MUNICÍPIO EXPROPRIANTE EXERCIDA ANTES DA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE IMISSÃO PROVISÓRIA. LOTEAMENTO E BENFEITORIAS NA ÁREA. ANIMUS APROPRIANDI. 1. Hipótese em que o município alega, além da violação do art. 535, II, do CPC, seja reconhecido ao proprietário do imóvel a legitimidade de figurar como sujeito passivo do tributo (IPTU – ano de 1991), não obstante a propriedade ter sido invadida por terceiros e, por fim, desapropriada pelo próprio ente público. 2. A Corte de origem manifestou-se sobre todas as questões indispensáveis ao deslinde da controvérsia, motivo pelo qual não há falar em violação ao art. 535, II, do CPC. 3. O artigo 34 do CTN dispõe que: "Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título". 4. "Ao legislador municipal cabe eleger o sujeito passivo do tributo, contemplando qualquer das situações previstas no CTN. Definindo a lei como contribuinte o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título, pode a autoridade administrativa optar por um ou por outro visando a facilitar o procedimento de arrecadação" (REsp 475.078/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 27.9.2004). 5. "A simples declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação, não retira do proprietário do imóvel o direito de usar, gozar e dispor do seu bem, podendo até aliená-lo. Enquanto não deferida e efetivada a imissão de posse provisória, o proprietário do imóvel continua responsável pelos impostos a ele relativos" (REsp 239.687/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de 20.3.2000). 6. Não obstante a posse legal da municipalidade tenha ocorrido somente em 1992 com o autorização judicial para imissão na posse, o que lhe garantiria o direito de cobrança da exação referente ao ano anterior do proprietário, o fato é que ela já havia ingressado na área antes, loteando-a e implementando melhoramentos como asfalto, energia elétrica entre outros, o que lhe retira o direito de cobrar a exação do proprietário. 7. Não se pode exigir do proprietário o pagamento do IPTU quando sofreu invasão de sua propriedade por terceiros, defendeu-se através dos meios jurídicos apropriados e foi expropriado pela municipalidade, sendo que esta, antes de receber a autorização judicial para imissão provisória, ingressou na área com o ânimo de desapropriante. 8. Recurso especial não provido.” (STJ   , Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 25/08/2009, T1 – PRIMEIRA TURMA). O levantamento parcial do depósito realizado pela parte expropriante, de certo modo serve para compensar a perda da posse da parte expropriada, que embora discorde do valor ofertado pode levantar até 80%[56] do deposito realizado pelo expropriante. O levantamento do saldo deve ser feito no desfecho da Ação de Desapropriação, mediante alvará judicial ou processo de execução e precatório. 6. OS ATOS DE DESAPROPRIAÇÃO OCORRIDOS DURANTE A COPA DO MUNDO DE 2014 NA CIDADE DE BELO HORIZONTE É inegável o caráter de necessidade básica que uma moradia adequada tem sobre o indivíduo, assim como o condão de refletir diretamente na qualidade de vida do homem, repercutindo em sua dignidade e em sua saúde física e moral. O direito à moradia não se limita ao direito que o indivíduo tem a quatro paredes e um teto. O conceito vai muito, além disto. Reconhecer o verdadeiro significado do direito à moradia implica reconhecer uma gama de outros direitos atrelados a ele, como o direito humano à vida digna em um lar firmado em uma comunidade que proporcione segurança, bem estar, harmonia e paz como pilares fundamentais. O direito à moradia adequada é um dos Direitos Humanos mais sensibilizados e clamados pela na seara internacional, sobretudo tendo em vista o cenário contemporâneo de crise econômica, catástrofes climáticas e pelo processo de urbanização capitalista, o que faz com que sua concretização e efetividade sejam sobrestadas. O reconhecimento da importância do direito à moradia no âmbito internacional, como direito humano fundamental, teve seu estopim com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948, e que prevê em seu artigo 25 que "toda pessoa tem direito a um padrão de vida adequado para a saúde e o bem estar próprios e de sua família, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais necessários […]". Com efeito, faz de significativa importância o protesto da Relatora Especial das Organizações das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, quando assevera acerca do conceito da moradia adequada e os elementos que o integram, a saber: “A formulação do direito humano à moradia adequada se deu no âmbito de um direito a um adequado padrão de vida. A moradia não é em si mesma, ou seja, não é apenas uma estrutura que protege e cobre a cabeça dos usuários. Portanto, o conceito de direito à moradia é formulado como elemento essencial para uma condição adequada de vida. Nesse sentido, o conceito de direito à moradia, engloba aspectos importantes como, por exemplo, não apenas a estrutura física de uma casa, um teto, mas também a infraestrutura na qual a casa está conectada, os serviços de água, esgoto, coleta de lixo, além de todo acesso a um meio ambiente saudável, e também a infraestrutura social. Este último aspecto significa acesso a equipamentos de saúde, de educação, oportunidades de lazer, transporte e mobilidade e, principalmente, o acesso aos meios de vida e sobrevivência, ou seja, o acesso à terra, ao trabalho, enfim, à renda. Este é um elemento fundamental para que as pessoas que moram naquele local possam também ter oportunidades de desenvolvimento humano e econômico. Tudo isso, obviamente, sob o marco da segurança, não apenas física- a não ameaça à saúde e a vida das pessoas-, mas também a segurança da posse, ou seja, a certeza de que aquele lugar não está sujeito a remoções intempestivas. Todos esses elementos, além de outros como a adequação cultural e a razoabilidade do custo, compõe o conceito do direito à moradia adequada.”[57] É cediço que o direito à moradia adequada encontra substrato legal em muitos diplomas internacionais, que reafirmam o direito à moradia como Direitos Humanos, entre os quais merece destaque o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[58], que em seu artigo 17 ampara a proteção contra interferências arbitrárias e ilícitas no domicílio. Outro destacado é o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[59], que reconhece em seu artigo 11, o direito de todas as famílias a um padrão adequado de habitação. Além dos dois Pactos internacionais, o direito à moradia também é reconhecido pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial[60], pela Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher[61], a Convenção Internacional sobre o Direito das Crianças[62], a Convenção Internacional sobre o Direito de todos os Trabalhadores Migrantes e dos membros de suas famílias[63], e pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados[64]. Contudo, convém lembrar a necessidade de uma interpelação que acentue a indivisibilidade e a integralidade dos direitos humanos, sem a qual o direito à moradia pode ser completamente inócuo. Isso porque o direito á moradia está intimamente ligado a outros direitos humanos como o direito à vida, à saúde, ao trabalho, a terra, a água, a propriedade e a segurança, o que significa dizer que todos os direitos humanos estão no âmago do direito à moradia. Cabe dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana tem conexão com a guarida da moradia adequada. Isso porque "é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material de direitos fundamentais, o que evidentemente também se aplica aos direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais em geral e ao direito à moradia em particular".[65] Com o fito de garantir a efetividade do direito à moradia, uma equipe de especialistas da ONU, juntamente com o Relator especial das Nações Unidas para a moradia adequada apontaram as áreas primordiais para a atuação do Estado, no sentido de: promover a segurança da posse, prevenir a discriminação no acesso à moradia, proibir despejos ilegais e massivos, eliminar a falta de moradia e promover processos participativos para indivíduos e famílias que necessitam de habitação. Efetivar a dignidade intrínseca da pessoa humana no exercício do direito à moradia implica em garantir um lar de acesso aberto, habitável, que se situe nos arredores das fontes de renda e cultura, e com alcance a serviços vitais de infraestrutura. Não obstante, o grau de desenvolvimento ou pobreza de uma determinada sociedade, os níveis de suas peculiaridades culturais também influenciam no caráter digno e adequado, como predicado da moradia. Dessa forma, o CG número 4[66] expõe um arcabouço de modo a facilitar o entendimento do conceito da moradia adequada, mesmo que esta noção, qual seja, de moradia adequada e digna, se transforme em diferentes países, com diferentes níveis sociais, econômicos, climáticos e culturais. Estes elementos são: “a) Segurança jurídica da posse de maneira que exista a proteção jurídica em face de despejos forçados e quaisquer ameaças; b) Disponibilidade de serviços como saúde, segurança, educação. Disponibilidade de instalações e infraestrutura e acesso aos recursos naturais; c) O direito a moradia não deve ser tão oneroso, a ponto de sacrificar outras necessidades básicas do indivíduo; d) A moradia deve proporcionar a segurança do indivíduo, protegendo-o contra intempéries, ou outros riscos para a saúde como vetores de doenças; e) Garantia do acesso a moradia adequada e a terra aos grupos mais vulneráveis, tais como crianças, idosos e doentes. f)Acesso as necessidades básica das sociedade, como emprego, escola, hospitais, creches. Nesta tônica, merece relevo a questão que tange a segurança da posse, onde o Comitê DESC/ONU legitimou o Comentário Geral de número 7[67], que enfatiza a repulsa da Comissão de Direitos Humanos aos despejos forçados, e estabeleceu que "os despejos forçados só podem ser justificados em circunstâncias excepcionais e realizados em conformidade com os princípios relevantes do direito internacional e dos direitos humanos." Neste rumo, cabe citação acerca da definição de despejos forçados realizada pelo CG nº 7, que implica em: “[…] remoção permanente ou temporária de pessoas, famílias e/ou comunidades de suas moradias e/ou das terras que ocupam, contra sua vontade e sem oferecer-lhes meios apropriados de proteção legal ou de outra índole nem permitir-lhes seu acesso a elas. Entretanto, a proibição de despejos forçados não se aplica aqueles efetuados legalmente e em acordos com as disposições dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos.” Em pesquisa realizada pela agencia especializada da ONU sobre assentamentos humanos[68], foi concluído uma série de fatores comuns aos despejos forçados, dentre os quais se pode destacar o fato de os despejos forçados prevalecem em locais que apresentam as piores condições de moradia,  afetam sempre a classe social mais pobre, e são executados na maioria das vezes de forma agressiva e violenta. Raquel Ronik destaca ainda, que os mais violentos titulares do direito à moradia vivem em condição de pobreza extrema. Há que se falar ainda, em relação aos despejos, posto que estes podem ser ocasionados por diferentes razões, dentre as quais sobressaem-se  os conflitos sociais, sobretudo aqueles que ocorrem em cenários de deslocamentos forçados provocados por conflitos armados, êxodo em larga escala, ação de refugiados e pela atuação do Poder Público através de desapropriações forçadas. Contudo, é digna de referência a menção de Letícia Marques Osório[69] sobre os despejos forçados e fomentados por projetos de mobilidade e renovação urbana: “Os despejos impulsionados pelo mercado ocorrem por meio de projetos de renovação urbana, aumento dos valores da locação, o aumento do valor da terra resultantes de projetos de regularização fundiária, etc, os quais tendem a despejar as famílias mais pobres do centro da cidade para áreas periféricas e podem dar origem a aumentos exorbitantes nos gatos com habitação. O Comitê DESC reconhece que os despejos forçados também ocorrem em nome do desenvolvimento e podem ser realizados no âmbito de conflitos fundiários, projetos de infraestrutura- barragens, renovação urbana, programas de embelezamento da cidade, especulação imobiliária desenfreada, eventos esportivos e Jogos Olímpicos.” Nesta trilha, a Resolução nº 2004/28[70] corrobora que "a prática de despejos forçados é contrária às leis que estão em conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos, e constitui uma grave violação de uma ampla gama de direitos humanos em particular o direito à moradia adequada”. Curiosa situação é percebida pelo CG nº 7 ao constatar que o despejo forçado de indivíduos alojados em locais irregulares, em nome do tão almejado desenvolvimento como dos projetos de renovação urbana, tem como consequência novos assentamentos irregulares. Isso porque "a falta de remédios legais, de adequadas opções reassentamentos ou de justa composição para os despejos resultantes da ação do mercado resultam na formação de novos assentamentos informais precários, localizados em áreas impróprias para a moradia[71]”. Com efeito, o para 16 do CG nº 7 estipulou normas internacionais de direitos humanos que devem servir de diretrizes em matéria de despejos forçados, quais sejam: “a) dispor de uma autêntica oportunidade processual para que se consultem as pessoas afetadas; b) dispor de um prazo suficiente e razoável de notificação a todas as pessoas afetadas com atenção à data prevista para o despejo; c) que facilite a todos os interessados, num prazo razoável, a informação relativa aos despejos previstos e, nesse caso, aos fins a que se destinam as terras ou moradias; d) contar com a presença de funcionários do governo ou seus representantes no despejo, especialmente quando este afete grupos ou pessoas; e) identificação exata de todas as pessoas que efetuem o despejo; f) que o despejo não se produza quando haja muito mal tempo ou de noite, salvo que as pessoas afetadas permitam expressamente; g) que seja oferecido recursos jurídicos aos afetados; h) que seja oferecida assistência jurídica, sempre que seja possível, a quem necessite pedir reparação aos tribunais.” Nesta esteira, cumpre salientar que os Estados devem de fato abnegar os despejos forçados e que quando realizados, devem ser balizados com os fundamentos do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e com arrimo nas demais disposições atinentes a cada caso concreto. Assim, o CG nº 4, para 8 assevera que "não obstante o tipo de posse, todas as pessoas devem possuir um tipo de posse que garanta a proteção jurídica contra despejos forçados, o assédio e outras ameaças". De fato que, “a segurança dos direitos de posse, em suma é, o direito de todos os indivíduos ou grupos à efetiva proteção do Estado contra despejos forçados[72].” No mesmo sentido, é a constatação de Osório[73] ao dispor que: “Os Estados devem, portanto, revisar suas legislações e políticas de modo a assegurar que sejam compatíveis com as obrigações resultantes do direito humano à moradia e de ser protegido contra despejos, bem como reformar ou emendar quaisquer legislações ou políticas inconsistentes com os requerimentos do CDESC em relação aos despejos. A falta de proteção a um dos elementos essenciais de uma moradia adequada- a segurança da posse- pode aumentar o risco de despejo de pessoas que não tem acesso legal à terra e à habitação. Os Estados devem ser cautelosos ao lidar com as ocupações e construção informais e lembrar que suas obrigações para com o direito à moradia das pessoas que não possuem acesso legal aos recursos de moradia, devido a indisponibilidade de tais opções. […]. Ademais, a ausência de segurança na posse experimentada por muitos moradores dos assentamentos informais resulta na impossibilidade de investimentos na moradia e na justificativa para a não realização de investimentos públicos em serviços e infraestrutura básica.” No cenário prático, as Nações Unidas, através de seus organismos que se empenham na peleja contra os despejos forçados, emitem observações sobre os países que se esforçam em erradicar os despejos compulsórios e constatam os países que ainda estão aquém do piso vital mínimo estabelecido pela ONU em relação à segurança da posse. No pertinente a situação do Brasil[74], foi investigada pelo Comitê DESC que "pelo menos 42% das famílias vivem atualmente em condições inadequadas de moradia, sem abastecimento de água potável, sem dispositivos de coleta e retirada do lixo. Observou também que 50% da população das principais áreas urbanas vivem em assentamentos ilegais”. Diante disso, fica certo que os despejos forçados são reflexos da falta de segurança jurídica em relação à posse. Não obstante a repulsa das Nações Unidas e demais entidades de direitos humanos em face dos despejos compulsórios, as desocupações forçadas ainda são a realidade e aumentam a cada dia a insegurança na seara urbana. O reconhecimento e a guarida da posse de pessoas da classe pobre e dos alojados em assentamentos informais é um meio hábil de o Estado se esquivar de atuações baseadas em despejos compulsórios. Noutro giro, em atenção ao mundial de futebol que ocorrera no Brasil em junho e julho de 2014, inúmeros atos de desapropriação surgiram nas cidades sedes. Em especial a cidade de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, movimentos sociais e reivindicatórios de direitos e garantias foram travados antes, durante e após a Copa do Mundo de 2014, provocando uma verdadeira batalha de interesses. Alguns moradores da municipalidade de Belo Horizonte vêm sofrendo com problemas de remoções muito anteriores ao mundial de futebol de 2014, contudo, houve um agravamento durante a preparação daquele campeonato, que, segundo informações do próprio Ministério Público Federal (MPF): “[…] antes mesmo das obras da Copa, a cidade já enfrentava a ameaça de remoção de 4450 famílias (correspondente a mais de 15 mil pessoas) residentes em assentamentos informais. As “principais comunidades afetadas são: Dandara (900 famílias), Camilo Torres (140 famílias), Irmã Dorothy” (130 famílias), Torres Gêmeas (180 famílias), e o entorno do Anel Rodoviário (3100 famílias). Outras denúncias estão sendo feitas no âmbito do Judiciário e dos movimentos sociais em relação ao projeto de reurbanização de favelas “Vila Viva”, desenvolvido em parceria entre o Governo Federal e o município. Em carta enviada2 a todos os agentes envolvidos na implantação do projeto, em 29 de março, o MPF revela que cerca de 3150 domicílios do aglomerado serão beneficiados com a intervenção urbanística, entretanto, 1038 famílias deverão ser removidas para a execução das obras, sendo que apenas 640 serão reassentadas na área de intervenção do programa e as demais 398 famílias serão submetidas a deslocamento forçado, sem que tenha sido discutida com elas qualquer alternativa habitacional ou mesmo os critérios de definição das famílias a serem removidas”[75]. Por estes fatos, grupos organizados e atuantes em todo o país estão, até os dias hodiernos, difundindo informações e denúncias sobre as desapropriações oriundas da Copa do Mundo de 2014. Em Belo Horizonte um dos grupos mais bem estruturados é a “Comitê Popular dos Atingidos pela Copa 2014 BH” que foi organizado por pessoas membros de vários setores da sociedade, buscando debater, entender e criticar os processos de revalidação da Copa do Mundo de 2014, na cidade de Belo Horizonte. Outra entidade organizada e reconhecida mundialmente também criticou os atos de desapropriação realizados pelo Governo Federal. A Organização das Nações Unidas (ONU), através da relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Raquel Rolnik, criticou os atos de desapropriatórios do Governo Federal Brasileiro, o que gerou uma repercussão internacional, pois, conforme manifesto da própria relatora da ONU: “Com a atual falta de diálogo, negociação e participação genuína no desenvolvimento e implementação de projetos da Copa do Mundo e da Olimpíada, as autoridades de todos os níveis devem interromper todas as desapropriação planejadas até que se possa garantir diálogo e negociações”[76]. Ainda sobre o assunto, Raquel Rolnik afirma que o problema maior e mais grave são as baixas quantias pagas face às desapropriações, o que é contraditório com o momento em que o Brasil, em especial as capitais, estão possuindo com os altos valores imobiliários. O reflexo de todas as desapropriações oriundas na capital mineira foram as do entorno do Estádio do Mineirão, este que passou por reformas para adaptação de vias de acesso veicular e não veicular, por exemplo, as obras que fazem conexão com o Estádio do Mineirão tiveram projetos de mobilidade urbana, corredores exclusivos de ônibus e veículos privados, como foi o caso da alça de acesso que foi construída a quinhentos metros de onde ocorreram os jogos e, ainda, a remoção de cerca de sessenta famílias da comunidade Recanto da Universidade Federal de Minas Gerais. Durante todo o procedimento desapropriatório, o Governo Federal não apresentou estatísticas sobre os atos que cometerá, deixando de lado toda a exigência de transparência imposta pela Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011. Porém, quase no final da Copa do Mundo de 2014, mais precisamente aos dez dias de julho de 2014, o Governo Federal, através da Secretaria Geral da Presidência da República, divulgou um quadro que demonstra o total de desapropriações e deslocamentos involuntários, alterações compulsórias de residência ou de exercício de atividades econômicas, “provocado pela execução de obras e serviços de engenharia e arquitetura, melhorando a qualidade de vida e assegurando o direito à moradia das famílias afetadas[77]”. Conforme o quadro abaixo, podemos atinar, precisamente, sobre os números divulgados exclusivamente sobre a cidade de Belo Horizonte: Neste compêndio, observa-se que pelo ato unilateral do Governo Federal, 36.600 pessoas foram forçadas a deixar suas residências, dando lugar às obras de urbanização. No entanto, o quadro apresentado pela Secretaria Geral da Presidência da República não apresenta quantas famílias já foram indenizadas pela desapropriação ou até mesmo reassentadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O ato exclusivo da Administração Pública pela desapropriação é algo que vem inserido no ordenamento jurídico internacional e nacional durante uma carreira de décadas, garantindo, conforme a principiologia do ato, um ajustamento da função social do bem imóvel condicionando o bom cumprimento de uma finalidade de interesse público, assim, a desapropriação é um dos atos mais enérgico como forma da Administração Pública em intervir numa propriedade devidamente regulada, ou não, de um particular, para, no final da atividade, ter buscado o interesse soberano da coletividade. Para realização do ato de desapropriação, o que foi muito bem detalhado, o Poder Executivo deverá respeitar diversos procedimentos de validação, em especial o ato de indenizar, previamente, o desapropriado. Contudo, durante a Copa do Mundo de 2014, pode-se observar que muitos procedimentos foram deixados de lado, colocando como justificativa suprema pelas remoções a modernização da infraestrutura urbana àquele evento. De certo é que o que houve foi uma modernização sem o devido procedimento legal na maioria dos casos, o que obteve como corolário um contexto de segregação social ao extremo, posto que diversas denúncias foram registradas, alegando desapropriações não indenizadas previamente, falta de remanejamento dos desocupados, carência de transparência para com a sociedade e ações ilegais, o que repercutiu na mídia internacional e nacional, colocando o Governo Federal em vistas grossas com a Organização das Nações Unidas, Ministérios Públicos Federais, Defensorias Públicas e organizações civis.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-ato-de-desapropriacao-no-ordenamento-juridico-patrio/
Discussões acerca da natureza jurídica e eficácia das decisões dos Tribunais de Contas
Os Tribunais de Contas compreendem órgão que auxilia o Poder Legislativo no exercício do controle externo da Administração Pública como entidade autônoma e independente, sendo lhes incumbido de fiscalizar as atividades realizadas pelo Poder Público, verificar e julgar a contabilidade de receitas e despesas, a execução orçamentária e variações patrimoniais do Estado.  Assim, este estudo teve como objetivo a análise e demonstração das discussões doutrinárias e suas diversas correntes, sempre considerando a natureza jurídica e eficácia das decisões dos Tribunais de Contas, trazendo, ainda, as opiniões dos Tribunais Superiores por meio de seus julgados, tendo como metodologia no desenvolvimento desse estudo a pesquisa bibliográfica. Constatando-se que, não obstante, os diversos fundamentos articulados posicionando-se no sentido da atuação limitada do Judiciário nas revisões das decisões das Cortes de Contas, nota-se que a doutrina majoritária e a jurisprudência dos Tribunais Superiores vêm permitindo uma  crescente possibilidade de revisão pela análise jurisdicional.
Direito Administrativo
Introdução A Constituição Federal de 1988 concedeu aos Tribunais de Contas uma significativa ampliação de suas tarefas, atribuindo-lhes poderes para efetuarem a fiscalização contábil, financeira, operacional e patrimonial dos entes públicos, não apenas sob a égide da legalidade, incluindo o aspecto, também, da legitimidade, pondo-os como instituições guardiãs dos direitos fundamentais e como instrumentos para o exercício do controle externo da Administração Pública. Atualmente, o Tribunal de Contas é órgão que auxilia o Poder Legislativo no exercício do controle externo da Administração Pública, como entidade autônoma e independente, sendo lhes incumbido de fiscalizar as atividades realizadas pelo Poder Público, o que o leva a verificar a contabilidade de receitas e despesas, a execução orçamentária e variações patrimoniais do Estado, considerando como princípios norteadores a legalidade, o interesse público, economia, eficiência, eficácia e efetividade. Assim, a justificativa desse trabalho decorre da importância do tema, tem-se que os Tribunais de Contas são órgãos que possuem vasta e notória tradição, no que se diz respeito ao correto funcionamento da Administração Pública. Pelo seu cunho controlador, fiscalizador e pedagógico. De modo que a atuação do Tribunal de Contas como mecanismo de controle externo, tendo por objetivo principal o aperfeiçoamento contínuo da fiscalização dos recursos originados da administração pública brasileira. Como objetivo deste estudo, buscou-se analisar e demonstrar as discussões doutrinárias, suas diversas correntes e argumentos, sempre considerando a natureza jurídica e eficácia das decisões dos Tribunais de Contas, trazendo, ainda, as opiniões dos Tribunais Superiores por meio de seus julgados. Enquanto que por metodologia aplicou a pesquisa bibliográfica para a construção do enquadramento teórico, buscando os fundamentos teóricos necessários para tratar das questões referentes à natureza jurídica e eficácia das decisões em debate, considerando, também, a análise jurisprudencial como forma de representar a realidade dos julgados pátrios. É nesse sentido que o presente trabalho traz noções conceituais e sobre a natureza jurídica dos Tribunais de Contas, elencando as competências constitucionais dos Tribunais de Contas. Incluindo-se a análise da natureza jurídica e eficácia das decisões das Cortes de Contas, considerando o exercício do controle constitucionalidade pelos referidos tribunais; a sustação de atos e contratos administrativos; as decisões dos Tribunais de Contas com eficácia de títulos executivos e, ainda, as divergências doutrinárias acerca da eficácia das supracitadas decisões. E, por derradeiro, algumas considerações finais. 1. Conceito e natureza jurídica dos Tribunais de Contas Comumente, define-se Tribunal de Contas como sendo órgão de apoio aos Poderes da República, auxiliando e orientando na realização do controle externo das despesas públicas, praticando atos de caráter fiscalizatórios, embora não haja caráter de subordinação. Mas há debates doutrinários acerca da natureza jurídica dos Tribunais de Contas e que o tema ainda não foi pacificado pela doutrina. A Carta de 88 dispõe sobre os Tribunais de Contas em tópico conferido ao Poder Legislativo, especificamente na seção destinada para a normatização referente à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, estabelecendo no art. 71 que o controle externo de competência do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas. O que pode ser constatado não estar compreendido dentre os Poderes Executivo e Judiciário, mas em relação ao Poder Legislativo, em que a Carta Maior dispõe que com o auxílio do Tribunal de Contas será exercido o controle externo a cargo do Congresso Nacional, constante no artigo 71, gerou inúmeros debates no tocante ao vínculo entre o órgão em estudo e o Poder Legislativo. Por isso, há corrente doutrinária que considera as Cortes de Contas subordinadas hierarquicamente ao Poder Legislativo, em razão de sua posição de auxiliar pelo texto legal é o que defendem Paulo e Alexandrino (2008) e afirma Carvalho Filho (2007) ser órgão integrante do Congresso Nacional. Cretella Júnior (apud MELO, 2013) e Meirelles (apud MELO, 2013) classificam os Tribunais de Contas como órgãos administrativos independentes. Mas, também, com argumentos contundentes Britto (2001), adverte que o Tribunal de Contas não é órgão do Poder Legislativo.  Tendo por fundamento a própria Constituição Federal, art. 44, em que o Poder Legislativo será exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, por isso, o Parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União. Quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo com o auxílio do Tribunal de Contas da União (art. 71), está a falar de auxílio do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Por fim, tem-se que a natureza jurídica do Tribunal de Contas compreende órgão independente com autonomia administrativa e financeira, de auxiliar e de orientação do Poder Legislativo, embora não esteja a ele subordinado, exercendo atividade de natureza administrativa, fundamentalmente, de fiscalização. 2. Competências constitucionais dos Tribunais de Contas Estabelece o art. 70, CF/88, que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder.  Assim, as competências constitucionalmente estabelecidas ao Tribunal de Contas da União se dividem em processos com peculiaridades típicas de cada um, em que podem ser apontadas doze atribuições desempenhadas pelo órgão. Ressalta-se que, segundo o art. 75, CF/88 e pelo princípio da simetria constitucional, as disposições normativas estabelecidas na Constituição Federal concernentes ao Tribunal de Contas da União aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, a seguir expostas. Considerando o art. 71, CF/88, incisos I a XI, compete ao Tribunal de Contas da União apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento. Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público. Apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório Também  são  incumbidos os Tribunais de Contas de realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo. Fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município. Prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas. E, ainda, aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesas ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário. Determinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade. E, se não atendido o supracitado prazo, sustar a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. Representando, ainda, ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados. 3. Natureza jurídica e eficácia das decisões dos Tribunais de Contas Questionamentos e divergências doutrinárias sempre surgem quando se indaga sobre a natureza jurídica das decisões prolatadas pelos Tribunais de Contas, em que o ponto fundamental da discussão compreende o caráter jurisdicional ou não de tais decisões. Considerando os argumentos lançados pela doutrina, inicialmente serão postos os que defendem o caráter jurisdicional de tais decisões. Defensor de tal posição, Fernandes (2003) aponta que em relação à questão dos limites à revisão judicial, que o exercício da função de julgar não é restrito ao Poder Judiciário, sendo que as Cortes em estudo também possuem a competência constitucional de julgar contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. A expressão julgamento não pode ter outro significado que não corresponda ao exercício da jurisdição, o qual somente será efetivo se produzir coisa julgada e que tanto doutrina quanto a jurisprudência dos Tribunais Superiores admitem pacificamente que as decisões dos Tribunais de Contas, quando adotadas em decorrência da matéria que o legislador constituinte estabeleceu na competência de julgar, não podem ser alteradas quando ao mérito. Salienta-se que a limitação proposta no argumento supracitado se refere à atribuição trazida no artigo 71, inciso II, da Carta Constitucional, isto é, tem-se o exercício de jurisdição pelo uso da palavra ‘julgar’, atribuindo-se perenidade da coisa julgada à decisão da Casa de Contas, semelhante às prolatadas pelo próprio Judiciário. Também postulam sobre parcela jurisdicional conferida aos Tribunais de Contas Leal (apud FERNANDES, 2003) e Fagundes (apud FERNANDES, 2003), mesmo não reconhecendo que os aludidos órgãos não integram o Judiciário, entendem que foram parcialmente investidos de função jurisdicional quando julgam as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos.  Doutro lado, sob o argumento da revisão jurisdicional, os fundamentos podem ser resumidos no que está inserto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Republicana e, então, alcança as decisões do Tribunal de Contas, permitindo, normalmente, serem revistas pelo Judiciário, nega-se qualquer caráter de perenidade às manifestações das referidas Cortes. É a maioria da doutrina e a jurisprudência dos Tribunais Superiores acabam por conferir natureza administrativa às decisões dos Tribunais de Contas. Segundo Lenza (2012), o art. 71, II, CF/88, concede total autonomia para o TCU julgar e não apreciar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público. Sendo que na referida situação, conforme assinalou o STF, “o exercício da competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo”, tendo o TCU total autonomia (cf. ADI 3715 -MC). Mas por se tratar de decisão administrativa, normalmente, o entendimento a ser firmado pelo TCU poderá ser discutido no Judiciário (art. 5.º, XXXV, CF/88). Em importante esclarecimento Justen Filho (2009) adverte que a opção de não integrar o tribunal de Contas na estrutura do Poder Judiciário resulta da intenção de manter seus atos sujeitos ao controle jurisdicional. O que não compreende qualquer restrição à autonomia do Tribunal de Contas, vez que os atos próprios dos demais Poderes também estão sujeitados ao controle jurisdicional. No entanto, seria possível aludir, sobre o Tribunal de Contas, ter este uma atuação quase jurisdicional, levando em conta a forma processual dos atos e na estrutura autônoma e independente para produzir a instrução e o julgamento, não seria uma atuação semelhante à do Judiciário, mas diferenciada das demais atividades administrativas e legislativas. Assim, as posições delineadas acima são basicamente duas: uma entende que as decisões do Tribunal de Contas têm caráter jurisdicional e, por isso, fazem coisa julgada propriamente dita; enquanto o outro lado, há os que vislumbram nos pronunciamentos caráter meramente administrativo. E, pontua-se por fim, que as considerações feitas até então, discutem acerca da natureza da atribuição definida no inciso II do art. 71 da Constituição Republicana. Ademais, há algum consenso no sentido de que as outras, principalmente as dos os incisos I e III, são de índole administrativa.  Então, adiante serão analisadas três espécies de decisões ultrapassam as espécies supracitadas, quais sejam: o exercício do controle constitucionalidade pelos tribunais de contas; a sustação de atos e contratos administrativos e as decisões do tribunal de contas com eficácia de títulos executivos. 3.1 Exercício do controle constitucionalidade pelos Tribunais de Contas A divergência quanto à possibilidade do exercício pelas Cortes de Contas da prerrogativa para apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos foi há algum tempo superada, desde que relacionadas às atribuições estabelecidas na Constituição Federal. Há um consenso entre doutrina e jurisprudência no sentido de que os Tribunais de Contas podem e devem se manifestar em relação à constitucionalidade de leis e atos normativos, em matérias de sua competência. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência do Tribunal de Contas para realizar o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, quando do exercício de suas atribuições utilizando da Súmula nº 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”, afastando qualquer dúvida. Aqui faz-se necessário ressaltar que o exercício do controle de constitucionalidade pelo Tribunal de Contas compreende a modalidade difusa, somente se dará na via incidental, em caso de controle concreto.  3.2 Sustação de atos e contratos administrativos Inicialmente, cumpre trazer a diferenciação entre ato e contrato administrativos. De acordo com Carvalho Filho (2007), ato administrativo pode ser definido como exteriorização da vontade de agentes da Administração ou de seus delegatários, que sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público. Enquanto que contrato administrativo é o ajuste estabelecido entre a Administração e um particular e regulado fundamentalmente pelo Direito Público, também, de alguma forma, busca o interesse público. A distinção acima faz-se necessária em razão da peculiaridades trazidas pela norma constitucional, posto que em relação ao controle realizado pelo Tribunal de Contas da União, o legislador constituinte criou regras específicas. Caso o Tribunal de Contas, no desempenho de sua função corretiva, venha se deparar com ato ou contrato administrativo que possua vício de ilegalidade sanável, deverá fixar prazo para que o órgão ou entidade, no qual foi constatada a situação, adote as providências necessárias ao exato cumprimento da norma, é o que dispõe o art. 71, IX, CF/88. Após o prazo determinado, como estabelece o inciso X, art. 71, CF/88, deverá o Tribunal de Contas, no caso de ato administrativo sustar, ele próprio, o ato viciado, quando não atendida a imposição, devendo comunicar a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. No entanto, conforme art. 71, § 1.º, CF/88, em sendo caso de contrato administrativo, o ato de sustação será providenciado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis. Entretanto, se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas, o Tribunal de Contas da União decidirá a respeito (art. 71, § 2.º, CF/88). Considerando a ideia de atuação subsidiária, conforme assinalou o STF: “I.Tribunal de Contas: competência: contratos administrativos (CF, art. 71, IX e §§ 1º e 2º). O Tribunal de Contas da União – embora não tenha poder para anular ou sustar contratos administrativos – tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da licitação de que se originou. II. Tribunal de Contas: processo de representação fundado em invalidade de contrato administrativo: incidência das garantias do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, que impõem assegurar aos interessados, a começar do particular contratante, a ciência de sua instauração e as intervenções cabíveis. Decisão pelo TCU de um processo de representação, do que resultou injunção à autarquia para anular licitação e o contrato já celebrado e em começo de execução com a licitante vencedora, sem que a essa sequer se desse ciência de sua instauração: nulidade. Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas; de outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal de Contas, de colorido quase – jurisdicional. A incidência imediata das garantias constitucionais referidas dispensariam previsão legal expressa de audiência dos interessados; de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo federal (L. 9.784/99), que assegura aos administrados, entre outros, o direito a "ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos (art. 3º, II), formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente". A oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser prévia à decisão, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso, mormente quando o único admissível é o de reexame pelo mesmo plenário do TCU, de que emanou a decisão” (Mandado de Segurança nº 23550 DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Data de Julgamento: 03/04/2001, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 31-10-2001).  Assim, três correntes surgem aqui. A primeira postula que a Corte de Contas pode sustar contratos administrativos ilegais, com fundamento na parte final do art. 71 da Constituição Federal, não havendo qualquer manifestação por parte do Legislativo (DI PIETRO, 2002). A segunda corrente defende que a sustação de contrato administrativo ilegal é atribuição exclusiva do Congresso Nacional, em decisão de caráter político. Argumenta-se sobre o silêncio eloquente, havendo omissão proposital, no § 2º, art. 71, CF/88, em não deferir à Corte de Contas a possibilidade de sustar contrato administrativo (CARVALHO FILHO, 2007). Enquanto a última corrente de maneira intermediária, leciona que não cabe ao Tribunal de Contas, de imediato, por ato próprio, sustar a execução de contrato administrativo, mas diante da inércia do Congresso Nacional ou do Poder Executivo, pode anulá-lo e impor penalidade (DA SILVA, 2004). 3.3 Decisões dos Tribunais de Contas com eficácia de títulos executivos As decisões dos Tribunais de Contas que imputam débito e/ou multa enquadram-se no inciso VII, art. 585, CPC, no qual são títulos executivos extrajudiciais todos os demais títulos, a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva. Portanto, as decisões dos Tribunais de Contas imputando débito e/ou multa ao responsável resulta um título executivo extrajudicial sui generis, posto não se enquadrar completamente nas características de outros títulos executivos extrajudiciais. Assim, estabelece art. 71, § 3.º, CF/88, que as decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo. No entanto, deve a ação ser proposta pelo ente público beneficiário da condenação, e não pela própria Corte de Contas. Cristalizado também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SERGIPE. COMPETÊNCIA PARA EXECUTAR SUAS PRÓPRIAS DECISÕES: IMPOSSIBILIDADE. NORMA PERMISSIVA CONTIDA NA CARTA ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE.1. As decisões das Cortes de Contas que impõem condenação patrimonial aos responsáveis por irregularidades no uso de bens públicos têm eficácia de título executivo (CF, artigo 71, § 3º). Não podem, contudo, ser executadas por iniciativa do próprio Tribunal de Contas, seja diretamente ou por meio do Ministério Público que atua perante ele. Ausência de titularidade, legitimidade e interesse imediato e concreto. CF71§ 3º2. A ação de cobrança somente pode ser proposta pelo ente público beneficiário da condenação imposta pelo Tribunal de Contas, por intermédio de seus procuradores que atuam junto ao órgão jurisdicional competente.3. Norma inserida na Constituição do Estado de Sergipe, que permite ao Tribunal de Contas local executar suas próprias decisões (CE, artigo 68, XI). Competência não contemplada no modelo federal. Declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, por violação ao princípio da simetria (CF, artigo 75). Recurso extraordinário não conhecido” (STF – Recurso Extraordinário nº 223037 SE, Rel. Min. Maurício Corrêa, Data de Julgamento: 02/05/2002, Tribunal Pleno). Por fim, tem legitimidade para executar as decisões dos Tribunais de Contas a Procuradoria da União, por meio do Advogado da União, nos casos das decisões provenientes do Tribunal de Contas da União; ou Procuradoria-Geral do Estado, nas decisões originadas dos Tribunais de Contas Estaduais e aos Prefeitos ou às Procuradorias Municipais, nos municípios onde houver, no caso de decisão do Tribunal de Contas ou Conselho de Contas. 3.4 Divergências doutrinárias acerca da eficácia das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas Inicialmente, cumpre esclarecer que de acordo com o já exposto, os Tribunais de Contas, por força do sistema uno de jurisdição inserto no ordenamento jurídico pátrio, não são órgãos jurisdicionais, por isso, apesar das peculiaridades das suas funções estão são consideradas como administrativas. Por tal motivo, a decisão emanada de tais órgãos não carrega semelhante eficácia de uma decisão originada de órgão judicial. Convém então trazer a noção de preclusão administrativa, que pode ser compreendida como a impossibilidade de revisão, no mesmo processo, de tema já discutido. Então, o que se observa é que considerando a decisão do Tribunal de Contas, esta não pode ser comparada a uma decisão jurisdicional, sujeitando-se ao controle do Judiciário, mas não se iguala com a função meramente administrativa, podendo ser enquadra em uma posição intermediária e sobreponde-se às decisões puramente autoridades administrativas. De modo que, ocorrendo a preclusão administrativa tratando-se de decisão do Tribunal de Contas julgando ilegal certo ato, a decisão torna-se obrigatória e não poderá ser revista em âmbito administrativo. Dito isso, surge então a necessidade de se analisar qual o alcance do poder de revisão das decisões dos Tribunais de contas pelo Judiciário. Há duas correntes doutrinárias a respeito. A primeira posição defende a limitação à atuação do Poder Judiciário, utilizando como principal argumento o efeito vinculante das decisões dos Tribunais de Contas em razão do termo “julgar” vir expresso no Constituição Federal, sob pena de haver “[…] esvaziamento das atribuições constitucionais dos Tribunais de Contas em caso de ampla revisibilidade do Judiciário. A palavra julgar deve ser entendida no seu sentido literal, isto é, o legislador constitucional não utilizou este termo desavisadamente, ele o empregou com o intuito de outorgar às Cortes de Contas competência privativa no julgamento dos responsáveis por bens e valores públicos no que tange ao aspecto contábil, financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial da Administração” (CLARAMUNT, 2009, p. 69). Um exemplo que pode ser mencionado refere-se ao art. 52, CF/88, em que compete privativamente ao Senado Federal processar e “julgar” o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Considerando ser o caso de julgamento político de mérito e constituindo limitação ao exercício do poder jurisdicional pelo Judiciário, somente podendo o Judiciário intervir no caso de ilegalidades no curso do processo, por interpretação do art. 5º, XXXV, CF/88, igual tratamento deveria ser concedido às decisões dos Tribunais de Contas. Assim, o controle das decisões dos Tribunais de Contas pelo Judiciário deve ser restrita apenas à análise da presença de irregularidades formais ou ilegalidades manifestas. Enquanto outros posicionam no sentido da atuação ilimitada do Judiciário, tendo por fundamento maior o sistema de jurisdição única adotado no Brasil, posto haver monopólio da tutela jurisdicional pelo Judiciário e o princípio da inafastabilidade da jurisdição inserta no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Brasileira, nos seguintes termos "a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito". Segundo Cretella Junior (apud CLARAMUNT, 2009): “O emprego de verbo julgare dos substitutivos julgamento e jurisdição, em dispositivos constitucionais, induziu, primeiro, os membros do Tribunal de Contas – ministros e conselheiros – ao erro, imaginando que os vocábulos tinham sido empregados com o mesmo sentido que têm na nomenclatura técnica do direito processual. No Brasil, emprega-se, a todo instante, o vocábulo julgamento, quando se fala em julgamento de licitação. Utiliza-se também o termo jurisdição (e igualmente alçada), na seara vulgar ou corrente. […]  Pois bem, a transplantação da rigorosa terminologia processual para a acepção vulgar, normal, corrente, popular, foi a responsável pela colocação dos que pretendem que os Tribunais de Contas, assim como os Tribunais de Justiça, julgam, proferem julgamentos, exercem jurisdição, quando na realidade, as Contas exercem, tão-só, atividade administrativa de fiscalização, de apreciação de contas, de concessão de aposentadorias, reformas, pensões” (CRETELLA JUNIOR apud CLARAMUNT, 2009, pp. 72-73). Outro ponto é a possibilidade da análise pelo Judiciário ir além das questões de ilegalidade e formalidades, isto é, o próprio Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a análise do mérito certos julgados: “MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DISCRICIONARIEDADE. INOCORRÊNCIA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA AUSENTE. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM DENEGADA. I – Tendo em vista o regime jurídico disciplinar, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana, culpabilidade e proporcionalidade, inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar. II – Inexistindo discricionariedade no ato disciplinar, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais.  III – A descrição minuciosa dos fatos se faz necessária apenas quando do indiciamento do servidor, após a fase instrutória, na qual são efetivamente apurados, e não na portaria de instauração ou na citação inicial. IV – Inviável a apreciação do pedido da impetrante, já que não consta, neste writ, o processo administrativo disciplinar, o qual é indispensável para o exame da adequação ou não da pena de demissão aplicada, considerando, especialmente, a indicação pela Comissão Disciplinar de uma série de elementos probatórios constantes do PAD, os quais foram considerados no ato disciplinar. V – A decisão que determinou o trancamento de ação penal, pendente o trânsito em julgado, não vincula, necessariamente, a decisão administrativa disciplinar. Seja como for, a revisão administrativa poderá ser provocada desde que preenchidos os requisitos para tanto. Ordem denegada, sem prejuízo das vias ordinárias”. (Mandado de Segurança nº 12927 DF 2007/0148856-8, Rel. Min. Felix Fischer, Data de Julgamento: 11/12/2007, S3 – Terceira Seção, Data de Publicação: DJ 12.02.2008). Aplicando às decisões dos Tribunais de Contas o mesmo argumento, isto é, a imposição de sanção ao administrador não pode ser considerado como ato discricionário, por isso, a legitimidade da decisão não reside somente no juízo do julgador administrativo. Com isso, argumenta-se que o texto constitucional, ao empregar o termo julgar as contas dos administradores, não intencionou criar uma competência exclusiva. Desse modo, a decisão originada de Corte de Contas possui as mesmas prerrogativas que qualquer outro ato administrativo, podendo ser amplamente revisada. Conclusão O controle das despesas públicas exercido pelos Tribunais de Contas passou por diversas transformações no decorrer da sua história, por vezes regredindo ou evoluindo, de acordo com a orientação política. Mas, sobretudo, a Constituição Federal de 1988 ao incluir novos critérios de controle alargou sua possibilidade de análise das contas, posto que antes limitavam-se a critérios financeiros e contábeis, pautando-se apenas pelos princípios da contabilidade e pela legalidade dos atos que era definida pela correta autorização orçamentária. Atualmente, inclusos os critérios de legitimidade, uma vez que nem todos os atos legais podem ser considerados legítimos; e economicidade, no sentido de adequação entre meios e fins, cabendo ao gestor optar por aquele que menos onere a Administração. É nesse sentido que a Carta de 1988 fortaleceu a instituição Tribunal de Contas como sendo órgão de apoio aos Poderes da República, auxiliando e orientando na realização do controle externo das despesas públicas, praticando atos de caráter fiscalizatórios, muito embora não haja subordinação. Pode ser encontrada vasta divergência doutrinária acerca da natureza jurídica dos Tribunais de Contas, apesar do consenso sobre este não pertencer ao Judiciário. Há quem considere as Cortes de Contas subordinadas hierarquicamente ao Poder Legislativo, em razão de sua posição de auxiliar pelo texto legal, inclusive havendo apontamentos ser órgão integrante do Congresso Nacional. Enquanto outros afirmaram serem órgãos administrativos independentes. Mas, constata-se ter como natureza jurídica o Tribunal de Contas como órgão independente dotado autonomia administrativa e financeira, de auxiliar e de orientação do Poder Legislativo, embora não esteja a ele subordinado, exercendo atividade de natureza administrativa, fundamentalmente, de fiscalização. Como resposta ao objetivo maior desse estudo, sobre a natureza jurídica e eficácia das decisões do Tribunal de Contas, em que o ponto fundamental do debate compreende o caráter jurisdicional ou não de tais decisões e os limites à revisão judicial. Assim, em relação às divergências doutrinárias acerca da eficácia das decisões proferidas pelos tribunais de contas, um primeiro posicionamento postula pela limitação da atuação do Poder Judiciário, utilizando como principal argumento o efeito vinculante das decisões dos Tribunais de Contas em razão do termo “julgar” vir expresso no Constituição Federal. Desse modo, o controle das decisões dos Tribunais de Contas pelo Judiciário deve ser restrita apenas à análise da presença de irregularidades formais ou ilegalidades manifestas. Entretanto, outros posicionam-se no sentido da atuação ilimitada do Judiciário, tendo por fundamento maior o próprio texto constitucional, em que a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF/88), havendo monopólio da tutela jurisdicional pelo Judiciário. Tendo, inclusive, poder de analisar até mesmo matérias que vão além da ilegalidade e formalidades, inclusive com julgados dos tribunais superiores, que vem admitindo a análise do mérito. Por fim, constata-se que apesar dos variados argumentos buscando a limitação da atividade jurisdicional, a doutrina majoritária e a jurisprudência das cortes superiores vêm permitindo uma crescente possibilidade de revisão pela análise judicial.
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A licitação nos termos da Lei 8.666/92 e o pregão como nova modalidade instituída pela Lei 10.520/2002
A Licitação é um procedimento administrativo composto de atos seqüências ordenadas mediante os quais a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa. Está rodeada de princípios que visam dar formalidade ao ato, além de garantir seus objetivos primordiais. Destes princípios decorre a forma de como os atos são percorridos. Todo o formalismo visa garantir o correto deslinde do interesse público. A análise dos tipos e modalidades de licitação (que não devem ser confundidos) mostra que a legislação se preocupou com a forma de atingir o melhor objetivo para a Administração. Sua pluralidade demonstra que para cada tipo específico de ato há um tipo e uma modalidade específicos. Entretanto, a criação de uma nova forma de licitação, denominada Pregão, consegui-se dar maior celeridade ao processo licitatório quando não se tratar de contratos de grande vulto. A menor complexidade dos bens e serviços justifica a aplicação desta nova modalidade, simplificando o processo e delimitando suas particularidades por Lei própria. Podemos, ao fim, concluir que a Licitação é ato e procedimento administrativo, indispensável para atender os interesses públicos. Mais ainda, o pregão foi a forma encontrada pela Administração de dar celeridade ao processo para melhor atender à este interesse.
Direito Administrativo
1. INTRODUÇÃO Podemos conceituar a licitação como o procedimento da Administração pública, vinculado, obrigatório, pelo qual os entes da Administração pública ou seus correlatos, com o objetivo de celebração de contrato (ou escolha de trabalho intelectual ou ainda venda de bens), abre publicamente a todos os interessados que se sujeitem às condições fixadas, a possibilidade de formularem propostas, para a realização de seu objeto previamente definido, visando a mais conveniente, respeitando os princípios da Administração Pública. Apesar de extenso o conceito, é uma síntese do que vem a ser a licitação. É procedimento exigido por Lei, sendo dispensada esta obrigatoriedade apenas em casos específicos, também previstos em Lei, caso em quê deverá ser fundamentada a não ocorrência da mesma. Tem como fundamento a moralidade administrativa e a igualdade de oportunidades, tanto em respeito à Administração pública quanto aos administrados. 2. PRINCÍPIOS DAS LICITAÇÕES Além dos princípios que norteiam a Administração Pública em geral, existem princípios básicos, os quais devem ser verificados para a validade de qualquer licitação. São eles: 2.1. Princípio da Legalidade Princípio que também é fulcro de toda atividade administrativa, impõe a lei sobre a atividade licitatória, sobrepujando a vontade de qualquer agente administrativo, devendo o mesmo cingir ao que a lei impõe. Coaduna-se na obrigação da Administração de ater-se à lei a ao procedimento determinado por ela. Como no entendimento de Carvalho Filho (2009), é a aplicação do devido processo legal, segundo o qual se exige que a Administração escolha a modalidade certa, que seja clara em seus critérios de seleção, que só haja dispensa de licitação nos casos previstos em lei, dentre outros fatores, seguindo sempre os ditames legais. 2.2. Princípios da Moralidade e da Probidade Também pertinentes aos demais atos administrativos, são os princípios que delimitam o uso da ética nas licitações. O princípio da moralidade traduz que o administrador deve agir de acordo com a moral. Todavia, este conceito torna-se muito subjetivo, necessitando do apoio do princípio da probidade para que não haja dúvidas quanto à sua aplicação. Com efeito, havendo um claro conceito objetivo de improbidade administrativa, este princípio dá garantias do correto deslinde da licitação de acordo com a boa-fé. 2.3. Princípio da Impessoalidade Num primeiro plano, pode-se dizer que este princípio determina à Administração Pública o tratamento equânime a todos os licitantes que se encontrem na mesma situação jurídica. Trata-se, ainda, da ausência de favorecimento pessoal à qualquer pessoa que se encontre diante da situação de licitação. Por fim, deve-se entender que quaisquer atos da licitação devem atender ao interesse público, e não a qualquer pessoa (ou pessoas), não sendo assim, pessoal. Necessário se faz entender que a Lei pode determinar tratamentos privilegiados para certos entes, como, v.g., as micro-empresas e empresas de pequeno porte. Entretanto, o que vemos é que a impessoalidade pode ungir-se de tratar os desiguais de forma desigual. 2.4. Princípio da Igualdade Este princípio tem origem no artigo 5º da Constituição Federal. O artigo 37, XXI, ainda expressa a “igualdade de condições a todos os concorrentes”. É um princípio muito próximo ao anterior, entretanto, tem uma maior abrangência. Ambos visam garantir a igualdade de condições. E esta igualdade também se traduz em impessoalidade, haja vista que não existe diferenciação ou privilégio a determinada pessoa (ou pessoas). 2.5. Princípio da Publicidade É o princípio que informa que a licitação deve ser amplamente divulgada, de forma a atingir o maior número de pessoas a tomar conhecimento dela, bem como de suas regras. Também tem o fulcro de possibilitar a fiscalização da sua legalidade. Vale ressaltar que a publicidade deve estar presente em todas as fases da licitação, mormente no deslinde da fase externa. Note-se que quanto maior for a competição, maior será a publicidade; assim sendo, haverá uma maior divulgação quando se tratar de concorrência do que quando se tratar de convite, por exemplo. 2.6. Princípio da Vinculação ao Instrumento Convocatório Significa este princípio que as regras traçadas no edital devem ser fielmente respeitadas pelo administrador e pelos administrados. É o gerador do vínculo estrito entre os atos praticados e as normas e condições do edital. A inobservância deste princípio pode gerar nulidade do procedimento. Quando não cumprido por parte do licitante,poderá causar a desclassificação. É um dos mais importantes princípios e que diz respeito diretamente às licitações. 2.7. Princípio do Julgamento Objetivo Tem ligação com o princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Através dele, fica claro que o julgamento das propostas deve se dar de forma objetiva, de acordo com os critérios já delimitados no edital. Este princípio contempla todas as fases da licitação, sendo aplicável para qualquer julgamento ou decisão que envolva a competição, possibilitando o controle e a ampla defesa por parte dos participantes. V.g. o tipo de licitação definido tem de ser respeitado; se definido como de menor preço, este deve ser o único a ser considerado; se de melhor técnica, não pode o administrador público inovar acrescentando outro critério. Assim evita-se surpresas na licitação, ajudando a embasar os princípios da impessoalidade e da legalidade. 2.8. Princípio da Adjudicação Compulsória Hely Lopes Meireles (2003) nos ensina que através deste princípio, não pode a Administração, concluído o procedimento, atribuir o objeto da licitação a outro senão o vencedor. Em outras palavras, deve-se respeitar a classificação e tomá-la como base para a contratação. Entretanto, este princípio não obriga a contratação. Apenas vincula o administrador em, tendo interesse em contratar, que o faça com base na classificação. Este princípio também evita que a Administração realize nova licitação enquanto no prazo de validade a adjudicação anterior. 2.9. Outros Princípios Correlatos Carvalho Filho (2009), da análise da legislação pertinente às licitações, enumera ainda outros princípios. Estes estão implícitos nos ditames legais, como que derivados dos princípios anteriormente descritos, e existentes na prática das licitações. Dentre eles: •Princípio da Competitividade, que significa que a Administração deve permitir a ampla concorrência, vedado qualquer ato em sentido contrário, que comprometa o caráter competitivo do certame, que deverá ocorrer da melhor forma possível, como se pode aduzir do já citado princípio da igualdade. •Princípio da Indistinção, também correlato ao princípio da igualdade, onde podemos dizer que não deve haver preferências, ou seja, distinções entre os concorrentes. •Princípio da Inalterabilidade do Edital, previsto no artigo 41 da Lei 8.666/90, atendo a Administração às regras que foram por ela mesma divulgadas. •Princípio do Formalismo Procedimental, obrigando o administrador a proceder de acordo com os parâmetros definidos na Lei, não podendo agir de acordo com o seu juízo, uma vez que a igualdade também depende da rigidez formal do procedimento licitatório. •Princípio da Vedação à Oferta de Vantagem, segundo o qual proíbe-se que um licitante venha a oferecer vantagem distinta do veiculado no edital, ou ainda fatores outros estranhos ao instrumento, coadunando-se com o princípio do julgamento objetivo. •Princípio do Sigilo das Propostas, mais uma vez em consideração ao princípio da igualdade, muito importante com o advento do pregão, onde as propostas só poderão ser abertas em sessão pública, devendo, até então, permanecer lacradas. 3. DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO A Lei 8.633/93 e a Constituição Federal determinam a obrigatoriedade da licitação, para os contratos de obras, serviços, compras e alienações, além da concessão e permissão de serviços públicos, com vistas à proteção do interesse público e a participação de todos na atividade administrativa. É obrigatório para tods os órgãos e entes da Administração Pública. No entanto, a Lei estabelece os casos em que é facultado à Administração Pública realizar ou não a licitação, ou até mesmo vedar tal procedimento, desde que o processo seja devidamente instruído e justificado. De acordo com o estabelecido na Lei, as exceções à obrigatoriedade de licitar são as dispensa e inexigibilidade. O processo de dispensa e de inexigibilidade de licitação será instruído, no que couber, com os seguintes elementos: I – numeração seqüencial da dispensa e inexigibilidade; II – caracterização da circunstância de fato que autorizou a providência; III – autorização do ordenador de despesa; IV – indicação do dispositivo legal aplicável; V – indicação dos recursos orçamentários próprios para a despesa; VI – razões da escolha do contratado; VII – consulta prévia da relação das empresas suspensas ou impedidas de licitar ou contratar com a Administração Pública do Estado da Bahia; VIII – Justificativa do preço, inclusive com apresentação de orçamentos ou da consulta aos preços de mercado; IX – documentação de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados; X – pareceres jurídicos e, conforme o caso, técnicos, emitidos sobre a dispensa ou inexigibilidade; XI – no caso de dispensa com fundamento nos incisos I e II do artigo 59, expressa indicação do valor estimado para contratação, podendo ser dispensada nestas hipóteses a audiência do órgão jurídico da entidade; XII – prova de regularidade para com as fazendas Federal, estadual e Municipal do domicilio ou sede da empresa, bem como de regularidade para com a Fazenda do Estado da Bahia; XIII – prova de regularidade relativa a Seguridade Social (INSS), mediante a apresentação da Certidão Negativa de Débitos/CND e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), mediante a apresentação do Certificado de regularidade de Situação/CRS. Observando as diferenças entre dispensa e inexigibilidade, vemos que na primeira, existe a possibilidade do certame, porém, em razão da possibilidade deste certame acabar por contrariar o interesse público, ele pode ser facultado, ficando relegado à discricionariedade do Administrador, ao passo que no caso de inexibilidade, não existe a possibilidade de competição, haja vistas a existência de apenas um objeto ou apenas uma pessoa que possa atender aos objetivos da Administração Pública, ficando, assim, inviável a realização do procedimento licitatório. 3.1. Dispensa de Licitação Como já explicitado, no caso da dispensa, há a possibilidade de licitação, mas a mesma, em razão da demora ou da necessidade, poderá ir de encontro com o objetivado pela Administração, findando por ser menos proveitoso para o interesse público. Ressalte-se que os casos de dispensa são taxativos, não podendo ser ampliados. Pode, portanto, a licitação ser dispensada nos seguintes casos: 1. Para obras e serviços de engenharia de valor até 10% do limite previsto na alínea “a” do inciso I do artigo 23, e para alienações, nos casos previstos na Lei, desde que não se refiram à parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo locar que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; 2. Para outros serviços e compras de valor até 10% do limite previsto na alínea “a” do inciso II do artigo 23 da Lei, e para alienações, nos casos previstos nesta mesma Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez; 3. Nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem; 4. Nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou possa comprometer a segurança das pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; 5. Quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições pré-estabelecidas; 6. Quando a União tiver que intervir no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento; 7. Quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestadamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos que, observado o §3º do artigo 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante no registro de preços, ou dos serviços; 8. Para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que se integre à Administração pública e que tenha sido criado para este fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado pelo mercado; 9. Quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional; 10. Para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da Administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia; 11. Na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior e aceitas as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço, devidamente corrigido; 12. Nas compras de hortifrutigranjeiros, pão e outros gêneros perecíveis, no tempo necessário para a realização dos processos licitatórios correspondentes, realizadas diretamente com base no preço do dia; 13. Na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos; 14. Para a aquisição de bens ou serviços nos termos do acordo internacional específico aprovado pelo Congresso Nacional, quando as condições ofertadas foram manifestamente vantajosas para o poder público; 15. Para a aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade; 16. Para a impressão dos Diários Oficiais, de formulários padronizados de uso da Administração e de edições técnicas oficiais, bem como para a prestação de serviço de informática a pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico; 17. Para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia; 18. Nas compras ou contratações de serviços para o abastecimento de navios, embarcações, unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento, quando em estada eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por motivo de movimentação operacional ou de adestramento, quando a exigüidade dos prazos legais puder comprometer a normalidade e os propósitos das operações e desde que seu valor não exceda o limite previsto na alínea “a” do inciso II do artigo 23 da Lei; 19. Para as compras de materiais de uso pelas Forças Armadas, com exceção de matérias de uso pessoal e administrativo, quando houver necessidade de manter a padronização requerida pela estrutura de apoio logístico dos meios navais, aéreos e terrestres, mediante parecer da comissão instituída por Decreto; 20. Na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e comprovada idoneidade por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. 21. Para a aquisição de bens destinados exclusivamente à pesquisa científica e tecnológica, com recursos concedidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior – CAPES, pela Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq ou outras instituições oficiais de fomento à pesquisa credenciadas pelo CNPq para esse fim específico; 22. Na contratação do fornecimento ou suprimento de energia elétrica, com concessionário ou permissionário do serviço público de distribuição ou com produtor independente ou autoprodutor, segundo as normas da legislação específica; 23. Na contratação realizada por empresas públicas e sociedades de economia mista com suas subsidiárias e controladas, direta ou indiretamente, para aquisição de bens e serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; 24. Para a celebração de contratos de prestação de serviço com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão. As hipóteses de dispensa, previstas nos parágrafos 2º e 4º do artigo 17 e nos incisos III a XXIV do artigo 24 da Lei deverão ser necessariamente justificadas e comunicadas, dentro do prazo de três dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de cinco dias, como condição de eficácia dos atos. 3.2. Inexigibilidade A licitação é inexigível, de acordo com o estabelecido no artigo 25 da Lei nº 8.666/93, quando, concretamente, se caracterizarem circunstâncias referidas em dispositivo legal que demonstre a impossibilidade fática, lógica ou jurídica do confronto licitatório, ou seja, fique demonstrada a inviabilidade de competição, em especial nos seguintes casos: 1. Para a aquisição de materiais, equipamentos ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vetada a preferência de marca; 2. Para a contratação de serviços técnicos enumerados no artigo 23 da Lei nº 9.433/2005, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação. 3. Para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que, consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. •Considera-se produtor, empresa, representante comercial ou revendedor exclusivo aquele que seja o único a explorar a atividade no âmbito nacional, para os limites de concorrência e tomada de preços, e no do Estado, para o limite de convite, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo Órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou ainda, pelas entidades equivalente. •Considera-se de notória especialização, o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do Contrato. •Na hipótese de haver inviabilidade de competição e em qualquer caso de dispensa, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis. Os casos de inexigibilidade referidos no artigo 25 deverão ser necessariamente justificados e comunicados, dentro do prazo de 3 dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 dias, como condição de eficácia dos atos. 4. TIPOS DE LICITAÇÃO O tipo de licitação diz respeito à forma como será escolhido o vencedor, o critério de julgamento, e diz respeito aos interesses da Administração pública e as particularidades do objeto da licitação. A Lei prevê os seguintes tipos de licitação: a) Menor Preço – Este é o tipo de licitação cujo critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração determina que será vencedor o licitante de acordo com as especificações do Edital e oferecer o menor preço. É decorrente da verificação objetiva, podendo ser facilmente valorada. A classificação se dará pela ordem crescente dos preços. b) Melhor Técnica – Quando se destina a selecionar o proponente melhor qualificado para a execução de uma técnica, previamente escolhida pela Administração, ou a que obter melhor qualidade técnica e adequação às soluções propostas, para atingir determinado fim. É mais utilizado em serviços de natureza intelectual. c) Técnica e Preço – Visa a seleção da proposta que alcance a maior média ponderada das valorizações das propostas de técnica e preço, levando em consideração os requisitos e os pesos pré-estabelecidos no edital. d) Maior Lance ou Oferta – Aplicado nos casos de alienação de bens ou direitos reais de uso. Esclareça-se que, sendo os critérios de menor preço e maior lance ou oferta fundamentalmente objetivos, os de melhor técnica e técnica e preço, nos dizeres de Carvalho Filho (2009) são tratados com injustificável complexidade e insondáveis mistérios. Tais fatos se dão pela falta de clareza na lei dos critérios a serem observados neste tipo de licitação. 5. MODALIDADES DE LICITAÇÃO A Lei 8.666/93 previu cinco modalidades de licitações, vedando a criação de novas. São elas a concorrência, a tomada de preços, o convite, o concurso e o leilão. Entretanto, a Medida Provisória 2.026/00 criou o Pregão, posteriormente confirmado pela Lei 10.520/02. Vale ressaltar que a concorrência, a tomada de preços e o convite têm o mesmo enfoque, qual seja a contratação de obras, serviços e fornecimento com a Administração Pública. O diferencial encontra-se no valor e na complexidade do contrato. O pregão por sua vez tem cabimento para a aquisição de bens e serviços comuns (assim considerados pela Lei), porém com suas particularidades próprias. O concurso e o leilão têm objetivos diferentes. A adoção de cada modalidade depende de critérios descritos na Lei, a exemplo do valor do serviço ou obra, o tipo da obra (v.g. serviço ou obra de engenharia), o tipo do bem a ser vendido ou comprado, a natureza territorial (nacional ou internacional) ou a finalidade a que se destina, dentre outros. 5.1. Concorrência É a modalidade de licitação que tem a mais ampla participação e maior publicidade, além de maior rigidez do procedimento. Visa ainda garantir a participação de qualquer interessado que preencha os requisitos. A publicidade é ampla, devendo ser publicado aviso de edital, nos termos do artigo 21 da Lei, indicando, inclusive o local onde poderão ler e obter o texto original do edital. A publicação deverá ser feia através de Diário Oficial. É revestido de universalidade, possibilitando a qualquer interessado a participação, preenchidos os requisitos. Ademais, é destinada às contratações de grande vulto. Pode ocorrer a nível nacional ou internacional. Seu formalismo é o mais rígido possível. A fase de habilitação é então indispensável. Por ser a forma mais abrangente de licitação, é a que pode ser utilizada para qualquer tipo de situação, excluídos os descritos no Leilão e no Concurso. 5.2. Tomada de Preços É modalidade que tem os mesmos moldes da concorrência. No entanto, é realizada entre interessados devidamente cadastrados ou que preencham os requisitos para a habilitação até o terceiro dia anterior à apresentação das propostas. Anteriormente restrita só aos previamente cadastrados, a Lei 8.666/93 ampliou a participação a todos aqueles que se cadastrarem até a data acima mencionada. O condão foi permitir a participação de um maior número de pessoas, em benefício da coisa pública. Ainda assim, é menos formal que a concorrência, mormente por se destinar à contratações de médio vulto. A publicidade, por exemplo, tem prazos menores do que os referidos na concorrência, como já foi dito. Vale salientar que registros cadastrais, ou seja, o cadastro no órgão da Administração, são previstos no artigo 34 da Lei. Sua grande vantagem é que os interessados em contratar com o poder público já haverem apresentado sua documentação para a habilitação no momento do cadastro, dispensando esta fase da licitação. Efetuado o cadastro, o interessado recebe um certificado, que deve ser apresentado no momento da licitação. Este cadastro em determinado órgão pode ser apresentado em outro, no caso de tomada de preços, podendo dispensar um novo cadastramento. Por fim, note-se que, apesar do médio vulto, de acordo com o previsto na Lei, o administrador pode optar em realizar uma concorrência. Todavia, a recíproca não é verdadeira, haja vistas que não se pode realizar processo mais complexo através de procedimento mais simples. 5.3. Convite É a que se destina às contratações de menor vulto, por isso comporta menos formalismo. Não há, por exemplo, o edital, sendo o instrumento convocatório a carta-convite, destinada diretamente a pelo menos três interessados, previamente cadastrados, onde as regras da licitação aparecem apenas de maneira sucinta. Estes pelo menos três interessados são de livre escolha do administrador. Assim como na tomada de preços, anteriormente só era permitido aos convidados o certame. Todavia, pelos mesmos motivos, a participação é aberta a qualquer interessado não convidado diretamente, que tomar conhecimento do pleito e estiver previamente cadastrado no órgão. Os prazos também são exíguos. Cinco dias para a convocação. Há ainda certo aspecto a ser analisado. Sendo três os convidados, mas apenas dois comparecerem, deverá a licitação correr normalmente para os dois. Comparecendo apenas um, poderá se proceder à contratação direta. Não se admite o envio de novos convites ou anulação do certame, pois isto imputaria em penalidade para o que compareceu pelo desinteresse dos demais. Ainda importante esclarecer que, havendo mais de três fornecedores na praça, não podem ser os mesmos chamados sucessivamente para outros certames, para assim evitar favorecimentos, nos termos da Lei. Esta modalidade é a mais susceptível à fraudes. Como na tomada de preços, poderá o administrador optar em realizar concorrência ou tomada de preços, mas a determinação da Lei em relação ao valor impedi que se realize procedimento inverso. 5.4. Concurso É o tipo de licitação destinado à escolha de trabalho técnico, artístico ou científico. Seu caráter é eminentemente intelectual. Seu objetivo (a princípio) não é o de contratação, mas apenas de seleção de projeto a ser premiado, ainda que seja posteriormente aplicado. Após a premiação ou remuneração, torna-se finda esta modalidade de licitação para a Administração pública. Os direitos relativos à obra passam para a Administração pública. A comissão deve ser especializada, haja vista a especificidade do trabalho. O subjetivismo pode gerar desvio de finalidade, devendo o julgamento ser criterioso. 5.5. Leilão Segundo Carvalho Filho (2009), esta modalidade têm os objetivos de: •vender bens móveis inservíveis; •vender produtos legalmente apreendidos ou penhorados; e •alienar bens imóveis adquiridos em procedimento judicial ou através de dação em pagamento, como permite o artigo 19 da Lei. Realiza a compra o participante que ofertar o maior lance de valor igual ou superior ao lance mínimo estabelecido (valor da avaliação). A publicidade deve ser a mais ampla possível. Poderá ser realizado por leiloeiro oficial ou funcionário habilitado. Para a venda de bens imóveis da Administração Pública, a modalidade correta é a concorrência. 6. PROCEDIMENTO DA LICITAÇÃO Como todo ato administrativo, a Licitação é um procedimento, que se desencadeia através de uma seqüência de atos próprios, alguns realizados pela Administração pública, outros pelos administrados. Se inicia com um processo administrativo, através de uma comissão designada ou permanente. Em qualquer ramo do Direito, processo se realiza através de um procedimento. Não é diferente no processo licitatório. O processo de abertura da licitação, inclusive, deverá conter: a)solicitação da unidade interessada, com a indicação sucinta do objeto a ser licitado; b)estimativa de custos; c)indicação do recurso orçamentário para a despesa; d)definição da modalidade licitatória; e)autorização da autoridade competente para a realização da licitação; f)edital e seus anexos, bem como a minuta do contrato a ser celebrado; g)exame e aprovação prévia do edital e do contrato pela acessória jurídica do órgão ou entidade. O procedimento também está ligado à complexidade da modalidade da licitação. Assim sendo, ele será mais complexo e formal na concorrência e mais simplificada no convite. Note-se que esta ligação também diz respeito ao valor do contrato. Por fim, podemos ainda dividir teleológicamente as fases do procedimento em fase interna e fase externa. A fase interna seria toda aquela preparatória da licitação, como a formação da comissão, a preparação dos documentos, a preparação do edital, etc. Com a convocação dos interessados através do edital é que se inicia a fase externa. Vamos analisar as fases da licitação de forma seqüencial. 6.1. A formação da comissão Não se trata, necessariamente, de uma fase da licitação. São as providências prévias para a abertura de qualquer processo, não excluído o processo licitatório. A comissão é formada por três membros no mínimo, como dita o artigo 51 da Lei, dois, ao menos, servidores com qualificação como pertinentes ao quadro permanente do órgão responsável pelas licitações. Apenas no caso do convite esta qualificação pode ser dispensada, bem como no pregão a autoridade competente designa um servidor como pregoeiro, previamente capacitado para tal, para analisar a aceitabilidade das propostas e lances, sendo responsável também pela classificação, habilitação e adjudicação. A comissão tem mandato de um ano. É vedada a recondução do mandato da totalidade de seus membros para o período subseqüente, visando assim, de um lado, a possibilidade de fraudes, comuns a esse tipo de procedimento, e de outro, na permissão da recondução parcial, a manutenção dos servidores que já possuem algum conhecimento sobre o procedimento, já que é necessário certo preparo dos membros em razão da complexidade da matéria. Como nos ensina Di Pietro (2008), “no caso do concurso, o julgamento deve ser feito por comissão especial integrada por pessoas de reputação ilibada e reconhecido conhecimento da matéria, não havendo necessidade de serem servidores públicos (artigo 51, §5º); justifica-se a exigência pelo fato de o concurso ser a modalidade de licitação cabível para a contratação de serviços técnicos, artísticos ou científicos, que exige conhecimento especializado por parte da comissão”. 6.2. Edital Edital é o instrumento pelo qual a Administração pública divulga e define o objeto e os procedimentos da licitação, bem como as demais informações pertinentes, como as condições do contrato, a forma de apresentação de propostas, dentre outras. O edital é mais ainda, é ato vinculado, que obriga as partes, Administração e licitantes, ao ali definido. Podemos ainda definir o edital como a lei específica da licitação, uma vez que é ela que contém todo o procedimento, as normas e as condições, que não podem ser descumpridas, sob pena de nulidade. Os requisitos do edital se encontram no artigo 40 da Lei, como por exemplo, o objeto, condições para participação, forma de apresentação das propostas, critérios para julgamento, além de alguns relativos ao posterior contrato, como o prazo para assinatura do contrato e suas condições, além das condições de pagamento, prazo para entrega do objeto, etc. Nada pode ser realizado em desacordo com o previamente estabelecido no edital. Vale ressaltar que, no caso de convite, não existe edital, mas sim carta-convite, que nada mais é do que uma forma simplificada de edital, com direcionamento específico (há pelo menos três participantes), haja vista o baixo valor do contrato. O edital deve ser publicado, em respeito ao princípio da publicidade, permitindo a qualquer um tomar conhecimento do seu conteúdo e objeto, inclusive para que possa ser contestado pelos administrados. Ressalte-se que, como nos demais ramos do Direito, a ausência de objeção ao edital no prazo especificado fará decair o direito à esta objeção, não podendo então ser contestado. Isto evita, inclusive, que tais impugnações só venham a tona pelos concorrentes que não obtiverem êxito na licitação, tentando com isto, obter vantagem. O edital deve ser claro, objetivo, e estar em acordo com a legislação pátria. Entretanto, quando se tratar de concorrência internacional, a Lei determina que seja ajustado o edital à política monetária e do comércio exterior, atendendo ainda às exigências dos órgãos competentes. 6.3. Habilitação Habilitação é a fase do procedimento em que a Administração pública verifica a aptidão dos licitantes para a participação no certame e provável futura contratação. Se realiza no recebimento da documentação e da proposta por parte dos candidatos, possibilitando a aferição da possibilidade e viabilidade de realização do contrato. Os documentos exigíveis para a habilitação, constantes no artigo 27 da Lei somente farão referência à: a) habilitação jurídica – que diz respeito à regularidade formal do candidato, em especial, à sua personalidade jurídica; b) qualificação técnica – para verificar a capacidade operacional para a execução do objeto do contrato, podendo desdobrar-se em qualificação genérica, quando fizer referência à regularidade de inscrição em órgão de classe para o qual deve estar habilitado, específica, para comprovar a experiência em realização de objetos similares ao do contrato, ainda que para pessoas de direito privado, e por fim, operativa, que é a comprovação da existência de estrutura da pessoa ou empresa que garanta a compatibilidade com o vulto e a complexidade do objeto; c) qualificação econômica financeira – diz respeito à possibilidade de arcar com os custos do objeto para o completo deslinde do contrato; d) regularidade fiscal – prova de que o candidato está em dia com suas obrigações tributárias e fiscais, evitando que empresas irregulares do ponto de vista fiscal participem do certame; e) cumprimento do disposto no inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição Federal – exigência inserida pela Lei 9.854/99, para impedir que empresas que descumpram a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo sob a condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos” participem da licitação, contratando com a Administração pública apresentando tais irregularidades. A entrega da documentação pertinente é feita através de envelopes, que, abertos em sessão pública, visam a possibilidade de julgamento da habilitação. Desta forma, os candidatos que atenderem os requisitos apresentados consideram-se habilitados. Os que não conseguiram apresentar a documentação necessária são, por conclusão lógica, os inabilitados. Ressalve-se que, para que o procedimento continue, faz-se necessário a expressa desistência (ou tácita no caso de transcurso em banco do prazo) do direito de recorrer contra a inabilitação. Uma vez havendo recurso, a sessão só poderá continuar após julgamento dos mesmos. Como já dito, estando habilitados os candidatos, e uma vez que as propostas são entregues juntamente com os documentos necessários à habilitação, os licitantes passam a estar vinculados às suas propostas, não podendo haver desistência das mesmas, salvo por fato superveniente devidamente justificado. Também, a partir daí, não poderá mais haver desclassificação dos candidatos por motivos relativos à habilitação. Vale ressaltar, por fim, que a legislação permite a participação de consórcios de empresas. Para tanto, faz-se mister a existência de instrumento que comprove o compromisso das empresas em participar do consórcio, e a responsabilidade solidária. A Lei permite ainda, no intuito de beneficiar as empresas de menor porte, que a capacidade técnica e a financeira sejam obtidas pelo somatório das capacidades das empresas consorciadas. 6.4. Classificação É a fase da licitação onde ocorre o julgamento das propostas, através de critérios objetivos, definidos no edital. Ademais, neste momento as propostas são também ordenadas, iniciando-se com a melhor e seguindo esta ordem, onde a primeira é a vencedora. Nesta fase pode haver a desclassificação das propostas que não atenderem aos requisitos e exigências contidos no edital, uma vez que a este totalmente vinculadas. Também pode haver desclassificação daquelas propostas com preços muito superiores (excessivos) ou tão inferiores que se tornem inexeqüíveis. As propostas desclassificadas não podem ser consideradas para efeito de julgamento das demais. Em caso de empate, a classificação se fará mediante sorteio. Entretanto, no caso de empate onde figuram micro-empresas ou empresas de pequeno porte, estas poderão ser beneficiadas, de acordo com a Lei Complementar 123/20006. Note-se que o candidato mais bem classificado, ou seja, o vencedor, não adquire direito à celebrar contrato com a Administração pública. Há apenas a expectativa de direito que, havendo contratação, esta se dê de acordo com a ordem de classificação. Inclui dizer que, havendo fundado motivo que impeça a contratação com o vencedor, a contratação deve ser feita com o segundo melhor colocado e assim por diante. 6.5. Homologação e Adjudicação A homologação nada mais é do que a confirmação do processo licitatório pela autoridade superior, que equivale à validação do procedimento. Ela decorre do exame desta autoridade, da existência de algum vício no processo, onde poderá resultar de nulidade ou determinação de saneamento do vício, se cabível. Poderá, ainda, ser revogada, caso haja fundado interesse público. Já a adjudicação é o ato, decorrente da homologação, pelo qual a Administração pública atribui ao vencedor o objeto da licitação. Mais uma vez, não se trata da celebração do contrato. É ato administrativo de natureza declaratória, vinculado (uma vez que, após a homologação, não proceder à adjudicação constituiria flagrante arbitrariedade). Hely Lopes Meireles (2003) assinala os efeitos produzidos de logo pela adjudicação, quais sejam: a)a aquisição do direito de contratar com a Administração nos termos em que o adjudicatário venceu a licitação; b)a vinculação do adjudicatário a todos os encargos estabelecidos no edital e aos prometidos na sua proposta; c)a sujeição do adjudicatário às penalidades previstas no edital e a perda de eventuais garantias oferecidas, se não assinar o contrato no prazo no prazo e condições estabelecidas; d)o impedimento de a Administração contratar o objeto licitado com qualquer outro que não seja o adjudicatário; e)a liberação dos licitantes vencidos dos encargos da licitação. Por fim, vale salientar que, não havendo contratação com o vencedor, os demais concorrentes, pela ordem de classificação, podem fazê-lo de acordo com as condições apresentadas pelo vencedor, inclusive quanto aos preços. Razão esta que desobriga os vencidos da contratação, eximindo-os ainda das penalidades administrativas. 6.6. Particularidades das Modalidades de Licitação O procedimento mais extenso, como sabemos, é o da concorrência, onde todas as fases revestem-se do máximo formalismo possível, não havendo simplificação ou dispensa de ato. Por outro lado, em razão do valor e da complexidade, outras modalidades têm seus procedimentos simplificados. No caso da Tomada de Preços, a principal diferença encontra-se no prazo para publicação do edital (15 dias, de acordo com o artigo 21, §2º) e na habilitação. Haja vista que a mesma é realizada para aqueles que já se encontram habilitados no registro cadastral do órgão competente (podendo esta inscrição ser realizada por qualquer interessado até o terceiro dia que antecede a abertura das propostas), esta fase é dispensada. As demais fases ocorrem com o mesmo formalismo vislumbrado na concorrência. No Convite, o procedimento é ainda mais simplificado. A convocação é feita através da carta-convite, com cinco dias de antecedência a pelo menos três interessados. Há apenas a fixação da cópia do instrumento convocatório em local adequado, facultada a publicação em diário oficial. Ademais, não é obrigatória a comissão de licitação. O procedimento do Concurso e do Leilão não são disciplinados especificamente pela Lei, fixando apenas alguns critérios. Neste caso, respeitados os princípios das licitações, fica a cargo do edital todo o procedimento a ser realizado. O pregão em procedimento próprio, determinado pela Lei 10.520/02. 7. O PREGÃO O pregão é a mais nova modalidade de licitação instituída na legislação brasileira pela Medida Provisória n.º 2.026 de 04 de maio 2000. Inicialmente, de acordo com as sucessivas medidas provisórias sobre o pregão, esta modalidade se aplicava apenas no âmbito da União para a aquisição de bens e serviços comuns. A Lei 10.520/2002 estendeu o pregão para todos os entes da Federação. Os bens e serviços comuns são aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado. A relação dos bens e serviços comuns que podem ser adquiridos por meio do pregão é especificada por meio de decretos. Praticamente todos os bens materiais de que os hospitais necessitam podem ser adquiridos por meio dessa modalidade. Os bens de informática são objetos de legislação específica. Por outro lado microcomputador de mesa ou portátil, monitor de vídeo e impressora deverão ser fabricados no Brasil, com significativo agregado local, conforme estabelece a Lei 8.248/1991. Esta modalidade poderá ser adotada a critério da Administração Pública independentemente do valor da contração, ou seja, a Administração poderá escolher o pregão ou qualquer das modalidades estabelecidas pela Lei 8.666/1993, isto é, carta-convite, tomada de preço e concorrência. Mas, se escolher algumas dessas, necessário se faz observar os limites de valores das contratações. Em outras palavras, para a aquisição de bens e serviços comuns próprios ao pregão pode-se usar o mesmo como alternativa às modalidades citadas independentemente dos valores envolvidos. Entretanto, só se admite um único critério de julgamento das propostas: o menos preço. 7.1. Bens e Serviços Comuns 7.1.1.Bens Comuns •Bens de consumo: combustível e lubrificante; material de expediente hospitalar, médico e de laboratório; •Bens permanentes: mobiliário; equipamentos em geral, exceto bens de informática. 7.1.2. Serviços Comuns •Serviços de apoio administrativo; •Serviço de apoio à atividade de informática; •Serviço de assinaturas: jornal, periódico, revista, televisão via satélite; •Serviços se copeiragem; •Serviços de vigilância e segurança ostensiva; •Serviços de fornecimento de energia elétrica; •Serviços de apoio marítimo; •Serviços de aperfeiçoamento, capacitação e treinamento; 7.2. Espécies Há dois tipos de pregão, o presidencial e o eletrônico. O primeiro se realiza em sessões públicas com a presença de fornecedores ou seus representantes legais. A disputa se dá por meio de propostas de preços escritas e lances verbais. Sob esse aspecto, é uma modalidade semelhante ao leilão para alienar bens móveis inservíveis, bens apreendidos e bens imóveis, conforme estabelece o Artigo 22, 5.º da Lei 8.666/1993. Daí a denominação para alguns de leilão reverso. Ao contrário do leilão tradicional em que os lances devem elevar o preço do bem a ser alienado, no pregão, os lances devem reduzir os preços das propostas. As propostas serão julgadas segundo o critério de menor preço, observados os prazos máximos para fornecimento, as especificações técnicas e os parâmetros mínimos de desempenho e qualidade definidos no edital. O pregão eletrônico para a aquisição de bens e serviços comuns, realiza-se em sessão pública, por meio do sistema eletrônico que promove a comunicação pela Internet. A autoridade competente do órgão promotor da licitação, o pregoeiro e sua equipe de apoio e os licitantes devem estar previamente cadastrados perante o servidor do sistema eletrônico, cada qual contando com login e senha intransferíveis. O licitante deve acompanhar as operações no sistema eletrônico durante a sessão pública virtual do pregão, ficando responsável pelo ônus decorrente da perda de negócios diante da inobservância de quaisquer mensagens emitidas pelo sistema ou de sua desconexão. No âmbito da Administração Pública Federal, o uso da Internet para efeito de licitação começou a ser desenvolvido em meados da última década do século passado, inicialmente para publicar avisos, editais, julgamentos de propostas e demais despachos decorrentes dos processos de licitação. Os dois tipos de pregão representam um grande avanço em relações às modalidades da Lei 8.666/93 em termos de redução de tempos e de preço, mas principalmente para tornar mais transparentes as aquisições da Administração Pública. Na modalidade de pregão, presidencial ou eletrônica, não cabe mais exigir garantia de proposta (caução, fiança, seguro-garantia) como estabelece a Lei 8.666/93 (artigo 31, III e artigo 56 d). Também ficou vedado à Administração Pública cobrar pelo edital, como permite a Lei 8.666/93 (artigo 32, 5º d). Essa proibição foi solicitada por diversas entidades da sociedade civil como uma medida para promover a democratização da licitação e favorecer as pequenas e médias empresas. 7.3. Fases A Lei 10.520/2002 estabelece que o pregão se realize em duas fases. A primeira é a fase preparatória, que começa com a justificativa emanada de uma autoridade competente sobre a necessidade de contratação, definição do objeto a ser contratados, as exigências de habilitação dos licitantes para participar de certame. A definição deve ser precisa, suficiente e clara, não sendo aceitas as que limitam a competição por serem excessivas, irrelevantes ou desnecessárias. A fase externa começa com a convocação dos interessados, por meio de publicação de aviso em diário oficial do respectivo ente federado, ou, inexistindo, em jornal de circulação local e, facultativamente, por meio eletrônico. Desse aviso devem constar a definição do objeto do pregão e a indicação do dia, hora e local em que poderá ser obtido o edital na íntegra. Durante a sessão e após o exame das propostas, o proponente do menor preço e os demais com preços até 10% superior ao menos preço poderão fazer novos lances verbais e sucessivos, até que o pregoeiro proclame o vencedor. O pregoeiro estimula a disputa convidando os licitantes classificados, individualmente, a fazer lances verbais, começando pelo autor da proposta de maior preço e a seguir os demais, em ordem decrescente de valor. Se um licitante, quando convocado pelo pregoeiro, desistir de apresentar lance verbal, será excluído dessa fase de disputa por lances. Não havendo mais verbal, o pregoeiro efetua a classificação das propostas em ordem crescente de valor começando pelo último lance, incluindo as propostas escritas dos licitantes que não fizeram lances verbais. A proposta de menor valor será então examinada, tendo em vista os preços de mercado e outras condições estabelecidas no edital. O pregoeiro não está obrigado a aceitar automaticamente a proposta de menor preço. Sendo aceitável a proposta de menor preço o pregoeiro inicia o processo de habilitação. Ao iniciar essa fase, o licitante inconformado com alguma decisão do pregoeiro poderá declarar a intenção de interpor recurso em tela apropriada e que se torna disponível automaticamente após o início da fase de habilitação o pregoeiro deverá informar, ao final da sessão pública, o prazo para os licitantes com intenção de interpor recursos a registrar as razões dos recursos, bem como para os demais e registrarem suas contra-razões. Pelo pregão, a habilitação dos licitantes é posterior à etapa de julgamento e classificação das propostas, ou seja, encerrada a fase competitiva e ordenadas as ofertas, o pregoeiro procederá à abertura do invólucro contendo os documentos de habilitação do licitante que apresentou a melhor proposta, para verificação do atendimento das condições fixadas no edital (Lei 10.520/02, artigo 4.º, XII). No caso das modalidades da Lei 8.666/93, a habilitação é anterior ao julgamento das propostas, como estabelece o seu Artigo 43: primeiro aprecia-se os documentos relativos à habilitação. Depois, devolvem-se os envelopes fechados com as propostas aos licitantes inabilitados; e só então começa a fase de exame das propostas. 7.4. O Pregoeiro Um ator importante na condução dos pregões é o pregoeiro, que deve ser um servidor designado pela autoridade competente ou pelo ordenador da despesa do órgão ou entidade que estiver promovendo a licitação. São atribuições do pregoeiro: 1.Credencias os interessados; 2.Receber as propostas de preços e a documentação de habilitação; 3.Examinar as propostas e classificá-las; 4.Conduzir os procedimentos relativos aos lances dentro em vista a obtenção do menor preço; 5.Adjudicar a proposta de menor preço; 6.Conduzir os trabalhos da equipe de apoio; 7.Elaborar a ata; 8.Receber e examinar recursos; 9.Encaminhar o processo devidamente instruído, após a adjudicação, à autoridade superior para efeito de homologação e contratação (Decreto 3.555/00, Artigo 9.º). 7.5. Diferenças Entre o Pregão e as Demais Modalidades de Licitação Aplicadas às Compras e Serviços De acordo com a Lei 10.520/02, aplicam-se para o pregão subsidiariamente as normas da Lei 8.666/93 (artigo 9º), ou seja, para qualquer assunto não tratado por essa lei, deve-se observar as disposições da Lei 8.666/93, pois esta é o estatuto jurídico das licitações e dos contratos para todas as entidades da Administração Pública. As compras e contratações de bens e serviços comuns pelos entes da federação, quando efetuadas pelo sistema de registro de preços, poderão adotar o pregão, conforme regulamento específico. Analisemos abaixo um quadro comparativo destas diferenças. 8. CONCLUSÃO Pudemos observar a necessidade da licitação para a preservação do interesse público. Sua nova modalidade, o pregão, veio a acrescentar uma nova possibilidade de atender à este interesse, com suas particularidades, em razão da celeridade e da economia. A licitação consubstancia não só os princípios constitucionais e do Direito Administrativo, mas também princípios próprios, que norteiam os atos praticados pelo poder público e pelos agentes administrativos. A ausência de obrigatoriedade só ocorre quando houver o interesse público, podendo o procedimento licitatório ser contrário ao deslinde desde interesse, objetivando o menor tempo e o melhor preço possível, em prol da coletividade e dos interesses da Administração. Por fim, o pregão veio a facilitar a aquisição de bens comuns, onde não há necessidade de especificação maior, para dar celeridade à atividade administrativa sem perder de vista a eficiência desejada. Portanto, não há como não pensar em licitação quando se objetiva a moralidade administrativa, a igualdade de oportunidades e a supremacia do interesse público.
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A importância das Parcerias Público-Privadas nos contratos administrativos como instrumento para atuação da iniciativa privada nos serviços públicos
O presente trabalho tem por objetivo discutir como as Parcerias Público-Privas são extremamente relevantes para o direito administrativo, uma vez que o modelo de parceria entre o Estado e a iniciativa privada pode atingir diversos projetos relativos a infra-estrutura no Brasil, que muitas vezes não acontecem por ausência de recursos públicos e/ou pela infinita burocracia que assola todas as esferas dos serviços públicos.  Sendo assim, as Parcerias Público-Privadas surgem como uma alternativa viável para tirar os serviços públicos do monópolio do Estado e transferir para a iniciativa privada, sem que essa mudança afete as garantias e princípios da administração pública, mostrando-se como uma opção aos entraves do Poder Público.
Direito Administrativo
Introdução As Parcerias Público-Privadas são um modelo de parceria entre o Estado e a iniciativa privada, dessa forma enquadra-se dentro de um contexto amplo que vai desde a organização da administração pública como um sistema, passando pelos contratos administrativos e os serviços públicos, para desembocar no tema principal do trabalho que é o estudo das parcerias público-privadas, com sua conceituação, aspectos legais, modalidades e os benefícios que essa parceria trás para as concessões administrativas. A questão principal da pesquisa é como as parcerias público-privadas servem de instrumento para possibilitar que a iniciativa privada possa atuar nos serviços públicos, uma vez que ao contrário do que se prega no Brasil, a administração pública muito se beneficia ao estabelecer parcerias com a iniciativa privada. O objetivo geral do trabalho proposto é demonstrar através do estudo do modelo de parceria público-privadas, que é uma alternativa viável e benéfica para solucionar os entraves que os contratos administrativos apresentam para concessão da execução de serviços públicos. Para abordar o tema principal do projeto, é necessário antes estudar a questão dos contratos administrativos e como funcionam as concessões de serviços públicos na administração pública do Brasil. Apontadas essas questões, estudaremos o funcionamento das Parcerias Público-Privadas, para enfim chegarmos as vantagens que tornam esse modelo viável e eficiente, principalmente como forma de possibilitar a atuação da iniciativa privada nos serviços públicos. 1 Breve Histórico As Parcerias Público- Privadas surgiram na Inglaterra dos anos 90, e devido aos exemplos de sucesso em seu país de origem rapidamente esse modelo de parceria entre a iniciativa privada e o poder público, se espalhou para países como França, Portugal, Holanda. Com a concretização desse modelo de contrato administrativo, as parcerias se espalharam pelo mundo, chegando ao Brasil. Segundo Pinto (2008) no Reino Unido, as PPPs recebem a denominação “Iniciativa de Financiamento Privado” e representam uma parcela que varia entre 10% e 13% dos investimentos relacionados a infra-estrutura do país. Já na índia, uma economia emergente como a brasileira, o investimento oriundo das PPPs representa 70% do total destinado à construção de rodovias. O Estado pioneiro na utilização das Parcerias Público- Privadas no Brasil foi Minas Gerais, com a edição da Lei 14.868/03. Posteriormente o Estado de São Paulo passou a implementar a utilização das PPP’s com a Lei 11.688/04 e no ano seguinte o Rio Grande do Sul passou também a utilizar as parcerias público-privadas, reguladas pela Lei 12/234/05. No âmbito nacional as Parcerias Público-Privadas são reguladas pela Lei 11.079/04, e aos poucos vem solidificando sua importância na economia nacional, contribuindo decisivamente com a estrutura econômica e social do Estado brasileiro. 2 Conceituação Nos dizeres de Marçal Justen Filho, as PPPs podem ser definidas: “Parceria público-privada é um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da infra-estrutura, mas mediante uma garantia especial e reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 549). Sendo assim, o fim principal das PPPs é a realização de obras de grande porte para os serviços públicos, por meio de concessões patrocionadas ou administrativas, em que ocorre o compartilhamento dos riscos do empreendimento entre as partes envolvidas. Nessa esteira, Goldsmith (2006) destaca que as PPPs são mecanismos interorganizacionais que balizam para os órgãos públicos nas esferas federais, estaduais e municipais, a realização de atividades administrativas, como grandes obras de infra-estrutura e a prestação de serviços públicos. Outrossim é importante trazer a definição do que é Parceria Púplico-privada pela Lei 11.079/04, que em seu artigo 2º define: “Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão na modalidade patrocinada ou administrativa”. Pelo exposto, é possível concluir basicamente que o contrato de Parceria Público- Privada, nada mais é do que um contrato firmado entre a Administração Pública e a iniciativa privada com o intuito de executar ou implementar um serviço público, com ou sem obras de infra-estrutura, com o investimento do ente privado, o qual receberá uma contraprestação da Administração Pública. 3 Do Contrato de Concessão Patrocinada e Administrativa Por meio do conceito apresentado no tópico anterior, é possível depreender que para o adequado estudo e compreensão da importância das PPP’s é necessário saber o que são Contratos de Concessão, notadamente nas modalidade patrocinada e administrativa, uma vez que a concessão comum não se adequa às exigências previstas na Lei 11.079/04. A respeito do conceito de Contratos de Concessão, mencionamos os dizeres de José Cretella Júnior: “(…) acordo de vontades, de que participa o Estado, submetido ao regime jurídico de Direito Público, informado por princípios publicísticos e contend cláusulas exorbitantes e derrogatórias do direito comum. “(CRETELLA JUNIOR, José. 15ª ed. 2007. p. 331). 3.1 Concessão Patrocinada A própria Lei 11.079/04, em seu artigo 2º ao conceituar as Parcerias Público Privadas aproveitou para em seu § 1º conceituar também a concessão patrocinada, vejamos: “§ 1º Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.” Mister ressaltar que as concessões patrocinadas são reguladas pela Lei 11.079/04, entretanto a Lei 8.987/95 que regulamenta as concessões comuns, será aplicada subsidiariamente quando necessário. Nessa esteira faz-se necessário esclarecer que o critério utilizado para diferenciar os tipos de concessões existentes no Brasil é o regime de remuneração. No caso das concessões patrocinadas, além da tarifa que recebem pelas pessoas que utilizam o serviço prestado, ainda recebem uma pecúnia da parte concedente do contrato. A Lei 11.079/04  estabelece em seu art. 6º os meios pelos quais a administração pública fará a prestação pecuniária, evidenciando assim a importância da remuneração para caracterização da parceria público privada, verbis: “Art. 6º A contraprestação da Administração Pública nos contratos de parceria público-privada poderá ser feita por: I – ordem bancária; II – cessão de créditos não tributários; III – outorga de direitos em face da Administração Pública; IV – outorga de direitos sobre bens públicos dominicais; V – outros meios admitidos em lei.” Oportuno ressaltar que outra exigência indispensável na lei das PPP’s é o pagamento da tarifa pelos usuários, trata-se portanto de um critério que deve ser preenchido, assim como o do pagamento pecuniário pela administração pública. 3.2 Concessão Administrativa Para compreender o conceito de concessão administrativa se faz necessário o exame do art. 2º, §2º da Lei 11.079/04, in verbis: “§ 2º Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.” Os ensinamentos de Toshio Mukai são esclarecedores no tema da concessão adminstrativa, vejamos: “O § 2º do art. 2º, ao conceituar a concessão administrativa como o contrato pelo qual a Administração Pública é a usuária direta ou indireta da prestação de um serviço pelo parceiro privado, envolvendo ou não a execução de obra ou fornecimento e instalação de bens, cria uma figura nova, ou pretende tornar, por meio das parcerias, alternativas novas que tem sido, alhures, utilizadas, tais como a contratação de uma empresa possuidora de uma aterro sanitário, utilizável pela Administração Pública, mediante remuneração paga à empresa; idem, relativamente, à coleta de lixo, e até mesmo em relação os transporte de passageiros por ônibus.”(MUKAI, Toshio. Saraiva: 1999, p.5) Nesse ponto é importante ressaltar que a Lei 11.079/04 foi inovadora ao abordar a concessão administrativa de modo específico. Além de trazer um conceito novo ainda tornou os contratos muito mais céleres e eficientes, porque a partir da edição dessa lei a administração pública não pode formular contratos burocráticos e a Lei de licitação quando permite de um serviço vindo do ente privado. Sobre sua classificação, podemos dividir as concessões administrativas em dois tipos: as de serviço ao estado e as de serviço público. Quanto ao primeiro tipo, é a concessão que tem por objeto os serviços estabelecidos no art. 6º da Lei de Licitações, sendo que a Administração ocupará ao mesmo tempo o posto de cedente e de beneficiária do serviço, obviamente que caberá a ela a responsabilidade pela remuneração devida ao ente privado. Já no tocante as concessões administrativas de serviço público, temos a prestação de serviço previstos no art. 175 da Constituição Federal ao usuário de forma direta, sem que este tenha que pagar tarifa ao ente privado. Nesse caso, quem paga a tarifa é o própio cedente. 4 Princípios Constitucionais aplicados nos Contratos de PPP’S Como em todos os contratos firmados com a Administração Pública, os contratos de concessão das parcerias público privadas devem ser norteados pelos Princípios gerais previstos na Constituição Federal em seu art. 37. Mas além dos referidos princípios previstos na Carta Magna, o contrato das parcerias público privadas também deve seguir os pilares que norteiam as PPP’s dispostos na Lei 11.079/04. Vejamos os princípios elencados no art. 37 da Constituição Federal: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)” Quanto ao princípio da legalidade, trata-se de um princípio limitador principalmente da atividade da Administração Pública, uma vez que estabelece que as ações da administração pública estão totalmente sujeitas aos limites da lei, devendo respeitá-la. Esse princípio é importante também porque mantém os indíviduos e o ente público no mesmo patamar, ou seja, respeitando os limites e o disposto na lei. No tocante ao Princípio da Impessoalidade, significa que em todos os seus atos a Administração Pública precise agir com total impessoalidade, sendo justa e buscando o interesse da coletividade. Por força desse princípio, as pessoas que por força de seus cargos e/ou funções contratam em nome da administração público, não podem jamais buscar favorecimento próprio. De outra forma, a administração pública também precise ser impessoal com os indivíduos com os quais contrata, não podendo de forma alguma prejudíca-los ou beneficiá-los. No que se refere ao Princípio da Moralidade, é o que exige da Administração Pública um conduta ética e dentro da probidade administrativa, evitando assim excessos nos contratos e até mesmo desvio de finalidade. Já o Princípio da Publicidade é a base da transparência da administração pública. Todos os seus atos, contratos, contas que não sejam por lei de sigilo, devem estar à disposição para o acesso e conhecimento de todos os interessados. Sobre o Princípio da Eficiência, é o princípio que estabelece a agilidade, empenho, dedicação em todas as esferas da administração pública. Por óbvio que o princípio da eficiência também deve ser observado pelo ente privado do contrato de Parceria Público-Privado. 5 Dos Princípios da Lei 11.079/04 Para o estudo dos princípios norteadores das PPP’s presentes na lei 11.079/04, necessário trazer a exame o art. 4º da citada lei, verbis: “Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; V – transparência dos procedimentos e das decisões; VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.” Nota-se que o primeiro inciso do supracitado art. 4º trás especificamente a importância do princípio constitucional da eficiência nos contratos de Parceria Público- Privadas, demonstrando o quanto é importante que o serviço prestado seja feito de forma eficiente e dedicada. Na sequência o inciso II aborda especificamente a proteção aos direitos dos usuários do serviço prestado e ao próprio ente privado que presta o serviço. Ressalta-se nesse inciso que a Lei 11.079/04 não trata da proteção de direitos da administração público, isso porque esta já goza de uma série de benefícios e privilégios que se estendem até os contratos de PPP’s. Em contrapartida o inciso III preconiza funções que não podem ser delegadas ao ente privado nas concessões de Parcerias Público- Privadas, sendo que devem permanecer como atributos exclusivos da administração pública. Explicando o referido inciso III, são os dizeres de José Cretella Neto: “Nesse inciso III pretendeu o legislador enfatizar algumas das funções estatais que permanecem indelegáveis: a de regulação – ou seja, a disciplina jurídica das questões relativas às PPPs – a antagevenal – o julgamento dos litígios oriundos dos contratos de PPP – o exercício do poder de polícia – aqui em sentido amplo, agindo antageve e repressivamente – e outras atividades que lhe cabem exclusivamente.”(NETO, José Cretellla. Comentários à Lei das Parcerias Público- Privadas. p. 48) O disposto no inciso IV revela a importância que o cuidado com o dinheiro público é importante na administração de forma geral. Já o inciso V retoma outro princípio constitucional previsto no art. 37 da Constituição Federal, o da publicidade. No que se refere ao inciso VI, trata-se de importante princípio já que deixa explicíto que os riscos no negócio firmado entre o ente público e o privado, esses serão divididos de forma igualitária, o que garante a isonomia da relação entre as partes. Por fim, o ultimo inciso do art. 4º estabelece que para existir a relação entre o ente público e o privado é necessário que ambos tenham sustentabilidade financeira para arcar com os compromissos assumidos no contrato. 6 Da Importância das PPP’S O conceito e implementação das Parcerias Público- Privadas surgiram a partir do momento que se constatou a ineficiência e engessamento do Estado para prestar alguns serviços. Por meio das parcerias público-privadas o Estado transfere um serviço para iniciativa privada que tem mais facilidade de executar as obras e serviçoas necessários. Mas além disso, a vantagem é que utilizando dessas parcerias o Estado continua atuando conforme o disposto na Lei 11.079/04. Outrossim, tendo em vista que os orçamentos do Estado são sempre muito limitados, o que dificulta a execução de obras e serviços de grande montante, a transferência dessa obrigação para a iniciativa privada evita que o Estado tenha que tirar dinheiro público em grande quantidade, podendo o ente privado realizar o investimento necessário, que depois retornará em forma de pecúnia e de tarifas. É claro que o parceiro privado não pode sair prejudicado nessa relação, por isso a quantidade de capital investido na execução das obras e serviços contratados podem ser fragmentados durante o tempo de duração do contrato, além do que durante esse tempo também ocorrerá a contrapartida dos usuários e/ou da administração pública. Todavia os beneficios e vantagens que a Administração Pública conseguem com os contratos de parcerias público-privadas são muito mais importantes, uma vez que primeiramente não terá que realizar o investimento para execução da obra ou serviço e ainda poderá utilizer a estrutura montada pelo ente privado. Ademais, normalmente a mão-de-obra e os especialistas utilizados pelo ente privado são de qualidade inquestionável, além do fato do ente privado poder utilizer maquinários muito melhores dos que os que se encaixariam em um orçamento público limitado. Entretanto cabe aqui fazer um alerta no que diz respeito a função fiscalizatória que o Estado deve ter em relação a esses contratos, principalmente no tocante a contraprestação repassada ao ente privado. É indispensável que a Administração Pública acompanhe o desenvolvimento das obras e serviços, observando sempre o princípio da eficiêncie e evitando qualquer ato de improbidade. Além disso é preciso que ambos os lados da concessão tenham em mente que as obras e serviços contratados, devem obrigatoriamente serem executados da melhor forma possível, principalmente levando-se em conta os usuários desses serviços, que devem ter acesso a serviços públicos de qualidade e sempre eficientes. Conclusão Com o decorrer do tempo, o fenômeno de enfraquecimento do poder e capacidade de atender as demandas de serviço público por parte da Administração Pública brasileira, acabou por gerar uma crise no Estado. Tal crise refletiu-se na incapacidade e nas limitações que os cofres públicos sofrem para suprir os grandes investimentos em alguns serviços públicos. Diante dessa situação quase caótica para o poder público, houve a necessidade de se estabelecer uma conexão entre a administração pública e a iniciativa privada para que assim, por meio da colaboração entre os dois polos, fosse possível a implementação e execução dos serviços públicos de forma célere e eficiente a toda a população. Obviamente que para esse tipo de contrato foi necessário uma regulamentação clara e objetiva, primeiro por meio de algumas eis estaduais e posteriormente com a edição da Lei 11.079/04,que ao mesmo tempo estabelece os moldes em que se pode fazer esse contrato de concessão, também com fulcro no art. 170 da Constituição Federal. A lei 11.079/04 que regulamenta o funcionamento das Parcerias Público-Privadas, deixa claro que trata-se de um contrato administrativo, estabelecendo um tempo mínimo de duração( 5 anos); um valor base de investimento (vinte milhões) para contração e que o contrato envolva a prestação de um serviço ou a execução de uma obra pública. Como foi demonstrado acima, as PPP’s só podem figurar nos moldes das concessões patrocinadas ou administrativas, sendo que essa última foi um tipo de concessão introduzida pela própria lei das PPP’s. Sempre em observância aos princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal e nos do art. 4º da Lei 11.079/04, o contrato firmado entre a Administração Pública e o ente privado tende a ser deveras vantajosa, ocupando os espaços deixados pela incapacidade do Estado em gerenciar e suprir as demandas por serviços e/ou obras públicas. Por todo exposto, percebe-se que as Parcerias Público-Privadas surgem como uma forma que o Poder Público encontrou para transferir a execução de serviços e obras públicas, os quais muitas vezes não tem capacidade financeira para executar, para a iniciativa privada. Dessa forma, o ente privado fará o investimento necessário para a concretização do objeto do contrato de concessão e receberá a contrapartida prevista no contrato, bem como em alguns casos a tarifa advinda dos usuários daquele serviço. É claro que todo tipo de Contrato deve ser firmado em observância aos princípios legais e tratando-se de contratar com a Administração Pública, pensando sempre no melhor para a coletividade. As PPP’s não podem ser vistas como a única e milagrosa solução para os problemas de falta de infra-estrutura e de serviços básicos do poder público, mas quando celebrados e executados de forma eficiente e célere tornam-se uma excelente alternativa para viabilizar a atuação da iniciativa privada no interesse público.
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A prescrição intercorrente no processo administrativo de trânsito
Este trabalho tem como objetivo apresentar aos condutores de veículos e aos demais interessados a justificativa legal na aplicação da prescrição intercorrente no processo administrativo de trânsito. As orientações aqui apresentadas baseiam-se nos prazos prescricionais previstos na Lei nº 9.503/97, na Lei nº 9.873/99, Resolução nº 404/12 do CONTRAN e na aplicação do Código Civil de 2002 que trata sobre a matéria.
Direito Administrativo
Introdução O prazo legal para o término e julgamento dos processos administrativos  que combatem as autuações de trânsito é assunto de grande relevância em nossa sociedade, principalmente aos condutores que se sentem prejudicados por serem autuados por infrações que muitas vezes não cometeram. No decorrer da defesa administrativa, o recurso apresentado pelo condutor é muitas vezes ignorado pela Administração, por meio de decisões genéricas sem o menor amparo legal ou pela paralisação do julgamento processual. O descumprimento dos prazos legais por parte da Administração Pública concede ao cidadão e condutores de veículos o benefício da prescrição intercorrente do auto de infração, ou seja, transcorrido o prazo legal, perde o órgão autuador o direito e a capacidade punitiva de aplicar qualquer penalidade em desfavor do recorrente. O presente artigo está organizado da seguinte maneira. A seção 2 apresenta conceitos básicos referentes ao processos administrativo de trânsito e seus prazos prescricionais. A seção 3 detalha a modalidade de prescrição aqui proposta. A seção 4 apresenta um exemplo quanto a aplicação do prazo prescricional. A seção 5 trata da possibilidade de devolução dos valores pagos a título de multa, enquanto a seção 6 conclui o trabalho. Como principal ponto, é apresentado de forma clara e objetiva os requisitos essenciais para requerimento da prescrição intercorrente nos processos administrativos paralisados a mais de 03 (três) anos. 1 Processo administrativo de trânsito O Código de Trânsito Brasileiro[1] trata no Capítulo XVII, Seção II, do julgamento das autuações e penalidades impostas ao condutor infrator, informando, brevemente, as formas de apresentação de defesa e as situações de arquivamento do auto de infração. O cidadão que não concordar com a aplicação da penalidade imposta, deverá utilizar-se dos mecanismos de defesa ofertados pelo Código de Trânsito, sendo eles: Defesa de Autuação, Recurso à Junta Administrativa de Recurso de Infração – JARI e o Recurso ao Conselho Estadual de Trânsito – CETRAN. Em primeira instância administrativa, o cidadão irá recorrer quanto a legalidade da aplicação do auto de infração, ou seja, se ele preenche todos os requisitos elencados no artigo 280[2] do CTB. Caberá defesa de autuação a autoridade que impôs a penalidade em prazo não inferior a 30 (trinta) dias, nos termos do artigo 281, §4º[3] do CTB. Caso a autoridade de trânsito rejeite os argumentos expostos pelo requerente, o mesmo poderá interpor recurso administrativo junto à JARI, onde o mesmo será apreciado em segunda Instância por no mínimo 03 (três) conselheiros e no prazo máximo de 30 (trinta) dias. Caso o julgamento não ocorra no prazo indicado pela lei, o auto de infração terá concedido o efeito suspensivo, ou seja, perde o órgão autuador o poder de aplicar a penalidade ao condutor enquanto não for julgado o referido recurso. Após o julgamento do recurso pela JARI, abrirá novo prazo ao recorrente para apresentação de recurso ao CETRAN, onde sua possível infração será analisada em última instância administrativa. 2 Prescrição intercorrente do auto de infração de trânsito Com o advento da  lei nº 9.873/99 que estabelece os prazos de prescrição para o exercício da ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta,  a cerca da declaração de prescrição em decorrência da paralisação do procedimento administrativo por tempo superior a três anos, bem como os reflexos no arquivamento do auto de infração em sua aplicação nos processos administrativos de trânsito. A prescrição administrativa implica na preclusão da oportunidade de atuação do órgão sobre a matéria sujeita à sua apreciação, ou seja, a prescrição retira do órgão autuador (DETRAN, Guarda Municipal, Polícia Rodoviária Federal) o poder de aplicar a penalidade contra o condutor infrator, independente da legalidade da infração. Embora o órgão autuador tenha o direito de aplicar a penalidade e o condutor infrator tenha o direito a ampla defesa e ao contraditório, é assegurado aos litigantes em processos administrativos a razoável duração do processo e um prazo para o término da aplicação da penalidade. O lapso temporal entre o julgamento do auto de infração de trânsito entre a JARI e o CETRAN acaba por dar margem a aplicação da prescrição intercorrente que é objeto de análise do presente artigo. Assim determina a Lei nº 9.873/99: "Art. 1º Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado. § 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso". A prescrição intercorrente prevista no §1º do referido artigo é reconhecida pelo Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, por meio da Resolução n. 404/2012, em seu artigo 24, onde padroniza sua aplicação: "Art. 24. Aplicam-se a esta Resolução os prazos prescricionais previstos na Lei nº 9.873, de 23 de novembro de 1999, que estabelece prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva. Parágrafo único. O órgão máximo executivo de trânsito da União definirá os procedimentos para aplicação uniforme dos preceitos da lei de que trata o caput pelos demais órgãos e entidades do SNT". Com base no referido entendimento, conclui-se que essa modalidade prescricional é confirmada na modalidade da paralisação do processo pendente de julgamento ou de despacho pelo órgão autuador superior a três anos.  No entanto, para confirmação da prescrição é preciso considerar que, além do prazo prescricional, a referida lei ainda apresenta algumas causas suspensivas e interruptivas que precisam ser consideradas.      O artigo 2º da lei nº 9.873/99 determina que ocorrerá a interrupção da prescrição pela notificação do infrator, por qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato, bem como pela decisão condenatória recorrível. Aplicando a referida norma aos processos administrativos de trânsito, conclui-se que a prescrição seria interrompida nas seguintes hipóteses: a) notificação válida de imposição da penalidade de multa; b) prolação de decisão da  JARI que negue provimento ao recurso previsto no art. 282, § 4º[4] e art. 285[5], ambos do CTB.                        Quando falamos em interrupção, devemos considerar o lapso temporal decorrido até o evento que lhe deu causa, de forma a iniciar uma nova contagem do prazo a partir desta data. Considerando que o procedimento administrativo de trânsito está repleto de causas interruptivas da prescrição, deve-se considerar apenas a primeira delas para efeito de interrupção, nos termos do artigo 202[6] do Código Civil, sob pena do cidadão ter seu processo administrativo paralisado. 3 Contagem do prazo prescricional  Nos termos do artigo 285 e 288 do CTB, a autoridade de trânsito terá o prazo de 30 (trinta) dias, sem prorrogações, para julgar os recursos administrativos remetidos à JARI ou CETRAN. Considerando que o prazo para decisão inicia-se no ato do recebimento do processo administrativo pelo órgão julgador, a contagem do prazo prescricional ocorre no primeiro dia útil após o término do prazo de 30 (trinta) dias.  Para melhor compreensão dos prazos prescricionais, menciono seguinte excemplo hipotético: João foi autuado por infração de trânsito no dia 1º de janeiro de 2015. Dias após o ocorrido, foi notificado em sua residência para apresentação de defesa, indicação de condutor infrator ou pagamento da multa pela penalidade praticada. Na notificação estava previsto prazo para apresentação de Defesa de Autuação que encerraria-se no dia 1º de março de 2015.                   A defesa administrativa foi apresentada no prazo legal. No dia 1º de abril de 2015 a defesa foi indeferida pela autoridade de trânsito e João foi notificado em sua residência para apresentação de defesa à JARI ou quitação de débito. Inconformado com a decisão, João apresentou Recurso no prazo legal, o qual foi recebido e despachado pela Junta de Recursos em 15 de junho de 2015. Esgotados os 30 (trinta) dias para julgamento do auto de infração presente no processo administrativo de João, o órgão de trânsito se manteve inerte, não exaurando nenhuma decisão. Neste exemplo, a contagem do prazo prescricional inicia-se em 16 de julho de 2015 e termina em 16 de julho de 2018, época em que completará 03 (três) anos de suposta inércia e paralisação. Logo, a prescrição intercorrente dar-se-á 03 (três) anos após o término do prazo de 30 (trinta) dias concedido ao órgão autuador para julgamento do processo administrativo, devendo ela ser decretada de ofício pela administração ou a pedido do recorrente. 4 Devolução dos valores pagos a título de multa No envio do auto de infração o cidadão pode optar por quitar antecipadamente a multa aplicada pela infração e receber os benefícios concedidos por seu Estado de origem, sem qualquer presunção de culpa. O artigo 286, §2º do CTB[7], determina que se o infrator recolher o valor da multa e apresentar recurso, se julgada improcedente a penalidade, ser-lhe-á devolvida a importância paga devidamente atualizada. Se o processo administrativo não for concluído por culpa da Administração, não pode o órgão autuador dar cumprimento a penalidade, pois perde-se a pretensão punitiva, intercorrente e executória, sendo devida a restituição mediante a solicitação do condutor. Conclusão O artigo apresentou a possibilidade da aplicação da prescrição intercorrente no ambito do processo administrativo de trânsito, adotando como critério os prazos estabelecidos na Lei nº 9.873/99 e no CTB. O referido pode ser utilizado como base para requerimento da aplicação da prescrição, a pedido do condutor, obedecidos os prazos acima elencados, quais sejam: contagem do prazo prescricional de 30 (trinta) dias após o despacho do órgão julgador responsável pelo julgamento, que incorreu em paralisação do processo por período superior a 03 (três) anos. Em vista dos argumentos apresentados, faz-se necessário que o recorrente fique atento ao lapso temporal entre um julgamento e prazo prescricional, para confirmação da prescrição intercorrente e a possível devolução dos valores pagos a título de multa.
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Controle interno – uma análise sobre sua importância no âmbito da administração pública estadual
O presente estudo descritivo de natureza qualitativa baseia-se no Controle Interno como uma ferramenta indispensável para o bom funcionamento da gestão pública, por agir de forma preventiva, detectiva e corretiva, proporcionando aos administrados meios que assegurem a boa gestão pública, bem como viabilizando segurança de cunho jurídico nas tomadas de decisões. Não objetivando esgotar o assunto objeto do estudo em tela, mas apresentando sua importância e fazendo uma análise objetivando apresentar meios capazes de contribuir para o êxito da Administração pública, frente aos desafios fáticos de recursos cada vez mais escassos e dos diversificados problemas existentes. Por meio da análise procedimental o Controle interno é capaz de auxiliar no processo decisório, de forma pontual, identificando onde intervir para que o planejamento seja executado com lisura dentro dos parâmetros legais. Propõe-se também, com base nos pressupostos legislativos e teóricos, analisar os conceitos relativos ao tema, bem como apresentar uma abordagem geral do Controle interno na Administração Pública e seus princípios norteadores, ressaltar uma reflexão geral sobre os conceitos e procedimentos da Licitação e os Atos de improbidade Administrativa, analisar os conceitos e os objetivos constitucionais do Controle Interno, e por fim uma reflexão sobre o sistema de controle interno e sua importância para Administração Pública. [1]
Direito Administrativo
1- INTRODUÇÃO Em âmbito geral, desde tempos remotos percebem-se na Administração Pública Estadual irregularidades, falhas e desvios de materiais e recursos públicos, sendo o maior prejudicado a sociedade civil no geral. Por outro lado, existe uma preocupação dos gestores públicos, seja pela boa natureza de sua índole ou por mera e imperiosa imposição legal, especificamente com advento da Lei de responsabilidade fiscal, em melhor gerir a coisa pública. No entanto, no processo de gestão administrativa, há um dever legal inerente a prestação de contas por todos que manipulam tal poder, em se tratando da coisa pública. Neste momento verificam-se erros e diversas irregularidades que perduraram durante toda a execução do planejamento, os quais poderiam ser evitados se existisse um controle do Poder que agisse de maneira eficiente em defesa dos interesses coletivos. Sobre essa temática surge o Controle interno com diversas funções na Administração pública, sejam elas jurídica, financeira, administrativa, entre outras, sempre zelando pela salvaguarda dos interesses públicos, assegurando e fazendo cumprir o que fora planejado. Nesse sentido, a problemática principal deste artigo gira em torno da seguinte problematização: Pode a Administração Pública Estadual cumprir com seus objetivos sociais sem que exista um Controle Interno eficiente e proativo? Diante desse questionamento, elegeu-se como objeto de estudo: uma análise sobre a importância do controle interno no âmbito da Administração Pública Estadual, a fim de apresentar parâmetros em que se perceba que o Controle Interno na administração pública se reveste como ferramenta indispensável na proteção do patrimônio público, desempenhando maior segurança, e gerando eficiência na execução dos objetivos públicos coletivos. Por conseguinte, não há presunção de esgotar a presente problemática objeto deste estudo, mas tão somente apresentar uma análise discursiva com base na literatura e legislação vigente, pois, na gestão pública o Controle Interno e peça fundamental para o perfeito funcionamento da maquina estatal 2 – CONTROLE INTERNO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ABORDAGEM GERAL De acordo com os ensinamentos do renomado Hely Lopes Meirelles (2002), a palavra controle significa: “em referência a temática administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro”. A Administração Pública, em âmbito geral, representa os instrumentos por meio dos quais se busca a implementação do bem-estar coletivo e a gestão da coisa pública. No âmbito federal a organização administrativa é disciplinada pelo Decreto-lei nº 200 de 1967 que dispõe sobre a organização da Administração Pública Federal e estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa.Para o autor Alexandre de Moraes, a Administração pública pode ser definida objetivamente como a atividade concreta, direta, e imediata que o Estado desenvolve para assegurar os interesses coletivos e subjetivamente como o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas aos quais a Lei atribui o exercício da função administrativa do Estado. Vale ressaltar que dentre as diversas classificações doutrinarias, a maior parte classifica a Administração Pública em dois aspectos, sendo: Subjetivo, formal ou orgânico, o qual referi-se ao próprio Estado como conjunto de órgãos e entidades incumbidos da viabilização da atividade administrativa, objetivando os fins do Estado e a Administração Pública. Já a segunda classificação refere-se ao aspecto Objetivo / material, o qual intitula o exercício da atividade administrativa realizada por meios dos entes, tendo como finalidade o interesse público.A Constituição Federal de 1988 dita às regras gerais a serem seguidas pelos entes e demais pessoas jurídicas quanto à disciplina, criação, estruturação e organização da Administração Pública, portanto são temas de natureza administrativa, objeto de normatização do Direito Administrativo. Desse modo, as leis desenvolvem essas atribuições, como previstas nos artigos 51, IV; 52, XIII; 61, §1º, da CF/88, para criar ou autorizar a criação de autarquias, fundações, sociedades de economia mista ou empresas públicas, conforme previsão do Art. 37, XIX, da CF/88. Pelo princípio da simetria, os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios também seguem essa disposição, organizando suas estruturas através de lei. Vale ressaltar que a Administração Pública Direta corresponde à prestação dos serviços públicos diretamente pelo próprio Estado e seus órgãos, que integram sua estrutura. Portanto, quando a União, os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, prestam serviços públicos utilizando seus próprios meios, diz-se que há atuação da Administração Direta. Na lição do Mestre Hely Lopes Meirelles, órgãos públicos "são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem". Todavia, os órgãos são entes despersonalizados, ou seja, não possui personalidade jurídica, não sendo capazes de exercer, per si, direitos ou assumir obrigações. Por conseguinte, os órgãos seguem a direção da pessoa jurídica à qual pertencem, e são criados através de lei de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo. Na Administração indireta, tem-se a figura das pessoas jurídicas, que podem ser de direito público ou privado. Conforme disposto no inciso XIX do art. 37 da CF/88, alterado pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998, compõem a Administração Pública Indireta as autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas, valendo essa regra para todos os entes da federação. Segundo esse dispositivo legal compõe a Administração indireta as autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas, que executam serviços públicos, objetivando sempre atender os anseios da coletividade. Registra-se que entre a Administração Pública Direta e a Indireta não existem níveis hierárquicos, não havendo subordinação entre as entidades que as compõem. Portanto, existe vinculação, onde há o controle administrativo da Administração Direta sobre entidades da Administração Indireta, conhecido doutrinariamente como controle finalístico, tutela administrativa ou supervisão, onde A administração, em sentido lato, verifica se atendida as finalidades para as quais foram instituídas. 3 – PRINCÍPIOS CONTITUCIONAIS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Princípios são proposições anteriores e superiores às normas, que traçam direções e orientam os atos do legislador, do gestor e do aplicador da lei ao caso fático. No geral, constituem o alicerce, a base e o fundamento de um sistema jurídico, condicionando as estruturas subsequentes e garantindo a efetiva validade. Os princípios também são observados como padrão que servem de interpretação das demais normas jurídicas, fornecendo direção que devem ser seguidos pelos operadores da lei. Os princípios procuram eliminar vazios, oferecendo coerência e harmonia para todo o conjunto de normas jurídicas. Por outro lado, a administração Pública direta ou indireta tem como fim atender os interesses públicos, no entanto, deverá obedecer, dentre outras normas imperativas, aos Princípios previstos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, sendo eles a Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, este último incluído pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998. A Administração Pública, dentre outros, deverá ser regida pelos Princípios previstos no Art. 37 da Constituição Federal do Brasil de 1988: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência […]” 3.1 – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Este princípio rege a integral obediência à lei, ou seja, a Administração está vinculada a lei, se não houver previsão no ordenamento jurídico para a prática do ato, nada pode ser feito. O particular no desenvolvimento de suas atividades privadas faz o que a lei não proíbe, diferentemente é na gestão pública, o administrador ou aplicador da lei está restrito por este princípio, a fazer apenas o que a lei determina. Outros imperativos são mencionados na carta magna, a exemplo do previsto no inciso II do art. 5º, que prevê “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Na esfera do Direito Penal, percebe-se a incidência deste princípio no art. 5º inciso XXXIX da CF/88, sobre o tema o legislador estabeleceu que determinada conduta somente será considerada a conduta criminosa, se prevista em lei, ou seja, não há crime sem lei anterior que o defina, nem penalidade sem prévia cominação legal. 3.2 – PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE Por este Princípio deve o agente público, em sentido lato, se pautar sempre pelo interesse coletivo, deve agir de forma impessoal, sem vinculação a interesses alheios ao fim ao qual foi designado. Portanto, caso o agente público aja em interesse privado, alheio aos interesses coletivos, seus atos estão fadados ao desvio de finalidade, podendo ser considerados como atos ímprobos que atentam aos princípios da Administração Pública. Registram-se os ensinamentos do Mestre Celso A. Bandeira de Mello, ao dizer que a impessoalidade também se relaciona diretamente com o princípio da isonomia, ou seja, o tratamento deve ser impessoal, o mesmo para todos, de forma a não infringir o princípio da isonomia. Observa-se o que prevê o art. 37, §1º, da CF/88, que representa a garantia de observância desse princípio: “Art. 37, I: A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.” (grifo nosso) Ressalta-se que, segundo o STF, infringir o referido artigo não é violar o princípio da publicidade, mas sim outros, como o da impessoalidade, moralidade, dentre outros. Segundo decidiu o STF: “Publicidade de atos governamentais. Princípio da impessoalidade. Art. 37, parágrafo 1º, da Constituição Federal. O caput e o parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição Federal impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo, informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens, aí incluídos slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de servidores públicos.” (STF, RE 403.205/RS, relatora Ministra Ellen Gracie, publicação DJ 19/05/2006). Como visto, são vários os dispositivos que abordam a temática, contudo a Lei 9.784/99, em seu art. 2º, parágrafo único, inciso III, prevê e determina que nos processos administrativos, serão observados os critérios de objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades. 3.3 – PRINCÍPIO DA MORALIDADE Por este Princípio, deve o administrador, além de seguir o que a lei determina, pautar sua conduta na moral, fazendo o que for melhor, visando o interesse público. Tem que separar, além do bem do mal, legal do ilegal, justo do injusto, conveniente do inconveniente, também atos honestos de atos desonestos. Enfatiza-se aqui a moral interna da Administração, que condiciona o exercício de qualquer dos poderes, mesmo o discricionário. É dever do agente público não apenas agir em conformidade com a Lei, mas com observância a moralidade administrativa. A Constituição Federal faz menção à moralidade, em diversos dispositivos, conforme prevê o art. 5º, inciso LXXIII, onde trata da ação popular contra ato lesivo à moralidade administrativa. No art. 37, § 4º, o legislador enfatiza a punição mais rigorosa da imoralidade qualificada pela improbidade. Ainda com base neste princípio, se tem a proibição ao nepotismo, conforme edição da súmula vinculante nº 13 do STF, que trata do favoritismo para com parentes, seja para o exercício de cargo público sem concurso, seja para contratação sem licitação, com a seguinte redação: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até 3º grau, inclusive da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou ainda de função gratificada da administração pública direta, indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.” Com isto, o STF declarou que tais atos viola a Constituição Federal de 1988, posteriormente, promulga-se a Lei nº 8.429/92, que trata da probidade na administração pública, com base constitucional no art. 37, § 4º, enfatizando mais uma vez a relevância jurídica deste princípio que rege a Administração Pública no contexto geral. 3.4 – PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE Por este princípio diz-se que deve a Administração Pública dar publicidade de forma compulsória a todos os seus atos, contratos ou instrumentos jurídicos de forma geral, ou seja, total transparência nas suas condutas. No entanto, esta transparência não se limita ao simples fato da publicação dos atos, mas implica na possibilidade do administrado questionar, “participar” e controlar a atividade administrativa, ou seja, o gestor é mero representante dos interesses da coletividade, devendo para tanto cumprir com as suas obrigações legais, ora designadas. Registra-se que o Princípio da Publicidade pode ser relativizado, quando o interesse coletivo ou a segurança das informações assim o exigirem, conforme prevê o art. 5º, inciso XIV da Constituição Federal de 1998: “XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Em termos gerais, com a publicação, presume-se o conhecimento dos interessados em relação aos atos praticados pela Administração Pública, consequentemente iniciando os prazos para interposição de recurso, prazos de decadência e prescrição, conforme previsto em lei. 3.5 – PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA Este Princípio é de grande relevância para o mundo administrativo, foi introduzido na Constituição, por meio da Emenda Constitucional nº 19 de 1998, conhecida como emenda da reforma administrativa, modificando o art. 37, bem como outros da Constituição. Por este Princípio deve o agente público agir com rapidez, presteza, perfeição e rendimento, visando sempre o interesse público. Vale ressaltar o aspecto econômico, que deve pautar as decisões, levando-se em conta sempre a relação custo-benefício, priorizando assim o aspecto qualidade versus economicidade. Portanto, cabe à Administração Pública a prática de atos administrativos, agindo de acordo com competências definidas previamente em lei, exercendo atividade politicamente neutra, entretanto, hierarquizada e de caráter instrumental, visando o bem-estar social. 4 – LICITAÇAO E ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA 4.1 – LICITAÇÃO A Administração Pública segundo normas Constitucionais deve-se pautar sob a égide dos princípios Administrativos e suas contratações de obras ou serviços públicos, como regra geral, estão sujeitos aos procedimentos licitatórios, sempre de forma isonômica, devendo ser acolhida a proposta mais vantajosa para Administração visando o interesse público. Segundo o Mestre Celso A. Bandeira de Mello (2011, pg.532) “licitação é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências da públicas. Ainda informa que estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessárias ao bom cumprimento das obrigações que se propõem a assumir”. Na órbita federal a temática é regida pela Lei 8.666 de 1993, que vincula as normas gerais obrigatórias em todo país. Há também dispositivos específicos que beneficiam as micros e pequenas empresas, tais dispositivos previstos na Lei Complementar nº 123 de 2006. A obrigação de licitar não é ato discricionário do gestor, pois o mesmo submete-se a previsão imperiosa da Constituição Federal onde prevê no artigo 37, inciso XXI, cujos termos são o seguinte: “XXI – “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” Segundo o Mestre Celso A. Bandeira de Mello, os objetivos das licitações, sempre em conformidade com o ordenamento jurídico vigente, visam proporcionar às entidades governamentais possibilidades de realizarem o negócio mais vantajoso, em segundo plano, segundo o autor, visa assegurar aos administrados ensejo de concorrerem a participação nos negócios que as pessoas governamentais pretendem realizar com os particulares, e por fim, concorrer para promoção do desenvolvimento nacional sustentável.Os princípios que regem as Licitações estão previstas no artigo 3º da Lei 8.666/93, onde dispõe que as licitações serão processadas e julgadas conforme os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório, julgamento objetivo e demais princípios relacionados.Por força normativa do artigo 37º caput e inciso XXI da Constituição Federal de 1998, estão obrigadas as licitação pública tanto as pessoas de Direito Público de capacidade política, ou seja a Administração direta, compostas pela União, Estados, Municípios e DF, bem como as entidades de suas Administrações indiretas, que são compostas pelas Autarquias, empresas públicas, as sociedades de economia mista e fundações governamentais.Quanto às modalidades de Licitação, todas previstas no artigo 22 da Lei 8.666/93, Lei de licitação, há previsão de cinco, sendo elas: a Concorrência, que no geral é obrigatória no caso de valores mais elevados, procedida de ampla publicidade, à qual podem acorrer quaisquer interessados que preencham os requisitos estabelecidos. A Tomada de preços e o Leilão, são empregadas para negócios de vulto médio. No geral a Tomada de preço restringi-se as participantes previamente inscritos em cadastro administrativo, detalhados no artigos 34 a 37 da lei de licitações. Já na modalidade Convite, esta é feita para aquisições de modesta relação econômica, ou seja, valores mais baixos, previstos no artigo 22, parágrafo 3º, da referida lei, na qual a Administração convoca para participar três pessoas que operam no ramo do “objeto” desejado. Já o Concurso compreende a participação de qualquer interessado qualificado para realização de trabalho técnico, cientifico ou artístico, com instituição de prêmio ou remuneração aos ganhadores, conforme descritos no edital e disposição previstas no artigo 22, parágrafo 4º da aludida Lei. Por fim, tem-se o Leilão que é utilizado para venda de bens moveis inservíveis para administração e demais procedimentos previstos no artigo 22, parágrafo 5º da Lei 8.666/93.Posteriormente com o advento da lei nº 9.472 de 1997, lei da ANATEL, foram criadas mais duas figuras: o Pregão, regulada pela Lei 10.520, esta aplicada em todo o país e a Consulta, esta última sem compostura não foi delineada por nenhuma lei, limitando-se sua aplicabilidade a ANATEL. 4.2- IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A primícia maior da criação da Lei 8.429/92 – “Lei de improbidade administrativa” foi combater os atos praticados por agentes públicos que de alguma forma lesionavam o funcionamento da Administração pública brasileira. Vale ressaltar que a Lei em seu artigo 2º define o conceito de agente público, in verbis: “Reputa-se agente público para efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função das entidades mencionadas no artigo anterior”. (grifo nosso) Registra-se que o legislador ao definir o conceito de agente público como figura genérica, objetivou alcançar de forma maximizada e extensiva um maior grupo de pessoas que venham de alguma forma causar algum tipo de lesão a Administração Pública e os interesses coletivos de uma forma em geral. Conforme disposto no artigo 1º da referida lei, além do alcance do conceito genérico de “agente público” a legislação é extensiva em punir aqueles particulares que de alguma forma induzem ou concorrem à prática de conduta ímproba ou dela se beneficiem sob qualquer forma direta ou indireta, causando dano ao erário ou lesão ao interesse público.Conforme dispositivos incluídos por meio da Emenda Constitucional nº 18/1998, in verbis: “Art. 1°. Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.” (grifo nosso) A legislação vigente sobre essa temática apresenta um rol exemplificativo de atos ímprobos e suas respectivas sanções, sendo os atos divididos em três grupos, sendo eles: atos de improbidade administrativa que importem em enriquecimento ilícito, que causem prejuízo ao erário e atos que atentem contra os princípios da Administração, todos previstos na redação dos artigos 9º a 11 e seus incisos da Lei 8.429/92, in verbis: “Dos Atos de Improbidade Administrativa que Importam Enriquecimento Ilícito Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público; II – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado; III – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado; IV – utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades; V – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem; VI – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; VIII – aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade; IX – perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza; X – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado; XI – incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei; XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei. Dos Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário  Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: I – facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; III – doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistências, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie; IV – permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1º desta lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado; V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado; VI – realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea; VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente; IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público; XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; XIII – permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades. XIV – celebrar contrato ou outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar as formalidades previstas na lei; (Incluído pela Lei nº 11.107, de 2005) XV – celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei. (Incluído pela Lei nº 11.107, de 2005) Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV – negar publicidade aos atos oficiais; V – frustrar a licitude de concurso público; VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.” (grifo nosso). A infringência das normas supracitadas praticadas pelos agentes públicos definidos na lei sujeitam as sanções dispostas na norma sancionadora, a saber: a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível, tal preceito previsto no art. 37, §4º da Constituição Federal de 1988. Tais sanções podem ser aplicadas simultaneamente, mediante os devidos procedimentos que apurem infrações cometidas por servidores, sendo sempre oportunizado a ampla defesa e o contraditório, sob pena de gerar nulidade dos atos. 5 – CONTROLE INTERNO 5.1 – CONCEITO Além da escassez de literatura disciplinando esta temática, atualmente há divergência e vários posicionamentos sobre o conceito objeto do estudo em tela.Na literatura sobre a temática, segundo MEIRELLES (1990), define Controle Interno como todo controle realizado pela entidade ou órgão público no âmbito de sua própria organização. Segundo o autor o Controle interno é o próprio Estado executando o controle dentro do próprio Poder. O controle interno figura como um escudo para Administração Pública, pelo qual é responsável em guia-la por meios administrativos e legais, pautando-se em defesa do interesse público ao qual foi criado.  Para o autor Medauar (1993), Controle interno na Administração Pública consiste na fiscalização que a mesma exerce sobre os atos e atividades de seus órgãos e das entidades descentralizadas que lhe estão vinculados. Segundo este autor o controle interno limita-se ao controle da legalidade, do mérito e da eficácia da Administração Pública. Registra-se que o controle interno não deve ser estático, exagerado ao formalismo, porém, deve-se pautar no dinamismo, sendo flexível e abrangente, adaptando-se a realidade fática da Administração Pública em prol do interesse coletivo. Ademais, pode-se dizer que o Controle interno é aquele exercido dentro de um mesmo Poder, seja por meio dos órgãos especializados ou pelo próprio controle exercido da Administração direta sobre a Administração indireta dentro de um mesmo Poder. Define-se também como uma interação de normas, rotinas e procedimentos, adotados nas próprias Unidades Administrativas, como por exemplo, na determinação das atribuições, nas execuções das rotinas, atento a segregação de funções, objetivando impedir erros, ineficiências e possíveis fraudes da gestão da coisa pública. Vale ressaltar que a função do controle é indispensável para fiscalizar a execução de programas, bem como apontar erros ou desvios, zelar pela utilização, manutenção e proteção dos públicos, agir proativamente e apontar falhas que comprometam a legalidade processual, assegurado sempre o cumprimento das normas administrativas e legais, identificando erros, fraudes e seus possíveis responsáveis. Centrado nesta concepção, o Controle Interno assume um papel como parte legítima na construção sólida na estrutura da Administração Pública, com a finalidade de auxiliar a gestão pública em relação ao plano e metas de governo. 5.2 – OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS DO CONTROLE INTERNO Os objetivos do controle interno estão fundamentados na Constituição federal, em seu artigo 74 e incisos, in verbis: “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional”. (grifo nosso) Também há previsão nos artigos 76 a 80 da Lei 4.320/64 que Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, o qual prevê: “Art. 76. O Poder Executivo exercerá os três tipos de controle a que se refere o artigo 75, sem prejuízo das atribuições do Tribunal de Contas ou órgão equivalente. Art. 77. A verificação da legalidade dos atos de execução orçamentária será prévia, concomitante e subsequente. Art. 78. Além da prestação ou tomada de contas anual, quando instituída em lei, ou por fim de gestão, poderá haver, a qualquer tempo, levantamento, prestação ou tomada de contas de todos os responsáveis por bens ou valores públicos. Art. 79. Ao órgão incumbido da elaboração da proposta orçamentária ou a outro indicado na legislação, caberá o controle estabelecido no inciso III do artigo 75.Parágrafo único. Esse controle far-se-á, quando for o caso, em termos de unidades de medida, prèviamente estabelecidos para cada atividade. Art. 80. Compete aos serviços de contabilidade ou órgãos equivalentes verificar a exata observância dos limites das cotas trimestrais atribuídas a cada unidade orçamentária, dentro do sistema que for instituído para esse fim.” Por outro lado, O controle externo é exercido pela União através do Congresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União; nos Estados pelas Assembleias Legislativas, com o auxílio dos respectivos Tribunais de Contas Estaduais; e nos Municípios, pelas Câmaras Municipais de Vereadores auxiliadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios, outro órgão equivalente, instituído pelo legislativo municipal.O controle externo está fundamentado na Constituição Federal nos artigos 32 e seus parágrafos, artigos 70 e 71, e seus incisos e parágrafos, artigos 163 a 168, e seus incisos e parágrafos, bem como na Lei 4.320/64 nos artigos 81 e 83, e redações inseridas na Lei de responsabilidade fiscal, in verbis: “Art. 81. O controle da execução orçamentária, pelo Poder Legislativo, terá por objetivo verificar a probidade da administração, a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos e o cumprimento da Lei de Orçamento. Art. 82. O Poder Executivo, anualmente, prestará contas ao Poder Legislativo, no prazo estabelecido nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios. § 1º As contas do Poder Executivo serão submetidas ao Poder Legislativo, com Parecer prévio do Tribunal de Contas ou órgão equivalente. § 2º Quando, no Município não houver Tribunal de Contas ou órgão equivalente, a Câmara de Vereadores poderá designar peritos contadores para verificarem as contas do prefeito e sobre elas emitirem parecer.” Também há orientações na lei do orçamento público, Lei 4.320/64, em seus artigos 75 a 82, estabelece que o controle da execução orçamentária e financeira será exercido pelo controle interno e externo que compreenderá a legalidade, fidelidade funcional e o cumprimento de metas. Portanto o Controle Interno inserido na Administração Pública Estadual tem como finalidade principal zelar pela segurança do patrimônio estatal, proporcionar eficiência na execução das atribuições que lhes são incumbidas por lei, bem como coibir as irregularidades de forma em geral que lesionem a Administração Pública visando sempre à defesa do interesse coletivo. 5.3 – SISTEMAS DE CONTROLE INTERNO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA O sistema de controle interno nada mais é que o prefeito funcionamento de forma integrada dos controles internos, salvaguardando o patrimônio e os interesses públicos coletivos. Compreende um conjunto de órgãos dotados de capacidade técnica, que interagem entre si, ligados a um órgão central de coordenação, orientados para o desempenho das atribuições de controle interno previsto na Constituição Federal e normatizadas conforme cada nível de Poder estabelecido. Partindo dessa concepção, o Sistema de Controle Interno deve ser inserido como parte integrante da estrutura da Administração Pública, com a finalidade de auxiliar a gestão pública em relação ao cumprimento das metas e todo planejamento de governo.  Vale ressaltar que um estruturado sistema de controle interno, auxilia de forma preventiva no combate a desvios, perdas e desperdícios, assegurando, ao gestor e administrados o cumprimento de normas administrativas e legais e viabilizando o apontamento de erros, fraudes e seus respectivos responsáveis. Salienta-se que o Sistema de Controle Interno opera de forma conjunta, mesmo que cada Poder possua em sua estrutura seu próprio Controle Interno. O sistema de controle interno também teve destaque na Lei Complementar n.101 de 2000, conhecida como a Lei de responsabilidade Fiscal (LRF), como objetivo básico, estabeleceu normas para as finanças públicas visando à responsabilidade da gestão fiscal. Nesta legislação mostra-se de forma imperiosa a manutenção e operacionalização de um sistema de controle interno dinâmico, visando assegurar à administração a credibilidade, a sua continuidade e os benefícios em prol do interesse público. O controle da sociedade sobre o bom uso do dinheiro público é fator fundamental da Lei de Responsabilidade Fiscal, e para tanto, estabelece meios legais a serem observados pelos agentes públicos.No artigo 99 da Lei 4.320/64, há previsão que o Sistema de Controle Interno tem como função: avaliar a apropriação e apuração dos custos e de avaliação de resultados, zelando em manter a integridade do patrimônio, sua organização, implantação e implementação, e também prioritariamente, definir a área de controle, bem como a quem e qual o período em que as informações devem ser prestadas, dentre outras atribuições legais. Portanto, nota-se que no ordenamento jurídico brasileiro existem vários normativos vigentes que assinalam para as mais diversas funções fundamentais do controle interno no âmbito da Administração publica. Com isso, observa-se a preocupação do legislador em apresentar com transparência os objetivos do sistema de controle interno, bem como indicar funções e mecanismos legais para coibir atos ímprobos ou de natureza diversa que lesionem os interesses coletivos. Dentre várias características do Sistema do Controle interno, destaca-se a importância de três para a Administração publica, sendo elas: a Segregação de funções, o Estímulo à eficiência operacional e a Supervisão. Por Segregação de funções entende-se que quem executa as atividades na administração pública não pode controlar suas próprias condutas, ou seja, por esta característica, o administrado que executa determinada atividade não pode concomitantemente controlar ou auto fiscalizar-se. Faz-se necessário outro “poder” ao qual exerça a fiscalização e controle daquela atividade, sob pena de fadar-se a vulnerabilidade e consequente anulação de seus atos. No estímulo a eficiência operacional, por esta característica depreende-se que deve corpo técnico constituído em determinado órgão, deverá possuir qualificação correspondente às atribuições exigidas do cargo ora revestido. Tal característica se revela ao fato da grande responsabilidade pertinente aquela atribuição, para tanto, deverá o profissional responsável pela análise processual ou procedimental de determinada lide possuir habilidades plenas e aptas ao qual possibilite à apuração, identificação de erros ou fraudes que comprometam a lisura administrativa, vindo, portanto, a causar prejuízos ao interesse público. Por fim tem-se a Supervisão, por esta característica de suma importância para o controle interno, entende-se que deve o agente público ser supervisionado em todos os seus atos. Tal supervisão deverá ser realizada por pessoas de reconhecido valor e probidade. A devida supervisão além de atender preceitos legais, produz efeito psicológico no sentido de causar no agente público que seus atos estão sendo monitorados, de tal forma que os “obriguem” a desempenharem de maneira mais eficientes suas atividades as quais foram designadas. Importante ressaltar que embora haja um estruturado Sistema de Controle Interno capaz de coibir erros e falhas salienta-se que não existe sistema controle com eficácia absoluta, ou seja, máquinas e pessoas estão sujeitas a erros e estão vulneráveis a falhas. Sobremaneira, deverá o agente público está atento às falhas e erros, principalmente quando estes são oportunizados de forma voluntária, com o fim de desvirtuar e atender a interesses alheios da Administração pública. Tal fato pode ser observado quando persistem crescentes erros com determinados “modus operantes”, ocasionando ilícitos repetitivos. A atenção efetiva aos procedimentos e o conhecimento profundo da legislação pertinente a temática em questão são armas poderosas no combate aos atos ilícitos.O controle interno é ferramenta de grande importância na Administração Pública. Ressalta-se que no âmbito da Administração Pública a função do controle é exercida em decorrência de imposições legais, destacando-se dois tipos de controles que são executados: o interno e o externo. Tanto na Constituição Federal, na Lei Complementar nº. 101 de 2000, bem com na Lei 4.320/64, o controle é apresentado basicamente em controle interno e controle externo. A Constituição Federal estabelece dois tipos de controle: interno e externo. O controle interno pode realizar-se ex-officio, independentemente de provocação de outrem. O controle externo seria exercido “genericamente” pelas Assembleias Legislativas nas esferas Federal, Estadual ou municipal, com o auxílio do Tribunal de Contas. Portanto, tem-se que o Controle Interno é exercido por órgãos da própria administração pública, ou seja, é integrante do aparelho do Poder Executivo. Em outro aspecto, verifica-se uma universalização do controle que abrange todos os atos da administração, sem exceção, quer se tratando das receitas ou das despesas, daí a fundamental importância do controle no âmbito da Administração pública. Nesta vertente, o Controle interno como ferramenta de grande importância inserido na Administração Pública, apresenta importantes atribuições, entre elas, a de avaliar o cumprimento das metas, comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração, bem como apoiar o controle externo. Portanto, constitui ferramenta indispensável ao Administrador público, uma vez que por mecanismos legais fornece ao gestor segurança jurídica frente às tomadas de decisões na administração da coisa pública. Na esfera do processo decisório no âmbito da Administração Pública, para que o controle interno atue de forma a proporcionar resultado eficaz e que atenda aos interesses públicos, faz-se necessário um corpo técnico treinado, qualificado, com especializações nas áreas afins, que seja eficiente, apto a oferecer soluções proativas, utilizando meios práticos e legais que auxiliem o gestor na tomada de decisão, sendo capaz de identificar nos processos e procedimentos administrativos, irregularidades que assim se apresentem, sanando-as, instaurando procedimentos apuratórios, quando necessário e corrigindo-os nos parâmetros da lei.  Vale ressaltar que o Controle interno ressalta sua importância para administração pública, quando por meios legais protege o patrimônio público, quando age com condutas pautadas de forma preventiva, identificando erros e falhas, agindo corretivamente, apontando e relatando as autoridades competentes as possíveis irregularidades identificadas, fazendo cumprir a sua finalidade para o qual foi criado. Por conseguinte, cabe aos agentes públicos integrantes do sistema de controle interno a devida atenção e controle de seus atos, sempre pautando seus atos na legalidade, razoabilidade, e utilizando-se do bom senso, com vista a proteção do interesse público e a perfeita funcionalidade dos procedimentos previstos em lei, visando adaptá-los as necessidades fáticas da Administração pública em prol dos interesses coletivos. Considerações finais O Controle Interno executa papel relevante na administração pública, essencialmente, pela orientação e vigilância em relação às ações dos administradores, objetivando assegurar adequado emprego dos recursos públicos, dentre outras atribuições constitucionais. Ressalta-se que, embora o controle interno não possua eficácia absoluta em relação ao controle, ainda constitui uma ferramenta indissolúvel no combate aos erros e desvios de condutas praticados por agentes públicos que atentem contra os interesses da Administração Pública, se estruturado no sistema de informação e avaliação capaz de coibir as irregularidades e atingir os principais objetivos salvaguardados na Constituição Federal, buscando a economicidade, eficiência e eficácia. Também foi observado que o Controle Interno alicerçado em um conjunto de normas e procedimentos, com relevância para o estímulo à operacional, a supervisão e para a segregação de funções, este último, constituindo-se como instrumento capaz de combater os desvios de conduta, sem, no entanto, torná-lo imbatível, porém vulnerável à má fé, à desonestidade e à dissimulação humana.Por conseguinte as análises desta investigação com base em sua fundamentação teórica e na persecução em atingir os objetivos propostos demonstraram que, o controle interno quando atua de forma independente e com métodos, técnicas e com suas atribuições constitucionais e legais, o Controle Interno no âmbito da Administração Pública constitui-se em uma ferramenta indispensável para o perfeito funcionamento da maquina estatal.
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Da impossibilidade do cancelamento de precatórios após o quinquídio decadencial de 5 anos à luz das normas gerais sobre invalidação de atos administrativos
Reflexão acerca da necessária sujeição das atividades administrativas praticadas pelos tribunais quando da inscrição, do processamento e do cancelamento de precatórios às normas que regulam a invalidação de atos administrativos, em especial a que disciplina a decadência do direito da Administração Pública de exercer autotutela.
Direito Administrativo
1) Introdução Nos termos do art. 100 da Constituição Federal “Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.” Segundo Uadi Lammêgo Bulos[1] chama-se precatório “o instrumento que consubstancia uma requisição judicial. Trata-se de uma carta expedida pelos juízes da execução de sentença ao presidente do tribunal, em virtude de a Fazenda Pública ter sido condenada ao pagamento de quantia certa”. Pois bem, a inscrição, o processamento e o cancelamento de precatórios, conforme reiteradamente decidido pela jurisprudência (vide Súmulas STF nº 733[2] e STJ nº 311[3]) consistem-se em atividades administrativas, e não jurisdicionais, promovidas pelo Poder Judiciário, de forma que, no exercício de uma função atípica[4] (no caso, função administrativa[5]), a inscrição, o processamento e o cancelamento de precatórios são, em última análise, atos administrativos[6] praticados pelos tribunais. Por óbvio, há de se concluir que, sendo a inscrição, o processamento e o cancelamento de precatórios atos administrativos, encontram-se sujeitos ao regime próprio de regulamentação dos mesmos previstos nas leis gerais de processo administrativo. Desta sujeição às normas contidas nas leis gerais de processo administrativo exsurge a necessidade de, quando da prática dos atos administrativos relacionados à inscrição, ao processamento e ao cancelamento de precatórios, observarem-se os princípios da Administração Pública (legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência) e as regras referentes à competência, forma, motivação, anulação, revogação e convalidação, etc. Dentre estas regras previstas nas leis gerais de processo administrativo que incidem sobre os atos administrativos praticados pelos tribunais quando do processamento de precatórios, destaca-se a que limita a autotutela da Administração Pública e que, especificamente no caso de precatórios, impedirá que o tribunal venha a cancelá-los a qualquer tempo. Conforme se procurará defender a seguir, o cancelamento de precatórios – que, como dito anteriormente é um ato administrativo – deverá obedecer aos ditames que limitam, por meio da imposição de lapso temporal para o exercício, o direito da Administração Pública anular seus próprios atos. 2) O enquadramento dos precatórios dentro da teoria da classificação dos atos administrativos Conjugando-se as várias formas de classificar os atos administrativos, pode-se enquadrar o precatório com um ato de império[7], individual[8], interno[9], vinculado[10], constitutivo[11], composto[12][13] (já que se origina do juiz da execução de sentença, quando da condenação da Fazenda Pública ao pagamento de quantia certa, para processamento junto ao presidente do tribunal, que atuará de forma meramente instrumental, como condição de eficácia[14] do ato primitivo) irrevogável[15]. De toda a sorte, em que pese quaisquer das classificações doutrinárias que sejam utilizadas para caracterizar o precatório, é certo que o mesmo é um ato administrativo praticado apenas e tão somente dentro da esfera competencial do tribunal que o expedirá. Pois, embora seja comum a oitiva e a participação da Fazenda Pública no processamento do precatório na condição de interessada (já que é ela quem suportará o ônus do cumprimento da ordem de pagamento), ela figura apenas como destinatária do ato e não como sujeito competente para praticá-lo ou, muito menos, desfazê-lo. 3) O contexto dos precatórios na extinção dos atos administrativos A forma de extinção esperada dos atos administrativos (ou seja, a extinção natural) é aquela que decorre tão somente do cumprimento dos seus efeitos[16], entretanto, há fatos ou atos jurídicos[17] que podem ensejar a ocorrência de uma forma de extinção anômala[18], como por exemplo, o desaparecimento do sujeito ou do objeto[19], a retirada (que abrange a revogação, a invalidação, a cassação, a caducidade e a contraposição[20]) e a renúncia[21]. No caso específico dos precatórios, entendemos cabíveis tão somente a extinção natural[22] (quando do pagamento da quantia certa determinada por ordem judicial) e a extinção por invalidação/anulação (que se dá no seu eventual cancelamento por parte do tribunal). A anulação (ou invalidação, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello e José dos Santos Carvalho Filho[23]) “é o desfazimento do ato administrativo por razões de ilegalidade[24]” e resulta da desconformidade do ato administrativo com regras de observância obrigatória. Um ato administrativo em desconformidade com as normas que o regulam é um ato viciado e, diante da gravidade deste vício, do grau de agressão do mesmo ao ordenamento jurídico, a sua presença tornará o auto nulo (impassível de convalidação[25]) ou anulável (passível de convalidação). Tal afirmativa, porém não encontra unanimidade na doutrina (que, dentre outras divergências, discute sobre a aplicabilidade da teoria da nulidade dos atos jurídicos, egressa do direito privado, à invalidação dos atos administrativos), conforme bem demonstra Maria Sylvia Zanella Di Pietro (que, ao final, posiciona-se sobre o tema): “Nesta matéria são grandes as divergências doutrinárias, que dizem respeito às consequências dos vícios dos atos administrativos. No Direito Civil, os vícios podem gerar nulidade absoluta ou nulidade relativa, conforme artigos 166 e 171 do Código Civil (artigos 145 e 147 do Código anterior). No Direito Administrativo, encontram-se diferentes formas de classificar os atos ilegais. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007: 655) considera que o ato administrativo pode ser nulo ou anulável. Será nulo ‘quanto à capacidade da pessoa se praticado o ato por pessoa jurídica sem atribuição, por órgão absolutamente incompetente ou por agente usurpador da função pública. Será nulo quanto ao objeto, se ilícito ou impossível por ofensa frontal à lei, ou nele se verifique o exercício de direito de modo abusivo. Será nulo, ainda, se deixar de respeitar forma externa prevista em lei ou preterir solenidade essencial para a sua validade. Ao contrário, será simplesmente anulável, quanto à capacidade da pessoa, se praticado por agente incompetente, dentro do mesmo órgão especializado, uma vez o ato caiba, na hierarquia, ao superior. Outrossim, será tão somente anulável o que padeça de vício de vontade decorrente de erro, dolo, coação moral ou simulação’. Seabra Fagundes (1984:42-51), refutando a possibilidade de aplicar-se ao direito administrativo a teoria das nulidades do Direito Civil, entende que os atos administrativos viciosos podem agrupar-se em três categorias: atos absolutamente inválidos ou atos nulos, atos relativamente inválidos ou anuláveis e atos irregulares. Atos nulos são os que violam regras fundamentais atinentes à manifestação da vontade, ao motivo, à finalidade ou à forma, havidas como de obediência indispensável pela sua natureza, pelo interesse público que as inspira ou por menção expressa da lei. Atos anuláveis são os que infringem regras atinentes aos cinco elementos do ato administrativo, mas, em face de razões concretamente consideradas, se tem como melhor atendido o interesse público pela sua parcial validez; para o autor, tratando-se de ato relativamente inválido, se estabelece uma hierarquia entre dois interesses públicos : o abstratamente considerado, em virtude do qual certas normas devem ser obedecidas, e o ocorrente na espécie, que se apresenta, eventualmente, por motivos de ordem prática, de justiça e de equidade em condições de superar aquele. Atos irregulares são os que apresentam defeitos irrelevantes, quase sempre de forma, não afetando ponderavelmente o interesse público, dada a natureza leve da infringência das normas legais; os seus efeitos perduram e continuam, posto que constatado o vício; é o caso em que a lei exige portaria e se expede outro tipo de ato. Celso Antonio Bandeira de Mello (2008:461), adotando a posição de Antonio Carlos Cintra do Amaral, entende que ‘o critério importantíssimo para distinguir os tipos de invalidade reside na possibilidade ou impossibilidade de convalidar-se o vício do ato’. Os atos nulos são os que não podem ser convalidados; entram nessa categoria: a) os atos que a lei assim declare; b) os atos em que é materialmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior; é o que ocorre com os vícios relativos ao objeto, à finalidade, ao motivo, à causa. São anuláveis: a) os que a lei assim declare; b) os que podem ser praticados sem vício; é o caso dos atos praticados por sujeito incompetente, com vício de vontade, com defeito de formalidade. O autor ainda acrescenta a categoria dos atos inexistentes, que ‘correspondem a condutas criminosas ofensivas a direitos fundamentais da pessoa humana, ligados à sua personalidade ou dignidade intrínseca e, como tais, resguardados por princípios gerais de direito que informam o ordenamento jurídico dos povos civilizados’ (2008: 459). Para Hely Lopes Meirelles (2003: 169- 170), não existem atos administrativos anuláveis, ‘pela impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre atos ilegais, ainda que assim o desejem as partes, porque a isto se opõe a exigência de legalidade administrativa. Daí a impossibilidade jurídica de convalidar-se o ato considerado anulável que não passa de um ato originariamente nulo’. Embora mencionando o ato inexistente (que tem apenas a aparência de manifestação regular da Administração, mas não chega a se aperfeiçoar como ato administrativo), nega, como a maioria dos autores, a importância dessa distinção, porque os atos inexistentes se equiparam aos atos nulos. Cretella Júnior (1977: 138) admite os atos nulos, anuláveis e inexistentes; os dois primeiros distinguem-se conforme possam ou não ser convalidados; o ato inexistente é o que não chega a entrar no mundo jurídico, por falta de um elemento essencial, como ocorre com o ato praticado por um demente ou com o que é praticado por uma particular, quando deveria emanar de um funcionário, o que é praticado por um usurpador de função etc. (…) Quando se compara o tema das nulidades no Direito Civil e no Direito Administrativo, verifica-se que em ambos os ramos do direito, os vícios podem gerar nulidades absolutas (atos nulos) ou nulidades relativas (atos anuláveis); porém, o que não pode ser transposto para o Direito Administrativo, sem atentar para as suas peculiaridades, são as hipóteses de nulidade e de anulabilidade previstas nos artigos 166 e 171 do Código Civil. No Direito Civil, são as seguintes as diferenças entre a nulidade absoluta e a relativa, no que diz respeito a suas consequências: 1. na nulidade absoluta, o vício não pode ser sanado; na nulidade relativa, pode; 2. a nulidade absoluta pode ser decretada pelo juiz, de ofício ou mediante provocação do interessado ou do Ministério Público (art. 168 do novo Código Civil) ; a nulidade relativa só pode ser decretada se provocada pela parte interessada. No Direito Administrativo, essa segunda distinção não existe, porque, dispondo a Administração do poder de autotutela, não pode ficar dependendo de provocação do interessado para decretar a nulidade, seja absoluta seja relativa. Isto porque não pode o interesse individual do administrado prevalecer sobre o interesse público na preservação da legalidade administrativa. Mas a primeira distinção existe, pois também em relação ao ato administrativo, alguns vícios podem e outros não podem ser sanados. Quando o vício seja sanável ou convalidável, caracteriza-se hipótese de nulidade relativa; caso contrário, a nulidade é absoluta. Cumpre, pois, examinar quando é possível o saneamento ou convalidação.” (Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo: Atlas, 2014, págs. 255/257) Entretanto, em que pese a ocorrência de vícios que maculem a higidez de um ato administrativo (tornando-o anulável ou nulo), a possibilidade (ou o dever[26]) de a própria Administração Pública promover sua retirada (ou seja, vir a extingui-lo por meio da sua invalidação) exercendo autotutela[27][28] não se dá de forma absoluta[29], estando sujeita, conforme se detalhará adiante, ao enquadramento num determinado lapso temporal[30]. 4) A disciplina da invalidação dos atos administrativos nas leis gerais de processo administrativo e sua aplicação ao regime de precatórios Na esfera federal, as normas gerais sobre processo administrativo, previstas na Lei nº 9.784/99, dispõem o seguinte acerca da revogação e anulação de atos administrativos por parte da própria Administração: “Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.” Em sede estadual e municipal, diversas leis seguiram a direção apontada pela Lei Federal nº 9.784/99 e dispuseram similarmente sobre o tema. Abaixo, veja-se, v.g., as leis dos estados de Pernambuco, Bahia, Amazonas, Goiás e Rio de Janeiro e as leis municipais de Olinda(PE) e Natal (RN): “Lei nº 11.781, de 06 de junho de 2000 – Regula o Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual.Art. 53 – A Administração deve anular seus próprios atos, quando enviado de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.Art. 54 – O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários e danosos para o Estado, decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má fé, e observada a legislação civil brasileira quanto à prescrição de dívida para o erário.§ 1° – No caso do efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.§ 2° – Considera-se exercício do direito de anular, qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.”“Lei nº 12.209 de 20 de Abril de 2011 – Dispõe sobre o processo administrativo, no âmbito da Administração direta e das entidades da Administração indireta, regidas pelo regime de direito público, do Estado da Bahia, e dá outras providências.Art. 39 – A Administração tem o dever de invalidar seus próprios atos, quando eivados de vícios de legalidade, e pode revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.§ 1º – Os atos administrativos ilegais de que decorram efeitos favoráveis ao administrado deverão ser invalidados no prazo de 05 (cinco) anos, contados da data em que foram praticados.§ 2º – Na hipótese de comprovada má-fé do administrado, a qualquer tempo, a Administração invalidará o ato ilegal e adotará medidas para o ressarcimento ao erário, se for o caso.“Lei nº 2.794, de 6 de Maio de 2003 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual.Art. 54. A Administração anulará seus atos inválidos, de ofício ou por provocação, salvo quando:I – forem passíveis de convalidação;II – ultrapassado o prazo de cinco (5) anos contados de sua produção, quando se tratar de ato de que decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários, exceto comprovada má-fé.”“Lei 13.800, de 18 de Janeiro de 2001 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública do Estado de Goiás.Art. 53 – A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.Art. 54 – O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.Parágrafo único – No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.”“Lei nº 5.427, de 01 de Abril de 2009 – Estabelece normas sobre atos e processos administrativos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências.Art. 51. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode, respeitados os direitos adquiridos, revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade.Parágrafo único. Ao beneficiário do ato deverá ser assegurada a oportunidade para se manifestar previamente à anulação ou revogação do ato.(…)Art. 53. A Administração tem o prazo de cinco anos, a contar da data da publicação da decisão final proferida no processo administrativo, para anular os atos administrativos dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados, ressalvado o caso de comprovada má-fé.§1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.§2º Sem prejuízo da ponderação de outros fatores, considera-se de má-fé o indivíduo que, analisadas as circunstâncias do caso, tinha ou devia ter consciência da ilegalidade do ato praticado.§3º Os Poderes do Estado e os demais órgãos dotados de autonomia constitucional poderão, no exercício de função administrativa, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração de nulidade de ato administrativo ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de determinado momento que venha a ser fixado.”“Lei nº 5.578/2007 – Dispõe sobre o processo administrativo, no âmbito do Município de Olinda, e dá outras providênciasArt. 14. Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, podendo revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridosParágrafo único. É de 05 (cinco) anos, o prazo para a Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.”“Lei nº 5.872, de 04 de julho de 2008 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública MunicipalArt. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.” Como se percebe, as leis gerais de processo administrativo fixaram um prazo (decadencial[31][32]) de 5 anos[33] para que a Administração Pública anule seus próprios atos quando deles decorram benefícios para o administrado imbuído de boa-fé (que, diga-se é presumida[34][35], devendo apenas a má-fé ser devidamente comprovada). Percebe-se claramente que os dispositivos contidos nas leis gerais processo administrativo restam informados pela segurança jurídica, pela pacificação e estabilidade das relações jurídicas, pela teoria do fato consumado e pela vedação à eternização dos conflitos. Ou seja, as normas sobre a invalidação de atos administrativos são informadas por preceitos norteadores que limitam o poder de autotutela da Administração Pública. Neste sentido, vejam-se as lições da doutrina: “A LPA federal estabeleceu o prazo quinquenal para que a Administração anele atos que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. O princípio da segurança jurídica, enfatiza Gilmar Mendes, impõe limites à possibilidade de a Administração anular os atos administrativos não apenas em face de direitos subjetivos (efeitos favoráveis) regularmente gerados, mas também no interesse de proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados.” (Nohara, Irene Patrícia e Marrara, Thiago, Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada, São Paulo: Atlas, 2009, pág. 347) “(…) o exercício da faculdade revisional de atos administrativos sofreu limitações e restrições em favor da estabilidade das relações jurídicas, em benefício dos administrados de boa-fé, afetados pela regra da atividade revisional antes ilimitada em favor do poder público. Nesse caso, entende a lei que a permanência do ato, mesmo contaminado de irregularidade original, quando não atacado pela Administração Pública, o vício que o macula, no quinquídio, atende mais ao interesse público que seu desfazimento. (…) a Administração Pública não pode mais anular atoa administrativos que geram efeitos em favor de interesses individuais, em razão da decadência quinquenal instituída em lei, isto é, da causa extintiva de direito pelo seu exercício no prazo da lei. Se o ato produziu efeito favorável ao administrado, o decurso do prazo cria situação jurídica imutável a seu favor. O prazo decadencial, por sua natureza jurídica de ordem pública, é peremptório, contínuo e não admite suspensão ou interrupção e se refere à causa extintiva do direito pelo não exercício no período estabelecido pela lei.” (Guimarães, Francisco Xavier da Silva, Direito processual administrativo: comentários à Lei nº 9.784/99 com as alterações da Lei nº 11.417/06, Belo Horizonte: Fórum, 2008, pág. 156) “Pouco a pouco, contudo, foi ganhando espaço a tese de que a Administração sujeita-se a prazo para exercer a pretensão invalidatória, isto é, de que existe limite temporal para a Administração invalidar atos viciados. Para os adeptos desse ponto de vista tal limite constitui, como já dito, imposição do princípio da segurança jurídica, sendo salutar, a propósito, a lição de Clarissa Sampaio Silva: ‘E, atuando a Administração Pública sob a égide de um ordenamento jurídico que não tolera a eternização dos conflitos, absurdo seria supor que ela não esteja sujeita a prazos, quer para tutelar judicialmente seus direitos, quer para desfazer seus próprios atos’. (…) o legislador federal, acolhendo inegável tendência doutrinária, reconheceu a existência de limitação temporal para o exercício da invalidação administrativa. Com isso, visou essencialmente a proteger o administrado, promovendo a estabilização dos atos viciados que tenham ampliado sua esfera jurídica uma vez ultrapassados cinco anos, contados da sua produção. Caso o ‘direito’ de anular não seja exercitado no referido prazo, restará afastada a possibilidade de a Administração invalidar o ato viciado. (…) Luís Roberto Barroso sublinha, com inegável acerto, que: ‘Em qualquer dos campos do Direito, a prescrição tem como fundamento lógico o princípio geral de segurança das relações jurídicas e, como tal, é a regra, sendo a imprescritibilidade situação excepcional. A própria Constituição Federal de 1988 tratou o tema para prever as únicas hipóteses em que se admite a imprescritibilidade, garantindo, em sua sistemática, o princípio geral da perda pretensão pelo decurso do tempo’. E mais: ‘Uma primeira conclusão se pode extrair desde logo: se o princípio é a prescritibilidade, é a imprescritibilidade que depende de norma expressa, e não o inverso’.” (Simões, Mônica Martins Toscano, O processo administrativo e a invalidação de atos viciados, São Paulo: Malheiros, 2004, págs. 164/165 e 170/171) “O dispositivo é imbuído do espírito de que, embora seja dever da Administração Pública rever seus próprios atos quando eivados de ilegalidade (autotutela) – conforme classicamente se reconhece -, não raras vezes esta revisão, sobre não ser realizada a tempo e modo – seja porque se desconhece a ilegalidade cometida, seja porque se julga legítima a interpretação do direito perpetrada na ocasião -, permite que situações fáticas irreversíveis ou reversíveis, porém a custos juridicamente intoleráveis, se constituam, tornando-se, pois, merecedoras da salvaguarda do ordenamento jurídico. (…) Estando, contudo, o processo findo, o dever (e não mero direito – como quis a Lei 9.784 em seu art. 54 – , muito menos simples faculdade) de anular passa a ser metrificado à luz do princípio da segurança jurídica, com as conotações mais de uma vez antecedentemente expostas a seu propósito. Aqui, o interesse público e a paz social determinam que, transcorrido certo tempo, ditado em obediência ao princípio da razoabilidade, se tenha por imutável o ato. E a lei federal do processo administrativo fixou esse prazo em cinco anos, contados da data da prática do ato (ou, no caso do ato que produza efeitos patrimoniais de trato sucessivo, a partir da percepção do primeiro pagamento). É dizer, o fluxo de tempo, com as ressalvas a serem lançadas mais adiante, tem um efeito saneador, só por si, sem a necessidade de declaração expressa, do ato originariamente ilegal.” (Ferraz, Sérgio e Dallari, Adilson Abreu, Processo administrativo, 1ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, págs. 128/129 e 194) “A propósito do fato consumado (como tive ocasião de sustentar in O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, São Paulo, Malheiros Editores, 2ª ed., 1999, p. 32-33), há resquícios inafastáveis para o acolhimento jurídico do fenômeno. Ei-los, em linhas bem sintéticas: 1º) o citado e incontornável respeito ao princípio da boa-fé do administrado (descendente do princípio jurídico da moralidade) que confia no ato estatal, sem, de modo algum, ter dado sinais de conspirar contra o interesse geral; 2º) a saudável exigência pretoriana da inexistência de danos ou prejuízos a terceiros; 3º) a passagem de largo lapso temporal, quando se tratar de atos constitutivos de direitos; 4º) a não-configuração de qualquer tipo de fraude, pois esta tornaria irremediavelmente írrito o ato e afastaria os propósitos subjacentes à incidência mesma do princípio da boa-fé e 5º) a não-violação de outros requisitos substanciais quanto à licitude. Tais requisitos, gize-se, devem ser aplicados em consórcio indissolúvel, sob pena de se debilitar a juridicidade dos princípios constitucionais, quando do excepcional reconhecimento do fato consumado.” (Freitas, Juarez, As leis de processo administrativo, coord. Carlos Ari Sundfeld e Guilhermo Andrés Muñoz, 1ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 99) Esclareça-se ainda que, nos termos das leis gerais sobre processo administrativo, a decadência do “direito” da Administração Pública invalidar seus próprios atos refere-se tanto aos vícios sanáveis por convalidação (atos anuláveis) como os insanáveis (atos nulos). Neste sentido, veja-se a lição de Luciano Ferraz: “(…) ao se referir à anulação dos atos administrativos, a regra não faz distinção relativa à natureza dos vícios que podem atingi-los: tanto os atos que a doutrina costuma classificar como anuláveis, quanto os classificáveis como atos nulos, são tocados pela decadência do art. 54 da Lei nº 9.784/99.” (Ferraz, Luciano, Processo administrativo: temas polêmicos da Lei nº 9.784/99, org. Irene Patrícia Nohara e Marco Antonio Praxedes de Moraes Filho, São Paulo: Atlas, 2011, págs. 132/133) Tal posição doutrinária, diga-se, é a adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que delimita o alcance da decadência prevista no artigo 54 da Lei Geral do Processo Administrativo Federal tanto para abranger os atos administrativos nulos como os atos administrativos anuláveis: “O prazo decadencial para que a Administração Pública promova a autotutela, previsto no art. 54 da Lei n.º 9.784/99, é aplicável tanto aos atos nulos quanto aos anuláveis.” (STJ – AgRg no REsp: 1147446 RS 2009/0127512-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 20/09/2012, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/09/2012) “A decadência prevista na lei 9.784/99 opera-se sobre o direito ao exercício de qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato, seja ele nulo ou anulável.” (STJ – AgRg no MS: 13407 DF 2008/0055867-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 28/05/2008, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 02/02/2009) “O prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei 9.784/99 impõe-se como óbice à autotutela administrativa tanto nos atos nulos quanto nos anuláveis.” (STJ – AgRg no Ag: 1127574 RS 2008/0268367-1, Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Data de Julgamento: 18/08/2009, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/09/2009) “O art. 54 da Lei 9.784/99, aplicável analogicamente ao presente caso, funda-se na importância da segurança jurídica no domínio do Direito Público, estipulando o prazo decadencial de 5 anos para a revisão dos atos administrativos viciosos (sejam eles nulos ou anuláveis) e permitindo, a contrario sensu, a manutenção da eficácia dos mesmos, após o transcurso do interregno mínimo quinquenal, mediante a convalidação ex ope temporis, que tem aplicação excepcional a situações típicas e extremas, assim consideradas aquelas em que avulta grave lesão a direito subjetivo, sendo o seu titular isento de responsabilidade pelo ato eivado de vício.” (STJ – RMS: 24430 AC 2007/0142581-3, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 03/03/2009, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2009) Destarte, nos termos da teoria geral das invalidades dos atos administrativos disciplinada pelas leis gerais de processo administrativo, independentemente do tipo de eiva que macula o ato, que o torne nulo ou anulável, passados cinco anos sem que o mesmo tenha sido convalidado ou invalidado pela Administração Pública, repousará sobre ele o manto da imutabilidade em virtude da decadência do “exercício do direito de anular”. Trazendo-se os precatórios para esta realidade dos atos administrativos, fica claro que, após o tribunal promover a inscrição da requisição judicial de pagamento contida na carta expedida pelos juízes da execução de sentença e assim constituir o precatório, terá o Estado-Juiz no exercício desta função administrativa (atípica) o prazo de cinco anos para sanar eventuais vícios que tornem o ato administrativo nulo ou anulável, sob pena de não mais poder invalidá-lo ou convalidá-lo. Ultrapassado o prazo de cinco anos, opera-se a decadência do direito do tribunal de sanar os vícios do precatório por ele inscrito, passando tal ato administrativo, por força da segurança jurídica e da pacificação e estabilidade das relações jurídicas a ser considerado como fato consumado, enaltecendo-se assim a não eternização dos conflitos. Tornar-se-á, portanto o precatório impassível de invalidação ou convalidação por meio do exercício da autotutela pelo tribunal após o decurso do prazo de cinco anos iniciados quando da sua inscrição. Diga-se ainda que, nos termos das normas gerais de processo administrativo, para que os tribunais não percam seu exercício do “direito” de anular os precatórios por eles emitidos, deverão adotar, antes do esgotamento do prazo decadencial que se inicia quando da inscrição do precatório, qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação do aludido ato administrativo: “Para que a Administração Pública evite a decadência do direito de rever seus próprios atos é necessário que as providências revisionais, para as quais se há de abrir prazo ao contraditório e à ampla defesa em processo regularmente instaurado, sejam adotadas antes do término dos cinco anos contados da vigência do ato impugnado. Trata-se, pois, de decadência de direito da Administração e não prescrição das parcelas individualizadas pagas mensalmente em caráter de continuidade, em favor do interessado.” (Guimarães, Francisco Xavier da Silva, Direito processual administrativo: comentários à Lei nº 9.784/99 com as alterações da Lei nº 11.417/06, Belo Horizonte: Fórum, 2008, pág. 157) E lembre-se aqui que, sendo a inscrição do precatório um ato administrativo composto praticado apenas e tão somente dentro da seara do Poder Judiciário (primeiramente pelo juiz da execução quando da expedição da carta e depois pelo presidente do tribunal para promover o devido processamento), de nada adiantarão intervenções da Fazenda Pública visando anular o precatório, já que, deduz-se dos termos da Lei do Processo Administrativo que o “exercício do direito de anular” tem por óbvio titular exclusivo aquele que praticou o ato administrativo. Para elidir a decadência do “exercício do direito de anular” deve partir do tribunal, e não da Fazenda Pública, a iniciativa para invalidar o precatório sob processamento e, caso tal anulação do ato administrativo não se dê dentro do quinquídio decadencial iniciado após a inscrição do precatório, o mesmo não poderá ser mais cancelado. Desta forma, em razão da inércia do tribunal não só em detectar e apurar a ocorrência de vício no precatório por ele inscrito como também de convalidar ou anular o ato administrativo em questão, a requisição judicial que dirige a ordem de pagamento de quantia certa para a Fazenda Pública tornar-se-á impassível de invalidação devendo surtir efeitos independentemente dos eventuais vícios que a maculem. Ou seja, mesmo sendo o seu erário a ser o afetado pela ordem de pagamento contida no precatório, a Fazenda Pública não poderá invalidar tal ato administrativo, já que o mesmo é praticado pelo Poder Judiciário, cabendo tão somente a este último o cancelamento de precatórios em decorrência de sua invalidação. 5) Considerações finais Por tudo o que foi exposto, crê-se possível concluir resumidamente que, uma vez inscrito o precatório, o tribunal, e apenas e tão somente tal órgão público, tem cinco anos para cancelá-lo ou convalidá-lo em decorrência de vícios presentes no ato administrativo. Passados cinco anos da inscrição sem que o tribunal tenha cancelado o precatório, o mesmo não poderá mais anulado, devendo a ordem de pagamento nele contida ser devidamente cumprida pela Fazenda Pública independentemente dos vícios que outrora acometeram o ato administrativo em questão. Mesmo que a Fazenda Pública aduza a ocorrência de vícios no precatório dentro do prazo decadencial de cinco anos (iniciado a partir da inscrição), se o tribunal só vier cancelá-lo a destempo só restará ao destinatário da ordem de pagamento cumprir a ordem judicial e, posteriormente, buscar o devido ressarcimento contra quem deu azo a eventuais prejuízos que entenda ter sofrido (responsabilidade esta que, por óbvio, não é imputável ao beneficiário do precatório). Agora, para finalizar, bom é que se diga que, caso seja verificada má-fé[36] por parte do beneficiário do precatório, não haverá de falar em fluência do prazo decadencial de cinco anos. Por outro lado, não havendo comprovação de má-fé do beneficiário (a boa-fé, como visto, é presumida) ou tendo ela ficado circunscrita à própria Administração Pública[37], o único empecilho para a fluição do quinquídio decadencial que permite a invalidação/cancelamento do precatório por parte do tribunal é a adoção de alguma medida que importe na impugnação do ato administrativo, sob pena do comprometimento do “exercício do direito de anular” e consequente estabilização da relação jurídica e imutabilidade do crédito constituído no precatório, restando tão somente a possibilidade do seu cumprimento.
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Invalidação de ato administrativo previdenciário
A invalidação de um ato administrativo defeituoso, além de sanar o inconveniente originado pelo ato, concretiza o interesse público. No direito previdenciário, é possível a revisão do ato de concessão de benefício previdenciário, desde que haja vício que o torne contrário à legislação vigente.
Direito Administrativo
Introdução O ato jurídico é considerado válido quando há concordância com a norma jurídica aplicável. Nas palavras de Justen Filho (2005, p. 179): “a validade reside na compatibilidade do ato jurídico com o modelo normativo”. A validade pressupõe que certo ato administrativo, inclusive de direito previdenciário, está de acordo com o ordenamento jurídico. Nesse viés, através da metodologia de pesquisa bibliográfica, considerando a legislação previdenciária e administrativa atual, súmula em vigor e acórdão que versa sobre o tema, o presente objetivo é analisar, em linhas gerais, a invalidação de ato administrativo previdenciário. 1 Aspectos gerais da invalidação dos atos administrativos A invalidação de determinado ato administrativo ultrapassa o simples descumprimento da norma jurídica. Abrange também o excesso ou desvio de poder e o não atendimento aos princípios gerais do direito (MEIRELLES, 1999). E, ainda, quando há a desobediência aos princípios norteadores da administração pública, elencados no art. 37 da Constituição Federal. Dessa forma, para atingir o status quo ante, a administração pública invalida o ato ilegal através da aplicação do princípio da autotutela. Autotutela é entendida como a possibilidade de revogação, dentro dos limites da lei, de seus próprios atos, por meio de manifestação unilateral de vontade, bem como decretação de sua nulidade, quando viciados (CUNHA, 2003). Todavia, a invalidação dos atos administrativos perpassa a esfera da administração pública, sendo de competência também do judiciário. Alguns autores usam o termo anulação para este último caso. Entretanto, neste trabalho, a invalidação e a anulação serão tratados, latu sensu, como sinônimos, visto que o enfoque será dado mais à questão previdenciária do que à especificidades de direito administrativo. Como dito anteriormente, a invalidação dos atos administrativos ocorre por motivos que vão além do descumprimento da lei. Um destes motivos é o desvio de poder. Este acontece quando o agente realiza função com finalidade diversa da competência de que é titular. Justen Filho (2005) explica: “O instituto do desvio de poder se alicerça sobre a existência de destinação determinada para as competências administrativas. Essas competências tem destinação que pode ser mais ampla, mas sempre haverá limite. Haverá vício se uma competência for desnaturada, sendo utilizada para fins diversos daqueles que a norma estabeleceu” (p. 265) Logo, no desvio de poder também é cabível a invalidação desse ato administrativo, pois embora não se trata diretamente de uma afronta à legislação, configura um uso de competência que não é do agente. Já no abuso de poder, diversamente do desvio de poder, há uma atuação que excede a competência do agente. Trata-se, também, de agravante do delito praticado no exercício de cargo público. O abuso de poder vai de encontro ao princípio da proporcionalidade, onde o agente não consegue satisfazer o interesse protegido porque utilizou uma providência não cabível à situação. Ocorre, ainda, quando este praticar ato administrativo deveras oneroso para satisfação deste interesse. Dentre os casos de abuso de poder, têm-se o abuso de autoridade, disciplinado na Lei 4.898/65, ainda em vigor no ordenamento jurídico pátrio. 2 Efeitos da invalidação dos atos administrativos Embora haja discordância entre os doutrinadores, o entendimento mais difundido refere-se ao fato dos efeitos da invalidação dos atos administrativos retroagirem as origens, invalidando das consequências pretéritas até as que estão por vir. Dessa forma, se operam efeitos ex tunc. O ato nulo não gera direitos ou obrigações para as partes. Segundo a teoria monista, não há convalidação, ou seja, não é possível sanar a invalidação dos atos administrativos, embora a teoria dualista assevere que existam alguns atos que são sanáveis, no caso de vícios menores. Neste último caso, por exemplo, pequenos erros formais não anulam certos atos. A partir do princípio de pas de nullité sans grief (não há nulidade sem dano) o atual direito administrativo entende que, se não houver a consumação de lesão a um interesse juridicamente protegido, não restará invalidade jurídica (JUSTEN FILHO, 2005). 3 Ato administrativo de concessão de benefício previdenciário Quanto a concessão de benefício previdenciário, o ato administrativo que o origina constitui um ato vinculado, onde para sua realização a lei estabelece vários requisitos. Assim, não há liberdade para o administrador, servidor do INSS, divergir das imposições legais. No caso de omissão no cumprimento de algum requisito, a eficácia do ato administrativo da concessão do benefício previdenciário fica comprometida. Este ato fica passível de anulação ou de correção, para o beneficiário não ter seu direito prejudicado. A Lei 8.213/91, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras providências, assim prevê: “Art.103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo. Parágrafo único. Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil. Art.103-A. O direito da Previdência Social de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. §1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo decadencial contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. §2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”. Como se depreende apenas da leitura da legislação, o direito da Previdência Social de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. Decadência é a extinção do direito pela inatividade de seu titular, quando sua eficácia foi no princípio subordinada à condição de seu exercício dentro de um prazo prefixado, e este se extinguiu sem que esse exercício tivesse sido analisado. Entretanto, é possível a revisão do ato, desde que haja vício que o converta contrário à legislação pertinente, como no caso do tempo de serviço, que deverá ser comprovado mediante início de prova material e complementado por prova testemunhal idônea, não sendo esta admitida exclusivamente (Súmula nº 149 do STJ). Dessa maneira, a decisão abaixo do TRF 4: ‘PREVIDENCIÁRIO.DECADÊNCIA INOCORRENTE. RESTABELECIMENTO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. ATIVIDADE URBANA. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. CORROBORADA POR PROVA TESTEMUNHAL. 1. A Administração Previdenciária pode e deve rever seus próprios atos, desde que eivados de vícios que os tornem ilegais, assegurado o contraditório e a ampla defesa. Súmula nº 473/STF. 2. Em respeito à segurança e estabilidade jurídica, aliada à boa-fé do beneficiário, devem ser convalidados os atos consolidados pelo longo decurso de tempo, representado pelo transcurso de cinco anos previsto no art. 207 do Decreto nº 89.312/84 e art. 54, Lei nº 9.784/99 e, mais recentemente, se ultrapassado o marco de dez anos, previsto no art. 103-A da Lei nº 8.213/91, com a redação imposta pela Lei nº 10.839/04, DOU 06.02.04, originária da MP 138, de 19.11.03, sendo que esta não pode retroagir para alcançar benefícios concedidos anteriormente. Precedentes. 3. Não decorrido o lapso temporal, é possível a revisão do ato, desde que eivado de vício que o torne contrário à legislação regente. 4. A teor do art. 55, § 3º, da Lei de Benefícios, o tempo de serviço deverá ser comprovado mediante início de prova material e complementado por prova testemunhal idônea, não sendo esta admitida exclusivamente (Súmula nº 149 do STJ). 5. Reconhecido o direito do autor à aposentadoria por tempo de serviço, considerado o tempo até a DER, na forma como previsto nos arts. 53 c/c 29, da Lei nº 8.213/91. 6. Mantida a antecipação dos efeitos da tutela, pois presentes os requisitos previstos no art. 273 do CPC." (TRF 4, REOAC 1999.71.00.025424-1, 5ª T., Rel. Artur César de Souza, DE 07.01.09) O entendimento de Folmann, em artigo no site Jurisite: “É notável a diferença na relação previdenciária, pois enquanto o cidadão não provoca a autarquia, não dá vazão ao exercício de seu direito que se considera em constituição. A partir do momento em que o cidadão exerce o direito, e este lhe é concedido de forma equivocada, surge a pretensão para rever o ato e condenar a autarquia a revisar e conceder o benefício efetivamente devido, logo não há de se falar em direito em constituição, porque ele já existe e foi provocado, mas em direito de condenação”. (Acesso em 30 de abril de 2015) Conclusão Com a invalidação de um ato administrativo defeituoso, tanto a legislação como os princípios do direito pátrio não saem maculados. A partir do restabelecimento do status quo ante, além de sanar-se o inconveniente em particular, originado pelo ato administrativo defeituoso, mantêm-se a credibilidade da administração pública para com os seus administrados. E ainda, concretiza-se com maior eficiência o objetivo de todo o aparato estatal, que é a busca do interesse público. No direito previdenciário é possível a revisão do ato de concessão de benefício previdenciário, desde que haja vício que o torne contrário à legislação pertinente, como pode ocorrer no caso da comprovação do tempo de serviço.
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A demissão de empregados públicos e o julgamento do recurso extraordinário (RE) 589.998/PI
O presente artigo tem o escopo de analisar a divergência gerada na jurisprudência trabalhista brasileira, no que diz respeito à motivação do ato administrativo que enseja a demissão de empregados públicos, concursados e em comissão, após o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 589.998/PI pelo Supremo Tribunal Federal.
Direito Administrativo
1.Considerações iniciais As empresas estatais, empresas públicas e sociedades de economia mista, sempre foram objeto de calorosas discussões, no que concerne o regime jurídico aplicado a elas nas mais diversas questões, como aquelas referentes a seu patrimônio, atos e quadro de pessoal. Estas celeumas existem pela própria natureza de tais entes, que possuem personalidade jurídica de direito privado, mas integram a Administração Pública, podendo, desta forma, apresentar as melhores (e piores) características dos dois mundos. Sobre a natureza desta espécie de entidade, é de bom alvitre citar os dizeres de Di Pietro[1]: “(…) ela foi idealizada, dentre outras razões, principalmente por fornecer ao Poder Público instrumento adequado para o desempenho de atividades de natureza comercial e industrial; foi precisamente a forma de funcionamento e organização das empresas privadas que atraiu o Poder Público. Daí a sua personalidade jurídica de direito privado. Embora elas tenham personalidade dessa natureza, o regime jurídico é híbrido, porque o direito privado é parcialmente derrogado pelo direito público. Mas, falando-se em personalidade de direito privado, tem-se a vantagem de destacar o fato de que ficam espancadas quaisquer dúvidas quanto ao direito a elas aplicável: será sempre o direito privado, a não ser que se esteja na presença de norma expressa de direito público.” Sendo assim, os gestores públicos destes entes devem respeitar regras de direito público e de direito privado, cuja linha divisora, por diversas vezes, pode ser bem tênue, como ocorre, atualmente, no caso de demissão de empregados dessas empresas. Anteriormente ao julgamento do RE 589.998/PI pelo Supremo Tribunal Federal, os empregados das empresas estatais, mesmo aqueles admitidos por concurso público, poderiam ser demitidos independentemente de ato motivado, conforme preleciona a Orientação Jurisprudencial – OJ nº 247, da SDI – 1. Após o julgamento, consoante decisão proferida pelos Ministros da Suprema Corte no processo supracitado, ao qual foi atribuída repercussão geral, tal entendimento deveria ser alterado, no sentido de que os empregados públicos admitidos em empresas estatais prestadoras de serviço público por concurso somente poderiam ser demitidos por ato administrativo devidamente motivado. Contudo, os Tribunais do Trabalho, com base nos princípios do Direito do Trabalho, vêm expandindo tal entendimento, a ponto de não mais se restringir a empresas estatais que desempenham serviço público e de abranger, inclusive, empregados públicos que não foram admitidos por concurso, os denominados empregados de confiança ou em comissão. Como não houve a alteração da OJ supracitada ou a edição de uma nova, o problema persiste, gerando insegurança jurídica e deturpando a intelecção do julgado do STF, o que pode se tornar fonte de apadrinhamentos, favorecimentos ou privilégios de cunho político. 2.Da modificação do procedimento de demissão de empregados públicos As empresas públicas e sociedades de economia mista, denominadas empresas estatais ou governamentais, são sujeitas ao “regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”, nos termos do artigo 173, §1º, II, da Carta Magna. Sendo assim, estes entes, que compõem a Administração Pública indireta, devem seguir os ditames estabelecidos na Consolidação das Leis do Trabalho, no que tange aos direitos e obrigações de seu quadro de pessoal, cujos componentes são chamados de empregados públicos. A abrangência da aplicação de tal norma se dá, inclusive, quanto aos critérios para a rescisão do contrato de trabalho firmado entre a empresa contratante e o empregado contratado. Como mencionado acima, os empregados dessas empresas se submetem ao regime celetista. No entanto, sua contratação deve ser, via de regra, precedida de aprovação em concurso público, ressalvados os cargos em comissão, conforme preleciona o artigo 37, II, da Constituição Federal. Nas empresas públicas e sociedades de economia mista, os ocupantes de cargos de direção, chefia e assessoramento, denominados empregados de confiança ou em comissão, deverão ser igualmente admitidos em consonância com as regras trabalhistas vigentes, conforme o seguinte, in verbis: “Assim, no caso das empresas públicas o termo cargo (inclusive no que se refere aos cargos de confiança) não é utilizado com a conotação dada no caso do regime estatutário, mas refere-se a um posto, ou seja, um lugar integrado no chamado “plano de cargos e salários”, que toda empresa tem. Logo, no âmbito do regime jurídico celetista, não é vedado, ou mesmo incorreto, que se denomine “cargo de diretor” ou “cargo de presidente” etc. O que deve ficar claro é que o termo compõe o nome do posto ocupado pelo diretor ou por quem possua funções de direção e chefia ou assessoramento na administração. Portanto, o lugar (cargo submetido ao regime jurídico trabalhista) a ser ocupado pelo servidor para exercer funções de direção, chefia ou assessoramento, denomina-se emprego de confiança ou emprego em comissão. Tecnicamente os cargos em comissão das empresas públicas são um emprego, pois são regidos pelo regime jurídico trabalhista (celetista). Seria contraditório dizer que um cargo (que na acepção técnica correspondente ao plexo de atribuições a serem exercidas por um único empregado) dentro de uma empresa pública fosse regido pelo regime estatutário (o que inclusive foi vedado com o restabelecimento do regime jurídico único no julgamento da ADI nº 2.135 pelo STF)”.[2] Logo, verifica-se que as empresas estatais possuem duas categorias de empregados, aqueles admitidos via concurso público e os de confiança, ambas regidas pela CLT. Até o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do RE 589.998/PI, aplicava-se, na ocasião da demissão dos empregados públicos de ambas as espécies, a Orientação Jurisprudencial nº 247 – SDI – 1, que dispõe o seguinte: “247. SERVIDOR PÚBLICO. CELETISTA CONCURSADO. DESPEDIDA IMOTIVADA. EMPRESA PÚBLICA OU SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE (alterada – Res. nº 143/2007) – DJ 13.11.2007 I – A despedida de empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, mesmo admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade; II – A validade do ato de despedida do empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais.” Sendo assim, até a publicação do Acórdão que julgou o Recurso em comento, em 12 de setembro de 2013, os empregados públicos poderiam ter seus contratos de trabalho rescindidos, independentemente da forma de ingresso na empresa contratante e de ato administrativo motivado. Entretanto, o entendimento aportado pela OJ foi modificado pela decisão do STF, à qual foi dada repercussão geral, devendo ser aplicada em casos semelhantes. No caso do RE 589.998/PI, um empregado público da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), admitido via concurso público, foi demitido por ato unilateral e imotivado. Neste caso, os Ministros entenderam que os princípios da impessoalidade e da isonomia, que regem a admissão por concurso público, devem ser respeitados, também, na ocasião da dispensa dos empregados públicos. Tal enunciado nada mais é que a fiel aplicação do princípio do paralelismo das formas (ou da homologia), que, em consonância com o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, Relator do feito, tem aplicabilidade ampla, in verbis: “O paralelismo entre os procedimentos para a admissão e desligamento dos empregados públicos, a meu ver, está, também, indissociavelmente ligado à observância do princípio da razoabilidade. É que, aos agentes do Estado, não se veda apenas a prática de arbitrariedades, mas se impõe também o dever de agir com ponderação, decidir com justiça e, sobretudo, atuar com racionalidade.”[3] O entendimento proferido pelo Ministro Relator, corroborado pela Suprema Corte, é louvável, mas está sendo deturpado pelas Cortes trabalhistas, no sentido de que deveria ser aplicado a todos os empregados públicos, inclusive os de confiança. É válido ressaltar que, da simples leitura do item II do seguinte ementário, fazendo apelo à hermenêutica, é diáfano que não foi isso o que o STF quis expressar (grifos nossos): “Ementa: EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT. DEMISSÃO IMOTIVADA DE SEUS EMPREGADOS. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA DISPENSA. RE PARCIALEMENTE PROVIDO. I – Os empregados públicos não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo aqueles admitidos em período anterior ao advento da EC nº 19/1998. Precedentes. II – Em atenção, no entanto, aos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa. III – A motivação do ato de dispensa, assim, visa a resguardar o empregado de uma possível quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. IV – Recurso extraordinário parcialmente provido para afastar a aplicação, ao caso, do art. 41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação para legitimar a rescisão unilateral do contrato de trabalho.”[4] Concluiu-se ainda que, com base no voto do Relator, o qual foi reforçado por argumentos dos Ministros Joaquim Barbosa, Teori Zavascki, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, os empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista continuam sujeitos à dispensa por ato unilateral do empregador, não se lhes reconhecendo a estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição. 3.Da interpretação da decisão do RE 589.998/PI pela Cortes trabalhistas Os Ministros ressalvaram no julgamento a condição geral de ingresso no serviço público, ou seja, a de prestação de concurso público. Desta maneira, para que os empregados ingressantes em empresas estatais mediante concurso público possam ser dispensados, é necessário que a motivação seja apresentada, não havendo, contudo, necessidade “de instauração de processo disciplinar para esse fim, o que colocaria em risco a competitividade dessas estatais no mercado, bastando para tanto que os motivos da dispensa do empregado sejam declinados no ato, a fim de se verificar sua idoneidade” [5].    Contudo, o Tribunal Superior do Trabalho expandiu tal entendimento a ponto de não mais haver distinção entre empresas estatais prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica, bem como quanto às categorias de empregados públicos, admitidos por concurso público e os de confiança, em consonância com a seguinte decisão (grifos nossos): “RECURSO DE REVISTA – SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA – EMPRESA PÚBLICA – RESCISÃO CONTRATUAL IMOTIVADA – IMPOSSIBILIDADE – ENTENDIMENTO DO STF – RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 589.998 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE, ISONOMIA, MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 589.998, ocorrido em 20/3/2013, entendeu que as empresas públicas e as sociedades de economia mista precisam motivar o ato de rompimento sem justa causa do pacto laboral. Em face dos princípios constitucionais da legalidade, da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, o ente da administração pública indireta que explora atividade econômica deve expor as razões do ato demissional praticado e a elas fica vinculado. A motivação do ato de dispensa resguarda o empregado e, indiretamente, toda a sociedade de uma possível quebra do postulado da impessoalidade e moralidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. Além disso, a exposição dos motivos viabiliza o exame judicial da legalidade do ato, possibilitando a compreensão e a contestação da demissão pelos interessados. Assim, a falta da exposição dos motivos ou a inexistência/falsidade das razões expostas pela Administração Pública para a realização do ato administrativo de rescisão contratual acarreta a sua nulidade. Logo, deve ser reputada nula a demissão sem justa causa do reclamante que não apresenta motivação. Diante do moderno entendimento do STF, deixo de aplicar a Orientação Jurisprudencial nº 247, I, do TST . Recurso de revista não conhecido”. (TST – RR: 938-28.2012.5.18.0008, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 18/09/2013, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/09/2013)    Desta maneira, consoante o entendimento acima, qualquer empregado público, concursado ou de confiança, somente poderá ver seu contrato de trabalho rescindido mediante ato administrativo motivado, o que constitui grande contrassenso, tendo em vista que os cargos em comissão ou de confiança devem ser objeto de livre nomeação e exoneração, ou in casu, considerando o regime aplicado às empresas públicas e sociedades de economia mista, livre contratação e demissão. É nesta mesma esteira que algumas Cortes laborais regionais vêm se posicionando, a despeito do que pode se depreender do julgado do leading case da Suprema Corte. Tal entendimento nada mais gera do que injustiças em relação aos empregados admitidos por concurso público nas estatais, pois empregados em comissão passam a possuir exatamente os mesmos direitos quanto à motivação do ato administrativo que ensejar a demissão, o que favorece apadrinhamentos, favorecimentos e privilégios decorrentes de relações políticas. Apesar das decisões ventiladas acima, a 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, nos autos do Processo nº 0001460-55.2012.5.01.0064 – RTOrd, decidiu de forma diferenciada (e mais lógica) do que o TST, conforme demonstra a ementa do Acórdão abaixo (grifos nossos): “CEDAE. DISPENSA SEM JUSTA CAUSA. MOTIVAÇÃO DO ATO DE RUPTURA CONTRATUAL. ACORDO COLETIVO. GARANTIA DE EMPREGO LIMITADA A 99% DO PESSOAL EFETIVO. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 589.998, decidiu pela necessidade de motivação para a prática legítima do ato de denúncia unilateral do contrato de trabalho de empregado de empresa pública e sociedade de economia mista, desde que sua atividade se vincule à prestação de serviços públicos, notadamente em regime de exclusividade. Tal decisão, contudo, somente aproveita aos empregados admitidos em decorrência de aprovação em concurso público, devendo-se, ainda, considerar, em relação à ré, a existência de cláusula normativa que a autoriza dispensar sem justa causa 1% do seu pessoal efetivo. A prevalência do instrumento normativo tem sede constitucional – inciso XXVI, do art. 7º.” (TRT-1 – RO: 00014605520125010064 RJ, Relator: Maria Aparecida Coutinho Magalhães, Data de Julgamento: 10/12/2013, Oitava Turma, Data de Publicação: 07/01/2014)  Não obstante a decisão acima, resta a insegurança jurídica quanto aos critérios a serem utilizados na ocasião da dispensa de empregados públicos, causada pela comum divergência presente na jurisprudência da Justiça do Trabalho. 4.Conclusão Como exposto acima, a interpretação extensiva do julgado do Pretório Excelso pelos Tribunais do Trabalho pode se mostrar como uma quebra aos postulados que se quis defender, quais sejam o da moralidade e o da impessoalidade. Apesar dos princípios protetivos voltados ao trabalhador, a necessidade de ato administrativo motivado para a demissão de empregados de confiança ou em comissão, admitidos por critérios de foro íntimo dos gestores públicos brasileiros, pode se revelar como mácula às regras que regem o Direito Administrativo, podendo causar mais injustiça social num país já tão assolado por ela. Neste contexto, resta aguardar um posicionamento mais robusto por parte do STF ou do próprio TST sobre a matéria, visando a dirimir quaisquer controvérsias ainda existentes.
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O direito de greve dos servidores públicos, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O presente artigo trata do direito de greve dos servidores públicos no Brasil, a partir da análise da Constituição Federal de 1988 e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF. Busca-se compreender os contornos jurídicos deste direito constitucional, suas possibilidades e limites. Após breve análise do histórico do direito de greve no Brasil, procedeu-se à pesquisa bibliográfica, na doutrina nacional, e à pesquisa jurisprudencial, no banco de dados eletrônico do STF. Este levantamento teve como cerne as decisões proferidas nos Mandados de Injunção nº 712/PA, 670/ES e 708/DF, em que a Corte decidiu pela aplicação da Lei de Greve do setor privado (Lei 7.783/1989) aos movimentos grevistas de servidores públicos. A partir desta decisão, cabe aos operadores do Direito proceder às necessárias adequações da Lei 7.783 à realidade específica do serviço público. Assim se procedeu no presente trabalho, no qual se buscou uma compatibilização do direito de greve com os princípios que regem a Administração Pública no Brasil.
Direito Administrativo
Introdução A Constituição Cidadã de 1988, no art. 9º, caput, reconheceu a greve como direito fundamental dos trabalhadores. Ainda que o direito de greve dos servidores públicos tenha sido tratado em dispositivo próprio (art. 37, VII), o qual reclama complementação legislativa, há que se reconhecer também neste caso o status de direito fundamental. Nos Mandados de Injunção nº 712/PA, 670/ES e 708/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o status de direito fundamental que possui o direito de greve e determinou que se aplique a Lei de Greve do setor privado (Lei 7.783/1989) aos movimentos paredistas de servidores públicos. Não obstante, há diferenças importantes entre o exercício do direito de greve no serviço público e na iniciativa privada, a exigir adaptações da Lei nº 7.783/1989. O presente trabalho, ao problematizar esta questão, busca construir uma perspectiva teórica que viabilize o exercício pleno do direito de greve pelos servidores públicos, compatibilizando-o com os princípios que regem a Administração Pública em nosso país. 1. Breve histórico do direito de greve no Brasil. Embora alguns autores enxerguem a existência de greves na Antiguidade, parece-nos mais apropriado entender que “a greve só pode ser considerada como tal a partir da liberdade do trabalho” (CERNOV, 2011 p. 13). Assim, este fenômeno social surge com a Revolução Industrial, quando se consolidou o regime de trabalho assalariado na Europa. Naquele período, a intensa exploração da classe operária gerou a necessidade de uma luta coletiva pelos interesses comuns, da qual emergia a consciência de classe (MARX, 1985, p. 158-159). Os trabalhadores organizados não tardaram em descobrir a greve como forte instrumento de pressão contra os patrões. Nas palavras de Eros Grau: a “greve é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores como meio para a obtenção de melhoria em suas condições de vida”.[1] Todavia, nos primórdios do Estado liberal – forma política correspondente ao modelo econômico inaugurado pela Revolução Industrial – a greve foi tratada como recurso “anti-social”. Num período histórico em que ecoavam os ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, o Estado negava aos trabalhadores a liberdade de se organizar e realizar movimentos grevistas. Estêvão Mallet (2014) classifica o tratamento jurídico da greve pelo Estado em três fases históricas sucessivas, verificadas em âmbito mundial, embora com traços particulares em cada país: a) greve-delito, em que a paralisação coletiva é tipificada como ilícito penal; b) greve-liberdade, em que o Estado deixa de tratar a greve como ilícito penal, sem, porém, reconhece-la como direito (a paralisação gera mero inadimplemento contratual); e c) greve-direito, na qual o Estado passa a reconhecer a greve como direito dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que o Direito positivo regulamenta os contornos e limites deste direito. No Brasil, em razão da nossa industrialização tardia, a greve passou a ser um fenômeno social relevante a partir do início do Século XX. Do ponto de vista jurídico-positivo, nosso país passou pelas três fases citadas acima, embora com descontinuidades e retrocessos verificados nos períodos autoritários – Estado Novo (1937-1945) e Ditadura Militar (1964-1985). As duas primeiras Constituições brasileiras (1824 e 1891) silenciaram sobre a greve. Mas o Código Penal de 1890 considerou crime o ato de provocar cessação ou suspensão de trabalho” (art. 206). Este dispositivo teve vida curta, pois foi logo alterado pelo Decreto nº 1.162 de 12/12/1890, que passou a criminalizar apenas a violência no exercício da greve. A Constituição de 1934, embora inserida num contexto histórico marcado por fortes greves, também foi omissa sobre o tema. Todavia, com a instauração do Estado Novo, o Brasil retrocedeu para a fase greve-delito. O art. 139 da Constituição de 1937 declarou a greve e o lock-out como “recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. Em seguida, o Decreto-Lei nº 431/1938 tipificou a greve como crime, correspondente à pena de um a três anos. A redação original da Consolidação das Leis do Trabalho (1943), condicionava a greve à prévia autorização do tribunal competente (art. 723). Na ausência desta autorização, os grevistas estavam sujeitos às penas de suspensão do emprego por até seis meses e demissão. O art. 724 estabelecia punições para o sindicato que “ordenasse” o movimento grevista. O governo de Vargas durante o Estado Novo (1937-1945) merece reflexão especial, porquanto foi um período marcado por importantes avanços nos direitos trabalhistas de cunho individual, embora tenha havido notório retrocesso no campo dos direitos coletivos e da liberdade sindical. O Estado Novo “deixou de lado a autonomia para domesticar os sindicatos, submetendo-os à tutela do Estado como órgãos de colaboração” (AROUCA, 2013, p. 14). Com o fim do Estado Novo, em 1946, o General Eurico G. Dutra aprovou o Decreto-Lei nº 9.070, considerado por alguns como a primeira lei de greve no Brasil, com regramento severo e restritivo. O Decreto-Lei autorizou a greve nas atividades acessórias, após ajuizamento do dissídio coletivo, mas a proibiu nas atividades fundamentais. A Constituição democrática de 1946 reconheceu o direito de greve de forma lacônica (art. 158), deixando os contornos de seu exercício a ser disciplinado por lei – que acabou sendo, por muito tempo, o restritivo Decreto-Lei 9.070. A Constituição autoritária de 1967, fruto do golpe civil-militar de 1964, assegurou formalmente o direito de greve aos trabalhadores (art. 158, XXI), embora tenha proibido expressamente a greve nos serviços públicos e atividades essenciais (art. 157, § 7º). A Emenda Constitucional nº 01/69 manteve a mesma orientação. No plano infraconstitucional, durante o regime militar, foi aprovada pelo Congresso a Lei nº 4.330/1964, uma verdadeira lei antigreve que estabelecia uma série de condições desmedidas para o exercício deste direito. O governo instituiu o Decreto-Lei nº 1.632/1978 como um obstáculo a mais para a greve nos serviços essenciais. E no Decreto 898/1969 (que definia os crimes contra a segurança nacional) foi previsto o crime de “promover greve em serviços públicos ou atividades essenciais”, a ser punido com reclusão, de 4 a 10 anos. Mesmo em pleno período autoritário, “o sindicalismo autêntico renasceu e mostrou sua força quando a ditadura militar já não se sustentava com o domínio do terror perseguindo, torturando e matando seus adversários” (AROUCA, 2013, p. 237). No final da década de 70 e início da década de 80, o movimento sindical foi parte essencial do movimento pela redemocratização do Brasil, e as greves operárias atingiram seu ápice na história do país. A Constituição Cidadã de 1988 foi fruto desse processo de abertura democrática e, no que tange ao direito de greve, sem dúvida representou um grande avanço, por dois motivos principais: a) reconheceu a greve como direito fundamental dos trabalhadores (art. 9º, caput); b) estendeu, pela primeira vez, o direito de greve aos servidores públicos (art. 37, VII), um avanço histórico “que tornou a vida funcional dos servidores públicos mais protegida dos abusos administrativos que até então perduravam” (CERNOV, 2011, p. 21). Este avanço constitucional e seus desdobramentos serão tratados nos próximos capítulos. 2. O direito de greve dos servidores públicos na Constituição de 1988. Na Constituição Federal de 1988, o direito de greve está situado entre os direitos e garantias fundamentais. O art. 9º, caput, reza que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercer o direito de greve e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Para os servidores públicos, a previsão consta em dispositivo próprio da Constituição (art. 37, VII), situado no Capítulo que trata da Administração Pública. A redação original do art. 37, inciso VII, previa que o direito de greve seria exercido pelos servidores públicos civis nos termos de lei complementar. Com a Emenda Constitucional nº 19/98, o citado dispositivo passou a prever a necessidade de lei específica para definir os termos e limites do direito de greve. A lei de greve dos trabalhadores do setor privado foi aprovada pouco depois da entrada em vigor da Constituição Cidadã – trata-se da Lei nº 7.783/1989. Todavia, o Congresso Nacional não aprovou, até hoje, a lei específica sobre o direito de greve dos servidores públicos. Esta omissão legislativa tem gerado, durante as últimas décadas, inúmeras dúvidas e polêmicas sobre a possibilidade jurídica, os limites e contornos específicos da greve no serviço público. 2.1. Sobre a eficácia do art. 37, VII da Constituição. Se, por um lado, o direito de greve dos servidores públicos foi reconhecido pelo constituinte de 1988, por outro, “há muito, doutrina e jurisprudência reconhecem que nem toda norma constitucional é suscetível de aplicação imediata” (GROTTI, 2008, p. 40). José Afonso da Silva (1998), divide as normas constitucionais em três categorias, quanto à eficácia e aplicabilidade: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. Todas produzem efeitos jurídicos, embora com diferentes intensidades. As normas de eficácia plena são aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem ou têm possibilidade de produzir todos os seus efeitos essenciais; possuem aplicabilidade imediata e não dependem de complementação normativa. As normas de eficácia contida também são dotadas de aplicabilidade imediata; todavia, o constituinte deixa ao legislador ordinário margem para limitação dos seus efeitos – por isso Michel Temer (2005) as denomina normas de eficácia redutível ou restringível. Já as normas de eficácia limitada são aquelas que “dependem de outras providências para que possam surtir os efeitos essenciais colimados pelo legislador constituinte” (SILVA, 1998, p. 118). A classificação do direito de greve dos servidores públicos (art. 37, VII) quanto à sua eficácia sempre dividiu a doutrina nacional. Uma corrente minoritária, invocando a teoria dos direitos fundamentais de Bonavides, sustentava se tratar de uma norma de eficácia plena, pois “todo direito fundamental, a partir do momento em que se encontra na ordem jurídica, é naturalmente efetivo e eficaz, de plenitude máxima” (LIMA e BELCHIOR, 2008, p. 2184). Outros autores defenderam se tratar de norma de eficácia contida. Assim, os servidores públicos poderiam exercer, desde já, o direito de greve, embora na expectativa de restrição normativa ulterior. Borba e Campos (2013) relatam que os adeptos desta segunda corrente costumavam defender a aplicação analógica da Lei nº 7.783/1989 à greve dos servidores públicos (posição adotada pelo STF em 2007, como se verá adiante). Por fim, destaca-se a existência de forte corrente doutrinária advogando se tratar o art. 37, VII, de norma de eficácia limitada, de modo que a greve de servidores públicos só seria juridicamente possível após a edição da lei específica prevista pelo constituinte. Esta posição foi defendida inclusive por José Afonso da Silva (2004, p. 681), nos seguintes termos: “Quanto à greve, o texto constitucional não avançou senão timidamente, estabelecendo que o direito de greve dos servidores públicos será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar, o que, na prática, é quase o mesmo que recusar o direito prometido; primeiro, porque, se a lei não vier, o direito inexistirá; segundo, porque, vindo, não há parâmetro para seu conteúdo, tanto pode ser mais aberta como mais restritiva”. Segundo esta terceira posição, que prevaleceu na jurisprudência pátria, a ausência de lei regulamentadora redundava na impossibilidade de exercício do direito de greve pelos servidores públicos. Esse entendimento gerou o justo protesto de Bandeira de Mello: “Tal direito existe desde a promulgação da Constituição. Deveras, mesmo à falta de lei, não se lhes pode subtrair um direito constitucionalmente previsto, sob pena de se admitir que o Legislativo ordinário tem o poder de, com sua inércia até o presente, paralisar a aplicação da Lei Maior, sendo, pois, mais forte do que ela” (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 291). Em 1994, ao apreciar o Mandado de Injunção nº 20/DF, o STF considerou que o “preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade”.[2] Neste MI, ao reconhecer a mora do legislador em editar a lei de greve do serviço público, o Supremo limitou-se a comunicar sua decisão ao Congresso Nacional para que tomasse as providências devidas. A mesma comunicação foi repetida em várias outras ações.[3] Mesmo notificado várias vezes, o Congresso não editou a esperada lei. Isso, porém, não obstaculizou a ocorrência de greves em várias categorias do funcionalismo público no país. A omissão legislativa não foi capaz de solapar, na prática, o exercício deste direito. Havia, no entanto, evidente anomia, diante da ausência de parâmetros legais para a greve de servidores públicos. Esta realidade só foi alterada em 2007, quando o STF deu um giro histórico na sua jurisprudência, como será analisado a seguir. 2.2. O mandado de injunção e a concretização do direito de greve dos servidores públicos. A não edição da lei de greve dos servidores públicos constitui caso típico de inconstitucionalidade por omissão, caracterizada por um non facere do Estado, que se manifesta quando os poderes constituídos deixam de fazer o que a Constituição determina (BARROSO, 2012). Para casos assim, a Carta Magna de 1988 previu o mandado de injunção como remédio a ser aplicado “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI da CF/88). Bonavides (2000, p. 505) explica os contornos deste instrumento constitucional: “Havendo, por conseguinte, um direito subjetivo constitucional, cujo exercício se ache tolhido pela privação de norma regulamentadora, o titular desse direito postulará, perante o Judiciário, por via do mandado de injunção, a edição de uma norma aplicável à espécie concreta. Nesse caso a edição da norma saneadora da omissão é provisoriamente do Judiciário e não do Legislador, concretizando-se graças àquela garantia, a satisfação do direito subjetivo constitucional cujo exercício ficara paralisado.” O objetivo evidente do instituto é assegurar o exercício de direito constitucional até então ineficaz devido à omissão do Estado. Prestigia-se, com o mandado de injunção, a força normativa da Constituição, que não pode ser relegada à mera folha de papel. Todavia, num primeiro momento, o STF adotou a teoria não concretista, que atribui ao mandado de injunção a “finalidade específica de reconhecer formalmente a inércia do Poder Público em editar a norma regulamentadora do direito constitucional” (LIMA e BELCHIOR, 2008, p. 2187). Esse entendimento (adotado no MI 20-DF) foi duramente criticado por Luís Roberto Barroso (2012, p. 94), para quem, “o instituto tem enfrentado, até aqui, os percalços de uma jurisprudência tímida, conservadora, quando não puramente reacionária”. Mas a orientação do Supremo foi sendo alterada paulatinamente[4], até a adoção da teoria concretista em 2007 – a qual sustenta que o Poder Judiciário deve implementar o exercício do direito constitucional, até que sobrevenha norma regulamentadora através do poder competente (LIMA e BELCHIOR, 2008, p. 2186). Subdivide-se em duas: a) teoria concretista geral, sustentando que a decisão judicial tem efeitos erga omnes; b) teoria concretista individual, que defende a concretização do direito apenas para a parte litigante. No ano de 2007, o STF julgou três MI´s (712/PA, 670/ES e 708/DF), impetrados por sindicatos de servidores públicos que se insurgiam contra a omissão do Congresso Nacional em regulamentar o art. 37, VII, da Constituição. Neste julgamento, a Corte promoveu um giro histórico no seu entendimento sobre o Mandado de Injunção, resolvendo enfim concretizar o direito de greve dos servidores públicos, através da aplicação analógica da Lei nº 7.783/1989. Grotti (2008, p. 49) apresenta boa síntese deste julgamento histórico: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento dos referidos mandados de injunção em 25 de outubro de 2007 e, por unanimidade, decidiu declarar a omissão legislativa quanto ao dever constitucional em editar a lei que regulamente o exercício do direito de greve no setor público e, por maioria, aplicar ao setor, no que couber, a lei de greve vigente no setor privado. (…) ao final, a Corte não só decidiu o conflito que lhe foi apresentado, mas também determinou as regras aplicáveis a futuros casos semelhantes, ou seja, pela aplicação da Lei nº 7.783/89 sempre que se tratar de greve de servidores públicos. Adotou, portanto, o Supremo a posição concretista geral.” Esta decisão, em geral muito elogiada pela doutrina, resolveu (ao menos em parte) o problema da falta de regulamentação da greve no serviço público. Em seu voto no MI 712-PA, o Ministro Eros Grau deixou claro que não estava o STF a invadir competência do Congresso Nacional, posto que a Corte exerceu, na ocasião, função normativa, e não legislativa. Segundo o Ministro, a função normativa do Judiciário inclui por, imposição expressa da Constituição, a tarefa de “formular supletivamente, nas hipóteses de concessão do mandado de injunção, a norma regulamentadora reclamada”[5]. Deve-se destacar, porém, que além da concretização do direito de greve dos servidores públicos, o Supremo se moveu por uma alegada necessidade de impor limites às greves no serviço público, conforme se verifica no Acórdão proferido no MI 708/DF: “Além de o tema envolver uma série de questões estratégicas e orçamentárias diretamente relacionadas aos serviços públicos, a ausência de parâmetros jurídicos de controle dos abusos cometidos na deflagração desse tipo específico de movimento grevista tem favorecido que o legítimo exercício de direitos constitucionais seja afastado por uma verdadeira "lei da selva".”[6] Assim, visando impor limites às greves no serviço público, evitando a “lei da selva”, o STF determinou a aplicação da Lei nº 7.783/89, embora facultando aos tribunais a imposição de regime de greve mais severo em razão de tratar-se de “serviços ou atividades essenciais”. Vale dizer: além das restrições inscritas na Lei 7.783, os tribunais poderão, diante de cada caso concreto, impor outras e mais severas restrições à greve dos servidores públicos. Deste modo, entre a garantia do direito e a imposição de limites e restrições, resta uma “nuvem cinzenta” que gera inúmeras dúvidas e perplexidades, do ponto de vista teórico e prático, em relação às greves no serviço público, conforme será analisado no próximo capítulo. 3. A decisão do STF e as perplexidades no exercício do direito de greve no serviço público. Nos Mandados de Injunção 670/ES, 708/DF (Rel. p/ o Acórdão Min. Gilmar Mendes) e 712/PA (Rel. Min. Eros Grau), o STF formulou supletivamente uma norma regulamentadora para o direito de greve dos servidores públicos, à qual se atribuiu efeitos erga omnes. Esta decisão passou a vincular todas as greves de servidores públicos no país, até que seja aprovada pelo Congresso Nacional a lei específica reclamada pelo art. 37, VII da Constituição. No Mandado de Injunção 720/PA, de relatoria do Ministro Eros Grau, definiu-se um conjunto normativo a reger as greves de servidores públicos, construído a partir da recepção e/ou adaptação de dispositivos da Lei nº 7.783/1989: “Isto posto, a norma, na amplitude que a ela deve ser conferida no âmbito do presente mandado de injunção, compreende conjunto integrado pelos artigos 1º ao 9º, 14, 15 e 17 da Lei 7.783/1989, com as alterações necessárias ao atendimento das peculiaridades da greve nos serviços públicos”[7]. Alguns dos artigos que compõem este conjunto normativo mantiveram suas redações inalteradas. Dentre as alterações na Lei nº 7.783/89, merecem destaque: a) no art. 2º – que estabelece o conceito legal de greve como a “suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” – foi eliminado o adjetivo “total”, donde se conclui que a paralisação deverá ser sempre parcial; b) no art. 3º, ampliou-se o prazo de comunicação prévia ao empregador de 48 para 72 horas; c) o art. 9º passou a prever a obrigação do sindicato  de manter em atividade equipes de empregados para assegurar a regular continuidade do serviço público; e d) no art. 14 foi incluída como hipótese de abusividade da greve o comprometimento da regular continuidade da prestação de serviço público. Percebe-se, portanto, que a alteração de dispositivos da Lei de Greve teve como escopo aumentar as restrições à greve dos servidores públicos. Como regra, estas restrições se baseiam no princípio da continuidade do serviço público, como se verá adiante. 3.1. Direito de greve versus continuidade do serviço público. Em seu voto no MI 720/PA, o Min. Rel. Eros Grau considerou que os efeitos da greve no setor público diferem em essência dos efeitos no setor privado: neste, a greve afeta interesses egoísticos dos detentores do capital, ao passo que no setor público a greve afeta o interesse coletivo dos cidadãos que necessitam dos serviços públicos. E arremata: “a relação do emprego público é instrumental, direta ou indiretamente, da provisão de serviços públicos, cuja continuidade há de ser assegurada em benefício do todo social”[8]. Embora sem previsão expressa no texto constitucional, o princípio da continuidade é reconhecido de modo unânime pela doutrina como um dos cânones que regem os serviços públicos no país. Para Bandeira de Mello (2014, p. 696), o princípio da continuidade do serviço público importa na “impossibilidade de sua interrupção e o pleno direito dos administrados a que não seja suspenso ou interrompido”. Diógenes Gasparini (2007, p. 8), por sua vez, aduz que “o serviço público não pode sofrer solução de continuidade. Vale dizer: uma vez instituído há de ser prestado normalmente, salvo por motivo de greve, nos termos de lei regulamentadora”. É evidente que a suspensão temporária da prestação de serviços pelos trabalhadores se choca com o princípio da continuidade dos serviços públicos. Há, portanto, uma colisão de normas constitucionais, que impõe ao intérprete o dever de harmonizar a tensão existente. Na busca pela concordância prática das normas em contradição, deve-se “produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas” (BARROSO, 2010, p. 206). Este equilíbrio deve garantir a aplicação do conteúdo essencial de ambas as normas. Ao apreciar os Mandados de Injunção 712/PA, 670/ES e 708/DF, o STF buscou harmonizar o princípio da continuidade e o direito de greve. Nas palavras do Min. Eros Grau, é “indispensável a definição, por esta Corte, das medidas a serem tomadas no sentido de assegurar a continuidade da prestação do serviço público; somente assim poderá ser conferida eficácia ao disposto no art. 37, VII”[9]. Percebe-se, porém, com a devida vênia, que em certos momentos da decisão a Corte supervalorizou o princípio da continuidade em detrimento do direito de greve. Isto fica claro quando se observa o conjunto normativo fixado no MI 720/PA. A alteração do art. 2º da Lei 7.783 excluiu a possibilidade de suspensão total da prestação de serviços pelos trabalhadores. Sob a ótica do MI 720/PA, só será considerada como legítimo exercício do direito de greve a suspensão parcial da prestação de serviços. Na redação original do art. 2º da Lei 7.783/89, é possível, em tese, a suspensão total da prestação de serviços, embora seja necessário, em alguns casos, que o sindicato, mediante acordo com o empregador, mantenha equipes de empregados para assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável (art. 9º). Já nas atividades essenciais (art. 11), deve-se garantir a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade – sendo consideradas necessidades inadiáveis aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população. Essa sistemática da Lei de Greve nos parece compatível com a ponderação entre o direito de greve e as necessidades da coletividade. No entanto, no MI 720/PA, o STF foi mais rigoroso, ao exigir a manutenção de equipes de servidores em toda e qualquer greve, seja qual for a atividade envolvida. “Como a paralisação é parcial, o sindicato está obrigado a apresentar um plano de garantia da prestação mínima de serviço que, segundo a lógica do acórdão, deverá sempre existir, ainda que em ritmo menor” (ÁLVARES DA SILVA, 2008, p. 139). Não é outro o entendimento que se extrai do art. 9º adaptado pelo Supremo: “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com, o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar a regular continuidade da prestação do serviço público”.[10] Desta forma, a Corte firmou o entendimento, a nosso ver equivocado, de que todo serviço público é essencial. Neste prisma, o STF disciplinou o direito de greve no serviço público nos mesmos termos da greve nas atividades essenciais da iniciativa privada. Por isso, concordamos com a crítica feita por Zênia Cernov: “Não nos parece que generalizar a essencialidade no serviço público tenha sido a melhor solução. Há no setor público determinados tipos serviços que, embora importantes, não chegam a atingir a característica de essenciais, assim como há, no serviço privado, serviços que são mais essenciais à população do que muitos daqueles prestados pelo Estado” (CERNOV, 2011, p. 50). A nosso ver, o melhor critério para definir a essencialidade de um serviço público é o que consta na Lei nº 7.783/1989: serviço essencial é o que atende às necessidades inadiáveis da coletividade – isto é, necessidades que, não atendidas, colocam em risco a sobrevivência, saúde ou segurança da população. Todavia, ao consignar que todo serviço público é essencial, o STF apontou para a necessidade de restrições em toda e qualquer greve de servidores públicos. A nosso ver, o princípio da continuidade foi melhor acolhido pela Corte do que o direito de greve. 3.2. Participação em greve e infração disciplinar. Questão importante é saber em quais situações o exercício do direito de greve pode configurar infração disciplinar do servidor público. O art. 9º da Constituição é claro ao assegurar a greve como direito do trabalhador. Logo, o exercício de um direito não pode ser considerado infração disciplinar. Sobre isso, o STF tem posição clara desde 1963, através da Súmula nº 316: “A simples adesão à greve não constitui falta grave”.   Todavia, o art. 9º, § 2º da CF/88 previu que os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. O abuso envolve “o exercício de um direito que se tem, conquanto de modo inapropriado, desviado ou deturpado” (MALLET, 2014, p. 107) e pode acarretar, para o servidor público, responsabilidade de ordem administrativa, civil e criminal. Diante dos critérios da Lei 7.783, Mallet (2014) aponta exemplos concretos de abuso do direito de greve: a) greve deflagrada sem tentativa antecedente de negociação; b) não concessão de aviso prévio; c) piquete violento, com destruição de equipamentos ou com fechamento do acesso à empresa; d) quando não são assegurados os serviços mínimos nas atividades essenciais. Havendo dano, provocado pelo abuso do direito de greve, surge o dever de repará-lo, a recair sobre o sindicato ou sobre determinados trabalhadores, conforme o caso. Todavia, para que determinado servidor seja responsabilizado na esfera administrativa, há que se demonstrar sua autoria na prática dos abusos. Não há como se pensar numa responsabilização genérica de todos os grevistas, mesmo que o movimento tenha sido declarado ilegal ou abusivo. Nas palavras de Zênia Cernov (2011, p. 79), “a participação em movimento grevista, por si mesma, não caracteriza infração disciplinar, ainda que essa seja declarada ilegal pelo Judiciário”. Mallet (2014, p. 111) corrobora com este entendimento: “A participação passiva do empregado no movimento, ainda que venha ele a ser considerado abusivo, não envolve justa causa. (…) A solução da Súmula 316 do Supremo Tribunal Federal abrange, em consequência, tanto a greve não abusiva como a greve abusiva.” O Tribunal Superior do Trabalho adota a mesma posição: “O fato de a greve ser declarada abusiva não significa, por si só, que os seus participantes tenham cometido ilícito trabalhista”[11] Por outro lado, a participação em greve não pode interferir no estágio probatório. Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3235, o STF declarou inconstitucional um Decreto do Estado de Alagoas que determinava a exoneração de servidor grevista que estivesse em estágio probatório, “por (a) considerar o exercício não abusivo do direito constitucional de greve como fato desabonador da conduta do servidor público e por (b) criar distinção de tratamento a servidores públicos estáveis e não estáveis”[12]. Desta forma, a adesão à greve não pode acarretar demissão ou exoneração de servidor público, nem pode ser considerada como fato negativo em sua avaliação de desempenho.[13] Em síntese, a punição disciplinar de servidor grevista só pode ocorrer quando ele próprio praticar abusos durante uma greve. Como exemplo, podemos citar a prática de ofensas físicas ou verbais, ou dano ao patrimônio. Deve-se, contudo, observar o devido processo legal, garantindo-se ao servidor o contraditório e a ampla defesa. 3.3. Sobre o pagamento dos dias parados. O pagamento de salário aos servidores grevistas, durante os dias parados, é questão notoriamente controversa na doutrina e na jurisprudência. Alguns autores sustentam que os salários devem ser pagos, pois a greve é um direito constitucional dos servidores públicos, de modo que o corte de ponto consiste numa punição ao exercício de um direito. Souto Maior (2014), juiz do trabalho e professor da Faculdade de Direito da USP, entende que negar aos trabalhadores o direito ao salário quando estiverem exercendo o direito de greve equivale, na prática, a negar-lhes o próprio direito de greve. Do outro lado da polêmica, alguns doutrinadores sustentam que, ao se admitir a greve no serviço público sem corte de ponto, haveria violação ao princípio da isonomia, porquanto os trabalhadores da iniciativa privada têm seus contratos de trabalho suspensos durante o período da greve, como prevê o art. 7º da Lei nº 7.783/1989. Álvares da Silva (2008, p. 142) caracteriza como “uma incoerência e um absurdo” que o servidor público faça greve recebendo salário. Ao se referir às greves que ocorriam antes da decisão do STF em 2007, o mencionado autor afirma que “Transferia-se totalmente para a sociedade o ônus da paralisação e o servidor a praticava sem nenhum risco ou consequência. Esta incoerência agora acabou”. Estêvão Mallet (2014, p. 57) defende posição intermediária: “O equilíbrio parece estar na distinção entre greve para exigir cumprimento de obrigação já existente e greve para obter a criação de novas condições de trabalho. No primeiro caso, provocada a greve pela conduta do empregador, caso ela se desenvolva de forma regular, os salários continuam devidos, sob pena de manifesto paradoxo: sempre que não pagos os salários durante a execução do contrato, a greve deflagrada para reclamá-los exoneraria o empregador de continuar a cumprir a obrigação. Já no segundo caso (…) os empregados assumem o ônus do não trabalho.” Nos Mandados de Injunção 670/ES e 708/DF, o STF fixou a competência da Justiça Comum para julgar os dissídios de greve, assentando também que compete aos respectivos tribunais decidir sobre o pagamento, ou não, dos dias de paralisação. Além disso, a Corte fixou uma orientação geral que se assemelha à posição intermediária defendida por Mallet: “A deflagração da greve, em princípio, corresponde à suspensão do contrato de trabalho. Como regra geral, portanto, os salários dos dias de paralisação não deverão ser pagos, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento aos servidores públicos civis, ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão do contrato de trabalho”.[14] Assim, fica claro que, no caso de atraso no pagamento dos servidores públicos, não há que se falar em corte de ponto, pois foi a Administração Pública quem deu causa ao movimento. Por outro lado, o STF se referiu também a outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da suspensão do contrato de trabalho, redação imprecisa, a exigir esforço interpretativo para identificar tais situações. Para Zênia Cernov (2011, p. 72), essa previsão se aplica “aos casos em que o ente público esteja violando garantias sociais fundamentais”. A nosso ver, as “situações excepcionais” previstas pelo STF devem abarcar as greves deflagradas com o objetivo de exigir a efetivação de direitos já previstos em lei, sejam eles referentes à remuneração ou a condições de trabalho. O princípio da legalidade obriga que a Administração Pública proceda sempre em conformidade com a lei. Destarte, se ela desobedece determinada lei, negando a seus servidores a fruição de direitos legalmente estabelecidos, deverá suportar o ônus da greve. Nesta situação, seria estarrecedor admitir o corte de ponto dos servidores, punindo as vítimas, ao invés de punir o responsável pela ilegalidade. Por outro lado, há que se destacar que de 2007 para cá tem havido uma inflexão da jurisprudência do STF no sentido de apenas admitir o corte de ponto quando a greve é declarada ilegal ou abusiva. Veja-se neste sentido a decisão proferida em agosto de 2013 na Suspensão de Tutela Antecipada nº 723, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa: “O impetrante comprovou o preenchimento dos requisitos constantes da Lei 7.783/89, não se verificando, a princípio, qualquer abuso do direito de greve a justificar o corte no ponto dos servidores e, o consequente desconto dos dias paralisados. Ademais, configura-se claro o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação na hipótese em comento, uma vez que se trata de verba de caráter alimentar.” [15] Por fim, deve-se lembrar que o art. 7º da Lei de Greve foi recepcionado pelo STF, donde se extrai que as relações obrigacionais, durante o período que durar a greve, podem ser regidas por acordo ou convenção entre as partes envolvidas. Para Álvares da Silva (2008, p. 143), a recepção do art. 7º denota que “a convenção coletiva, antes implícita, agora passou a ser expressamente reconhecida em relação ao serviço público”. Não há dúvida que a negociação é a forma mais eficiente de resolução de conflitos coletivos. O pagamento dos dias parados deve constar no acordo a ser firmado entre a Administração Pública e o Sindicato representativo dos servidores em greve. Restando inviável o acordo, a decisão ficará a cargo do Poder Judiciário. Considerações finais. A Constituição Federal de 1988, que foi um marco na democratização das relações políticas e sociais do Brasil, também o foi em relação ao direito de greve, ao reconhecê-lo expressamente aos servidores públicos civis. Com isso, o Estado brasileiro passou a enxergar os servidores como trabalhadores e cidadãos que têm o direito de lutar por melhores condições de trabalho e por salários dignos. A ausência de regulamentação do art. 37, inciso VII, da Constituição motivou, durante vários anos, o entendimento jurisprudencial de que o direito de greve dos servidores públicos era juridicamente impossível, enquanto perdurasse a lacuna normativa. Esta orientação somente foi alterada pelo STF em 2007, no julgamento dos Mandados de Injunção nº 712/PA, 670/ES e 708/DF. Com isso, resolveu-se parcialmente o problema, embora tenham surgido novas dúvidas e polêmicas acerca da aplicação da Lei nº 7.783/89 às greves do serviço público. Diante da regulação parcial e provisória do tema, é preciso que os operadores do Direito encarem a greve como um direito fundamental, que deve ser protegido, e não inviabilizado por restrições desmedidas. Afinal, “a ideia central do nosso Constituinte foi a de reconhecer o direito à greve, e não a de dificultá-lo” (CERNOV, 2011, p. 40). A proteção do direito de greve não interessa apenas aos servidores públicos, mas à sociedade de modo geral. Quando fazem greve, os servidores reivindicam, via de regra, ações do poder público para melhorar as condições de trabalho e garantir qualidade na prestação dos serviços públicos. Não se deve, portanto, considerar a greve no serviço público como movimento antagonista dos interesses da sociedade, e tampouco como um fato anormal que atenta contra a Administração Pública. A greve é, na verdade, um componente natural e saudável num Estado Democrático de Direito, desde que exercida com responsabilidade.
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Os sujeitos ativos das Leis 8.429/92 e 12.846/13 e a luta pela moralidade na administração pública
Este artigo objetiva tratar dos sujeitos ativos dispostos na Lei n. 8.429/92 e na Lei n. 12.846/13, analisando-se como o ordenamento jurídico pátrio tem se utilizado para combater a prática ímproba e efetivar a moralidade no Poder Público, quando do exercício da atividade pública. Pontua-se, desse modo, a Lei 8.429/92 como um divisor de águas na luta pela efetividade dos princípios da Administração Pública e o surgimento da Lei 12.846/13 como resposta ao apelo nacional em reprimir a corrupção e a fraude em licitações e contratos administrativos.
Direito Administrativo
Abstract: This monograph aims to analyze the active subjects arranged in the Law n. 8429/92 and Law n. 12846/13, by analyzing how the Brazilian legal system has been used to combat ímproba practice and effect the morality in government, in the exercise of public life. It is highlighted in this way, the Law 8429/92 as a watershed in the struggle for the effectiveness of the principles of Public Administration and the emergence of Law 12,846 / 13 as a response to the national call to end the corruption and fraud in procurement and contracts administrative. Keywords: Actives Subjects, Administrative Misconduct, Morality in Public Administration, corruption. Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1 A improbidade administrativa e o seu combate no ordenamento jurídico. 2.1.1 Os conceitos de moralidade e probidade administrativa. 2.1.2. A Lei de Improbidade Administrativa – n. 8.429/92. 2.1.3. A lei “anticorrupção” – n. 12.846/13. 2.2 Os sujeitos ativos da improbidade administrativa. 2.2.1. O sujeito ativo na Lei n. 8.429/92. 2.2.2 O sujeito ativo na lei 12.846/13. 3. Conclusão. 1 Desenvolvimento A Carta Constitucional de 1988, ao dispor sobre os princípios que regem a Administração Pública, elenca o princípio da moralidade administrativa, que se traduz como a atuação conforme o padrão jurídico da moral, boa-fé, lealdade e honestidade perante o Poder Público. É nesse sentido que o seu artigo 37 prevê que os atos de improbidade administrativa deverão ser responsabilizados. Por esta razão, as leis 8.429/92 e 12.846/13 apresentaram-se como resposta do legislador para aqueles que praticam atos que resultam no enriquecimento ilícito, dano ao erário público e ofensa aos princípios norteadores da Administração na seara pública. Embora tenham sido criadas em épocas distintas, ambas representaram a insatisfação da população em geral com condutas que lesavam de alguma forma a atividade pública, conforme será visto adiante. 2 Desenvolvimento 2.1 A improbidade administrativa e o seu combate no ordenamento jurídico 2.1.1 Os conceitos de moralidade e probidade administrativa Muitos doutrinadores apresentam distinções quanto ao sentido de probidade e moralidade, uma vez que ambas as expressões são mencionadas na Constituição Federal. Em verdade, a Constituição Federal não apresenta uma definição específica no tocante à improbidade administrativa, embora a ela se refira diversas vezes. Há, contudo, a previsão em seu artigo 37, de que as ações de improbidade administrativa resultarão nas seguintes sanções: suspensão dos direitos políticos, indisponibilidade dos bens, perda da função pública e o ressarcimento ao patrimônio público, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Segundo ODETE MEDAUAR[1], o princípio da moralidade não traduz um conceito de fácil compreensão, na medida em que não é possível compactar em um ou dois vocábulos a ampla gama de condutas e práticas desvirtuadoras das verdadeiras finalidades da Administração Pública. Aduz: “Em geral, a percepção da imoralidade administrativa ocorre no enfoque contextual; ou melhor, ao se considerar o contexto em que a decisão foi ou será tomada. A decisão, de regra, destoa do contexto, destoa do conjunto de regras de conduta extraídas da disciplina geral norteadora da Administração”. MARCELO FIGUEIREDO[2], por sua vez, ao distinguir moralidade de probidade assim dispõe: “O princípio da moralidade administrativa é de alcance maior, é conceito mais genérico, a determinar, a todos os ‘poderes’ e funções do Estado, atuação conforme o padrão jurídico da moral, da boa-fé, da lealdade, da honestidade. Já a probidade, que alhures denominamos ‘moralidade administrativa qualificada’, volta-se a particular aspecto da moralidade administrativa. Parece-nos que a probidade está exclusivamente vinculada ao aspecto da conduta (do ilícito) do administrador. Assim, em termos gerais, diríamos que viola a probidade o agente público que em suas ordinárias tarefas e deveres (em seu agir) atrita os denominados ‘tipos’ legais”. Destaca-se, contudo, que há aqueles que sustentam que as expressões moralidade e probidade se equivalem, compreendo-se a moralidade como um princípio apresentado no artigo 37, caput, da Constituição Federal e a improbidade como lesão ao referido princípio. Neste sentido, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO ensina que a associação de sentido das expressões torna-se inquestionável, aduzindo ser uma afirmação embasada pelos dicionaristas. Em sua visão, não haveria necessidade na busca por diferenças semânticas, já que ambas as expressões são utilizadas para o mesmo fim: a preservação do comportamento moral e leal no âmbito público. E por esta razão, conclui, diante do direito positivo, o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade[3]. Adotando-se, pois, a corrente defendida por José dos Santos Carvalho Filho, na medida em que os conceitos de probidade e moralidade se complementam, é possível concluir que as Leis 8.429/92 e 12.845/13 representam um conjunto de regras disciplinadoras da boa administração, em que o ato ímprobo, ou ordinariamente traduzindo-se em imoral, não pode ter espaço na atuação pública, seja pelo agente público ou pelo terceiro, pessoa física ou jurídica, que da máquina administrativa se utiliza. Neste sentido, o princípio da moralidade se traduz como uma bússola que age norteando a conduta do administrador no sentido de que, embora a prática administrativa esteja restrita à legalidade, esta terá que ser obrigatoriamente uma conduta de acordo com os ditames éticos e morais presentes atualmente na sociedade. 2.1.2 A Lei de Improbidade Administrativa – n. 8.429/92 A Lei 8.429/92 trouxe para o ordenamento jurídico um instituto legal de combate à improbidade administrativa, na medida em que, conforme ensina MARINO PAZZAGLINI FILHO, a improbidade promove um desvirtuamento de Estado quanto gestor público e afronta aos princípios nucleares da ordem jurídica, que se revela através da obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às custas do erário, bem como através o exercício nocivo das funções e empregos públicos e o favorecimento de determinadas pessoas em detrimento dos interesses da sociedade[4]. O combate à improbidade administrativa, contudo, não teve início com a Lei 8.429/92. Ao contrário, a improbidade administrativa, como ato ilícito, já vinha sendo prevista no ordenamento jurídico brasileiro na forma de outros institutos, tais como os “crimes de responsabilidade”, no tocante aos agentes políticos, e o enriquecimento ilícito no exercício do cargo ou função, no que se refere aos servidores públicos em geral. Em verdade, em Constituições anteriores, como as de 1946 e 1967, a preocupação do legislador resumia-se em combater o enriquecimento ilícito do agente público, cenário este que foi gradualmente sendo alterado com a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe conceitos mais abrangentes, tais como os princípios norteadores da Administração Pública. Foi assim que a Lei de Improbidade Administrativa consolidou-se como instrumento de aperfeiçoamento do controle administrativo indo mais além, na medida em que buscou disciplinar o que a Constituição Federal de 1988 chamou de moralidade administrativa, tratando este princípio como um dos princípios constitucionais impostos à atuação frente a máquina pública. A esse respeito, é o ensinamento de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO[5]: “A inclusão do princípio da moralidade administrativa na Constituição foi um reflexo da preocupação com a ética na Administração Pública e com o combate à corrupção e à impunidade no setor público. Até então, a improbidade administrativa constituía infração prevista e definida apenas para os agentes políticos. Para os demais, punia-se apenas o enriquecimento ilícito no exercício do cargo. Com a inserção do princípio da moralidade na Constituição, a exigência de moralidade estendeu-se a toda a Administração Pública, e a improbidade ganhou abrangência maior, porque passou a ser prevista e sancionada com rigor para todas as categorias de servidores públicos e a abranger infrações outras que não apenas o enriquecimento ilícito”. Desse modo, a Constituição de 1988, ao trazer expressamente os princípios constitucionais regentes da Administração na esfera pública, quais sejam, legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência ao lado do princípio da moralidade, buscou sedimentar a compreensão da prática administrativa não apenas sob o viés da legalidade estrita, como também efetivou a necessidade de respeito a princípios éticos, ou seja, o atendimento a regras que estabelecessem uma administração coerente e pautada na boa-fé. 2.1.3A lei “anticorrupção” – n. 12.846/13 A Lei 12.846/2013, popularmente conhecida como “Lei Anticorrupção”, entrou em vigor no primeiro semestre de 2014 e representou uma resposta do Poder Legislativo às diversas manifestações ocorridas no ano de 2013, em prol da transparência na Administração Pública e a luta contra a corrupção no Brasil, assim como a incorporação, ao direito brasileiro, de regras da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em 1997 e promulgada pelo Brasil pelo decreto n. 3.678/2000. Não obstante referida lei seja conhecida como "lei anticorrupção", a nova lei não se limitou aos atos vinculados à prática corruptiva, abrangendo, ademais, todas as condutas que atentam em face do patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O grande foco da norma em comento, como pontuado em sua exposição de motivos, é suprimir lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a administração no setor público, em especial por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos[6]. Desse modo, conforme será exposto ao tratar-se do sujeito ativo na Lei n° 12.846/13, esta se destaca ao responsabilizar objetivamente a pessoa jurídica, na seara cível e administrativa, por atos lesivos à Administração Pública, sendo irrelevante, para tanto, a incidência do agente público nas ações ilícitas descritas, o que, neste ponto, se diferencia quando comparada à Lei de Improbidade Administrativa. Cumpre registrar que, embora a lei 12.846/2013 não se traduza em verdadeira inovação legislativa, seus dispositivos legais apresentam mecanismos que, se corretamente utilizados, podem traduzir-se num aparato eficiente ao combate à improbidade, tais como a responsabilização objetiva da pessoa jurídica, bem como as sanções a ela impostas. 2.2 Os sujeitos ativos da improbidade administrativa De modo geral, além da obrigação que tem o administrador público de observar os princípios constitucionais, cujo descumprimento já ensejaria a necessária reprimenda judicial, o constituinte originário fixou, especificamente com relação à probidade administrativa, comandos para a regulamentação legal dos sujeitos, atos e sanções que envolvessem o ato ímprobo. Nesse sentido, analisar-se-á os sujeitos ativos especificamente no tocante às Leis 8.429/92 e a recente lei 12.846/13. 2.2.1 O sujeito ativo na Lei n. 8.429/92 A Lei de Improbidade considera duas categorias de sujeito ativo: o agente público, previsto em seu artigo 1º, assim como o terceiro, previsto no artigo 3º, que mesmo não configurando agente público, induz ou concorre para a prática do ato de improbidade, ou dele se beneficia. O artigo 1º, da Lei 8.429/92, assim disciplina: “Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei. Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”. Conforme dispõe o referido artigo, considera-se, primeiramente, sujeito ativo do ato de improbidade o agente público, servidor ou não, que comete as infrações disciplinadas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92. O artigo 2º teve a cautela de definir o conceito de agente público, na medida em que tratou ser “Todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”[7]. Esclarece MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que não é o fato de um indivíduo ser servidor público, ou seja, possuir com o Estado um vínculo de emprego, que o tornará apto a enquadrar-se como sujeito ativo da improbidade administrativa. Em verdade, salienta a autora, qualquer pessoa, no momento em que efetiva um serviço ao Estado, torna-se agente público, sejam eles: um agente político, como parlamentares; os próprios servidores públicos; os militares; assim como os particulares em colaboração com o Poder Público[8]. Questão tormentosa envolve a discussão se os agentes políticos respondem por improbidade administrativa. Sobre a sua sujeição à Lei 8.429/92, há duas correntes: a primeira, já superada, defendia que os agentes políticos apenas se submetiam ao crime de responsabilidade. A segunda corrente, que atualmente representa a posição do Supremo Tribunal Federal, ensina que os agentes políticos podem responder por crime de responsabilidade e também por improbidade administrativa, não configurando bis in idem. Esta demanda deve correr perante o juízo de primeiro grau, com a exceção do Presidente da República, que deverá responder somente pelo crime de responsabilidade, possuindo foro privilegiado. No tocante aos magistrados, membros Ministério Público e Tribunal de Contas, são também estes considerados sujeitos ativos de improbidade, uma vez que se adequam ao amplo conceito apresentado pelo artigo 2º da lei. Nesse sentido, inclusive, é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar que sejam considerados agentes comuns, sejam considerados agentes políticos, a Lei n. 8.429/92 é plenamente incidente em face de agentes supracitados por atos alegadamente ímprobos que tenham sido cometidos em razão do exercício de seu mister legal[9]. No conceito de agente público e sujeito ativo de improbidade também se incluem os notários e registradores, bem como médicos conveniados ao SUS, uma vez que exercem atividade delegada do Poder Público[10]. Na visão de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, os empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista, bem como as entidades beneficiadas por auxílio e subvenção estatal não se qualificam tecnicamente como agente públicos, falando-se, em verdade, em empregados privados. Contudo, são assim considerados para efeitos da Lei de Improbidade Administrativa, por haver expressa determinação legal[11]. O renomado autor faz, ainda, uma ressalva em relação aos empregados e dirigentes de concessionários e permissionários de serviços públicos. Sustenta que as pessoas citadas, não obstante estejam prestando serviço público por delegação, não se sujeitam à Lei de Improbidade, pois são remuneradas por tarifas, de modo que o Estado, como regra, não lhes destina benefícios, auxílios ou subvenções[12]. Por sua vez, também será sujeito ativo o terceiro, ou seja, toda a pessoa física ou jurídica que praticar o ato de improbidade administrativa, concorrer para a sua prática, ou dele se beneficiar. Para que o terceiro seja responsabilizado pelas sanções da Lei n. 8.429/92 é indispensável que seja identificado algum agente público como autor da prática do ato de improbidade. Assim, não é possível a propositura de ação de improbidade exclusivamente contra o particular, sem que haja a presença de agente público no polo passivo da demanda. Cumpre registrar, ainda, que existe corrente doutrinária, defendida por José dos Santos Carvalho Filho, que apenas titulariza a pessoa física como terceiro sujeito ao ato de improbidade, excluindo-se a pessoa jurídica. Na visão do autor, as condutas de indução e colaboração para a improbidade são próprias de pessoas físicas, na medida em que quanto à obtenção de benefícios indevidos, em que pese a possibilidade de pessoa jurídica ser destinatária deles, terceiro será o dirigente ou responsável que eventualmente coonestar com o ato dilapidatório do agente público[13]. A discussão quanto à responsabilização da pessoa jurídica pela Lei de Improbidade Administrativa, contudo, perdeu força diante da promulgação da Lei 12.846/13, uma vez que esta apresenta expressamente a pessoa jurídica como sujeito ativo, incluindo, destarte, mecanismos eficazes para sua responsabilização, como será visto a seguir. Por fim, faz-se importante ressaltar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça rechaça a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429/1992, exigindo, desse modo, a presença de dolo nas hipóteses de improbidade previstas em seus artigos 9º e 11, que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente, exigindo, ainda, ao menos a culpa nos termos do artigo.10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário. 2.2.2 O sujeito ativo na lei 12.846/13 A Lei Anticorrupção, n. 12.846/13, resultado do Projeto de Lei nº 39/2013, inaugurou no ordenamento jurídico uma nova fase no combate aos ilícitos cometidos contra a Administração Pública. Seu destaque reside no fato de que ela surgiu como solução a atender os anseios da população para a criação de mecanismos mais efetivos para coibir a corrupção no âmbito da esfera pública, especialmente no que se refere à responsabilização objetiva da pessoa jurídica envolvida na prática de ilícitos. O novo diploma legal estabelece, nesse sentido, meios de responsabilizar a pessoa jurídica independentemente da responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de quaisquer outras pessoas que tenham concorrido ou participado da prática do ato ilícito, com previsão de sanções judiciais e administrativas, havendo a previsão, inclusive, de dissolução compulsória da pessoa jurídica. Nesse sentido, o artigo 1° da referida lei estabelece que “esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”. Conforme dispõe o referido diploma legal, são considerados como sujeito ativo as sociedades empresárias e as simples, personificadas ou não, não importando a forma em que se organizam ou o modelo societário adotado, incluindo-se, ademais, as fundações, associações, assim como sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que por período temporário. Neste sentido, impende destacar que no tocante ao conceito de pessoa jurídica responsável pelo do ato de corrupção, não houve exclusão de empresas públicas e sociedades de economia mista. Por esta razão, é possível afirmar que, também as pessoas jurídicas de direito privado pertencentes à Administração Indireta, estarão sujeitas à Lei nº 12.846/2013 quando a prática de um de seus agentes resultar em lesão à pessoa de direito público[14]. No que tange à responsabilidade objetiva apresentada pela Lei, MARÇAL JUSTEN FILHO[15] explica que não se estabeleceu uma “corrupção objetiva”, mas sim a lógica de que, consumada a infração em virtude da conduta reprovável de um indivíduo, haverá a possibilidade de produzir-se a responsabilização da pessoa jurídica. Objetiva será a responsabilidade da pessoa jurídica, portanto, uma vez que bastará o vínculo desta com o infrator para sua configuração.   Ademais, dentre os diversos mecanismos apresentados pela Lei 12846/2013 no combate à corrupção, faz-se importante registrar a multa, no valor de 0,1% a 20% da receita bruta da pessoa jurídica referente ao exercício anterior à instauração do processo administrativo, assim como a criação de um Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), que reunirá e dará publicidade às sanções impostas aos sujeitos ativos pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diante das ponderações apresentadas pela Lei 12.846/2013 no tocante ao sujeito ativo do ato ímprobo, é possível observar que o referido diploma legal revela uma importante mudança, expandindo mecanismos punitivos para além do Direito Penal. O doutrinador GUILHERME BRENNER LUCCHESI[16] pontua que o legislador, na década de 90, utilizou-se do Direito Penal como grande escudo para a busca da lisura na máquina pública, de modo que a Lei Anticorrupção buscou abandonar essa visão restrita, na medida em que reconheceu a existência de mecanismos diversos e mais adequados ao sistema jurídico no combate à improbidade na Administração Pública. 3 Conclusão A análise dos sujeitos ativos previstos na Lei n. 8.429/92 e na Lei n. 12.846/13 demonstra que o legislador tem buscado soluções e evoluído com as críticas no que se refere ao combate à improbidade na Administração Pública. É certo que a Lei de Improbidade representou um grande avanço à época de sua promulgação, porém com o desenvolvimento das atividades empresárias e o evoluir do Estado, rotineiramente diversas práticas imorais perante a máquina pública já não eram responsabilizadas, seja por se beneficiarem de omissões da lei, bem como pela inoperância nas práticas de investigação. Neste ponto, destaca-se a responsabilização da pessoa jurídica pelo ato de improbidade, objeto de eterna divergência doutrinária, conforme exposto. Por esta razão, a Lei Anticorrupção surgiu como um avanço, na medida em que trouxe como uma de suas inovações a expressa necessidade de responsabilização das pessoas jurídicas, que, outrora, eram utilizadas como 'escudo' por pessoas naturais para prática de atos ímprobos. Destaca-se que muitos outros foram os aspectos relevantes da Lei 12.846/13, como a previsão da desconsideração da pessoa jurídica, o estabelecimento de penalidades mais objetivas e severas, a criação dos cadastros das empresas já responsabilizadas, dentre outras inovações. O que se destaca com o breve estudo dos sujeitos ativos das leis apresentadas é que o legislador tem se mostrado eficaz na previsão do maior contingente possível de pessoas físicas e jurídicas passíveis de responsabilização, efetivando, desse modo, os objetivos traçados pela Constituição Federal, especialmente no que se refere à atividade concreta e imediata do Estado, que sob o regime jurídico de direito público, deve ter como prioridade a consecução dos interesses coletivos. Portanto, a Carta Constitucional de 1988, quando estabeleceu o princípio da moralidade administrativa como vetor da prática da Administração Pública, buscou consagrar também a expressa necessidade de proteger a moralidade e a responsabilização do administrador público amoral ou imoral. Conclui-se, desse modo, que as Leis n. 8.429/92 e na Lei n. 12.846/13, diante de suas previsões, têm atendido aos fins propostos, representando um conjunto de regras disciplinadoras da boa administração, em que a ação ímproba não pode ter espaço na atuação pública, restando apenas às instituições responsáveis a devida aplicação das espécies legislativas, colocando-se sempre como prioridade o interesse coletivo em relação ao interesse individual, a fim de proporcionar aos administrados uma perfeita vivência em sociedade.
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Notas acerca da aplicação do prazo trienal (ou quinquenal) nas ações contra a Fazenda Pública
Tema que emana divergências em sede doutrinária é o referente ao prazo de prescrição da pretensão reparatória de danos contra a Fazenda Pública. Situando-se nesse cenário, o presente trabalho objetiva discutir tal temática através da apresentação dos argumentos prós e contra a aplicação dos prazos quinquenal e trienal insculpidos nos diplomas legislativos, demonstrando a suposta antinomia de seus preceitos, e por fim analisar os argumentos firmados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, quando da pacificação da matéria.
Direito Administrativo
Introdução Tema que emana divergências em sede doutrinária é o referente ao prazo de prescrição da pretensão reparatória de danos contra a Fazenda Pública. Situando-se nesse cenário, o presente trabalho objetiva discutir tal temática através da apresentação dos argumentos prós e contra a aplicação dos prazos quinquenal e trienal insculpidos nos diplomas legislativos, demonstrando a suposta antinomia de seus preceitos, e por fim analisar os argumentos firmados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, quando da pacificação da matéria. Deste modo, para uma melhor compreensão da temática analisada faz-se necessário compactar o presente artigo em três partes. A primeira parte visa pontuar as noções do instituto da prescrição buscando a sua definição e sua importância no ordenamento jurídico pátrio. Versa, ainda, acerca das legislações referentes ao tema da prescrição no ordenamento jurídico nacional ao longo dos anos a fim de contextualizá-las com o momento contemporâneo. A segunda parte do trabalho tem por fito demonstrar os argumentos prós e contra o prazo trienal e o quinquenal através da doutrina. Analisaremos o conteúdo do princípio da supremacia do interesse público a fim de buscar uma possível relativização do mesmo quando da aplicação do prazo quinquenal, haja vista a colisão deste com o princípio do acesso a justiça (prazos maiores tendem a ser favoráveis a prestação jurisdicional do cidadão). Nesse ponto, analisaremos a teoria da ponderação de valores e o acerto de se preservar o prazo prescricional quinquenal como uma garantia do sujeito face ao princípio da supremacia do interesse público. Deve ser destacado também o argumento favorável a aplicação do prazo trienal referente ao conteúdo impositivo do princípio da supremacia do interesse público. Assim, prazos menores tendem a favorecer a Fazenda Pública quando seus interesses estão postos em juízo. Igualmente, deve ser analisado o art. 10 do Decreto 20.910/32 como um possível argumento favorável à aplicação do prazo trienal. Na terceira parte do trabalho traremos à baila decisões do STJ quanto à matéria e a mudança de concepção do referido tribunal quando da aplicação do prazo quinquenal em ações reparatórias contra a Fazenda Pública. Ao cabo, fixaremos nossa ótica no acórdão paradigma do STJ que influenciou todas as decisões subsequentes, através do cotejo com a teoria do ordenamento, na visão de Noberto Bobbio, quanto à ocorrência de antinomias no ordenamento jurídico. 1. Primeira aproximação do problema: Noções gerais acerca do instituto da prescrição Em face do caráter temporal, atrelado à noção de prescrição, a Ciência Jurídica, por ser o ramo científico competente à dissipação dos conflitos sociais, desde seus primórdios, incorporou institutos premeditados à estabilização jurídica, isto é, instrumentos capazes de resolver a problemática sub judice pelo simples decurso do tempo. Em outras palavras, é o Direito acolhendo os efeitos do tempo. Nesse panorama, durante largo período a doutrina jurídica digladio-se na tentativa de distinguir o instituto da prescrição do da decadência, promovendo debate acirrado que se espraiou pelas legislações, tendo seu término somente com o advento do Código Civil de 2002, cujas linhas incorporou balizas conceituais que permitiram promover a identificação das situações enquadradas sob o manto da decadência ou da prescrição. Na doutrina, insurge-se o trabalho da lavra do ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade da Paraíba, Agnelo Amorim Filho, sob a rubrica “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis”. Nesse trabalho, o autor acentua que o Direito não apenas atribui relevância jurídica ao aspecto temporal (estabilização das relações jurídicas), isto é, quando uma pretensão não é exercitável pelo titular, mas também, de igual modo, naqueles casos em que se configura uma violação jurídica[1]. Apurando esse sentido, Câmara Leal assevera que “quando o direito está sendo normalmente exercido, ou não sofre qualquer obstáculo por parte de outrem, não há ação exercitável. Mas se o direito é desrespeitado, violado ou ameaçado, ao titular incumbe protegê-lo e, para isso, dispõe da ação.” [2] Deste modo, a discussão em torno da prescrição não surge enquanto não há lesão de um Direito. Desta afirmativa depreende-se que a prescrição é a perda da pretensão de invocar a tutela estatal para resguardar o direito ora lesado. Daí dizer que a prescrição detêm duas dimensões, quais sejam, a objetiva, por fundar-se no aspecto temporal e a subjetiva, por ser atrelada a conduta omissiva do titular do direito em perecimento.[3] Seguindo essa trilha, Luís Roberto Barroso enfatiza que: “A ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça(…) Em nome da segurança jurídica consolidaram-se institutos desenvolvidos historicamente, com destaque para a preservação dos direitos adquiridos e da coisa julgada. É nessa mesma ordem que se firmou e difundiu o conceito de prescrição, vale dizer, da estabilização das situações jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo.”[4] É fácil inferir, portanto, que a prescrição se mostra como um dos temas, na seara jurídica processual, de relevância singular, haja vista que é um dos óbices a ser vencido àqueles que pretendem ingressar em sede processual para resguardar o seu Direito. Na atual sistemática do Código de Processo Civil, ainda que o reconhecimento da prescrição enseje a extinção do processo com resolução de mérito, verdadeiro feixe de estabilização jurídica, impondo seu reconhecimento de ofício, pelos magistrados, não se olvida que, para parte da doutrina tal conclusão se encerra antinômico, haja vista que a prescrição diz respeito a direitos subjetivos patrimoniais, e, por assim dizer, não deveriam ser passíveis de reconhecimento ex officio[5]. Daí porque a relevância do instituto prescricional projeta-se a todos os campos normativos do Direito, encontrando seu nascedouro, ainda que indiretamente, na Constituição da República, por meio do seu art. 5, XXXVI, quando dispõe da garantia da segurança jurídica, por meio da inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico e da coisa julgada; no Direito Penal, quando a Constituição Federal veda punições de caráter perpétuo; no Direito Tributário, ao impor a disciplina da prescrição tributária, em exclusividade, à Lei Complementar, compondo rigidez ao Sistema Tributário. Em seara administrativa, a Constituição Federal dispõe parágrafo quinto, do art. 37, acerca dos limites temporais que deverão incidir em determinados casos. Assim, confere à lei a competência para estabelecer os prazos de prescrição para ilícitos quando praticados por seus agentes públicos, que causem prejuízos ao erário, fazendo ressalva, todavia, aos casos das ações de ressarcimento a favor da Fazenda Pública, que estarão revestidas pelo manto da imprescritibilidade. Para aprimorar a análise dessa questão, buscar-se-á no próximo capítulo a explanação histórica das legislações que versaram sobre o instituto. 1.1. Incurso histórico nas legislações que versam acerca da prescrição contra a Fazenda Pública De início deve ser destacado que no âmbito das relações entre particulares, o Código Civil de 1916 estabelecia regras acerca da prescrição diferentes das existentes hoje no ordenamento jurídico. Isso porque elencava prazos prescricionais maiores quando o assunto envolvia ações pessoais. É o que se vê do seu art. 177, in verbis: “Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas.” Tradicionalmente, quando a Fazenda Pública encontrava-se representada em juízo o legislador brasileiro sempre prezou por estipular prazos prescricionais menores, sob o fundamento que os interesses em jogo possuíam natureza pública. Assim, não é por outra razão que o diploma civil de 1916 já previa uma redução do prazo prescricional quando a Fazenda Pública estivesse litigando. In literis: “Art. 178. Prescreve: § 10. Em cinco anos: VI. “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, e bem assim toda e qualquer ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal; devendo o prazo da prescrição correr da data do ato ou fato do qual se originar a mesma ação.” É de se notar que mesmo o legislador cível estipulando prazos prescricionais menores quando a Fazenda Pública estivesse em juízo, houve a introdução no ordenamento jurídico brasileiro do Decreto n.º 20.910/32 que versava acerca da prescrição quinquenal. Quis o legislador pátrio cristalizar as normas referentes à prescrição em face da Fazenda Pública em um único corpo normativo, tratando de uma maneira específica algo que já era tratado no Código Civil. In verbis: “Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.”(grifos nossos) Pela redação do artigo acima transcrito percebe-se que o legislador achou por bem enfatizar que todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Pública, seja qual for sua natureza prescreve em cinco anos, o que não diferencia, a grosso modo, as ações pessoais e reais, como anteriormente previsto pelo Código Civil de 1916. Portanto, com a nova disciplina, tanto as ações pessoais, quanto as ações reais prescreviam após o lapso temporal de cinco anos. A posteriori foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, como forma de colmatar a lacuna existente acerca da incorporação das autarquias à incidência da prescrição quinquenal, o Decreto n.º 4.597/42 que, no seu artigo 2º, dispôs acerca da temática ora apresentada: “Art. 2º O Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição qüinqüenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os mesmos.” (grifos nossos). Nessa mesma linha de intelecção houve a promulgação no ano de 1997 da Lei n.º 9.494 que ampliou à incidência da prescrição quinquenal às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Com o advento do atual Código Civil, contudo, houve celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca de qual prazo prescricional aplicar quando a Fazenda Pública estivesse litigando em juízo em ações indenizatórias. Isso porque o diploma cível estipulou no seu artigo 206, § 3º, que as ações indenizatórias prescreveriam em 3 anos.  Assim, é de se notar que houve uma redução significativa no estabelecimento dos prazos prescricionais, outrora era vintenária – na vigência do código civil de 1916, e logo após passou a ser trienária. Contudo, frise-se que a prescrição era vintenária no Código de 1916 quando não se referia a Fazenda Pública, pois como dissertado em linhas anteriores de acordo com o art.178 parágrafo 10ª a prescrição contra os entes fazendários já se submetia ao prazo quinquenal. Surge a indagação, assim, de qual prazo prescricional deve prevalecer quando a Fazenda Pública está litigando em juízo. Deste modo, a doutrina e a jurisprudência elencaram, respectivamente, teses que propugnam pela aplicação do prazo trienal e pela aplicação do prazo quinquenal. É o que se verá na segunda parte do presente trabalho. 2. A prescrição trienal e o argumento da prevalência do princípio da supremacia do interesse público Posto estas iniciais convém discorrer acerca da tese da aplicação do prazo prescricional trienal como fundamento de que prazos reduzidos atenderiam de forma mais satisfatória ao interesse público por isso deveriam prevalecer sobre o prazo quinquenal. Nessa esteira é o posicionamento de José dos Santos Carvalho Filho: “Se a ordem jurídica sempre privilegiou a Fazenda Pública, estabelecendo prazo menor de prescrição da pretensão de terceiros contra ela, prazo esse fixado em cinco anos pelo Decreto nº 20.910/32, raia ao absurdo admitir a manutenção desse mesmo prazo quando a lei civil, que outrora apontava prazo bem superior àquele, reduz significativamente o período prescricional, no caso para três anos (pretensão à reparação civil). Desse modo, se é verdade, de um lado, que não se pode admitir prazo inferior a três anos para a prescrição da pretensão à reparação civil contra a Fazenda, em virtude de inexistência de lei especial em tal direção, não é menos verdadeiro, de outro, que tal prazo não pode ser superior, pena de total inversão do sistema lógico-normativo; no mínimo, é de aplicar-se o novo prazo fixado agora pelo Código Civil.”[6] O autor ainda refuta a ideia de que o critério de lei especial prevalece sobre a geral (argumento defendido pela jurisprudência então vigente) não deve ser aplicado, nos dizeres de José dos Santos Carvalho Filho: “Interpretação lógica não admite a aplicação, na hipótese, das regras de direito intertemporal sobre lei especial e lei geral, em que aquela prevalece a despeito do advento desta. A prescrição da citada pretensão de terceiros contra as pessoas jurídicas públicas e as de direito privado prestadoras de serviços públicos passou de quinquenal para trienal.”[7] Nessa mesma linha de intelecção é o posicionamento de Leonardo Carneiro da Cunha que na sua obra intitulada “A Fazenda Pública em juízo” que propugna pela aplicação do prazo trienal em detrimento do prazo quinquenal sob o argumento contido no art. 10 da Lei n.º 20.910 que dispõe que:  "Art. 10. O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras." O permissivo legal autorizaria, nos casos em que se estabelecessem prazos menores em favor da Fazenda Pública, a aplicação desses prazos quando em conflito com o prazo quinquenal estabelecido no mesmo Decreto. Seria, destarte, a aplicação do prazo trienal contido no Código Civil por exclusão, o que vale dizer que prazos maiores não seriam aplicados quando existissem prazos menores contidos em leis e regulamentos. Diante desse argumento, pondera ainda o autor que o escopo das normas que estão no sistema jurídico é atribuir um prazo menor à Fazenda Pública, razão pela qual o prazo geral aplicado a todos indistintamente (CC/2002) deve prevalecer também na seara das pessoas jurídicas de Direito Público- Por observância do disposto no art. 10 do Decreto nº 20.910/32[8]. Destaque-se, ainda, que a discussão em torno de qual prazo prescricional deve ser aplicado nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública, perpassou as fronteiras do direito administrativo e alcançou searas de outros “direitos”, dentre eles, o civilista. Destarte, imperioso se faz ressaltar que civilistas a exemplo de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias defendem o argumento da aplicação do prazo trienal. Nesse sentido são deles os seguintes dizeres: “(…) não há justificativa para um tratamento diverso para regulamentar as pretensões reparatórias contra o Estado, devendo se submeter ao prazo trienal – que foi estabelecido em razão da especificidade da pretensão de direito material subjacente. Considere-se, inclusive, que na vigência do Código Civil de 1916 o Estado mereceu prazo diferenciado, não podendo se submeter a um prazo tão elástico (que era de vinte anos). Ora, se, hodiernamente, nem mesmo os particulares podem se submeter a prazos tão alongados, merecendo diminuição para três anos, esta redução haverá de atingir, também, as pretensões ressarcitórias dirigidas à Fazenda Pública.” [9] 2.1. A prescrição quinquenal e o argumento do acesso à justiça  Os defensores da aplicação do prazo trienal elegem como fundamento primus de suas argumentações a prevalência do interesse público sobre o privado, posto que quando da aplicação do prazo trienal estar-se-ia favorecendo os interesses do ente público. Pontue-se, no entanto, que a Carta Magna de 1988 detém carga axiológica em consonância com os ditames da sociedade moderna. O que vale dizer que princípios com fundamentos éticos foram incorporados à Constituição Federal de tal maneira que: “dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte disso servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios – a) condensar valores b) dar unidade ao sistema, c) condicionar a atividade do intérprete. [10] Nesse contexto deve ser destacado que a Constituição Brasileira consagra no seu corpo normativo o princípio da inafastabilidade da jurisdição consubstanciado no art. 5º, inciso XXXV, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Diante desse cenário, sobressai-se a seguinte indagação: a aplicação do prazo prescricional trienal, em detrimento do prazo quinquenal estaria, ou não, mitigando o acesso à justiça ao cidadão? É sabido que a administração pública é regida por dois alicerces, quais sejam a supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público[11]. Esses princípios correspondem às prerrogativas e as sujeições da Administração Pública, compondo o regime jurídico administrativo[12]. Surge, nesse esquema, o conflito do princípio da supremacia do interesse público (aplicação do prazo trienal) com o princípio do acesso à justiça (aplicação do prazo quinquenal). Deste modo, socorre-se a técnica de ponderação, que é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios, contrapondo-os em uma “balança” para se estabelecer qual desses deve prevalecer. Nesse sentido, acentua Juarez Freitas que:  “o princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direitos fundamentais.”[13] Na mesma linha de intelecção Gustavo Binenbojn acentua que: “o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível. O instrumento deste raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade.”[14] Seguindo os ensinamentos de Luís Roberto Barroso a técnica de ponderação de valores é a ferramenta ideal ao exercício do princípio da proporcionalidade que se bifurca em três subprincípios, quais sejam: a) Da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo poder público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para o atingimento dos fins visados; c) proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos do cidadão. [15] Buscando a técnica de ponderação de princípios estar-se-ia sobrepondo um princípio em detrimento do outro através do princípio da proporcionalidade e aplicando o princípio que melhor se enquadre ao caso concreto. Assim, a contrário sensu, Rogério Ramos Batista em capítulo do seu trabalho que versa a respeito da prescrição e do acesso à justiça entende que a utilização do prazo prescricional trienal: “(…) ainda é bastante razoável, possibilitando ao titular do pretenso direito lesado o pleno socorro da via judicial.(…) Dessa forma haverá uma aplicação mais equilibrada dos princípios da inafastabilidade da jurisdição e da segurança jurídica, para que as controvérsias não se prolonguem demasiadamente, nem se perpetuem.[16] Em verdade, estamos aqui diante de garantias recíprocas que podem ser metaforicamente comparadas a “armas” opostas: uma a espera do autor e a outra a serviço do réu. Porquanto o próprio conceito de prescrição visa justamente harmonizar aqueles princípios, pois a estipulação de um prazo que seja razoável para o exercício de uma pretensão jamais pode ser considerada como impedimento de acesso à justiça, mas necessário ao princípio da segurança jurídica[17]. 3. A aplicação do prazo quinquenal nos recentes julgados do STJ A celeuma jurisprudencial concernente a qual prazo prescricional deve prevalecer em ações indenizatórias contra a Fazenda Pública aparenta estar pacificada em solo pátrio. Isto porque antes do final do ano de 2012 o STJ decidia de maneira divergente a questão da aplicação do prazo prescricional. O que vale dizer que ora se posicionava pela aplicação do prazo trienal, em outros momentos decidia seus julgados com argumentos condizentes a aplicação do prazo quinquenal. No final do ano de 2012 solucionando a questão de qual prazo prescricional deveria prevalecer o STJ julgou a presente controvérsia em um REsp 1.251.993/PR. Tratava-se de um recurso especial que foi interposto pelo município de Londrina contra acordão do Tribunal de justiça do Estado do Paraná em ação de responsabilidade civil movida por particular objetivando o ressarcimento do dano em virtude da queda de uma árvore situada em via pública sobre seu veículo. Não conformada com o acordão prolatado pelo egrégio Tribunal de justiça do Estado do Paraná que acolheu a tese da prescrição trienal[18], a Fazenda Pública do Município do Paraná ingressa em sede recursal postulando o acolhimento do prazo quinquenal: “Nas razões de recurso especial, o recorrente sustenta, além de divergência jurisprudencial, que o aresto recorrido violou os arts. 206, parágrafo 3º, inciso V, e 2.028 do Código Civil, e 1º e 10 do Decreto 20.910/32. Alega, em síntese, que "o prazo de prescrição para as ações pessoais em art. 1º do Decreto nº 20.910/32, no art. 2º do decreto-lei nº 4.597/42 e no art. 1º-C, Lei nº 9.494/97 continua existente em nossa ordem jurídica, entretanto, somente possuindo aplicação naquelas hipóteses em que o mesmo prazo para os particulares forem igual ou superior. Quando tal não ocorrer, deve-se entender que o prazo de prescrição trienal previsto no art. 206, § 3º do Código Civil aplica-se também aos fatos a serem ajuizados contra a Fazenda Pública" (fl. 172). Requer o provimento do recurso especial para reformar o acórdão recorrido.”(…) O recurso especial foi admitido pela Corte a quo. Nesta Corte Superior, o recurso especial foi selecionado pelo Relator e submetido a julgamento pelo novo procedimento do artigo 543-C do Código de Processo Civil, regulamentado pela Resolução STJ n. 8/2008.[19] ( grifos nossos) Com efeito, o recurso especial interposto pela Fazenda Pública munícipe foi admitido e o seu julgamento serviu de paradigma que influenciou todas as decisões subsequentes sobre a matéria perante o STJ. Nesse contexto, imperioso se faz demonstrar, no presente artigo, os principais pontos da ementa do REsp 1.251.993/PR, “literis”: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ARTIGO 543-C DO CPC). RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESCRIÇÃO. PRAZO QUINQUENAL (ART. 1º DO DECRETO 20.910/32) X PRAZO TRIENAL (ART. 206, § 3º, V, DO CC). PREVALÊNCIA DA LEI ESPECIAL. ORIENTAÇÃO PACIFICADA NO ÂMBITO DO STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. A controvérsia do presente recurso especial, submetido à sistemática do art. 543-C do CPC e da Res. STJ n 8/2008, está limitada ao prazo prescricional em ação indenizatória ajuizada contra a Fazenda Pública, em face da aparente antinomia do prazo trienal (art. 206, § 3º, V, do Código Civil) e o prazo quinquenal (art. 1º do Decreto 20.910/32). 2. O tema analisado no presente caso não estava pacificado, visto que o prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública era defendido de maneira antagônica nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Efetivamente, as Turmas de Direito Público desta Corte Superior divergiam sobre o tema, pois existem julgados de ambos os órgãos julgadores no sentido da aplicação do prazo prescricional trienal previsto no Código Civil de 2002 nas ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública.(…)” ( grifos nossos) Nesse sentido, é de se notar que o próprio Tribunal reconhece a antinomia no ordenamento jurídico pátrio que ensejou decisões divergentes, ora pela aplicação do prazo trienal, em outros momentos pela aplicação do prazo quinquenal. Com efeito, o Tribunal superior se posicionou a respeito do tema de maneira a acolher o prazo quinquenal, argumento defendido em sede de recurso especial interposto pela Fazenda Pública do Paraná. “In Verbis”: “ (…)Entretanto, não obstante os judiciosos entendimentos apontados, o atual e consolidado entendimento deste Tribunal Superior sobre o tema é no sentido da aplicação do prazo prescricional quinquenal – previsto do Decreto 20.910/32 – nas ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública, em detrimento do prazo trienal contido do Código Civil de 2002. 4. O principal fundamento que autoriza tal afirmação decorre da natureza especial do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição, seja qual for a sua natureza, das pretensões formuladas contra a Fazenda Pública, ao contrário da disposição prevista no Código Civil, norma geral que regula o tema de maneira genérica, a qual não altera o caráter especial da legislação, muito menos é capaz de determinar a sua revogação. (…) A previsão contida no art. 10 do Decreto 20.910/32, por si só, não autoriza a afirmação de que o prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública foi reduzido pelo Código Civil de 2002, a qual deve ser interpretada pelos critérios histórico e hermenêutico.(…) No caso concreto, a Corte a quo, ao julgar recurso contra sentença que reconheceu prazo trienal em ação indenizatória ajuizada por particular em face do Município, corretamente reformou a sentença para aplicar a prescrição quinquenal prevista no Decreto 20.910/32, em manifesta sintonia com o entendimento desta Corte Superior sobre o tema. 8. Recurso especial não provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.”(grifos nossos)[20] Nesse esteio, o Tribunal superior demonstrou em seu julgado, argumentos defendidos pela doutrina quanto à aplicação do prazo quinquenal. Destarte, citando em sua decisão o posicionamento de Rui Stoco pela aplicação do prazo quinquenal. “In verbis”: "Segundo dispunha o art. 178, §10, VI, do CC/16, prescrevia em cinco anos qualquer direito contra a Fazenda Pública. O atual Código Civil em vigor não repetiu essa disposição, restando a indagação acerca do prazo prescricional para o Poder Público. A omissão foi intencional, pois o Código Civil não rege as relações informadas pelo direito público, entre o administrador e o administrando. Ademais, ainda que assim não fosse, cabe obtemperar que a lei geral não revoga a legislação especial. Portanto, a ação de reparação do dano contra a Fazenda Pública, seja a que título for, prescreve em cinco anos. (…)E para não deixar qualquer dúvida a respeito, o Dec. 20.910, de 06.01.32, preceitua que as ações contra as pessoas jurídicas de direito público prescrevem em cinco anos. Pôs a lume, assim, o princípio da actio nata. Não se pode mesmo admitir que os direitos defendidos por particulares sejam imprescritíveis, mormente quando se tem em vista o claro propósito do legislador de editar o Dec. 20.910, de 06.01.32, que foi o de conceder estabilidade às relações entre a Administração e seus administrados e servidores, em prol, inclusive, dos interesses maiores da própria coletividade, independentemente de considerações ligadas a noções de injustiça ou iniquidade da solução legal. (("Tratado de Responsabilidade Civil". Editora Revista dos Tribunais, 7ª Ed. – São Paulo, 2007; págs. 207/208)[21] (grifos nossos) No que concerne ao argumento defendido pela doutrina quanto ser aplicável o prazo trienal porque o permissivo legal constante no art. 10 decreto. 20.910 autoriza tal aplicação, a jurisprudência do Tribunal Superior demonstra que esta interpretação está equivocada através da argumentação propugnada por Marçal Justen Filho: “(…) O art. 1° do Decreto n. 20.910 veiculou regra especial para a prescrição em face da Fazenda Pública. O art. 10 restringiu-se a determinar que o referido dispositivo não se aplicaria em caso de existência à época de outros prazos mais reduzidos. Ora, a superveniência do Código Civil não alterou a natureza especial da regra do art. 1º do Dec. N. 20.910. Logo, esse dispositivo continua em vigor. Mas, aplicando a interpretação adotada pelo v. acórdão do STJ para o art. 10 do mesmo diploma, o dito art. 1º perderia a vigência. Assim se passaria porque o art. 1º do Decreto n. 20.910 não seria aplicável em hipóteses alguma. Esse resultado hermenêutico é descabido. Tem de reputar-se que a regra especial do art. 1º do Decreto n. 20.910 apenas perderá a sua vigência em virtude da edição superveniente de uma norma especial que assim o determine expressa ou implicitamente. Ademais, a consagração da prescrição trienal para as dívidas da Fazenda Pública acabaria gerando efeitos desastrosos, eis que idêntico prazo teria de ser adotado para os seus créditos. Seria um despropósito a existência de prazos distintos para as dívidas e para os créditos da Fazenda. Portanto, a interpretação questionada acabaria conduzindo à redução do prazo prescricional para os créditos fazendários." [22] ( grifos nossos) Destaque-se, igualmente que a Superior Corte já em 2010 quando decidia de maneira divergente a respeito do tema, sustentou em seu julgado a aplicação do prazo prescricional quinquenal a partir da argumentação de que: (…) “o Código Civil é um "diploma legislativo destinado a regular as relações entre particulares, não tendo invocação nas relações do Estado com o particular".[23] A partir do julgamento do REsp. nº 1.251.993 a Superior Corte acolheu o posicionamento da aplicação do prazo quinquenal e por assim dizer o principal argumento que ela se reveste é que por ser o Decreto 20.910/32 norma especial, devendo prevalecer sobre a norma geral (Código Civil de 2002). Desta forma, nota-se que o STJ se revestiu do critério da especialidade da norma defendido por Norberto Bobbio e é a matéria que se demonstrará em linhas subsequentes. 4. Do critério de resolução de antinomias sob a ótica da teoria da norma de norberto bobbio – argumentação defendida pelo stj. Como dissertado em linhas anteriores o STJ defende atualmente a aplicação do prazo prescricional quinquenal em detrimento do prazo trienal acobertado anteriormente. O principal argumento que a Superior Corte se reveste para resolução da presente antinomia é o critério lei especial derroga lei geral – “lex specialis derrogat generalis”. Destarte segundo ensinamentos de Norberto Bobbio, “a situação de normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontram os juristas de todos os tempos, e teve uma denominação própria característica: antinomia”. Sendo assim, Bobbio defende a antinomia como sendo: “aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento.” Mas para Bobbio a definição não está completa, porquanto são necessárias duas condições, quais sejam: as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico e devem ter o mesmo âmbito de validade.[24] A presença de antinomias em um sistema jurídico é um defeito que segundo Bobbio o intérprete deve eliminar, destarte: “Como antinomia significa o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um sistema normativo, o encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a eliminação do inconveniente não poderá consistir em outra coisa senão na eliminação de uma das duas normas”[25] Com efeito, faz-se necessário a solução das antinomias que segundo o autor pode ser resolvido pelos critérios: cronológico, hierárquico e da especialidade. O presente estudo limita-se a discorrer a respeito da solução de conflitos através da regra da especialidade, haja vista que foi o critério utilizado pela Superior Corte. Sendo assim, quando ocorre o conflito entre duas normas uma geral e outra especial prevalece a segunda, isto por que: “A razão do critério não é obscura: lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente. A passagem de uma regra mais extensa( que abrange um certo genus) para uma regra derrogatória menos extensa (que abrange uma species do genus) corresponde a uma exigência fundamental de justiça, compreendida como tratamento igual das pessoas que pertencem à mesma categoria”(…) Entende-se, portanto, por que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significa paralisar esse desenvolvimento.”[26]. Ainda nos ensinamentos do autor a situação de antinomia criada por uma lei especial e uma lei geral corresponde a um tipo de antinomia denominada total-parcial. Tendo em vista que a solução de antinomias por esse critério não acontece com a eliminação total de uma das normas incompatíveis, mas tão somente daquela parte da lei geral que se mostra incompatível com a lei especial.[27] Destaque-se, outrossim, que pode existir conflito dos critérios, dentre eles existe o conflito entre o critério da especialidade e o cronológico:  “Esse conflito tem lugar quando uma norma anterior- especial é incompatível com uma norma posterior geral. Tem-se o conflito porque, aplicando o critério de especialidade, dá-se preponderância à primeira norma, aplicando-se o critério cronológico, dá-se prevalência à segunda. Também aqui foi transmitida uma regra geral que soa assim: “Lex posterior generalis non derrogat priori speciali” Com base nessa regra, o conflito entre critério de especialidade e critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente.”[28] Desta forma, há no presente tema correlação intrínseca entre o posicionamento do STJ com a teoria de Norberto Bobbio de resolução de antinomias. Assim, por via de consequência, partindo dessas premissas o decreto n. 20.910 por ser norma especial deve prevalecer deve prevalecer sobre a norma geral (Código Civil 2002). Conclusão De tudo que fora exposto, podemos concluir que muito embora haja divergência doutrinária a respeito da aplicação do prazo prescricional em sede publicista, os argumentos que a Superior Corte se revestem para afastar a incidência do prazo prescricional trienal coadunam com o cenário jurídico atual, porquanto a estipulação de um prazo prescricional estaria por atender não somente ao interesse fazendário mas também aos interesses da parte processual hipossuficiente ao pleitear seus direitos. De igual modo, o princípio da supremacia do interesse público, ao resguardar também o interesse da sociedade, deve propugnar por prazos proporcionais, sobretudo ao considerar que a Constituição Federal já confere ao Estado a imprescritibilidade das ações de ressarcimento. A interpretação a guiar os aplicadores deve assegurar um mínimo de garantias de modo a evitar que a atuações abusivas imperem sobre o interesse público. Em outras palavras, o próprio Direito, como ferramenta de controle da atividade do Poder, isto é, como garantia frente a uma decisão do Poder Público deve munir-se de mecanismos argumentativos a fim de afastar a aplicação restrita do prazo trienal. Atuando assim, a aplicação do prazo prescricional quinquenal estaria indo ao encontro das garantias constitucionais, não impedindo, por certo, o acesso à justiça, tal como ocorreria nas hipóteses de redução do prazo, haja vista que a previsão quinquenal estaria no meio termo do que poderia ser entendido como razoável para a propositura de uma ação. A razoabilidade aqui indicada, no entanto, deve atender os parâmetros próprios de aplicação da prescrição, tal como indicados pela legislação especial (DL 20.910/1932). Essa interpretação acaba encontrando seu fundamento, como visto em capítulo próprio, no próprio evolver histórico das leis no ordenamento nacional, porquanto o prazo quinquenal remonta já ao período abarcado pelo Código Civil de 1916. Entender de modo contrário, a nosso ver, esvazia o instituto da prescrição, a incidir numa clara violação às garantias fundamentais de acesso à justiça, de modo que a guarida do prazo quinquenal, conforme o critério de especialização da Teoria da Norma de Norberto Bobbio, nos termos plasmados pelo Superior Tribunal de Justiça, confirma que a interpretação a orientar as relações entre os particulares deve ter como pressuposto o entendimento do instituto da prescrição como regra a tutelar a relação jurídica formada entre particular e a Fazenda Pública.
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O linguajar jurídico-administrativo. O porquê de falar de maneira simples
Pequeno artigo que trata da comunicação pela palavra entre o Poder Público (Administração Pública) e a grande massa da população. Esta comunicação precisa de um maior aprimoramento, que consiste basicamente na melhora da escolha do vocabulário e na objetividade da construção do contexto na informação.
Direito Administrativo
Introdução O aumento das relações entre o Estado e a sociedade faz com que este último se envolva cada vez mais na seara administrativa para lidar com a necessidade de solicitar ou reclamar por determinados serviços. A maioria destas relações que legalmente se impõe pela lei ou são captadas pelo que foi escolhido pelo livre arbítrio acabam por se consubstanciar em contratos administrativos que, hoje, obrigam o cidadão a conhecer o linguajar jurídico-administrativo que peca muitas vezes pela falta de clareza na interpretação, que turva o significado ou que dá uma visão errônea do significante, já que este não se fulcra na linguagem do dia-a-dia. “(…) Falar é dar a entender alguma coisa a alguém mediante signos linguísticos. A fala, portanto, é um fenômeno comunicativo. Exige um emissor, um receptor e a troca de mensagens. Até o discurso solitário e monológico pressupõe o auditório universal e presumido de todos e qualquer um, ao qual nos dirigimos, por exemplo, quando escrevemos um texto ou quando articulamos, em silêncio, um discurso ao pensar. Sem o receptor, portanto, não há fala. Além disso, exige-se que o receptor entenda a mensagem, isto é, seja capaz de repeti-la. (…) Ora, exigindo a fala à ocorrência do entendimento, este nem sempre corresponde à mensagem emanada (…)” (Ferraz, Júnior, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ªed. São Paulo, 1996, p. 258-259). A linguagem jurídico-administrativa existe para causar segragamento. Segregar conhecimento é uma forma de poder. Por várias vezes a Administração Pública se utiliza de palavras não usuais (fora do senso comum dos falantes) e termos jurídicos (que, a contrario sensu, possuem equivalentes ou sinônimos comuns a todos os falantes) para justificar certa burocracia excessiva, que muitas vezes se consubstancia na lavra de  “manuais de estilística e redação” publicados por muitos órgãos públicos. O sociólogo e professor de Economia da Universidade de Coimbra, Dr. Boaventura de Sousa Santos ao escrever sobre o senso comum afirma que este é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita. Se por um lado se revela como a forma de os grupos subordinados viverem as suas relações, também é interpretado pelo sociólogo como um poder, ou melhor, uma forma de construir uma resistência social, já que todos os falantes podem usar as palavras e termos advindas do sensu comum para a construção do coletivo. Desenvolvimento do Tema Não há conhecimento quando a relação sujeito-objeto não se completa. Assim: “Não há conhecimento sem a presença dos termos fundamentais do binômio sujeito-objeto, consistindo o segundo termo algo que projeta diante do primeiro. O objeto do conhecimento só adquire significado quando posto diante do sujeito que, para conhecê-lo, o distingue e relaciona. O sujeito cognoscente entra em contato com o objeto cognoscível, estabelecendo-se logo entre ambos um processo dinâmico de interdependência funcional. Não se cogita do objeto em si; nem do sujeito em sai. O objeto existe para o sujeito; o sujeito existe para o objeto. O sujeito cognoscente é o homem enquanto conhece. Sob o aspecto gnosiológico, o objeto existe para o sujeito, visto que o processo de conhecimento, na forma complexa e elevada que consideramos, é peculiar, tão-só, ao espírito humano” (José Cretella Júnior – Filosofia do direito administrativo. Rio de Janeiro. Ed. Forense: 1999, p. 20). A despeito de não se entender a terminologia técnica jurídico-administrativa, esta ao se correlacionar com os cidadãos peca ao não utilizar uma linguagem mais simples, pois nem sempre a terminologia o apoio dicionaresco se demonstra útil. Neste sentido, buscando-se na origem da linguística a palavra e trabalhando com a noção de signos em Ferdinad de Saussure, (Capítulo I da Obra Curso de Linguística Geral),  podemos abstrair que os significados carecem de  laço com a realidade (arbitrariedade), assim, podemos sem erro substituir palavras que são usadas por um número limitado de falantes por termos ou palavras faladas pelo “comum” das pessoas a seu tempo. “Não basta, todavia, dizer que a língua é um produto de forças sociais para que se veja claramente que não é livre; a par de lembrar que constitui sempre herança de uma época precedente, deve-se acrescentar que essas forças sociais atuam em função do tempo. Se a língua tem um caráter de fixidez, não é somente porque está situado no tempo. Ambos os fatos são inseparáveis. A todo instante, a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolher. Dizemos homem e cachorro porque antes de nós se disse homem e cachorro. Isso não impede que exista no fenômeno total um vínculo entre esses dois fatores antinômicos: a convenção arbitrária, em virtude da qual a escolha se acha fixada. Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário” (SAUSSURE, Ferdinand de, p. 88)  Estamos falando de conceitos, independente da imagem acústica do signo (in casu, a palavra). Por exemplo, o valor de “Administração” pode-se levar ao conhecimento de poder administrativo ou também de procedimentos/fazeres administrativos. Referida imagem é relacional, ou seja, ou se tem um significado ou se tem outro por exclusão do primeiro.  Particularmente o sentido linear do significante não causaria de per si maiores problemas a grande massa de falantes, o problema é na escolha de um sistema pertinente a todos. Assim: “A dificuldade do discurso, ao contrário do que ensinam os logísticos, é vencida por um sistema de termos próprios de cada ciência, até mesmo de cada profissão, denominada terminologia. Basta consultar um léxico comum e um dicionário de termos jurídicos, para verificar que em Direito o termo toma uma significação precisa diferente da linguagem comum. Consultem-se os dicionários de termos jurídicos a par de um dicionário comum. Na terminologia, termos que na linguagem comum são sinônimos tomam significação diferente.(…)” (grifos do autor) (Edmundo Dantès Nascimento. Lógica Aplicada a Advocacia. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 179). Referido autor exemplifica: (…) ‘“Art. 871. O protesto ou interpelação não admite defesa nem contraprotesto nos autos; mas o requerido pode contraprotestar em processo distinto.” Protesto e interpelação têm, no inciso, o mesmo significado, mas muitas vezes aparece o mesmo conceito em termos diversos “(Ob. citada, fls.182)” Sabemos que os significados de “uso corrente” da língua são colhidos da circulação discursiva das pessoas. Temos que admitir, que a existência de intertextualidade de um texto técnico com os significados não pode ser inteligível aos destinatários de sua leitura, pois, Escrever é, como falar, uma atividade de interação, de intercâmbio verbal. Por isso é que não tem sentido escrever quando não se está procurando agir com outro, trocar com alguém alguma informação, alguma ideia, dizer-lhe algo, sob algum pretexto. Não tem sentido o vazio de uma escrita sem destinatário, sem alguém do outro lado da linha, sem uma intenção particular. (…) Escrever, na perspectiva da interação, só pode ser uma atividade cooperativa. “Uma atividade em que dois ou mais sujeitos agem conjuntamente para a interpretação de um sentido (o que está sendo dito), de uma intenção (por que está sendo dito)” (grifos do autor) (Irandé Antunes, Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005, págs. 28/29) O “juridiquês” nas relações com os administrados, cria uma rede semiológica de saber, de controle social e instrumento de poder alcançável somente aos poucos operadores que se fixam normalmente em um dos polos da relação. Usar ainda uma linguagem jurídica nas relações com o administrado é como rezar missa em latim, ou seja, ninguém entende. O contrário, é demonstração de falso eruditismo discursivo, de deslumbramento propedêutico que busca fomentar “castas” de falantes, pois: “Numa sociedade estruturada de maneira complexa a linguagem de um dado grupo social reflete-o tão bem quanto suas outras formas de comportamento. Deste modo, essa linguagem vem a ser uma marca desse status social. As classes superiores dão-se conta desse fato e tentam preservar os traços linguísticos pelos quais se opõem às classes inferiores. Tais traços são considerados corretos e passa a haver um esforço persistente para transmiti-los de geração a geração. Esta atitude cresce em intensidade à medida que o impacto das classes inferiores se torna cada vez maior. O estuda da linguagem surge a fim de conservar-se inalterada a linguagem correta das classes superiores em seu contato com os outros modos de falar dentro dessa sociedade.” (Joaquim Mattoso Câmara Jr., História da Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011, pág. 16). Exemplos: “- No documento expedido ao administrado: “cite-se, intime-se, notifique-se” quando só se quer dar notícia, porque não usar o verbo informar que é usual (informamos que). Porque “supracitado”, “acima citado”, ao invés da pessoa destinatária já mencionada (expressões usadas em correspondências usuais, hoje, eletrônicas). – Quando de recebe algum documento, porque não recebemos, ao invés de “temos em nosso poder” ; “levamos a seu conhecimento”. Melhor: Informamos (se tem em poder ou não, a quem interessa? Poder na posse?) – “Dirigimo-nos à V.Sa.”. Melhor: Encaminhamos ou Remetemos a você (o particular não está preocupado com o “dirigir” e sim o motivo da correspondência (é isso que interessa); – “Encaminhamos para dirimir dúvidas e suscitar esclarecimentos”. Melhor: Para esclarecer dúvidas ou buscar esclarecimentos. O particular não dirime seus problemas, nem costuma suscitar algo. Exemplo de palavras pouco usuais; – “Certame”. “Convocamos V.Sa. para o certame que ocorrerá” Se concurso público, melhor: Concurso ou Disputa. Se licitação, melhor usar somente o nome da modalidade diretamente: Pregão, leilão, etc.; – “Comunique-se ao cônjuge supérstite”. Melhor: Cônjuge sobrevivente; – “Exordial”. Melhor: Inicial (peça que inicia, que começa); – “A Câmara de Recursos avocou para si o julgamento”. Melhor: Chamou para si; -“Os documentos coligidos no recurso”. Melhor: Anexados; – “Após a desapropriação e emissão na posse pela Administração”. “Melhor: Após a entrada na posse”; – etc.;” Assim, vejamos, trecho do artigo da Professora Cláudia Roesler[1]: “Por isso”, quando se deseja uma maior precisão numa determinada área recorre-se a formação de linguagens artificiais, com termos técnicos, cujo papel é o de permitir um manuseio mais adequado das palavras Porém, essa ‘tecnificação’ da linguagem significa também o aumento da possibilidade de incompreensão, porque só serve para esclarecer aqueles que já possuem o código. Quando usamos a linguagem técnica do direito, por exemplo; tornamos nossa fala quase indecifrável para quem não o tenha estudado” (…) (grifei)  A proposta é simplificar os termos sem empobrecer a linguagem. Entendemos que “democratizar a palavra”, sem vulgarizá-la, é garantir o direito à informação em todos os níveis sociais. É uma grande falácia dizer que os operadores do Direito ou funcionários públicos sejam obrigados a utilizar a linguagem jurídica ou formal administrativa (linguagem técnica) ao invés da linguagem usual. Corrobora com esse entendimento o trabalho da Prof.ª Susana Morais, Comunicação e Estranheza: Contingências da Intersubjetividade. Nesta obra, a Prof.ª dedica o capítulo 1 de seu livro as teorias de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel. Cite-se em Habermas o seguinte trecho: “Habermas distingue, assim, actos de fala e atividades não linguísticas, fazendo corresponder aos primeiros essa vocação incontornável para o entendimento mútuo (MORAIS, Susana, p.12) “Las acciones em sentido estricto, em el caso ejjemplar acciones no linguísticas sencillas del tipo mencionado, las destribo como atividades teleológicas com que um actor interviene em el mundo, para realizar mediante la elección y utilización de los médios apropriados los fines que se propone. Las manifestaciones linguísticas las describo como actos com que um hablante puede entenderse com outro acerca de algo em el mundo” (Habermas, 1990: 67) apud (ob. citada, p.13). Continua a autora: “A linguagem assim entendida não potencia apenas a condição de falantes: enquanto meio por excelência das interacções sociais, permite aos sujeitos assumirem-se também como actores sociais e revela-se um meio fundamental da construção da intersubjectividade  na comunicação. Na condição do humano como sujeito de linguagem, estão pressupostos, para além do uso de regras linguísticas, princípios determinantes para que o entendimento tenha lugar – como é a igualdade entre os interlocutores, a garantia de que ninguém pode ser excluído da comunicação e que todos podem usar a palavra e pronunciar-se. Nessa medida, o conceito de competência comunicativa em que se assentam estas  teorizações ultrapassa a capacidade para construir fases gramaticalmente correctas. Igualmente inerente à condição de sujeitos de linguagem é a imprescindibilidade de um quadro normativo regulador da relação comunicacional. Compreensibilidade e validade dos actos de fala são, não obstante a valorização semelhante que recebem, requisitos distintos”.(ob. Citada, p.13) (grifei) Conclusão A formação dos funcionários públicos, operadores do Direito e demais profissionais que militam com serviços na seara jurídico-administrativa ainda são impingidos a usarem uma linguagem rebuscada, ou pelo menos difícil para a grande massa de administrados que são os destinatários da grande maioria das comunicações públicas. A adoção de uma linguagem lastrada no senso comum dos falantes é medida imperiosa e de justiça social, pois a linguagem técnica estruturada de maneira a inviabilizar  a aquisição do pronto conhecimento da informação cria um obstáculo muitas vezes intransponível ao exercício da cidadania.
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Considerações sobre o controle da administração pública no âmbito do Tribunal de Contas da União
Este breve artigo objetiva discutir, de forma geral, as características do controle externo realizado pelo Tribunal de Contas da União, apresentando alguns detalhes sobre a estrutura desse órgão e dos processos administrativos   que tramitam em seu âmbito.
Direito Administrativo
Introdução Conforme dispõe a Constituição Federal, na Seção dedicada à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, tal atividade será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder[1]. Neste texto são apresentados, de forma breve, alguns dos principais aspectos relacionados ao órgão responsável pela fiscalização financeira, como auxiliar do Congresso Nacional, qual seja, o Tribunal de Contas da União. 1 Conceito Ao tratar da conceituação do termo “controle”, o magistério de Evandro Martins Guerra diz: “Controle, no sentido empregado nesse estudo, é a palavra originária do francês Contrerole, anotada, segundo pesquisadores, desde 1367, como também do latim medieval contrarotulus, significando, àquela época, “contralista”, isto é, segundo exemplar do catálogo dos contribuintes, com base no qual se verificava a operação do cobrador de tributes, designando um segundo registro, organizado para verificar o primeiro.”[2] Posteriormente, teria ocorrido a evolução para a acepção mais atual, qual seja, a de análise, domínio e fiscalização. 2 Controle Financeiro A norma insculpida no art. 70 da Constituição Federal dispõe que o Congresso Nacional exercerá a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União, bem como das entidades da administração direta e indireta, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder . Esta fiscalização é o controle exercido sobre o Executivo no que se refere a receita, despesa e gestão de recursos públicos. No que tange à fiscalização financeira da Administração Pública, esta será realizada pelo Poder Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas, exercendo o chamado “controle externo”. 3 Controle externo O Controle externo é o controle exercido por um órgão separado da estrutura do órgão que está sendo (ou será) controlado. Em sentido amplo, pode-se dizer que o Poder Judiciário realiza controle externo sobre os outros Poderes. Em sentido estrito, o controle externo é o controle exercido pelo Poder Legislativo e pelo Tribunal de Contas sobre a Administração direta e indireta dos outros Poderes. 4 Tribunal de Contas da União A idéia de criação de um Tribunal de Contas no Brasil surgiu em 1826, mas somente após o fim do Império, já em 1890, é que foi institucionalizada a Corte, por iniciativa do Ministro da Fazenda da época, Rui Barbosa, através do Decreto nº 966-A. A primeira Constituição Republicana, em 1891, institucionalizou o Tribunal de Contas da União. Atualmente, a Constituição Federal de 1988 consagrou a Corte de Contas em seu art. 71 e seguintes, ampliando sua jurisdição e competência, de modo que “qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária, bem como daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário” tem o dever de prestar contas ao TCU[3]. Conforme os ensinamentos do i. Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, o Tribunal de Contas da União ocupa posição institucional e natureza específicas, sendo instituição estatal independente, não se tratando de mero “apêndice” auxiliar do Poder Legislativo, tampouco hierarquicamente subalterno, não se submetendo a qualquer dos poderes. Por tudo isso, é considerado um órgão sui generis, possuindo lei orgânica própria (Lei Nº 8.443, de 16 de Julho de 1992), bem como Regimento Interno (aprovado pela Resolução Nº 155, de 4 de Dezembro de 2002, publicada no DOU de 09.12.2002, Seção 1, p.125.), dotado de estrutura técnica, organizado e com autonomia administrativa.   Trata-se de Corte Especial que exerce função de fiscalização com base na legalidade dos atos e com capacidade de julgar questões no âmbito de sua competência privative, submetendo os atos a exame de economicidade, além de legitimidade. 5 Jurisdição A Constituição Federal definiu o exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas, especialmente na norma do art. 71, inc. II. Assim, a Corte examinará, com exclusividade, a legalidade, legitimidade e economicidade expressas pelos elementos e valores contidos na prestação ou tomada de contas públicas. Nesse sentido, o judiciário não teria função no exame de tais contas, não sendo competente para rever, apurar o alcance dos responsáveis, tendo em vista a competência exclusiva dos Tribunais de Contas, haja vista o conteúdo da jurisdição dos Tribunais de Contas ser diferente do conteúdo da jurisdição do Poder Judiciário, sob pena de se incorrer até mesmo em bis in idem. Assim, pode-se dizer que o juiz comum julgará crimes e os Tribunais de Contas julgarão contas. Contudo, em razão da adoção do sistema de jurisdição baseado na norma do art. 5º, XXXV, CF/88 que dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” é possível a revisão do Poder Judiciário, mas esta somente se daria quando as decisões dos Tribunais de Contas estivessem contaminadas de: manifesta ilegalidade, abuso de poder ou quando o procedimento violasse garantia do devido processo legal (contraditório e ampla defesa). As decisões produzidas pelos Tribunais tem natureza administrativa. E apenas as decisões condenatórias ensejam constituição de título executivo (conforme dispõe a norma do art. 71, § 3o., CF/88). Tais decisões são remetidas ao Poder Judiciário (Advocacia Geral da União ou Ministério Público, nos casos em que se constate ilícitos configurando crimes) para que se promova a execução forçada. 6 Estrutura Organizacional O Tribunal é composto por 13 Ministros, pelo Ministério Público especializado junto ao TCU, por 26 SECEX – Secretaria de Controle Externo – nos Estados, e várias outras Secretarias em Brasília, destacando-se as 9 SECEX especializadas Brasília/DF, 4 SECOBs – Secretarias de Obras e Patrimônio da União e a SERUR – Secretaria de Recursos. 7 O Processo no Tribunal de Contas da União A fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas da União se dá através de um processo administrativo. De acordo com o Regimento Interno TCU, em art. 144, são partes no processo o responsável e o interessado. O responsável é aquele qualificado na CR/88, Lei Orgânica do TCU e respectiva legislação aplicável e o interessado é aquele que, em qualquer fase do processo, tenha reconhecida pelo Relator ou Tribunal razão legítima para intervir no processo. Esses são alguns dos tipos de processos específicos do Tribunal de Contas da União: 7.1 Contas: 7.1.1 tomadas de contas (art. 71, II, CF); 7.1.2 prestações de contas (art. 71, II, CF); 7.1.3 tomadas de contas especiais (art. 71, II, CF); 7.2 Outros: 7.2.1 processos de admissão de pessoal (CF, art. 71, III, 1ª parte) 7.2.2 concessões de aposentadorias, reformas e pensões (CF, art. 71, III, 2ª parte); 7.2.3 relatórios de auditoria (CF, art. 71, IV); 7.2.4 solicitações do Congresso Nacional (CF, art. 71, IV e VII); 7.2.5 denúncias (CF, art. 73, § 2º); etc. Alguns dos procedimentos específicos são: levantamento, auditoria, inspeção, monitoramento, denúncia e representação. O levantamento busca identificar objetos e instrumentos de fiscalização de modo a avaliar a viabilidade da realização de fiscalizações. A auditoria se presta a examinar a legalidade e legitimidade dos atos de gestão dos responsáveis quanto ao aspecto contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial. Por sua vez, a inspeção se destina a suprir omissões e lacunas de informações, esclarecer dúvidas ou apurar denúncias ou representações quanto a legalidade, legitimidade, economicidade de fatos da administração e dos atos administrativos praticados por responsável sujeito a sua jurisdição. Através do monitoramento o Tribunal verificará o cumprimento de suas deliberações e os resultados dela advindos. A denúncia e a representação, bem como a consulta, são considerados procedimentos especiais. A denúncia de irregularidades pode ser apresentada por qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato. No caso da representação, tem legitimidade: o Ministério Público, os órgãos de controle interno, Senadores, Deputados, Juízes e Servidores Públicos, os Tribunais de Contas dos Estados, DF e Municípios, as próprias equipes de inspeção de auditorias, bem como órgãos, entidades e pessoas que detenham essa prerrogativa por força de Lei. Como se vê, tais processos podem ser iniciados de ofício, por meio de uma Portaria de designação, no caso de processos de Relatório de Auditoria; pela apresentação da tomada ou da prestação de contas anual dos gestores; pelo recebimento de uma tomada de contas especial enviada pelo controle interno; por solicitação do Congresso Nacional ou de uma de suas casas ou das respectivas comissões; por denúncia conhecida pelo Relator (processo de denúncia) ou por representação conhecida pelo Relator (processo de representação). Entre os critérios do Tribunal para escolha dos projetos cuja utilização de recursos públicos será fiscalizada estão: o valor empenhado no exercício anterior e o fixado para o posterior, projetos de grande vulto, a regionalização do gasto, o histórico de supostas irregularidades pendentes obtido a partir de fiscalizações anteriores, a reincidência de irregularidades já cometidas e, no que se refere especialmente às obras públicas, as obras contidas no Anexo de obras com indícios de irregularidades graves da Lei Orçamentária vigente. Ainda com relação à fiscalização de obras públicas, o Tribunal classifica as supostas irregularidades em: IG-P: Indícios de Irregularidades Graves – categoria ‘P’, que ensejam paralisação; IGC: Indícios de Irregularidades Graves – categoria ‘C’, que permitem continuidade e OI: Outras irregularidades, que não são consideradas irregularidades graves. Definidos os projetos a serem fiscalizados, serão instaurados os processos administrativos, perante o Tribunal de Contas, disciplinado pela Lei 8.443/92, Lei Orgânica dessa Corte, e também pelo seu Regimento Interno aplicando-se, ainda, o Código de Processo Civil subsidiariamente. Não resta dúvida de que é exigida a aplicação do devido processo legal, também na esfera administrativa. O processo no Tribunal de Contas da União vai observar e atender também os princípios relativos ao processo administrativo federal, conforme a Lei 9.784/99, como por exemplo: o procedimento administrativo é, em regra, escrito, não se sujeita a formalismo rígido na instrução (formalismo moderado), os prazos não são peremptórios, são aceitas cópias reprográficas (xérox) sem autenticação, estão presentes a garantia ao contraditório e à ampla defesa, há a busca contínua pela verdade real, etc. Após a instauração, os processos no Tribunal de Contas compreendem as fases de instrução, decisão e consequente execução. Os documentos referentes à fiscalização são enviados ao Tribunal, protocolizados, autuados e distribuídos a um Ministro Relator, que presidirá aquele processo. O Relator pode determinar audiências dos responsáveis e diligências, bem como solicitor manifestação das Secretarias do Tribunal e do Ministério Público especializado. Os responsáveis são chamados aos autos através de recebimento de ofício do Tribunal, no qual lhes é oportunizado o exercício da ampla defesa. Nesse momento, o responsável pode requerer vista e cópia dos autos, pode solicitar prorrogação do prazo para apresentar sua manifestação (desde que não se trate de fase recursal, que não admite dilação de prazo), que será protocolada por escrito em qualquer unidade (SECEX) do Tribunal de Contas e, caso deseje, pode  ainda apresentar sua manifestação em conjunto com outros responsáveis. A defesa do responsável deve abordar todos os aspectos relacionados às supostas irregularidades apontadas, questões de fato e de direito. Após o cumprimento de todos os trâmites relativos ao devido processo legal, o processo é colocado em pauta para julgamento pelo Plenário ou por uma de suas Câmaras. As decisões dos colegiados, nos termos da Lei Orgânica do TCU, podem ser preliminares, definitivas ou terminativas. Preliminar – o Tribunal se pronuncia antes da decisão do mérito das contas, podendo tratar de sobrestamento do julgamento, ordenar citação ou audiências dos responsáveis, fixar novos prazos ou determinar diligências para saneamento do processo. Definitiva – o Tribunal julga e encerra as contas, classificando-as como regulares, regulares com ressalva ou irregulares. Terminativa – o Tribunal ordena o trancamento das contas consideradas iliquidáveis, ou determina o seu arquivamento pela ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo ou por racionalização administrativa e economia processual. Por fim, cabe informar quais os tipos de recursos que podem ser interpostos em face de decisões prolatadas pelo Tribunal de Contas. São eles: Recurso de Reconsideração, Pedido de Reexame, Embargos de Declaração, Recurso de Revisão e Agravo. O Recurso de Reconsideração é interposto em face de decisão definitiva e tem efeito suspensivo. O prazo para sua interposição é de 15 dias. O Pedido de Reexame é utilizado em face de decisão de mérito proferida em processos concernentes à fiscalização de atos e contraltos. O prazo para sua interposição é de 15 dias. Os Embargos de Declaração, assim como no processo judicial, devem ser manejados nos casos em que a decisão recorrida revele obscuridade, omissão ou contradição. Difere do processo judicial no que se refere ao prazo para sua interposição, que é de 10 dias. O Recurso de Revisão, corresponde à “ação rescisória” no processo judicial, é recurso interposto em face de decisão definitiva, sem efeito suspensivo, interposto pelas partes, seus sucessores ou MP geralmente em processos de Tomadas de Contas Especial. O prazo para sua interposição é de 5 anos. O Agravo pode ser interposto em face de despachos desfavoráveis à parte e  em face de medida cautelar. Diferentemente do Agravo no processo judicial o prazo para sua interposição é de 5 dias. Importa colocar que, no Tribunal de Contas da União, o Relator pode receber uma peça recursal apresentada equivocadamente como se fosse outra, com base no princípio da fungibilidade recursal dos processos administrativos. Conclusão Considerando os desafios atuais no Controle Externo e, ainda, a carência de maior regulamentação e estabilização doutrinária, essas ações de controle merecem ser estudadas e analisadas. Promover e incentivar o estudo, análise e discussões das questões relacionadas às atividades do TCU, sugerindo debates sobre temas ligados à prevenção da corrupção, dando maior visibilidade a esse que é o órgão central do Sistema de Controle Externo, sua macroestrutura, atribuições e a atuação desse órgão é uma forma de garantir acesso a informação e à promoção da cidadania.
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Direito de greve para os servidores públicos civis: a aplicabilidade do mandado de injunção na efetivação deste direito
Este trabalho apresenta o resultado de pesquisa sobre a importância do exercício do direito de greve pelos servidores públicos civis. Iniciando com um estudo geral sobre o instituto Greve e perpassando durante o transcorrer tanto pela classificação de Servidor Público, como a análise da possibilidade de admissibilidade do mandado de injunção para a efetivação desse direito. Nesta seção foi dada certa atenção especial aos casos práticos julgados pela Suprema Corte na qual vai ser observado à evolução quanto ao entendimento da admissibilidade desse remédio constitucional quanto ao exercício deste ato. As referências bibliográficas foram de suma importância, pois mostrou o quanto este direito de reivindicação é benéfico para o servidor público que por meio deste busca angariar melhores condições de trabalho. A condução deste trabalho será executada por meio da combinação de pesquisa bibliográfica, estudos de periódicos, sítios da internet e legislações especificas. Este estudo permitiu concluir que ocorreu uma evolução benéfica quanto ao entendimento quanto a legalidade do direito de greve ao servidor público pelo Supremo Tribunal Federal trazendo esta decisão uma maior segurança jurídica para os agentes ativos destes movimentos.[1]
Direito Administrativo
1.INTRODUÇÃO Este trabalho monográfico é composto por uma proposta de pesquisa que diz respeito ao Direito de Greve ao Servidor Público Civil, este assunto há pouco tempo foi muito noticiado pela imprensa devido a um movimento grevista, dos órgãos públicos federais, generalizado que acabou de certa forma parando algumas atividades públicas em nosso país e que por consequência trouxe prejuízos para a nossa sociedade. O tema escolhido, de certa forma, é um pouco abrangente. Ele perpassa com mais ênfase pela esfera do Direito Administrativo, Direito do Trabalho, Direito Constitucional e de forma mais tênue em outras áreas do Curso de Direito. Este trabalho de pesquisa abordará com maiores detalhes o Direito Administrativo tratando o conceito de Servidor Público; Direito Constitucional, referindo-se ao conceito de mandado de injunção, pois ainda não há legislação específica para a greve nessa seara; a possibilidade de greve no Serviço Público e a identificação da eficácia da norma do Direito de Greve, por fim abordaremos de forma superficial o Direito do Trabalho no que diz respeito à Greve: noções gerais e Direito de Greve no Brasil. A escolha desse tema foi de certa forma motivada por uma grande curiosidade: o porquê da ausência de uma norma específica que regulamente este direito. Uma ausência de 24 anos! Sem uma especificação normativa de como os Servidores Públicos podem reivindicar seus direitos de melhoria de condições de trabalho, de salários, dentre outras demandas que diariamente a sociedade percebe em meio às greves executadas. Assim, a discussão é importante devido a alguns posicionamentos do Supremo Tribunal Federal adotados em alguns mandados de injunção que serão explanados no decorrer do projeto. A justificativa para a preparação deste estudo se dá pela necessidade de se explicar a existência de uma lacuna legislativa no que corresponde ao direito de greve ao servidor público civil, sobre o qual não há consenso entre a doutrina administrativista e constitucionalista, e muito menos, por parte do judiciário, um entendimento sedimentado a respeito deste tópico. Apesar de ser sempre postergada a resolução deste impasse, percebe-se que tal direito vem sendo exercido pelos servidores públicos civis, quando os mesmos se defrontam com a necessidade de reivindicar melhores condições na área de trabalho. No que diz respeito ao tipo de pesquisa utilizada, tem-se de forma predominante o bibliográfico, e, além disso, é composta por uma análise à documentos legislativos, doutrinários e jurisprudências. O trabalho é composto por três capítulos. O primeiro aborda as noções gerais da Greve. A primeira seção é dedicada ao contexto histórico do movimento. Na segunda seção é abordado o conceito desse instituto. A terceira seção é dedicada à natureza jurídica da Greve. Por fim, a quarta e quinta seções abordam, respectivamente, os aspectos das características do instituto e das extensões e limites. O segundo capítulo trata, primeiramente, sobre o servidor público explanando tanto o conceito como a classificação deste. No terceiro capítulo, falar-se-á a respeito do Mandado de Injunção no qual adentrará no conceito e cabimento. O derradeiro capítulo terá o seu arcabouço teórico composto pela análise da aplicabilidade e da eficácia das normas constitucionais, além de abordar a evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal no que tange à eficácia das decisões proferidas nos julgamentos de mandado de injunção no que diz respeito a admissibilidade da Greve. Com isso, espera-se criar um trabalho acadêmico que permitia que a sociedade, como um todo, tenha uma noção quanto à possibilidade de o Servidor Público Civil efetuar movimentos grevistas, com fulcro no artigo 37, VII, da Carta de Outubro que exige a criação de uma norma de regulamentação do tema por meio de uma lei especifica. Haja vista, que este direito é uma das conquistas mais árduas do ramo trabalhista, entretanto, como ainda irá ser citado neste trabalho, o Servidor Público ainda não possui uma lei especifica para que possa reivindicar os seus direitos de maneira tranquila, pois devido lacunas legislativas inexiste esta regulamentação, por isso, este meio, vem levantar aspectos controvertidos na doutrina e na jurisprudência a fim de obter a tendência que atualmente é utilizada. 2. GREVE – NOÇÕES GERAIS 2.1. Contexto Histórico do surgimento da Greve No que diz respeito à essência da palavra greve, esta se dá pelo nome de uma praça em Paris, chamada place de grève. Dizem os livros que naquele local se acumulavam os gravetos trazidos pelas enchentes do Rio Sena, sendo assim, greve, se originou da palavra graveto.[2] Outros autores mencionam que a historia da greve remonta o século XII a.C, quando os trabalhadores recusaram-se a trabalhar na construção do túmulo de um faraó em protesto pela falta de pagamento e tratamento desumano que recebiam. Outra tese indica que o êxodo em massa dos hebreus quando abandonaram o Egito, e também há estudiosos que apontam que em Roma, ocorreram greves no que tange as atividades públicas.[3] Bezerra Leite afirma que esses fatos históricos mostram a origem antiga dos movimentos coletivos dos trabalhadores, todavia não podem ser considerados como greve, pois nos movimentos citados não existia uma estrutura moderna das relações de trabalho, existia sim um sistema social escravista. Para ele, a greve, surge com o advento da Revolução Industrial, inicio do regime assalariado, por fim, pode-se atribuir os movimentos sindicais ingleses como o marco inicial da história da greve.[4] Tendo em vista esta ideia de que a greve para o Direito moderno surgiu na aparição da Revolução Industrial (Inglaterra) tem-se que devido ao surgimento do sindicalismo, na qual ocorreu o nascimento das associações de trabalhadores com o intuito de galgar melhorias tanto salariais, como nas condições de trabalho, incluindo a diminuição da jornada laborativa. Tendo o ano de 1824 como marco, percebe-se uma maior tolerância quanto aos sindicatos, haja vista que nesta data os mesmos deixaram de serem proibidos em relação à massa trabalhadora, entretanto ainda não existia o reconhecimento do instituto greve. Esta linha de acontecimentos históricos mostra a evolução adquirida pelos trabalhadores e por consequência a construção de um pensamento jurídico acerca desta matéria. Isto se dá, pois se o trabalhador possui a liberdade para contratar seus serviços com o empresário, e, além disso, de ocorrer à possibilidade de se associar aos outros trabalhadores, não poderia ocorrer a negatória de direito de se insurgir contra as condições de trabalho que fossem consideradas insalubres, insatisfatórias. Até mesmo, em último caso, individualmente, poderia demitir-se do emprego, ou se estivesse associado a um grupo de trabalhadores, podia transformar a sua oposição individual em coletiva. Com isso, tem-se que esta interrupção do trabalho, em seu arcabouço, era tida como uma ação coercitiva contra o empregador, com o intuito de obter as reclamações solicitadas.[5] Esse é o cerne principal da origem da greve no decorrer da história capitalista clássica, que tinha como base a liberdade política, econômica e moral.[6] Ao longo dos anos, este instituto se moldou aos vários conceitos políticos e sociais, sendo, primeiramente, considerada um delito, em uma segunda fase uma liberdade e por fim um direito. Exemplificando, no Direito Romano, a greve era considerada como um delito em relação aos trabalhadores livres; em 1825, na Inglaterra e em 1864 na França, a legislação descriminalizou a prática da greve caracterizando assim a liberdade a essa prática e em 1947, na Itália, a greve foi reconhecida como um direito.[7] A etimologia greve sempre esteve associada à atitude coletiva dos trabalhadores com o intuito de galgar, por manifestações, e pela pressão, em face do empregador, as melhorias e vantagens intrínsecas a negociação das normas e condições de trabalho.[8] No contexto doméstico, há a existência de um marco histórico, que seria a união entre o movimento sindical e o instituto da greve. Fato fundamental, haja vista, que é a reiteração da relação de emprego como um vinculo sócio-jurídico de extrema importância no sistema econômico e social do país.[9] Logo após esta união surge a primeira lei que se refere à Greve. Era o antigo Código Penal (Decreto nº 847, de 11.10.1890), que tipificava o movimento grevista e seus atos como ilícitos criminais. Entretanto, neste mesmo ano o Decreto nº 1.162, de 12.12.1890, retirou a ilicitude da conduta grevista, ocorrendo à punição somente de atos de ameaça, constrangimento e violência verificados no andamento do movimento.[10] No período getulista temos a implantação do modelo sindical brasileiro, caracterizado por ser corporativo-autoritário, com a função de se opor as manifestações livres dos movimentos grevistas.[11] Neste mesmo lapso temporal, a Carta Magna de 1934, em nenhum momento se referiu ao direito de greve, embora tivesse certa ideia de ser uma constituição democrática. Entretanto, esta normatização durou pouco tempo, pois no ano seguinte ocorreu à decretação de Estado de Sítio, e por consequência a greve foi expurgada do campo válido do Direito do Trabalho. Com o inicio da ditadura getulista, a Constituição de 1937 era extremamente autoritária, ríspida, colocando novamente a greve na ilegalidade. Com o passar dos anos outras normas infraconstitucionais seguiram a Carta Magna criando a orientação de proibição e de até mesmo, a criminalização do ato grevista.[12] Com fim da Ditadura do Estado Novo, ocorreu à redemocratização do país, isto devido aos aspectos advindos da Segunda Guerra Mundial. Por este motivo, foi decretado o Decreto-lei n. 9.070 de 15.03.1946. Este decreto, em seu arcabouço teórico, definia o conceito de greve, somente permitindo nas atividades acessórias. O texto legal era bastante restrito ao direito paredista, entretanto, reconhecia de forma muito tênue como direito trabalhista.[13] Sendo que Constituição de 1946 veio a confirmar a confirmar o direito a greve como um direito trabalhista. No período da Ditadura Militar ocorreu certa exasperação quanto à força coercitiva do Estado face aos movimentos. Percebe-se isto com o advento da Lei de Greve deste regime (Lei n. 4.330, de julho de 1964) que restringia de forma radical, o instituto paredista. Esta lei proibia tanto movimentos que tivessem fins estritamente trabalhistas, como também vedava a ocupação do estabelecimento nas greves. Além disso, instituiu o rito cujo cumprimento era de forma totalmente inviável pelo movimento sindical. Transformando este direito em uma simulação.[14] Com a Constituição de 1967, ocorreu um maior controle aos movimentos grevistas, com o fiel intuito de coibir qualquer tipo de movimento dessa natureza. Haja vista que foi expressamente proibido a greve nos setores públicos e nas áreas de atividades essenciais. Neste mesmo período o caráter ríspido do regime militar foi acentuado com a decretação do famoso Ato Institucional n. 5 que vetava qualquer tentativa de paralisação trabalhista.[15] Após esta breve análise cronológica percebe-se que durante muitos anos esta prática foi considerada um delito por algumas constituições passadas. O decreto-lei nº 9070 de 1946 disciplinou a matéria, entretanto limitou o exercício da greve, somente, para as atividades acessórias. O direito, propriamente dito, só veio com a promulgação da Constituição de 1988, onde assegurou ao trabalhador a prerrogativa para a livre associação sindical, além da greve.[16] Entretanto, o objeto de estudo desse trabalho não foi contemplado de forma ampla e direta, e sim condicionada e postergada para uma lei complementar, que até hoje não foi sancionada, afirmativa anterior decorre do artigo 37, VII, da CF 88 que limita este direito. 2.2. Conceito A greve, quando diz respeito aos servidores públicos civis federais gera discussões infindáveis devido ao contexto do artigo 37, VII, da Constituição Federal de 1988, que traz como obrigatoriedade a criação de uma norma especifica sobre o assunto, entretanto medidas para a feitura desta norma não foram tomadas pelo Legislativo.[17] Como já foi registrado, o Direito à greve representa uma das conquistas mais importantes para o trabalhador seja ele da esfera pública ou privada. Tal afirmação é corroborada, pois é por meio deste artifício que uma classe trabalhadora consegue angariar melhorias: no local de trabalho; nos meios que utilizam para a prática laboral; salarial e a mais importante para manter os direitos adquiridos quando ameaçados. Deste modo, percebe-se a utilidade desse trabalho, pois há necessidade de esclarecimento da ausência de norma que regulamente este direito aos servidores públicos civil, ainda mais que a doutrina constitucionalista diverge da administrativista, além de que somente depois de muito tempo parece um pouco sedimentado um entendimento pelo Judiciário a respeito desse tema, como pode ser percebido com a evolução de entendimento pela Suprema Corte no que diz respeito às análises dos mandados de injunção que envolva o direito de greve. . Apesar dessa inexistência, os servidores não abrem mão de efetuarem as suas greves em prol de melhorias para as suas respectivas categorias quando a administração pública não efetua uma proposta condizente com o pedido. Desse modo, como já foi referido também, percebe-se a necessidade de perpetrar nos                                                                                                                      ramos de três áreas do Direito: Constitucional, por tratar de direito constitucionalmente assegurados; Administrativo, visto que versa sobre serviço público; Trabalhista, que se ocupa do estudo do fenômeno paredista; visando elucidar as controvérsias e imprecisões do direito de greve dessa categoria. Além disso, tem-se a ideia de que este estudo tenha um alcance sociológico e filosófico, por abordar um direito fundamental da pessoa humana, que seria a possibilidade de almejar condições de trabalho dignas e adequadas contribuindo com o desenvolvimento humano, além, do desenvolvimento coletivo. Com fulcro no texto da Lei n. 7739/89, artigo 2º, greve é a “suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador”[18] Maurício Godinho Delgado conceitua a greve, à luz da Carta Magna, artigo 9º, como: “paralisação coletiva provisória, parcial ou total, das atividades dos trabalhadores em face de seus empregadores ou tomadores de serviço, com o objetivo de lhes exercer pressão, visando a defesa ou conquista de interesses coletivos, ou com objetivos sociais mais amplos”.[19] Como pode ser percebido, greve é um instrumento de auto-tutela de interesses, com o intuito de solucionar conflitos trabalhistas. Além disso, o referido autor ainda afirma que este movimento é um direito fundamental de caráter coletivo, resultante da autonomia privada coletiva inerente as sociedades democráticas, isto quer dizer, que este direito provém da liberdade de trabalho consorciado com a liberdade associativa e sindical e da autonomia dos sindicatos, configurando-se como manifestação relevante da chamada autonomia privada coletiva, próprias as democracias. Todos esses fundamentos, que se agregam no fenômeno grevista, embora preservando suas particularidades, conferem a esse direito um status de essencialidade nas ordens jurídicas contemporâneas. Conferindo assim não somente força, mas também civilidade, ultrapassando o caráter de mera dominação da vontade de um sujeito sobre o outro, como inerente a autotutela. Ainda nesta seara, Sérgio Pinto Martins afirma que o conceito de greve dependerá de cada legislação, na qual poderá trata de direito ou liberdade, sendo admitido pelo ordenamento jurídico, ou delito, em caso de proibição. Para o mesmo, greve é a suspensão coletiva do trabalho, temporária e pacifica, em face do empregador, de maneira total ou parcial, sendo um direito social dos trabalhadores, tratando-se de uma garantia fundamental.[20] Russomano traz o mesmo conceito quanto a greve no qual considera como suspensão transitória do serviço provocada pela maioria dos trabalhadores de uma empresa ou de uma categoria profissional, tendo por finalidade a alteração ou criação de condições de trabalho. [21] O mesmo afirma que a conceituação outrora dada estaria incompleta ao passo que o direito local admita formas heterônimas de greve, quando o polo passivo do movimento paredista deixar de ser o empregador dos participantes do movimento paredista e passa a ser o Estado ou outro empregador.[22] Para Amauri Nascimento, por sua vez, greve consiste em um direito individual e de exercício coletivo, com base em uma autodefesa. Esta autotutela seria um ato pelo qual o indivíduo exerce a sua própria defesa. Consistiria a resolução do conflito por uma das partes, com ou sem formas processuais, impondo a outra parte um sacrifício não consentindo por esta. Percebe-se a imposição de decisão de uma das partes à outra.[23] Com essa análise fica claro perceber que a solução do conflito sempre provém de uma das partes interessadas, por isso, é unilateral e imposta. Entretanto, se esta imposição vem por meio de violência, consequentemente importaria na quebra da ordem e na vitória da parte mais forte e não do legitimo titular do direito ali disputado, por este motivo que é proibida por diversos ordenamentos jurídicos.[24] Além disso, entende-se que a greve exerce uma pressão necessária ao empregador, com o intuito de obter concessões do mesmo e também obrigar o legislador a reformular a ordem jurídica, quando as normas elencadas não satisfizerem as exigências e necessidades do grupo de trabalhadores. Por isso, conclui-se que a greve é necessária a sociedade capitalista.[25] Outra teoria diz que levando em conta a natureza jurídica de que se reveste, este instituto seria a própria essência do Direito Coletivo do Trabalho na qual seria representado pelo conflito entre trabalhadores e patrões. Devido a isto a greve pode ser compreendida como um fato social o que o colocaria no arcabouço da sociologia e não da Ciência Jurídica.[26] 2.3. Natureza Jurídica da Greve    No que diz respeito à natureza jurídica da greve, não existe um conceito fixo para o assunto. Para Bezerra Leite, a definição de sua natureza jurídica depende da compreensão do contexto no qual se desenvolve, salientando que a própria evolução histórica da greve demonstra a sua íntima ligação com o regime                                                                                                                                político vigente.[27] Isto quer dizer que, ela pode ser compreendida em um entendimento tríplice: greve-delito, concepção paternalista e autoritária do Estado, ou seja, regimes corporativos aparelhados de órgãos com o intuito de resolução de conflitos coletivos de trabalho; greve-liberdade, uma concepção liberal do Estado que considera a greve um fato socialmente indiferente, sujeita apenas a punições quando ensejadas de violência, atuando o Estado como um mero espectador e por ultimo a visão social-democrática do Estado, na qual a greve é considerada útil e necessita ser protegida pelo ordenamento jurídico, concepção adotada no Brasil. Em qualquer hipótese citada, refere-se a um direito de coerção que visa solucionar os confrontos coletivos[28] Por fim, aí estão alguns marcos basilares do direito de greve com a finalidade de atender o trabalhador na defesa de seus direitos em face do empregador, ocorrendo um nivelamento entre as partes. Outra faceta dada ao estudo da natureza jurídica da greve é que esta pode possuir uma característica bem complexa, podendo ser considerado como um direito de igualdade quando referido ao movimento paredista sendo este um mecanismo viabilizador de aproximação de poderes, de igualização entre trabalhadores; pode ainda ser considerado como liberdade, estando o instituto da greve acima do direito, pois constitui um direito atribuído ao sujeito em face do Estado, o que impede a qualificação dessa ação como delito; pode também ser conceituado como direito instrumental, por ser mecanismo de pressão para o alcance de reivindicação coletivas dos trabalhadores; e por fim pode ser resultado de um direito potestativo que seria de certa forma a consequência da noção de autotutela inerente à greve. Para Russomano, põem-se ao lado as considerações sociológicas, econômicas e políticas, efetuando assim uma retirada da visão que as diferentes escolas doutrinam sobre a greve. O mesmo afirma que do ponto jurídico estão presentes duas grandes correntes que visam explanar a natureza jurídica do movimento paredista como fato jurídico (humano e voluntário) ou como direito subjetivo.[29] O mesmo ainda reitera que não há motivos sólidos, mesmo à luz da moral ou à luz do pensamento jurídico, para reconhecer que os trabalhadores possuam o direito de paralisar serviços essenciais para a sociedade, devido a um direito subjetivo reconhecido pela ordem social.[30] É notório que a greve é um instrumento que os trabalhadores utilizam com a função de forçar, coagir, por uso da força, o empregador a consentir e ratificar seus pedidos, caracterizando assim um meio de solução direta de conflito coletivo do trabalho, por este motivo não pode ser considerado um direito subjetivo, pelo fato de  ser violento. Assim é considerado um fato que surge na sociedade.[31] Ainda para Russomano, este fato cria, altera ou extingue as relações jurídicas, portanto é humana e voluntária, classificando-se como ato jurídico. Por este motivo, o ordenamento jurídico não pode ficar inerte, e por isso deve discipliná-lo, como ocorre em outras legislações, toda via isto não necessariamente reconhece a existência de um direito de greve.[32] 2.4. Características do Instituto    As principais características do instituto da greve são caráter coletivo do movimento, a sustação provisória de atividades laborativas como núcleo desse movimento, o exercício direto de coerção e os objetivos profissionais.[33] Para se caracterizar greve, há a necessidade de ser um movimento coletivo, e não de um indivíduo somente. Ela é por natureza um ato grupal. Tem como fator principal a paralisação das atividades laborativas dos trabalhadores em face do seu empregador. Por isso, paralisações individuais devido a fatores ambientais desfavoráveis na empresa não constituem movimento paredista e sim desídia, o que daria ensejo à dispensa motivada.[34] Outro fato de extrema importância da greve é a caracterização de ser um instrumento direto de coerção por meio de pressão coletiva. Delgado afirma que o Direito do Trabalho, em face da diferenciação socioeconômica e de poder entre empregador e empregado, reconhece como um instrumento politicamente legitimo e juridicamente válido com o intuito de buscar uma equalização entre essas duas partes.[35] O movimento paredista tem objetivos, em geral, de natureza econômico-profissional ou contratual trabalhista, sendo que a amplitude dos objetivos da greve pode variar de acordo com os critérios adotados pelas ordens jurídicas nacionais específicas. O padrão geral das greves circunscrevem as fronteiras do contrato de trabalho, ao âmbito dos interesses econômicos e profissionais dos empregados. Dessa forma, os interesses contemplados nos movimentos paredistas são, de forma geral, típicos ao contrato de trabalho. Além disso, pode-se observar que a Carta de Outubro, trata o assunto de forma totalmente contrária a todas as outras constituições anteriores efetivadas em nossos pais. Pois, aquela deu amplitude para a concretização do direito de greve, uma vez que determinou competir aos trabalhadores a decisão sobre a oportunidade de exercer o direito, assim como decidir a respeito dos interesses que devam por meio dele defender, conforme disposto no artigo 9º da Constituição Federal. Para Maurício Godinho, seriam legítimos movimentos grevistas que se dirijam a interesses estranhos aos estritamente contratuais, tais como greves de solidariedade e greves políticas. Segundo Delgado, a legitimidade de iniciar a greve é dos sindicatos dos trabalhadores, estes protegidos pela norma constitucional-trabalhista, já que este instrumento pressupõe o exaurimento da negociação coletiva, por este motivo os sindicatos são obrigados a participarem de toda e qualquer espécie de negociação coletiva. Isto é fruto do principio da autonomia privada coletiva que tem como objetivo principal a feitura de acordo ou convenção coletiva para a solução do conflito.[36] Devido a isto, o artigo 4º da lei 7.783/89 fala que “Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma de seu estatuto, assembleia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”. Concluindo, a efetiva aplicação do parágrafo único do artigo 1º e do artigo 3º e seu parágrafo único, todos da lei 7.783/89, preveem que para o exercício do direito de greve é preciso o preenchimento de dois requisitos: frustração da negociação coletiva ou impossibilidade de recurso à arbitragem e aviso prévio ao empregador.[37] 2.5. Extensão e Limites Quanto à extensão e os limites do exercício desse direito a ordem jurídica exerce um controle coercitivo, mesmo que em nosso país tenha-se uma ampliação das potencialidades desse instrumento, embora ainda se encontre forma de conter esse direito. Há, portanto, limitações que podem ser consideradas objetivas, aquelas encontradas na Constituição e na Lei de Greve, como por exemplo, a restrição de greve em atividades essenciais, as subjetivas, que remetem os abusos cometidos, como por exemplo, a manutenção da paralisação mesmo após a convenção ou decisão da Justiça do Trabalho. No que tange às limitações a Carta Magna traz, no artigo 9º, §1º, a noção de serviços ou atividades essenciais. Neste rol taxativo, definido por lei, cabe à mesma dispor sobre o serviço de atendimento às possíveis necessidades inadiáveis da sociedade.[38] Por isso, percebe-se que não há uma proibição expressa de greve nesses setores. Entretanto, cria mecanismos, rigorosas regras e condições, em virtude do atendimento de atividades essenciais à sociedade.[39] Ainda à luz dos serviços essenciais a Lei de Greve traz em seu artigo 11, “os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis a sociedade”. O parágrafo único do disposto elenca como necessidades inadiáveis da sociedade as que não acessadas, possam colocar em risco a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.[40] A O.J. 38 SDC/TST têm invalidado os movimentos grevistas nas áreas que atendem essas necessidades essenciais com base na legislação existente.[41] A legislação grevista assegura que na vigência do acordo coletivo, convenção ou sentença normativa, não caracteriza abuso de direito de greve paralisações que tenham como motivo o cumprimento de clausula motivadas pela superveniência de fato novo ou acontecimento inesperado que consequentemente faça surgir uma modificação de grande monta na relação de trabalho.[42] 3. O SERVIDOR PÚBLICO 3.1. Conceito Quanto ao Servidor público podemos conceituar como uma pessoa legalmente investida em cargo público, com um conjunto de atribuições e responsabilidades que estão elencadas na estrutura organizacional, as quais devem ser observadas pelo servidor, de acordo com os artigos 1º e 2º da Lei 8112/90.[43] Servidor Público é a denominação dada em sentido latu senso, com o intuito de caracterizar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às Entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido stricto senso, na qual exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado.[44] Servidor Público é espécie dentro do gênero agentes públicos. A codificação agentes públicos caracteriza, de forma genérica, e indistinta os sujeitos que exercem atividades no Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação ainda quando o exerçam esporadicamente.[45] Os mesmos são divididos em três grupos: 1) agentes públicos; 2) servidores estatais, na qual englobam servidores públicos e servidores das pessoas governamentais de Direito Privado; e 3) particulares que atuam em colaboração com o Poder Público.[46] Segundo Hely Lopes Meireles, os agentes públicos são peças integrantes do Governo nos escalões mais altos, incluindo neste rol tanto os Chefes do Poder Executivo federal, estadual e municipal e também os seus auxiliares direitos, membros do Poder Legislativo, como também do Poder Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional.[47] Esses agentes possuem um vínculo de natureza política com o Estado, e não profissional. Consequentemente, pode se perceber que a característica que os qualifica para o exercício das funções não é a habilitação profissional, proficiência técnica, mas sim a qualidade de cidadãos, por isto, candidatos possíveis à condução da sociedade.[48] Na teoria adotada por Bandeira de Mello, servidor público tem a denominação que inclui todos que possuem vínculos de trabalho profissional com entidades governamentais, com integração em cargos ou empregos públicos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, suas autarquias e fundações de Direito Público, consubstanciando com a máquina pública relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual, sob um visível vinculo de dependência.[49] Di Pietro conceitua em sentindo amplo o servidor público como a pessoa física que presta serviços ao Estado e às suas Entidades da Administração Indireta, com um vínculo empregatício e mediante o pagamento de uma remuneração paga pelos cofres públicos. Sendo divididos em classes: estatutário, que se sujeitam a regime estatutário e ocupam cargos públicos, e os empregados públicos, contratados sob o regime celetista; além dos servidores temporários, contratados por um tempo determinado com o intuito de atender uma necessidade temporária de urgente interesse público, sem estarem vinculados a cargo ou emprego público.[50] Para os doutrinadores é muito importante saber a diferença entre servidores públicos de servidores estatais. Rinaldo Guedes Rapassi esclarece a conceituação do segundo: “Servidores estatais são aqueles titulares de cargo ou ocupantes de empregos públicos, que entretêm com o Estado e suas entidades da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual, sob vínculo de dependência”. Entretanto, à luz de Celso Antônio Bandeira de Mello, servidor público se encaixa como uma subespécie de servidor estatal como está exposto em sua obra: “Servidores Públicos são os servidores estatais, exceto os empregados das entidades da administração indireta de Direito Privado. A designação abrange todos aqueles que mantêm vínculo de trabalho de natureza profissional, caráter não eventual, sob vínculo de dependência com as entidades governamentais, integrados em cargos ou empregos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, além das respectivas autarquias e fundações – pessoas jurídicas de Direito Público da Administração indireta”. 3.2. Classificação  Quanto à classificação utilizada por José Maria Pinheiro Madeira, pode-se dividir primeiramente os servidores em civis e militares.  A Emenda Constitucional  nº 18 de 1988 alterou a Constituição Federal no que diz respeito a expressão “Servidores Públicos Civis” por “Servidores Públicos”, e “Servidores Públicos Militares” Por “Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, incluindo neste rol os servidores federais no capítulo das Forças Armadas. Desta forma depreende-se que todos são servidores públicos, haja vista que os mesmos possuem uma relação de trabalho com entidades federativas. Desta forma considera-se servidor público civil aquele que têm suas normas traçadas pela CF/88 em seus artigos 39 a 41 e servidores militares aqueles tratados no rol do artigo 42 da Carta de Outubro.[51] A segunda forma de divisão é quanto à espécie do vínculo jurídico que une o servidor ao Poder Público, as naturezas das suas funções. A divisão é feita em os sujeitos ao regime estatutário, àqueles que são titulares de cargos públicos; e os sujeitos ao regime trabalhista, contratados pelas pessoas jurídicas de direito público, que são empregados públicos e os servidores temporários, todos amparados pelo artigo 39, IX, da Carta Magna.[52] Nesta mesma corrente temos Rinaldo Guedes Rapassi, que em sua obra cita Bandeira de Mello, dizendo que os servidores se dividem em: titulares de cargos públicos da Administração Direta, além do Poder Judiciário e do Poder Legislativo; servidores empregados das pessoas jurídicas de Direito Público, na qual se encontrem com vínculo empregatício ou admitido em funções subalternas, fato este válido após a Emenda Constitucional nº 19/98; servidores contratados sob vínculo trabalhista, com o intuito de satisfazer a necessidade excepcional de uma utilidade pública; servidores remanescentes do regime anterior a Constituição de 1988, onde se permitia amplamente o regime de emprego; e por fim servidores das pessoas jurídicas de direito privado.[53] 3.3. Servidores Estatutários e Celetistas Como é sabido, com a Emenda Constitucional 19/98 que efetuou mudanças na redação do artigo 39, caput, e alterou o conteúdo do artigo 206, V, da Carta de Outubro ocorreu à desobrigação da adoção do regime jurídico único para todos os servidores públicos. Por isso, este regime pode ser estatutário, celetistas, ou administrativo especial, contemplados no artigo 39, IX, da CF/88. No que diz respeito a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem adotar o regime estatutário, sempre por meio de lei geral ou especifica para os servidores públicos titulares ou para categorias profissionais já determinadas. Entretanto, podem utilizar o regime celetista sem efetuar alterações na legislação trabalhista, pois estas possíveis modificações são de competência exclusiva da União. Por isso, pode-se dizer que somente estarão sujeitos ao regime jurídico estatutário os servidores que exercem atribuições de forma exclusiva para o Estado. O regime jurídico aplicável aos servidores públicos se caracteriza pelas qualidades específicas funcionais inerentes ao direito público. As competências restritas de direito público são meios de satisfação das necessidades coletivas. Em relação ao servidor estatutário, são afastadas várias garantias existentes no direito privado, haja vista que são incompatíveis com o exercício das atividades estatais. Entretanto, este mesmo servidor é investido de outras garantias que não existem no direito privado.[54] O vínculo trabalhista ocorre somente com um contrato de trabalho, enquanto o vínculo estatutário é criado por meio de um ato administrativo unilateral do Estado. Devido a isto, o arcabouço de direitos e deveres reflete o consenso entre as partes. Uma possível alteração nestes direitos e deveres pressupõe a existência desse consenso. Vale lembrar também que o vínculo de emprego público, mesmo por ser caracterizado como natureza trabalhista não equivale aos mesmos princípios que regem a relação entre particulares, na qual a autonomia em bem mais ampla.[55] Como está citado na obra do doutrinador Hely Lopes Meirelles, a categoria dos servidores públicos envolve tanto os próprios servidores públicos, como os empregados públicos, sendo estes submetidos às regras da CLT e aqueles às regras do regime estatutário, sendo que ambos devem prestar concurso público para a investidura do cargo.[56] Para José Maria Pinheiro Madeira, servidores públicos estatutários são aqueles que possuem um vínculo com a Administração Pública direta, autárquica, fundacional pública, regidos pelo estatuto e ocupantes de cargo público.[57] Os mesmos exercem atividades que exigem uma titularidade e prerrogativas de autoridade do Estado, independência e segurança devido a um gozo de estabilidade funcional e remuneração compatível. O regime estatutário é compreendido por um conjunto de normas que regem a relação jurídica entre os servidores estatutários e o Estado, ocorrendo um vínculo legal. Por outro lado, os servidores públicos celetistas, são os ocupantes de emprego público e que estão ligados a Administração Pública por meio de uma relação contratual e regido pela CLT. Este regime é caracterizado pela sua unicidade normativa, haja vista que todas as normas se encontram em um único documento legal, a CLT. A última forma de servidor público é o temporário. Estes são ligados à Administração Pública por um tempo determinado, para o atendimento de necessidades de excepcional interesse público, definidas em lei, exercendo função sem estarem ligados a um cargo ou emprego público. 3.4. O Servidor Público no arcabouço dos princípios do Direito Coletivo do Trabalho Primeiramente, é necessário tomar nota que o Direito do Trabalho é conglobado por dois segmentos: individual e coletivo. Maurício Godinho Delgado afirma que cada um desses segmentos possui regras, institutos e princípios próprios.[58] Percebe-se então que o Direito Coletivo do Trabalho é constituído de um sistema de categorias de regras e princípios, integradas organicamente entre elas com o intuito de criar uma relação jurídica coletiva.[59] No Direito Coletivo do Trabalho o direito greve é caracterizado como uma das formas de solucionar conflitos trabalhistas. Dentre esses mecanismos, se encontra a autodefesa que tem como função a paralisação das atividades dos empregados, com a finalidade de pressionar o empregador a aceitar as reivindicações pedidas. Os princípios do Direito Coletivo do Trabalho interferem no exercício da autodefesa, aqueles se dividem em: a) Princípios assecuratórios das condições de emergência e afirmação da figura do ser coletivo. Visa manter as condições para o nascimento e a manutenção da figura do ser coletivo, e se ramificam em: princípio da liberdade associativa e sindical, que tem o intuito de assegurar a figura jurídico-institucional a qualquer agregação estável e pacífica entre pares, independente da classe social; e princípio da autonomia sindical que tem como finalidade assegurar a própria existência do ser coletivo. Deste modo percebe-se que há a sustentação das organizações associativas e sindicais dos trabalhadores, sem interferências. b) Princípios regentes das relações entre seres coletivos e trabalhistas. Trata sobre as relações entre os sujeitos coletivos e os devidos processos que efetivam essa relação. É dividido em três ramos: princípio interveniência sindical no ato de normatizar a lei coletiva, cuja meta principal é que a validade do processo negocial necessita da intervenção de um ser coletivo, como, por exemplo, o sindicato; princípio da equivalência dos contratantes coletivos, cujo intuito principal é a postulação do reconhecimento de um estatuto sócio-jurídico semelhante a ambos os contratantes coletivos, tanto o empregado como o empregador; princípio da lealdade e transparência na negociação coletiva, que tem como finalidade garantir as condições de efetivação da equivalência. c) Princípios regentes das relações entre normas coletivas negociadas e normas estatais. Tem como meta informar resultados normativos do processo negocial coletivo, com o intuito de fixar diretrizes no que tange a sua validade e alcance. Em outras palavras, significa colocar em ordem as relações e os efeitos entre as normas produzidas no Direito Coletivo. É muito necessária a abordagem do princípio da continuidade dos serviços públicos. Este é muito relevante pelo fato de que os serviços quando colocados à disposição do cidadão, não deverão ser paralisados. E um dos argumentos para a não execução de greves pelos servidores públicos é que o seu trabalho não pode ser interrompido, pois esta parada causaria prejuízos à coletividade. Analisando este último aspecto, tem-se a necessidade de se classificar os serviços indispensáveis à sobrevivência humana, que, por vezes, são prestados diretamente pelo Estado, ou por seus permissionários ou concessionários. Não é licito ao Poder Público deixar de promover a execução de serviços considerados de necessidades básicas ou de urgência. Ocorrendo a falta ou a má prestação destes serviços de extrema importância tem-se a violação aos direitos de terceira geração. Desta forma é inerente ao Poder Público a obrigação de manter a continuidade dos serviços públicos. Deste modo pode perceber a grande importância da criação de uma norma regulamentadora para o direito de greve dos servidores públicos. Com o intuito de se normatizar as hipóteses validas para possíveis direitos de greve, mas sem por em risco a continuidade da prestação de serviços públicos. 4. MANDADO DE INJUNÇÃO 4.1. Conceito e origem De acordo com o artigo 5º, inciso LXXI, da Carta de Outubro, trouxe em seu âmago, de forma inédita, que se concederá mandado de injunção sempre que exista uma ausência de uma norma regulamentadora que inviabilize o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. O STF decidiu de forma unânime pela auto-aplicabilidade do mandado de injunção, independente de edição de lei regulamentadora, em face do artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal, na qual ocorre a determinação de que os direitos e garantias fundamentais possuem uma aplicação imediata.[60] Como é de conhecimento, os servidores públicos não possuem uma norma específica quer a regulamente o seu direito de greve. Por isso, se tornou necessário a utilização de um Mandado de Injunção com o intuito de tornar viável o exercício de direitos e liberdades constitucionais. Existindo um direito que se encontre de alguma forma impossibilitado de ser gozado por lacuna de norma reguladora, o titular desse direito pode impetrar perante o poder judiciário, um mandado de injunção, com a finalidade da edição dessa norma ausente. Com a possível edição dessa norma, o judiciário complementa o direito subjetivo constitucional cujo exercício ficaria paralisado até que o órgão competente fizesse a elaboração. [61] Pode-se entender que este remédio constitucional possui o intuito de tirar possíveis inconstitucionalidades devido a omissões em matéria de lei. Alexandre de Morais entende que: “O mandado de injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal. Assim, juntamente com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o Mandado de Injunção visa dar efetividade as normas constitucionais, combatendo a inércia da norma constitucional, decorrente da omissão normativa”.[62] Além disso, Alexandre de Moraes, completa que alguns autores apontam a origem dessa ação constitucional no direito americano, que consiste em remédio de uso frequente, com base na chamada jurisdição de equidade, aplicando-se sempre quando a norma legal se mostra insuficiente ou incompleta para solucionar, com justiça, determinado caso concreto. Outros afirmam que este provém do Direito Português, com a única finalidade de advertência do Poder competente omisso. O doutrinador ignora esse viés histórico dizendo que estes não correspondem ao mandado de injunção do legislador constituinte; por fim conceitua-se a natureza jurídica deste remédio como sendo um direito fundamental de natureza processual com o objetivo de viabilizar o gozo de direitos fundamentais materiais.[63] Para Bandeira de Mello, o mandado de injunção é o ato apropriado para que o indivíduo postulante consiga, no caso concreto, por intermédio de uma ação judicial, à disciplina que regulamenta o exercício dos direitos e liberdades constitucionais ou das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, que não são respeitados pela ausência de uma norma regulamentadora.[64] Michel Temer explica que o judiciário em um julgamento de um mandado de injunção declara o direito por força de uma sentença mandamental. Isto quer dizer que este provimento judicial não significa uma criação legislativa, mas, sim, uma forma de jurisdição ampliada, respeitando a fixação delimitada na Constituição Federal, haja vista que a carta maior traz em seu arcabouço a prerrogativa de que o judiciário tem a função de impedir que estas omissões de regulamentação vulnerem os direitos fundamentais.[65] Segundo José Afonso de Silva, “O mandado de injunção é um instituto que se originou na Inglaterra no século XIV, como essencial remédio da Equity. Nasceu, pois, do Juízo de Equidade. Ou seja, é um remédio outorgado, mediante um juízo discricionário, quando falta norma legal regulando a espécie, e quando a Common Law não oferece proteção suficiente. A equidade, no sentido inglês do termo (sistema de estimativa social para a formulação da regra jurídica para o caso concreto) assenta-se na valoração judicial dos elementos do caso e dos princípios da justiça material, segunda a pauta de valores sociais, e assim emite decisão fundada não no justo legal mas no justo natural”.[66] Analisando essa ideia, o autor afirma que a fonte do mandado de injunção provém do writ of injuncton do direito norte-americano, que foi criado para a proteção dos direitos da pessoa humana, com o intuito de impedir a violação da liberdade de associação e de palavra, da liberdade religiosa, dentre outras.[67] Di Pietro afirma que o mandando de injunção tem como objetivo a proteção aos direitos de liberdade pública, entretanto, possui um alcance restrito, pois o mesmo só pode ser impetrado no caso de ausência de norma regulamentadora inviabilize o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas inerentes ao indivíduo. Com isso é notório que o conceito de mandado de injunção alienígena só pode ser visto como inspiração, mas não como modelo seguido pela constituição brasileira.[68] Diomar Ackel Filho reitera, “a injunção, no direito brasileiro, é ação constitucional sumária especial, garantidora de direitos básicos, com aspectos símiles ao do mandado de segurança, embora com caráter mais restrito, pois é subsidiária. A subsidiariedade do writ se verifica por que ele só é cabível ante a inexistência de norma regulamentadora dos direitos constitucionais. Em outros termos, há o direito, mas o seu exercício depende de regulamentação. A falta desse regulamento torna inviável a postulação do direito. Para evitar que isso aconteça e que a carência de regulamento torne inócuo o próprio dispositivo a regulamentar, a injunção exsurge como remédio poderoso para verificar a norma primária, tornando prescindível o regulamento, em caso de violação”.[69] Para Francisco Antônio de Oliveira, “mandado de injunção é remédio constitucional mandamental colocado à disposição da pessoa física ou jurídica com o objetivo de criar a norma jurídica regulamentadora do direito do impetrante por intermédio do Estado-juiz para a satisfação do pedido. Produz efeito sobre o caso concreto, sem valor erga omnes. Poderá excepcionalmente ser estendido a uma coletividade. Atua sobre a obrigação de fazer ou não fazer. E será a ordem endereçada a quem tiver o dever de praticar o ato e de arcar com as consequências econômicas. E somente no caso de desobediência ou mesmo de resistência daquele que tem o dever legal de prestar é que o juiz adiantará a satisfação ao impetrante. Diz respeito à violação de direitos constitucionais por ausência de norma regulamentadora”.[70] Para o doutrinador o mandado de injunção segue as especificidades do mandado de segurança, no que diz respeito ao rito sumário e especial da esfera civil, o que por consequência traz uma ação contenciosa e mandamental. Decisão proferida em sede meritória transitará em julgado e fará coisa julgada.[71] Em relação à natureza jurídica, o mandado de injunção é um direito fundamental de caráter de natureza processual, instrumental, com a meta de viabilizar o gozo dos direitos fundamentais materiais, em outras palavras, os direitos fundamentais que tem como intuito a defesa, a proteção e a promoção a valores e bens essências a dignidade da pessoa humana.[72] Já Ronaldo Lima dos Santos afirma que o mandado de injunção possui natureza dupla. Em relação ao direito constitucional, o remédio tem o objetivo de dar aplicabilidade a norma constitucional, cuja eficácia depende de uma norma regulamentadora. Já na esfera processual, esta ação consiste em direito público subjetivo de trazer a prestação da tutela jurisdicional do Estado, com a finalidade de desenvolver a prática de direito ou liberdade constitucional.[73] 4.2. Cabimento Segundo a doutrinadora Flávia Piovesan, a possibilidade de deferimento desse remédio constitucional está intimamente ligada à relação jurídica de causa e efeito. Isto quer dizer que, a falta de norma reguladora é considerada uma causa; e por consequência gera a impossibilidade de gozo de alguns direitos e por fim o efeito é a concessão desse mecanismo. Sendo que para a autora, esta ausência pode ser definida para omissão de qualquer medida, colocando dentro desse cesto, todas as leis ordinárias, complementares, decretos, regulamentos, resoluções, portarias, dentre outros atos. Sendo que esta lacuna poderá ser completa ou parcial; correspondendo a primeira a inércia completa do legislador, e a segunda a deficiência ou insuficiência da atividade do legislador. Em relação ao segundo termo tem-se a inviabilidade do exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, cidadania e soberania, cujo exercício estiver obstado por falta de norma regulamentadora. A doutrinadora acredita que os direitos tuteláveis não são apenas os que constam na Carta Magna, mas sim qualquer direito. [74] Existindo uma regulamentação, não é permitido o mandado de injunção como afirma José Afonso da Silva: “O direito, a liberdade ou as prerrogativas estabelecidas em normas constitucionais regulamentadoras, quando não satisfeitos, só podem ser reclamados por outro meio judicial (mandado de segurança, ação cautelar inominada, ação ordinária).”[75] Neste mesmo viés, Michel Temer diz que apenas a mera ausência de norma regulamentadora enseja o mandado de injunção. Desta forma entende-se que não é a falta de atuação administrativa que permite o uso desse remédio constitucional.[76] Alexandre de Morais defende que as normas constitucionais que permitem a utilização do mandado de injunção têm características similares ás da ação direita de inconstitucionalidade por omissão e não decorrem de todas as espécies de omissões efetuadas pelo Poder Público, mas somente as normas constitucionais de eficácia limitada que se referem a princípios impositivos e de normas programáticas vinculadas com o principio da legalidade, por dependerem de atuação normativa posterior com o intuito de garantir a sua aplicabilidade.[77] O autor conclui que não é cabível o mandado de injunção quando o motivo principal for à reclamação de edição de norma regulamentadora de dispositivo constitucional, com a pretensão de alterar lei ou ato normativo existente, que seja supostamente incompatível com a Carta Magna ou com o intuito de exigir uma interpretação à aplicação da legislação infraconstitucional ou com a finalidade de uma possível imposição mais justa da lei.[78] 4.3. Efeitos e Limites Quando adentramos no arcabouço teórico dos efeitos desse remédio constitucional, há a necessidade de embasarmos nosso conhecimento em um pronunciamento do Ministro aposentado, Neri da Silveira, que de forma apropriada resumiu as posições existentes no STF sobre esse assunto: “Há como sabemos na Corte, no julgamento dos mandados de injunção, três correntes: a majoritária, que se formou a partir o Mandado de Injunção nº 107, que entende deva o STF, em reconhecendo a existência da mora do Congresso Nacional, comunicar a existência dessa omissão, para que o Poder Legislativo elabore a lei. Outra corrente minoritária, reconhecendo também a mora do Congresso Nacional, decide, desde logo, o pedido do requerente do mandado de injunção e provê sobre o exercício do direito constitucionalmente previsto. Por último, registro minha posição, que é isolada, partilho do entendimento de que o Congresso Nacional é que deve elaborar a lei, mas também tenho presente que o exercício de direitos e liberdades, contemplados na Carta Política, mas dependentes de regulamentação. Adoto posição que considero intermediária. Entendo que se deva, também, em primeiro lugar, comunicar ao Congresso Nacional a omissão inconstitucional, para que ele, exercitando sua competência, faça a lei indispensável ao exercício do direito constitucionalmente assegurado aos cidadãos. Compreendo, entretanto, que, se o Congresso Nacional não fizer a lei em certo prazo que se estabeleceria na decisão, o STF pode tomar conhecimento da reclamação da parte, quanto ao prosseguimento da omissão, e, a seguir, dispor a respeito do direito in concreto. É por isso mesmo, uma posição que me parece concilia a prerrogativa do Poder Legislativo de fazer a lei, como o órgão competente para a criação da norma, e a possibilidade de o Poder Judiciário garantir aos cidadãos, assim como quer a Constituição, o efetivo exercício de direito na Constituição assegurado, mesmo se não houver a elaboração da lei”.[79] Após essa elucidação percebemos que pela corrente concretista, se há a existência dos requisitos constitucionais para o mandado, o Poder Judiciário poderá declarar a omissão legislativa e por consequência implementar o direito que estava ausente. Essa posição subdivide-se em concretista geral no qual a decisão proferida pelo Poder Judiciário terá efeitos erga omnes, ocorrendo à implementação do exercício da norma constitucional por intermédio de uma normatividade geral, até que a omissão seja sanada pelo poder competente; e em concretista individual, na qual somente se produzirá efeitos para o autor do mandado de injunção, caso concreto.[80] A grande crítica à posição concretista geral é ao fato de que com a decisão prolatada com efeitos erga omnes, em sede de mandado de injunção, o poder judiciário estaria usurpando uma função do poder legislativo, fato este que viola o sistema de separação de poderes, destarte a posição concretista individual estaria de acordo com a teoria da separação dos poderes, pois a Carta Magna aborda tanto as varias formas de funções estatais para cada um dos Poderes, como estipulou um sistema complexo de freios e contrapesos com o intuito de equilibrá-los com a função de se criar uma melhor sociedade. Desta forma, utilizando a posição de concretista individual é plausível a existência do instituto do mandado de injunção com o sistema de freios e contrapesos, pois o Poder Judiciário, investido do seu poder jurisdicional, tem como obrigação evitar a ameaça ou a lesão a direitos, liberdades ou prerrogativas, que nasceram da omissão do Poder competente, fazendo a declaração da existência da omissão e permitido que o sujeito lesado usufrua a norma constitucional, nos moldes previstos na decisão, enquanto não ocorre saneamento da lacuna legislativa ou administrativa.[81] Já para a corrente não concretista que foi adotada por longos anos pela jurisprudência, diz que o mandado possui a finalidade de ensejar o reconhecimento da inércia do Poder Público em criar a norma regulamentadora ausente.  Por isso, entende-se que não se pode falar em medidas jurisdicionais que torne possível a concretização desse direito, mas, somente, a ciência ao poder competente para a criação da norma. Desta forma, não se pode falar em medidas jurisdicionais que torne possível o exercício do direito, liberdade, ou da prerrogativa constitucionalmente prevista, mas unicamente somente, ciência ao poder competente para a possível criação da norma. Entretanto, a crítica a esta corrente é embasada pelo fato de que os efeitos do mandado de injunção seriam idênticos aos da ação direita de inconstitucionalidade por omissão, apesar de serem institutos diversos.[82] O mandado de injunção por ser um direito fundamental de natureza processual tem como finalidade possibilitar o exercício de posições jus fundamentais que necessitam de lei para que ganhem efetividade e com isso este efeito acaba sanando a omissão legislativa, possibilitando efetivo gozo do direito. Desta forma este remédio não poderá tem efeitos iguais à ação de inconstitucionalidade por omissão, pois assim o dispositivo constitucional que o institui será inútil.[83] Em relação à finalidade do mandado de injunção, o writ tem como base a busca do equilíbrio entre a dignidade da pessoa humana, que se concretiza com a titularidade e exercício dos direitos fundamentais, para assegurar a sua máxima eficácia, e o pluralismo político, uma das principais vertentes do principio democrático.[84] Este equilíbrio torna necessário a fundamentalidade dos direitos que possibilita a superação da inércia do legislador democrático através da intervenção jurisdicional.[85] Além disso, Di Pietro, diz que a decisão trará apenas efeitos no caso concreto, por consequência, fazendo coisa julgada, que, de modo que criada a lei complementar estará cumprindo do artigo 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna, que segundo esta a lei não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito. [86] Bandeira de Mello, afirma que o remédio constitucional não estava conseguindo exercer a finalidade que na qual foi criado, pois o STF, por discordar do preceito constitucional, lograva impedir que os efeitos fossem produzidos para os quais foi concebido. Devido a isto, já havia ocorrido o consenso que se o Congresso não atendesse o prazo fixado pela Corte, em mandados de injunção anteriores, surgia em favor do impetrante o direito de postular a ação de perdas e danos para ressarcimento do prejuízo sofrido. Além disso, esta ação tem um ponto em comum com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o fato deve ter por fundamento uma inconstitucionalidade por omissão que acaba impedindo o exercício de alguns direitos constitucionais. Entretanto, a ADIN tem um alcance mais amplo, pelo motivo de ser cabível quando a omissão impeça a efetivação da norma constitucional, por outro lado, o mandado de injunção só e cabe na esfera de norma regulamentadora. Por isso, percebe-se que a finalidade é diversa, pois, se fossem iguais não haveria a necessidade de requisitos de duas medidas na Constituição e não haveria normas diversas sobre a competência do mandado de injunção.[87] 5. APLICABILIDADE DO MANDADO DE INJUNÇÃO E A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE GREVE 5.1. A norma constitucional – aplicabilidade e eficácia A doutrina tradicional costuma classificar as normas constitucionais em dois tópicos: normas programáticas ou diretivas e normas preceptivas. Outrora, tinha-se a ideia de que somente as normas preceptivas possuíam uma dotação de eficácia vinculante. Enquanto que as diretivas não eram valoradas como uma normatividade, sendo reduzidas a noções rasteiras para expressar a filosofia do poder, e não somente ao fundamento jurídico constitucional. [88]   A jurisprudência Italiana aborda este assunto distinguindo as duas normas quanto ao seu destinatário, objeto e a natureza da norma. No que tange ao aspecto da natureza da norma, as programáticas são caracterizadas pelo excesso de abstração e pela imperfeição contida na mesma, fato este que acaba demandando operações integrativas; as perceptivas são consideradas normas concretas e completas, que por consequência pode ser imediatamente efetivada por ser dotada de uma juridicidade incontrastável. Em relação ao objeto, as programáticas são aquelas que possuem uma efetividade sobre os comportamentos estatais e as preceptivas são as que afetam as relações privadas; Por fim, quando se tem o destinatário como foco de estudo percebe-se que as programáticas seriam aquelas que dirigidas diretamente ao legislador; a medida que as preceptivas seriam aquelas voltadas a sociedade de forma geral e ao juiz. [89] A jurisprudência americana efetua uma distinção na classificação constitucional. Classificando as mesmas em: auto-aplicáveis (self executing provisions) e não auto-aplicáveis (not self executing provisions). [90] Em referência a este assunto, Rui Barbosa afirma: “Executáveis por si mesmas, ou auto-executáveis são, portanto, as determinações para executar as quais não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquelas onde o direito instituído se ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação. Mas nem todas as disposições constitucionais são auto-aplicáveis. A maioria delas, pelo contrário, não o são. A Constituição não se executa por si mesma: antes requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos”. [91] Para José Afonso de Silva existe uma classificação própria e autônoma das normas constitucionais, tendo como aspecto a ótica da eficácia e aplicabilidade. Sendo estas classificadas em: normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, entretanto, sujeitas a restrição; normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. Para o doutrinador, a classificação baseada somente em auto-aplicáveis ou não auto-aplicáveis das normas constitucionais não corresponde a realidade atual das coisas muito menos supre as exigências da ciência jurídica, nem as necessidades básicas instituídas para a aplicação das constituições, pois desta forma há uma sugestão da existência de normas ineficazes e destituídas de imperatividade. O autor ainda afirma que nem as normas caracterizadas como auto-aplicáveis, por uma característica intrínseca, efetua todos os efeitos possíveis, pois são passives de evolução e desenvolvimento por intermédio de lei ordinária; as não auto-aplicáveis possuem eficácia nula, pois produzem efeitos jurídicos e tem eficácia, reduzida ou relativa. [92] Ratificando esta ideia, o autor diz: “Cada norma constitucional é sempre executável por si mesma até onde possa, até onde seja suscetível de execução. O problema situa-se, justamente, na determinação desse limite, na verificação de quais os efeitos parciais e possíveis de cada uma”. [93] Analisando a ideia anterior percebe-se a inexistência de uma norma constitucional destituída de eficácia, desta forma pode-se inferir que ocorre uma irradiação de efeitos jurídicos, ocasionando, desta forma, uma inovação no aspecto da ordem jurídica existente à entrada em exercício da constituição a que se inserem formulando assim uma nova ordenação. O fato que pode ocorrer e ser admitido é que a eficácia e os efeitos plenos de certas normas não estão presentes somente no arcabouço da Carta Magna, necessitando assim de uma normatização especifica e ulterior pelo legislador ordinário, prevista ou requerida. [94] Desta forma é notório que todas as normas jurídicas possuem eficácia, ocorrendo à distinção de aspectos somente no que se refere aos efeitos jurídicos. Por isso, entende-se a impossibilidade na separação das normas de eficácia plena, aquelas que seriam aplicadas imediatamente, e as normas de eficácia limitada. [95] Devido a isto, tem-se a necessidade de uma maior especificação, com o intuito de ocorrer e executar uma separação de certas normas que preveem uma legislação futura, mas não se enquadram no nicho das de eficácia limitada. Deste modo, uma melhor classificação seria considerar uma divisão em três categorias e não somente em duas. As novas categorias seriam: normas constitucionais de eficácia plena; normas constitucionais de eficácia contida; normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. [96] Quando se refere às normas constitucionais de eficácia plena incluem-se todas as normas desde que a Constituição Federal entrou em vigor, acarretando a partir disso todos os seus efeitos básicos necessários. Isto se dá, primordialmente, devido à criação pelo legislador de uma normatividade afetando diretamente e de forma imediata sobre a matéria que lhes constitui o objeto. Em referencia as normas constitucionais de eficácia contida observa que este grupo também é constituído de normas que irradiam imediatamente e produzem todos os efeitos, entretanto, preveem meios que permite uma norma mais contida em alguns limites, dados os aspectos. Em outra frente, as normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida são todas as que não produzem, com a entrada em vigor da Constituição, todos os efeitos necessários, pois o legislador não estabeleceu, sobre esta matéria, uma normatividade, desde modo deixa a cargo a tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado. [97] Desta forma, pode perceber que as normas de eficácia plena são de aplicabilidade direta, imediata e integral quando se refere a interesses objeto de sua regulamentação jurídica, por outro lado, as normas de eficácia limitada tem aplicação de forma indireta, mediata e reduzida, pois somente incidem de forma total, após uma norma ulterior que venha autorizar a sua eficácia, antes disso as mesmas possuem uma eficácia reduzida e surta efeitos não primordiais. Quanto à de eficácia contida tem-se uma aplicabilidade direta, imediata, entretanto, não integral, pois as mesmas estão sujeitas a uma regulamentação que limite tanto a sua eficácia como a sua aplicabilidade. Na ótica de Michel Temer as normas constitucionais tem em seu âmago uma eficácia. Podendo ser estas uma eficácia jurídica e social. “Eficácia Social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma não está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos jurídicos na medida em que em sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam. Embora não aplicada a casos concretos, é aplicável juridicamente no sentido negativo. Isto é: retira a eficácia da normatividade anterior. É eficaz juridicamente, embora não tenha sido aplicada concretamente”. [98] Segundo Maurício Godinho Delgado, quando tratar de normas de eficácia completa a mesma tem aplicação imediata e integral, criando assim uma independência em relação a legislação posterior no que tange ao alcance operacional. Além disso, não precisa da intermediação do legislador infraconstitucional para alcançar a imediata eficácia em situações concretas. [99] Já em relação à norma contida, o autor, afirma que estas possuem uma eficácia redutível ou restringível por uma norma infraconstitucional, de forma já autorizada pela própria Carta Magna. Em miúdos, essas regras possuem uma aplicabilidade imediata, entretanto tem um alcance restringido pelo próprio legislador, fato este corroborado na constituição. Em regra, são normas que tem a missão de enunciar direitos com um preceito suplementar.  Desta forma, conclui-se que a não edição da norma complementar regulamentadora, acarreta a entrada em vigor da norma constitucional. [100] Ainda nesta seara, o doutrinador reitera que a norma de eficácia contida possui uma figura de grande monta no que diz respeito a ser uma barreira sobre as leis infraconstitucionais que possuam um arcabouço teórico antiético ou incompatível. [101] Finalizando, a norma de eficácia limitada são aquelas regras constitucionais que dependem da emissão da normatividade posterior com o intuito de alcançar a plena eficácia. Essa norma tem eficácia imediata, apesar de ser limitada. Ao legislador ordinário cabe integrar a eficácia destas normas. Percebe-se que a eficácia desta norma é bem menos intensa que a das outras duas anteriormente relatadas, além disso, esses preceitos não estão destituídos de eficácia jurídica, uma vez que possuem a aptidão a obstar a edição de normas infraconstitucionais que não sejam eticamente aceitas. [102] 5.2. Evolução histórica no STF a respeito do entendimento da eficácia do mandado de injunção na garantia do direito de greve A Carta Magna, de forma inédita, garantiu ao servidor público civil o direito à livre associação sindical. Além disso, enfocou no direito de exercer o instituto do movimento paredista no que concerne a administração pública, observando a seguinte regra: “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar”. Entretanto, a Emenda Constitucional n. 19 veio alterar a lei complementar por uma legislação específica. Há exatos 24 anos da promulgação da Carta de Outubro, o Congresso Nacional ainda não editou a legislação específica necessária para regulamentar esse direito constitucional do direito a greve. Durante esse lapso temporal o STF veio alterando o seu entendimento em relação a eficácia do Mandado de Injunção. No inicio, as decisões proferidas pela corte eram com o viés de atribuir ao inciso VII do art. 37 eficácia limitada, exercendo assim o uso da corrente doutrinária não concretista. Deste modo, a corte suprema entendia que era vedado ao servidor público exercer o direito de greve até que fosse criada a norma específica. Para corroborar essas decisões tem-se o MI 20-DF, Rel. Min. Celso de Mello, ADI 339-RJ, de 17.07.1990, e também o MI 438-GO, de 11.11.1994. Essas decisões tornaram invalido o direito de greve para os servidores públicos, uma vez que a lei específica regulatória não tinha sido editada. [103] Analisando de forma mais especifica o MI 20-DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, interposto pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil, o Superior Tribunal Federal reconheceu que o direito de greve exercido pelo servidor público tratava de uma norma de eficácia limitada, desta forma impossibilitada de uma aplicabilidade imediata, desta forma, dependia de uma norma complementar para o gozo deste direito de forma licita. [104] Todavia, alguns Ministros no julgamento do MI n.20, se posicionaram a favor da aplicação, de forma análoga, da Lei Geral de Greve aos servidores públicos, enquanto a não edição da norma específica, desde que feitas às devidas adequações. Corroborando esta tese tem-se a fala do Ministro Marco Aurélio: “(…) não me limito a determinar seja oficiado ao Legislativo comunicando essa mora. Mais do que ninguém, o Legislativo sabe que está em mora. Vou adiante, sentindo-me muita à vontade em fazê-lo porque, muito embora não se confira ao Supremo Tribunal Federal – ao contrário do que ocorreu em relação à Justiça do Trabalho – o poder normativo, encontro no inciso LXXI do artigo 5º base para, julgando o mandado de injunção, chegar à fixação das condições indispensáveis ao exercício do direito de greve. Tomo de empréstimo, Senhor Presidente, o teor da Lei nº 7,783/89, consideradas as adaptações necessárias, e a primeira delas corre à conta da competência para julgar a controvérsia coletiva que deu motivo à greve que, na dicção desta Corte, não é a da Justiça do Trabalho, mas da Justiça Federal”. Posição também mantida pelo Ministro Carlos Velloso: “(…) passo a fazer aquilo que a Constituição determina que eu faça, como juiz: elaborar a norma para o caso concreto, a norma que viabilizará, na forma do disposto no art. 5º, LXXI, da Lei Maior, o exercício do direito de greve do servidor público. A norma para o caso concreto será a lei de greve dos trabalhadores, a Lei nº 7.783, de 28.06.89. É dizer, determino que seja aplicada, no caso concreto, a lei que dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, que define as atividades essências e que regulamenta o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Durante o entendimento do Supremo Tribunal Federal aconteceram, de forma reiterada, greves no serviço público, sendo que a grande maioria destas o Poder Executivo sequer apelou pela ilegalidade dos movimentos. Segundo Delgado, este pensamento adotado pelo Executivo perpassa a ideia que estes movimentos teriam validade assegurada devida a democracia instalada no país. [105] Observando as decisões posteriores em sede de mandado de injunção pode se perceber a evolução no entendimento da corte suprema em relação à eficácia. Para ratificar este pensamento podemos utilizar como exemplo o MI 283-DF, na qual a corte suprema toma nota da grande demora do legislativo em criar a norma regulamentadora e por este motivo decidiu criar um prazo mínimo para a criação desta norma, sendo que continuada a presença dessa lacuna, será dado ao titular o direito de indenização por perdas e danos. No MI 232-RJ, a suprema corte julgou a mora do Congresso Nacional, arbitrando assim um prazo para a regulamentação do dispositivo constitucional, sendo que, existindo ainda a lacuna. Após esses Mandados percebe-se que a Corte evoluiu no seu posicionamento quanta a viabilidade da utilização desse remédio constitucional para a efetivação desse direito adquirido, entretanto pendentes de regulamentação, que ainda não se tornaram eficaz de imediato a plenitude do exercício dos direitos expressos na Constituição. Deste modo Flávia Piovesan cita: “(…) embora as decisões do MI 232-1 e do MI 232-5 expressam um avanço na orientação jurisprudencial do Supremo, ainda não expressam a real potencialidade do mandado de injunção, que permite ao próprio Poder Judiciário assegurar ao impetrante o exercício imediato de direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais, no caso concreto”. [106] Na histórica data de 25 de outubro de 2007, nos julgamentos dos mandados de injunção números 670, 708 e 712, a Suprema Corte tratou como eficaz o preceito estudado como válido, com a devida aplicação, com algumas modificações, do diploma genérico que regulamenta o movimento paredista, até que a norma especifica seja editada. 5.3 Análise aprofundada do Mandado de Injunção n. 712      Este mandado de injunção interposto pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará tinha como intuito o direito de greve para os seus filiados, alegando a lacuna legislativa e por isso requerendo a regulamentação deste direito com a aplicação da Lei n. 7.783/89, que rege a lei de greve da esfera privada. Por maioria, no bojo do voto do Relator, ministro Eros Grau, foi conhecido o mandado de injunção e por consequência ocorreu à solução da omissão legislativa com a aplicação por analogia da Lei n. 7,783/89. Esta decisão que teve como eficácia erga omnes conseguiu abarcar a omissão legislativa e por consequência viabilizar o preceito constitucional, fato este que modificou substancialmente a jurisprudência utilizada pela Suprema Corte a respeito desse assunto, haja vista que o Supremo adotava anteriormente a teoria não-concretista nos julgados. No que tange esta decisão os votos divergentes foram os dos Ministros Ricardo Lewandowsky, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que abordaram as questões não usuais do serviço público, deste modo estipularam condições para a aplicação da Lei Geral de Greve, e ainda limitava a decisão à representação do sindicato. No MI n. 20 fico acertado e declarado que a regra do inciso VII do art. 37 da Carta Magna tem em seu bojo a eficácia limitada, deste modo, sua aplicabilidade depende da instauração de uma regulamentação posterior, com o intuito de concretizar o preceito constitucional. O Ministro Relator, outrora, havia defendido que o preceito possuía eficácia contida, entretanto, neste momento o mesmo relatou que este aspecto não seria importante para a resolução do caso em tela, em sim que o fator primordial seria a solução para autorizar o efetivo exercício do direito de greve. Neste mesmo caso, o relator afirmou que o instituto da greve é um dos meios mais eficazes para a cobrança de melhorias na área de trabalho dos servidores. Desta forma, esse exercício é um poder de fato, deste modo este ato recebe concreção imediata, sendo um direito de natureza instrumental. Nesta tese, tratando de trabalhadores latu senso, a lei não pode sustar o direito de greve, e sim efetuar uma proteção ao indivíduo. Outro ponto que o relator abordou foi em afirmar que a relação estatutária do serviço público, diferentemente do que ocorre na exploração da atividade econômica pelos particulares, não demonstra uma tensão na ligação entre trabalho e capital. Desta forma, os interesses dos trabalhadores não pactuam, de forma contrária, aos interesses dos capitalistas, e sim aos direitos sociais. O exercício da ação de greve no serviço público não prejudica os interesses da massa capitalista de forma incisiva, mas sim da sociedade que utiliza de forma diária os serviços públicos. Outra particularidade é que nesta seara a execução deste direito não pode prejudicar a utilização dos serviços pela sociedade há a necessidade do principio da continuidade com o intuito de preservar a coesão e interdependência social. Desta forma é explicito que a utilização da Lei Geral de Greve deve ser utilizada, entretanto, com adequações a especificidade existente no serviço público, haja vista que o mesmo possui atividades essenciais e de serviços inadiáveis à coletividade. Devido a estes fatos nasceu o argumento de que a corte suprema estaria efetuando uma função de poder que não é típica do mesmo. Ação que afrontaria a independência e harmonia entre os poderes e separação dos mesmos. O ministro Eros Grau considerou este fato incabível, pois, a formulação supletiva da norma regulamentadora não estaria exercendo de forma principal a função legislativa e sim normativa, de produção de normas. No mandado de injunção, o Poder Judiciário efetua de forma conjunta a produção da norma e a devida interpretação do direito, com o intuito de produzir uma norma que tente de alguma forma suprimir a omissão. Essa atribuição é denominada um dever-poder. Em miúdos, o Relator proferiu que fica a critério do Tribunal conceder ou não o mandado de injunção, que no caso iria suprimir a omissão, formalizando qual norma deveria ser realmente instituída para a regulamentação no caso concreto, sendo esta norma caracterizada como um texto normativo. Para Godinho Delgado, a Corte reconheceu, por meio de fundamentos bem embasados, a verdadeira eficácia do direito imbuído na Carta Magna. [107] Como já foi abordado, a Lei de Geral de Greve não foi adotada de forma integral aos servidores públicos. Desta forma o Supremo Tribunal Federal adotou alguns aspectos peculiares que deveriam ser observados para o exercício legal do direito de Greve. Estas dissonâncias visavam garantir a continuidade da prestação do serviço público durante a manifestação por melhores direitos. Neste interim, o Ministro Relator resolveu elencar os artigos que deveriam ser utilizados em uma suposta necessidade, sendo estes: do  1º ao 9º, 14, 15, e 17 da Lei n. 7.783/89 e efetuando algumas modificações, no art. 3º e seu parágrafo único, no art. 4º e seu parágrafo único, no art. 7º, no art. 9º e seu parágrafo único e por fim no art. 14, com o intuito de adequar as especificidades do serviço público. [108] Efetuando uma análise mais apurada dessas alterações podemos inferir que a Greve foi autorizada pelo Poder Judiciário, entretanto, existe a proibição de uma cessação total dos serviços públicos, pois este ato fere o princípio da continuidade. Ocorrendo essa paralização geral tem-se um abuso do direito. Deste modo a cessação deve ser sempre parcial. Desta forma, o Ministro Eros Grau enquanto a Casa Legislativa Federal não suprimir a inexistência da lei complementar regulamentadora será adotada a Lei Geral de Greve aplicada no setor privado, sempre observando as mudanças assinaladas pelo Supremo, garantir a continuidade do serviço público, além do pronto atendimento dos serviços essências e necessários. É irrefutável a relação paradoxal existente entre  o binômio garantia de greve no serviço público e o princípio da continuidade. Todavia, se, realmente, o direito de greve não fosse permitido o mesmo não estaria elencado na Carta de Outubro. Conclui-se que o entendimento que retira este direito constitucional é totalmente exagerado e descabido. [109] O Ministro Gilmar Mendes em seu voto vogal relata que a inexistência de uma norma regulamentadora no que tange ao exercício do direito de greve no serviço público ocasionaria uma total insegurança jurídica. Este aspecto negativo desencadearia uma falta de controle por parte judicial e por fim sendo concluída com negociações totalmente desvantajosas, além da afetação à prestação do serviço público. Ainda no bojo do voto vogal do Ministro o mesmo afirma que o exercício desse direito não pode ficar atrelado ao juízo de conveniência do Poder Legislativo, pois a este poder não é dada a função de proferir a legalidade desse direito e se, somente se, e concedido a análise dos critérios procedimentais da configuração desse tema. Com isso, esta omissão praticada pela Casa Legislativa sendo uma mora com um lapso temporal superior à 20 anos, o Poder Judiciário vê a necessidade de apreciar com o intuito de garantir o direitos constitucionais existentes no artigo 5º da Constituição Federal. Finalizando o voto, o ministro invocou os imperativos do princípio da continuidade do serviço público afirmando que pode ocorrer a possibilidade do juízo competente de impor um regime de greve mais arbitrário quando o setor grevista executar atividades essenciais. Para o Ministro Celso de Mello, o mandado de injunção é um instrumento mais que necessário para sanar uma omissão advinda de uma inércia legal, sendo uma forma de contra reação jurisdicional, autorizada pela Constituição, com o prospecto de refutar um possível desrespeito à Lei Fundamental, seja ela por omissão ou inércia. Na indagação o mesmo relata que somente o fator declaratório exercido pela Suprema Corte a respeito da existência dessa omissão não podia mais ser fator determinante, pois somente essa declaração traria uma alienação a função juspolítica do remédio, desta forma frustrando a concretização das clausulas constitucionais, por conta da omissão, e por consequência causando uma degradação a Carta Magna levando a Lei Maior a um status subalterno a um vontade ordinária do legislador comum. Ao final o julgador reforça que a inércia existente traz à tona uma mudança informal, na qual representa um dano grave ao sistema constitucional brasileiro, refratando uma inaceitável repulsa por parte das instituições governamentais à autoridade da Carta Magna. 6. CONCLUSÃO A greve nada mais é do que uma forma de negociação direta de conflitos que pode ser exercida por intermédio de uma suspensão coletiva, temporária e pacífica das prestações de serviços com o intuito de angariar melhores condições de trabalho e remuneração. Durante a evolução social, o conceito de greve foi sendo desenvolvido sendo por fim absorvido pelas constituições democráticas. Antes da Constituição de 1988, este direito só era aplicado aos trabalhadores da iniciativa privada, após a promulgação da Carta de Outubro é que temos uma extensão desses direitos aos servidores públicos civis. Entretanto, segundo o inciso VII do artigo 37 da Carta Magna prevê que este direito só poderá ser exercido mediante uma lei especifica que tratará sobre os termos e os limites, todavia, esta lei ainda não foi editada. Devido a isto, criou-se um imbróglio jurídico, pois alguns autores afirmavam que este inciso possui uma eficácia limitada, ou seja, só poderá surtir efeito se a lei especifica for editada.  E outros já afirmavam que este dispositivo possui uma eficácia contida, podendo assim o direito de greve ser exercido antes mesmo da edição da dita lei. Devido à inexistência de um entendimento pacífico sobre a matéria em questão, vários sindicatos de servidores públicos impetraram mandado de injunção, com o intuito de assegurar o exercício legal do direito de greve por parte dos seus associados, utilizando a Lei de Greve da iniciativa privada de forma análoga. O mandado de injunção foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1988 e tem como utilidade viabilizar o exercício de direitos ou liberdades constitucionais que ainda não foram regulamentados por uma norma especifica. Com isso, devido à falta de norma regulamentadora e pela mora do legislativo em postergar a edição da supracitada lei, este remédio jurídico vem viabilizar o exercício dos direitos constitucionais. De pronto, o Supremo Tribunal Federal nas decisões dos mandados de injunção que tratavam do assunto foi que o inciso possuía eficácia limitada, não podendo ser exercido antes da edição da lei específica. Devido a essas decisões, o Poder Público firmava entendimento que exercício de greve pelos servidores público estava proibido. Para estes, a greve poderia ser exercida livremente, sem se atentarem ao principio da continuidade dos serviços públicos, até a edição da norma regulamentadora. Neste aspecto, os mais prejudicados pelas paralisações era a população em geral. Entretanto, revendo o posicionamento anteriormente adotado, o Supremo entendeu que o inciso VII do artigo 37 da Carta Magna possui eficácia contida. Desta forma, pacificou o entendimento de que o direito de greve pode ser exercido antes da lei regulamentadora. Utilizando por analogia a Lei Geral de Greve. Esta decisão tem eficácia erga omnes, a partir do julgamento a Lei Geral de Greve aplica-se a todas as greves de servidores públicos civis e não somente para os membros dos sindicatos impetrantes. Desta forma, a Suprema Corte decidiu de forma correta ao dar efetividade ao direito constitucional de greve aos servidores públicos civis reconhecendo o mandado de injunção como o remédio constitucional para corrigir as omissões legislativas.
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A hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93
Este artigo tem como objetivo o estudo da hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V, artigo 24 da Lei 8.666/93 com enfoque nos requisitos necessários a sua caracterização.
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93 que trata da ausência de interessados. É certo que a exigência de licitação é regra para as obras, serviços, compras, alienações, concessões, permissões e locações efetuadas pela Administração Pública com terceiros conforme prevê o artigo 2° da Lei 8.666∕93 que regulamenta o disposto no artigo 37, XXI da Constituição Federal. A exigência de licitação decorre da necessidade de obtenção da melhor contratação, com a escolha da proposta mais vantajosa à Administração.   Saliente-se, ademais, que o artigo 37, XXI da Constituição Federal prevê a possibilidade de lei ordinária fixar hipóteses em que a licitação deixa de ser obrigatória. Sendo assim, a Lei 8.666∕93 prevê nos artigos 17, incisos I e II e 24 as hipóteses de dispensa e, no artigo 25 as hipóteses de inexigibilidade de licitação, que são as duas modalidades de contratação direta. Este artigo abordará a hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93. Tal estudo se mostra importante já que a exigência da licitação constitui a regra a ser observada nas contratações efetuadas pelo Poder Público, sendo a dispensa a exceção de forma que é primordial a clara definição de quando ocorre tal exceção. Note-se que a correta caracterização de uma hipótese de dispensa de licitação é importante para que haja a correta aplicação dos princípios que regem a Administração, bem como para evitar danos ao erário, sendo que a declaração de dispensa de licitação deve seguir um procedimento com determinados requisitos que serão estudados neste trabalho. 1. A dispensa de licitação Nos casos de dispensa de licitação, ao contrário das hipóteses de inexigibilidade de licitação em que não há a possibilidade de competição, a licitação é possível, no entanto, a lei faculta a dispensa do processo licitatório deixando a decisão à Administração, no exercício de sua competência discricionária, após a análise de fatores que envolvem uma relação entre custos e benefícios a fim de se verificar se os custos inerentes à licitação superam os benefícios dela decorrentes. (Marçal: 2012, p. 334) Na dispensa, a realização da licitação se mostra objetivamente contrária ao interesse público, já que conforme Marçal Justen Filho “A lei dispensa a licitação para evitar o sacrifício dos interesses coletivos e supraindividuais” (2012, p. 334). As hipóteses de dispensa de licitação estão previstas nos artigos 17 e 24 da Lei n° 8.666/93 e são numerus clausus, ou seja, devem estar expressamente previstas em lei. Após essas considerações gerais será tratada a hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93. 2. Requisitos para aplicação da hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do artigo 24 da lei 8.666/93 Dispõe o artigo 24, inciso V da Lei 8.666/93: “Art. 24. É dispensável a licitação:[…] V- quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas;” Verifica-se da análise de tal dispositivo legal, que para aplicação da hipótese ora estudada se faz necessária a presença dos seguintes requisitos: a) licitação anterior; b) inexistência de interessados; c) existência de prejuízo na realização de novo certame; d) manutenção das mesmas condições existentes no certame anterior. Como visto trata-se de hipótese de contratação direta com dispensa de licitação em situações em que é cabível a realização da licitação, ela é realizada, no entanto, em razão da ausência de interessados e da existência de prejuízo na realização de novo procedimento licitatório a lei faculta a contratação direta. 2.1. Licitação anterior A fim de legitimar a contratação direta é necessário que a licitação anterior tenha preenchido todos os requisitos de validade e tenha permitido a oferta de preços. (JACOBY: 2013, p. 328) A aplicação da hipótese ora estudada pressupõe a validade e regularidade da licitação anteriormente realizada. Além disso, as condições da contratação devem ser compatíveis com os fins buscados pela Administração a fim de que a ausência de interessados não se dê em razão das condições impostas. Uma questão que surge é com relação à quantidade de licitações que deverão ser frustradas antes da contratação direta. Note-se que a realização das licitações está atrelada ao prejuízo que será causado na realização de novo certame, de modo que existindo o prejuízo e ante a licitação frustrada possível será a contratação direta. Importante ressaltar que também é possível a contratação direta com base no dispositivo legal ora estudado no caso de licitação anterior realizada na modalidade de convite, desde que preenchidos todos os requisitos legais e o convite tenha sido efetuado de forma ampla, sendo que a “ausência de interessados” deverá ser bem justificada já que no convite a Administração é quem escolhe os possíveis licitantes. 2.2. Inexistência de interessados. Outro requisito é a ausência de interessados no certame anterior. Com relação à inexistência de interessados discute-se se a licitação fracassada, ou seja, aquela em que os licitantes são inabilitados ou não apresentam propostas válidas, admite a contratação direta com dispensa de licitação fundamentada no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93. Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao analisar a hipótese de dispensa de licitação supramencionada afirma que ela só pode ser aplicada no caso de licitação deserta, ou seja, quando inexistir qualquer interessado. Segundo a referida autora: “essa hipótese é denominada de licitação deserta; para que se aplique, são necessários três requisitos: a realização de licitação em que nenhum interessado tenha apresentado a documentação exigida na proposta. (…) A licitação deserta não se confunde com a licitação fracassada, em que aparecem interessados, mas nenhum é selecionado, em decorrência da inabilitação ou da desclassificação. Neste caso, a dispensa de licitação não é possível.” (DI PIETRO: 2013, p; 396/397). Por sua vez, Jorge Ulisses Jacoby entende que o dispositivo em questão pode ser aplicado tanto no caso de licitação deserta como no caso de licitação fracassada. De acordo com o autor: “O requisito seguinte é que a licitação procedida pela unidade não tenha gerado a adjudicação, em razão de: – não terem comparecido licitantes interessados, hipótese denominada de “licitação deserta”; – ter comparecido licitante sem a habilitação necessária; – ter comparecido licitante habilitável, mas que não apresentou proposta válida. Essas duas últimas hipóteses também se denominam ‘licitação fracassada’. Há equivalência entre as três situações, porque não se pode acolher como ‘interessado’ aquele que comparece sem ter condições jurídicas para contratar, ou formula proposta que não atende aos requisitos do ato convocatório, os vem a ter desclassificada sua proposta, na forma do art. 48 da Lei nº 8.666/1993. Não raro, pululam ‘aventureiros’ e comerciantes inidôneos, não sendo o caso de coibir a aplicação desse aplicativo, em detrimento do interesse público, em razão de tais comportamentos.” (JACOBY: 2013, 329/330)  No mesmo sentido Hely Lopes Meirelles que afirma: “Desinteresse pela licitação anterior é também motivo para a contratação direta, mantidas as condições preestabelecidas no edital ou no convite. Caracteriza-se o desinteresse quando não acode ao chamamento anterior nenhum licitante, ou todos são desqualificados ou nenhuma proposta classificada”.(grifo do autor)  (MEIRELLES: 2012, p.305). O Tribunal de Contas da União ao analisar a questão admite a possibilidade de contratação direta com fundamento no artigo 24, inciso V da Lei 8.666/93 na hipótese de licitação fracassada, desde que comprovado o prejuízo na realização de novo procedimento licitatório e mantidas as condições existentes na licitação fracassada, conforme as seguintes decisões: “Auditoria em licitações e contratos: 2 – Necessidade de manutenção das condições pré-estabelecidas na licitação anteriormente fracassada para que se legitime a contratação direta com fundamento no art. 24, inc. V, da Lei 8.6661993. Ainda na auditoria realizada na Diretoria Regional da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos do Estado do Rio Grande do Sul (EBCT/DR/RS), outra possível irregularidade detectada fora a realização da Dispensa de Licitação 59/2007, que resultou na contratação de posto de abastecimento para veículos lotados nas unidades de Canoas/RS. Conforme a unidade instrutiva, em duas licitações anteriores, fracassadas, previu-se a distância máxima de 3,5 km de raio a partir da unidade de Canoas – RS para a localização do posto a se responsabilizar pelo abastecimento. Em seguida, ocorrera a contratação, por dispensa de licitação, de um posto localizado a 10 km da referida unidade, não se observando, portanto, as condições pré-estabelecidas nas licitações fracassadas anteriormente, em descumprimento ao estatuído no inciso V do art. 24 da Lei 8.666/93. Nos argumentos apresentados pelo responsável, ouvido em audiência, constou o de que “não havia mais tempo hábil para uma terceira tentativa de instauração de procedimento licitatório, e, caso não houvesse a dispensa de licitação, haveria prejuízos para a ECT”. Em sua análise, a unidade técnica destacou que não fora formulado, pelo TCU, questionamento quanto à necessidade de realizar a dispensa de licitação, mas sim “quanto ao critério de escolha do fornecedor, que deveria ter observado as mesmas condições da licitação. É possível que, caso admitida no certame a participação de estabelecimentos situados dentro do raio em que se encontra a empresa contratada por dispensa (10 km), as licitações não teriam sido desertas”. A respeito da situação, o relator ressaltou que “o responsável não apresentou justificativa, não demonstrando porque na licitação se estabeleceu um raio de 3,5 Km e na dispensa um raio bem maior, de 10 Km”. Ao final, o relator votou pela não aplicação de multa ao responsável, sem prejuízo da expedição de determinação corretiva para futuras licitações a serem promovidas pela EBCT/DR/RS, o que foi aprovado pelo Plenário.” Acórdão n.º 2219/2010-Plenário, TC-005.383/2007-0, rel. Min. Raimundo Carreiro, 1º.09.2010.  “(…) 9.3.2.6 não-manutenção das mesmas condições preestabelecidas no instrumento convocatório da licitação fracassada, nos termos do art. 24, V, da Lei nº 8.666/93, uma vez que foi retirado do objeto da contratação o fornecimento dos materiais (PAG 561/2000); 9.3.3 – Sr. José Francisco dos Santos Sobrinho, por ter certificado que a contratação direta, referente ao PAG 561/2000, encontrava-se em conformidade com a Lei nº 8.666/93, sendo que não foi verificada a capacidade técnica da empresa que foi contratada – 'Barma Engenharia Ltda.' e também não foram mantidas as mesmas condições preestabelecidas no instrumento convocatório da licitação fracassada, nos termos do art. 24, V, da Lei nº 8.666/93, uma vez que foi retirado do objeto da contratação o fornecimento dos materiais;” (Processo número 006.857/2002-0, Acórdão 107/2003, Ministro Relator Ubiratan Aguiar, Plenário)   “(…)Note-se que, diversamente do que se verifica na licitação deserta – em que a real ausência de interessados impede que se faça alguma inferência acerca da habilitação daqueles para uma subsequente contratação -, na licitação fracassada, a eliminação dos licitantes, por não atendimento das condições para habilitação no certame, gera uma presunção de impossibilidade de posterior contratação sob dispensa do mesmo licitante inabilitado. Com efeito, como vimos, nessa ulterior contratação, deverão ser mantidas ‘todas as condições preestabelecidas’, inclusive, portanto, aquelas atinentes à habilitação dos licitantes e que teriam dado causa à sua desqualificação.” (Decisão nº 533/2001, Plenário, rel. Min. Adylson Motta) O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, por sua vez, na decisão proferida pelo Tribunal Pleno no recurso ordinário interposto no processo TC – 001116/006/07 entendeu que o único requisito não atendido para a caracterização da hipótese de dispensa de licitação prevista no artigo 24, inciso V da Lei 8.666/93 no caso em questão foi o de manutenção das mesmas condições constantes no ato convocatório, admitindo a aplicação do referido dispositivo nos casos de licitações fracassadas. Com efeito, assim decidiu:  “Os autos evidenciam que a Municipalidade de Altinópolis instaurou, no total, 03 (três) procedimentos licitatórios, ou seja, Tomada de Preços nº 06/058, Tomada de Preços nº 07/059 e Tomada de Preços nº 06/2005- Reeditada10, aglutinando o objeto da Tomada de Preços nº 07/05; todavia todos os certames restaram desertos ou fracassados, menos o item 4, da Tomada de Preços nº 06/05- Reeditada. Diante destes fatos, pondera-se que as premissas insculpidas no artigo 24, inciso V, da Lei Federal nº 8.666/93, quase foram satisfeitas simultaneamente, porquanto as licitações foram desertas, infrutíferas, com exceção de um item, e a repetição do procedimento, pela quarta vez, poderia proporcionar prejuízos à Prefeitura Municipal, pois haveria gastos renovados desnecessariamente sem que despertasse interesse aos particulares, e, ainda, diante da necessidade dos veículos para atendimento à população escolar da comuna e setores da Administração; todavia, a r. decisão recorrida demonstrou que houve modificações no ato convocatório, o que fulmina o atendimento da parte final do dispositivo em comento.” (grifo nosso) Apesar da divergência doutrinária entendo que tanto a licitação deserta como a licitação fracassada admitem a contratação direta com fundamento no inciso V do artigo 25 da Lei 8.666/93 uma vez que em ambas situações não foi possível a realização do certame ou porque não apareceu nenhum interessado ou porque todos os interessados foram inabilitados, não podendo a Administração deixar de realizar uma contratação que é de interesse público, desde, claro, que preenchidos todos os requisitos necessários ao enquadramento da hipótese no disposto no inciso V do artigo 25 da Lei 8.666/93. 2.3. Existência de prejuízo na realização de novo certame. Outro requisito é a existência de justificativa bem clara, com a indicação dos riscos, de que a realização de novo procedimento licitatório causará prejuízos à Administração. Conforme nos ensina Marçal Justen Filho, “A razão de ser do dispositivo do inc. V não reside na urgência da contratação. Se houver urgência, aplica-se o inc. IV. A previsão do inc. V retrata, em grande medida, dispositivo fundado no princípio da economicidade. O problema não é realizar a licitação, mas repetir uma licitação que já foi processada regularmente, sem que despertasse interesse dos particulares. Há uma presunção de inutilidade de repetir licitação: se ninguém acorreu à anterior, porque viria a participar da nova? Haveria desperdício não apenas de tempo, mas também de recursos públicos”. (2012, p. 350) Nesse sentido a decisão do Plenário do Tribunal de Contas da União proferida no Acórdão nº 342/2011, Relator Ministro Marcos Bemquerer Costa: “(…)13. O fundamento invocado para a contratação direta da referida empresa – art.24, inciso V, da Lei n. 8.666/1993 – somente pode ser empregado no caso de não acudirem interessados à licitação anterior e se o certame, justificadamente, não puder ser repetido sem prejuízo para a Administração. 14. Não se vislumbram dos autos evidências de que os requisitos pertinentes à contratação direta foram observados, sobretudo porque não restou demonstrada a inviabilidade da repetição do certame nem a potencialidade de eventual prejuízo à Administração se ocorresse nova licitação. 15. Havia tempo hábil para a repetição do certame, com bem anotado no exame feito pela unidade instrutiva. O prazo para a execução do objeto pactuado era até 31/05/2003 (fl.14, v. p.) e a declaração de licitação deserta se deu em 13/11/2002 (fl. 513, v. 2, anexo 1), portanto, à época, dispunha-se de mais de seis meses para refazer o torneio licitatório.”(grifo nosso) Note-se que o risco de prejuízo não pode ser imputável à desídia do administrador, bem como, que a realização da contratação direta evitará a ocorrência do prejuízo previsto. Conforme Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, “Não advindo da contratação direta a possibilidade de evitar ou diminuir significativamente o prejuízo, é incabível a dispensa com fulcro nesse dispositivo.” (JACOBY: 2013: p. 331) 2.4. Manutenção das mesmas condições existentes no certame anterior Além disso, a contratação deve ser realizada com as mesmas condições do certame fracassado, já que caso haja alteração nas condições poderão aparecer interessados na licitação e a não realização da licitação violará o princípio da isonomia. Nesse sentido a decisão proferida pela 2ª Câmara do Tribunal de Contas da União, Acórdão número 1.151/2007: “(…) somente procedesse à realização de processos de dispensa de licitação com base no art. 24, inciso V, da Lei nº 8.666/1993, quando, justificadamente, não pudesse ser repetido o certame sem prejuízo para a Administração, mantendo-se, neste caso, todas as condições pré-estabelecidas.”    Com relação ao requisito de manutenção das condições do certame anteriormente realizado importante trazer a lição de Ronny Charles : “Deve-se atentar para a disposição que exige a manutenção das condições preestabelecidas. Assim, além de outras exigências legais, como a demonstração da compatibilidade dos preços, ocorrendo licitação deserta, a hipótese de dispensa exige a manutenção das mesmas condições e, inclusive, a justificativa da autoridade competente, apontando os prejuízos advindos de uma nova tentativa de certame.” (CHARLES: p.109) 3. Procedimento Com relação ao procedimento dispõe o artigo 26 da Lei 8.666∕93, in verbis: “Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos. Parágrafo único.  O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos: I – caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso; II – razão da escolha do fornecedor ou executante; III – justificativa do preço. IV – documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.” Convém seja o procedimento de dispensa de licitação autuado em novo processo e deverá observar o disposto no artigo 26 da Lei 8.666/93 com a comunicação à autoridade superior no prazo de três dias, para ratificação e posterior publicação, no prazo de cinco dias. Além da comprovação do preenchimento dos requisitos constantes no inciso V do artigo 24 da Lei 8.666/93 já estudados, o procedimento deverá ser instruído com os elementos contidos nos incisos previstos no parágrafo único do artigo 26 supramencionado, quais sejam, razão da escolha do fornecedor ou executante, justificativa do preço e, se o caso, documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.    Conclusão Verifica-se assim que ante a realização de procedimento licitatório regular e válido em que se verificar a ausência de interessados e estando a Administração impossibilitada de realizar novo certame sob pena de prejuízo ao interesse público, possível a contratação com dispensa de licitação fundamentada no inciso V do artigo 24 da Lei nº 8.666/93. Note-se que tanto a licitação deserta como a fracassada admitem a contratação direta com base no dispositivo legal ora estudado sendo que as condições do certame anterior devem ser mantidas integralmente na  contratação a se efetivar mediante dispensa. O procedimento de dispensa de licitação deverá observar o disposto no artigo 26 da Lei 8.666/93 e a Administração deverá tomar todas as cautelas necessárias a fim de verificar se o caso em questão realmente se enquadra na hipótese de dispensa, verificando, por exemplo, a real existência de prejuízo na realização de novo certame, sob pena da contratação ser irregular ocasionando prejuízos ao erário e aplicação de sanções ao Administrador.
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Controle dos Atos Administrativos Discricionários
A atuação da Administração Pública está adstrita à fiel execução das leis. Ocorre que existem atos administrativos completamente vinculados ao texto legal e atos discricionários, para a prática dos quais a Administração possui uma margem de liberdade, diante das peculiaridades de cada caso concreto. Nestes casos, cabe ao administrador um juízo de valor, devendo analisar critérios de conveniência e oportunidade. Tratando-se de atos administrativos discricionários que o risco de lesões a direitos e garantias individuais aumenta, de que o administrador ultrapasse os limites da liberdade que a lei lhe confere, praticando atos arbitrários e ilegais. Conclui-se que a motivação, isto é, a exposição dos motivos determinantes do ato, é indispensável, seja nos atos vinculados ou nos discricionários, como forma de prestação de contas do agente público ao povo, titular do poder, permitindo que este fiscalize a atuação de seu representante. A motivação permite à sociedade exercer fiscalização e ainda possibilita o controle jurisdicional. Não se defende ao Judiciário um controle ilimitado, usurpatório. Não cabe ao Poder Judiciário substituir o administrador, mas verificar se este atuou em conformidade com o ordenamento jurídico.
Direito Administrativo
Introdução O poder estatal, embora uno, indivisível e indelegável, se desmembra em três funções, quais sejam, a legislativa, a judiciária e a administrativa. À Administração Pública cumpre precipuamente administrar, aplicando a lei de ofício para realizar as finalidades públicas. Para tanto, é necessária a prática constante de atos administrativos, que são manifestações unilaterais de vontade da Administração ou de quem a represente que tenha por fim adquirir, transferir, modificar ou extinguir direitos e obrigações. Na realização de suas funções, a Administração Pública possuiu prerrogativas, poderes, que, em nome do interesse público, a colocam em posição de superioridade em relação aos particulares. Em virtude das prerrogativas da Administração Pública, seus atos possuem atributos como a presunção de legitimidade, a imperatividade e a auto-executoriedade, tudo a possibilitar sua validade, obrigatoriedade e execução de forma célere, não se fazendo necessário acionar o Poder Judiciário anteriormente à sua aplicação. Embora a atuação da Administração Pública esteja adstrita à fiel execução das leis, em obediência ao princípio da legalidade, é necessário ressaltar que existem atos administrativos completamente vinculados ao texto legal e, por outro lado, atos discricionários, para a prática dos quais a Administração possui uma margem de liberdade. Ante a impossibilidade de a lei prever, exaustivamente, todas as situações vivenciadas na prática administrativa, alguns comandos normativos conferem ao agente público uma certa margem de liberdade para a prática do ato, diante das peculiaridades de cada caso concreto. Nestes casos, cabe ao administrador um juízo de valor, devendo analisar critérios de conveniência e oportunidade, possuindo, assim, maior subjetividade. Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim conceitua a discricionariedade: “pode-se, portanto, definir a discricionariedade administrativa como a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar no caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito.”[1] Diante de atos administrativos discricionários o risco de lesões a direitos e garantias individuais aumenta, eis que há uma margem maior de possibilidades de atuação O ato praticado sem respeito a limites é arbitrário e ilegal. Ressalta-se que a Administração Pública ao desempenhar suas funções, exerce atividade em nome de terceiros, representando os interesses da coletividade. Por isso, a sua atuação é limitada por lei e por princípios e deve ser externada de forma a permitir fiscalização, seja pela sociedade ou pelo Poder Judiciário. No Direito Administrativo, por tratar-se de ramo não codificado, os princípios desempenham relevante papel. Nesse contexto, cabe destacar alguns princípios limitadores da atuação da Administração. O princípio da legalidade determina a submissão administrativa às exigências normativas, de maneira que o Poder Público possa agir somente nos casos em que a lei permite e de modo a cumprir o que nele encontra-se estabelecido. Ademais, pelo princípio da supremacia do interesse público, a finalidade a ser alcançada pela Administração Pública encontra-se delimitada não somente pela lei, mas também pela necessidade de se obter a satisfação dos interesses da coletividade. Assim, toda a sua atuação deve pautar-se pela busca do atendimento às necessidades coletivas. Por outro lado, conforme consignado no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, “todo poder emana do povo”, razão pela qual influi-se que o poder-dever outorgado a seus representantes nada mais é do que um instrumento entregue à Administração para que esta atue em função do administrado. Como consequência lógica, surge a obrigatoriedade de prestação de contas permanente pelo administrador de seus atos ao titular do poder. Assim, depreende-se que a motivação, isto é, a exposição dos motivos determinantes do ato, é indispensável, seja nos atos vinculados ou nos discricionários, como forma de prestação de contas do agente público ao povo, titular do poder, permitindo que este fiscalize a atuação de seu representante. Dessa forma, torna-se possível aferir a legalidade dos atos administrativos, bem como controlar sua legitimidade, a partir da análise da congruência do suporte fático e jurídico com a finalidade da norma. A motivação permite à sociedade exercer fiscalização e possibilita também o controle jurisdicional. Quanto ao controle jurisdicional, com relação aos atos vinculados há consenso na doutrina de que, sendo todos os seus elementos e requisitos previamente definidos na legislação, cabe ao Poder Judiciário examiná-los a fim de verificar a sua convergência com a lei, não havendo restrições ao controle judicial. Lado outro, para os atos discricionários, embora não haja consenso, a doutrina majoritária entende que o controle jurisdicional é perfeitamente cabível para aferir a legalidade e verificar se a Administração Pública não ultrapassou os limites da discricionariedade permitida em lei. Não se defende ao Judiciário um controle ilimitado, usurpatório. Não cabe ao Poder Judiciário substituir o administrador, mas verificar se este atuou em conformidade com o ordenamento jurídico. Permanece, para os atos administrativos discricionários, um campo intocável pelo Poder Judiciário, que se traduz no mérito administrativo. A análise judicial deve se deter aos aspectos de legalidade e juridicidade, ou seja, se os atos estão de acordo com a lei e com os princípios que regem o Direito Administrativo. O controle de juridicidade, portanto, vai além do exame da legalidade, consistindo no exame da congruência da valoração dos motivos e da definição do conteúdo do ato administrativo predominantemente discricionário com os princípios jurídicos, como, por exemplo, com o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade, da impossibilidade, da moralidade administrativa, da eficiência, da transparência, entre outros. Ressalva-se, mais uma vez, que não cabe ao Poder Judiciário reexaminar o mérito do ato administrativo, ou seja, não poderá o Poder Judiciário dizer qual a melhor opção, em substituição à opção da Administração, quando a legislação efetivamente lhe conferir faculdade de escolha. Trata-se de um equilíbrio entre as prerrogativas da Administração Pública, que, em virtude de buscar a finalidade de atender o interesse público, está em posição de superioridade com relação aos particulares, e de sua submissão à lei e aos princípios jurídicos. Tal equilíbrio encerra-se no sistema de freios e contrapesos, pelo qual devem se relacionar as funções estatais. Como bem definiu Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Assim, tem-se de um lado, a Administração Pública que personifica o poder, dotada de prerrogativas de autoridade e, de outro lado, a Administração Pública que personifica um sujeito de direitos subordinado à lei e ao controle judicial. Ora, sendo a Administração Pública, em seus vários aspectos, objeto central do direito administrativo, este se caracteriza essencialmente pela busca de um equilíbrio entre as prerrogativas de autoridade e os direitos individuais”[2] Frisa-se que a atividade da Administração Pública é limitada pela lei e por princípios integrantes do ordenamento jurídico, de modo a resguardar os direitos dos administrados. Lado outro, o controle exercido pelo Poder Judiciário não é ilimitado e deve respeitar o mérito dos atos administrativos discricionários, não cabendo ao Poder Judiciário substituir o administrador em sua margem de liberdade, que lhe foi legalmente conferida. Deve haver, portanto, um controle não meramente legalista, mas de caráter principiológico e teleológico. Atributos dos atos administrativos O ato administrativo está sempre atrelado a uma função, a uma finalidade, consubstanciada no interesse público. Para atingir essa finalidade, o ato administrativo possui atributos inexistentes nos atos de direito privado. A justificação desses atributos reside na relevância dos interesses que incumbem à Administração prover. Por um bem maior, o da coletividade, arma-se a Administração Pública de prerrogativas, na medida em que se façam necessárias para a satisfação do interesse público, dotando os atos por ela editados de atributos que a colocam em posição de supremacia em relação ais administrados. São eles: presunção de legitimidade, imperatividade e autoexecutoriedade. Assim, há uma presunção de que os atos administrativos foram praticados em conformidade com a lei, com o ordenamento jurídico vigente. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, explica trata-se de presunção de legitimidade e veracidade, lecionando que: “A presunção de legitimidade diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos  com observância da lei. A presunção de veracidade diz respeito aos fatos; em decorrência desse atributo, presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela Administração. Assim ocorre com as certidões, atestados, declarações, informações por ela fornecidos, todos dotados de fé pública.”[3] Lado outro, a imperatividade é o atributo que confere aos atos administrativos a característica de impor-se a terceiros, independente de sua anuência. Ou seja, embora os atos administrativos sejam manifestações unilaterais da Administração, obrigam os particulares. Por fim, a autoexecutoriedade assegura que o ato administrativo possa ser executado imediatamente pela Administração Pública, não se fazendo necessária intervenção anterior do Poder Judiciário. Verifica-se, portanto, que os atributos dos atos administrativos possibilitam sua validade, obrigatoriedade e execução de maneira célere e unilateral, colocando a Administração em posição de supremacia em relação aos particulares. Tal supremacia acentua-se quando trata-se de ato discricionário, em que o administrador possui certa margem de liberdade na sua atuação. Destarte, imprescindível a análise da discricionariedade administrativa, bem como de seus limites e formas de controle. Vinculação O exercício da competência administrativa pode aparecer contida dentro de limites de extrema objetividade, em que o conjunto normativo delimita a forma e a providência que o agente público deve adotar, diante das circunstâncias concretas, para alcançar a finalidade legalmente estabelecida. Nesses casos, fala-se em atuação vinculada do Poder Público, pois ao administrador não é conferida qualquer possibilidade de avaliação subjetiva, devendo ele se ater aos termos da prescrição legal. A atuação vinculada caracteriza pela existência de uma única solução possível diante de determinada situação de fato. A lei fixa todos os requisitos, os quais a Administração deve tão somente constatar, aplicando o comando normativo, sem qualquer margem de apreciação.[4] Isto é, trata-se de mero silogismo, decorrendo o ato administrativo da observância dos preceitos legais que minuciosamente regulam todo o processo de declaração da vontade, inadmitindo-se liberdade ou juízo apreciativo do administrador. A previsão normativa é exaustiva e à Administração Pública cabe unicamente reproduzir materialmente o conteúdo da norma legislativa, não lhe sendo possível questionar acerca de oportunidade, conveniência ou conteúdo do ato. O administrador atua somente a constatar a hipótese da norma e aplicar no caso concreto as consequências nela previstas.[5] Celso Antônio Bandeira de Mello assim define os atos vinculados: “atos vinculados são aqueles que a Administração pratica sob a égide de disposição legal que predetermina antecipadamente e de modo completo o comportamento único a ser obrigatoriamente adotado perante situação descrita em termos de objetividade absoluta. Destarte, o administrador não dispõe de margem de liberdade alguma para interferir com qualquer espécie de subjetivismo quando da prática do ato”.[6] Ou nos dizeres de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “esse regramento pode atingir os vários aspectos de uma atividade determinada; neste caso se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixou opções; ela estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma.”[7] Controle dos atos administrativos vinculados Diante da exigência legal da prática do ato, na ocorrência dos pressupostos estabelecidos normativamente, a Administração Pública tem o dever de agir executando os ditames legais, não sendo permitido qualquer outro comportamento que não aquele previsto em lei. A ausência de prática do ato, ou seu exercício de modo diverso do que foi estabelecido, gera para os prejudicados o direito subjetivo de se ter o ato corrigido, pela própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário. As súmulas nº 346 e 437 do Supremo Tribunal Federal explicitam a possibilidade de ser realizado o autocontrole (controle pela própria Administração). Senão, vejamos: “STF Súmula nº 346 – “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.” STF Súmula nº 473 – “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” Lado outro, o art. 5º, XXXV da Constituição Federal erige o Poder Judiciário como instância encarregada por excelência de apreciar e solucionar os litígios acasos existentes. Assim, o administrado prejudicado por ato vinculado manifestamente ilegal pode também recorrer às vias judiciárias buscando a anulação do ato. Uma vez que os elementos do ato estão todos pré-definidos em lei, qualquer desobediência a um destes determina sua ilegalidade, ensejando a correção. O controle pelo Judiciário nos casos dos atos vinculados é amplo e irrestrito, porquanto será analisada a congruência dos seus elementos com os aspectos definidos em lei, declarando a sua nulidade quando constatada qualquer desconformidade. Discricionariedade A Administração Pública, para o desempenho de suas funções, dispõe de uma série de prerrogativas que, com maior ou menor grau de liberdade, são manejadas para a consecução de seus fins. Apesar de em um Estado Democrático de Direito a atuação do Poder Público ser limitada por lei e princípios, a dinâmica social impede a previsão exaustiva de todas as situações de possível ocorrência. Resta claro que não é possível ao legislador pontuar minuciosamente cada passo do agente público, dada a riqueza dos fatos sociais que ensejam a atuação administrativa. Com efeito, o Poder Legislativo não consegue acompanhar a mutabilidade social, devendo ser concedidos legalmente à Administração Pública os meios necessários para garantir-lhe uma flexibilidade adequada que lhe permita agir diante de novas realidades. Por isso, paralela à vinculação, que limita e cerceia a atividade administrativa ao juízo de constatação da hipótese legal, existe a discricionariedade, consubstanciada na prerrogativa do administrador de eleger a melhor solução para a consecução da finalidade pública, nos casos em que a lei lhe confere uma margem de liberdade. Os particularismos e nuances da realidade não podem ficar contidos em juízos hipotéticos de verificação, pois caso o legislador previsse normativamente todas as situações, estaria o Poder Executivo cerceado pelo Poder Legislativo. Assim, verificando o legislador que é necessário dar margem para uma análise casuística ao administrador, não se prefixa o conteúdo de todos os atos, dando ao agente público a possibilidade de decidir, mediante critérios de oportunidade e conveniência, qual a melhor solução para a consecução da finalidade pública. A discricionariedade é, desta maneira, o instrumento conferido à administração Pública para adequar sua atuação em face das novas necessidades coletivas e mudanças ocorridas no âmbito social. A discricionariedade é justificada pela necessidade de se obter uma Administração efetiva, sem que seu exercício seja engessado pela função legislativa. O conceito de discricionariedade é apresentado por Celso Antônio Bandeira de Mello nos seguintes termos: “discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.”[8] A definição formulada por Di Pietro é mais usual entre os administrativistas, por conter o elemento “faculdade de escolha”, bem como os critérios de “conveniência e oportunidade” que orientarão tal escolha. In verbis: “a atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito.”[9] Queiró, por fim, conceitua o ato discricionário relacionando-o com a existência de conceitos imprecisos no texto legal: “trata-se de uma faculdade de escolher uma entre várias significações contidas num conceito normativo prático, relativo às condições-de-fato do agir administrativo – escolha feita sempre dentro dos limites da lei. Esta escolha é feita livremente pela Administração, entendendo-se aqui por liberdade aquilo que vimos de expor.”[10] Dos conceitos de discricionariedade abordados, depreende-se ao menos um elemento comum: a liberdade de escolha, sempre limitada, por critérios que são variáveis conforme a concepção de cada autor. É na liberdade de escolha que se manifesta a subjetividade do administrador. Controle dos atos administrativos Discricionários A discricionariedade administrativa, em decorrência da margem de liberdade conferida à Administração Pública para a edição de seus atos, pode ensejar abusos e desvios. Todavia, é inaceitável a antiga idéia de que os atos administrativos discricionários são insuscetíveis de controle e revisão pelo Poder Judiciário. O controle, inclusive jurisdicional, se estende a esta categoria de atos, visando evitar e coibir os abusos praticados em nome da livre apreciação e da conveniência e oportunidade do administrador, como forma de garantia do administrado em face da atuação unilateral do Poder Público e em respeito ao Estado Democrático de Direito. Desvio de poder – controle pela finalidade legal A atuação do Poder Público está submetida à determinação legal, de tal modo que a atividade administrativa é considerada lícita apenas nos casos em que a lei permite, da maneira que indica, visando sempre à consecução dos fins nela pré-determinados. É assim, atividade funcional serviente da concreção da finalidade legal para satisfação dos interesses da coletividade: “O fim, – e não a vontade, – domina todas as formas de administração. Supõe, destarte, a atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria. Jaz, conseqüentemente, a administração pública debaixo da legislação, que deve enunciar e determinar a regra de direito.”[11] A finalidade legal limita o poder discricionário da Administração Pública. O plexo de poderes que é conferido ao agente público será disponibilizado e mobilizado somente diante de circunstâncias específicas, visando à realização de determinados fins, através de certas formas. Caso tais poderes sejam manejados fora daquelas circunstâncias, em desacordo com a finalidade legal ou através de formas diferentes daquelas legalmente estabelecidas, esta atuação será fora da competência do agente público. Configura-se, assim, o que se denomina de desvio de poder. O desvio de poder configura o descompasso da atividade administrativa com a finalidade legal estabelecida, seja finalidade em sentido amplo, consistente no interesse público a ser atingido por qualquer medida administrativa, ou em sentido estrito, considerada como aquela específica para cada ato administrativo. A não observância de qualquer uma delas vicia o ato. Assim, quando ocorre o desvio de poder, a atividade administrativa transgride a lei por não ter atendido a finalidade nela prevista. É, portanto, um vício de legalidade, que enseja a correção jurisdicional. Ressalta-se que o desvio de poder não ocorre nos casos que o agente público era incompetente para a prática do ato. Nesta situação, verifica-se um vício de ordem formal, que macula o ato em sua própria formação. Já na hipótese de desvio de poder, o agente é competente, porém atua em desacordo com a finalidade legal. Verifica-se este tipo de vício em duas situações específicas: quando pratica-se um ato administrativo visando a atingir finalidade diversa daquela estabelecida em lei; e também quando o agente atinge fim público, porém em desacordo com aquele pré-determinado pela regra jurídica. A primeira hipótese caracteriza as situações em que o ato é praticado pelo agente administrativo tendo em vista um fim pessoal. É típico de atos emanados por favoritismos ou perseguições, onde se evidencia não somente o desvio de poder, mas também o desvio de intenção do próprio agente. Os interesses da coletividade são relegados a segundo plano, prevalecendo o interesse particular do agente público. O desvio de poder, desta forma, viola também o princípio da impessoalidade estabelecido na ordem jurídica nacional, que veda a concessão de benefícios ou perseguições a terceiros, em detrimento do interesse público “Contudo, a Administração Pública tem como norma básica a proteção de interesses coletivos, ainda que peculiares a grupos definidos em lei e, por esta forma, submetidos a tratamento especial. O princípio da impessoalidade repele atos discriminatórios que importem favorecimento ou desapreço a membros da sociedade em detrimento da finalidade objetiva da norma de direito a ser aplicada. Não é indiferente, porém, a Administração Pública a personalidade do administrado. O que se veda é a personificação de seus atos na medida em que abandonem o interesse público para conceder favores ou lesar pessoas ou instituições. Em síntese, a atividade administrativa pode, em certos casos deve, distinguir entre pessoas, em função de peculiaridades que a lei manda observar. Não poderá jamais discriminar entre elas, sobrepondo o juízo personalista à objetividade legal de tratamento.”[12] Já nos casos em que a atuação administrativa atinge um fim público em desacordo com aquele preestabelecido configura-se também o desvio de poder. Tem o administrado a segurança de que determinado plexo de poderes será direcionado para a consecução não de qualquer fim público, mas daquele exigido para determinada circunstância, que foi assim considerado adequado e satisfatório para uma dada situação. A competência é deferida ao agente não para atingir qualquer finalidade pública, mas aquela especificamente considerada em lei para aquele ato. Por constituir-se o desvio de poder em um vício objetivo, de legalidade, o controle pelo Poder Judiciário do ato emanado em desvio de poder não invade a esfera do mérito, sendo, portanto, um controle de legalidade que não agride a chamada liberdade administrativa. Teoria dos motivos determinantes – Controle pela motivação e motivos do ato discricionário O motivo, elemento facultativamente discricionário do ato administrativo, se refere à situação de fato ou de direito que autoriza a expedição daquele ato. Ocorrendo o pressuposto fático, a Administração Pública encontra-se autorizada a adotar a medida cabível àquela circunstância. Quando a lei é omissa na expressão dos motivos, cabe ao agente público, no exercício de competência discricionária, escolher ou indicar os motivos que embasam a expedição do ato. É o que se denomina de motivação, que corresponde, assim, à exposição da situação fática ou jurídica que autorizou a atuação do Poder Público em face do caso concreto. A validade do ato fica condicionada à existência da situação que foi exposta. O cerne da questão gira em torno da necessidade ou não de se motivar o ato administrativo. Em décadas anteriores, era forte o entendimento doutrinário de que a motivação não é obrigatória nos atos administrativos discricionários. Contudo, atualmente, esse entendimento já não possui o mesmo respaldo. O Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal), o princípio da publicidade (art. 37 da Constituição Federal) e a garantia do contraditório (art. 5º da Constituição Federal) impedem que qualquer ato administrativo possa ser editado sem motivação. Florivaldo Dutra de Araújo encerra a necessidade de fundamentação da atuação dos agentes públicos essencialmente no princípio democrático. Vejamos: “Prestar contas dos fundamentos tácitos e jurídicos, sobre os quais se assenta o desenvolvimento dessas funções, em cada manifestação de vontade, pelos agentes públicos, é, no Estado que se pretenda democrático, imperativo inarredável, seja para o legislador, para o juiz ou para o administrador .”[13] Ademais, a Lei nº 9.784/99, que regula o procedimento administrativo, em seu art. 50, explicita a necessidade de motivação dos atos administrativos, não diferenciando entre vinculados ou discricionários. Frise-se, ainda, que o art. 93, X, também da Constituição Federal, obriga que o Poder Judiciário, no exercício de função atípica, motive suas decisões administrativas. Com mais razão, portanto, a Administração Pública (Poder Executivo, principalmente), no exercício de sua função típica, deverá, obrigatoriamente, motivar todos os atos administrativos que editar. A motivação é, portanto, exigida para qualquer ato e possui fundamental importância para o controle dos atos discricionários, tendo o Supremo Tribunal Federal já manifestado sobre o tema: “O ato administrativo discricionário torna-se arbitrário e nulo por falta de motivação legal.”[14] Assim, a motivação do ato viabiliza o controle pelo Poder Judiciário, ficando sua validade condicionada a existência efetiva dos motivos indicados. É o que se denomina de “teoria dos motivos determinantes”. A indicação de motivos falsos, inexistentes ou incoerentes vicia o ato, ensejando a sua invalidação, podendo o ato ser apreciado pelo Poder Judiciário, que anulará a medida administrativa. É vício não passível de convalidação pelo Poder Público, uma vez que a lisura de sua atividade estava diretamente atrelada à situação explicitada. O controle pelo Poder judiciário será feito averiguando materialmente a existência do motivo, bem como a sua correspondência com a providência adotada. Através da motivação, é possível verificar a existência e a veracidade dos motivos indicados, bem como analisar a adequação entre tais motivos e o resultado obtido. Ou nos dizeres de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “a motivação é, em regra, necessária, seja para os atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de legalidade, que tanto diz respeito ao interessado como à própria Administração Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado. (…)”[15] Assim, pela motivação, o agente justifica a sua atividade administrativa indicando os pressupostos fáticos e de direito que determinaram sua atuação. Dessa maneira, ela representa o meio pelo qual se demonstra que a escolha feita restringiu-se aos limites legais, sendo o instrumento de verificação dos limites estabelecidos à discricionariedade. Princípios – limitações à discricionariedade A discricionariedade implica em liberdade de apreciação pela Administração Pública em relação à oportunidade e conveniência para tomar determinada medida. É um regime de liberdade vigiada, limitada pela lei. Contudo, não apenas a lei limita a atividade do Poder Público, mas os princípios que informam todo o Estado Democrático, decorrentes implícita ou explicitamente da ordem constitucional brasileira. A escolha pela Administração Pública não se atém somente aos ditames legais, mas a todo um conjunto principiológico que informa e sobre o qual encontra-se assentado todo o ordenamento jurídico nacional, e ao qual se submete o Poder Público. Não somente o ato discricionário praticado em desconformidade legal será eivado de nulidade, mas também toda atividade discricionária que desobedeça a qualquer um dos princípios integrantes do ordenamento jurídico, estejam eles expressos ou não. Ao deliberar sobre as medidas a serem adotadas, principalmente quando se fala de ato discricionário, o agente público deve pautar sua escolha não somente por critérios de conveniência e oportunidade, mas também por valores de probidade e moralidade que regem sua atuação. Lado outro, é igualmente fundamental verificar a razoabilidade, que informa a adequação entre os meios e fins, considerando os fatos que ensejaram a decisão administrativa. No conteúdo do ato administrativo, deve haver adequação lógica e proporção entre meios e fins. Para a validade e eficácia de um ato administrativo, é necessária a adequação entre a medida adotada e os motivos que ensejaram, fundamentaram a atuação da Administração Pública. A moralidade está relacionada com a conduta do agente em valorar e declarar os motivos reais que ensejaram sua atuação, enquanto que a razoabilidade indica adequação lógica entre eles e o conteúdo do ato Evolução do entendimento doutrinário sobre o controle jurisdicional dos atos administrativos O entendimento doutrinário predominante há décadas atrás entendia que a Administração Pública apenas tinha o dever de motivar a edição de atos administrativos vinculados ou sob expressa exigência legal. Mas não havia qualquer controle sobre os atos discricionários. Durante muito tempo vigorou no Direito Administrativo a regra da não obrigatoriedade de enunciar os motivos que ensejaram a edição de atos administrativos discricionários, se assim a lei não impusesse. Posteriormente, embora permanecesse majoritário o entendimento de que não era obrigatória a motivação dos atos administrativos discricionários, considerava-se que os motivos eventualmente apresentados condicionavam a validade do ato e ensejavam o exame do mesmo pelo Poder Judiciário. Foi nesta época que surgiu e começou a se firmar a “teoria dos motivos determinantes.” A doutrina evoluía no sentido de exigir a motivação, mormente nos casos que o ato restringia exercício de direitos, aplicava sanções e anulava e revogava sanções. Segundo a teoria dos motivos determinantes, os motivos apresentados pelo agente público como razões de sua atividade condicionavam a validade o ato e vinculavam o próprio agente. Assim sendo, mesmo considerada a não obrigatoriedade de motivar o ato, se o agente o fizesse, a inexistência dos fatos, a falsa subsunção destes ao preceito legal, ou mesmo a inexistência da previsão legal, prejudicariam a validade do ato, eivando-o de vícios. Os motivos determinantes estariam consubstanciados em determinadas situações de fato ou de direito que recomendariam a edição de determinado ato administrativo. Esses integrariam a validade do ato. Assim, a invocação de motivos fáticos inexistentes, falsos ou incorretamente qualificados viciaria o ato, mesmo quando a lei não houvesse estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Com o passar do tempo, a teoria dos motivos determinantes ganhou adeptos e se fortaleceu. Frise-se que com a modificação do próprio modo que passou a ser enxergado o Estado e as relações de poder (“teoria da representação”, o povo como titular do poder) ensejou mudança na forma de se pensar o controle dos atos administrativos. A partir de então, era entendida como regra geral o dever de motivar o ato discricionário, admitindo-se, contudo, algumas exceções. Passou a considerar-se que os motivos invocados integram a validade do ato, sujeitando-os ao controle judicial, tendo como fundamento a teoria dos motivos determinantes. Nessa linha de raciocínio, Hely Lopes Meirelles defende que, em virtude da ampliação do princípio do acesso judiciário (CF, art. 5º, XXXV), conjugado com o da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), a motivação é, em regra, obrigatória. Para o autor, apenas quando a lei dispensar ou quando a natureza do ato for com ela incompatível, a motivação não seria necessária. O agente público está obrigado, então, na atuação vinculada ou na discricionária, a demonstrar a existência do motivo, caso contrário o ato será inválido ou, pelo menos, anulável, por ausência de motivação. No que se refere à evolução do entendimento sobre o controle dos atos administrativos, na fase seguinte, predominante até a atualidade, passou-se a entender que há o dever de motivar todos os atos administrativos, que estão sujeitos a controle exercido pelo Poder Judiciário. No entendimento do Supremo Tribunal Federal, motivação é necessária em qualquer ato administrativo. Ressalta-se, mais uma vez, que a própria Constituição Federal exige que até as decisões administrativas dos Tribunais sejam motivadas (art. 93, X, CF/88). Se o Poder Judiciário é obrigatório motivar, no exercício de função atípica, não há como conceber esteja o administrador desobrigado de motivar os atos administrativos emitidos no exercício de sua função típica. Portanto, é entendimento dominante que, independente da existência de aspectos vinculados ou discricionários do ato, a motivação é indispensável à sua legitimidade. É de fundamental importância reconhecer a obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos, sejam discricionários, sejam vinculados, pois que a motivação que permite analisar da pertinência da medida, principalmente nos casos de atos administrativos discricionários. De igual forma, a motivação permite analisar se o ato foi legítimo, legal, proporcional, em suma, se cumpriu a finalidade pública geral e especifica embasada pelo ordenamento. Observa Diógenes Gasparini que a discussão sobre o dever de motivar qualquer ato administrativo “parece resolvida com o advento da Lei federal n. 9784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal. Pelo art. 50 dessa lei todos os atos administrativos, sem qualquer distinção, deverão ser motivados, com a indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos. Assim, tanto os atos administrativos vinculados como os discricionários devem ser motivados. O fato desse artigo elencar as situações em que os atos administrativos devem ser motivados não elide esse entendimento, pois o rol apresentado engloba atos discricionários e vinculados”[16] Quanto ao controle, o Poder Judiciário pode examinar os atos da administração de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou discricionários, sempre sob o aspecto da legalidade e por parâmetros principiológicos e teleológicos. Nos ditos atos vinculados, não existe restrição ao controle jurisdicional – sendo seus elementos e requisitos definidos previamente na legislação, cabe ao Judiciário examiná-los para verificar se convergem com a lei, ou para que decrete a nulidade do ato, caso contrário. Acerca dos atos possuidores de aspectos discricionários, o controle judicial é perfeitamente cabível para aferir a legalidade e verificar se a administração não ultrapassou os limites da discricionariedade. Não se defende ao judiciário um controle ilimitado, usurpatório. Não cabe ao judiciário substituir ao administrador, mas verificar se esse atuou em conformidade com os princípios e normas do ordenamento jurídico. Há de se ressaltar que a evolução na doutrina e jurisprudência no tocante a discricionariedade e controle jurisdicional não autorizou o juiz a perscrutar, de modo irrestrito, a atuação do administrador. Permanece, quando da discricionariedade, um campo intocável pelo Poder Judiciário, traduzido pelo mérito administrativo – a análise do juiz se deterá sob o aspecto da legalidade e da juridicidade – no âmbito legal e principiológico. O que antes estava restrito ao controle de legalidade estrita, evoluiu para amparar um conceito muito mais amplo, o de juridicidade. Não basta que a atuação do administrador esteja em conformidade com a legislação – é necessário também que esteja em conformidade com os princípios constitucionais – valores máximos do nosso Estado Democrático de Direito. Em última análise, o controle de legalidade dos atos administrativos deu lugar ao controle constitucional, e a legalidade é agora apenas um dos princípios a serem respeitados pela atuação administrativa. O controle de juridicidade vai além do exame de legalidade, consiste no exame da congruência da valoração dos motivos e da definição do conteúdo do ato administrativo predominantemente discricionário com os princípios jurídicos, como, por exemplo, com o princípio da proporcionalidade, da impessoalidade, moralidade e probidade administrativa, princípio da máxima transparência, da confiança e boa-fé, da segurança jurídica, princípio da eficiência, etc. Ressalve-se, mais uma vez, que remanesce a impossibilidade do controle jurisdicional de mérito. Não cabe ao Poder Judiciário reexaminar o mérito do ato administrativo, vale dizer, não poderá o Poder Judiciário dizer qual a melhor opção, em substituição à opção da Administração, quando efetivamente a norma lhe conferir uma faculdade de livre escolha. Juarez Freitas sintetiza de forma brilhante o equilíbrio entre a amplitude e limites do controle jurisdicional. A saber: “No encalço de reforçar tal relação mutuamente vitalizante dos princípios e das normas administrativas, jamais se deve colhera impressão de que se esteja a preconizar um controle destemperado, absoluto ou usurpatório, tampouco o abandono de precauções e cautelas quanto às regras formais. Bem ao revés. A compreensão do papel do controlador sistemático dos atos administrativos, com ênfase para os princípios, nada mais representa do que a adequada ciência do sistema jurídico,, que somente existe se tal ênfase for respeitada. Pressupõe-se o saber de que,subjacente às exigências formais, oculta-se invariavelmente uma teleologia que requer, para ser desvendada, a inteligência ponderada para bem operar a junção dos princípios e das normas. Desta maneira, todos os cuidados são imprescindíveis, no lidar com os atos administrativos, para bem cumprir o desiderato de, rigorosamente, compatibilizá-los com a totalidade dinâmica e axiológica, regente das relações de administração ”[17] A par deste entendimento, atualmente majoritário, há um posicionamento divergente, minoritário, segundo o qual além do dever de motivar todos os atos administrativos, não há limites para o controle judicial – exclui a discricionariedade ao afirmar que sempre exige um único comportamento ótimo para a Administração. O princípio da moralidade, elevado a categoria de princípio constitucional, segundo o referido entendimento, teria rompido com os limites ao controle jurisdicional do ato administrativo. A moralidade exigida do administrador seria incompatível com a discricionariedade. Tal posicionamento não encontra guarida na maior parte da doutrina, ao argumento de que haveria aí patente inconstitucionalidade ao se colocar o juiz como substituto do administrador público, invadindo função precípua constitucionalmente definida. Considerações finais A discricionariedade não comporta mais os antigos entendimentos de que era absoluta e estava isenta de qualquer apreciação pelo Poder Judiciário. Os órgãos judicantes não podem se eximir de apreciar questões sob a mera alegação de que se tratam-se de atos discricionários. A própria atividade administrativa não pode ser pensada em termos de poder, mas sim de dever de consecução da finalidade legal para satisfação do interesse público. É atividade desempenhada sempre no intuito de outrem, ainda que seja deferida, pela norma, uma margem de liberdade ao agente público. Tem o particular a garantia de que seus direitos e interesses serão respeitados em face da atuação unilateral do Estado. Assim, o ato administrativo lesivo, vinculado ou discricionário, será apreciado pelo Poder Judiciário. Tratando-se de ato vinculado, o exame pelo Poder Judiciário pautará sobre a verificação da conformidade da medida administrativa com o que foi prescrito pela norma. Reconhecido que o ato é discricionário, o Poder Judiciário terá então que verificar, não obstante a liberdade conferida à Administração Pública, se a atividade administrativa ateve-se aos limites estabelecidos, considerando as formas de controle anteriormente expostas. Pela motivação, o Poder Judiciário examina a conformidade do conteúdo do ato com as alegações expendidas pela Administração Pública. A desproporção, inadequação ou inexistência dos motivos expostos com a medida praticada viciam e tornam o ato nulo. E ainda, todo o conjunto de princípios que informa o ordenamento jurídico nacional pode ser levantada para questionar a validade dos atos discricionários. A discricionariedade, abrangendo as situações de liberdade de escolha e de intelecção dos conceitos imprecisos, fica assim bastante restrita, e o controle dos atos discricionários torna-se assim um controle amplo, mas que deve também ser exercido com cautela, sob o risco de não se ter uma “ditadura judicial”. A última palavra caberia ao judiciário para determinar até que ponto iria a discricionariedade da administração pública e daí a própria possibilidade da medida ser controlada. O critério da razoabilidade serve como parâmetro para verificação dos limites da discricionariedade.
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O exercício do poder de polícia: ponderações sobre a polícia administrativa
O objetivo do artigo científico está assentado em discorrer acerca do poder de polícia, bem como seus aspectos caracterizadores e premissas de atuação.  cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. A partir de tais ideários, a pesquisa desenvolvida está assentada no método de revisão bibliográfica, conjugado, no decorrer do artigo, da legislação nacional pertinente, com vistas a esmiuçar os requisitos enumerados.
Direito Administrativo
1 Poder de Polícia: Ponderações Introdutórias Em sede de comentários introdutórios, cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; “o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público”[1]. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Neste sedimento, tal como dito acima, em que pese a inexistência de expressa menção do postulado em comento pelo texto constitucional, é impende destacar, com o realce que o tema carece, que “as atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público”[2].  Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. Ao lado do exposto, a locução poder de polícia abarca dois sentidos, um amplo e um estrito. Em uma acepção ampla, poder de polícia assume significação de toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Especial relevância assume a função do Poder Legislativo incumbido do ius novum uma vez que apenas as leis, organicamente consideradas, têm o condão de delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. Trata-se, pois, de reafirmação do corolário da legalidade, expressamente consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[3]. Em uma fisionomia mais estrita, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que materializa verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. Substancializa, dessa maneira, atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores cominam a disciplina e as restrições aos direitos. Neste sentido, Celso de Mello explicita que: “A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa”[4]. À luz das ponderações aventadas, com espeque na concepção de José dos Santos Carvalho Filho[5], o poder de polícia materializa a prerrogativa de direito público que, assentada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade. Segundo Celso de Mello[6], o poder de policia, em uma conotação mais restrita e assentada em função precípua administrativa, materializa atividade da Administração Pública, sendo expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com arrimo em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, por meio de ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, cominando coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere), com o escopo de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo em vigor.  Trata-se, em linhas conceituais, do modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por escopo evitar que sejam produzidos, ampliados ou generalizados os danos sociais que os diplomas legais procuram prevenir. No que tange ao benefício resultante do poder de polícia, materializa fundamento dessa prerrogativa do Poder Público o interesse público. Logo, a intervenção do Estado no conteúdo dos direitos individuais somente encontra amparo ante a finalidade que deve sempre orientar a ação dos administradores públicos, qual seja: o interesse da coletividade. Noutro ângulo, a prerrogativa em si está alicerçada na supremacia geral da Administração Pública, ou seja, aquela mantida em relação aos administrados, de modo indistinto, flagrante superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos poderes do Estado, interesses públicos. No que pertine à finalidade, salta aos olhos que o poder de polícia objetiva promover a proteção dos interesses coletivos, o que explicita umbilical conotação como próprio fundamento do poder, ou seja, se o interesse público é o axioma inspirador da atuação restritiva do Estado, há de constituir alvo dela a proteção do mesmo interesse. Cuida anotar que este deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando todo e qualquer aspecto. Em sede de âmbito de incidência, cuida reconhecer que é bastante amplo o círculo em que se pode fazer presente o poder de polícia. Em tal alamiré, qualquer ramo de atividade que possa contemplar a presença do indivíduo possibilita a intervenção restritiva do Estado. Em outros termos, não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas, ao reverso, deverão estar subordinados aos interesses coletivos. Daí é possível dizer que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, eis que se sujeitam às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público. “É esse o motivo pelo qual se faz menção à polícia de construções, à polícia sanitária, à polícia de trânsito e de tráfego, à polícia de profissões, à polícia do meio ambiente”[7]. Em todos esses segmentos aparece o Estado, em sua atuação restritiva de polícia, com o escopo de assegurar a preservação do interesse público. 2 Competência do Poder de Polícia A competência para exercer o poder de polícia é, em um primeiro momento, da pessoa federativa à qual a Constituição Federal conferiu o poder de regular a matéria. Com destaque, os assuntos concernentes ao interesse nacional ficam sujeitas à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional estão condicionadas às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local estão subordinados aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal. Com destaque, o sistema de competências constitucionais é responsável por afixar as linhas básicas do poder de regulamentação das pessoas federativas, não sendo, entretanto, possível esquecer que as hipóteses de poder concorrente ensejarão o exercício conjunto do poder de polícia por pessoas de nível federativo diverso, consoante se extrai dos artigos 22, parágrafo único, 23 e 24 da Constituição Federal[8]. Carvalho Filho[9] explicita que será inválido o ato de polícia praticado por agente de pessoa federativa que não tenha competência constitucional para regular a matéria e, portanto, para impor a restrição. Igualmente, só pode ter-se por legítimo o exercício de atividade administrativa materializadora do poder de polícia se a lei em que estiver calcada a conduta da Administração encontrar guarida no Texto Maior. Caso a lei seja inconstitucional, os atos administrativos, que com fundamento nela sejam praticados, serão considerados ilegítimos, caso sejam voltadas a uma pretensa tutela do interesse público, substancializada no exercício do poder de polícia. Destarte, conclui-se que só há poder de polícia legítimo se legítima for a lei que o sustenta. Ao lado disso, imprescindível faz-se anotar que, como o sistema de partilha de competências constitucionais envolve três patamares federativos – o federal, o estadual e o municipal -, e tendo em vista o contraste de competências privativas e concorrentes, salta aos olhos que, dada a complexidade da matéria, comumente surgem hesitações na doutrina e nos Tribunais quanto à entidade competente para a execução de certo serviço ou para o exercício do poder de polícia. Com o escopo de fortalecer o acimado, cuida transcrever o paradigmático entendimento: “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Distrital N. 3.460. Instituição do programa de inspeção e manutenção de veículos em uso no âmbito do Distrito Federal. Alegação de violação do disposto no artigo 22, inciso XI, da Constituição do Brasil. Inocorrência. 1. O ato normativo impugnado não dispõe sobre trânsito ao criar serviços públicos necessários à proteção do meio ambiente por meio do controle de gases poluentes emitidos pela frota de veículos do Distrito Federal. A alegação do requerente de afronta ao disposto no artigo 22, XI, da Constituição do Brasil não procede. 2. A lei distrital apenas regula como o Distrito Federal cumprirá o dever-poder que lhe incumbe — proteção ao meio ambiente. 3. O DF possui competência para implementar medidas de proteção ao meio ambiente, fazendo-o nos termos do disposto no artigo 23, VI, da CB/88. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 3.338/ Relator:  Ministro Joaquim Barbosa/ Relator p/ Acórdão:  Ministro Eros Grau/ Julgado em 31.08.2005/ Publicado no DJe em 05.09.2007). À luz do exposto, incumbe ao intérprete promover detida análise da hipótese concreta, buscando estabelecer uma adequação pertinente ao sistema estabelecido no Texto Constitucional. Oportunamente, convém explicitar que o poder de polícia, sendo atividade que, em algumas hipóteses, acarreta competência concorrente entre pessoas federativas, enseja sua execução em sistema de cooperação calcado no regime de gestão associada, encontrando respaldo no artigo 241 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[10]. Ao lado disso, em tais hipóteses, os entes federativos interessados firmarão convênios administrativos e consórcios públicos destinados ao atendimento dos objetivos do interesse comum. 3 Poder de Polícia Originário e Delegado Ao se empregar o princípio de que quem pode o mais pode o menos, é viável atribuir às pessoas políticas da federação o exercício do poder de polícia, porquanto se lhes compete editar as próprias leis limitadoras, conferindo a coerência propicia e permitindo, em decorrência, o poder de esmiuçar as restrições. Trata-se, aqui, do poder de polícia originário, que alcança, em sentido amplo, as leis e os atos administrativos provenientes de tais pessoas. Entrementes, o Estado não age somente por seus agentes e órgãos, eis que varias atividades e serviços públicos são executados por pessoas vinculadas àquele. Neste aspecto, repousa o questionamento quando tais pessoas terão idoneidade para o exercício do poder de polícia. Ora, ao se perfilhar ao entendimento apresentado por Carvalho Filho[11], salta aos olhos que tais entidades são o prolongamento do Estado e recebem deste o suporte jurídico para o desempenho, por delegação, de funções públicas a ele cometidas. É indispensável, entretanto, para a validade dessa atuação é que a delegação seja feita por meio de lei formal, originaria da função regular do legislativo. Ao lado disso, é denotável, ainda, que a existência da lei é o pressuposto de validade da polícia administrativa exercida pela própria Administração Direta e, dessa forma, nada impediria que servisse também como respaldo da atuação de entidades paraestatais, ainda que elas sejam dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Neste quadrante, o importante é que haja expressa delegação a lei pertinente e que o delegatário seja entidade integrante da Administração Pública. Ao lado disso, é possível, ainda, colacionar o entendimento jurisprudencial no sentido que: “Ementa: Administrativo e Processual Civil. Conselho Regional de Enfermagem. Ação civil pública. Pretensão de obrigar hospital a contratar e manter profissional de enfermagem. Exercício das funções de polícia administrativa. Princípio da inafastabilidade da jurisdição. Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Interesse processual. Utilidade e necessidade. Caracterização. 1. O fato de os estabelecimentos hospitalares cuja atividade básica seja a prática da medicina não estarem sujeitos a registro perante o Conselho de Enfermagem não constitui impeditivo a que sejam submetidos à fiscalização pelo referido órgão quanto à regularidade da situação dos profissionais de enfermagem que ali atuam. Porém, mesmo reconhecendo o poder de polícia administrativa ao Conselho de Enfermagem, este não afasta a utilidade-adequação da presente ação civil pública. 2. Revestido ou não de prerrogativa executória aos atos administrativos das autarquias de fiscalização, estas e qualquer das partes é dado recorrer à tutela jurisdicional, porque assim dispõe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que  pode ser extraído do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 3. Na espécie, nota-se que as condições da ação estão presentes. O interesse processual, única condição em destaque, é composto pelo binômio utilidade-necessidade do provimento. A utilidade pode ser facilmente demonstrada pela necessidade de ordem judicial para a obrigar o hospital recorrido a contratar e manter durante todo o período de seu funcionamento profissionais de enfermagem. Por outro lado, a caracterização da necessidade pode ser extraída dos princípios da jurisdição, especialmente, a imparcialidade e a definitividade. 4. Na esfera administrativa dos conselhos profissionais a relação processual não possui a característica da imparcialidade bem definida, até porque o Conselho de fiscalização ocupa, também, a função de "julgador". Ademais, as decisões proferidas nesta seara não ostentam caráter definitivo, imutabilidade, presente apenas nos provimentos jurisdicionais. Dessa forma, pode a administração buscar no Poder Judiciário que o Estado-Juiz, dentro da relação processual, promova a solução definitiva da controvérsia, atento às alegações de cada parte. […]”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.398.334/SE/ Relator: Ministro Mauro Campbell Marques/ Julgado em 17.10.2013/ Publicado no DJe em 24.10.2013) “Ementa: Processual Civil. Execução Fiscal. Conselho de fiscalização profissional. Autarquia. Fazenda Pública. Representante Judicial. Intimação Pessoal. Prerrogativa prevista no art. 25 da Lei 6.830/1980. […] 5. O STF já decidiu que os conselhos de fiscalização profissionais possuem natureza jurídica autárquica, a qual é compatível com o poder de polícia e com a capacidade ativa tributária, funções atribuídas, por lei, a essas entidades (ADI 1.717 MC, Relator: Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 25.2.2000). 6. A Lei 6.530/1978, que regulamenta a profissão de corretor de imóveis e disciplina seus órgãos de fiscalização, dispõe, em seu art. 5°, que o Conselho Federal e os Conselhos Regionais são autarquias, dotadas de personalidade jurídica de direito público, vinculadas ao Ministério do Trabalho, com autonomia administrativa, operacional e financeira. 7. Em razão de os conselhos de fiscalização profissional terem a natureza jurídica de autarquia, seus representantes judiciais possuem a prerrogativa de, em Execução Fiscal, serem intimados pessoalmente, conforme impõe o art. 25 da Lei 6.830/1980. […]” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.330.190/SP/ Relator? Ministro Herman Benjamin/ Julgado em 11.12.2012/ Publicado no DJe em 19.12.2012). Para tanto, concretamente, é necessário verificar o preenchimento de três condições: (i) a pessoa jurídica deve integrar a estrutura da Administração Indireta, isso porque sempre poderá ter a seu cargo a prestação de serviço; (ii) a competência delegada deve ter sido estabelecida por lei; e (iii) o poder de polícia há de restringir-se à prática de atos de natureza fiscalizatória, partindo-se do primado que as restrições preexistem e de que se cuida de função executória e não inovadora. No exercício da função delegada, os atos praticados são caracterizados como administrativos, não materializando nenhuma novidade em sede de direito administrativo. 4 Polícia Administrativa e Polícia Judiciária Ao examinar o tema central do presente, o poder de polícia, doutrinariamente, costuma ser dividido em dois segmentos distintos, quais sejam: a polícia administrativa e a polícia judiciária. Antes de traçar a linha diferencial entre cada um desses setores, impende anotar que ambos se enquadram na órbita da função administrativa, materializando atividades de gestão de interesses públicos. Em tal aspecto, a polícia administrativa consiste em atividade da Administração que se exaure em si mesma, isto é, inicia e se completa no âmbito da função administrativa. Contudo, o mesmo não é verificado com a polícia judiciária, que, conquanto seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional, o que a faz norteada pela Legislação Processual Penal e executada por órgãos de segurança, compreendendo a polícia civil e a polícia militar, ao passo que a polícia administrativa é exercida por órgãos administrativos de caráter mais fiscalizador. Em mesmo sentido, oportunamente, Celso de Mello, em seu escólio, explicita ainda que: “Costuma-se, mesmo, afirmar que se distingue a polícia administrativa da polícia judiciária com base no caráter preventivo do primeiro e repressivo da segunda. Esta última seria a atividade desenvolvida por organismo – o da polícia de segurança – que cumularia funções próprias da polícia administrativa com a função de reprimir a atividade dos delinquentes através da instrução policial criminal e captura dos infratores da lei penal, atividades que qualificariam a polícia judiciária. Seu traço característico seria o cunho repressivo, em oposição ao preventivo, tipificador da polícia administrativa”[12]. Outra diferença repousa na circunstância de que a polícia administrativa incide essencialmente sobre atividades dos indivíduos, ao passo que a polícia judiciária preordena-se ao indivíduo em si, ou seja, aquele a quem se atribui o cometimento de ilícito penal. Dessa maneira, pretendo evitar a ocorrência de comportamentos nocivos à coletividade, reveste-se a polícia administrativa de caráter eminentemente preventivo: pretende a Administração que o dano social sequer logre êxito em ser consumado. Já a polícia judiciária tem natureza predominantemente repressiva, porquanto é destinada à responsabilidade penal do indivíduo[13]. Celso de Mello[14], em magistério, explicita que o que efetivamente diferencia a polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades antissociais, ao passo que a segunda preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica. Tal distinção, porém, não pode ser considerada como absoluta, eis que os agentes da polícia administrativa também agem repressivamente, quando, a título de exemplificação, interditam um estabelecimento comercial ou apreendem bens obtidos por meios ilícitos. Doutro vértice, os agentes de segurança têm a incumbência, comumente, de atuar de forma preventiva, para o fim de ser evitado o cometimento de delitos. 5 Atuação da Administração Pública 5.1 Atos Normativos e Concretos No exercício da atividade de polícia, a Administração pode atuar de duas formas. Primeiramente, pode editar atos normativos, os quais têm como característica o seu conteúdo genérico, abstrato e impessoal, qualificando-se, por consequência, como atos dotados de amplo círculo de abrangência. Em tais situações, as restrições são materializadas por meio de decretos, regulamentos, portarias, resoluções, instruções e outros de conteúdo igual. Além desse, pode criar, ainda, atos concretos, estes preordenados a determinados indivíduos plenamente identificados, como são, exemplificativamente, os estabelecidos por atos sancionatorios, como a multa, e por atos de consentimentos, como as licenças ou autorizações. Caso o Poder Público pretende regular determinada matéria, tal como o desempenho de profissão ou edificações, deverá editar atos normativos. Contudo, quando interdita um estabelecimento ou concede autorização para porte de arma, pratica atos concretos. 5.2 Determinações e Consentimentos Estatais Os nomeados atos de polícia possuem, no que toca ao objeto que visam, dupla qualificação, a saber: ou materializam determinações de ordem pública ou substancializam consentimentos dispensados aos indivíduos. “O Poder Público estabelece determinações quando a vontade administrativa se apresenta impositiva, de modo a gerar deveres e obrigações aos indivíduos, não podendo estes se eximir de cumpri-los”[15]. Neste jaez, os consentimentos personificam a resposta positiva da Administração Pública aos pedidos formulados por indivíduos interessados em exercer determinada atividade, que careça do mencionado consentimento para ser considerada legítima. Em tal quadrante, a polícia administrativa resulta de verificação que fazem os órgãos competentes sobre a existência ou inexistência de normas restritivas e condicionadas, relativas à atividade pretendida pelo administrado. Aludidos atos de consentimento são as licenças e as autorizações. A primeira espécie são atos vinculados e, como regra, definitivos, ao passo que a segunda espécie reflete atos discricionários e precários. Instrumentos formais de tais atos são os alvarás, porém documentos distintos podem formalizá-los, a exemplo de carteiras, declarações, certificados e outros congêneres que tenham idêntica finalidade. Concretamente, cuida explicitar que o importante é o consentimento exprimido pela Administração. Sem embargos, insta pontuar que a Administração, de maneira equivocada, tenta, ocasionalmente, cobrar taxas de renovação de licença por suposto exercício de poder de polícia em atividade de fiscalização. Ademais, cuida anotar que tal conduta é revestida de ilegalidade, porquanto somente em que a Administração atua efetivamente do poder de polícia é que encontra respaldo a cobrança de taxa. Nesta esteira, ainda, órgãos e entidades que prestam serviços públicos por delegação sujeitam-se ao poder de ordenamento municipal quanto à localização de seus estabelecimentos. É carecido, portanto, que se sujeitem ao poder de polícia municipal e que obtenham a necessária licença para instalação. Isso ocorre com os cartórios notariais ou de registro, que, conquanto estejam sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário, só podem instalar-se legitimamente mediante a expedição de alvará de licença. 5.3 Atos de Fiscalização Não adiantaria deter o Estado o poder de impor restrições aos indivíduos se não dispusesse dos instrumentos necessários à fiscalização da conduta destes. Assim, o poder de polícia vindica do Poder Público uma atuação de agentes fiscalizadores da conduta dos indivíduos. A fiscalização apresenta duplo aspecto, qual seja: um preventivo, por meio do qual os agentes da Administração procuram obstar um dano social, e um repressivo, que, em face da transgressão da norma de polícia, redunda no emprego de uma sanção. Neste último caso, é inevitável que a Administração, deparando a conduta ilegal do administrado, comina-lhe alguma obrigação de fazer ou não fazer. 6 Características do Poder de Polícia 6.1 Discricionariedade e Vinculação No que concerne à caracterização do poder de polícia, cuida reconhecer que subsiste alguma discussão se é discricionário ou vinculado. Quando tem a legislação em vigência, a Administração pode estabelecer a área de atividade em que vai aplicar a restrição em favor do interesse público e, depois de escolhê-la, o conteúdo e a dimensão das limitações. Em tal situação, é forçoso o reconhecimento de que a Administração age no exercício do seu poder discricionário. Ademais, cuida salientar que é nessa valoração do órgão administrativo sobre a conveniência e a oportunidade da transferência que está a discricionariedade do poder de polícia. Assim, evidentemente, o que é vedado à Administração é o abuso do poder de polícia, algumas vezes processado por excesso de poder ou por desvio de finalidade. Celso Mello, em seus ensinamentos, preleciona ainda que: “Em rigor, no Estado de Direito inexiste um poder, propriamente dito, que seja discricionário fruível pela Administração Pública. Há, isto sim, atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Poder discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação administrativa é coisa que não existe”[16]. O reverso ocorre quando já está fixada a dimensão da limitação, sendo que a Administração terá de cingir-se a essa dimensão, não podendo, contudo, sem alteração da norma restritiva, ampliá-la em detrimento dos indivíduos. Em tal cenário, a atuação, por via de consequência, estará caracterizada como vinculada. Carvalho Filho[17] esclarece que a doutrina tem dado ênfase, com cores quentes e sublinhados fortes, à necessidade do controle dos atos de polícia, mesmo que se trate de determinados aspectos, pelo Poder Judiciário. Há que se anotar que aludido controle inclui os atos decorrentes do poder discricionário para evitar-se o cometimento de excessos ou violências da Administração em face de direitos individuais. Ao lado disso, o que é vedado ao Judiciário é sua atuação como substituto do administrador, porquanto, em tal cenário, estaria invadindo funções que constitucionalmente não lhes foram atribuída. 6.2 Autoexecutoriedade A Administração pode tomar as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, cominando, desde logo, obrigações aos particulares, com o escopo de atender ao interesse coletivo. Assim, diante de tal primado, não pode a Administração ficar à mercê do consentimento dos particulares. Em situação distinta, cumpre-lhe agir de imediato. “A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a autoexecutoriedade”[18]. Ao lado disso, tanto é autoexecutório a restrição cominada em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao individuo, quando, à guisa de citação, comete transgressões administrativas. O sentido da autoexecutoriedade repousa na premissa de que, uma vez verificada a presença dos pressupostos legais, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Ao exemplificar, Celso de Mello esclarece, oportunamente que: “Assim, uma ordem para dissolução de comício ou passeata, quando estes sejam perturbadores da tranquilidade pública, será coativamente assegurada pelos órgãos administrativos. Estes se dispensam de obter uma declaração preliminar do Judiciário, seja para declaração do caráter turbulento do comício ou da passeata, seja para determinar sua dissolução. A interrupção de um espetáculo teatral, por obsceno, será procedida do mesmo modo, pela Administração Pública, sem que esta obtenha prévia declaração judicial reconhecendo e autorizando a paralisação da exibição teatral. A apreensão de gêneros alimentícios impróprios para o consumo, por deteriorados ou insalubres, também é medida coativa passível de ser posta em prática pelo Executivo, sem recurso às vias judiciárias, tão logo constate a irregularidade”[19]. Outro ponto que merece ser considerado faz alusão à autoexecutoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a legislação autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata. Assim, acertada é a decisão segundo a qual, no exercício do poder de polícia administrativa, não depende a Administração da intervenção de outro poder para torná-lo efetivo. Quando a lei estabelece o exercício do poder de polícia com autoexecutoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira está assentada no fato de que existem atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, a exemplo do que ocorre com as multas, cuja cobrança só é efetivamente materializada pela ação própria na via judicial. A outra repousa no ideário de que a autoexecutoriedade não deve integralizar objeto do abuso de poder, de maneira que deverá a prerrogativa guardar compatibilidade com o princípio do devido processo legal para o fito de ser a Administração Pública obrigada a respeitar as normas legais. 6.3 Coercibilidade A característica em comento explicita o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia, porquanto, como é natural, a polícia administrativa não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Destarte, se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperi estatal, há de ser desempenhada de maneira a obrigar todos a observarem os seus comandos. Oportunamente, urge explicitar que é intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de empregar a força, quando necessária para vencer eventual recalcitrância. Celso de Mello[20], em seu escólio, oportunamente, frisa que é natural que seja na seara do poder de polícia que se manifesta de modo frequente o exercício da coação administrativa, pois os interesses coletivos defendidos frequentemente não poderiam, para assegurar a eficaz proteção, depender das demoras advindas do procedimento judicial. Ora, tal situação renderia ensejo ao perecimento dos valores sociais resguardados por meio de polícia, observadas, evidentemente, porém, as garantias individuais do cidadão constitucionalmente estabelecidas. 7 Sanções de Polícia Sobre o tema ainda, cuida elucidar que a sanção administrativa materializa ato punitivo que o ordenamento jurídico prevê como resultado de uma infração administrativa, passível de ser aplicado por órgãos da Administração.  Por seu turno, a infração administrativa resta configurada como comportamento típico, antijurídico e reprovável idôneo a ensejar a aplicação da sanção administrativa, no desempenho de função administrativa. Mais que isso, se a sanção é o resultado do exercício do poder de polícia, será qualificada tal reprimenda como sanção de polícia. “O primeiro a ser considerado no tocante às sanções de polícia consiste na necessidade observância do princípio da legalidade”[21]. Assim, é possível explicitar que apenas a lei pode instituir tais sanções com a alusão do rol de condutas que possam materializar infrações administrativas. Logo, atos administrativos subsidiam apenas meio de possibilitar a execução da norma legal sancionatória, mas não podem, por si mesmos, dar origens a apenações, ainda que seja em âmbito administrativo. Acerca das ponderações aventadas, o Supremo Tribunal Federal, em paradigmático julgado, explicitou robusto entendimento que: “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigos 5º, 8º, 9º, 10, 13, § lº, e 14 da Portaria nº 113, de 25.09.97, do IBAMA. Normas por meio das quais a autarquia, sem lei que o autorizasse, instituiu taxa para registro de pessoas físicas e jurídicas no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, e estabeleceu sanções para a hipótese de inobservância de requisitos impostos aos contribuintes, com ofensa ao princípio da legalidade estrita que disciplina, não apenas o direito de exigir tributo, mas também o direito de punir. Plausibilidade dos fundamentos do pedido, aliada à conveniência de pronta suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados. Cautelar deferida.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 1.823 MC/ Relator:  Ministro Ilmar Galvão/ Julgad em 30.04.2008/ Publicado no DJ em 16.10.1998). Há que se anotar, oportunamente, que as sanções refletem a atividade repressiva advinda do poder de polícia. Com efeito, estão elas substancializadas nas diversas leis que norteiam atividades sujeitas a esse poder, sendo inclusive possível citar a multa, a inutilização de bens privados, a interdição de atividade, o embargo da obra, a cassação de patentes, a proibição de fabricar produtos. Na verdade, são sanções todos os atos que representam a punição aplicada pela Administração pela transgressão de normas de poder de polícia. Sobre o tema, inclusive, é possível colacionar o entendimento jurisprudencial, apresentado pelo Tribunal de Justiça Gaúcho, que acena: “Ementa: Execução. Termo de ajustamento de conduta. Obrigação de fazer. Interdição de estabelecimento. Oficina mecânica e chapeamento. Licença. […] Aliás, a interdição de estabelecimento clandestino é sanção administrativa que deve ser aplicada pela Administração Pública. […]”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Vigésima Segunda Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº 70060813789/ Relatora: Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza/ Julgado em 28.07.2014). Contemporaneamente, tem sido feita a distinção entre sanções de polícia e medidas de polícia. As sanções são aquelas que refletem uma punição efetivamente aplicada à pessoa que houver infringido à norma administrativa, ao passo que as medidas de polícia são as providências de cunho administrativo que, conquanto não representem punição direta, decorrem do cometimento de infração ou do risco em que esta seja praticada. Em algumas situações, a mesma conduta administrativa pode materializar como uma ou outra modalidade, sempre considerando o que a legislação tenha previsto para enfrentar a referida situação. A título de fortalecimento do expendido, é possível citar a interdição do estabelecimento, eis que tanto pode materializar ato punitivo direto pela prática de infração grave, como pode ser medida administrativa, adotada em razão de cometimento de infração para a qual a lei previu sanção direta. Não se deve olvidar, ainda, que as sanções devem ser aplicadas em observância ao devido processo legal, a fim de assegurar a observância do princípio da garantia de defesa aos acusados, supedaneado no artigo 5º, incisos LIV e LV, do Texto Constitucional[22]. Dessa maneira, caso o ato sancionatório de polícia não tiver propiciado ao infrator a oportunidade de rechaçar a acusação e de produzir provas necessárias às suas alegações, estará contaminado de vício de legalidade, devendo, portanto, ser sanado na via administrativa ou judicial. Ao lado disso, insta pontuar que, como se trata de processo acusatório, imprescindível faz-se o reconhecimento da incidência, por analogia, de alguns princípios norteadores do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça já assentou entendimento que: “Ementa: Agravos regimentais. Recurso especial. Administrativo e Processo Civil. Súmula 284/STF. Não incidência no caso. Devido processo legal. Lei nº 9.784/99. Matéria infraconstitucional. Servidor público. Supressão de adicional. Ausência de ampla defesa e contraditório. Ilegalidade. Precedentes. […] 2. Conforme reiterados precedentes do Supremo Tribunal Federal, a análise de suposta violação do devido processo legal, quando dependente do prévio exame de normas infraconstitucionais, envolve ofensa apenas reflexa ao texto constitucional. 3. É pacífico o entendimento desta Corte Superior de Justiça de que todo ato administrativo que repercuta na esfera individual do administrado, no caso, servidor público, tem de ser precedido de processo administrativo que assegure a este o contraditório e a ampla defesa. Trata-se de mitigação do enunciado da Súmula 473/STF, com intuito de conferir segurança jurídica ao administrado, bem como resguardar direitos conquistados por este. […]” (Superior Tribunal de Justiça – Sexta Turma/ AgRg no REsp 1.131.928/RS/ Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura/ Julgado em 10.04.2012/ Publicado no DJe em 23.04.2012). “Ementa: Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental. Pensão de servidor público. Ilegalidade. Autotutela. Supressão dos proventos. Devido processo legal. Ampla defesa e contraditório. Obrigatoriedade. Precedentes do STJ. 1. Esta Corte Superior, de fato, perfilha entendimento no sentido de que a Administração, à luz do princípio da autotutela, tem o poder de rever e anular seus próprios atos, quando detectada a sua ilegalidade. 2. Todavia, quando os referidos atos implicarem invasão da esfera jurídica dos interesses individuais de seus administrados, é obrigatória a instauração de prévio processo administrativo, no qual seja observado o devido processo legal e os corolários da ampla defesa e do contraditório. 3. Agravo regimental não provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ AgRg no REsp 1.253.044/RS/ Relator: Ministro Mauro Campbell Marques/ Julgado em 20.03.2012/ Publicado no DJe em 26.03.2012). Em órbita da esfera da Administração Pública federal, direta ou indireta, a ação punitiva, quando se tratar do exercício do poder de polícia, prescreve em cinco anos, contados da data da prática do ato ou, em se tratando de infração permanente ou continuada, do dia em que estiver cessado. Contudo, caso o fato subsuma crime, o prazo prescricional será o mesmo atribuído pela legislação penal pertinente. Com efeito, a Lei nº 9.873, de 23 de Novembro de 1999[23], que estabelece o prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta e dá outras providências, comina prazo contra o Poder Público e a favor do infrator, de maneira que, consumada, fica este garantido contra qualquer sanção de polícia a cargo da Administração. “A prescrição incide também sobre procedimentos administrativos paralisados por mais de três anos na hipótese em que se aguarda despacho ou julgamento da autoridade administrativa”[24]. Oportunamente, o processo deverá ser arquivado de ofício ou a requerimento do interessado, porém caberá à Administração apurar a responsabilidade funcional do agente pela omissão no sobredito prazo[25]. No caso de sanções de polícia, obtemperar faz-se oportuno que a prescrição da ação punitiva da Administrativa se interrompe: a) pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital; b) por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato; c) pela decisão condenatória recorrível; d) por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal. Ademais consoante o artigo 5º da legislação em comento[26], a prescrição regulada pelo diploma em comento tem incidência específica para as infrações relacionadas ao poder de polícia, sendo, por conseguinte, inaplicável em processos administrativos funcionais e de natureza tributária.
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O direcionamento das verbas públicas através de recursos provenientes de emendas parlamentas
Esse artigo se propõe a identificar documentos formais que fazem parte do modelo orçamentário na constituição de 1988: Plano Plurianual – PPA; Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO; Lei Orçamentária Anual – LOA, bem como, a estrutura e as etapas definidas para a apreciação do orçamento com intuito de analisar as correntes doutrinárias referentes no tocante a participação no Poder Legislativo no processo, com foco nas emendas parlamentares, haja vista críticas quanto à pertinência do referido instrumento, uma vez que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares individuais no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, em detrimento do interesse público, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. O trabalho demonstra, ainda, a inadequação dos atuais instrumentos através dos quais o Estado estabelece vínculos de colaboração com as Organizações da Sociedade Civil. Analisar-se-á a Lei Federal 13.019/2014, como proposta capaz de ampliar a transparência, legalidade, impessoalidade e isonomia na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que caso a lei seja aplicada as parcerias oriunda de recursos via emendas parlamentares o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. O estudo possuirá como fundamento metodológico à verificação de textos, artigos e livros que guardem relação com o tema pesquisado, sendo utilizados dispositivos legais específicos e jurisprudência.
Direito Administrativo
1 Introdução Com intuito de contextualizar a formalização de emendas Parlamentares, identificar-se-á os documentos formais que fazem parte do modelo orçamentário na constituição de 1988: Plano Plurianual – PPA; Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO; Lei Orçamentária Anual – LOA, bem como, a estrutura e as etapas definidas para a apreciação do orçamento, com ênfase a participação do poder legislativo. A Constituição Federal de 1988 autoriza – art. 166 parágrafos 2º e 4º, que os legisladores, como representantes do povo, participem de modo direito na elaboração do Orçamento Público via emenda parlamentar. O mandamento constitucional tem natureza de repetição obrigatória, sendo o assunto, em tese, legislado nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios. As Emendas parlamentares são transferências intergovernamentais, ou seja, descentralizações de recursos federais, acrescidas à Lei Orçamentária Anual por solicitações de parlamentares individuais, bancadas ou comissões. Trata-se de despesas não-vinculadas, de finalidade não previamente determinada. Em âmbito municipal as emendas às leis orçamentárias são propostas de alteração de texto que se encontra em tramitação. Nessa ótica, viabiliza-se que o Poder Legislativo participe das discussões referente ao planejamento do orçamento e descentralize voluntariamente recursos a instâncias locais com maior proximidade das demandas sociais. No entanto, a doutrina vem destoando quanto à pertinência do referido instrumento, haja vista que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares individuais no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, muitas vezes em detrimento do interesse público, ocorrendo desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Posições mais moderadas entendem a importância das emendas, tanto pela participação do Poder Legislativo no planejamento, quanto pela necessidade de descentralização de recursos, entretanto, defende-se o aumento da transparência e controle. Pretende-se enquadrar a problemática sob a ótica da ordem principiológica da Constituição Federal de 1988, já que, muito embora haja autorização legal, pois a referida descentralização é autorizada pela própria Constituição e Lei Orgânica dos Municípios, evidencia-se que o instituto afronta os princípios constitucionais, fato hábil a se considerar as emendas inconstitucionais. Serão analisadas propostas que visem ampliar a transparência das transferências voluntárias mediante parceria decorrentes de emendas parlamentares, bem como apresentar sugestões para se efetivar maior nível de transparência, através do chamamento público. O estudo possuirá como fundamento metodológico à verificação de sites oficiais, textos, artigos e livros que guardem relação com o tema pesquisado. Na área legislativa, a legislação existente e principalmente as alterações trazidas pela Lei Federal 13.019 – sancionada em julho de 2014, que entrará em vigor, em tese, em julho de 2015. A nova legislação visa ampliar a isonomia, legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que, com a aplicação nas parceiras público – privada o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. 2 Orçamento público na constituição federal de 1988 A Constituição Federal de1988 define, nos arts. 165 a 169, o modelo orçamentário brasileiro, cuja base é à ligação entre o planejamento e a fixação de despesas para determinado exercício, materializando-se em três documentos formais: Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). O papel medular dessas leis é integrar as atividades de planejamento e orçamento, aspirando sucesso da atuação governamental. O ciclo orçamentário corresponde a um período de quatro anos, inicia-se com a elaboração do PPA e termina com o julgamento das prestações de contas apresentadas pelo Poder Executivo e julgadas pelo Poder Legislativo. É um processo com várias etapas, contínuo e articulado, por meio dos quais os orçamentos são discutidos, elaborados, aprovados, executados, avaliados e julgados. A competência para elaboração dos projetos de lei do PPA, da LDO e da LOA é exclusiva do Poder Executivo, – art. 35, parágrafo segundo, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT[i]. 2.1 ciclo orçamentário Conforme Manual técnico do Orçamento (2014). O ciclo orçamentário se inicia com a elaboração do projeto de lei do PPA no primeiro ano de governo do presidente, governador ou prefeito, e vigora a partir do ano seguinte até o primeiro ano de mandato do próximo governante, de forma a garantir a continuidade administrativa, sendo permitidas alterações durante a vigência, desde que apreciadas pelo Legislativo. Por conseguinte são definidas as metas e prioridades do governo através da LDO que dita as regras para a formulação do LOA. Na LOA o governo demonstra todas as receitas e despesas para o ano seguinte, composta de três documentos, também chamados de esferas: fiscal, seguridade social e investimento das empresas estatais. O projeto da lei orçamentária deve ser aprovado pelo Congresso Nacional até o dia 31 de dezembro, a programação poderá ser executada para o atendimento das despesas que constituem obrigações constitucionais e legais da União. A doutrina critica o modelo orçamentário estabelecido, principalmente no que tange à LDO, por ser autorizativa, ou seja, a efetivação das despesas não é obrigatória. Nesse sentido, cita-se jurisprudência do STF[ii]: “O simples fato de ser incluída, no orçamento uma verba de auxílio a esta ou àquela instituição não gera, de pronto, direito a esse auxílio; […] a previsão de despesa, em lei orçamentária, não gera direito subjetivo a ser assegurado por via judicial.” Por outro lado, outros autores ressaltam o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 no tocante a regulamentação da matéria orçamentária, principalmente pela garantia de harmonia entre os documentos.[iii] A Constituição Federal de 1988 devolveu ao Congresso Nacional a prerrogativa de participar efetivamente do orçamento, instituindo uma comissão mista e permanente de senadores e deputados para tratar da matéria referente ao PPA, à LDO, à LOA e aos créditos adicionais, bem como às emendas a eles apresentadas. O Congresso Nacional criou, pelo Regimento Comum, a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização – CMO, regida pela Resolução nº 01, de 2001 – CN, até o exercício de 2006, quando foi baixada a Resolução nº 1, de 2006 – CN, posteriormente modificado pelas resoluções 03/2008-CN e 03/2013 – CN. Além das competências previstas da Constituição Federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal atribui a CMO o exame e emissão de parecer sobre o acompanhamento e fiscalização da execução orçamentária e financeira e da gestão fiscal. O interesse da matéria orçamentária a nível federal é nacional, haja vista repasses aos Estados Municípios e Distrito Federal, seja por constarem do projeto elaborado pelo Poder Executivo e por inclusão de emendas de parlamentares. Além disso, a regra orçamentária tem natureza de repetição obrigatória, portando, os estados e município, apesar de legitimados para legislar sobre suas próprias leis orçamentárias, devem seguir as linhas definidas na Constituição Federal de 1988. 2.2 da emenda parlamentar A Constituição Federal de 1988 autoriza – art. 166 parágrafos 2º e 4º, que os legisladores, como representantes do povo, participem de modo direito na elaboração do Orçamento Público via emenda parlamentar, representando uma forma de efetiva participação do Congresso Nacional no processo orçamentário. O mandamento constitucional tem natureza de repetição obrigatória, sendo o assunto, em tese, legislado nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios. Nessa ótica viabiliza que o Poder Legislativo, de todos os entes federados, participem das discussões referentes ao planejamento do orçamento, através de propostas de alteração de texto que se encontra em tramitação. Helena Daltro Pontual explica que as emendas parlamentares feitas na Lei Orçamentária Anual (LOA) – enviada pelo Executivo ao Congresso anualmente –, são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seu mandato, tanto junto aos estados e municípios quanto a instituições. Tais emendas podem acrescentar suprimir ou modificar determinados itens (rubricas) do projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo. As emendas à LDO devem ser compatíveis com o PPA vigente, que é hierarquicamente superior, e as emendas à LOA subordinam-se a ambos, as quais devem obedecer às regras estabelecidas pela Constituição Federal: a) não aumentar o total de despesas previsto no orçamento; b) a inclusão de nova despesa, ou aumento de despesa já prevista, só pode ser acatada se houver a indicação de recursos provenientes do cancelamento de outra programação; c) proibição de cancelamento de recursos de despesas com pessoal, benefícios da previdência, transferências constitucionais, juros e amortização da dívida pública. Em definição as Emendas parlamentares são transferências intergovernamentais, descentralizações de recursos federais, acrescidas à Lei Orçamentária Anual por solicitações de parlamentares individuais, bancadas ou comissões. Trata-se de despesas: não-vinculadas, de finalidade não previamente determinada, compatíveis com o Plano Plurianual do quadriênio que estão inseridas e com as demais disposições aprovadas anualmente. Contudo, a doutrina vem destoando quanto à pertinência do referido instrumento, haja vista que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, muitas vezes em detrimento do interesse público, ocorrendo desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Nesse sentido Maurício Requião: “A emenda individual é uma criação, um dedo do jeitinho brasileiro, no sistema. O executivo é o responsável pelo ordenamento de despesas e pelo “como e onde” aplicar os recursos. As emendas parlamentares foram um jeito de agradar os congressistas e dar a eles um pequeno poder gestor e executivo. É a emenda que traz o poder ao parlamentar de escolher para onde vai e quanto vai destinar de recursos aos municípios de sua base. Como disse, esta não é função do legislativo, e sim do executivo.” Ainda comenta que por se tratar de “favor” do executivo ao legislativo, as emendas são de execução facultativa, sendo discricionário o pagamento. E essa discricionariedade na liberação de recursos é, muitas vezes, usada como moeda de troca: “uma espécie de cheque pré-datado para a cooptação do parlamento pelo executivo. O parlamentar que votar com o governo ganha o empenho (pagamento) de suas emendas. Hoje, quando o governo, tanto o federal como estadual, em quase todos os estados, precisa de uma aprovação no legislativo, ele libera um percentual destas emendas para que a oposição vote com o governo.” No ponto, destaca-se que tramita no congresso nacional uma Proposta de Emenda à Constituição- PEC 358/13, que pretende transformar o orçamento de facultativo a impositivo, a proposta pretende que a execução das emendas individuais seja obrigatória ao orçamento da União até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no ano anterior.[iv] No entanto, consideramos que muito embora o orçamento impositivo possa diminuir, em tese, a troca de favores entre o executivo e o legislativo, não diminuirá os possíveis fins eleitorais, em relação ao legislativo e eleitorado, além disso, a função precípua do legislativo não é a execução de política pública e sim a fiscalização dos recursos públicos. Em contrapartida, alguns defensores das emendas consideram-na como uma atividade legítima, inserida no contexto dos papéis típicos do Legislativo, e desperta a maior atenção dos parlamentares e das bancadas estaduais. Isto ocorre em razão de ser esta a oportunidade para realizar alocações de recursos em benefício das localidades que representam.[v] Destaca-se que em 2014, a lei orçamentária da União Lei 12.952/14 destinou R$ 8,72 bilhões em emendas (R$ 14,68 milhões por parlamentar).[vi] Como visto, trata-se de um valor significativo e não se pode esquecer que, como todo o orçamento, as verbas provenientes de emendas parlamentares são verbas públicas, assim, devem se compatibilizar aos princípios da administração Pública e jamais poderiam ser direcionados a interesses pessoais do legislativo, ou com intuito “eleitoreiro”. Com essa breve explanação sobre emenda parlamentares, iniciaremos um estudo sobre o possível direcionamento de verbas públicas provenientes de emendas parlamentares a entidade sem fins lucrativos, em que se pretende identificar possíveis alternativas como forma de combate à corrupção. 3 Transferências voluntárias a entidades privadas sem fins lucrativos Uma das formas de parceria entre a administração pública e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos é o repasse financeiro feito através de transferências voluntárias, assim chamada por não se constituir em transferências constitucionais ou legais. A lei de responsabilidade, em seu artigo 25, conceitua transferências voluntarias: “entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”. Muito embora o conceito citado não inclua no rol de transferência às entidades privadas sem fins lucrativos, infere-se da doutrina que tais repasses se enquadram como tal no plano orçamentário. Nesse sentido, SALINAS (2008): “o repasse de recursos da União às entidades privadas sem fins lucrativos a título de cooperação, auxilio ou assistência financeira que não decorra de determinação legal é denominado transferência voluntária”. As transferências voluntárias são formalizadas através de instrumentos jurídicos próprios, cujos principais são: convênios, termos de parceria e o contrato de repasse, todavia a Lei 13.019/2014, com vigência programada para julho de 2015, altera significativamente o procedimento das parcerias entre o poder público e as entidades da sociedade civil, surgindo dois novos instrumentais para a formalização das parcerias: o termo de colaboração e o termo de fomento, sendo o convênio restringido as parcerias governamentais. 3.1 alterações na formalização de parcerias com entidades privadas – Lei 13.019/2014: O chamado Marco Regulatório das Entidades da Sociedade Civil – Lei 13.019/2014, publicada em 31 de julho de 2014, teria inicialmente um período de “vacatio legis” de 90 dias, conforme determinado no artigo 88, todavia antes de entrar em vigor o artigo foi alterado através pela Medida Provisória nº 658, de 29 de outubro de 2014, prorrogando-se o prazo de entrada em vigor da lei para julho de 2015, o período de vacatio legis de 90 dias passou para 360 dias da publicação oficial. A nova legislação expressa uma tentativa de resposta aos arranjos que podem ensejar corrupção ou ausência de critérios no acesso aos recursos públicos. Como dito, trata-se de um mecanismo jurídico que regula as parcerias entre o poder público e as entidades privadas sem fins lucrativos. Produzida com participação de gestores e entidades representativas, a nova legislação supre um cenário de insuficiências jurídicas e institucionais nas relações entre entidades privadas sem fins lucrativos e administração pública: “Durante os estudos, constatou-se que há fortes divergências entres os órgãos públicos a respeito do tratamento de questões sensíveis relacionadas aos convênios. Essa situação agrava-se ainda mais no caso das entidades privadas sem fins lucrativos, já que os normativos existentes – art. 116 da Lei 8.666/93, Decreto nº 6.170/07 e Portaria Interministerial MPOG/CGU/MF nº 507/2011 – ainda não regulam de maneira adequada as peculiaridades desta relação.(…) 5. Como se verá em detalhes nesta Nota Técnica existem entraves para a execução das parcerias com as entidades privadas sem fins lucrativos, em razão principalmente da (i) instabilidade legislativa, já que grande parte das normas aplicáveis é infralegal e tem sido alterada de maneira bastante recorrente e da (ii) existência de lacunas jurídicas falta de clareza nas regras que têm dado margem à aplicação de analogias impróprias, criando situações de risco não apenas para as entidades, mas também para os gestores públicos.[vii]” Em sucinta análise, concluímos que o Marco Regulatório pretende: a) estabelecer o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público; b) definir diretrizes para a política de fomento e colaboração; c) instituir o termo de colaboração e o termo de fomento; d) limitar a figura dos convênios às relações entre entes federados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal e suas entidades indiretas); e) tonar obrigatório o prévio Chamamento Público para escolha da entidade parceira; f) exigir experiência, capacidade técnica, operacional da entidade que postula a parceria; g) dispensar a contrapartida financeira como requisito para celebração de parceria; h) maior transparência com a determinação de publicação anual dos valores orçamentários destinados às parcerias entre estado e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, i) criação de comissões de monitoramento e avaliação; j) regras mais simplificadas de prestação de contas; Portanto, seu mérito é estabelecer mecanismos e instrumentos mais transparentes e democráticos na relação público/privado. Para melhor visualização das alterações referidas, passaremos a expor os novos instrumentais à transferência voluntárias– fomento e colaboração – que substituirá o então vigente convênio, que permanece somente entre as transferências governamentais. 3.1.1 do fomento e da colaboração A Constituição de 1988, em vários dispositivos, prevê o dever do Estado de fomentar atividades desenvolvidas por particulares. Tais dispositivos estabelecem que a atividade administrativa de fomento esta relacionada à atuação complementar do particular, que age na consecução indireta de interesses públicos, com intuito não lucrativo, sob o regime do direito privado parcialmente derrogado por normas de direto público. Em relação à lei infraconstitucional a atividade de fomento já era prevista nas leis 91/35 e 4.320/64. Esta traz regras sobre direito financeiro, prevê concessão de auxílios, contribuições e subvenções às entidades privadas sem fins lucrativos, já a lei de 19/35 estabelece requisitos para que determinada entidade seja declarada de Utilidade Pública Federal. Na lei 13.019/2014 os instrumentais estão definidos nos artigo 2º, inciso VII e VIII, e artigos 16 e 17[viii]: A colaboração e o fomento se diferenciam somente pela iniciativa: no primeiro o ente público analisa a necessidade do serviço, abre chamamento público para selecionar os melhores projetos, já no segundo a iniciativa é da própria sociedade que traz a ideia ao ente público, que avaliará o interesse e sendo a proposta considerada relevante, abrir-se-á chamamento público para a seleção das parcerias. Ressalta-e que essa nova ótica utilizar-se-á de critérios objetivos e equiparação de oportunidades às entidades. Nesse sentido o Boletim Técnico nº 78 – 2014 –da Delegação de Prefeituras Municipais: “São os instrumentos jurídicos que formalizam as parcerias voluntárias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil, para a consecução de finalidades de interesse público e em regime de mútua cooperação. Ambos são precedidos de chamamento público para a seleção da OSC. A diferença fundamental entre ambos, conforme art. 2º, incisos VII e VIII, é que o Termo de Colaboração deverá ser utilizado nas parcerias propostas pela Administração Pública, enquanto o Termo de Fomento será cabível quando a parceria for proposta pelas próprias OSC.” Aline Magalhães Soares em analise ressalta: “Ao instituir o Termo de Colaboração para a execução de políticas públicas e o Termo de Fomento para apoio a iniciativas das organizações – instrumentos próprios e adequados para as relações de parceria entre o Estado e as OSCs, em substituição aos convênios – a lei reconhece de forma inovadora essas duas dimensões legítimas de relacionamento entre as organizações e o poder público.” Conclui-se, portanto, que Fomento e Colaboração são instrumentos passíveis de ser celebrado entre a Administração Pública e as entidades privadas sem fins lucrativos para realização de projeto ou atividade de interesse público ou de relevância social de iniciativa da própria entidade privada, ou que contribua para o alcance de objetivos e metas governamentais, sejam de natureza continuada ou não, e ocorra em caráter complementar à atuação do poder público. Sendo obrigatória para a formalização, de ambos, a seleção através de Chamamento Público. 3.1.3 do Chamamento Público As parcerias entre o poder público e as entidades sem fins lucrativos através do fomento e da colaboração serão efetivados por meio de um procedimento denominado chamamento público. A lei 13.019/14 conceitua o chamamento público como: “procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos;” A nova lei veio reafirmar e tonar obrigatória à necessidade do chamamento público, todavia, o instituto não é novo, haja vista previsão anterior em legislações esparsas. O chamamento público foi introduzido no ordenamento jurídico por meio do Decreto 7.568/11, que alterou o Decreto 6.170/07, e também, previsto na Portaria Interministerial n.º 507 que regulamenta os convênios, os contratos de repasse e os termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, que envolvam transferência de recursos financeiros oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. Depreende-se das normas, aplicáveis aos convênios e contratos de repasse, a obrigatoriedade de realização de chamamento público à formação de parceria para execução descentralizada de atividades com entidades privadas sem fins lucrativos, na medida em que o Decreto nº 6.170, de 2007 prevê que “a celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos será precedida de chamamento público” e a Portaria Interministerial nº 507, de 2011, dispõe que “a formação de parceria para execução descentralizada de atividades, por meio de convênio ou termo de parceria, com entidades privadas sem fins lucrativos deverá ser precedida de chamamento público ou concurso de projetos”. As normas referidas trazem critérios e aspectos a serem observados na análise das propostas, além das informações que o edital deve conter, bem como a sua publicidade. Contudo, apesar da legislação vigente, a matéria sempre causou polêmica, não havendo uma conclusão definitiva quanto à obrigatoriedade ou não do procedimento para celebração das parcerias, sendo que a regra nem sempre é observada, principalmente no âmbito Municipal, desse modo, o surgimento da Lei 13.019/2014, com vigência em âmbito Nacional, surge como um divisor de águas nas relações público – privadas, uma vez que torna, em regra, o chamamento público obrigatório para todos os entes federados, além disso, a nova legislação alterou a Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992[ix], constituindo crime a não obediência as regras dispostas na Lei 13.019/14. Através da nova legislação o chamamento público deixa de ser discricionário para o gestor, a seleção ganha importância e deverá ser precedida da fase de planejamento, privilegiando a transparência e a isonomia na contratação.[x] Conclui-se que a legislação em comento inaugura um capítulo promissor na democracia brasileira, tão comprometida, pelos escândalos de corrupção, resta saber agora se a lei, realmente, será aplicada. Conclusão  O que se coloca em pauta é se a Lei 13.019/14 será aplicada às parcerias realizadas com entidades privadas sem fins lucrativos, na hipótese de recursos com indicação em lei orçamentária, proveniente de emenda parlamentar. O questionamento se relaciona à necessidade de realização de chamamento público previamente à celebração das referidas parcerias. O art. 3º, inciso II, da referida lei, aduz que não se aplicam as exigências da lei: “às transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário;” Entendemos que a celebração da parceria, nos moldes anunciados, depende da realização do chamamento público, porque a hipótese de indicação nominal da entidade privada na lei orçamentária não figura como hipótese do artigo 3º, bem como não caracteriza como exceção de dispensa prevista no art. 30 da lei 13019/14[xi], além disso, consideramos que a indicação nominal fere o princípio da impessoalidade na administração pública, haja vista, que o parlamentar em tese, deve estar preocupado com o interesse público, e não com qual entidade deverá receber o recurso. Desse modo, vislumbra-se que a parceria não poderá ser pactuada diretamente com a entidade privada beneficiada por emenda parlamentar, conforme ocorre, em virtude da necessidade de realização do Chamamento Público previsto na Lei 13.019/14. Contudo, na legislação vigente, uma vez que a Lei 13.019/14 só entrará em vigor em julho de 2015, não existe posicionamento pacificado, havendo total discricionariedade nas parcerias decorrentes de emendas parlamentares, sendo as escolhas feitas mediante critérios de natureza pessoal. Assim, as críticas ao sistema são corriqueiras, haja vista que, muitas vezes, ocorre desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Em alguns municípios, há direcionamento das emendas propostas pelos vereadores na Lei Orçamentária Anual, muitas vezes o recurso é destinado a instituições que carecem de profissionalismo e os projetos não atendem a real demanda do Município. Assim na prática, tem-se uma negociação entre a entidade privada e o vereador de sua preferência, que lhe destinará verbas públicas. Os recursos são destinados aos fundos inseridos aos Conselhos Municipais afetos a diversas áreas, tais como: Assistência Social, Criança e Adolescente, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência. O papel dos conselheiros é analisar a documentação e o projeto da entidade e caso aprovado, a administração pública dá prosseguimento à formalização do convênio. Na prática, admitem-se verbas casadas ou vinculadas, através da indicação pelo vereador dos projetos/entidades a serem beneficiadas com os recursos por eles destinados, geralmente como condição ou fator determinante da destinação. Entretanto, tal direcionamento, apesar de concebidas e admitidas, significam usurpação indevida da função deliberativa dos Conselhos de Direitos, uma vez que, por antecipação, permitem ao vereador indicar qual entidade ou projeto será contemplado com recurso proveniente da emenda. Consideramos que a prática, subverte o papel dos Conselhos de Direitos, que, abrem mão da autonomia e poder de decisão, prerrogativas indisponíveis dos conselheiros[xii], em favor da vontade pessoal do parlamentar, que nem sempre são as mais justas ou legítimas. Evidente, portanto, que o direcionamento de verbas públicas afronta aos princípios da administração pública, sobretudo as normas de direito financeiro e orçamentário aplicáveis aos entes federados. Infere-se da nova sistemática trazida pela Lei 13.019/14 a pretensão de se estabelecer, através de diagnóstico da sociedade que representam, quais áreas de atendimento devem ser priorizadas, bem como um sistema equânime para habilitação das entidades parceiras , com regras objetivas de seleção vinculada a um diagnostico objetivo da realidade territorial e não mais através de escolha de cunho pessoal. A nova legislação visa ampliar a isonomia, legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que, com a aplicação nas parceiras público – privada o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. Desse modo a aplicação dos recursos proveniente de emendas parlamentares, assim, como em toda política pública, deverá obedecer aos princípios formais da administração pública e nortear-se pela finalidade precípua da Administração, que é o atendimento do interesse público. O Brasil enfrenta dificuldades de fiscalização e grande quantidade de escândalos sobre malversação dos recursos advindos de emendas nas últimas décadas. Pires (2005), em que pese o presente artigo não estabelecer relação causal entre emendas e a corrupção, considera-se necessário à ampliação da transparência e do controle sobre as aprovações e execuções de emendas parlamentares em todos os entes federados, sob pena de corroborar com a corrupção no país e perpetuar o direcionamento verbas públicas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-direcionamento-das-verbas-publicas-atraves-de-recursos-provenientes-de-emendas-parlamentas/
O direcionamento das verbas públicas através de recursos provenientes de emendas parlamentas
Esse artigo se propõe a identificar documentos formais que fazem parte do modelo orçamentário na constituição de 1988: Plano Plurianual – PPA; Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO; Lei Orçamentária Anual – LOA, bem como, a estrutura e as etapas definidas para a apreciação do orçamento com intuito de analisar as correntes doutrinárias referentes no tocante a participação no Poder Legislativo no processo, com foco nas emendas parlamentares, haja vista críticas quanto à pertinência do referido instrumento, uma vez que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares individuais no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, em detrimento do interesse público, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. O trabalho demonstra, ainda, a inadequação dos atuais instrumentos através dos quais o Estado estabelece vínculos de colaboração com as Organizações da Sociedade Civil. Analisar-se-á a Lei Federal 13.019/2014, como proposta capaz de ampliar a transparência, legalidade, impessoalidade e isonomia na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que caso a lei seja aplicada as parcerias oriunda de recursos via emendas parlamentares o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. O estudo possuirá como fundamento metodológico à verificação de textos, artigos e livros que guardem relação com o tema pesquisado, sendo utilizados dispositivos legais específicos e jurisprudência.
Direito Administrativo
1 Introdução Com intuito de contextualizar a formalização de emendas Parlamentares, identificar-se-á os documentos formais que fazem parte do modelo orçamentário na constituição de 1988: Plano Plurianual – PPA; Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO; Lei Orçamentária Anual – LOA, bem como, a estrutura e as etapas definidas para a apreciação do orçamento, com ênfase a participação do poder legislativo. A Constituição Federal de 1988 autoriza – art. 166 parágrafos 2º e 4º, que os legisladores, como representantes do povo, participem de modo direito na elaboração do Orçamento Público via emenda parlamentar. O mandamento constitucional tem natureza de repetição obrigatória, sendo o assunto, em tese, legislado nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios. As Emendas parlamentares são transferências intergovernamentais, ou seja, descentralizações de recursos federais, acrescidas à Lei Orçamentária Anual por solicitações de parlamentares individuais, bancadas ou comissões. Trata-se de despesas não-vinculadas, de finalidade não previamente determinada. Em âmbito municipal as emendas às leis orçamentárias são propostas de alteração de texto que se encontra em tramitação. Nessa ótica, viabiliza-se que o Poder Legislativo participe das discussões referente ao planejamento do orçamento e descentralize voluntariamente recursos a instâncias locais com maior proximidade das demandas sociais. No entanto, a doutrina vem destoando quanto à pertinência do referido instrumento, haja vista que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares individuais no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, muitas vezes em detrimento do interesse público, ocorrendo desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Posições mais moderadas entendem a importância das emendas, tanto pela participação do Poder Legislativo no planejamento, quanto pela necessidade de descentralização de recursos, entretanto, defende-se o aumento da transparência e controle. Pretende-se enquadrar a problemática sob a ótica da ordem principiológica da Constituição Federal de 1988, já que, muito embora haja autorização legal, pois a referida descentralização é autorizada pela própria Constituição e Lei Orgânica dos Municípios, evidencia-se que o instituto afronta os princípios constitucionais, fato hábil a se considerar as emendas inconstitucionais. Serão analisadas propostas que visem ampliar a transparência das transferências voluntárias mediante parceria decorrentes de emendas parlamentares, bem como apresentar sugestões para se efetivar maior nível de transparência, através do chamamento público. O estudo possuirá como fundamento metodológico à verificação de sites oficiais, textos, artigos e livros que guardem relação com o tema pesquisado. Na área legislativa, a legislação existente e principalmente as alterações trazidas pela Lei Federal 13.019 – sancionada em julho de 2014, que entrará em vigor, em tese, em julho de 2015. A nova legislação visa ampliar a isonomia, legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que, com a aplicação nas parceiras público – privada o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. 2 Orçamento público na constituição federal de 1988 A Constituição Federal de1988 define, nos arts. 165 a 169, o modelo orçamentário brasileiro, cuja base é à ligação entre o planejamento e a fixação de despesas para determinado exercício, materializando-se em três documentos formais: Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). O papel medular dessas leis é integrar as atividades de planejamento e orçamento, aspirando sucesso da atuação governamental. O ciclo orçamentário corresponde a um período de quatro anos, inicia-se com a elaboração do PPA e termina com o julgamento das prestações de contas apresentadas pelo Poder Executivo e julgadas pelo Poder Legislativo. É um processo com várias etapas, contínuo e articulado, por meio dos quais os orçamentos são discutidos, elaborados, aprovados, executados, avaliados e julgados. A competência para elaboração dos projetos de lei do PPA, da LDO e da LOA é exclusiva do Poder Executivo, – art. 35, parágrafo segundo, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT[i]. 2.1 ciclo orçamentário Conforme Manual técnico do Orçamento (2014). O ciclo orçamentário se inicia com a elaboração do projeto de lei do PPA no primeiro ano de governo do presidente, governador ou prefeito, e vigora a partir do ano seguinte até o primeiro ano de mandato do próximo governante, de forma a garantir a continuidade administrativa, sendo permitidas alterações durante a vigência, desde que apreciadas pelo Legislativo. Por conseguinte são definidas as metas e prioridades do governo através da LDO que dita as regras para a formulação do LOA. Na LOA o governo demonstra todas as receitas e despesas para o ano seguinte, composta de três documentos, também chamados de esferas: fiscal, seguridade social e investimento das empresas estatais. O projeto da lei orçamentária deve ser aprovado pelo Congresso Nacional até o dia 31 de dezembro, a programação poderá ser executada para o atendimento das despesas que constituem obrigações constitucionais e legais da União. A doutrina critica o modelo orçamentário estabelecido, principalmente no que tange à LDO, por ser autorizativa, ou seja, a efetivação das despesas não é obrigatória. Nesse sentido, cita-se jurisprudência do STF[ii]: “O simples fato de ser incluída, no orçamento uma verba de auxílio a esta ou àquela instituição não gera, de pronto, direito a esse auxílio; […] a previsão de despesa, em lei orçamentária, não gera direito subjetivo a ser assegurado por via judicial.” Por outro lado, outros autores ressaltam o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 no tocante a regulamentação da matéria orçamentária, principalmente pela garantia de harmonia entre os documentos.[iii] A Constituição Federal de 1988 devolveu ao Congresso Nacional a prerrogativa de participar efetivamente do orçamento, instituindo uma comissão mista e permanente de senadores e deputados para tratar da matéria referente ao PPA, à LDO, à LOA e aos créditos adicionais, bem como às emendas a eles apresentadas. O Congresso Nacional criou, pelo Regimento Comum, a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização – CMO, regida pela Resolução nº 01, de 2001 – CN, até o exercício de 2006, quando foi baixada a Resolução nº 1, de 2006 – CN, posteriormente modificado pelas resoluções 03/2008-CN e 03/2013 – CN. Além das competências previstas da Constituição Federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal atribui a CMO o exame e emissão de parecer sobre o acompanhamento e fiscalização da execução orçamentária e financeira e da gestão fiscal. O interesse da matéria orçamentária a nível federal é nacional, haja vista repasses aos Estados Municípios e Distrito Federal, seja por constarem do projeto elaborado pelo Poder Executivo e por inclusão de emendas de parlamentares. Além disso, a regra orçamentária tem natureza de repetição obrigatória, portando, os estados e município, apesar de legitimados para legislar sobre suas próprias leis orçamentárias, devem seguir as linhas definidas na Constituição Federal de 1988. 2.2 da emenda parlamentar A Constituição Federal de 1988 autoriza – art. 166 parágrafos 2º e 4º, que os legisladores, como representantes do povo, participem de modo direito na elaboração do Orçamento Público via emenda parlamentar, representando uma forma de efetiva participação do Congresso Nacional no processo orçamentário. O mandamento constitucional tem natureza de repetição obrigatória, sendo o assunto, em tese, legislado nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios. Nessa ótica viabiliza que o Poder Legislativo, de todos os entes federados, participem das discussões referentes ao planejamento do orçamento, através de propostas de alteração de texto que se encontra em tramitação. Helena Daltro Pontual explica que as emendas parlamentares feitas na Lei Orçamentária Anual (LOA) – enviada pelo Executivo ao Congresso anualmente –, são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seu mandato, tanto junto aos estados e municípios quanto a instituições. Tais emendas podem acrescentar suprimir ou modificar determinados itens (rubricas) do projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo. As emendas à LDO devem ser compatíveis com o PPA vigente, que é hierarquicamente superior, e as emendas à LOA subordinam-se a ambos, as quais devem obedecer às regras estabelecidas pela Constituição Federal: a) não aumentar o total de despesas previsto no orçamento; b) a inclusão de nova despesa, ou aumento de despesa já prevista, só pode ser acatada se houver a indicação de recursos provenientes do cancelamento de outra programação; c) proibição de cancelamento de recursos de despesas com pessoal, benefícios da previdência, transferências constitucionais, juros e amortização da dívida pública. Em definição as Emendas parlamentares são transferências intergovernamentais, descentralizações de recursos federais, acrescidas à Lei Orçamentária Anual por solicitações de parlamentares individuais, bancadas ou comissões. Trata-se de despesas: não-vinculadas, de finalidade não previamente determinada, compatíveis com o Plano Plurianual do quadriênio que estão inseridas e com as demais disposições aprovadas anualmente. Contudo, a doutrina vem destoando quanto à pertinência do referido instrumento, haja vista que, eventualmente, em tese, o uso de emendas parlamentares no Brasil tem sido moeda de troca de favores entre os Poderes Executivo e Legislativo e seu eleitorado, muitas vezes em detrimento do interesse público, ocorrendo desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Nesse sentido Maurício Requião: “A emenda individual é uma criação, um dedo do jeitinho brasileiro, no sistema. O executivo é o responsável pelo ordenamento de despesas e pelo “como e onde” aplicar os recursos. As emendas parlamentares foram um jeito de agradar os congressistas e dar a eles um pequeno poder gestor e executivo. É a emenda que traz o poder ao parlamentar de escolher para onde vai e quanto vai destinar de recursos aos municípios de sua base. Como disse, esta não é função do legislativo, e sim do executivo.” Ainda comenta que por se tratar de “favor” do executivo ao legislativo, as emendas são de execução facultativa, sendo discricionário o pagamento. E essa discricionariedade na liberação de recursos é, muitas vezes, usada como moeda de troca: “uma espécie de cheque pré-datado para a cooptação do parlamento pelo executivo. O parlamentar que votar com o governo ganha o empenho (pagamento) de suas emendas. Hoje, quando o governo, tanto o federal como estadual, em quase todos os estados, precisa de uma aprovação no legislativo, ele libera um percentual destas emendas para que a oposição vote com o governo.” No ponto, destaca-se que tramita no congresso nacional uma Proposta de Emenda à Constituição- PEC 358/13, que pretende transformar o orçamento de facultativo a impositivo, a proposta pretende que a execução das emendas individuais seja obrigatória ao orçamento da União até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no ano anterior.[iv] No entanto, consideramos que muito embora o orçamento impositivo possa diminuir, em tese, a troca de favores entre o executivo e o legislativo, não diminuirá os possíveis fins eleitorais, em relação ao legislativo e eleitorado, além disso, a função precípua do legislativo não é a execução de política pública e sim a fiscalização dos recursos públicos. Em contrapartida, alguns defensores das emendas consideram-na como uma atividade legítima, inserida no contexto dos papéis típicos do Legislativo, e desperta a maior atenção dos parlamentares e das bancadas estaduais. Isto ocorre em razão de ser esta a oportunidade para realizar alocações de recursos em benefício das localidades que representam.[v] Destaca-se que em 2014, a lei orçamentária da União Lei 12.952/14 destinou R$ 8,72 bilhões em emendas (R$ 14,68 milhões por parlamentar).[vi] Como visto, trata-se de um valor significativo e não se pode esquecer que, como todo o orçamento, as verbas provenientes de emendas parlamentares são verbas públicas, assim, devem se compatibilizar aos princípios da administração Pública e jamais poderiam ser direcionados a interesses pessoais do legislativo, ou com intuito “eleitoreiro”. Com essa breve explanação sobre emenda parlamentares, iniciaremos um estudo sobre o possível direcionamento de verbas públicas provenientes de emendas parlamentares a entidade sem fins lucrativos, em que se pretende identificar possíveis alternativas como forma de combate à corrupção. 3 Transferências voluntárias a entidades privadas sem fins lucrativos Uma das formas de parceria entre a administração pública e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos é o repasse financeiro feito através de transferências voluntárias, assim chamada por não se constituir em transferências constitucionais ou legais. A lei de responsabilidade, em seu artigo 25, conceitua transferências voluntarias: “entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”. Muito embora o conceito citado não inclua no rol de transferência às entidades privadas sem fins lucrativos, infere-se da doutrina que tais repasses se enquadram como tal no plano orçamentário. Nesse sentido, SALINAS (2008): “o repasse de recursos da União às entidades privadas sem fins lucrativos a título de cooperação, auxilio ou assistência financeira que não decorra de determinação legal é denominado transferência voluntária”. As transferências voluntárias são formalizadas através de instrumentos jurídicos próprios, cujos principais são: convênios, termos de parceria e o contrato de repasse, todavia a Lei 13.019/2014, com vigência programada para julho de 2015, altera significativamente o procedimento das parcerias entre o poder público e as entidades da sociedade civil, surgindo dois novos instrumentais para a formalização das parcerias: o termo de colaboração e o termo de fomento, sendo o convênio restringido as parcerias governamentais. 3.1 alterações na formalização de parcerias com entidades privadas – Lei 13.019/2014: O chamado Marco Regulatório das Entidades da Sociedade Civil – Lei 13.019/2014, publicada em 31 de julho de 2014, teria inicialmente um período de “vacatio legis” de 90 dias, conforme determinado no artigo 88, todavia antes de entrar em vigor o artigo foi alterado através pela Medida Provisória nº 658, de 29 de outubro de 2014, prorrogando-se o prazo de entrada em vigor da lei para julho de 2015, o período de vacatio legis de 90 dias passou para 360 dias da publicação oficial. A nova legislação expressa uma tentativa de resposta aos arranjos que podem ensejar corrupção ou ausência de critérios no acesso aos recursos públicos. Como dito, trata-se de um mecanismo jurídico que regula as parcerias entre o poder público e as entidades privadas sem fins lucrativos. Produzida com participação de gestores e entidades representativas, a nova legislação supre um cenário de insuficiências jurídicas e institucionais nas relações entre entidades privadas sem fins lucrativos e administração pública: “Durante os estudos, constatou-se que há fortes divergências entres os órgãos públicos a respeito do tratamento de questões sensíveis relacionadas aos convênios. Essa situação agrava-se ainda mais no caso das entidades privadas sem fins lucrativos, já que os normativos existentes – art. 116 da Lei 8.666/93, Decreto nº 6.170/07 e Portaria Interministerial MPOG/CGU/MF nº 507/2011 – ainda não regulam de maneira adequada as peculiaridades desta relação.(…) 5. Como se verá em detalhes nesta Nota Técnica existem entraves para a execução das parcerias com as entidades privadas sem fins lucrativos, em razão principalmente da (i) instabilidade legislativa, já que grande parte das normas aplicáveis é infralegal e tem sido alterada de maneira bastante recorrente e da (ii) existência de lacunas jurídicas falta de clareza nas regras que têm dado margem à aplicação de analogias impróprias, criando situações de risco não apenas para as entidades, mas também para os gestores públicos.[vii]” Em sucinta análise, concluímos que o Marco Regulatório pretende: a) estabelecer o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público; b) definir diretrizes para a política de fomento e colaboração; c) instituir o termo de colaboração e o termo de fomento; d) limitar a figura dos convênios às relações entre entes federados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal e suas entidades indiretas); e) tonar obrigatório o prévio Chamamento Público para escolha da entidade parceira; f) exigir experiência, capacidade técnica, operacional da entidade que postula a parceria; g) dispensar a contrapartida financeira como requisito para celebração de parceria; h) maior transparência com a determinação de publicação anual dos valores orçamentários destinados às parcerias entre estado e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, i) criação de comissões de monitoramento e avaliação; j) regras mais simplificadas de prestação de contas; Portanto, seu mérito é estabelecer mecanismos e instrumentos mais transparentes e democráticos na relação público/privado. Para melhor visualização das alterações referidas, passaremos a expor os novos instrumentais à transferência voluntárias– fomento e colaboração – que substituirá o então vigente convênio, que permanece somente entre as transferências governamentais. 3.1.1 do fomento e da colaboração A Constituição de 1988, em vários dispositivos, prevê o dever do Estado de fomentar atividades desenvolvidas por particulares. Tais dispositivos estabelecem que a atividade administrativa de fomento esta relacionada à atuação complementar do particular, que age na consecução indireta de interesses públicos, com intuito não lucrativo, sob o regime do direito privado parcialmente derrogado por normas de direto público. Em relação à lei infraconstitucional a atividade de fomento já era prevista nas leis 91/35 e 4.320/64. Esta traz regras sobre direito financeiro, prevê concessão de auxílios, contribuições e subvenções às entidades privadas sem fins lucrativos, já a lei de 19/35 estabelece requisitos para que determinada entidade seja declarada de Utilidade Pública Federal. Na lei 13.019/2014 os instrumentais estão definidos nos artigo 2º, inciso VII e VIII, e artigos 16 e 17[viii]: A colaboração e o fomento se diferenciam somente pela iniciativa: no primeiro o ente público analisa a necessidade do serviço, abre chamamento público para selecionar os melhores projetos, já no segundo a iniciativa é da própria sociedade que traz a ideia ao ente público, que avaliará o interesse e sendo a proposta considerada relevante, abrir-se-á chamamento público para a seleção das parcerias. Ressalta-e que essa nova ótica utilizar-se-á de critérios objetivos e equiparação de oportunidades às entidades. Nesse sentido o Boletim Técnico nº 78 – 2014 –da Delegação de Prefeituras Municipais: “São os instrumentos jurídicos que formalizam as parcerias voluntárias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil, para a consecução de finalidades de interesse público e em regime de mútua cooperação. Ambos são precedidos de chamamento público para a seleção da OSC. A diferença fundamental entre ambos, conforme art. 2º, incisos VII e VIII, é que o Termo de Colaboração deverá ser utilizado nas parcerias propostas pela Administração Pública, enquanto o Termo de Fomento será cabível quando a parceria for proposta pelas próprias OSC.” Aline Magalhães Soares em analise ressalta: “Ao instituir o Termo de Colaboração para a execução de políticas públicas e o Termo de Fomento para apoio a iniciativas das organizações – instrumentos próprios e adequados para as relações de parceria entre o Estado e as OSCs, em substituição aos convênios – a lei reconhece de forma inovadora essas duas dimensões legítimas de relacionamento entre as organizações e o poder público.” Conclui-se, portanto, que Fomento e Colaboração são instrumentos passíveis de ser celebrado entre a Administração Pública e as entidades privadas sem fins lucrativos para realização de projeto ou atividade de interesse público ou de relevância social de iniciativa da própria entidade privada, ou que contribua para o alcance de objetivos e metas governamentais, sejam de natureza continuada ou não, e ocorra em caráter complementar à atuação do poder público. Sendo obrigatória para a formalização, de ambos, a seleção através de Chamamento Público. 3.1.3 do Chamamento Público As parcerias entre o poder público e as entidades sem fins lucrativos através do fomento e da colaboração serão efetivados por meio de um procedimento denominado chamamento público. A lei 13.019/14 conceitua o chamamento público como: “procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos;” A nova lei veio reafirmar e tonar obrigatória à necessidade do chamamento público, todavia, o instituto não é novo, haja vista previsão anterior em legislações esparsas. O chamamento público foi introduzido no ordenamento jurídico por meio do Decreto 7.568/11, que alterou o Decreto 6.170/07, e também, previsto na Portaria Interministerial n.º 507 que regulamenta os convênios, os contratos de repasse e os termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, que envolvam transferência de recursos financeiros oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. Depreende-se das normas, aplicáveis aos convênios e contratos de repasse, a obrigatoriedade de realização de chamamento público à formação de parceria para execução descentralizada de atividades com entidades privadas sem fins lucrativos, na medida em que o Decreto nº 6.170, de 2007 prevê que “a celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos será precedida de chamamento público” e a Portaria Interministerial nº 507, de 2011, dispõe que “a formação de parceria para execução descentralizada de atividades, por meio de convênio ou termo de parceria, com entidades privadas sem fins lucrativos deverá ser precedida de chamamento público ou concurso de projetos”. As normas referidas trazem critérios e aspectos a serem observados na análise das propostas, além das informações que o edital deve conter, bem como a sua publicidade. Contudo, apesar da legislação vigente, a matéria sempre causou polêmica, não havendo uma conclusão definitiva quanto à obrigatoriedade ou não do procedimento para celebração das parcerias, sendo que a regra nem sempre é observada, principalmente no âmbito Municipal, desse modo, o surgimento da Lei 13.019/2014, com vigência em âmbito Nacional, surge como um divisor de águas nas relações público – privadas, uma vez que torna, em regra, o chamamento público obrigatório para todos os entes federados, além disso, a nova legislação alterou a Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992[ix], constituindo crime a não obediência as regras dispostas na Lei 13.019/14. Através da nova legislação o chamamento público deixa de ser discricionário para o gestor, a seleção ganha importância e deverá ser precedida da fase de planejamento, privilegiando a transparência e a isonomia na contratação.[x] Conclui-se que a legislação em comento inaugura um capítulo promissor na democracia brasileira, tão comprometida, pelos escândalos de corrupção, resta saber agora se a lei, realmente, será aplicada. Conclusão  O que se coloca em pauta é se a Lei 13.019/14 será aplicada às parcerias realizadas com entidades privadas sem fins lucrativos, na hipótese de recursos com indicação em lei orçamentária, proveniente de emenda parlamentar. O questionamento se relaciona à necessidade de realização de chamamento público previamente à celebração das referidas parcerias. O art. 3º, inciso II, da referida lei, aduz que não se aplicam as exigências da lei: “às transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário;” Entendemos que a celebração da parceria, nos moldes anunciados, depende da realização do chamamento público, porque a hipótese de indicação nominal da entidade privada na lei orçamentária não figura como hipótese do artigo 3º, bem como não caracteriza como exceção de dispensa prevista no art. 30 da lei 13019/14[xi], além disso, consideramos que a indicação nominal fere o princípio da impessoalidade na administração pública, haja vista, que o parlamentar em tese, deve estar preocupado com o interesse público, e não com qual entidade deverá receber o recurso. Desse modo, vislumbra-se que a parceria não poderá ser pactuada diretamente com a entidade privada beneficiada por emenda parlamentar, conforme ocorre, em virtude da necessidade de realização do Chamamento Público previsto na Lei 13.019/14. Contudo, na legislação vigente, uma vez que a Lei 13.019/14 só entrará em vigor em julho de 2015, não existe posicionamento pacificado, havendo total discricionariedade nas parcerias decorrentes de emendas parlamentares, sendo as escolhas feitas mediante critérios de natureza pessoal. Assim, as críticas ao sistema são corriqueiras, haja vista que, muitas vezes, ocorre desvio de finalidade pública, afrontando-se o princípio da moralidade administrativa. Em alguns municípios, há direcionamento das emendas propostas pelos vereadores na Lei Orçamentária Anual, muitas vezes o recurso é destinado a instituições que carecem de profissionalismo e os projetos não atendem a real demanda do Município. Assim na prática, tem-se uma negociação entre a entidade privada e o vereador de sua preferência, que lhe destinará verbas públicas. Os recursos são destinados aos fundos inseridos aos Conselhos Municipais afetos a diversas áreas, tais como: Assistência Social, Criança e Adolescente, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência. O papel dos conselheiros é analisar a documentação e o projeto da entidade e caso aprovado, a administração pública dá prosseguimento à formalização do convênio. Na prática, admitem-se verbas casadas ou vinculadas, através da indicação pelo vereador dos projetos/entidades a serem beneficiadas com os recursos por eles destinados, geralmente como condição ou fator determinante da destinação. Entretanto, tal direcionamento, apesar de concebidas e admitidas, significam usurpação indevida da função deliberativa dos Conselhos de Direitos, uma vez que, por antecipação, permitem ao vereador indicar qual entidade ou projeto será contemplado com recurso proveniente da emenda. Consideramos que a prática, subverte o papel dos Conselhos de Direitos, que, abrem mão da autonomia e poder de decisão, prerrogativas indisponíveis dos conselheiros[xii], em favor da vontade pessoal do parlamentar, que nem sempre são as mais justas ou legítimas. Evidente, portanto, que o direcionamento de verbas públicas afronta aos princípios da administração pública, sobretudo as normas de direito financeiro e orçamentário aplicáveis aos entes federados. Infere-se da nova sistemática trazida pela Lei 13.019/14 a pretensão de se estabelecer, através de diagnóstico da sociedade que representam, quais áreas de atendimento devem ser priorizadas, bem como um sistema equânime para habilitação das entidades parceiras , com regras objetivas de seleção vinculada a um diagnostico objetivo da realidade territorial e não mais através de escolha de cunho pessoal. A nova legislação visa ampliar a isonomia, legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade na escolha das entidades parceiras, concluindo-se que, com a aplicação nas parceiras público – privada o problema do direcionamento será minimizado e consequentemente a possibilidade de corrupção. Desse modo a aplicação dos recursos proveniente de emendas parlamentares, assim, como em toda política pública, deverá obedecer aos princípios formais da administração pública e nortear-se pela finalidade precípua da Administração, que é o atendimento do interesse público. O Brasil enfrenta dificuldades de fiscalização e grande quantidade de escândalos sobre malversação dos recursos advindos de emendas nas últimas décadas. Pires (2005), em que pese o presente artigo não estabelecer relação causal entre emendas e a corrupção, considera-se necessário à ampliação da transparência e do controle sobre as aprovações e execuções de emendas parlamentares em todos os entes federados, sob pena de corroborar com a corrupção no país e perpetuar o direcionamento verbas públicas.
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Legalidade e legitimidade no Direito Administrativo: uma revisita
Artigo que se propõe a analisar os conceitos de legalidade e legitimidade, identificando a legalidade enquanto valor e também como princípio. Destaca a dificuldade da doutrina, verificada durante certo período, em distinguir entre a legalidade e a legitimidade, expondo ainda a falta de atualização do princípio da legalidade ao longo da História. Atesta que, com a “fossilização” do princípio, esse perde sua força normativa a cada situação concreta onde se impõe seu afastamento, o que se observa atualmente de forma reiterada. Argumenta que tal fossilização traz riscos à própria classificação da norma como princípio jurídico. Traz exemplos de casos vivenciados no campo do Direito Administrativo em que o princípio foi mitigado. Propõe uma revisão do conceito do princípio da legalidade, fazendo-o atender às exigências modernas da Ciência do Direito, sobretudo com a superação da ideia de divisão estanque entre o Direito e a Moral.
Direito Administrativo
Introdução Não é incomum nos depararmos, na experiência diária do direito, com equívocos envolvendo a legalidade e a legitimidade. Entendida como norma positivada, é indiscutível que a legalidade encontra maior representatividade que a legitimidade, sendo o art. 37, caput, da Constituição Federal, por vezes citado como um “mantra” em peças jurídicas. Nesse dispositivo constitucional, é enunciado o princípio da legalidade, mas o princípio (norma jurídica, segundo a doutrina prevalecente[1]) não pode ser confundido com o valor que lhe é subjacente – e é justamente o valor da legalidade (ou seja, aquilo que se reputa legal) que, por vezes, conflita com o valor da legitimidade (isto é, o legítimo). Encontramos na doutrina clássica evidências de que tal diferenciação não era, e talvez ainda não seja, totalmente assimilada. Vejamos abaixo conceituação dada por De Plácido e Silva aos vocábulos legal e legítimo: “LEGAL. Derivado do latim legalis, de lex (lei), entende-se, a rigor, o que se faz em conformidade à lei, segundo preceito ou regra instituída em lei. Mas, em sentido amplo, legal não exprime somente o que é autorizado ou introduzido pela lei. Também se entende legal tudo o que se possa fazer ou tudo o que é autorizado ou está conforme ao uso e ao costume, ou está assentado pela jurisprudência. Tem, por isso, o mesmo sentido de legítimo e de lícito. Legal, pois, em ampla acepção é tudo o que não contravem a princípio de Direito, seja instituído pela lei, pelo costume ou pela jurisprudência.(…) LEGÍTIMO. Derivado do latim legitimus, de lex, exprime o vocábulo, de modo geral, tudo o que está conforme às leis ou que se apresenta cumprindo as determinações legais. Nesta razão, possui a mesma significação de legal. E, decorrentemente, de válido, puro, perfeito, regular. Onde quer que se apresente, portanto, o adjetivo legítimo está determinando o ato, a causa, o direito, como apoiado na regra ou revestido das exigências legais, pelo que valerá como de direito, erga omnes. É o que procede legalmente, que é lícito, é permitido, é autorizado, o que, aliás, redunda sempre na exata expressão: é legal, porque procede da lei, está permitido ou autorizado em lei, é amparado ou apoiado em lei.(…)”[2] O jurista, falecido em 1963, reconhece a origem comum de ambos os termos, mas, a nosso ver, peca por deixar de atualizar seus significados para o mundo jurídico atual, separado por séculos da lex romana. Apontar, pois, as diferenças e os pontos de convergência de tais valores é essencial para melhor compreensão do princípio da legalidade, evitando assim distorções e até mesmo injustiças na aplicação do direito ao caso concreto. Assim, em primeiro lugar, devemos assentar que a discussão a ser tratada neste artigo possui fundo axiológico e também dogmático: legalidade e legitimidade se implicam mutuamente, mas não possuem, ao menos enquanto valor, sentido unívoco. Em segundo lugar, não podemos deixar de reconhecer que este espaço não é suficiente para tratar de ambos os conceitos em toda a sua extensão e atenção merecida. O que será tratado aqui restringir-se-á ao que toca o Direito Público e, sobretudo, o Direito Administrativo. 1. Identificação do problema A afirmação que traremos agora já deve ser por muitos admitida e reconhecida, embora ainda pouco confessada: nem a lei e nem mesmo os regulamentos abarcam a generalidade das ocorrências vivenciadas no trato da coisa pública, no cotidiano da Administração. Em diversas situações, como na resolução de grave problema na execução de contrato administrativo, ou na busca de certeza frente a um impasse envolvendo a cessão de um servidor, o gestor público se vê sem qualquer disposição normativa que o ampare, sem jurisprudência que aprecie a questão e até sem apoio doutrinário que o guie para determinada direção. Vejamos um outro exemplo. Em relação às licitações e aos contratos administrativos, não se pode dizer que os cientistas do direito não se debruçam sobre: há substanciosa doutrina sobre o tema, e são recorrentes as decisões de tribunais – judiciais e de contas – a respeito. Há ressalvas, porém, no tocante ao exame, a nosso sentir negligenciada, dos contratos da Administração Pública com conteúdo de direito privado, como a locação pelo ente público de imóvel particular e o seguro não obrigatório de veículos oficiais. Não se trata, aqui, de tão-somente delegar o estudo aos especialistas do Direito Civil, pois há aspectos muitos de maior interesse do Direito Administrativo, mas que hoje se encontram num “limbo jurídico” – e os contratos acima mencionados são apenas um dentre vários desafios legais enfrentados pelo gestor público. Dentre os positivistas, é notável a dificuldade de aceitação de lacunas, ou seja, de situações a priori não antevistas pelo legislador, espaços normativos não normatizados. Como se vê nas ideias originais de Hans Kelsen, considerava-se lacuna a diferença entre o direito positivo e o direito desejado – isto é, a lacuna dependeria mais da posição jurídica da parte contendora (um “novo” meramente fenomenológico, restrito ao campo da consciência) que de uma atualização do contexto jurídico-social. Outra explicação para as supostas lacunas, segundo Kelsen, seria o fato de as normas, por terem até certo ponto conteúdo indeterminado, darem ensejo a dúvidas interpretativas[3]. Possivelmente à luz de tais argumentos é que se concebeu o princípio da legalidade como o postulado-mor do Direito Administrativo: o agente público nada pode fazer além do que a lei obriga ou expressamente permite. Eventuais discordâncias do administrado acerca do conteúdo normativo são solenemente abatidas sob o argumento de que “não possuem previsão legal” ou de que estão “além da autorização dada ao administrador público”, quando nem sempre a solução a ser dada possui esse grau de singeleza. 2. Investigação do conceito de legalidade É aqui que se sobreleva o exame da legalidade enquanto valor. Ora, uma das principais características dos valores é o fato de eles possuírem polaridade, ou seja, para cada valor há o seu contrário[4]. Assim, para se considerar algo “belo” o sujeito cognoscente deve possuir certa definição prévia do que é “feio”; de igual forma, para se reputar determinado ato como “legal” há de se ter por certo o que significa seu oposto. O que seria, pois, o oposto do objeto “legal”, isto é, do que está de acordo com a lei? E aquilo que não é legítimo, do que pode ser chamado? Norberto Bobbio, ainda que tratando do tema sob as lentes da Ciência Política, nos dá uma significativa contribuição: "Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade, costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário"[5]. Óbvio que o Direito Administrativo não se compadece com a arbitrariedade, mas a legalidade em seu estreito significado não é suficiente para afastar ou confirmar no mundo jurídico atos que pretendem ser válidos. Em outras palavras, o argumento da inexistência de base legal é, em determinadas situações, demasiadamente raso para indeferir pretensão do sujeito interessado – por exemplo, um pedido de remoção de servidor. Assim, deve se entender que o princípio da legalidade, tal como majoritariamente concebido pela doutrina, não é e jamais poderá ser um fim em si mesmo: enquanto que o ato legal porém ilegítimo é costumeiramente revisado pelos órgãos de controle (por inconstitucionalidade, no mais das vezes), o ato “alegal” (isto é, além da previsão legal, nem regulado nem proibido) e legítimo, a priori, deve ser devidamente considerado no âmbito do Direito Administrativo, sob pena de incorrer em violação a outros princípios incidentes. Em suma: defendemos uma revisão do conteúdo do princípio da legalidade, de maneira que seu entendimento e, especialmente, sua aplicação, não se perca por contingências históricas. O respeito estrito e, talvez, descontextualizado do princípio da legalidade, sem observância de outros aspectos valorativos da norma – sobretudo sua legitimidade –, pode levar a uma situação de paralisia da Administração, que observa em seu cotidiano situações das mais diversas, muitas vezes não reguladas, e que não podem ser simplesmente desprezadas. Com efeito, não se trata aqui de simples questão de justiça ou injustiça; aliás, o valor da justiça é por demais nobre e elevado para ser mencionado em vão: sua discussão não pode se resumir a alguns poucos parágrafos. Reiteramos, pois: atos administrativos não podem ser rechaçados apenas com o argumento da falta de substrato legal. O direito pós-moderno não se compadece com tal singeleza. Investigar a legalidade de um ato sem levar em conta a legitimidade do mesmo é fazer tábula rasa das conquistas da filosofia para a ciência jurídica nas últimas décadas. 3. Fundamentos para revisão do conceito Como, porém, admitir no Direito atos administrativos sem suporte estrito na lei e não cair no “poço” da arbitrariedade? Uma das respostas possíveis, conciliando o princípio da legalidade com a ideia de legitimidade, é unir aquele ditame ao conteúdo normativo da moralidade administrativa, mais um relevante princípio exposto no art. 37 da Constituição. Segundo Alexandre de Moraes, “Pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício da função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da administração pública”[6]. Ora, o princípio da moralidade está dentre os que conferem algum traço normativo à legitimidade, ainda mais porque alçado aquele ao patamar constitucional. A moralidade exige da Administração Pública e seus agentes um comportamento ético elevado e inafastável, não apenas servindo para censurar o que se encontra meramente conforme à legislação, mas também, ao nosso sentir, tolerando aquilo que, embora pareça marginal à lei, corresponde às expectativas da sociedade quanto à atividade desempenhada pelo Estado. É que a moralidade, ainda que tenha implicação mútua com a legalidade, não é e não pode ser contingenciada por essa última, pois, além de possuir maior abertura hermenêutica, encontra-se numa escala axiológica superior – elementar, diante da raiz mesma do princípio –, cuja observância é determinada num bem maior número de situações. Essas particularidades autorizam o raciocínio de que, em situações-limite, em que específicos atos devem ser analisados segundo uma tábua de valores vigente, o princípio da moralidade poderá fazer valer seu maior peso chancelando dado comportamento da Administração, mesmo sem existir regra específica dispondo acerca. Outra forma de compreender a legalidade nesta era pós-positivista, talvez a mais coerente com o nosso ordenamento, encontramos no art. 2º da Lei 9.784/1999, in verbis: “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I – atuação conforme a lei e o Direito;(…) IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;(…)” As disposições acima dispensam grandes explanações. São elas que efetivamente atualizam o princípio da legalidade, fazendo com que esse, como defendido acima, não se prenda a um campo hermético, mas antes possa ser melhor compreendido dentro de uma visão aberta, teleológica até certo ponto, do processo administrativo, que é habitual morada dos atos que ora analisamos. Observe-se com atenção o disposto no inciso I transcrito supra. Ali encontramos uma razoável definição, ainda que genérica, do que se pode ter por legítimo. A conformidade com a lei e o Direito se compatibiliza com a ideia do entrelaçamento da Política e do Direito com a Moral, que é a base do conceito de legitimidade segundo Jürgen Habermas. São palavras dele: “(…) A legitimidade descansa então ‘na fé na legalidade das ordens estatuídas e do poder de mando daqueles a quem essas ordens facultam o exercício do poder’. Mas se a legalidade não significa outra coisa senão concordância com uma ordem jurídica faticamente vigente, e se esta, como direito estatuído que é, não resulta acessível a uma justificação de tipo prático-moral, então não fica claro de onde extrai a fé na legalidade sua força legitimadora. A fé na legalidade só pode criar legitimidade se já se supõe a legitimidade da ordem jurídica que determina o que é legal. Não há maneira de romper esse círculo”[7]. Nesse sentido, a atuação “conforme a lei” não pode assumir a ideia de que apenas o ato admitido em lei será tido por jurídico. A lei deve ser tratada, sim, como instância primeira para busca do fundamento e validade do ato administrativo, mas não se pode negar que o Direito, como ordem autônoma no espectro científico, constitui instância maior e mais completa que a lei para a tarefa, já que a lei lhe é subordinada. Entendemos dessa feita que, atentando para o atual momento de compreensão do Direito, é incompleta a noção de que o ato administrativo “sem base legal” deve se situar fora da ordem jurídica, pois que a lei não é a ultima ratio para verificação da validade de um ato, como já afirmado supra. Em situações-limite, não exatamente tratadas pela lei, a Administração poderá encontrar no Direito – isto é, nos princípios gerais que orientam o sistema – o fundamento para validação do ato a ser editado, de maneira que esse seja considerado legítimo – observando o critério do art. 2º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/1999, sem prejuízo dos demais parâmetros ali dispostos. 4. Síntese prática Na presente seção trataremos de situações com as quais o gestor público se deparou e, por não achar amparo na lei, deixou de praticar o ato que lhe cabia, segundo uma argumentação jurídica razoável e ponderada. Em breve consulta ao repositório de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encontramos casos emblemáticos, que evidenciam a preocupação daquela corte com as decisões administrativas fundadas exclusivamente na legalidade. Um desses casos foi analisado por meio do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (RMS) nº 34.630/AC. Ali pleiteou uma servidora pública do Município de Rio Branco/AC a concessão de licença para acompanhar cônjuge, professor da Universidade Federal do Acre e que se encontrava em capacitação no exterior. Contudo, a pretensão da licença não encontrava amparo no Regime Jurídico dos Servidores do Município de Rio Branco, e por isso seu pedido foi denegado tanto administrativamente como em primeira instância. Por sua vez, o STJ, ao prover o recurso da servidora, assim decidiu: “ADMINISTRATIVO. SERVIDOR MUNICIPAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCESSÃO DE LICENÇA. ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE. SEM ÔNUS. SILÊNCIO NA LEI MUNICIPAL. ANALOGIA COM O REGIME JURÍDICO ÚNICO OU DIPLOMA ESTADUAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. QUESTÕES SIMILARES. ANÁLISE DE CADA CASO. PARCIMÔNIA. CASO CONCRETO. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1. Cuida-se de recurso ordinário interposto por servidora pública municipal que postulava o direito à concessão de licença para acompanhamento de seu cônjuge, sem ônus, com base na proteção à família (art. 266, da Constituição Federal) e na analogia com o diploma estadual (Lei Complementar Estadual n. 39/93) e o regime jurídico único federal (Lei n. 8.112/90), ante o silêncio do Estatuto dos Servidores do Município (Lei Municipal n. 1.794 de 30 de setembro de 2009). 2.  A jurisprudência do STJ firmou a possibilidade de interpretação analógica em relação à matéria de servidores públicos, quando inexistir previsão específica no diploma normativo do Estado ou do município. Precedentes: RMS 30.511/PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe 22.11.2010; e RMS 15.328/RN, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 2.3.2009. 3. O raciocínio analógico para suprir a existência de lacunas já foi aplicado nesta Corte Superior de Justiça, inclusive para o caso de licenças aos servidores estaduais: RMS 22.880/RJ, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 19.5.2008. 4. Relevante anotar a ressalva de que, "consoante o princípio insculpido no art. 226 da Constituição Federal, o Estado tem interesse na preservação da família, base sobre a qual se assenta a sociedade; no entanto, aludido princípio não pode ser aplicado de forma indiscriminada, merecendo cada caso concreto uma análise acurada de suas particularidades" (AgRg no REsp 1.201.626/RN, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe 14.2.2011). 5. No caso concreto, o reconhecimento do direito líquido e certo à concessão da licença pretendida justifica-se em razão da analogia derivada do silêncio da lei municipal, e da ausência de custos ao erário municipal, porquanto a sua outorga não terá ônus pecuniários ao ente público. Recurso ordinário provido”[8]. Na situação ora apresentada, o simples uso da analogia foi suficiente para garantir à servidora a licença pleiteada. Mas há situações em que nenhuma lei vem em socorro, de modo que o recurso aos costumes e, especialmente, aos princípios de direito se faz indispensável, isso sem se afastar de uma adequada ponderação dos valores aplicáveis ao caso concreto. Nesse ínterim, duas questões devem ser analisadas. Uma é o fato de que, segundo o pensamento recorrente, o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/1942) é dirigido tão somente ao juiz enquanto tal, não abrangendo o gestor público, o que se extrai da literalidade mesma do dispositivo. Diante desse raciocínio, vê-se que a Administração Pública, quando confrontada por situações como a retratada pelo julgado acima, fica absolutamente sem alternativas, a não ser indeferir o requerimento administrativo, até que sobreviesse modificação legislativa ou mesmo norma regulamentar, nos limites da autorização legal, disciplinando o tema. Parece-nos evidente que, em determinadas situações, o direito não pode simplesmente aguardar pela nova lei ou novo regulamento, sobretudo porque a justiça que tarda é antes uma “rematada injustiça”, pensamento célebre e sempre atual de Ruy Barbosa de Oliveira. Assim, se não se compreende o princípio da legalidade de maneira a enquadrá-lo em nossa vivência moderna, ocorrerão cada vez mais situações de clarividente afastamento dessa norma em prol da consagração de direitos não estritamente positivados, como foi o caso da licença para acompanhamento do cônjuge de servidora do Município de Rio Branco. A segunda questão a ser debatida é a possibilidade de o princípio da legalidade, em vez de ter seu conteúdo atualizado, ser sopesado, diante do caso concreto, com os outros princípios aí aplicáveis. É que, a valer a aplicação rigorosa da legalidade ou o seu afastamento, o princípio em questão se converte numa regra jurídica, cuja aplicação, como destaca Ronald Dworkin, se dá do modo “tudo ou nada”[9]. Sendo os princípios, a priori, sujeitos à ponderação entre eles mesmos, o que haveria, na eventualidade de uma lacuna legal impeditiva de edição de ato administrativo, seria uma diminuição do peso da legalidade e uma maior consideração de outro ou outros princípios, que por fim orientariam em favor da ação administrativa. Nessa senda, afirmar que o princípio da legalidade é aplicável segundo uma dimensão de peso, como os demais princípios jurídicos, significa aceitar que seu conteúdo é aberto, ou seja, que a legalidade enquanto norma está naturalmente sujeita a uma ponderação, embora se trate de uma ordem dirigida à Administração Pública – o valor da legalidade, subjacente à norma, dá vazão a uma ordem insofismável. A ponderação de uma ordem, em si mesma, não nos parece contraditória; nada obstante, o conceito mais comum do princípio da legalidade nos parece refratário à ponderação, pois que inadmite a atuação desconforme à lei. Assim, essa legalidade, na forma como hoje aceita, mais se aproximaria da regra que do princípio jurídico, o que colocaria em xeque sua importância no rol exposto no caput do art. 37 da Constituição. Uma outra situação prática ajudará na compreensão da questão. Conforme previsto no art. 93 da Lei 8.112/1990, o servidor só pode ser cedido para outro órgão ou entidade para exercício de cargo em comissão ou função de confiança (inciso I) ou em caso previsto em lei específica (inciso II). Esse dispositivo é, de mais a mais, replicado em boa parte dos regimes jurídicos de servidores dos Estados e Municípios. Agora pensemos na seguinte hipótese: uma servidora do Estado X, cujo marido restou aprovado em concurso para cargo na administração do Estado Y, embora possa optar pela licença não remunerada para acompanhar cônjuge, é convidada para exercer funções idênticas ao cargo que ocupava, agora porém no órgão equivalente do Estado para onde se deslocou seu marido. A priori, a cessão é incabível, pois não se trata de cargo em comissão ou função de confiança, nem há lei especial dispondo acerca. Contudo, seria desarrazoada a compreensão de que é possível ser colocada a servidora à disposição do órgão do Estado Y? Note-se que inexiste violação à regra do concurso público, pois os cargos são equivalentes, só se distinguindo o ente federativo – e, por conseguinte, o regime jurídico. O exemplo dado, antes de ser hipotético, já foi concretizado por órgão público em ao menos uma oportunidade, não sendo o caso de agora rememorá-lo, mesmo porque bem mais comum é a celebração de convênios entre órgãos municipais e estaduais para cessão de servidores[10], cessões essas que não se enquadram em qualquer das hipóteses legais antes apresentadas: as funções exercidas no órgão cessionário são próprias de cargo efetivo e, evidentemente, um termo de convênio não se equipara a “lei específica”. Entes há, como o Estado do Rio Grande do Norte, que já promoveram alteração em sua legislação de forma a autorizar a cessão de seus servidores nos termos acima delineados (vide art. 106 da Lei Complementar Estadual nº 122/1994, com a redação dada pela Lei Complementar Estadual nº 454/2011). Não é objeto deste trabalho apontar o acerto ou desacerto de possíveis atos praticados por gestores públicos. A intenção é, sobretudo, suscitar o debate acerca do que pode ser considerado “conforme a lei e o Direito”. Vejamos um derradeiro exemplo para elucidarmos nossa posição. É conhecido no âmbito dos concursos públicos o pedido de “final de fila”, que nada mais é senão uma reclassificação do candidato, a seu requerimento, para o fim da lista de aprovados. Esse pedido atende, por óbvio, a uma necessidade ou desejo do particular, mas ordinariamente é também de interesse da administração, pois agiliza o trâmite para nomeação e posse dos candidatos aprovados, evitando a prática de atos relacionados a candidato que, naquele momento, não tem interesse em ocupar o cargo. Alguns regimes jurídicos atualmente já preveem o pedido de final de fila, como é o caso da Lei Complementar Distrital nº 840/2011 (art. 13, § 2º). Contudo, o mesmo Distrito Federal, por seu Tribunal de Justiça, já admitiu a reclassificação de candidato antes da vigência da citada lei, como se vê pela ementa a seguir: “DIREITO ADMINISTRATIVO. REEXAME NECESSÁRIO. CONCURSO PÚBLICO. RECLASSIFICAÇÃO. FINAL DA FILA. SEM PREVISÃO EDITALÍCIA. ANTERIOR À ENTRADA EM VIGOR DA LEI COMPLEMENTAR 840/2011. POSSIBILIDADE. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS. ISONOMIA. 1. À luz do princípio da igualdade, a pretensão de reclassificação do candidato aprovado é juridicamente possível, uma vez que não fere qualquer direito dos demais aprovados no certame, não colide com qualquer interesse público, tampouco causa prejuízo ao erário. 2. Mitiga-se o princípio da legalidade quando se acolhe o pedido de final de fila não previsto no edital, pois a regra decorre da aplicação do princípio da igualdade. 3. Remessa Oficial conhecida, mas desprovida”[11]. No julgado, a mitigação do princípio da legalidade é expressa. Ocorre que, como já afirmado alhures, são tão recorrentes as situações de afastamento desse princípio que, ao que nos parece, está ele na contramão da atual realidade jurídica, ainda mais se admitirmos por correto o raciocínio de que os princípios constituem “mandamentos de otimização”, segundo lição do eminente jusfilósofo alemão Robert Alexy. Ora, se os princípios, como mandamentos de otimização, podem ser satisfeitos em graus variados e a “medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”[12], nos parece melhor, para a própria sobrevivência do princípio da legalidade, que esse tenha sua noção reformulada, superando-se os estreitos limites impostos pelo positivismo kelseniano e agregando, ao valor que lhe é ínsito, elementos presentes na conceituação da legitimidade. Ressalte-se, uma vez mais, que nem de longe o presente artigo pretende esgotar o tema proposto. Contudo, parece-nos claro que o princípio da legalidade, para que não se torne “letra morta” em nossa Lei Maior, merece ganhar nova compreensão, e entendemos que um caminho viável para tal reforma é entender aquela norma como aglutinadora dos valores da legalidade e legitimidade, sem afetar-lhe a identidade ou estrutura lógica e proporcionando, de fato, um juízo de ponderação com outros princípios diante do caso concreto. Considerações finais Concluímos, pois, em linhas gerais, por uma evolução na História da dualidade entre legalidade e legitimidade enquanto valores, com efeitos na compreensão da legalidade enquanto princípio: num primeiro momento verifica-se um esforço para responder à indagação acerca da validade da relação entre governantes e governados, daí surgindo o conceito de legitimidade; Após, a Teoria Pura do Direito, distanciando entre si o Direito e a Moral, trouxe a compreensão de que o legal e o legítimo seriam, se não siameses, extremamente semelhantes, sendo o conceito de legitimidade aproximado do de legalidade. O pós-positivismo, embora tenha ensaiado uma nova revisão da legitimidade, não tratou de atualizar também o princípio da legalidade, com o qual o Direito Público muito se apega, mas, com constância, sofrem unidos, ao se afastarem da realidade empírica. O que se propõe aqui, ainda que de forma pendente de aperfeiçoamento, é um princípio da legalidade revisitado, consentâneo com um sistema jurídico que não mais se contém num “corpo fechado” de atos normativos, ainda que esteja em jogo a validade de atos emanados do Estado-Administração para realização de seu mister. Assim, à medida em que Direito e Moral tornam-se mais e mais inseparáveis um do outro, legitimidade e moralidade também se unem na formação e consecução das atividades da Administração Pública, aproximando o princípio da legalidade do conceito moderno daquilo que é tido por legítimo, ou seja, correto sob o ponto de vista da lei e do Direito.
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O alvorecer do art. 67 da Lei nº. 8.666/93 na Administração Pública Federal
Este trabalho analisa a implantação da figura prevista no art. 67 da Lei nº. 8.666/93 na Administração pública federal, que será examinada sobre duas perspectivas: a primeira se liga a regulamentação do acompanhamento e da fiscalização dos contratos administrativos pelos órgãos federais, e a segunda pauta-se pelo tratamento dado pelas decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) acerca da fiscalização dos contratos administrativos. O desenho de pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa, combinando análise documental e análise bibliográfica. As informações foram coletadas nos sítios eletrônicos de órgãos federais. Os resultados indicam que: (1) a figura analisada foi regulamentada de forma diversificada pelos órgãos da administração e (2) no período próximo a 2007 se consolidou a responsabilização, por parte do TCU, dos agentes fiscalizadores dos contratos administrativos federais.
Direito Administrativo
Introdução Parte considerável das despesas públicas é realizada através dos contratos administrativos, conforme previsto na Lei de Licitações (Lei nº. 8.666/93), que, por sua vez, devido a exigências legais, principiológicas e sociais devem ser fiscalizados pela Administração pública. Resta, portanto, evidente a ligação existente entre a eficácia e eficiência de um contrato e o acompanhamento de sua execução. Conforme entendimento de Granziera (2002, p. 16) o processo de contratação da Administração pública possui três fases essenciais, a saber: a primeira delas se relaciona com a decisão de contratar, bem como com a perfeita caracterização do objeto que deverá estar em consonância com a necessidade detectada; a segunda concerne ao processo de licitação, se estendendo desde a elaboração do edital, confecção da minuta do contrato, até o encerramento do certame; e a terceira, se perfaz na execução do objeto licitado, ocorrendo, nesse momento, o acompanhamento e fiscalização propriamente dita do contrato. Ante ao exposto, o objeto principal desta pesquisa se perfaz em analisar a implantação e o amadurecimento da previsão contida no art. 67 da Lei nº. 8.666/93 na Administração pública federal. Este estudo se pautará por dois vetores, quais sejam: a primeira refere-se à normatização da fiscalização e do acompanhamento dos contratos administrativos pelos órgãos federais; e a segunda pauta-se pelo tratamento dado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) às instituições públicas federais nas decisões relativas à fiscalização dos contratos administrativos. Ademais, a presente pesquisa descritiva utiliza metodologia qualitativa, combinando análise documental e análise bibliográfica. Os dados primários serão coletados no site do TCU, já as informações acerca dos regulamentos existentes sobre a fiscalização de contrato foram coletadas nos sítios eletrônicos dos diversos órgãos federais existentes. Ressalta-se que, para a avaliação dos dois aspectos mencionados anteriormente, será dado especial enfoque para o período compreendido entre 1997 e 2008, visto que, a ferramenta de busca das decisões sobre fiscalização de contrato administrativos do TCU apontam decisões a partir de 1997. Por outro lado, a partir de 2008 observou-se que as decisões sobre o assunto atingiram seu ponto de normalidade, ou seja, a partir desse ano as decisões se consolidaram no sentido da responsabilização das instituições e das pessoas responsáveis pelo contrato administrativo. 1. Acompanhamento e fiscalização dos Contratos Administrativos Considerando o que foi delineado anteriormente, a execução do objeto licitado apresenta-se como uma das fases mais sensíveis e complexas do processo de contratação, podendo surgir aí irregularidades e ilegalidades que justificam uma série de providências administrativas e judiciais, contra a Administração (Contratante), a empresa vencedora da licitação (Contratada) e o próprio agente fiscalizador do contrato. Dessarte, o contrato administrativo está apto a ser executado a partir da sua assinatura. Sobre execução do Contrato, ensina o Meirelles (2007, p. 229): “Executar o contrato é cumprir as suas cláusulas segundo a comum intenção das partes no momento de sua celebração”. A partir daí, a Administração Pública tem que tomar providências para garantir que efetivamente aconteçam as condições pactuadas na licitação. Além disso, a Administração tem o poder-dever de fiscalizar o contrato administrativo. Para tal desiderato, a Lei de Licitações prevê, em seus artigos 58, 67 e 73, o seguinte: “Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: (omissis) III – fiscalizar-lhes a execução; (omissis) Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição. § 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados. § 2º As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes. (omissis) Art. 73. Executado o contrato, o seu objeto será recebido: I – em se tratando de obras e serviços: a) provisoriamente, pelo responsável por seu acompanhamento e fiscalização, mediante termo circunstanciado, assinado pelas partes em até 15 (quinze) dias da comunicação escrita do contratado; b) definitivamente, por servidor ou comissão designada pela autoridade competente, mediante termo circunstanciado, assinado pelas partes, após o decurso do prazo de observação, ou vistoria que comprove a adequação do objeto aos termos contratuais, observado o disposto no art. 69 desta Lei.” (BRASIL, Lei nº. 8666/93) A interpretação conjunta das normas jurídicas descritas acima aponta para a obrigatoriedade (poder-dever) do Estado em acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos. Para concretizar tal desiderato, o art. 67 traz uma inovação, qual seja, a necessidade desse acompanhamento e fiscalização ser realizada por um representante da Administração; designado por pessoa competente, geralmente o ordenador de despesas[1]; no entanto, a mencionada lei não estipula uma denominação para esse representante, o que será feito, conforme será demonstrado no tópico adiante, mediante normas infralegais pelos órgãos da Administração Pública. O agente designado para acompanhar e fiscalizar o contrato deve agir de forma pró-ativa e preventiva observando o cumprimento, pela Contratada, do estipulado em sua proposta e das regras previstas no instrumento contratual, bem como o estipulado no processo licitatório[2], a fim de que a Administração pública concretize os resultados esperados e que o objeto do contrato atenda as suas necessidades da maneira mais vantajosa possível, respeitando a boa técnica e a economia do órgão Contratante. Esse representante da Administração se apresenta como mais uma ferramenta que o Estado possui visando realizar, de maneira eficiente e eficaz, o interesse público pretendido. Logo, resta inegável admitir que o não acompanhamento e fiscalização do contrato administrativo pode acarretar má aplicação do dinheiro público, não atendimento do interesse público, dano ao erário e possível superexposição da Administração Pública perante a sociedade. Além disso, o art. 67 em questão trouxe outro importante avanço, que se perfaz na responsabilização do(s) indivíduo(s) designado(s) para fiscalizar a execução do contrato público, conforme será demonstrado no item 03 deste estudo. Esse é uma grande inovação trazida pela Lei de Licitação, pois, cria uma forte ligação entre o representante da Administração com o seu respectivo contrato que irá fiscalizar. Portanto, o agente designado para fiscalizar o contrato tem grande responsabilidade pelos seus resultados, devendo observar o fiel cumprimento, pela Contratada, das regras técnicas, científicas ou artísticas previstas no instrumento contratual advindo do certame licitatório. 2. Denominações e definições da figura prevista no art. 67 da Lei nº. 8.666/93 Foi encontrado, no período analisado, vários Manuais, Instruções Normativas e Atos Normativos disciplinando sobre o acompanhamento e fiscalização de contratos públicos, exteriorizando a preocupação dos órgãos públicos em efetivar o exercício do previsto no art. 67 da Lei 8.666/93. Contudo, ocorre que, os órgãos estavam, e talvez ainda estão, disciplinando o assunto em questão de forma não padronizada. Essa falta de padronização pôde ser percebida, principalmente, na denominação dada ao representante da administração incumbido de realizar o acompanhamento e fiscalização do contrato, visto que, o mencionado art. 67 disciplina o tema de forma geral, sem estipular uma denominação para o agente designado para acompanhar e fiscalizar o contrato, sendo essa denominação realizada mediante normas infralegais exaradas pelos órgãos da Administração. Logo, esse representante foi por vezes chamado de fiscal, gestor, executor e até mesmo gerente de contrato. Assim, os órgãos da Administração regulamentaram a figura prevista no art. 67 da Lei nº 8666/93 de diversas maneiras diferentes, persistindo distintas definições acerca da nomenclatura e a forma que deve ser realizada o acompanhamento e fiscalização de contrato. Após análise desses documentos normativos, esta pesquisa definiu por criar seis categorias, sendo que a criação dessas categorias levou em consideração a denominação que os órgãos da Administração federal atribuíram à figura prevista no art. 67 da Lei nº. 8666/93, resultando, nas seguintes classes: Gestor de Contratos Administrativos; Fiscal de Contrato Administrativo; Executor de Contrato Administrativo; Gerente de Contrato Administrativo; Gestor e Fiscal de Contrato Administrativo como função análoga; Gestor e Fiscal de Contrato Administrativo como funções diferentes. Importante salientar que cada uma das categorias representa um desenho institucional autônomo que o representante ou os representantes da administração estão inseridos. Dessa forma, cada categoria será explorada em um subtópico específico, corroborando com essa metodologia, foram selecionados alguns regulamentos[3] que contribuirão para demonstrar a especificidade de cada classe. Ao cabo, um último subtópico examinará como é tratada a figura prevista no art. 67 da Lei nº. 8.666/93 na atualidade. Por desiderato, é necessário ressaltar que todas as normas examinadas estão bem alinhadas com a intenção legislativa do pleno acompanhamento da execução do contrato. 2.1. Gestor de Contratos Administrativos Observou-se que, no período analisado, muitos órgãos da Administração federal regulamentaram o art. 67, da Lei 8666/93, criando, para tal finalidade, a função denominada gestor de contratos administrativos, que possuía como atribuição nuclear o acompanhamento e fiscalização do objeto constante no instrumento contratual. Assim, segue, abaixo, alguns exemplos de normas jurídicas que tratam sobre o presente tema[4]. Como primeiro exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, em seu Anexo I, da Instrução Normativa nº. 04/05, dispôs que: “O gestor é o representante da administração para acompanhar a execução do contrato. Assim sendo, deve agir de forma pró-ativa e preventiva, observar o cumprimento, pela contratada, das regras previstas no instrumento contratual, buscar os resultados esperados no ajuste e trazer benefícios e economia para o STJ.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2005) Já a Universidade Federal de Viçosa/MG, estabeleceu, em seu Manual de Gestão de Contratos, o seguinte: “O gestor é o representante da administração para acompanhar a execução do contrato. Assim, deve agir de forma pró-ativa e preventiva, observar o cumprimento, pela contratada, das regras previstas no instrumento contratual, buscar os resultados esperados no ajuste e trazer benefícios e economia para o UFV.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA/MG. Manual de Gestão de Contratos, 2008) Por sua vez, o Senado Federal, em seu Ato do Primeiro Secretário nº. 009/92 definiu que: “Entende-se por gestor de contrato o servidor responsável pela AÇÃO E REAÇÃO do acompanhamento e da fiscalização do contrato, desde sua assinatura até o recebimento da obra, do material ou do serviço contratados, a fim de verificar e relatar, durante o seu desenvolvimento, na forma do que prescrevem os arts. 102 a 119 do Ato da Comissão Diretora no. 31, de 1987, se estão sendo observadas as especificações e demais requisitos estabelecidos no instrumento contratual, bem como as anormalidades que ocorrerem.” (BRASIL, Senado Federal, 1992) Por fim, o Supremo Tribunal Federal – Instrução Normativa 17/2004 deliberou: “Art. 1º O acompanhamento da execução dos contratos de prestação continuada de serviços compete conjuntamente aos respectivos gestores e titulares das unidades detentoras dos postos de trabalho.” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2004) Do exposto, percebe-se que a denominação “gestor de contrato” normalmente foi seguida da especificação das atribuições dessa respectiva função, atribuição essa que repete o contido no art. 67 analisado. Bem como acrescentou algumas características que esse agente fiscalizador deveria possuir, destacando-se as seguintes: agir de forma pró-ativa e preventiva; ser responsável pela ação e reação no acompanhamento e fiscalização pleiteada; buscar os resultados esperados no ajuste; e trazer benefícios e economia para o órgão que é vinculado. Ademais, ressalta-se que não foi observada a preocupação em aprofundar o que se entenderia como gestão de contrato administrativo, bem como se ela deferiria, ou não, de outras funções, como a do fiscal de contrato. 2.2. Fiscal de Contrato Administrativo Outra recorrente denominação estipulada para regulamentar à figura prevista no citado art. 67 foi fiscal de contrato administrativo. Nos documentos analisados, constam como atribuição da citada função o acompanhamento e fiscalização do contrato público. Segue, abaixo, alguns exemplos de normas jurídicas que tratam sobre o presente tema. O Comando da Aeronáutica; mediante a NS 002/ACON, que trata da Instrução complementar para a fiscalização de contratos de obras ou serviços de engenharia, demais serviços contínuos e arrendamentos, tratou o fiscal de contrato definindo o seguinte: “1 DISPOSIÇÕES PRELIMINARES 1.1 FINALIDADE Prover, orientar e capacitar os Fiscais designados pela Administração de elementos essenciais ao cumprimento de suas funções, dando aos mesmos uma referência de como conduzir sua fiscalização, em consonância com as instruções contidas na NSMA-85-7, de 11 de fevereiro de 1999. 1.2 ÂMBITO A presente NS aplica-se aos Agentes da Administração designados como Fiscais de Contrato através de publicação em Boletim Interno Ostensivo.” (BRASIL, Comando da Aeronáutica, 2001)  A citada NS 002/ACON trouxe como atribuições para o fiscal de contrato uma gama de procedimentos que deveriam ser adotados por esse. Ademais, o Comando da Aeronáutica dividiu esses procedimentos em três formas de fiscalização distintas, quais sejam: fiscalização de obras e serviços de engenharia; fiscalização de serviços contínuos; e fiscalização de áreas arrendadas. Já o TCU, em sua publicação sobre Licitações e Contratos – 3º Edição, estruturou orientações gerais para os órgãos da Administração federal, dentre elas destaca-se o que se refere à execução de contratos públicos, conforme segue: “A execução do contrato deve ser fiscalizada e acompanhada por representante da Administração, de preferência do setor que solicitou o bem ou serviço. A Administração deve manter, desde o início até o final do contrato, profissional ou equipe de fiscalização habilitada, com a experiência técnica necessária ao acompanhamento e controle do serviço que está sendo executado. Os fiscais podem ser servidores da própria Administração ou contratados especialmente para esse fim.” (BRASIL, Tribunal de Contas da União, 2006)  Aqui deve ser ressaltado que o TCU, órgão denominado controle externo da União, orientou, via aludida publicação, que a execução do contrato deveria ser acompanhada e fiscalizada por um fiscal de contrato. Por fim, cita-se o Ato nº. 1797/2000 do Tribunal Regional do Trabalho 1ª Região, que dispôs o seguinte: “CONSIDERANDO a Lei nº 8.666l93, art.67, caput e g§ 1º e 2º, R E S O L V E determinar as atribuições do Fiscal de Contrato: I – Participar da elaboração do Projeto Básico e opinar na especificação, prazos e condições de entrega do serviço ou obra submetidos a sua fiscalização; II – Assinar o Projeto Básico em que consta sua indicação como fiscal do contrato; Ill – Assinar, como um a das testemunhas, o Contrato no qual está indicado como fiscal; IV – Controlar os prazos e a observância das demais cláusulas do contrato, diligenciando para que os serviços sejam executados conforme pactuados; V – Assegurar a regularidade e constância do fluxo de informações entre a Contratante e a Contratada, assim como, internamente no Órgão, entre todas as áreas diretamente envolvidas na execução do contrato; Vl – Coordenar o inter-relacionamento entre as áreas envolvidas, para que o ritmo normal de execução dos serviços não venha a ser afetado por problemas internos do Órgão; Vll – Registrar as reclamações, impugnações e outras informações relevantes, mantendo, para esse fim, um "Livro de Ocorrências", ou outro tipo de controle que o substitua; Vlll – Emitir, periodicamente, "Relatórios de Acompanhamento" com a avaliação das condições e circunstâncias de execução do contrato e, nos casos mais críticos para a sua manutenção, informar imediatamente ao Gerente do Contrato os atrasos e irregularidades que constatar; IX – Nos serviços ou obras de execução prolongada, informar, com antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias, o vencimento do contrato e, ao seu término, emitir o "Relatório Final", com avaliação detalhada e circunstanciada do desempenho da Contratada; X – Atestar, dentro dos limites de valor estabelecidos, o aceite nos fornecimentos sob sua fiscalização.” (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho 1ª Região, 2000) De forma geral, os documentos examinados, em especial aqueles que constam citados neste subtópico, apresentam uma delimitação mais abrangente das atribuições atinentes ao fiscal de contrato, os ritos procedimentais estão mais detalhados, contudo, observou-se que essas normativas acabaram por transferir grande carga de competência a função ora analisada. 2.3. Executor de Contrato Administrativo Foi também encontrada, nas regulamentações e manuais analisados, a designação de executor de contratos administrativos para disciplinar o previsto no art. 67 da Lei 8666/93. Um exemplo[5] de órgão federal que definiu por criar o executor de contrato administrativo foi o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, que, mediante a Ordem de Serviço nº. 001/95 estipulou o seguinte: “Art. 1º – Estabelecer que todo contrato de obras, de prestação de serviços ou de aquisição de equipamentos, bem assim qualquer outro instrumento que envolva compromissos financeiros de responsabilidade deste Tribunal sejam acompanhados por servidores designados especificamente para esse mister, denominado executor de contrato, com a finalidade de assegurar a fiel execução do objeto contratado.” (BRASIL, Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal. 1995) A norma analisada aponta que a atribuição do executor de contratos administrativos se perfaz, principalmente, no acompanhamento e na fiscalização do instrumento contratual, estando em similaridade com o disposto no artigo da Lei de Licitação citada anteriormente. 2.4. Gerente de Contrato Administrativo Outra designação encontrada foi gerente de contrato administrativo, mais especificamente o Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, em sua Instrução Normativa nº. 02/2002, definiu o seguinte: “Gerente de Contrato – servidor designado pela administração do Tribunal para acompanhar, controlar e fiscalizar os contratos administrativos de que trata a Lei Federal 8.666, de 21 de junho de 1993, e suas alterações, de acordo com as orientações previstas nesta Instrução, sendo admitida, se necessária, a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes à sua atribuição.” (BRASIL, Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, 2002) Mais uma vez observamos os elementos do art. 67 da Lei de Licitação, na medida em que a citada norma estipulou como atribuição do gerente o acompanhamento e fiscalização do contrato público. 2.5. Gestor e Fiscal de Contrato Administrativo como função análoga Insta mencionar que alguns documentos examinados trouxeram a ideia de que a função de gestor e fiscal de contrato administrativo são figuras análogas, ou seja, tem o mesmo campo de significância. Não por acaso a Universidade Federal da Grande Dourados/MS [entre 1993 e 2008], em seu Manual do Gestor/Fiscal de Contrato, discorreu que: “Fiscalizador de Contrato e Gestor de Contrato são as mesmas coisas? Sim. Assim como Acompanhador de Contrato ou Representante da Administração. O Fiscal é designado por um ato específico, onde devem constar, necessariamente, as suas atribuições.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS/MS. Entre 1993 e 2008) Outro caso relevante seria o disposto na Instrução Normativa nº. 02/2008 (antes que essa sofresse qualquer alteração) do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), quando preceituou que: “Art. 34. A execução dos contratos deverá ser acompanhada e fiscalizada por meio de instrumentos de controle, que compreendam a mensuração dos seguintes aspectos, quando for o caso: (omissis) § 1º O fiscal ou gestor do contrato ao verificar que houve subdimensionamento da produtividade pactuada, sem perda da qualidade na execução do serviço, deverá comunicar à autoridade responsável para que esta promova a adequação contratual à produtividade efetivamente realizada. (omissis) ANEXO I DEFINIÇÕES DOS TERMOS UTILIZADOS NA INSTRUÇÃO NORMATIVA (omissis) XVIII – FISCAL OU GESTOR DO CONTRATO é o representante da Administração, especialmente designado, na forma dos arts. 67 e 73 da Lei nº 8.666/93 e do art. 6º do Decreto nº 2.271/97, para exercer o acompanhamento e a fiscalização da execução contratual, devendo informar a Administração sobre eventuais vícios, irregularidades ou baixa qualidade dos serviços prestados pela contratada, propor as soluções e as sanções que entender cabíveis para regularização das faltas e defeitos observados, conforme o disposto nesta Instrução Normativa.” (BRASIL, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação, 2008) Este último exemplo se mostra marcante, pois, o MPOG é responsável por orientar e disciplinar normas gerais na seara da contratação e dos gastos públicos na esfera federal, com especial afetação aos órgãos ou entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais (SISG). Assim, ao que tudo indica, a pasta responsável do governo para regular as questões atinentes à execução dos contratos administrativos, entendia que tanto o fiscal quanto o gestor de contratos possuíam a mesma atribuição. Seria, portanto, duas formas diferentes de expressar a mesma função. 2.6. Gestor e Fiscal de Contrato Administrativo como funções diferentes Neste subtópico serão ponderados alguns documentos que criaram a função de fiscal de contrato e de gestor de contrato, no entanto, entendendo serem essas funções diferentes a serem exercidas, conforme será exposto abaixo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em sua Instrução Normativa nº. 01/2004 dispôs acerca da citada distinção, senão vejamos: “GESTOR DE CONTRATO: representante da Administração, designado para acompanhar a execução do contrato e promover as medidas necessárias à fiel execução das condições previstas no ato convocatório e no instrumento contratual;” e “FISCAL DE CONTRATO: representante da Administração especialmente designado ou pessoa física ou jurídica contratada, com as atribuições de subsidiar o Gestor de Contrato.” (BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral, 2006) Por sua vez o Centro Federal de Ensino Tecnológico de São Paulo/SP (CEFET/SP) (2007), em seu Manual de Gestão do Contrato, explicou que: “Não se deve confundir GESTÃO com FISCALIZAÇÃO de contrato. A gestão é o serviço geral de gerenciamento de todos os contratos; a fiscalização é pontual.” Define ainda: “FISCAIS DE CONTRATO/Atribuições – Acompanhar e fiscalizar os contratos, anotando e registrando todas as ocorrências relacionadas a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.” (CENTRO FEDERAL DE ENSINO TECNOLÓGICO DE SÃO PAULO/SP, 2007) Os documentos citados acima estipulam que a gestão e a fiscalização de contrato são funções dessemelhantes, talvez complementares, mas distintas. Contudo se verifica que não persiste unicidade de definição nos conceitos de gestor de contrato e fiscal de contrato ao se comparar as duas citações. Visto que, o gestor de contrato, no primeiro caso (Instrução Normativa nº. 01/2004 – TSE), e o fiscal de contrato, no segundo caso (Manual de Gestão de Contrato – CEFET/SP), possuem grande similaridade em suas atribuições. Por outro lado, o fiscal de contrato no primeiro caso é visto como um auxiliar que visa subsidiar o gestor de contratos em suas atividades. Já o gestor de contrato no segundo caso é visto como um gerenciador de todos os contratos, caracterizando-se, portanto, como um serviço mais afeto a burocracia administrativa dos contratos em geral. Conforme demonstrado, não se observou um conceito comum de gestão e fiscalização de contrato para os órgãos que definiram a fiscalização e gestão de contrato como coisas diferentes. 2.7. O art. 67 da Lei nº. 8.666/93 na atualidade e a diferença entre gestão e fiscalização de contrato Com o advento da Instrução Normativa (IN) da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI)/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão nº. 06/2013/MPOG, que altera a IN SLTI/MPOG nº. 02/2008, a gestão e a fiscalização de contrato foram colocadas em nova perspectiva. A citada norma reconhece a diferença entre essas funções, bem como cria um sistema mais organizado para o acompanhamento e fiscalização do contrato público. Uma peculiaridade consiste no fato que foram criadas duas funções de fiscal de contrato, cada qual com sua atribuição própria. Segue, abaixo, a alteração em questão: “Art. 31. O acompanhamento e a fiscalização da execução do contrato consistem na verificação da conformidade da prestação dos serviços e da alocação dos recursos necessários, de forma a assegurar o perfeito cumprimento do contrato, devendo ser exercido pelo gestor do contrato, que poderá ser auxiliado pelo fiscal técnico e fiscal administrativo do contrato. (omissis) § 2º Para efeito desta Instrução Normativa, considera-se: I – gestor do contrato: servidor designado para coordenar e comandar o processo da fiscalização da execução contratual; II – fiscal técnico do contrato: servidor designado para auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização do objeto do contrato; e III – fiscal administrativo do contrato: servidor designado para auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização dos aspectos administrativos do contrato. (omissis) ANEXO I (ANEXO I à Instrução Normativa no  2, de 30 de abril de 2008) DEFINIÇÕES DOS TERMOS UTILIZADOS NA INSTRUÇÃO NORMATIVA VI – FISCAL ADMINISTRATIVO DO CONTRATO: servidor designado para auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização dos aspectos administrativos do contrato. VII – FISCAL TÉCNICO DO CONTRATO: servidor designado para auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização do objeto do contrato. VIII – GESTOR DO CONTRATO: servidor designado para coordenar e comandar o processo da fiscalização da execução contratual. É o representante da Administração, especialmente designado na forma dos arts. 67 e 73 da Lei nº 8.666, de 1993, e do art. 6º do Decreto nº 2.271, de 1997, para exercer o acompanhamento e a fiscalização da execução contratual, devendo informar a Administração sobre eventuais vícios, irregularidades ou baixa qualidade dos serviços prestados pela contratada, propor soluções para regularização das faltas e problemas observados e sanções que entender cabíveis, de acordo com as disposições contidas nesta Instrução Normativa.” (BRASIL, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação, 2013) Lembrando que a Instrução Normativa, ora examinada, deve orientar todos os órgãos ou entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais (SISG), portanto, alcança os órgãos e unidades da Administração Federal direta, autárquica e fundacional[6]. A orientação constante da passagem acima se revela um avanço importante para a Administração federal, principalmente em face da falta de diretriz existente na área pesquisada. Visto que a previsão do art. 67, da Lei 8666/93 foi, durante o período estudado, regulamentado de várias formas, resultando na criação de vários desenhos institucionais diferentes de atuação da figura prevista no citado artigo, tanto que essas dessemelhanças foram classificadas, por esta pesquisa, em seis categorias diferentes, conforme demonstrado pelos subtópicos 2.1. ao 2.6. A partir da mencionada IN SLTI/MPOG nº. 06/2013, o gestor do contrato tem a incumbência de coordenar e comandar o processo da fiscalização da execução contratual, sendo o representante da Administração, especialmente designado na forma dos arts. 67 e 73 da Lei nº 8.666, de 1993, e do art. 6º do Decreto nº 2.271, de 1997, para exercer o acompanhamento e a fiscalização da execução contratual. Já o fiscal técnico do contrato tem o dever de auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização do objeto do contrato. Por fim, o fiscal administrativo do contrato tem a prerrogativa de auxiliar o gestor do contrato quanto à fiscalização dos aspectos administrativos do contrato. Apesar dos inegáveis avanços advindos da padronização ora analisada, se faz necessário discorrer que a definição proposta pela IN SLTI/MPOG nº. 06/2013 acaba por não elaborar uma definição suficientemente clara das atribuições e limitações atinentes ao papel do gestor, do fiscal técnico e do fiscal administrativo do contrato. Essa limitação da IN SLTI/MPOG nº. 06/2013 pode ser observada principalmente na definição de qual seria a diferença entre gestão e a fiscalização do contrato. Pode-se utilizar como exemplo, para demonstrar tal incompletude, o caso das competências do gestor de contrato. Pois, em um primeiro momento, o inciso I, do § 2º, do art. 31, da citada Instrução Normativa, traz como atribuição do gestor coordenar e comandar o processo da fiscalização da execução contratual. Em sentido amplo poder-se-ia entender que as palavras “coordenar” e “comandar” indicariam que o agente responsável pela gestão exerceria uma tarefa mais gerencial, aproximando, assim, do significado/conceito de gestão na área Administrativa[7], contudo, contrastando essa definição com a constante no caput do referido artigo, bem como a definição do “Anexo I – DEFINIÇÕES DOS TERMOS UTILIZADOS NA INSTRUÇÃO NORMATIVA”, da mesma Instrução, conclui-se que a atribuição do gestor é direcionada para o acompanhamento e fiscalização da execução contratual em sentido estrito, aproximando, portando, das funções próprias de um fiscal. Defende-se que a gestão deveria ser concebida em uma perspectiva macro na organização do órgão, envolvendo um servidor responsável ou um setor responsável que gerenciaria e deteria o poder de agenda que abarcaria todo o sistema de execução dos contratos. Por certo é que a IN SLTI/MPOG nº. 06/2013 criou esse modelo de gerenciamento e poder de agenda, contudo em uma perspectiva micro, somente intracontrato, em que a dinâmica do gestor e dos fiscais ocorre em face de cada contrato. Considerando que cada contrato possuirá essa estrutura com três funções fiscalizantes atuando conjuntamente, e a quantidade de contratos que um órgão pode possuir, deduz-se um sistema administrativo com maior número de atores, portanto, mais burocratização dos procedimentos de fiscalização e acompanhamento do instrumento contratual. Ademais, resta a impressão que as três citadas funções realizam, cada qual, o papel próprio à de um fiscal. Por seu turno, a fiscalização se perfaz no próprio acompanhamento e inspeção de cada contrato. Logo, deve ser exercida por um representante da Administração que cuidará pontualmente de cada instrumento. Elucidando e corroborando com a ideia proposta, explica Alves (2011): “Não se confunda GESTÃO com FISCALIZAÇÃO de contrato. A gestão é o serviço geral de gerenciamento de todos os contratos; a fiscalização é pontual. Na gestão, cuida-se, por exemplo, do reequilíbrio econômico-financeiro, de incidentes relativos a pagamentos, de questões ligadas à documentação, ao controle dos prazos de vencimento, de prorrogação, etc. É um serviço administrativo propriamente dito, que pode ser exercido por uma pessoa ou um setor. Já a fiscalização é exercida necessariamente por um representante da Administração, especialmente designado, como preceitua a lei, que cuidará pontualmente de cada contrato.” (ALVES, 2011, p. 65) Assim, a diferença da gestão e fiscalização se perfaz no seguinte: a gestão está voltada para a prática de gerenciamento, já a fiscalização é o acompanhamento propriamente dito da execução. Logo, acredita-se que o sistema de acompanhamento e fiscalização deveria ser estruturado em uma lógica mais semelhante à proposta por Alves (2011), em especial, quanto à gestão e fiscalização de contrato. Ante ao exposto, fica demonstrada tanto o avanço trazida pela IN SLTI/MPOG nº. 06/2013, ao distinguir a função de gestor e de fiscal, quanto à crítica pela denominação adotada, na medida em que delimita a atribuição do gestor de contrato em similaridade com a função própria de um fiscal de contrato. 3. Estudo das Jurisprudências do Tribunal de Contas da União relativas ao acompanhamento e fiscalização dos contratos administrativos durante o período entre 1997 e 2008 O presente tópico buscará analisar jurisprudências sobre o tema pesquisado. Esses dados foram coletados no sítio eletrônico do TCU, podendo ser averiguadas mediante a ferramenta “jurisprudência sistematizada[8]”. Afirma-se que foram consultadas 48 jurisprudências[9] daquele egrégio tribunal, nos anos compreendidos entre 1997 e 2008, sendo: 02 decisões do ano de 1997; 00 decisão do ano de 1998; 02 decisões do ano de 1999; 03 decisões do ano de 2000; 01 decisão do ano de 2001; 00 decisão do ano de 2002; 00 decisão do ano de 2003; 02 decisões do ano de 2004; 02 decisões do ano de 2005; 05 decisões do ano de 2006; 11 decisões do ano de 2007 e 20 decisões do ano de 2008. Reafirma-se que o recorte temporal desta pesquisa respeitou os seguintes critérios: considerou para seu limite inicial o fato da ferramenta de busca, citada acima, conter somente jurisprudências partir do ano de 1997, já a outra ponta do lapso foi estabelecida considerando que, após o ano de 2008 as decisões não trouxeram nenhuma inovação quanto à responsabilização do representante da administração que acompanha e fiscaliza o contrato administrativo. Lembrando, ainda, que, salvo o subtópico 2.7, todo tópico 02 também respeitou o período entre 1997 e 1998. Adiante, serão expostos os principais resultados obtidos. Pois bem, restou evidenciado a mudança de tratamento, durante o período examinado, dado pelo TCU ao representante responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos administrativos. No entanto, essa responsabilização não ocorreu de forma imediata nos primeiros anos do período pesquisado. Observou-se que persistiu um processo de amadurecimento tocante à responsabilização do agente fiscalizador do contrato público durante o lapso temporal avaliado, visto que, inicialmente, as decisões foram utilizadas como instrumento de caráter educativo e posteriormente como instrumento de caráter punitivo. Dessa forma, inicialmente o TCU somente indicava a necessidade da nomeação do representante da Administração para acompanhar e fiscalizar o contrato. No entanto, no transcorrer do tempo, o citado tribunal acabou por, gradativamente, “endurecer” as orientações e punições aos agentes fiscalizadores infratores. Já no último ano avaliado, observou-se que as decisões encontraram seu ponto de equilíbrio quanto à punição (responsabilização) dos representantes responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos, sendo que, após esse ano as decisões acabaram por aumentar o seu número em escala quase progressiva, sem, contudo, trazer grandes novidades quanto ao mérito das decisões. Ato contínuo, para demonstrar os resultados, descritos anteriormente, esta pesquisa adotará o seguinte método: serão selecionadas e comentadas três decisões do total de jurisprudência disponíveis. A primeira representará o marco inicial e cada decisão posterior estará inserida em um momento de transição de entendimento do TCU quanto ao tema pesquisado, nessa feita, este estudo instrumentalizará três marcos correspondentes aos anos de 1997, 2004 e 2007 [10]. No ano de 1997 o acórdão colocado em evidencia será o AC023942/97-P: “[RELATÓRIO] 8) observar o disposto no artigo 67 da Lei nº 8.666/93, quando da execução dos contratos, designando representante da Administração para acompanhar e fiscalizar a execução do contrato; 9) apresentar nas próximas prestações de contas indicadores de gestão que permitam aferir a eficiência, eficácia e economicidade da ação administrativa, levando-se em conta os resultados quantitativos e qualitativos alcançados pela unidade, fazendo referência às causas que inviabilizaram o pleno cumprimento das metas fixadas e às conseqüentes medidas saneadoras que foram implementadas, conforme determinam as alíneas 'a', 'c' e 'd' do inciso II do artigo 16 da IN/TCU nº 12/96[…] [ACÓRDÃO][…] e) o disposto no art. 67 da Lei nº 8.666/93, quando da execução dos contratos, designando representante da Administração para acompanhar e fiscalizar a execução do contrato; f) apresentar nas próximas prestações de contas indicadores de gestão que permitam aferir a eficiência, eficácia e economicidade da ação administrativa, levando-se em conta os resultados quantitativos e qualitativos alcançados pela unidade, fazendo referência às causas que inviabilizaram o pleno cumprimento das metas fixadas e às conseqüentes medidas saneadoras que foram implementadas, conforme determinam as alíneas 'a', 'c' e 'd' do inciso II do art. 16 da IN/TCU nº 12/96; g) fazer constar no rol de responsáveis os endereços residenciais, conforme determina o art.11, V, da IN/TCU nº 12/96.” (Tribunal de Contas da União, AC-0239-42/97-P, Sessão: 22/10/97, Relator: Ministro – FISCALIZAÇÃO – AUDITORIA DE CONFORMIDADE – INICIATIVA PRÓPRIA. 1997) Percebe-se que o TCU orientou pela necessidade de indicação do representante individual para acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos do órgão auditado. Essa orientação, conforme pode ser observada acima, não vislumbrou qualquer punição, mas sim, transparece a intenção do organismo fiscalizador em educar a unidade auditada para atender a disposição do art. 67 da Lei de Licitações. Complementando, o mesmo Tribunal recomendou que a Administração apresentasse, nas futuras prestações de contas, indicadores de gestão que permitissem aferir a eficiência, eficácia e economicidade da ação administrativa, levando-se em conta os resultados quantitativos e qualitativos alcançados pela unidade. Manteve-se uma constância quanto à orientação dos agentes fiscalizadores de contratos administrativos nas jurisprudências avaliadas até o período do ano de 2004, quando se observou uma mudança de entendimento, conforme consta do AC110523/04-2: “ACORDAM (…) em:(…) 9.3. determinar à Fundação Nacional de Saúde – Coordenação Regional em Roraima que:(…) 9.3.16. no que se refere à operacionalização de certames licitatórios, realizados pela FNS/CR/RR:(…) 9.3.16.17. junte aos processos pertinentes o ato de designação do representante da Administração encarregado de acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos celebrados pelo Órgão, conforme estabelece o caput do art. 67 da Lei nº 8.666/93.” (Tribunal de Contas da União, AC-1105-23/04-2, Sessão: 24/06/04, Classe: III, Relator: Ministro Lincoln Magalhães da Rocha. 2004) A passagem “determinar à Fundação Nacional de Saúde” neste acórdão deixa claro um avanço no caráter imperativo da decisão em relação a anterior, pois, fica evidente a determinação para que o órgão junte, aos processos pertinentes, o ato de designação do representante da Administração encarregado de acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos. Além disso, em nenhum momento o Tribunal cobra da unidade auditada a realização do acompanhamento e fiscalização dos contratos, podendo, assim, indicar que a unidade já está realizando esse procedimento, faltando somente à formalização do ato administrativo. Como último marco, será analisado o acórdão AC106423/07-P do ano de 2007: “[Pedidos de reexame contra aplicação de multa por irregularidades verificadas na utilização de recursos federais repassados a Prefeitura mediante convênio.] [ACÓRDÃO] VISTOS, relatados e discutidos estes autos de pedidos de reexame, interpostos pelos recorrentes indicados no item 3 acima contra o Acórdão n° 1.865/2004-TCU-Plenário, que, dentre outras providências, aplicou multas individuais aos responsáveis, tendo em vista as irregularidades constatadas mediante Auditoria realizada na PM de João Pessoa – PB, na aplicação de recursos federais transferidos ao Município entre 1997 e 2003, destinados à execução de diversas obras. 9.1. […] conhecer dos presentes pedidos de reexame, para, no mérito, negar-lhes provimento […]; [VOTO] 17. Quanto ao […] Engenheiro da Secretaria Municipal de Infra-Estrutura, a responsabilidade que lhe foi imputada decorreu do fato de que, na qualidade de engenheiro fiscal, deixou de apontar o mau uso do convênio por parte da Prefeitura […] (violação dos arts. 62 e 63 da Lei n° 4.320/64) […]. 18. A justificativa sustentada vem comprovar a omissão do alegante no seu dever de fiscalizar a obra e, via de conseqüência, informar às autoridades que os equipamentos pagos não foram entregues na data e local previstos, conforme disposições contidas no art. 67, §§ 1° e 2°, da Lei n° 8.666/93 […]. 20. […] não restou afastada a responsabilidade que foi imputada, nestes autos, ao [engenheiro fiscal]. Mesmo o derradeiro argumento de que não poderia ter sido incluído no rol de administradores ou envolvidos com dinheiro público com base nos arts. 1° e 5° da Lei n° 8.443/92 não merece prosperar. É fato por demais corriqueiro nesta Corte de Contas, nos termos da Constituição Federal (art. 71, inciso II) e da Lei n° 8.443/92 (art. 58, incisos II e III), que não somente os responsáveis por dinheiros e valores públicos são alcançados pela fiscalização do TCU, mas também `aqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.” (Tribunal de Contas da União, AC-1064-23/07-P, Sessão: 06/06/07, Classe: I, Relator: Ministro Valmir Campelo – FISCALIZAÇÃO – INICIATIVA PRÓPRIA. 2007) A análise da presente jurisprudência revela uma alteração importante no entendimento do TCU sobre o tema em questão, pois, no caso em análise, o responsável (fiscal do contrato) atuou com imprudência, sendo percebido um nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano sofrido pelo erário. Nesse ínterim, o Tribunal imputou a inclusão do fiscal no rol de administradores ou envolvidos com dinheiro público com base nos arts. 1° e 5° da Lei n° 8.443/92, em vista de irregularidades detectadas na aplicação dos recursos públicos. Ou seja, não foram cumpridas as atribuições inerentes ao acompanhamento e fiscalização dos contratos, resultando em dano ao erário, dano esse que deverá ser devidamente ressarcido. O referido Tribunal explica, ainda, “que não somente os responsáveis por dinheiros e valores públicos são alcançados pela fiscalização do TCU, mas também àqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público” (BRASIL, Tribunal de Contas da União, AC-1064-23/07-P, 2007). Portanto, o TCU exarou uma decisão com uma interpretação moderna, que dá prioridade a eficácia e eficiência dos gastos públicos, além de incluir a figura prevista no art. 67 da Lei 8.666/93 como responsável por essa obrigação. As decisões esmiuçadas demonstram uma transformação no entendimento do TCU sobre o assunto em tela. Pode-se visualizar essa mudança como um processo de evolução na responsabilização dos agentes que acompanham e fiscalizam o contrato público, que, por sua vez, partiu de uma posição que o Tribunal revestiu suas decisões de caráter educativo e culminou em decisões de caráter punitivo. Conclusão A correta aplicação do dinheiro público passa, invariavelmente, por reforçar o papel do representante da Administração no cumprimento de suas atribuições. Nessa perspectiva, esta pesquisa realizou um estudo sobre o tema, durante o período entre 1997 e 2008, considerando para tal desiderato dois vetores principais: de um lado analisou a normatização da fiscalização e do acompanhamento dos contratos administrativos pelos órgãos federais; e, do outro lado, examinou o tratamento dado pelo Tribunal de Contas da União aos agentes que acompanham e fiscalizam os contratos públicos em suas decisões. O principal resultado do primeiro vetor aponta que durante o período analisado não se vislumbrou uma padronização, uma diretriz, para a regulamentação do art. 67 da Lei de Licitação, especialmente ao que se refere à denominação do representante responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos administrativos. Ademais, apesar da relativa diversidade apresentada na regulamentação do referido artigo da Lei 8.666/93, foi averiguado duas funções mais recorrentes, no caso a função de fiscal de contrato e a função de gestor de contrato. Durante o período examinado essas duas funções foram empregadas com vários arranjos e definições diferentes pelos órgãos da administração pública. Contudo, tal cenário de imprecisão foi alterado pelo advento da IN SLTI/MPOG nº. 06/2013 que estabeleceu novos parâmetros para a fiscalização e acompanhamento de contratos administrativos. O segundo vetor tratou do estudo das jurisprudências exaradas pelo TCU, que, por sua vez, evidenciou uma transformação de tratamento nas decisões daquele Tribunal sobre o assunto em pauta. Constatou-se que, no período entre 1997 e 2008, alterou-se a forma de cobrar e responsabilizar o responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos, pois, no inicio as decisões não puniam os agentes fiscalizadores do contrato quando esses atuavam de forma irregular, entendimento esse que mudou no transcorrer do tempo, tornando-se, após o ano de 2007, usual a responsabilização dos agentes fiscalizadores do contrato nos atos realizados ao arredio da lei. Diante do exposto, percebe-se que esta pesquisa buscou contribuir com o conhecimento construído sobre a execução dos contratos administrativos, em especial o seu acompanhamento e fiscalização. Além disso, propõe-se uma agenda de pesquisa orientada a averiguar se os órgãos da esfera estadual e municipal estão observando o disposto art. 67 da Lei 8.666/93 e como seus respectivos Tribunais de Contas estão tratando a questão em suas decisões.
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O silêncio administrativo em face das garantias fundamentais dos administrados
O presente trabalho objetiva discutir a falta de atuação/manifestação da Administração Pública em face da interpretação da Constituição e das leis infraconstitucionais, bem como a relação jurídica nascida em virtude da ausência dessa manifestação expressa da Administração em face da pretensão deduzida pelo administrado e a possibilidade de atuação do Poder Judiciário para sanar a ilegalidade perpetrada pela Administração Pública.
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo nasce de uma preocupação que nos foi incitada no exercício da atividade jurídica, vez que, algumas vezes, nos deparamos com decisões em que o Poder Judiciário supre a omissão da Administração Pública. Assim, a proposta desse trabalho é analisar a relação jurídica nascida em face da ausência de manifestação expressa da Administração em relação à pretensão deduzida pelo administrado, traçando um caminho interpretativo na construção do sentido para o silêncio administrativo; definindo, sob uma perspectiva retórica, a natureza jurídica do silêncio bem como propondo a interpretação dos dispositivos referentes ao direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição Federal). Observa-se que o silêncio administrativo não tem recebido a devida atenção por parte dos legisladores, bem como dos estudiosos e aplicadores do direito. No entanto, a falta de interesse dos mesmos não retira nem diminui a grandeza do tema proposto, vez que a falta de atuação/manifestação da Administração Pública afrontaria as garantias fundamentais conferida pela Constituição de 1988 aos cidadãos, notadamente quando se analisa os princípios norteadores da autuação Administrativa, vez que os mesmos servem de canal para a realização dos fins almejados pela ordem jurídica, bem como afastar o desvio de poder e fiscalizar a prestação do serviço público. Diante deste quadro, algumas dúvidas são suscitadas: 1) qual é a natureza jurídica do silêncio administrativo? 2) quais as hipóteses de silêncio administrativo?[1] 3) qual o significado do silêncio administrativo (deferimento ou indeferimento da pretensão deduzida pelo administrado em face da Administração Pública)? 4) há possibilidade de o Poder Judiciário suprir a omissão da Administração Pública? Se houver essa possibilidade quais os limites do mesmo, face a separação de Poderes (art.2º da CF)? Enfim, esses são os questionamentos que buscamos responder a partir de uma analise coordenada do ordenamento jurídico, observando-se, em particular, a possibilidade de aplicação, por analogia, da regra contida no artigo 49 da lei nº 9.784/1999 (que regula o processo administrativo no âmbito federal). 1.Conceito e classificação do silêncio administrativo Inicialmente deve-se conceituar o silêncio administrativo, como sendo uma omissão administrativa. No entanto, cumpre ressaltar que nem toda omissão administrativa é um silêncio administrativo, vez que a omissão administrativa é gênero do qual o silêncio é espécie. O professor Raimundo Márcio Ribeiro Lima magistralmente leciona que: “(…) o silêncio administrativo não pode ser confundido com a inatividade administrativa, uma vez que esta possui campo inercial maior; quer dizer, enquanto o silêncio administrativo se consubstancia na omissão do Poder Público diante de um dever legal de atuação; a inatividade administrativa, por sua vez, opera-se mesmo com a inexistência de tal dever ou de imposição concreta de agir. Portanto, o silêncio administrativo representa uma inatividade formal da Administração Pública.”[2] E continua o autor: “Dessa forma, e para compreensão meramente tipológica, tem-se o seguinte: (a) a inatividade administrativa em sentido amplo, ou genérica, compreende (a.1) o silêncio administrativo; e (a.2) a inatividade administrativa em sentido restrito. Assim, sendo, considera-se silêncio administrativo aquele decorrente da inatividade formal da Administração Pública, quer dizer, por conta da inobservância de um dever legal de prestar/controlar/regulamentar.”[3] Desta feita, a Administração Pública pode ser omissa quanto à implementação de políticas públicas, quanto à segurança, mas estas omissões não se enquadram como silêncio administrativo. Este se manifesta quando o interessado apresenta um pleito em face da Administração Pública e esta queda-se inerte. Celso Antônio Bandeira de Melo leciona que: “Se a Administração não se pronuncia quando deve fazê-lo, seja porque foi provocada por administrado que postula interesse próprio, seja porque um órgão tem de pronunciar-se para fins de controle de ato de outro órgão, está-se perante o silêncio administrativo.”[4] Assim, para o desenvolvimento deste trabalho o silêncio administrativo será definido como a omissão/inércia administrativa quando esta deveria apresentar manifestação. Neste momento importa apresentar, em linhas gerais, classificação quanto ao silêncio administrativo. Este pode ser analisado em relação aos seus efeitos, podendo ser positivo ou negativo[5]. Em relação aos destinatários da decisão/manifestação da Administração Pública, o silêncio administrativo pode ser interno ou externo. Não podemos olvidar o silêncio administrativo inominado ou não qualificado. O silêncio administrativo positivo impõe a concessão de efeito favorável ao administrado ante o simples decurso do prazo legal ou regulamentar sem manifestação da Administração Pública. Já o negativo impõe um efeito denegatório do requerimento do administrado[6]. O silêncio administrativo interno simplesmente representa a falta de manifestação de órgão controlador sobre a atividade de órgão/servidor controlado. O silêncio administrativo externo decorre da ausência de manifestação da Administração Pública em face de requerimento do administrado. Considera-se silêncio administrativo inominado ou não qualificado aquele que não possui qualquer efeito regulamentado em lei, sendo, simplesmente a inatividade formal/omissão da Administração Pública. 2. Natureza jurídica Importa analisar a essência do silêncio administrativo. A doutrina discute se o silêncio teria a natureza jurídica de ato administrativo ou de fato jurídico administrativo. Importa distinguir, de inicio, fato administrativo do fato jurídico administrativo. José dos Santos Carvalho Filho explica referida distinção: “A idéia de fato administrativo não tem correlação com tal conceito [de fato jurídico], pois que não leva em consideração a produção de efeitos jurídicos, as revés, tem o sentido de atividade material no exercício da função administrativa, que visa a efeitos de ordem prática para a Administração. Exemplos de fatos administrativos são a apreensão de mercadorias, a dispersão de manifestantes, a desapropriação de bens privados, a requisição de serviços ou bens ou privados etc. Enfim, a noção indica tudo aquilo que retrata alteração dinâmica na Administração, um movimento na ação administrativa. Significa dizer que a noção de fato administrativo é mais ampla que a de fato jurídico, uma vez que, além deste, engloba também os fatos simples, ou seja, aqueles que não repercutem na esfera de direitos, mas estampam evento material ocorrido no seio da Administração.”[7] Desta feita, é necessário conceituar, também, ato jurídico, bem como fato jurídico e traçar a distinção entre eles[8].  Nesse ponto, impõe-se afirmar que fato jurídico é o gênero do qual o ato jurídico é espécie. O conceito de fato jurídico leva em conta apenas os fatos relevantes para o ordenamento jurídico, quais sejam, todos os fatos que importem no nascimento, modificação ou extinção de direitos. Observa-se, como já afirmado acima, que o fato jurídico, em seu sentido amplo, é gênero que comporta as seguintes espécies: a) fatos naturais ou fatos jurídicos strictu sensu (resultam da simples manifestação da natureza, exemplo: nascimento, morte, maioridade etc.), e, b) fatos humanos ou fatos jurídicos latu sensu (resultam de uma atividade humana). Os fatos jurídicos latu sensu decorrem de uma atividade humana que acaba por criar, modificar ou extinguir direitos e, por seu turno, dividem-se em atos ilícitos (decorre de um ato contrário ao ordenamento jurídico e que causa dano, mesmo que apenas moral, a outrem, não importando se há ou não intenção de causar dano) ou lícitos (atos jurídicos lícitos, ou, simplesmente, “atos jurídicos”, sendo também conhecido como atos humanos ou atos jurígenos). Os atos jurídicos lícitos nascem de uma atividade humana praticada em conformidade com o ordenamento jurídico e produz os efeitos almejados pelo sujeito[9]. Assim, percebe-se que o fato jurídico é gênero que comporta duas espécies, sendo que o fato jurídico em sentido estrito consiste em eventos da natureza, isto é, acontecimentos que independem da manifestação da vontade humana, mas deles resultam conseqüências jurídicas. Já os atos jurídicos caracterizam-se como manifestação da vontade humana que têm como finalidade a constituição, modificação ou extinção de direitos. Esclarecido este ponto, seguimos com a necessidade de abrir outro parêntese para relembrar que o ato administrativo é um tipo de ato jurídico, conforme lição de Carvalho Filho: “Os elementos estruturais do ato jurídico – o sujeito, o objeto, a forma e a própria vontade – garantem sua presença também no ato administrativo. Ocorre que neste o sujeito e o objeto têm qualificações especiais: o sujeito é sempre um agente investido de prerrogativas públicas, e o objeto há de estar preordenado a determinado fim de interesse público. Mas no fundo será ele um instrumento da vontade para a produção dos mesmos efeitos do ato jurídico. Temos, assim, uma relação de gênero e espécie. Os atos jurídicos são o gênero de qual os atos administrativos são a espécies, o que denota em que ambos são idênticos os elementos estruturais.”[10] A doutrina administrativista, em regra, reconhece a manifestação de vontade como requisito de existência do ato administrativo tal qual acontece com o ato jurídico. Ressalta-se que essa manifestação de vontade é entendida como uma declaração de vontade. Então, o silêncio administrativo, por não constituir manifestação/declaração de vontade do Poder Público, mas por produzir efeitos na esfera do Direito Administrativo é considerado um fato jurídico (strictu sensu) administrativo. Celso Antônio escreve que: “O silêncio não é um ato jurídico. Por isso, evidentemente, não pode ser ato administrativo. Este é uma declaração jurídica. Quem se absteve de declarar, pois, silenciou, não declarou nada e por isto não praticou ato administrativo algum. Tal omissão é um ‘fato jurídico’ e, in casu, um ‘fato jurídico administrativo’. Nada importa que a lei haja atribuído determinado efeito ao silêncio: o de conceder ou negar. Este efeito resultará do fato da omissão, como imputação legal, e não de algum presumido ato, razão por que é rejeitar a oposição dos que consideram ter ai existido um “ato tácito’”.[11] 3. O silêncio administrativo em face das garantias fundamentais dos administrados Neste ponto analisaremos os principais princípios constitucionais e infraconstitucionais, bem como as garantias fundamentais conferida pela Constituição de 1988 aos cidadãos que são agredidos com a falta de atuação/manifestação da Administração Pública. 3.1. Princípios constitucionais e infraconstitucionais  O Estado brasileiro é qualificado como sendo um Estado de Direito (art.1º da CF), desta feita a atuação da Administração deve ser baseada nas regras impostas no ordenamento jurídico. Observa-se que a própria Constituição elenca vários princípios que regem a Administração Pública (art. 37 da CF), dentre os quais destacamos o princípio da legalidade, sem desmerecer os demais princípios. Ressaltamos que referido princípio serve de liga mestre para toda ordem jurídica, e não somente para a Administração Pública. O mestre Hely Lopes Meirelles ensina que “Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é licito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”[12]. Assim, o princípio da legalidade traduz a idéia de controle estatal, sendo este também amplo corolário do Estado de Direito, nos quais somente a lei determina o que deve nortear toda a atividade da administração pública, sendo que este deve sempre visar à defesa do interesse público. Dispõe ainda o art. 1º da CF que o Estado brasileiro, além de ser de Direito é um Estado Democrático. Sendo que este deve ser entendido como aquele em que todo o poder emana do povo e é exercido em nome do povo/ da coletividade (parágrafo único do art. 1º da CF). Ressalta-se que o Estado Democrático tem como primado a supremacia do interesse público sobre o privado, vez que a Administração Pública atua visando ao atendimento dos fins almejados pela sociedade. Nesse contexto, emerge que a atuação Administrativa deve primar pelo princípio da impessoalidade, isto é, ser objetiva e imparcial, tratando a todos de forma isonômica, evitando favorecimentos ilegais e/ou ilegítimos, salvo quando o tratamento igual afronte o princípio da igualdade, nascedouro do princípio da impessoalidade. De outra banda, surge o princípio da publicidade, que serve de mecanismo de controle da atuação da Administração Pública pelos administrados, evitando-se a política do segredo. Desta feita, referido princípio tem o intuito de informar o atuar da Administração. Devemos observar que esse atuar público/transparente da Administração deve ser ainda um atuar reto na condução da coisa pública. Desta feita, o princípio da moralidade é um verdadeiro vetor da atuação do agente público. No que se refere ao principio da eficiência, a atuação Administrativa deve se pautar na busca dos fins desejados pela ordem jurídica com a utilização dos meios e instrumentos eficazes. Afirma Raimundo Márcio Ribeiro Lima “que o gestor da coisa pública não poderá olvidar os valores inerentes ou decorrentes do dever de bem promover as realizações administrativas com eficiência.”[13] Além dos princípios que regem a Administração Pública residentes no caput do art. 37 da CF, o ordenamento jurídico comporta outros princípios. Notadamente a Lei nº 9.784/1999 em seu art. 2º, caput, elenca alguns dos principais princípios infraconstitucionais regentes da Administração Pública. Dado o objetivo deste trabalho, passaremos a analisar apenas dois princípios infraconstitucionais que se ligam diretamente ao estudo do tema proposto, quais sejam: o princípio da motivação e o princípio da segurança jurídica. O princípio da motivação decorre logicamente do Estado Democrático de Direito, vez que como o poder emana do povo e deve ser por este controlado, bem como pelos demais Poderes, sendo que para haver controle se faz necessário verificar a motivação exposta pelo Administrador. O art. 50 da Lei nº 9.784/1999 explicita o dever de motivar e afirma, em seu parágrafo 1º que “a motivação deve ser explícita, clara e congruente”. A Lei nº 9.784/1999 inaugurou o devido processo legal administrativo no âmbito da Administração Federal[14], e consagrou expressamente o princípio da segurança jurídica (art. 2º, caput), vez que “O Direito, enquanto ciência, sempre esteve preocupado com a estabilidade nas relações jurídicas e, notadamente, na consolidação de institutos que expressem essa preocupação.”[15] O silêncio administrativo, isto é, a inatividade formal da Administração ao não se manifestar acerca do peticionado pelo administrado afronta o Estado brasileiro diretamente nas suas qualificações de Democrático e de Direito. 3.2. Garantias constitucionais A Constituição Federal de 1988 além de elencar os princípios de regem a Administração Pública, trouxe disposições que tratam dos direitos e garantias fundamentais dos administrados/cidadãos. O art. 5º, inciso XXXIV, “a”, da Constituição Federal prevê, assegurando que todos terão, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. O inciso antecedente ainda estabelece que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Raimundo Márcio Ribeiro Lima escreve: “A garantia constitucional do direito de petição, rectius art.5º, inciso XXXIV, constitui uma das mais concretas e efetivas formas de consolidação do Estado Democrático de Direito, na medida em que o seu exercício possibilita a concreção de toda uma plêiade de direitos salvaguardados na ordem constitucional vigente, mormente os fundamentais, bem como faz exsurgir uma idéia de Estado pautada numa perspectiva democrática e cravada sobre o império da lei e da legitimidade.”[16] O direito de petição traz como conseqüência direta o direito à obtenção de uma resposta fundamentada da Administração Pública. A Lei nº 9.784/1999 explicitou o direito de decidir nos seguintes termos: “A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência”. (Art. 48) Referido dispositivo deixa claro que a Administração Pública, para cumprir a sua finalidade deve tomar decisões constantes, sendo que, para um Estado Democrático de Direito, não serve apenas decidir, mas sim decidir da melhor forma possível, isto é, com qualidade ao mesmo tempo em que permiti o controle posterior da decisão tomada, assim, a decisão deve ser fundamenta. Observa-se que o dever de fundamentar na atividade administrativa encontra-se expressamente previsto no art. 93, X, da Constituição Federal, que assim dispõe: “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros.” O assunto também é tratado pela Lei nº 9.784/1999 em seu art. 50, que exige que todas as decisões administrativas relevantes sejam motivadas. Raimundo Márcio Ribeiro Lima assevera que: “O caráter garantístico da fundamentação se deve precipuamente à instrumentalização das vias que assegurem cumprimento dos direitos dos administrados, na medida em que, com apresentação da motivação, podem ser devidamente sopesados os aspectos objetivos que vicejam a escolha pública em face do caso concreto apresentado, tudo de forma a evidenciar os eventuais erros, abusos ou desvios no exercício da função administrativa.”[17] Não podemos olvidar que o art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Cidadã assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, que o processo terá uma duração razoável, bem como assegura os meios para garantir referida celeridade. Observa-se que a lei nº 9.784/1999, em total sintonia com o mandamento constitucional, reza que: “Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.” O prazo esculpido no art. 49, acima citado, de acordo com maioria da doutrina, deve ser aplicado quando não havendo regra expressa a acerca do tempo razoável para manifestação da Administração Pública[18].      Nesse passo, oportuno relembrar que um Estado que se denomina de Estado Democrático e de Direito não pode permitir que a Administração Pública ao atuar visando os interesses da coletividade não informe aos administrados o conteúdo das suas decisões ou simplesmente não decida. Outro aspecto que não pode ser suportado em uma Democracia é que na falta de regra expressa quando ao prazo para manifestação da Administração fique o administrado desprotegido. 4. Controle do silêncio administrativo pelo poder judiciário A Constituição Federal de 1988 estabelece no inciso XXXV do artigo 5º que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”[19]. Desta feita, o Poder Judiciário pode controlar os efeitos do silêncio administrativo, não havendo sequer a necessidade de acessar previamente às instâncias administrativas[20]. Alexandre de Moraes escreve que: “Inexiste a obrigatoriedade de esgotamento da instância administrativa para que a parte possa acessar o Judiciário. A Constituição Federal de 1988, diferentemente da anterior, afastou a necessidade da chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, pois já se decidiu pela inexigibilidade de exaurimento das vias administrativas para obter-se o provimento judicial, uma vez que excluiu a permissão, que a Emenda Constitucional nº7 à Constituição anterior estabelecera, de que a lei condicionasse o ingresso em juízo à exaustão das vias administrativas, verdadeiro obstáculo ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário”[21]. Assim, percebe-se que os efeitos do silêncio administrativo, seja ele positivo ou negativo, podem ser controlados pelo Poder Judiciário da mesma forma que os atos administrativos em geral. Isto é, o Judiciário pode controlar os aspectos formais, enquanto que o núcleo do ato administrativo discricionário (conveniência e oportunidade) não pode ser analisado. Celso Antônio explica que: “As conseqüências do silêncio em relação ao administrado cuja postulação ficou irrespondida também não apresentam dificuldades de monta para serem deduzidas. Deveras, nos casos em que a lei atribui dado efeito ao silêncio, o problema já está de per si resolvido. Com efeito, se o efeito legal era concessivo, o administrado estará atendido; se era denegatório, poderá demandar judicialmente que a administração se pronuncie, se o ato omitido era de conteúdo discricionário, pois faz jus a uma decisão motivada; se, pelo contrário, o ato era de conteúdo vinculado e o administrado fazia jus a ele, demandará que o juiz supra a omissão administrativa e lhe defira o postulado.”[22] No entanto, quando ocorre o silêncio administrativo inominado ou não qualificado ou, simplesmente, a inatividade formal da Administração Pública há uma dupla omissão, tanto do administrador, que deixou de decidir o pleito do administrado, quanto do legislador, que não previu uma conseqüência para o silêncio administrativo. Da falta de efeito expresso em relação a este silêncio administrativo, nascem dois problemas, qual seja, à comprovação do interesse jurídico e o alcance do provimento judicial. José dos Santos Carvalho Filho ensina que: “Caso não tenha êxito na via administrativa para obter manifestação comissiva da Administração, não restará para o interessado outra alternativa senão recorrer à via judicial. Diferentemente do que sucede na hipótese em que a lei indica que a omissão significa denegação – hipótese em que se pretende desconstituir relação jurídica-, o interessado deduzirá pedido de natureza mandamental (ou, para alguns, condenatória para cumprimento de obrigação de fazer), o qual, se for acolhido na sentença, implicará a expedição de ordem judicial à autoridade administrativa para que cumpra seu poder-dever de agir e formalize manifestação volitiva expressa, sob pena de desobediência a ordem judicial.”[23] Continua o autor: “(…) não pode o órgão jurisdicional substituir a vontade do órgão administrativo; pode sim, obrigá-lo a emiti-la, se a lei o impuser, arcando o administrador com as conseqüências de eventual descumprimento.”[24] Celso Antônio tem entendimento diferente: “Nos casos em que a lei nada dispõe, as soluções seguem, mutatis mutandis, equivalente diapasão. Decorrido o prazo legal previsto para manifestação administrativa, se houver prazo normativamente estabelecido, ou, não havendo, se já tiver decorrido tempo razoável (cuja dilação em seguida será mencionada), o administrado poderá, conforme a hipótese, demandar judicialmente: a)que o juiz supra a ausência de manifestação administrativa e determine a concessão do que fora postulado, se o administrado tinha direito ao que pedira, isto é, se a Administração estava vinculada quanto ao conteúdo do ato e era obrigatório o deferimento da postulação; b)que o juiz assine prazo para que a Administração se manifeste, sob cominação de multa diária, se a Administração dispunha de discrição administrativa no caso, pois o administrado fazia jus a um pronunciamento motivado, mas tão-somente a isto.”[25]  De fato, parece que se o ato omitido for discricionário não pode o juiz substituir o administrador, podendo apenas determinar que a administração se manifeste em um prazo razoável. No entanto, se o ato for vinculado, poderá o Poder Judiciário conferir prazo razoável para que a Administração responda ao pleito do administrado ou poderá suprir a omissão administrativa, desde que haja comprovação dos requisitos legais que lhe conferem o direito a um pronunciamento favorável. Considerações finais Ante o exposto neste estudo podemos concluir que em um Estado Democrático de Direito todos, inclusive a própria Administração Pública, deve respeitar os preceitos constitucionais e infraconstitucionais. Assim, para que a Constituição Federal tenha concretude se faz necessário que nos casos práticos sejam respeitados os princípios basilares e indispensáveis a uma atuação regular da Administração Pública. Desta feita, ante a falta de norma expressa que trate dos efeitos do silêncio administrativo, vez que em nossa ordem jurídica há apenas regras esparsas[26], é preciso que a própria Administração, bem como os demais atores jurídicos, observe as regras principiológicas e lhe retirem o substrato necessário para o melhor desempenho das funções estatais. Para isto, pode-se socorrer da lei nº 9.784/1999. Cumpre ressaltar que se a Administração Pública ao ser acionada pelo administrado se mantém inerte há uma violação ao próprio Estado Democrático de Direito, sendo que o Poder Judiciário poderá ser chamado para contrabalançar referida violação, conforme explanado em linhas acima.
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Art. 67 da Lei nº 8666/93: Conhecimentos fundamentais para o responsável pelo acompanhamento e fiscalização do contrato administrativo
Este trabalho trata acerca de aspectos pertinentes sobre o art. 67 da Lei nº. 8.666/93, especialmente aos temas relevantes para o representante da Administração que acompanha e fiscaliza o contrato administrativo. O objetivo da análise é descrever a atribuição, a indispensabilidade, a forma de designação, a possibilidade de recusa, o perfil, as principais ações a serem realizadas e a responsabilização desse representante. O desenho de pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa, combinando análise documental e análise bibliográfica. O resultado deste estudo se perfaz na sistematização de conteúdos que são úteis para o agente que realiza o acompanhamento e fiscalização do instrumento público.
Direito Administrativo
Introdução A correta execução desses instrumentos públicos configura como um dos maiores problemas enfrentados pela Administração Pública. Para auxiliar esse momento do processo de contratação a Lei 8666/93 prevê o seguinte: “Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: III – fiscalizar-lhes a execução; Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição. § 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados. § 2º As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes. Art. 73. Executado o contrato, o seu objeto será recebido: I – em se tratando de obras e serviços: a) provisoriamente, pelo responsável por seu acompanhamento e fiscalização, mediante termo circunstanciado, assinado pelas partes em até 15 (quinze) dias da comunicação escrita do contratado; b) definitivamente, por servidor ou comissão designada pela autoridade competente, mediante termo circunstanciado, assinado pelas partes, após o decurso do prazo de observação, ou vistoria que comprove a adequação do objeto aos termos contratuais, observado o disposto no art. 69 desta Lei.” (BRASIL, Lei nº. 8.666/1993). A interpretação conjunta das normas jurídicas descritas acima aponta para a obrigatoriedade (poder-dever) do Estado em acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos. Para concretizar tal desiderato, o art. 67 traz uma inovação, qual seja, a necessidade desse acompanhamento e fiscalização ser realizada por um representante da Administração; designado por pessoa competente, geralmente o ordenador de despesas[1]. Corroborando sobre o assunto o Manual de Licitações e Contratos – Quarta Edição do Tribunal de Contas da União (2010) anuncia o seguinte: “É dever da Administração acompanhar e ficalizar o contrato para verifiar o cumprimento das disposições contratuais, técnicas e administrativas, em todos os seus aspectos, consoante o disposto no art. 67 da Lei nº 8.666/1993. Acompanhamento e ficalização de contrato são medidas poderosas colocadas à disposição do gestor na defesa do interesse público. Toda execução do contrato deve ser ficalizada e acompanhada por representante da Administração.” (BRASIL, Tribunal de Contas da União, 2010, p.780). O agente designado para acompanhar e fiscalizar o contrato deve observar o cumprimento, pela Contratada, do estipulado em sua proposta e das regras previstas no instrumento contratual, bem como o estipulado no processo licitatório[2]. A fim de que a Administração pública concretize os resultados esperados e que o objeto do contrato atenda as suas necessidades da maneira mais vantajosa possível, respeitando a boa técnica e a economia do órgão Contratante. Esse representante da Administração se apresenta como mais uma ferramenta que o Estado possui visando realizar, de maneira eficiente e eficaz, o interesse público pretendido. Logo, resta inegável admitir que o não acompanhamento e fiscalização do contrato administrativo pode acarretar má aplicação do dinheiro público, não atendimento do interesse público, dano ao erário e possível superexposição da Administração Pública perante a sociedade. Ocorre que nem sempre esse responsável possui todas as ferramentas para realizar um eficaz e eficiente acompanhamento e fiscalização dos contratos administrativos. Nesse diapasão, este estudo busca munir esses indivíduos de um arcabouço mínimo de conteúdos importantes para sua atuação, bem como visa contribui para fomentar e consolidar essa agenda de pesquisa nas diversas áreas de interesse. Ante ao exposto, este estudo busca analisar as diversas nuances que afetam o responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos administrativos, previsto no art. 67 da Lei nº. 8.666/93. O objetivo da análise é descrever a atribuição, a indispensabilidade, a forma de designação, a possibilidade de recusa, o perfil, as principais ações a serem realizadas e a responsabilização desse representante. Ademais, a presente pesquisa descritiva utiliza metodologia qualitativa, combinando análise documental e análise bibliográfica. Como resultado buscou-se sistematizar conteúdos que serão úteis para o agente que realiza o acompanhamento e fiscalização de instrumentos públicos. 1. Obrigatoriedade da Fiscalização A obrigatoriedade está delimitada nos artigos da Lei nº 8.666/93 citados na introdução, quais sejam, art. 58, art. 67 e art. 73. Contribuindo com o tema Justen Filho (2005) pondera que o regime de direito administrativo atribui à Administração o poder-dever de fiscalizar a execução do contrato (art. 58, III). Compete à Administração designar um agente seu para acompanhar diretamente a atividade do outro contratante. Dessa forma, o dispositivo deve ser interpretado no sentido de que a fiscalização pela Administração não é mera faculdade assegurada a ela. Trata-se de um dever, a ser exercitado para melhor realizar o interesse público. Parte-se do pressuposto, inclusive, de que a fiscalização induz o contratado a executar de modo mais perfeito os deveres a ele impostos (JUSTEN FILHO, 2005, p. 563). 2. Responsável pelo acompanhamento e fiscalização do Contrato Administrativo A figura prevista no art. 67 da Lei de Licitação se perfaz no agente designado pelo ordenador de despesas (toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos – Decreto-lei Federal nº 200/67, art. 80, § 1°), incumbido de acompanhar a execução do contrato. Assim sendo, deve agir de forma pró-ativa e preventiva observando o cumprimento, pela contratada, das regras previstas no instrumento contratual, bem como do processo licitatório, de dispensa ou inexigibilidade de licitação. A fim de que a Administração Pública efetive os resultados esperados e que o objeto do contrato atenda as suas necessidades. Vale lembrar que o “objeto” exposto no contrato normalmente é citado de forma resumida, sendo, portanto, de extrema importância que esse representante tenha conhecimento preciso do que a Administração deseja com a contratação. Por isso, o Projeto Básico, o Projeto Executivo, o Plano de Trabalho e o Termo de Referência são de fundamental importância para a fiscalização. Acentua-se que o mencionado artigo não estipula uma denominação para esse representante, o que é definido mediante normas infralegais pelos órgãos da Administração Pública. Em uma pesquisa rápida; em vários Manuais, Instruções Normativas e Atos Normativos que disciplinam sobre o acompanhamento e fiscalização de contratos públicos, observou-se uma variedade de denominações desse representante, dentre elas: fiscal de contrato, fiscal administrativo do contrato, fiscal técnico do contrato, gestor de contrato, executor de contrato, gerente de contrato. Apesar dessa diversidade de denominações entende-se que o sistema de acompanhamento e fiscalização de contrato deveria ser estruturado sob dois vetores essenciais: o primeiro ligado a gestão e o segundo a fiscalização propriamente dita. Assim, a gestão deve ser concebida em uma perspectiva macro na organização do órgão, envolvendo um servidor responsável ou um setor responsável que gerenciaria e deteria o poder de agenda que abarcaria todo o sistema de execução dos contratos, aproximando, assim, do significado/conceito de gestão na área Administrativa[3]. Por sua vez, a fiscalização se perfaz, conforme aponta o Guia útil para gestores e fiscais de contratos administrativos, da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” -UNESP (2011): “É a atividade de controle e a inspeção sistemática do objeto contratado (aquisição de bens, prestação de serviços ou execução de obras) pela Administração, com a finalidade de examinar ou verificar se sua execução obedece às especificações previstas no Contrato. Envolve, portanto, responsabilidade com o mérito técnico do que está sendo executado, observadas as condições convencionadas.” (UNESP/SP, 2011, p.13). Elucida, ainda, sobre o tema Alves (2011): “Não se confunda GESTÃO com FISCALIZAÇÃO de contrato. A gestão é o serviço geral de gerenciamento de todos os contratos; a fiscalização é pontual. Na gestão, cuida-se, por exemplo, do reequilíbrio econômico-financeiro, de incidentes relativos a pagamentos, de questões ligadas à documentação, ao controle dos prazos de vencimento, de prorrogação, etc. É um serviço administrativo propriamente dito, que pode ser exercido por uma pessoa ou um setor. Já a fiscalização é exercida necessariamente por um representante da Administração, especialmente designado, como preceitua a lei, que cuidará pontualmente de cada contrato.” (ALVES, 2011, p. 65). Portanto, a diferença da gestão e fiscalização se perfaz no seguinte: a gestão está voltada para a prática de gerenciamento, já a fiscalização é o acompanhamento propriamente dito da execução. Outro fato a ser salientado é que o representante designado para acompanhar e fiscalizar o contrato deve ser um servidor público, sobre o tema o Tribunal de Contas da União (TCU) discorre que: “Designe formalmente um servidor para acompanhar a execução de cada contrato de prestação de serviço, sendo o dito servidor responsável pela observância do fiel cumprimento de todas as cláusulas contratuais e tendo a obrigação de comunicar aos setores de direito quando não acontecer dessa forma, com o propósito de dar cabal cumprimento ao art. 6º do Decreto nº 2.271/1997 e ao art. 67 da Lei nº 8.666/1993.” (BRASIL, Tribunal de Contas da União, Acórdão 555/2005, 2005). Como visto acima, esse representante deve ser um servidor público. Contudo, o art. 67 da Lei nº 8.666/93, prevê a possibilidade de contratação de profissional ou empresa para auxiliar a fiscalização do contrato, o que, aliás, é recomendado nos instrumentos públicos de grande complexidade. 3. Designação A designação recairá, de preferência, sobre o titular da Unidade que tenha conhecimento técnico do objeto do contrato, ou outro que tenha conhecimento do objeto avençado. Ou seja, a escolha deve recair sobre pessoa que tenha um conhecimento técnico suficiente do objeto que está sendo fiscalizado, pois possíveis falhas podem ocasionar prejuízo para a Administração e responsabilização para o representante. A previsão para designação do representante que acompanhará e fiscalizará o contrato administrativo deverá estar, preferencialmente, prevista no processo licitatório e/ou no próprio instrumento contratual e formalizado em termo próprio, no qual constarão as atribuições deste. Exemplo clássico da formalização em termo próprio são as portarias exaradas pelo ordenador de despesas. Deve, ainda, quando da designação desse representante, estar previsto no próprio documento, a nomeação do suplente que exercerá as obrigações no caso de férias ou impedimento do respectivo titular. A Lei 8.666/93 conferiu ao agente fiscalizador autoridade para acompanhar sistematicamente a execução e o desenvolvimento do cumprimento do contrato, o que lhe possibilita corrigir, no âmbito da sua esfera de ação e no tempo certo, eventuais irregularidades ou distorções existentes. Em linhas gerais, a designação, ora detalhada, informará ao representante que o mesmo deverá acompanhar, controlar e fiscalizar o contrato que lhe foi dado em responsabilidade, podendo esta vir acompanhada do contrato e do edital, bem como de algum manual que o órgão instituiu. Alguns órgãos da Administração estão disciplinando o tema de fiscalização e acompanhamento de contrato administrativo de forma que o agente fiscalizador deve ser nomeado já na fase interna da contratação. É necessário afirmar que tal procedimento não é o mais usual, vez que, diante dos estudos dispensados para consolidação do presente trabalho é de se afirmar que a participação do representante da Administração se inicia após a assinatura do contrato. 4. Recusa do Cargo pelo Gestor/Fiscal do Contrato Administrativo. Como já visto, à Administração incumbe, por lei, nomear responsável para o exercício da tarefa de acompanhar e fiscalizar a execução dos seus contratos. Deriva daí a obrigatoriedade legal de ser indicado um servidor para o exercício da missão de bem acompanhar e fiscalizar um contrato firmado pela Administração com o particular. Também é consequência dessa nomeação a imensa responsabilidade conferida ao agente que, consoante o já exposto, pode ensejar, inclusive, responsabilidade na ordem administrativa, civil e penal. Ninguém quer correr riscos e é natural que os indivíduos nomeados para tal incumbência questionem a legitimidade do encargo, muitas vezes alegando que não prestou concurso para ser um agente fiscalizador de contrato. Tal entendimento não pode ocorrer, visto que as designações advindas da Administração Pública, em decorrência de dispositivo legal, não constituem conferir a algum agente atribuição que não estava prevista por ocasião do concurso de ingresso ao cargo. É dever funcional de o agente público cumprir as ordens superiores, representando contra estas quando forem manifestamente ilegais. Sobre o tema Alves (2005) afirma que os estatutos de servidores públicos historicamente indicam os deveres do funcionário, dentre eles o de cumprir as ordens superiores. Como exemplo dessa ilação, no âmbito da Administração Direta Federal, o estatuto dos servidores, Lei 8112/1990, em seu art. 116, elenca como deveres dos servidores o exercício com zelo e dedicação das atribuições do cargo, a lealdade às instituições a que servir, o cumprimento de ordens superiores não manifestamente ilegais e a observância de normas legais e regulamentares. Veja-se que da mesma forma o agente não prestou concurso para compor comissões processantes e, por lei, também está incumbido de realizar este mister. O mesmo autor aponta que o antigo DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público (hoje substituído pelo SEDAP – Secretaria de Administração da Presidência da República) tratou sobre o tema em questão e definiu o seguinte: “A designação para fazer parte de Comissão de Inquérito constitui encargo obrigatório. As escusas que assumem cunho pessoal e consideram a situação dos funcionários, passivamente envolvidos no processo, revelam falta de noção de cumprimento do dever a ausência de espírito público, que impede o servidor o não se isentar de missões espinhosas, exigidas pelo imperativo de moralidade administrativa.” (ALVES, 2005, p. 50). Nesse expediente, o DASP referia-se à obrigação de servidor compor comissão de inquérito ou comissão processante. Porém, o raciocínio é análogo para a execução da função de agente fiscalizador. Tratam-se de obrigações adicionais, indicadas dentre os compromissos dos agentes públicos, não havendo, portanto, possibilidade de ser recusado o encargo. Alves (2005) continua explicando que a recusa somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: “For impedido (parente, conjugue, companheiro) ou suspeito (amigo íntimo, inimigo declarado, recebeu presente ou vantagens, como consumidor, da empresa contratada; tem relação de débito com a empresa ou qualquer tipo de interesse, direto ou indireto, junto ao contratado). Não detém conhecimento específico. Neste caso, deve dirigir-se por escrito à autoridade, dizendo da situação e solicitando a substituição. Se mantido, cumprirá o encargo. Mas, pelo menos, estará resguardo de eventual erro.” (ALVES, 2005, p. 50-51). Na hipótese do agente recusar o encargo que lhe foi atribuído, alegando para isto acúmulo de serviço na atividade principal, deve o mesmo estar ciente do pronunciamento do DASP sobre o assunto: “Quanto a outros interesses do servidor, cumpre à autoridade competente apreciá-lo previamente, não cabendo ao funcionário designado fazer a invocação dos mesmos, para exonerar-se do encargo.” (ALVES, 2005, p. 51) Ademais, idealmente o gestor deve conhecer as atribuições que estão sendo exercidas por cada servidor a ele subordinado. Logo, sua decisão de designar alguém para alguma tarefa teoricamente foi tomada considerando os princípios da legalidade e proporcionalidade. 5. Perfil A legislação não faz referência expressa ao perfil do fiscal do contrato. Contudo, é aconselhável que o servidor designado para tal tarefa seja dotado ou venha adquirir algumas qualificações, bem como possua uma vida pregressa com conduta social-profissional compatível com o exercício da atribuição que exercerá. Nesse diapasão, esta análise adaptará o disposto no Manual de Gestor de Contratos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (2005) [4], assim, o representante deve (a) gozar de boa reputação ético-profissional; b) preferencialmente possuir conhecimentos específicos do objeto a ser fiscalizado; c) ser Pró-Ativo; criterioso e precavido; (d) preferencialmente não haver sido responsabilizado por irregularidades junto ao Tribunal de Contas da União ou Tribunais de Contas de Estado, do DF ou de Municípios; e) não estar, preferencialmente, respondendo a processo de sindicância ou processo administrativo disciplinar; f) não possuir em seus registros funcionais punições em decorrência da prática de atos lesivos ao patrimônio público, em qualquer esfera do governo; g) preferencialmente não haver sido condenado em processos criminais por crimes contra administração pública, capitulados no Título XI, Capítulo I, do Código Penal Brasileiro, na Lei 7.492/1986 e na Lei 8.429/1992. A passagem supramencionada resume bem quais os principais predicados que o agente fiscalizador deve possuir, dessa forma, pode-se observar que os atributos descritos acima compõem tanto características adstritas da própria personalidade do representante que acompanhará e fiscalizará o contrato, quanto compõe características adquiridas durante a sua vida social-profissional. 6. Principais atribuições É imperioso ressaltar que o acompanhamento pelo agente fiscalizador não divide nem tampouco retira da CONTRATADA suas obrigações. Na verdade, o acompanhamento se presta à situar a Administração quanto a correta execução do contrato pela CONTRATADA. Este se estende desde a implementação do objeto contratado, respeitando os prazos estipulados, até o recebimento definitivo. Portanto, a função do representante da Administração é de figurar como um facilitador, pois permite ter uma visão de perto, “in loco”, da execução objeto avençado, com vistas a subsidiar o verdadeiro conhecimento acerca do (des)cumprimento das obrigações da Contratada. As principais atribuições que saltam aos olhos atinentes a figura do art. 67 da Lei de Licitação são: Primeiro, a necessidade de o representante anotar em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados. Essa medida busca dar formalidade ao exercício das atribuições do representante, visto que o documento poderá servir para emissão de relatórios semestrais, mensais ou semanais, conforme o caso. Ensina sobre a presente questão Hely Lopes Meirelles: “O resultado da fiscalização deve ser consignado em livro próprio, para comprovação das inspeções periódicas e do atendimento às recomendações que forem feitas pela Administração. No livro devem ser anotadas também as faltas na execução do contrato, que inclusive poderão ensejar sua rescisão.” (arts. 67, § 1º, e 78, VIII) (MEIRELLES, 2007, p. 235). Segundo, as decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas aos seus superiores em tempo hábil a fim da adoção de medidas convenientes. Essa medida tem haver com o caráter de competência formal, relativas as atribuições expressamente definidas na lei e/ou organograma do órgão em questão. Não pode o representante tomar providências que não sejam de sua alçada, tal qual assinatura de aditivos, interdição de obra e outros, aplicação de sanção, devendo esse tipo de situação ser levada ao conhecimento de quem tem competência formal para tomar tais providências. Terceiro, o agente fiscalizador deve solicitar colaboração dos demais setores de seu órgão caso enfrente alguma situação em que não detêm os conhecimentos técnicos ou intelectuais necessários. Ou ainda, se for o caso, requerer contratação de empresas ou profissionais especializados para assessorar e prestar consultoria sobre o objeto licitado e sua respectiva execução. Quarto, o representante em questão é o principal responsável pelos encaminhamentos necessários após assinado o contrato, ou seja, é de sua responsabilidade, ou o mesmo deve ser consultado, quanto aos assuntos concernentes às alterações de contrato; comunicação com a área responsável informando do término da vigência ou necessidade de nova licitação, desde que em tempo hábil; análise do processo de pagamento discriminando se constam todos os requisitos necessários ou não; encaminhamento dos relatórios que se fizerem necessários; e outros encaminhamentos que surgirem na vigência do contrato. Além disso, são definidas por várias normas infralegais atribuições complementares àquelas descritas acima, dentre elas cita-se as constantes na(o): Instrução Normativa SLTI/MPOG nº 02/2008, com suas devidas alterações; Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos do Ministério da Cultura (2013); Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (2010); Guia útil para gestores e fiscais de contratos administrativos da UNESP (2011); Licitações e contratos: orientações e jurisprudências do TCU – 4º ed. rev., atual. e ampl. (2010); Manual do Gestor/Fiscal de contratos da Universidade Federal da Grande Dourados/MS [entre 1993 e 2008], Manual do Gestor de Contratos STJ (2008), Manual de Gestão de Contratos Universidade Federal de Viçosa MG (2008), Manual do Fiscal de Contratos CEFET SP (2008); Instrução Normativa CGM nº 07/2006 da Prefeitura de Lauro de Freitas/BA (2006); Portaria nº. 29/2004 da Secretaria de Gestão Administrativa do Distrito Federal (2004), dentre outros. 7. Principais ações que devem ser tomada pelo agente fiscalizador Além das atribuições inerentes ao representante responsável pelo acompanhamento e fiscalização de contratos públicos, persistem algumas ações que esse responsável deve realizar rotineiramente. Para demonstrar quais ações centrais o agente fiscalizador deve realizar no acompanhamento e fiscalização do instrumento sob sua responsabilidade, este estudo adaptará o disposto no Manual de Gestão de Contratos do Ministério Público de São Paulo (2004) [5], assim, esse responsável deve: (a) orientar, ou seja, estabelecer diretrizes, dar e receber informações sobre a execução do contrato; (b) fiscalizar, portanto, verificar “in loco” a forma de execução do objeto do contrato, devendo observar o cumprimento, pela contratada, das regras e normas técnicas, científicas e as recomendações dos fabricantes ou artísticas, conforme sejam as previsões do instrumento contratual, em linhas gerais confirmar o cumprimento das obrigações; (c) interditar, paralisando a execução do contrato que esteja em desacordo com o pactuado, devendo emitir expediente devidamente justificado, garantido o contraditório e a ampla defesa; (d) intervir, assumindo atitude pró-ativa de averiguação na execução do contrato, especialmente tomando a iniciativa de notificar, bem como sugerindo ou solicitando abertura de processo para aplicação de sanções administrativas, quando detectada inadimplência contratual, dentre outras; (e) informar, portanto, os agentes fiscalizadores do contrato devem comunicar à autoridade superior as irregularidades detectadas, de acordo com o grau de repercussão no contrato, bem como noticiar os casos de afastamento em virtude de férias, licenças ou outros motivos, para que o substituto possa assumir a fiscalização do contrato, evitando prejuízos, interrupções, suspensão das atividades de fiscalização. Essas diretrizes não são taxativas, contudo são ações que contribuem para um bom acompanhamento e fiscalização dos contratos. Além disso, constam em normas infralegais, tais quais as citadas no tópico anterior, que disciplinam sobre o assunto outras ações que o responsável pela fiscalização deve realizar. 8. Responsabilização Administrativa, Penal e Civil O presente tópico é importante para informar ao representante da administração fiscalizador do contrato que este poderá ser responsabilizado pelas atitudes por ele tomadas no campo das atribuições que lhe foram concedidas, pois os órgãos fiscalizadores e a sociedade, como um todo, estão a monitorar os atos da Administração Pública, principalmente aqueles que envolvem recurso financeiro. Portanto, o agente fiscalizador, por força de atribuições formalmente estatuídas, tem particulares deveres que, se não cumpridos, poderão resultar em responsabilização civil, penal e administrativa, que, podem cumular-se entre si. Antes de qualquer análise é necessário acentuar que a Lei 8.666/1993 expressa, em seu art. 82, que “os agentes administrativos que praticarem atos em desacordo com os preceitos desta lei ou visando a frustrar os objetivos da licitação sujeitam-se às sanções previstas nesta lei e nos regulamentos próprios, sem prejuízo das responsabilidades civil e criminal que seu ato ensejar” (BRASIL, Lei nº 8.666/1993). Nesse ínterim, segue, abaixo, considerações básicas sobre o assunto. Quanto à responsabilização administrativa, ressalta-se que há previsão, nos estatutos de servidores públicos, de penalidades a serem aplicadas aos servidores quando esses atuam de forma ilegal ou irregular. Como exemplo cita-se a Lei 8.112/1990 que, em seu artigo 127, prevê as penalidades disciplinares a serem aplicadas aos servidores pelo exercício irregular de atribuições a eles afetas, que são: a) advertência; b) suspensão; c) demissão; d) cassação de aposentadoria ou disponibilidade; e) destituição de cargo em comissão; f) destituição de função comissionada. Salienta-se que para a aplicação de qualquer penalidade administrativa deve ser observado e respeitado o devido processo administrativo, a natureza e a gravidade da infração cometida, bem como os danos que dela provierem para o serviço público. Quanto à responsabilização civil, assenta-se na regra segundo a qual todo aquele que causa dano a outrem, em razão de ato ilícito, é obrigado a repará-lo[6]. Ou seja, refere-se a obrigação de reparar o dano, por todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, imprudência, imperícia ou negligência, violar direito ou causar prejuízo a outrem. Assim, o agente fiscalizador poderá, através de seus atos, gerar prejuízos, que podem ser ao Erário, à empresa contratada ou mesmo a terceiros que não figuravam no contrato. Nesse diapasão, esse prejuízo de âmbito civil pode resultar em um processo judicial. Logo, em caso de dano à Contratada, apesar de possível, essa dificilmente incluirá o representante da administração como polo passivo em um processo na esfera civil contra o Estado, pois, se o fizer, terá necessariamente que discutir a questão da culpa na ação ou a omissão. Assim, é mais vantajoso para a Contratada discutir a lide somente com o Estado. Na mesma medida ocorre em caso de dano a terceiros, com uma ressalva, aqui pode ser discutida questões de responsabilidade objetiva do Estado, que dificulta, ainda mais a possibilidade da inclusão do representante na lide. Por outro lado, segundo Kairala Filho (2009) a União, quando judicialmente demandada, pode também, ao menos para alguns doutrinadores, chamar o seu representante ao processo, através do instituto processual denominado denunciação da lide[7]. Essa também é uma situação difícil de ser observada. De todo modo, em caso de derrota do Estado em qualquer um dos citados processos judiciais, este tem o poder de acionar o servidor para a recomposição do prejuízo percebido. Conforme delimitado acima, resta demonstrada a possibilidade do representante da administração responder na esfera civil pelos seus atos, e, dependendo do encaminhamento e resultado do processo, esse pode ter seu patrimônio pessoal atingido. No que se refere à responsabilidade penal, esta abrange os crimes e as contravenções imputadas ao servidor nessa qualidade, conforme preconiza o artigo 123 da Lei nº. 2.848/1940. Dessa forma, a responsabilidade penal incidirá quando a falta cometida pelo servidor for capitulada como crime ou contravenção. Ou seja, quando cometido um ilícito penal, dentre os quais se incluem os atos de improbidade administrativa previstos na Lei nº. 8.429/1992 e as infrações penais descritas na Lei nº. 8.666/1993. Ocorrendo qualquer ilicitude penal, o agente pode ser acometido de penas criminais em suas diversas modalidades, inclusive a restritiva de liberdade. Além disso, no caso de comissão de sindicância ou de processo administrativo disciplinar concluir pela ocorrência de infração penal, os autos deverão ser encaminhados ao Ministério Público para as providências competentes a esse. Cabe expressar uma particularidade da responsabilidade penal que afeta a responsabilidade administrativa. O art. 126 da lei nº 8.112/1990 estabelece uma regra a independências das instâncias administrativa e penal, quando tratarem do mesmo objeto. Assim, se é afastada a responsabilidade na esfera criminal será, também, afastada a responsabilidade na esfera administrativa. Eis o teor do art. 126: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria” (BRASIL, Lei nº. 8.112/1990). Ante ao exposto, é necessário reconhecer que este tópico se mostra um dos mais emblemáticos dentre os desenvolvidos por esta pesquisa. Visto que, expõe, de maneira enfática, toda a responsabilidade que o representante pelo acompanhamento e fiscalização de contrato possui. Por tal desiderato, este estudo se revela de extrema importância, pois, a fiscalização ineficiente dos instrumentos públicos pode acarretar, além de prejuízos para a sociedade como um todo, responsabilização cumulativa do agente fiscalizador na esfera administrativa, penal e civil. Conclusão O representante da administração incumbido de acompanhar e fiscalizar o contrato administrativo se revela um instrumento poderoso para que os órgãos do Estado possam atender, de forma eficiente e eficaz, o interesse público pretendido. Dessa forma, constantemente vários servidores da Administração Pública são designados para realizar o acompanhamento e fiscalização de contrato. Nesse momento, muitos desses servidores percebem que pouco, ou nunca, tiveram contato com o tema em questão, resultando em um sentimento insegurança para atender plenamente as atribuições inerentes a essa função. Nessa perspectiva, este estudo procurou sistematizar temas importantes que serão úteis para o agente que realiza o acompanhamento e fiscalização de contratos públicos. Logo, buscou-se descrever, de maneira clara e didática, a atribuição, a indispensabilidade, a forma de designação, a possibilidade de recusa, o perfil, as principais ações a serem realizadas e a responsabilização desse representante. Como resultado, obteve-se um estudo que apontou noções básicas que o agente fiscalizador deve possuir, possibilitando a esse representante agregar conhecimento para desenvolver corretamente as suas atribuições.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/art-67-da-lei-n-8666-93-conhecimentos-fundamentais-para-o-responsavel-pelo-acompanhamento-e-fiscalizacao-do-contrato-administrativo/
Vedação à participação de parentes no processo licitatório
O presente estudo visa analisar a relação de parentesco no processo licitatório, com relação aos licitantes que são parentes de gestores públicos, abordando a questão da legalidade, moralidade e isonomia na participação do certame, e sua vedação ou não. A moralidade pública, é o que motivou esse trabalho, a fim de resguardar o interesse público, evitar e dificultar fraude à licitação, por conluio entre o licitante e o gestor.   Foi realizado uma pesquisa exploratória bibliográfica, valendo-se de livros científicos na área do Direito e Licitação Pública, artigos da internet, teses científicas, jurisprudência e análise de fatos, para entender a relação parental no procedimento licitatório. Servidores públicos que atuam na área de licitação, principalmente na elaboração de editais, terão maior clareza sobre a participação de parente de gestor no procedimento de licitação, e poderão se valer de argumentos e estudos apresentados nesse trabalho para defender a moralidade pública e a isonomia entre os licitantes.
Direito Administrativo
1. INTRODUÇÃO A gestão da res publica1 tem ganhado contornos importantes ultimamente, frente a uma população indignada com má aplicação do dinheiro público, seguida de uma administração deficitária, principalmente na área da saúde, educação e segurança, com corrupções e desvios de dinheiro. Para coibir tal deficiência há a fiscalização dos órgãos competentes, com a ajuda de leis que dificultam tais desvios de condutas. A lei 8.666/93, lei geral de licitações, é um exemplo de norma que orienta a conduta do gestor na contratação do particular com a Administração. Foi constituída de forma que os princípios basilares do direito administrativo, como legalidade, isonomia, moralidade, entre outros, fossem respeitados, concernente à contratação da administração pública com o particular na execução de obras e serviços, para que o dinheiro público fosse corretamente empregado, evitando desvios de verbas e má administração. Como afirma CARVALHO FILHO (2011) a licitação antecede o contrato administrativo, que poderá ou não ser executado, uma vez que, vencendo o procedimento licitatório, há uma expectativa de direito ao particular de ver seu contrato assinado, direito subjetivo à preferência na contratação. A regra é que qualquer pessoa, desde que capaz, possa participar do processo licitatório e ao final do certame, o vencedor do procedimento possa contratar com a Administração Pública. Mas a lei 8.666/93, em seu artigo 9º, trouxe algumas exceções, alguns impedimentos ao particular em participar do procedimento licitatório, visando evitar ofensas aos princípios da moralidade e igualdade. “Art. 9 – Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: I – o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica; II – empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado; III – servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação. § 1o É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada. § 2o O disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração. § 3o Considera–se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo–se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários. § 4o O disposto no parágrafo anterior aplica–se aos membros da comissão de licitação”. (BRASIL, 1993) Esse dispositivo visa garantir que a conduta do gestor seja honesta, sem desvio do interesse pública para beneficiar interesse próprio ou de terceiro. A contratação na execução de obras e serviços com o particular deve ser transparente, sem pontos obscuros, que possam indicar ofensa à moralidade pública. Na prática têm surgido algumas divergências, alguns intérpretes da lei tem entendido que o rol é taxativo, não comportando ampliação das exceções. Ao passo que, outros defendem que fundamentados nos princípios da moralidade, isonomia, supremacia do interesse público, entre outros, pode ocorrer extensão dessas exceções, .  Nesse ponto, reside o enfoque desse trabalho, com relação a ampliação das exceções, ao passo que a morma em comento nada diz sobre a vedação da relação de parentesco entre o licitante e o gestor público. Para entender melhor a questão, como exemplo cita-se o caso em que o irmão do prefeito se habilita para participar do procedimento licitatório, haveria nesse caso objeção à disputa do certame? BULOS (2008), afirmando que o artigo 9º é taxativo, e como a administração, frente ao princípio da legalidade, só pode fazer o que a lei determina, não haverá qualquer impedimento no caso citado. Já JUSTEN FILHO (2009), entende que o rol é exemplificativo, podendo alcançar outras situações, pois o alicerce se funda nos princípios da moralidade e isonomia. E o princípio assim pode ser entendido como mais importante do que a norma. “Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema subversão aos seus valores fundamentais” (BANDEIRA DE MELO, 2004). Nessa esteira, “O vínculo do autor do projeto pode, inclusive, configurar-se de modo “indireto”, tal como previsto no § 3º. A regra legal é ampla e deve reputar-se como meramente exemplificativa. O texto chega a ser repetitivo, demonstrando a intenção de abarcar todas as hipóteses possíveis. Deve-se nortear a interpretação do dispositivo por um princípio fundamental: existindo vínculos entre o autor do projeto e uma empresa, que reduzam a independência daquele ou permitam uma situação privilegiada para essa, verifica-se o impedimento. Por isso, a vedação aplicar-se-á mesmo quando se configurar outra hipótese não expressamente prevista. Isso se dará em todas as hipóteses em que a empresa estiver subordinada à influência do autor do projeto. Assim se poderá configurar, por exemplo, quando o cônjuge do autor do projeto detiver controle de sociedade interessada em participar da licitação. Em suma, sempre que houver possibilidade de influência sobre a conduta futura de licitante, estará presente uma espécie de “suspeição”, provocando a incidência da vedação contida no dispositivo. A questão será enfrentada segundo o princípio da moralidade. É desnecessário um elemento exaustivo por parte da Lei. O risco de comprometimento da moralidade será suficiente para aplicação da regra”. (JUSTEN FILHO, 2009) A problemática é muito mais profunda, pois em alguns casos, percebe-se que o gestor tenta camuflar o procedimento licitatório, para alcançar fim diverso do interesse público, beneficiando a si ou parentes. Casos envolvendo a relação de parentesco no procedimento licitatório chegam ao Tribunal de Contas, que exercem entre outras atribuições a fiscalização das contas públicas, e apuram irregularidades na licitação. O Tribunal de Contas tende a ser mais criterioso e rigoroso em situações envolvendo relação de parentesco entre o licitante e gestor, e em alguns fatos ampliam a exceção do artigo 9º. A Justiça Pública, também tem analisado tais situações seja na apuração de improbidade administrativa ou até mesmo impugnações de editais que preveem vedação à participação de parentes de gestores, caminhando as decisões no sentido que esta condição tem que ser demonstrada a fim de invalidar o procedimento, não bastando por si só, a condição parental. Surgem assim, aqueles administradores, que tentam ser zelosos com o bem público, que expressamente colocam no edital vedação à participação de parentes dos gestores ou até mesmo parentesco entre os licitantes, nesse último caso, visam proibir a combinação de preços nos lances ofertados, fraudando o procedimento. Será que há ofensa ao princípio constitucional da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o fato de a pessoa ser parente do gestor, e não poder participar da licitação, por ter acesso a informações privilegiadas. Estaria esta situação sendo tratada de forma isonômica. A moralidade2 pública também prevista na Constituição estaria sendo ofendida? Essa questão se mostra controvertida e será objeto desse trabalho, tendo em vista sua importância.  Esse estudo visa analisar a lei de licitações, no que diz respeito à contratação de parente de gestor com a Administração Pública, a fim de evitar a prática de corrupção e desvios de dinheiro público3. A relevância reside no fato de que gestores burlam o objetivo da lei de licitação, ao permitirem que parentes participem do processo licitatório, ofendendo o princípio da moralidade, fornecendo informações importantes que conduzem à vitória do certame, e nesse caso há desvio de finalidade, ao beneficiar parentes, e até mesmo os próprios gestores, ofendendo os princípios da moralidade e isonomia. Servidores públicos que atuam na área de licitação, principalmente na elaboração de editais, terão maior clareza sobre a participação de parente de gestor no procedimento de licitação, e poderão se valer de argumentos e estudos apresentados nesse trabalho para defender a moralidade pública e a isonomia entre os licitantes. Esse trabalho trará uma análise mais detalhada dos pontos acima mencionados trazendo entendimentos dos Tribunais sobre a matéria, artigos jurídicos e até projetos de lei que tentam corrigir essas distorções. Dessa maneira, o objetivo está na analise da viabilidade da participação parental nos procedimentos licitatórios, apontando a melhor orientação a ser seguida no que diz respeito à vedação do parentesco. 2. COMENTÁRIOS À LEI DE LICITAÇÃO PÚBLICA Através da licitação pública a Administração irá permitir que particulares participem de um procedimento, em que será analisada a proposta que melhor atenda ao interesse  público, na contratação para execução de obras e serviços, e esse procedimento é uma garantia de que a moralidade, impessoalidade e isonomia serão garantidos, evitando que  o gestor escolha ao seu livre alvidre, devendo ser observados critérios definidos na lei O artigo 3º da Lei 8.666/93, assim define licitação pública. “Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”. Na definição de CARVALHO FILHO (2011), licitação é o “procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico”. Esse procedimento é que vai legitimar a celebração de um contrato administrativo. A principal finalidade ou objetivo desse procedimento é dar à Administração Pública a possibilidade de selecionar a melhor proposta, a proposta mais vantajosa para o interesse público. Mas, nem sempre a melhor proposta é a de melhor preço, pode ser a de melhor técnica ou a de melhor técnica e o melhor preço. Outra finalidade da licitação é dar a qualquer pessoa que preencha os requisitos legais a oportunidade de contratar com a Administração Pública, seguindo o princípio da impessoalidade. O artigo 1º da Lei 8.666/93 traz o rol dos entes que devem licitar, como a Administração Direta, composta pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e a Administração Indireta, Autarquias, Fundações Públicas, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista. O artigo 22, XXVII, da Constituição da República de 1988, diz que compete à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratos. Essa competência exercida é de âmbito nacional. As leis de normas gerais servem para todos os entes da Federação, é uma competência de âmbito nacional. A União legisla sobre normas gerais. Os demais entes podem legislar sobre as normas específicas, sendo sua competência também específica – de âmbito estadual, municipal ou distrital. 2.1.  Princípios Para uma melhor análise do enfoque desse trabalho, há a necessidade de serem relacionados os princípios gerais da administração pública e os específicos da Lei de Licitações. Na definição de CARVALHO FILHO (2011), princípios podem assim ser definidos: “Princípios administrativos são os postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da Administração Pública. Representam cânones pré-normativos, norteando a conduta do Estado quando no exercício de atividades administrativas. A doutrina moderna tem-se detido, para a obtenção do melhor processo de interpretação, no estudo da configuração das normas jurídicas….admitem classificação em duas categorias básicas: os princípios e as regras. As regras são operadas de modo disjuntivo, vale dizer, o conflito entre elas é dirimido no plano da validade: aplicáveis ambas a uma mesma situação, uma delas apenas a regulará, atribuindo-se à outra o caráter de nulidade. Os princípios, ao revés, não se excluem do ordenamento jurídico na hipótese de conflito: dotados que são de determinado valor ou razão, o conflito entre eles admite a adoção do critério da ponderação de valores (ou ponderação de interesses), vale dizer, deverá o intérprete averiguar a qual deles, na hipótese sub examine, será atribuído grau de preponderância. Não há, porém, nulificação do princípio postergado; este, em outra hipótese e mediante nova ponderação de valores, poderá ser o preponderante, afastando-se o outro princípio em conflito”. 2.1.1. Princípios Gerais da Administração  Pública O procedimento licitatório possui princípios específicos, mas antes de analisá-los, necessário se faz entender os princípios gerais da Administração Pública, uma vez que também são aplicados a esse processo. Princípios gerais: a) supremacia do interesse público: representa uma relação de verticalidade entre o interesse público e o particular, de modo que deve prevalecer o interesse público. A finalidade do Estado é a busca do bem comum, o interesse público. E isso só é possível porque existe essa superioridade do poder público frente ao particular. b) indisponibilidade do interesse público: o interesse público não pode ser disposto livremente pelo administrador, que deve sempre atuar dentro dos estritos limites da lei. O administrador exerce função pública, munus publicum4, ele atua em nome da coletividade, em nome do povo, por isso, ele precisa buscar o interesse do povo, e quem descreve esse interesse é a lei. c) legalidade: o administrador só pode fazer o que a lei determina ou autoriza, o que está positivado no ordenamento jurídico. É o critério de subordinação à lei em sentido lato sensu5, uma vez que nesse contexto estão inseridos a Constituição, emendas à Constituição, lei ordinária, lei complementar, lei delegada, medida provisória, decretos legislativos e resoluções. d) isonomia: é um dos alicerces da administração pública, e principalmente da Lei de Licitação, uma vez que assegura igualdade de condições a todos interessados em participar do procedimento, vedando condições que favoreça determinado licitante em detrimento dos demais. e) impessoalidade: é a ausência de subjetividade. É preciso tratar todos de maneira que não são se beneficie alguns a prejuízo de outros. É preciso agir de forma impessoal. Por isso existem alguns mecanismos como o concurso público e a licitação. Dentro desse princípio, é que está inserido o nepotismo6, que é a contratação de parentes de gestores públicos para exercerem cargos comissionados na Administração, e como surgiram questionamentos no Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, foi editada a súmula vinculante 13. “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.” A referida súmula faz menção a exercício de cargo em comissão ou de confiança, sendo omissão em relação à participação em procedimento licitatório. f) finalidade:princípio que visa o espírito da lei, aquilo que a lei quer alcançar, que sempre irá ser o interesse público. Caso haja ofensa a esse princípio poderá ocorrer desvio de finalidade, que é uma ilegalidade. g) moralidade: o administrador precisa agir com preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve distinguir o que é honesto do que é desonesto, conduzir  suas ações com boa-fé, com probidade, lealdade, só assim conseguirá alcançar o conceito da boa-administração.  “A licitação veio prevenir eventuais condutas de improbidade por parte do administrador, algumas vezes curvados a acenos ilegítimos por parte de particulares, outras levados por sua própria deslealdade para com a Administração e a coletividade que representa. Daí a vedação que se lhe impõe, de optar por determinado particular. Seu dever é o de realizar o procedimento para que o contrato seja firmado com aquele que apresentar a melhor proposta. Nesse ponto, a moralidade administrativa se toca com o próprio princípio da impessoalidade, também insculpido no art. 37, caput, da Constituição, porque, quando o administrador não favorece este ou aquele interessado, está, ipso facto, dispensando tratamento impessoal a todos”. (CARVALHO FILHO, 2011) O artigo 37, § 4º, da Constituição do Brasil de 1988, elenca uma lista de penalidades ao administrador que agir de forma improba, “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. O administrador que não atua dentro da moralidade, poderá incorrer nas iras da Lei 8.429/92, que trata da improbidade administrativa. h) publicidade: Aos atos administrativos deve se dá publicidade, para que os administrados tenham ciência daquilo que está sendo praticado na máquina administrativa, para efeitos de eficácia7, controle e prazo. i) eficiência: introduzido pela Emenda Constitucional n. 19 de 1998, visa que o administrador busque a maneira mais eficiente para administrar o bem público. 2.1.2. Princípios Específicos que Regem a Lei de Licitação Além dos princípios gerais da Administração Pública, que são aplicados à Lei de Licitações, há princípios específicos, que regem as peculiaridades desse procedimento, e que exigem fiel observância. Princípios específicos: a) vinculação ao instrumento convocatório:O administrador só pode exigir o que estiver estabelecido no edital. O edital é a lei da licitação. b) julgamento objetivo: o edital deve prever de forma clara e precisa qual será o critério de julgamento, de seleção, como técnica, preço, técnica e preço. c) procedimento formal: O procedimento de licitação tem várias etapas e exigências previstas em lei e que devem ser seguidos, obrigatoriamente. As formalidades previstas na lei devem ser seguidas. d) sigilo das propostas: as propostas são sigilosas até o momento de sua abertura, em sessão pública. Existe uma modalidade de licitação que não tem sigilo de propostas: o leilão, já que os lances são verbais. e) competitividade: a administração não pode criar regras ou adotar medidas que comprometam, frustrem ou restrinjam o caráter competitivo da licitação. 3. METODOLOGIA O presente estudo contou com a realização de uma pesquisa exploratória bibliográfica, valendo-se de livros científicos na área do Direito e Licitação Pública, artigos da internet, teses científicas e jurisprudências, para entender a relação parental no procedimento licitatório. Dessa forma, a pesquisa pôde ser realizada, primariamente, através da lei 8.666/93, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências, buscando encontrar a normatização da participação de parentes no procedimento licitatório, entre outras legislações esparsas, como a Lei 8.429/92 que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. Foi feito uma leitura da Lei 8.666/93, e não encontrando qualquer referência à relação de parentesco no procedimento licitatório, foi feito uma pesquisa no sitio de pesquisa www.google.com.br, para encontrar obras de autores que tratavam da matéria. Após a leitura dessas obras, percebeu que realmente a Lei de Licitações não tratava explicitamente da matéria, havendo duas vertentes sobre o entendimento do artigo 9º da referida lei, que fazia referência aos impedimentos, sendo que a encampada por BULOS (2008) defende que o rol é taxativo não comportando exceções, já JUSTEN FILHO (2011) trata o dispositivo como exemplificativo, podendo abarcar outras situações não elencadas. O sitios dos Tribunais Federais e Estaduais foram explorados com o intuito de encontrar jurisprudência sobre a matéria, e correlacioná-las nesse trabalho. Jurisprudências oriundas do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, http://www.tce.mg.gov.br, do Tribunal de Contas da União, http://portal2.tcu.gov.br/TCU, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, http://www.tjmg.jus.br, do Superior Tribunal de Justiça, http://www.stj.jus.br, e do Supremo Tribunal Federal, http://www.stf.jus.br, disponibilizadas no sitio institucional do respectivo tribunal, com o intuito de analisar como a matéria tem sido tratada nesses órgãos, o que possibilitou reunir julgados que apontem para um entendimento que tem se firmado, no sentido de que a relação de parente do gestor, por si só, não é óbice para participar do processo licitatório. Essa pesquisa primária possibilitou delimitar o estudo, instigando a pesquisa com relação à participação de parentes na licitação pública. De posse desse material, foi realizada uma interpretação jurídica do artigo 9º da Lei de Licitações, que trata dos impedidos em participarem do procedimento licitatório, mais especificamente no parágrafo terceiro, percebendo que o respectivo dispositivo comportava duas interpretações uma restritiva e outra extensiva, buscando o significado jurídico gramatical e sistemático, o que possibilitou maior entendimento da questão. E com isso, pretende-se explicar que, falta regulamentação legislativa, de âmbito geral, que detalhe a  participação de parentes do gestor no procedimento licitatório, apesar de haver orientações nos dois sentidos da impossibilidade e da possibilidade de participação na licitação, na visão de doutrinadores que analisam a matéria. Para dirimir essa divergência na interpretação da norma, há a necessidade de uma correção pelo legislativo, através da criação de uma lei, melhor explicando a questão da relação de parentesco no procedimento licitatório, sem deixar sombras de dúvidas, ou a pacificação de jurisprudências das Cortes Judiciais e Administrativas, especialmente com edição de súmula que vincule a Administração Pública . 4. IMPEDIDOS DE PARTICIPAREM DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO: ANÁLISE DO ARTIGO 9º DA LEI 8.666/93 A relação dos impedidos de participarem do procedimento licitatório está elencada no artigo 9º da Lei 8.666/93. Essa vedação estende-se à licitação ou execução de obra ou serviço, bem como do fornecimento de bens a eles necessários. Analisando referido artigo chega-se aos seguintes quadros explicativos: O artigo faz referência ao impedimento da participação direta ou indireta. E a participação indireta pode ser entendida como a existência de qualquer vínculo entre o autor do projeto e o licitante, de natureza: ·  técnica; ·  comercial; ·  econômica; ·  financeira; ·  trabalhista. O autor do projeto e a empresa responsável pelo projeto só podem participar da licitação, desde que a serviço da Administração interessada nas seguintes situações. Pelo método de interpretação da norma legal, conforme BETIOLI (2011), a leitura do referido artigo à luz de um resultado de interpretação literal, não há menção no texto legal de vedação a parente participar da licitação, com relação ao autor do projeto, servidor, dirigente ou autor do projeto com participação em empresa. Sendo assim, não haveria qualquer impedimento a parente de gestor participar do processo licitatório. Mas, buscando o significado jurídico pelo método sistemático, em uma análise dentro de um conjunto de normas, em sintonia com a Constituição Federal e demais leis, chega-se ao resultado de uma interpretação extensiva, podendo ser interpretado de forma a alcançar a vedação imposta a parente de gestor público. O § 3º, do artigo 9º, da Lei 8.666/93, dispõe que: “Considera-se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo-se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários.” (sem grifo no original) O termo “qualquer vínculo” é amplo e indeterminado, e através dele pode ser entendido que o referido dispositivo apenas cita alguns exemplos como vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista, não conseguindo o legislador prever todos os vínculos possíveis, por isso ele disse “qualquer vínculo”, cabendo à comissão julgadora do processo licitatório, decidir fundamentadamente, se o vínculo entre o licitante e o gestor público é uma causa de impedimento à luz dos princípios administrativos e da Lei de Licitações, como a moralidade, isonomia e impessoalidade. Buscando o significado jurídico das palavras, em uma análise gramatical, o § 3º, do artigo 9º, da Lei 8.666/93, pode ser entendido como exemplificativo, caso contrário, não traria  o termo “qualquer”, e quando fala em “autor do projeto”, também se refere ao gestor público, pois ele é quem é o responsável para a realização do projeto, mesmo quem não seja ele quem o idealizou, mas é o que gere a Administração Pública. 5. RELAÇÕES DE PARENTESCO NA LEI DE LICITAÇÃO O Código Civil de 2002, em seu artigo 1591 e seguintes, define a relação de parentesco em linha reta como sendo as pessoas que são ascendentes e descendentes umas para com as outras, em linha colateral ou transversal, as que não descendem uma da outra, mas que emanam de um só tronco, e por afinidade os ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge ou companheiro. Segundo o código a relação colateral se estende até o 4º grau, já a súmula vinculante 138, faz menção até o 3º grau A Lei de Licitação ao disciplinar as situações em que o licitante estaria impedido de participar do procedimento, não fez menção às relações de parentesco, limitando a especificar algumas situações, como a de pessoas que criaram o projeto, ou tenham vínculo técnico, comercial com esses, dentre outros elencados no artigo 9º. “Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: I – o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica; II – empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado; III – servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação. § 1º É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada. § 2º O disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração. § 3º Considera‑se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo‑se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários. (sem grifo no original) § 4o O disposto no parágrafo anterior aplica‑se aos membros da comissão de licitação.” Esse rol é taxativo no entendimento de BULOS (2008), não podendo a Administração Pública acrescer outras hipóteses de impedimento, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, que impõe conduta ao Ente Público de só fazer o que a lei determina, devendo ser interpretado restritivamente. “O mesmo se diga quanto ao art. 9º da Lei n. 8.666/93. Seguramente, sua exegese restritiva é um imperativo de bom senso, sob pena de se conspurcar o escopo do art. 37, XXI, da Constituição da República, que não tolera, nem admite, alargamentos inconstitucionais, burlando-se o significado e o alcance de hipóteses legais, consagradas em enunciações numerus clausus, a exemplo daquelas prescritas no indigitado art. 9º. (…) o que se busca é a satisfação do interesse particular, através de prestações positivas por parte do Estado, sem que isso leve ao sacrifício de toda a sociedade”.  JUSTEN FILHO (2009), entende que o rol é exemplificativo, podendo a administrador vedar situações que possam colidir com os princípio da administração pública: “Nem se diga que as regras restritivas devem ser interpretadas restritivamente. Esse princípio de interpretação não é absoluto, mas é completado por outros princípios” Esse autor acredita que a participação de licitante parente de gestor no processo licitatório, pode configurar favorecimento pessoal, invocando a supremacia do interesse público sobre o interesse particular, a moralidade pública e probidade administrativa, e a ofensa a esses princípios acarretará a invalidação do certame. “É vedado ao administrador superpor um interesse particular (próprio ou de terceiro) ao interesse coletivo. Diante do conflito de interesses, o administrador deve sempre agir com lealdade para com o interesse coletivo. A moralidade e a probidade acarretam impossibilidade de vantagens pessoais serem extraídas pelo administrador. Por igual, estão proibidas vantagens ou prejuízos decorrentes de preferências pessoais dos titulares de funções públicas. Mesmo que não retirem, direta ou indiretamente, qualquer benefício, os administradores praticam atos inválidos quando interferem no destino da licitação para beneficiar ou prejudicar concorrente (…) Havendo conluio ou composição entre os licitantes, estarão frustrados os princípios da moralidade e da probidade. Deverá invalidar o certame, punindo-se os responsáveis.” (JUSTEN FILHO, 2009) Já o Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 607/11/Plenário9 traz uma postura mais rigorosa, ao analisar uma Representação interposta pela Câmara Municipal de Marataízes/ES, concluiu que a contratação de empresa pertencente ao sobrinho do prefeito fere os princípios da moralidade e da isonomia, fundamentando que violar um princípio é mais grave do que violar a norma. A participação de licitante que possua relação de parentesco com o gestor ou pessoas envolvidos no procedimento licitatório poderia incidir em ofensa aos princípios da moralidade e impessoalidade, ao passo que o administrador poderia passar informações relevantes e privilegiadas ao licitante parental, contribuindo para que esse pudesse vencer o processo, o que restaria comprovada o crime de fraude, conforme artigo 90 da lei de licitações “Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”. A prova para configuração do crime de fraude, é de difícil produção, uma vez que os envolvidos conhecem mecanismos para burlar o sistema, deveria ter uma presunção relativa de fraude, para impedir licitante parental em participar do procedimento, mas que fosse estipulado até que grau seria este impedimento, se for à esteira da súmula vinculante 13 do STF, até o 3º grau, se for ao Código Civil até o 4º grau, mas em ambos já haveria maior proteção à moralidade pública. Outra forma de fraude seria a combinação ou ajuste de valores entre os licitantes, objetivando vencer o procedimento, que também é de difícil comprovação, mas se eles forem parentais, a presunção dessa pratica se torna relativa, o que deveria ser proibido se entendermos na esteira de MELO (2004) que a ofensa a um princípio é mais grave do que a ofensa à norma, pois haveria dúvidas substanciais de que a moralidade, isonomia e impessoalidade estariam sendo violadas. Tal vedação poderia ser vista como uma forma de preservar a res publica10, invocando a supremacia do interesse público sobre o particular, visando garantir a moralidade da administração, isonomia e impessoalidade em relação aos administrados, não acarretando ofensa ao princípio fundamental dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Constituição do Brasil de 1988), uma vez que seria uma restrição só para aquela licitação envolvendo licitante parental, nada impedindo que exerça suas atividades, podendo inclusive participar de outros procedimentos, desde que não haja parente. Destarte, livre iniciativa deve ser entendida como a garantia de que todos possam participar de um procedimento isonômico, exercendo atividade econômica, dentro da regulação do Estado, constituindo a concorrência desleal e abuso de poder ofensa a tal princípio. O licitante parental é uma forma de concorrência desleal, uma vez que poderá ter acesso a informações importantes, no caso de parente de gestor ou responsável pelo procedimento licitatório, ou até mesmo poderá combinar lances com licitantes parentais, que também configuraria concorrência desleal. Nos termos do artigo art. 173, § 4º, da Constituição da República de 1988, “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” A participação de licitante parental gera dominação de mercados, prejudicando uma concorrência igualitária. Por fim, a lei 12.462/11, que disciplina o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, para licitações e consequentes obras, serviços e atividades voltadas à Copa do Mundo Fifa 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016, de forma tímida, acrescentou a proibição de contratar com o Poder Público de pessoas jurídicas ou físicas que possuem relação de parentesco com gestores públicos, mas foi só nos casos em que a contratação for feita sem licitação, apesar de ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 465511, por apresentar inconstitucionalidade formal e vício material na visão do então Procurador Geral da República Roberto Gurgel, à época. Referida ação ainda não foi julgada.   “Art. 37. É vedada a contratação direta, sem licitação, de pessoa jurídica na qual haja administrador ou sócio com poder de direção que mantenha relação de parentesco, inclusive por afinidade, até o terceiro grau civil com: (sem grifo no original) I – detentor de cargo em comissão ou função de confiança que atue na área responsável pela demanda ou contratação; e II – autoridade hierarquicamente superior no âmbito de cada órgão ou entidade da administração pública.” 6. ANÁLISE DA QUESTÃO DE PARENTESCO NOS PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS À LUZ DOS TRIBUNAIS Os Tribunais Superiores têm inclinado a aceitar a posição de BULOS (2008), entendendo que o artigo 9º da Lei de Licitações, é taxativo ao apresentar o rol de impedimentos em participar do processo licitatório, e pelo princípio da legalidade a administração só pode fazer o que a lei determina, a não ser que haja comprovada fraude ao processo licitatório. Não basta que a simples relação de parentesco seja óbice em participar do processo licitatório, uma vez que haveria ofensa ao fundamento constitucional dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa por impor ao licitante proibição de participar do processo por ser parente do gestor. (BULOS, 2008) Nesse sentido o Resp 1245765 do STJ. “ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CARTA-CONVITE. MODALIDADE DE LICITAÇÃO INADEQUADA. LICITANTE VENCEDORA. QUADRO SOCIETÁRIO. FILHA DO PREFEITO. VIOLAÇÃO AO ART. 11 DA LEI N. 8.429/92. CARACTERIZAÇÃO. PREJUÍZO AO ERÁRIO. DESNECESSIDADE. 1. Trata-se de ação civil pública por ato de improbidade administrativa ajuizada em face de ex-Prefeito e de sociedades empresárias (postos de gasolina) em razão da contratação alegadamente ilegal dos referidos postos pela Municipalidade. A ação é fundada no art. 11 da Lei n. 8.429/92.(…) 7. Não há como afastar a conclusão da origem no sentido de que, isoladamente, o simples fato de a filha do Prefeito compor o quadro societário de uma das empresas vencedora da licitação não constitui ato de improbidade administrativa. 8. Ocorre que, na hipótese dos autos, este não é um dado isolado. Ao contrário, a perícia – conforme consignado no próprio acórdão recorrido – deixou consignado que a modalidade de licitação escolhida (carta-convite) era inadequada para promover a contratação pretendida, em razão do valor do objeto licitado. 9. Daí porque o que se tem, no caso concreto, não é a formulação, pelo Parquet estadual, de uma proposta de condenação por improbidade administrativa com fundamento único e exclusivo na relação de parentesco entre o contratante e o quadro societário da empresa contratada. (…) 11. Na verdade, na hipótese em exame – lembre-se: já se adotando a melhor versão dos fatos para os recorridos -, o que se observa são vários elementos que, soltos, de per se, não configurariam em tese improbidade administrativa, mas que, somados, foram um panorama configurador de desconsideração do princípio da legalidade e da moralidade administrativa, atraindo a incidência do art. 11 da Lei n. 8.429/92. 12. O fato de a filha do Prefeito compor uma sociedade contratada com base em licitação inadequada, por vícios na escolha de modalidade, são circunstâncias objetivas (declaradas no acórdão recorrido) que induzem à configuração do elemento subjetivo doloso, bastante para, junto com os outros elementos exigidos pelo art. 11 da LIA, atrair-lhe a incidência.(…) 14. Recurso especial provido.” (original sem grifo) No julgado citado, o simples fato da filha do prefeito fazer parte da sociedade empresária vencedora do certame, não foi por si só óbice à participação do processo licitatório, mas a análise dos elementos do fato em concreto, somados, configurou ofensa aos princípios da legalidade e moralidade administrativa, com o fracionamento indevido do objeto licitado, favorecimentos pessoais e modalidade de licitação inadequada. Na consulta n. 862.735, Rel. Cons. Sebastião Helvecio do TCE/MG, de abril de 2012, corroborou com o entendimento que não há impedimento legal à participação de parentes do gestor no processo licitatório, mas orientou que fique bem demonstrado que não houve ofensas aos princípios da moralidade, isonomia, impessoalidade e maior competitividade, para que não haja questionamento de conduta nociva à condução do certame. “Contratação de parentes de prefeito mediante procedimento licitatório Trata-se de consulta indagando acerca da possibilidade de Município contratar, mediante procedimento licitatório, parentes do prefeito, em linha reta ou colateral e, por afinidade, até o terceiro grau. Em seu parecer, o relator, Cons. Sebastião Helvecio, informou, inicialmente, que o Tribunal Pleno consignou, nas respostas às Consultas n. 646.988, 448.548, 162.259 e 113.730, não existir óbice legal para a contratação, por meio de processo licitatório, de parentes de servidores ou de agentes políticos, desde que observados, estritamente, os princípios da Administração Pública e as regras dispostas na Lei 8.666/93. Aduziu que as ações dos gestores públicos devem buscar atender aos princípios norteadores da atividade administrativa e da proteção à isonomia. (…) Advertiu que, admitir-se, em tese, a inexistência, na Lei 8.666/93, de dispositivo que impeça a participação de parentes próximos de servidores ou agentes políticos em procedimentos licitatórios, não confere ao gestor público ampla liberdade nas contratações, devendo este observar atentamente os princípios norteadores da Administração Pública, sobretudo os da moralidade, isonomia, impessoalidade e competitividade, visando, com isso, uma atuação administrativa voltada à satisfação de interesses supraindividuais. Orientou que, na hipótese de as pessoas com o parentesco aventado acorrerem às licitações, o administrador deve demonstrar, no certame, ter promovido a maior competitividade possível, a partir da mais cuidadosa e detalhada demonstração de lisura. Por todo o exposto, concluiu que, embora seja possível, em tese, a contratação de parentes próximos de servidores ou agentes políticos, por meio da participação em procedimento licitatório, a hipótese não prescinde da observância dos princípios da moralidade, isonomia, impessoalidade e da maior competitividade possível, sendo recomendável que, nessa espécie de contratação, o gestor demonstre, nos autos do procedimento licitatório, de forma consistente, que foram respeitados os aludidos princípios, de modo a se afastarem possíveis questionamentos sobre a ocorrência de influências nocivas na condução dos certames. O parecer foi aprovado por unanimidade”. (original sem grifo) Referido Conselheiro, do Tribunal de Contas Mineiro, posiciona-se fundamentado no princípio da legalidade, entendendo que não há proibição expressa na Lei de Licitação, vedando a participação do licitante parental, apesar de sua preocupação em ofensa aos princípios da referida lei. Já o Tribunal de Contas da União – TCU tem se posicionado que a relação parental entre licitantes e gestores fere o artigo 9º, caput, incisos I e III, e § 3º, da Lei 8.666/93, ao realizar uma intepretação extensiva, conjugando com os princípios constitucionais, tal decisão foi acolhida no Acórdão n. 607/2011. “(…) contratação da empresa Square Construtora Ltda., de propriedade de Alessandro Silva Bitencourt, sobrinho do então prefeito, Sr. Antônio Bitencourt, para a construção de rede coletora de esgoto sanitário no município de Marataízes/ES, configurando-se conflito de interesse, em afronta ao art. 9º, caput, incisos I e III, e § 3º, da Lei nº 8.666, de 1993, além dos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e isonomia, com indícios de direcionamento do certame, conforme apurações encaminhadas pela Câmara Municipal, nos termos do Parecer Especial da CPI (fls. 153/156).(…) Assevero que a irregularidade verificada (…) afronta os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade que devem orientar a atuação da Administração Pública e, mesmo que a Lei nº 8.666, de 1993, não possua dispositivo vedando expressamente a participação de parentes em licitações em que o servidor público atue na condição de autoridade responsável pela homologação do certame, vê-se que foi essa a intenção axiológica do legislador ao estabelecer o art. 9º dessa Lei, em especial nos §§ 3º e 4º, vedando a prática de conflito de interesse nas licitações públicas, ainda mais em casos como o ora apreciado em que se promoveu a contratação de empresa do sobrinho do prefeito mediante convite em que apenas essa empresa compareceu ao certame.” Embora os Ministros do TCU tenham alargado o rol do artigo 9º, ante a omissão legislativa e em consonância com os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e isonomia, para incluir a relação de parentesco, no caso analisado teve outras situações que somadas apontavam para uma licitação fraudulenta, como afronta ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, ausência de justificativa para a inobservância do número mínimo de três propostas aptas à seleção na modalidade convite, e ausência de orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários, conforme dispõe o art. 40, § 2º, inciso II, da Lei nº 8.666, de 1993. A posição do TCU, firma-se na doutrina de JUSTEN FILHO (2009), que entende que o artigo 9º é exemplificativo. “Não podem participar da licitação, ainda que tal não seja explicitamente indicado no ato convocatório, aqueles que, por sua situação subjetiva, estejam em condições de frustrar o cunho competitivo do certame. Estão abrangidas as hipóteses do art. 9º, da Lei 8.666/93, mas não apenas elas. Todo aquele que, por alguma via, tiver acesso a informações privilegiadas não poderá participar do certame, ainda quando não se vincule formalmente à Administração. Aplica-se o princípio da moralidade, sem viabilidade de determinações precisas, rigorosas e exaustivas. Até é possível o ato convocatório conter cláusula genérica, mas a ausência de explícita previsão não será obstáculo à incidência de vedações derivadas dos princípios jurídicos fundamentais”. (original sem grifo) Para JUSTEN FILHO, se a restrição for necessária para atender ao interesse coletivo nenhuma irregularidade existirá em sua previsão, sendo assim, se a vedação à participação de licitante parente do gestor, irá atender ao interesse da moralidade pública, isonomia entre os licitantes e impessoalidade na escolha do vencedor do certame, será perfeitamente admissível. A preocupação desse autor,  funda-se no fato de que a potencialidade do dano advinda dessa relação pessoal entre os envolvidos na licitação, seria suficiente para o afastamento preventivo do licitante parental, a fim de garantir a competitividade e evitar benefícios indevidos. Entendimento ousado, mas que amparado na própria Lei 8.666/93. “Art. 44. No julgamento das propostas, a Comissão levará em consideração os critérios objetivos definidos no edital ou convite, os quais não devem contrariar as normas e princípios estabelecidos por esta Lei. § 1o É vedada a utilização de qualquer elemento, critério ou fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que possa ainda que indiretamente elidir o princípio da igualdade entre os licitantes”. (sem grifo no original) 7 – LEGISLAÇÃO SOBRE A RELAÇÃO DE PARENTESCO NO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO Ante as divergências sobre a matéria nos Tribunais, e o clamor público para uma maior observância da moralidade pública, coibindo os desvios de dinheiro e gestão fraudulenta, há alguns projetos sobre a relação de parentesco na lei de licitação. O Projeto de Lei do Deputado Augusto Carvalho de n. 32/07, que institui o novo código de licitações e contratos, e define a conduta ética dos agentes públicos, trata a relação de parentesco do licitante com o gestor como suspeição, foi menos audacioso sobre a temática, em seu § 3º, artigo 21, “Pode ser arguida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau”. O Deputado trata a questão de parentesco entre a autoridade ou servidor, com o licitante, como uma questão de suspeição13. Já o Projeto de Lei 3656/12 de autoria do Dep. Maurício Trindade (PR-BA) que acrescenta o inciso III ao parágrafo 1º do artigo 3º da Lei 8.666/93, a vedação aos agentes públicos em contratar com parente de gestor: “Contratar ou permitir a subcontratação de pessoa jurídica de qualquer natureza controlada direta ou indiretamente por quem mantenha parentesco até o segundo grau civil com agentes políticos ou ocupantes de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento integrantes dos quadros do órgão ou entidade signatário do contrato”. O autor desse projeto argumenta que apesar do posicionamento do TCU12 contrário à participação de parentes de gestores, há controvérsia na doutrina e os procedimentos têm sido alvos de ações judiciais, e com a positivação desse inciso, porá fim às divergências. No anseio de coibir a má utilização de recursos públicos com distribuição de favores a parentes, ferindo os princípios da igualdade entre os licitantes e a moralidade pública, esse projeto contempla a relação de parentesco até o segundo grau, e proibi a contratação e subcontratação, mesmo que a pessoa jurídica seja controlada indiretamente por parente de gestor público. Omisso o projeto em relação à proibição da participação de licitantes com relação de parentesco com servidores que participam dos procedimentos de licitação e contrato. O Senador João Capiberibe sob outro enfoque, no PL 98/2013, propõe acrescentar o artigo 33, alínea “a”, à Lei 8.666/93, vedando a participação em uma mesma licitação de empresas, cujos sócios sejam os mesmos, ou cônjuges, ou parentes “É vedado habilitar em uma mesma licitação licitantes controlados, direta ou indiretamente, por sócios, seus cônjuges ou parentes, consanguíneos ou afins, na linha reta ou colateral, até o terceiros grau, ou nas quais haja participação significativa dessas mesmas pessoas”.  O PL 98/2013 busca evitar uma possível combinação de lances, e consequente fraude à Lei, tendo em vista a dificuldade em se provar na prática referido crime, o Senador cria uma presunção de fraude, que repercute somente na esfera administrativa. Até o fechamento desse trabalho nenhum desses projetos foi aprovado, estando em regular tramitação na respectiva casa, talvez por falta de maior interesse sobre a matéria. Em consequência a ausência de legislação geral sobre a relação de parentesco, o Município de Brumadinho-MG, através da Câmara Municipal, exercendo o Poder Legislativo nessa cidade, trouxe previsão legal na Lei Orgânica, para proibir a participação no processo licitatório de parentes de gestor público. “Art. 36 – O Prefeito, o Vice-Prefeito, os Vereadores, os ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, as pessoas ligadas a qualquer deles por matrimônio ou parentesco, afim ou consangüíneo, até o 2º grau, ou por adoção e os servidores e empregados públicos municipais, não poderão contratar com o município, subsistindo a proibição até seis meses após findas as respectivas funções.” A Lei Orgânica do referido Município trouxe uma vedação bem ampla, pois além de vedar os parentes afim ou consanguíneo do prefeito e ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, também vedou os dos vereadores. O legislador de Brumadinho foi omisso em não prever situações em que na cidade exista somente uma pessoa que preencha os requisitos do edital de licitação, e essa pessoa tiver relação de parentesco, afinidade ou for cônjuge das pessoas previstas no artigo 36 da Lei Orgânica, ou até mesmo quando houver muitas pessoas habilitadas e que todas estiverem alcançadas pela referida vedação. Nesse caso a Administração Pública não conseguiria suprir sua necessidade para execução de obras ou serviços, deveria ter apresentado soluções para todos os casos possíveis, ou até mesmo excepcioná-los da regra. A Lei Orgânica de Brumadinho chegou ao STF, para análise de sua constitucionalidade por estar legislando sobre licitação, sendo apreciado no RE 423.560, tendo como Rel. Min. Joaquim Barbosa, que entendeu que por ausência de regra geral acerca do referido impedimento, pode o Ente legislar, amparado no art. 30, II, da Constituição Federal, até que haja norma geral disciplinando a matéria. “Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL. LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE BRUMADINHO-MG. VEDAÇÃO DE CONTRATAÇÃO COM O MUNICÍPIO DE PARENTES DO PREFEITO, VICE-PREFEITO, VEREADORES E OCUPANTES DE CARGOS EM COMISSÃO. CONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.” O Município de Brumadinho, de forma louvável e inovadora, enfrentou a matéria, visando dar moralidade aos atos dos gestores públicos no trato da res publica14, desta feita, a vedação de contratação de parentes dos gestores, observará o princípio da legalidade, no âmbito desse Ente que a criou. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para BULOS (2008) a vedação à relação de parentesco no processo licitatório atenta contra vários princípios constitucionais. “Apenas se pode falar em fraude à moralidade, à impessoalidade e quejandos, submetendo-se, previamente, a matéria à lente da Constituição, amiúde, dos princípios constitucionais da razoabilidade (CF, art. 5º, LIV), da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da liberdade de trabalho (CF, art. 5º, XIII), da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), da função social da empresa (CF, art. 5º, XXIII) e da economicidade (CF, art. 70, caput)”. (BULOS, 2008) O autor sustenta que não basta a mera suposição de que a relação de parentesco induz ofensa à moralidade administrativa, deve haver prova contundente que faça chegar a essa conclusão. Posição respeitada e bem fundamentada de BULOS, ocorre que, as denuncias de corrupção e desvio de dinheiro público, tem sido matérias corriqueiras nos noticiários, e a sensação de impunidade é grande, pois as pessoas envolvidas geralmente são de influência na sociedade, se a cultura de nosso País fosse mais voltada à moralidade, os argumentos do autor seriam muito bem aplicados. Os mesmos princípios invocados pelo autor podem ser interpretados de maneira que combatam a relação de parentesco no processo licitatório, uma vez que presunção de fraude entre licitante e gestores é relativa, devendo os envolvidos no procedimento provar o contrário, em nome da supremacia do interesse público sobre o particular. A própria Constituição preocupada com a moralidade pública, trouxe expressamente esse princípio no artigo 37, da Constituição Federal de 1988, apontando no parágrafo quarto que a ofensa a esse princípio incorreria em improbidade administrativa, o que não foi tolerado pelo Constituinte. Em seu artigo terceiro, a Constituição de 1988, traz como objetivo do Brasil construir uma sociedade justa, garantindo o desenvolvimento nacional, reduzindo as desigualdades sociais, promovendo o bem de todos, sem preconceito de qualquer forma. Dessa feita, pode se extrair que em um processo licitatório em que o licitante é parente do gestor ou de funcionários que participem do procedimento, é incompatível com a definição de uma sociedade justa, pois haveria mácula no julgamento, e a vitória seria desonesta, o desenvolvimento nacional seria prejudicado, pois somente aqueles que tivessem relação de parentesco teria o desenvolvimento garantido, promovendo mais desigualdades, atentando contra a própria liberdade de trabalho. A Constituinte trouxe também mecanismos para que essa corrupção fosse combatida, como a ação popular prevista no artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição de 1988, em que qualquer cidadão poderá propô-la a fim de anular ato lesivo ao patrimônio público e à moralidade administrativa. Em consonância o artigo 73, § 2º, também da Carta Constitucional, diz ainda que, qualquer cidadão pode denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU15. Havendo conflito ou divergência nas interpretações dos princípios, eles devem ser lidos à luz do titular do Poder que é o povo “Todo o poder emana do povo”16, e não para beneficiar indivíduos em detrimento da coletividade. Por fim, duas vertentes se apresentam no mundo jurídico sobre a vedação a relação de parentesco no processo licitatório, uma que é contrária, invocando que não há lei que proíba, pois o artigo 9º, da Lei de Licitação, que versa sobre os impedimentos, não contempla tal situação, e deve ser lida de forma taxativa, e o administrador deve estar adstrito ao que a lei determina ou autoriza, pelo princípio da legalidade. A corrente mais audaciosa, encampada por JUSTEN FILHO e pelo Tribunal de Contas da União, entendem  que o referido artigo é exemplificativo, e deve se lido à luz dos demais princípios, como o da moralidade pública, isonomia e impessoalidade, podendo assim impedir a participação de parente de gestor público se entender que esses princípios estão sendo violados. Ressaltando que é de bom alvitre que haja motivação nos atos do administrador, como garantia de legalidade, tanto em relação ao administrado quanto à Própria Administração, conforme assevera DI PIETRO (2012). Sendo assim, ao vedar a participação de parente de gestor no processo licitatório, que o faça fundamentado nos princípios acima expostos.
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Aspectos Legais do Acesso à Informação no Âmbito da Administração Indireta do Estado do Paraná
O presente estudo foi elaborado em 2013, na forma de Parecer Jurídico, para atender à necessidade de regulamentação do tema no âmbito de órgão da administração indireta do Estado do Paraná, e refere-se ao tratamento das informações sob o poder das autarquias estaduais e a sua disponibilização aos interessados, nos termos da legislação vigente. Tendo em vista a recente alteração da legislação estadual, vimo-nos compelidos a publicá-lo com a devida adequação.
Direito Administrativo
1. Fundamentação legal Analisa-se, aqui, o dever da      Administração Pública de assegurar às pessoas naturais e jurídicas o direito de acesso às informações que se acham sob o poder dos órgãos da administração direta, da administração indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias e empresas controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e das entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos públicos. Afora as razões históricas que resultaram na elevação do acesso à informação pública ao status de direito fundamental, consagrado na Constituição Federal de 1988, certo é que, sob o ponto de vista jurídico, a necessidade de regulamentação desse direito remonta a princípios internacionais insertos nos principais tratados de que o Brasil é signatário: Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19); Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (artigos 10 e 13); Declaração Interamericana de Princípios de Liberdade de Expressão (item 4); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19). As exigências internacionais não contrariam a ordem jurídica nem atentam contra a soberania brasileira, mas antes se harmonizam plenamente com a Constituição Federal, que assim dispõe sobre o acesso à informação pública: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…] XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;  Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:[…] § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:[…] II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;  Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:[…] § 2º – Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.” Recentemente, promulgou-se a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, intitulada de Lei de Acesso à Informação (LAI), a qual veio a regulamentar a Constituição Federal no que toca o acesso às informações públicas. É o que anuncia o seu artigo 1º: “Esta lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal”. Segundo a LAI, estão a ela subordinados os órgãos da administração direta e indireta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público (artigos 1º e 2º). No Estado do Paraná, antes mesmo da promulgação da LAI, a Lei Estadual nº 16.595, de 26 de outubro de 2010, já dispunha que “todos os atos oficiais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas, e dos órgãos que especifica, que impliquem na realização de despesas públicas deverão ser publicados no Diário Oficial do Estado”. Merece destaque o fato de que, segundo essa norma estadual, não estão sujeitos à publicação todo e qualquer ato ou contrato, mas apenas aqueles que impliquem na realização de despesas. Obviamente, em face da amplitude da Constituição Federal e da LAI, revelava-se a insuficiência da Lei nº 16.595, de 26 de outubro de 2010, tornando-se necessária a devida regulamentação no âmbito estadual. Sobreveio, então, o Decreto Estadual nº 4.531, de 15 de maio de 2012, o qual estabelecia normas para execução de procedimentos a serem adotados a fim de viabilizar o acesso do cidadão às informações da administração pública estadual. A interpretação literal da expressão adotada (“administração pública estadual”) sugere que estavam sujeitos à regulamentação estadual os órgãos da administração direta e indireta de todos os três Poderes, isto é, Executivo, Legislativo e Judiciário. Afinal, essa interpretação encontra respaldo na LAI (artigo 1º, parágrafo único, inciso I). Porém, sobreveio, depois, o Decreto Estadual nº 8.020, de 16 de abril de 2013, que, segundo o seu artigo 1º, dispunha “sobre os procedimentos a serem observados pela Administração Direta do Poder Executivo, suas autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias e empresas controladas direta ou indiretamente, com vista a garantir o acesso à informação, nos termos da legislação vigente” (g.n.). Importante consignar que a aplicação da norma exclusivamente no âmbito do Executivo, antes de indicar, talvez, um lapso do legislador, era reafirmada no artigo 2º, que assim dispunha: “Art.2° Os órgãos e as entidades do Poder Executivo Estadual assegurarão, às pessoas naturais e jurídicas, o direito de acesso à informação, que será proporcionado mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão, observados os princípios da Administração Pública e as diretrizes previstas na legislação vigente.  § 1° Submetem-se, no que couber, à determinação prevista no caput as entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenção social, termo de parceria, convênio, acordo, contrato de gestão, ajuste ou outro instrumento congênere, no âmbito do Poder Executivo do Estado do Paraná.” (g.n.)  Merece destaque o fato de que o Decreto Estadual n. 8020/2013, por expressa disposição do seu artigo 59, revogara expressamente o Decreto Estadual nº 4.531, de 15 de maio de 2012, de modo que se instaurou certa insegurança quanto à regulamentação da matéria no âmbito dos demais Poderes. De qualquer forma, estando, as autarquias, vinculadas ao Executivo, sujeitavam-se elas tanto às normas gerais estabelecidas pela LAI como à regulamentação estadual vigente (Decreto Estadual nº 8.020, de 16 de abril de 2013). Por fim, o Decreto n. 10.285, de 25 de fevereiro de 2014, que revogou o decreto anterior e, atualmente, dispõe sobre o tema ora tratado, porém, também restringindo a regulamentação apenas ao âmbito do Poder Executivo. 2. Conceito legal de “informação” e seus desdobramentos Informação, segundo a LAI, são “dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato” (artigo 4º, inciso I). O artigo 3º da mesma lei contém as diretrizes a serem observadas para a execução dos procedimentos destinados a assegurar o acesso à informação, dentre as quais se destacam as seguintes: “Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II – divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;” (g.n.) Tais diretrizes foram acolhidas expressamente pelo artigo 3º do Decreto Estadual 10285/2014. A análise das diretrizes transcritas acima permite concluir que a informação é a regra e o sigilo é a exceção, de modo que, se não houver referência quanto ao caráter sigiloso da informação, a Administração Pública estará legalmente obrigada a disponibilizá-la ao interessado, salvo se houver justificativa para eventual recusa, a qual deverá ser apontada em decisão fundamentada, nos termos do § 4º do artigo 7º da LAI[1]. Outra importantíssima diretriz consiste na obrigação de divulgação de informações de interesse público (interesse coletivo ou interesse geral) independentemente de solicitações. Trata-se de procedimento que se tem chamado de “Transparência Ativa”[2]. A LAI cuidou de elencar quais são as tais informações em seu artigo 8º, que tem a seguinte redação: “Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. § 1º  Na divulgação das informações a que se refere o caput, deverão constar, no mínimo: I – registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público; II – registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros; III – registros das despesas; IV – informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados; V – dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades; e VI – respostas a perguntas mais frequentes da sociedade. § 2º  Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).” (g.n.) Ressalte-se que o rol transcrito apontou o conteúdo mínimo das informações de interesse público, facultando-se aos órgãos e entidades públicas a ampliação do conteúdo, a exemplo do que fez o Estado do Paraná ao considerar de interesse público, entre outras informações, a “relação de patrimônio móvel e imóvel do Estado” e as “resoluções e portarias” (artigo 8º, incisos III e VI, do Decreto Estadual nº 10285/2014). A propósito, no âmbito do Executivo paranaense a divulgação eletrônica das informações de interesse público ocorre através do “Portal da Transparência”, de acordo com os artigos 7º e 8º do mesmo Decreto. Por óbvio, as informações que integram o rol previsto no decreto estadual, porque são obrigatórias, não são passíveis de classificação. Também não poderá ser negado acesso a informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais nem a informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas (artigo 21 da LAI). 3. Das restrições de acesso à informação Entendidos assim o que a lei considera como informação e o que considera como informação de interesse público, ou seja, de divulgação obrigatória, resta analisar as restrições de acesso à informação. De início, oportuno registrar que o sigilo de informações decorre de expressa previsão legal ou de classificação pela autoridade competente. Nesse sentido, o artigo 22 da LAI determina que “o disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público”. Vale dizer: ainda que eventualmente determinado órgão público não tenha realizado a classificação das informações, não será por isso que toda e qualquer informação deverá ser disponibilizada, mas antes deverá ser respeitado o sigilo a que esteja sujeita por força da legislação fiscal, bancária, de serviços de mercado de capitais, comercial, entre outras. Até mesmo porque o artigo 25 da LAI dispõe expressamente que “é dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas produzidas por seus órgãos e entidades, assegurando a sua proteção”. A própria LAI contém hipótese legal de restrição de acesso em seu artigo 31, a saber: “Art. 31.  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1o  As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II – poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.[…] § 5o  Regulamento disporá sobre os procedimentos para tratamento de informação pessoal.” (g.n.) Por outro lado, também haverá restrição ao acesso quando determinada informação for considerada sigilosa pela autoridade competente, por ser imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado, podendo ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada (artigo 24, caput, da LAI). O artigo 23 da LAI procurou elencar as informações passíveis de classificação nos seguintes termos:  “Art. 23.  São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.” A partir do seu artigo 27 a LAI passa a tratar dos procedimentos de classificação, reclassificação e desclassificação do sigilo de informações no âmbito da administração pública federal. No caso dos estados, municípios e Distrito Federal, a regulamentação deve ser objeto de lei da respectiva esfera legislativa (artigo 45). Passemos, pois, às considerações quanto ao procedimento de classificação das informações públicas à luz da legislação estadual. 4. O acesso à informação à luz da regulamentação estadual No âmbito do Executivo paranaense o acesso à informação encontra-se regulamentado pelo Decreto nº 10.285, de 25 de fevereiro de 2014, já referido nos tópicos anteriores, o qual trata dos procedimentos de classificação, reclassificação e desclassificação de informações na Seção II do Capítulo IV. O artigo 29 reafirma que a restrição ao acesso é exceção ao interesse público das informações e estabelece que a classificação observe o critério menos restrito possível: “Art.29 Para a classificação da informação em grau de sigilo, deverá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados: I – a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado; e II – o prazo máximo de classificação em grau de sigilo ou o evento que defina seu termo final.” O artigo 30, por sua vez, fixa os prazos máximos de classificação: “Art.30 Os prazos máximos de classificação são os seguintes: I – grau ultrassecreto: vinte e cinco anos; II – grau secreto: quinze anos; e III – grau reservado: cinco anos. Parágrafo único. Poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, observados os prazos máximos de classificação.” Importante notar que o dispositivo transcrito trata dos prazos máximos de classificação, de modo que é possível que determinadas informações deixem de ser sigilosas em momento anterior, mediante o procedimento de reavaliação a que se refere o artigo 37, verbis: “Art. 37. A classificação das informações será reavaliada pela autoridade classificadora ou por autoridade hierarquicamente superior, mediante provocação ou de ofício, para desclassificação ou redução do prazo de sigilo.  Parágrafo único. Para o cumprimento do disposto no caput, além do disposto no art. 30 deverá ser observado: I – o prazo máximo de restrição de acesso à informação, previsto no art. 30;  II – o prazo máximo de quatro anos para revisão de ofício das informações classificadas no grau ultrassecreto ou secreto, previsto no inciso I do art. 30; III – a permanência das razões da classificação; IV – a possibilidade de danos ou riscos decorrentes da divulgação ou acesso irrestrito da informação.” As competências para a classificação foram atribuídas pelo artigo 32, verbis: “Art. 32. A classificação do sigilo da informação é de competência: I – no grau ultrassecreto, das seguintes autoridades: a) Governador do Estado; b) Vice-Governador do Estado; c) Secretários de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas; e d) Delegado Geral da Polícia Civil, Comandante da Polícia Militar e Comandante do Corpo de Bombeiros; II – no grau secreto, das autoridades referidas no inciso I, dos dirigentes de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista; e III – no grau reservado, das autoridades referidas nos incisos I e II e das que exerçam funções de direção, comando ou chefia. § 1º É vedada a delegação da competência prevista nos incisos I e II. § 2º O dirigente do órgão ou entidade poderá delegar a competência para classificação no grau reservado a agente público que exerça função de direção, comando ou chefia, vedada a subdelegação, ou constituir Comissão de Classificação de Informações, composta por 03 (três) servidores de alta hierarquia funcional.[…]  § 4º Os agentes ou a comissão referidos no § 2º darão ciência do ato de classificação à autoridade delegante, no prazo de 72 (setenta e duas) horas.” Destaque-se que, de acordo com o dispositivo transcrito acima, aos dirigentes de órgãos e entidades integrantes da administração indireta foi atribuída competência para classificar apenas as informações cujo grau de sigilo seja secreto ou resevado (incisos II e III), sendo possível, quanto ao segundo, a delegação da competência para a classificação a servidores que exerçam função de direção, comando ou chefia. Ainda, nos casos de informações classificadas no grau secreto, os dirigentes dos órgãos da administração indireta devem encaminhar, no prazo de trinta dias, cópia dos respectivos termos de classificação à Comissão Mista de Reavaliação de Informações, vinculada à Secretaria de Estado do Governo e da qual o Decreto Estadual nº 10285/2014 trata a partir do artigo 47. 5. Conclusão Em conclusão, quanto aos aspectos jurídicos dos procedimentos de classificação e reavaliação de informações no âmbito da administração indireta do Estado do Paraná, devem ser atendidos os seguintes preceitos: – a classificação das informações é procedimento que se orienta, atualmente, pela Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação) e pelo Decreto Estadual nº 10.285, de 25 de fevereiro de 2014; – a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção, de modo que, se não houver referência quanto ao caráter sigiloso da informação, a Administração estará legalmente obrigada a disponibilizá-la ao interessado, salvo se houver justificativa para eventual recusa, a qual deverá ser apontada em decisão fundamentada; – a necessidade de se resguardar o sigilo de informações cujo sigilo esteja previsto em lei, ainda que eventualmente não tenham sido classificadas; – a divulgação de informações de interesse público – portanto, não passíveis de classificação –, independentemente de solicitações, no Portal da Transparência, as quais encontram-se elencadas no artigo 8º do Decreto Estadual vigente; – para a classificação deverão ser considerados a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado e o prazo máximo de classificação em grau de sigilo ou o evento que defina seu termo final; – o prazo máximo do sigilo das informações secretas é de 15 (quinze) anos, e o das informações reservadas, 05 (cinco) anos; sendo possível a previsão de sigilo por prazo menor; – é possível que a autoridade deixe de considerar sigilosa determinada informação antes de expirado o seu prazo de sigilo, mediante o procedimento de reavaliação a que se refere o artigo 37 do Decreto Estadual; – aos dirigentes dos órgãos da administração indireta compete classificar apenas as informações cujo grau de sigilo seja secreto ou resevado, sendo possível, quanto ao segundo, a delegação da competência a servidores que exerçam função de direção, comando ou chefia; – em caso de informações classificadas no grau secreto, os mesmos dirigentes devem encaminhar, no prazo de trinta dias, cópia dos respectivos termos de classificação à Comissão Mista de Reavaliação de Informações.
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Mobilidade urbana para pedestres
O objetivo do presente artigo é buscar uma solução para o problema da mobilidade urbana no município de Porto da Folha, em relação às obstruções das vias de tráfego de pedestres, por estacionamento de veículos nas calçadas, sob a ótica do artigo 72 do código de postura, dos artigos 125, p. Único, 126, VI e 127 da Lei Orgânica Municipal, e previsões do art. 48, §2º do Código de Trânsito, e art. 78, p. único, do Código Tributário Nacional, trazendo ainda modelos de legislações relacionadas à mobilidade urbana, implantadas em alguns municípios do país, como base de pesquisa para o artigo.
Direito Administrativo
Introdução. Considerando o constante crescimento do poder aquisitivo das pessoas e as facilidades do mercado de consumo, um dos fatores que mais tem aumentado no município de Porto da Folha, é o do setor de transportes, especialmente o de motocicletas. Esse crescimento está relacionado ainda à necessidade de locomoção das pessoas para gerenciar negócios, trazer mais comodidade e uma melhor qualidade de vida. Acontece que tais benefícios acabam gerando problemas de ordem e respeito social, ambiental e de segurança, cujas estruturas de espaços destinados às paradas e aos estacionamentos não tem seguido a evolução no crescimento e adequação espacial disponível, fatos esses que vêm gerando ocupações das vias de trânsito das pessoas, quais sejam, as calçadas, forçando o pedestre a ter que usar as vias de trânsito rápido destinadas aos veículos motorizados. Foi diante dessa ótica que surgiu a ideia do presente estudo, como forma de incentivar o poder público a adotar medidas efetivas que possam solucionar o problema dos estacionamentos em calçadas, de modo a desobstruir os obstáculos enfrentados pelos pedestres, como meio de devolver aos seus usuários um trânsito livre, seguro e desimpedido, e também para atender as diretrizes da mobilidade urbana. Conceito de mobilidade e mobilidade urbana. Mobilidade urbana para pedestres o que vem a ser mobilidade? Segundo o dicionário, mobilidade é a qualidade do que é móvel. E o que seria mobilidade urbana? São meios de locomoções (vias), com suas diferentes especificações, destinados ao uso das pessoas e dos transportes e que são utilizados por esses corpos móveis para se deslocarem de um lugar a outro. Nada mais é do que os meios por onde se deslocam as pessoas e os transportes em perímetro urbano, rural, inter municipal ou interestadual, implantados por políticas públicas em favor das melhorias de acesso das pessoas e dos veículos em sincronia com o social. Crescimento populacional, veicular e os problemas ocasionados à  mobilidade urbana. A implantação do Estado Democrático de Direitos, com a promulgação da Carta Magna de 1988, e o constante crescimento populacional, fez com que o poder público implantasse políticas de desenvolvimento econômico e distribuição de renda de forma a atender os anseios da sociedade e do sistema consumerista aplicado na atualidade, como forma de erradicação a pobreza e trazer uma melhor qualidade de vida para os mais necessitados. Diante do crescimento das cidades e do poder aquisitivo das pessoas, surgiram diversos problemas sociais e um deles está relacionado ao deslocamento de pessoas e transportes em meio urbano, ocasionado pelo grande fluxo de veículos e de pessoas dividindo o espaço de forma descontrolada. Atualmente, existem diversos estudos voltados a buscar uma solução efetiva para o problema da mobilidade urbana, como também já existem políticas aplicadas, especialmente nos grandes centros urbanos, que aos poucos vão resolvendo as questões locais, conforme vão sendo implantadas as diretrizes estabelecidas na legislação federal e local. Todos os argumentos aqui observados merecem destaque por serem de grande importância à matéria. Mas o objetivo principal desses argumentos voltasse à mobilidade urbana relacionada ao uso das vias públicas (calçadas) destinadas ao deslocamento dos pedestres, em análise ao instituto do art. 72, da lei 143, de 13 de setembro de 2001 (Código de Postura Municipal de Porto da Folha). Da análise do artigo vê-se a seguinte redação: “Art. 72. – É proibido embarcar ou impedir, por qualquer meio, o livre trânsito de pedestres ou veículo nas ruas, praças, passeios, estradas e caminhos públicos exceto para efeito de obras públicas ou quando exigências de segurança o determinarem.” (grifei) Observa-se que o art. 72, veda a obstrução da via pública, destinada ao trânsito e circulação de pedestres, por qualquer meio, de forma a impedir com obstáculos o tráfego, a passagem, a locomoção dos transeuntes. O código de posturas data de 2001. No entanto, a regra do art. 72, não vem sendo aplicada há mais de 13 anos, nem tampouco encontra-se registro de sua eficácia na sociedade urbana portofolhense. Diante da inércia do poder público quanto à falta da atividade administrativa referente ao caso, a ocorrência em desrespeito à norma legal só tem aumentado. Isso porque o crescimento populacional, demandou por uma necessidade de circulação de mercadorias de maneira mais rápida como forma de atender os anseios da população para melhoria da qualidade de vida das pessoas e do acesso à alimentação, à saúde, ao saneamento básico, e tantos outros direitos consagrados na Constituição Federal. É de se destacar também, que as políticas financeira e econômicas trouxeram um maior poder aquisitivo às pessoas em virtude da distribuição de renda, o que facilitou à população o acesso aos meios de transportes, gerando, assim, o crescimento das frotas veiculares tanto em meio urbano quanto rural. Ocorre, no entanto, que as estruturas das cidades não tem evoluído junto com o crescimento das frotas de veículos, e isso acabou ocasionando um caos na divisão do espaço territorial de locomoção. Assim, um dos núcleos mais afetado vem sendo o espaço destinado à circulação e locomoção de pedestre. Denomina-se aqui, a calçada, como sendo o meio disposto a todas as pessoas para utilização de sua locomoção sem que tenha que dividir as vias destinadas aos veículos para sua circulação. O Código de Trânsito Brasileiro, em seu anexo I (Dos Conceitos e Definições), denomina calçada como sendo “parte da via, normalmente segregada e em nível diferente, não destinada à circulação de veículos, reservada ao trânsito de pedestres e, quando possível, à implantação de mobiliário urbano, sinalização, vegetação e outros fins.” Trata ainda do logradouro público como parte do espaço público destinado pela administração local, ao lazer da população, assim definido: “LOGRADOURO PÚBLICO – espaço livre destinado pela municipalidade à circulação, parada ou estacionamento de veículos, ou à circulação de pedestres, tais como calçada, parques, áreas de lazer, calçadões.” (grifo nosso). Ressalte-se também que o CTB (Lei nº 9.503/97), em seu art. 48, §2º, deixa subentendido, de forma implícita, a proibição de se estacionar veículos em local destinado ao uso do pedestre, assim estabelecido: “Art. 48. Nas paradas, operações de carga ou descarga e nos estacionamentos, o veículo deverá ser posicionado no sentido do fluxo, paralelo ao bordo da pista de rolamento e junto à guia da calçada (meio-fio), admitidas as exceções devidamente sinalizadas. § 2º O estacionamento dos veículos motorizados de duas rodas será feito em posição perpendicular à guia da calçada (meio-fio) e junto a ela, salvo quando houver sinalização que determine outra condição.”. (grifei).  Acontece que a desorganização urbana, atrelada ao desrespeito às leis em vigor, tornou os centros urbanos em um caos. Isso porque as vias (calçadas) por onde deveriam transitar os pedestres, são utilizadas como estacionamentos, principalmente pelas motocicletas, fazendo com que torne obrigatório que os pedestres usem as vias de trânsito rápido (ruas) destinadas aos veículos motorizados para se locomoverem, de modo a colocar em risco a saúde e a integridade física do pedestre. Esse fato tornou-se costumeiro no centro urbano de Porto de Folha. Isso ocorre não por falta de previsão legal para atuação do poder público, mas por inércia da própria administração que deixou de implantar sistemas de fiscalização e aplicação de medidas necessárias para inibir as constantes infrações cometidas pelos proprietários de veículos, não somente de motocicletas mas também de automóveis. Legitimidade e legalidade do uso do poder de polícia do estado quanto a aplicação de multa por estacionamento em calçada. Uma solução seria a utilização do poder de polícia que detém o ente político municipal, que o exerce para manter a ordem pública dentro dos limites legais e previstos no ordenamento jurídico. É preciso lembrar que uma das fundamentações legais para o uso dessa prerrogativa, qual seja, o poder de polícia do Estado, encontra respaldo no código de posturas, na medida em que ocorre a violação da norma expressa, como também nas legislações atualmente em vigor. Destaque-se que o poder de polícia do município encontra-se disciplinado no caput do art. 78 e parágrafo único, do código tributário brasileiro, atribuindo à administração pública o exercício do poder de atuação dentro dos limites legais, em benefício do interesse público, da segurança e da ordem social, assim disciplinado: “Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.  Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”. A Emenda Constitucional nº 87/2014, incluiu o §10, incisos I e II, ao artigo 144 da CF, para disciplinar sobre a mobilidade urbana eficiente, isso porque as diretrizes sociais têm demandado por políticas de adequação do ambiente urbano, de maneira a estruturar as cidades e as vias de percursos não só veicular, mas de condução da população por meios ecologicamente correntos de forma a proporcionar às pessoas segurança e saúde, conforme se vê: “§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)  I – compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014) II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)". Observa-se ainda que a Lei Orgânica Municipal ao tratar da política urbana em seu capítulo II, especificamento nos arts. 125º, p. único, 126º, VI, e 127, estabeleceu normas para que o poder público adotasse diretrizes fixadas pela Constituição Federal e por Lei Complementar Municipal, voltados ao desenvolvimento urbano de forma a garantir à sua população direitos voltados à segurança, em atendimento a função social da cidade aos seus administrados, conforme se avista dos dispositivos a seguir: "Art. 125° – A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes fixadas pela Constituição Federal e por Lei Complementar Municipal, tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais e garantir o bem-estar de seus habitantes. § Único – O Plano Diretor, aprovado pela Câmara de Vereadores, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Art. 126° – No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Município assegurará: VI.A criação de áreas de especial interesse urbanístico, social ambiental, turístico e de utilização pública. Art. 127 – A execução da política urbana está condicionada as funções sociais da cidade, compreendidas como direito de acesso de todo cidadão à moradia, ao transporte público, ao saneamento, à energia elétrica, à iluminação pública, à comunicação, à educação, à saúde, ao lazer, ao abastecimento e à segurança, assim como a preservação do patrimônio ambiental e cultural." Posteriormente, foi editada, aprovada e sancionada a Lei nº 12.587/12, instituindo as diretrizes voltadas à implantação da política nacional de mobilidade urbana, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas. A lei estabeleceu ainda em seu art. 24, §4º[1], metas, com prazos determinados, para que os municípios se adequem às diretrizes da lei, sob pena de ficarem impedidos de receber recursos orçamentários federais destinados à mobilidade urbana. Jurispudências relacionadas. Há também jurisprudência tratando da matéria sobre a cobrança de multa, pelo município, dos proprietários de veículos, por estacionarem em local irregular ou proibido, in verbis:  “MULTA – ESTACIONAMENTO EM ZONA AZUL – MUNICÍPIO DE BAURU – COBRANÇA SEM AMPARO LEGAL – AÇÃO DESCONSTITUTIVA PROCEDENTE – Leis 2.074/78 e 2.757/78 – Município que alega cobrar multa por estacionamento irregular em "área azul" nos moldes da Resolução do CONTRAN – Existência de legislação municipal que criou área de estacionamento alcunhada de "zona azul" e que previa sanção pecuniária, que com o tempo teria perdido significado econômico – Princípio da legalidade e da anterioridade que impedem a cobrança com base em diploma ou ato administrativo federais ao arrepio da legislação municipal -Lei Municipal vigente que deve prevalecer, posto que autorizada pela Constituição Federal, no artigo 30, na ausência nova lei local que atualize o valor da sanção administrativa. Recurso improvido.”(TJ-SP – -….: 1043901720068260000 SP , Relator: Leonel Costa, Data de Julgamento: 30/11/2010, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 10/12/2010) Outra importante jurisprudência, confirma a competência municipal de sua atuação nos limites de seu território, orientado pela Constituição Federal, art. 30, e pelo Código de Trânsito Brasileiro, art. 24, VI, como forma de praticar o poder de executar, fiscalizar, atuar e aplicar medidas administrativas relacionadas ao trânsito, usando dessa maneira o seu poder de polícia, conforme avistado: “MULTA DE TRÂNSITO ESTACIONAMENTO IRREGULAR – ALEGAÇÃO DE IRREGULARIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO VÍCIO DE COMPETÊNCIA – INOCORRÊNCIA – VALIDADE DE AUTUAÇÃO E FISCALIZAÇÃO. Não demonstrada a existência de erro administrativo e tampouco ilegalidade na lavratura do auto de infração, uma vez que atendida a competência constitucional a respeito. Sentença mantida. Recurso desprovido.(TJ-SP – APL: 00211475920118260564 SP 0021147-59.2011.8.26.0564, Relator: Danilo Panizza, Data de Julgamento: 09/04/2013, 1ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 10/04/2013).  CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO MULTA POR INFRAÇÃO À LEGISLAÇÃO MUNICIPAL ESTACIONAMENTO TRÂNSITO ASSUNTO DE INTERESSE LOCAL COMPETÊNCIA MUNICIPAL. 1. Compete ao Município legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, CF), compreendidos como aqueles que se caracterizam pela predominância do interesse do Município em relação ao do Estado e ao da União. 2. A Lei Municipal nº 6.110/08 de Mogi das Cruzes refere-se ao tráfego urbano local. Matéria inserida na competência legislativa municipal, que visa à higidez da livre circulação de veículos e decorre da autonomia política e administrativa outorgada pela Constituição Federal aos Municípios (art. 30, I e II, CF e art. 24, II, CTB). Direito liquido e certo. Inexistência. Segurança concedida. Inadmissibilidade. Sentença reformada. Reexame necessário e recurso providos.”(TJ-SP – APL: 03879835220098260000 SP 0387983-52.2009.8.26.0000, Relator: Décio Notarangeli, Data de Julgamento: 12/02/2014, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 13/02/2014). Considerações finais. Estando essa proibição prevista no código de posturas de Porto da Folha, entendemos ser cabível à administração local, mediante disposição do poder de polícia que detém, e com a devida previsão legal ao caso, aplicar sanções (multas) relativas às infrações de trânsito, por violação ao dispositivo do art. 72, do Código de Posturas, se outra medida não houver sido editada, devendo ainda o poder público estabelecer os valores das multas administrativas a serem lançadas, tendo por base aquelas aplicadas pelo CONTRAN, a forma de como serão emitidos os título de cobrança da multa, estabelecer também, em caso de não cumprimento da obrigação do pagamento por parte do infrator, normas para a execução do título e, persistindo o infrator em não cumprir a obrigação impositiva, usar dos meios legais previstos na legislação vigente que possa tornar efetivo o pagamento da obrigação aos cofres públicos. Anote-se que tal medida deve está ligada a um determinado órgão criado pelo próprio poder público e com atribuição para o exercício da atividade fim, que é a fiscalização, execução e aplicação das medidas relacionadas às infrações cometidas em desrespeito ao rito do art. 72 do código de posturas, sendo, nesse caso específico, o estacionamento de motos e automóveis em via de circulação de pedestres. De certo que alguns municípios já vem adotando medidas para solucionar o problema da mobilidade urbana. Isso porque a constante preocupação com o crescimento da população idosa, dos portadores de necessidades especiais e das pessoas com mobilidade reduzida, tem gerado grandes necessidades em atender essa população que precisa de meios adequados para o seu deslocamento com segurança sem gerar danos físicos à pessoa e sem ocasionar a administração pública indenizações por reparações de danos causadas pela inércia do poder público, que deve zelar pelos deveres administrativos de fiscalização, execução, manutenção e aplicação das medidas administrativas de sua competência.
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Participação popular no âmbito municipal e os orçamentos participativos
Este artigo tem como tema a participação popular nos municípios e o controle social via orçamento participativo. Faz-se um histórico do controle na Administração Pública para se chegar aos atuais orçamentos participativos que permitem a população efetivamente escolherem sobre quais obras o município deve ter prioridade. Especificamente trata do orçamento participativo no município de Belo Horizonte e os seus desdobramentos, bem como uma nova modalidade de participação popular que é a Gestão Compartilhada. Por fim, conclui-se pela importância dessa forma de controle social incentivada pela Constituição.
Direito Administrativo
Introdução Nosso sistema jurídico prevê inúmeras formas de controle da Administração Pública: pelo Poder Judiciário, pelos Tribunais de Contas, pelo Poder Legislativo, pelo Ministério Público e também o controle exercido diretamente pelos cidadãos e entidades civis, mais conhecido como controle popular. Muito embora o controle popular não seja ainda uma realidade expressiva no país, com a evolução empreendida na sociedade e na sua forma de se relacionar com o Estado, seu crescimento tem-se acentuado nos últimos anos. A descentralização das decisões políticas que se implementou com o advento da Constituição Federal de 1988, aliada a uma nova forma de interpretar o Estado Democrático de Direito, permitiram abertura para esta forma mais democrática de controle do Estado. O aumento das competências e do Poder local pela atual Constituição Federal foi acompanhado do reconhecimento, pela Carta Política, da necessidade de participação popular no planejamento das ações municipais, ao reconhecer às associações representativas da sociedade o direito de cooperarem com tal planejamento, sendo tal planejamento preceito fundamental a ser adotado em todas as Leis Orgânicas do país (art. 29, CR/88). Alguns exemplos podem ser apontados, nessa relação Estado-sociedade que ampliaram o exercício da cidadania, todavia, pela sua importância, optamos por tratar aqui da implantação do Orçamento Participativo, tomando como modelo, o Orçamento Participativo implantado pelo Município de Belo Horizonte. 1. A participação popular e a evolução histórica do estado de direto Iniciaremos através de uma avaliação histórica da idéia de participação, relevante para que possamos compreender o crescimento do anseio pela participação popular, frente à complexidade dos Estados modernos. Do ponto de vista político e mesmo jurídico podemos observar um processo de mutação social, que levou à evolução significativa do papel do Estado. MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (2000, p. 62), analisando a evolução do Estado de Direito e a sua influência em relação à idéia de participação da comunidade na gestão e controle da Administração Pública, explica que inicialmente, no Estado Liberal, instituído a partir das Revoluções Liberais[1], mesmo sendo anunciada a democracia como modelo moderno de gestão do Estado, percebe-se uma separação entre o Estado e a sociedade civil, assentada na preocupação com uma intervenção mínima do Estado, em função do interesse existente na sociedade em proteger os direitos individuais e a liberdade de iniciativa. É evidente a dicotomia entre direito público e direito privado. Naquela ocasião, até mesmo por conta do caráter liberal burguês das revoluções ocorridas, a democracia ficou restringida a um mero sistema político representativo, onde se traduzia uma soberania popular baseada num status de cidadão advindo da propriedade[2]. Não obstante essa nítida separação, o que se verificou com o passar do tempo foi um crescimento considerável da Administração Pública, e a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial tem origem o Estado Social de Direito, com prestador inúmeros serviços públicos para atender a crescente demanda coletiva. O grande problema é que o Estado não estaria preparado para dar conta dessa “expansão” no seu funcionamento, ocasionada pela emergência de uma sociedade pluriclasse, de forma que o aumento do volume e a diversidade das demandas apresentadas ao Estado acabaram por levar a um fracasso no atendimento das necessidades públicas e ao esgotamento desse modelo estatal, exigindo, portanto, nova formatação[3].  Como conseqüência desse aumento dos interesses públicos, provenientes dos vários setores da sociedade civil e da impossibilidade do Estado em atendê-los de forma eficaz, abre-se a sociedade um novo papel, agora mais colaborativo, diminuindo a separação entre Estado e sociedade que tomou lugar anteriormente. A proteção do interesse público deixa de ser prerrogativa do Estado, ocorrendo uma “privatização do interesse geral”[4], seja através da delegação do poder público ao particular, ou por simples colaboração deste em uma atividade estatal paralela. Diante dessa sociedade pluriclasse e dos movimentos sociais daí emersos, não lhe cabia mais o papel de mera espectadora, sentindo necessidade de também influenciar as decisões administrativas relacionadas às políticas públicas. Além disso, como bem observa VANICE REGINA LÍRIO DO VALLE (2002, p.), a partir da visão do prof. DIOGO DE FIGUEIREDO a respeito das Revoluções das Comunicações, também por força da intensificação das comunicações, este pluralismo social avança, sobretudo em função da valorização do conhecimento, resultando numa sociedade que por conhecer, deseja necessariamente participar. Neste cenário de evolução social, nada mais certo que seu instrumento de organização acompanhe esta passagem. Para tanto, o Estado de Direito agora passa a ser reconhecido como um Estado Democrático de Direito, onde podemos perceber uma superação do caráter negativo dos direitos fundamentais[5] existente no Estado Liberal, transformados em instrumentos jurídicos de controle da atividade estatal positiva, a ser orientada a permitir a participação dos indivíduos e grupos na gestão e no controle da Administração Pública. Passam a integrar os direitos fundamentais, além das liberdades clássicas, os direitos econômicos, sociais e culturais. O Estado Democrático de Direito surge, assim, como uma proposta de redefinição dos conceitos como a democracia, a soberania popular, a cidadania, o público e o privado etc. Busca-se inserir os cidadãos como atores efetivos nos processos de tomadas de decisões, rompendo com os paradigmas jurídicos anteriores que simplesmente buscaram valorizar a pretensão de um bem-estar dos cidadãos que se apresentavam ora como cidadãos-proprietários, num primeiro estágio, ora como cidadãos-clientes do Estado, já no âmbito do Estado Social. Com isso, o modelo de democracia representativa apresentado pelo Estado Liberal afigura-se em sensível crise, sobretudo pelo descrédito do cidadão e a quebra da confiança em relação à idoneidade e capacidade das instituições e dos agentes políticos, decorrentes, acima de tudo, da queda no desempenho prestacional dos serviços públicos pelo Estado. Desta forma, o modelo representativo, com exacerbado distanciamento entre a esfera política e a esfera pessoal, agora tende a ser substituído por outro com apelo à participação popular e uma aproximação entre os cidadãos e as instâncias de decisão. Como muito bem asseverou DI PIETRO (2000, p. 39): “o Estado Democrático de Direito trouxe a idéia de participação do cidadão na Administração Pública, combatendo a separação entre Estado e sociedade e pregando a adoção de uma Administração menos autoritária, menos centralista, menos hierarquizada, mais próxima do cidadão.” 2. Participação popular como legitimação do processo decisório As evoluções da sociedade e como visto a própria Revolução das Comunicações conforme denominada por DIOGO DE FIGUEIREDO desencadearam numa relação de maior proximidade e interação entre Estado e sociedade. Com isso, o conceito de democracia, antes atrelado a ideia de representatividade, em função da soberania popular elencada na Constituição, passa a ter como alicerce também a participação popular. Neste sentido, a própria Constituição Federal de 1988 ao estabelecer no artigo 1º, parágrafo único, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” admite uma interpretação no que tange ao efetivo exercício da soberania popular, efetivamente por meio da participação popular. JÜRGEN HABERMAS (2003), ao tratar sobre o Princípio do Estado de Direito identifica duas categorias de direitos ali inseridas: o Direito de Elaboração e o Direito Participativo, o primeiro voltado à elaboração das leis, onde são os direitos políticos basilares que fundamentam os interesses de participação nos processos legislativos voluntários; o segundo, relativo à satisfação dos direitos igualitários de satisfação das liberdades privadas e dos direitos de participação política. Assim é que HABERMAS (2003) elabora sua teoria do discurso ou da ação argumentativa inicialmente a partir do que ele chama de discursos de fundamentação ou justificação, relacionados à criação da norma jurídica e, num segundo momento, na forma dos discursos de aplicação, mais ligados ao Poder Judiciário, estruturas discursivas que permitirão a operacionalização do agir comunicativo, por via procedimental. Tal teoria se desenvolve num Estado Democrático de Direito em que se pressupõe a existência de espaço público não restrito ao âmbito estatal, de uma comunidade de homens livres e iguais capazes de criar leis que os regem e onde os próprios envolvidos precisam chegar a um acordo onde prevaleça a força do melhor argumento. Nesse sentido, HABERMAS apresenta uma proposta de integração entre o Estado e a Sociedade por intermédio de uma política deliberativa. SOUZA CRUZ (2008) identifica no racionalismo habermasiano “a resposta correta nas condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação e de justificação necessárias aos discursos de fundamentação e de aplicação.” Tal racionalismo impõe a necessidade de “interação do Direito com os demais sistemas sociais”, que no caso da Política, a interação ocorre por meio dos princípios da democracia e da política deliberativa.[6]O princípio da democracia permite a abertura do discurso jurídico para argumentos não morais (pragmáticos e ético-políticos), permitindo, assim, uma maior adesão da cidadania na normatividade jurídica, apontando para o princípio da soberania popular.[7] Segundo HABERMAS (2003) somente um Estado Democrático de Direito que possua um sistema político que mantenha conectados o poder administrativo e o poder comunicativo[8] não sofrerá a crise de legitimidade. O papel do Direito é regular o princípio democrático, interligando as decisões tomadas no processo deliberativo a fim de torná-las efetivas no plano prático. A democracia participativa, analisada sob os olhos da teoria discursiva Habermasiana, assenta-se na garantia de acesso a qualquer indivíduo em pleno gozo de seus direitos políticos de exercer, em todos os graus, a sua liberdade de participar nas discussões e resoluções dos problemas atinentes à sociedade em que está inserido. Nestes termos, a democracia participativa exige, para a sua efetiva concretude, a ação da soberania popular pelo instrumento dialógico. Assim, diferentemente do raciocínio anterior em que se embasava o positivismo jurídico, sobretudo Kelsiano[9], – e que predominou durante um momento histórico anterior – no qual a democracia “moderna” seria aquela exercida indiretamente pelo parlamento, e onde a representação popular era vista como a forma máxima de participação decisiva na formação da vontade estatal, com a teoria do discurso temos a justificação e legitimação do Direito e Estado através dos procedimentos dialógicos ocorridos entre as forças sociais (cidadãos) e o Estado para tomada de decisões. 3.Participação e controle social O poder comunicativo popular, conforme nos ensina HABERMAS é capaz de operacionalizar a democracia participativa, na medida em que torna possível efetivar a relação entre a figura do Estado e a consecução das finalidades públicas.[10] A participação popular ocorre tanto por decorrência do Direito de Elaboração citado por HABERMAS, como pelo Direito Participativo. No primeiro caso, quando o poder comunicativo do povo atua na criação legislativa, no segundo, quando em relação à atuação concreta estatal, a participação emerge por meio do controle[11]. Esse controle, denominado social, pressupõe participação popular e, ainda, o exercício do poder estatal em cooperação e subsidiariedade, dando ênfase ao consensualismo. A atuação consensual, segundo VALLE (2002, p. 81) “pressupõe uma conjugação de esforços na compreensão dos problemas e na formatação das soluções, que igualmente não podem prescindir da participação da sociedade.” Nesse sentido, VALLE (2002) dá ao controle social um novo dimensionamento. O que antes se tratava de uma mera avaliação a posteriori do que tivesse realizado ou decidido o Estado, numa visão mais moderna do instituto permite uma atuação popular de cunho preventivo no processo de formação da decisão do Estado em relação a temas de natureza administrativa, com repercussão no interesse público.[12] Não se trata meramente de fazer “oposição” ao governo como colocado por BRITTO (Apud VALLE[13]). O intuito também não é meramente fiscalizatório quanto à legalidade das decisões administrativas, mas devem ser tomados em conta todos os princípios orientadores da Administração Pública. JOSÉ NILO DE CASTRO (2008, p. 346) alerta, neste sentido, que “a democracia não se reduz apenas a eleger os governantes, e tampouco a lhes dar um cheque em branco. Ela impõe que os cidadãos controlem e busquem a transparência da gestão pública e das decisões que são tomadas no seu interesse, ativando mecanismos de participação direta.” Demais disso, a ideia de cooperação, de conjugação de esforços pressupõe que no controle social a participação popular sirva como mecanismo de atribuição de responsabilidade e promoção de aceitabilidade. A cooperação somente se efetiva se o grupo social que oferece a sua parcela de colaboração no processo de formação da decisão da Administração Pública divide com esta o ônus da decisão. Assim, a democratização do processo decisório, implica em compartilhar com a sociedade também a responsabilidade pelas opções deliberadas, sempre que estas tenham efeitos sobre a coletividade. A partir dessa nova visão o controle social deixa de ser visto como um controle exercido exclusivamente a partir de uma visão externa à Administração, mas envolvem ainda “controles internos e preventivos, exercidos por indivíduos ou grupos na formação das decisões administrativas.”[14] Muito embora a relação existente entre controle social e participação popular, os mesmos não se confundem. O que existe sim é uma proximidade conceitual que leva a afirmação de que a participação popular, devido a sua amplitude pode ser considerada gênero, do qual o controle seria espécie[15]. O controle social é modo de participação popular, é expressão do poder político, é fator de legitimidade do Estado, indicador de desenvolvimento da democracia, consolidador das liberdades e direitos sociais; e ainda percussor de desenvolvimento social e também econômico, evitando desperdícios e a inadequação no uso dos recursos públicos, de forma que deve ser dada possibilidade e que o mesmo seja exercido por todos os cidadãos em sentido lato. No entender de LUCIANA MORAES RASO SARDINHA PINTO (2008, P. 310): “O controle social envolve a atuação organizada da sociedade civil para instituir mecanismos de coordenação e cooperação para objetivos comuns. Esse controle visa à substituição das relações imperativas, verticalizadas e de imposição que caracterizam a atuação estatal e se insere em estágio político mais avançado, com participação popular e prática da cidadania. […] Eles superam em eficiência e economicidade as pesadas soluções burocráticas criadas a mais de um século e até hoje empregadas.” A participação popular, assim como o controle social, é também expressão do poder político, no sentido de políticas ou condutas as serem implementadas pelo Estado, compartilhando ainda das mesmas funções atribuídas ao controle do cidadão estando, ademais, positivado pela Constituição do Brasil como direito fundamental. 4. A estreita relação entre o município e a cidadania ativa A democracia participativa, segundo FABIANA DE MENEZES SOARES (1997, p. 121), teve seu marco histórico na década de 60, com os movimentos sociais e estudantis, “cujo ideário se assenta sobre a conscientização do papel do cidadão como agente ativo no processo político e a diminuição da desigualdade socioeconômica”, num momento em que os custos desenvolvimentistas recaiam sobre a camada mais carente da sociedade. Acolhido como direito fundamental pela Carta de 1988, o princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal do cidadão nos atos de governo, não se resumindo, portanto, a soberania popular ao voto em eleições para o Legislativo e o Executivo. Além disso, com a edição da Carta Magna, observa-se o estabelecimento da transparência administrativa, tornando propício o desenvolvimento de linhas de atuação administrativa que contam com a participação do administrado. A participação popular como previsão constitucional está garantida a qualquer cidadão, que pode exercê-la de forma restrita ou ampliada, neste último caso através dos movimentos comunitários e organizações. Os movimentos comunitários ou populares têm aparecido desde finais dos anos 70 do princípio dos 80, trazendo para o debate público suas demandas e reclames, em decorrência da incapacidade do Estado em prover as condições mínimas de urbanidade para a população local.[16] Neste sentido, a atuação do cidadão através dos movimentos sociais em suas comunidades tem demonstrado evidente contribuição para concretização da cidadania sob o prisma legal, permitindo a concretização de direitos sociais perante o Estado Democrático de Direito. Como visto, essa participação acontece de forma mais legítima quando se dá no âmbito local. Nos termos da Constituição de 1988, foi adotado pelo Brasil o modelo de República Federativa, com a descentralização do poder com a outorga ou delegação de poderes para os governos locais. Tal descentralização teve o intuito de permitir a realização das políticas públicas necessárias à comunidade local a fim de tornar possível o desenvolvimento do país de acordo com as características regionais. Atrelado a isso, DI PIETRO (2011, pp. 16-17) sustenta que o princípio da subsidiariedade, apoiado na base do Estado Democrático de Direito, determina que as decisões de interesse comum coletivo devem ser tomadas, de forma preferencial, por instituições mais vizinhas do cidadão, devendo o governo federal atuar de forma subsidiária, somente quando os entes locais não possam fazê-lo de per si. Assim, nos termos do art. 30, da CF/88, a atuação legiferante e a escolha das políticas públicas locais compete aos Municípios, decorrendo, ainda, da descentralização do poder instituída pelo federalismo brasileiro, a autonomia dos entes políticos para auto-organizar-se e implementar seu próprio orçamento. Parte-se, então, do pressuposto que, em razão da sua proximidade com os cidadãos titulares de direitos fundamentais, ninguém melhor do que o poder local para solucionar os problemas das comunidades. O Município, portanto, é a sede originária da efetiva participação popular. Mas para que os Municípios pudessem efetivar os direitos fundamentais dos habitantes da comunidade local, percebeu-se a necessidade de participação popular, através da intervenção da sociedade tanto na formulação como na execução das políticas públicas, como meio mais eficaz para satisfação das necessidades públicas. A própria noção de autonomia e autodeterminação na aplicação das rendas pelos Municípios, para sua legitimidade, dependem da existência de intervenção popular. FLEURY (2006) então propõe o exercício pelos integrantes da sociedade de uma cidadania ativa, a qual pressupõe um modelo de integração e de sociabilidade, um ambiente propício ao diálogo entre Estado e sociedade civil, onde se possa reconhecer os sujeitos e inseri-los na esfera pública, o que muito se assemelha ao modelo de integração entre o Estado e a Sociedade por intermédio de uma política deliberativa pregado por Habermas. Sendo assim, “a cidadania não pressupõe a espera, mas sim que se participe: denuncie, exija e imponha; e o exercício da cidadania deve ser cotidiano e persistente, parceiro da administração na efetivação de direitos fundamentais. Não nos furtemos de exercê-lo.” [17] A definição do que seja interesse público, na nova vertente que o admite como garantia de direitos fundamentais e não mais voltado somente para a satisfação de interesses do Estado, vai ser construído a partir da participação dos sujeitos interessados e também do acompanhamento da implementação e execução das políticas públicas, como garantia da efetividade das ações governamentais. Uma interpretação sistêmica da Constituição Federal, segundo SOARES (1997, pp. 144-145), “que consagra o exercício direto da soberania popular e a condição de pessoa política da qual o Município é possuidor, aliada ‘à necessidade concreta do município (que variará de acordo com as peculiaridades de cada um)’”, conduzirá, necessariamente, à “determinação do interesse local, uma vez que aquela necessidade é a matriz do próprio interesse”. Neste contexto, as necessidades concretas locais, a partir da atuação conjunta do cidadão ou do conjunto de cidadãos e das autoridades locais, se configuram no interesse local legitimo a ser satisfeito, que, sendo alcançado se traduzem na efetivação do desenvolvimento das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar de seus integrantes, direitos assegurados pelo art. 182, da Carta Política, e de princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito, como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e da marginalização. As experiências participativas, em pesquisa feita por SOARES (1997, p. 149), representaram nas capitais brasileiras analisadas, um retorno positivo em relação às autoridades locais, que tiveram grande índice de aprovação popular. No entanto, na América Latina, e, conseqüentemente no Brasil, a dimensão de cidadania é uma peça em construção onde alguns atores tentam introduzir suas demandas na esfera pública e outros ainda permanecem sem voz. Alguns fatores têm se mostrado como empecilhos à realização dessa cidadania ativa. Entre eles podemos citar o clientelismo político, onde a atuação do Estado tem como fins a prestação de serviços que privilegiem alguns em detrimento da grande maioria da população. Outro fator negativo é o assistencialismo ou paternalismo que enxergam o indivíduo apenas a partir de um viés de ajuda e caridade e sempre de forma episódica e não continuada, sem encará-lo efetivamente como cidadão e, portanto, sujeito de direitos e obrigações. Também contribuem para impedir a promoção da cidadania fatores como a dificuldade para acessar informações públicas ou mesmo a incompreensibilidade destas informações, devido ao seu alto grau de complexidade técnica, como é o caso do Orçamento Público. Além disso, a falta de cultura participativa e fiscalizatória, acaba por afastar do interesse da sociedade uma atuação integrada com o Estado. Todos esses são fatores que precisam ser combatidos, para que a participação popular possa se torna efetiva. De um lado é preciso vontade política para que os entes políticos se abram à participação popular, de outro, é preciso que haja interesse da população pelo tema. SOARES (1997, p. 126) refere-se aos ensinamentos do Prof. DIOGO DE FIGUEIREDO a respeito da participação, onde o mesmo atribui a esta um “duplo condicionamento”: um primeiro, subjetivo, relacionado com a motivação em participar e um segundo, de caráter objetivo, de natureza político-juridica relacionado com a institucionalização da participação. A observância desse “duplo condicionamento”, segundo o prof., seria necessária para que a participação popular pudesse ser efetivada; qualquer um destes, sem a presença do outro, levaria ou a uma aparência de democracia (somente institucionalização) ou a um tolhimento da liberdade fundamental (somente intenção participativa). 5. O orçamento participativo no âmbito dos municípios como forma de participação popular Diversas são as classificações utilizadas para os variados tipos de participação popular na Administração existentes. Por critérios didáticos, adotaremos aqui a classificação adotada por SOARES (1997, pp. 153-155), em função do momento de ocorrência da participação. Se na fase preparatória dos processos decisórios, por meio de informações propostas, protestos e consultas, sem porém implicar necessariamente numa vinculação da decisão política, trata-se de participação não-vinculante. Quando a participação acontece na fase de decisão e tem a capacidade de influencia-la, neste caso, estar-se diante da participação vinculante. Exemplos da participação vinculante são as audiências públicas e as consultas populares. Um terceiro tipo participativo, que compartilha a autora com Canotilho, é aquele em que a vinculação do poder de decisão é autônoma, implicando uma mudança profunda nas relações de poder que pode levar inclusive a uma “substituição” do usual sujeito titular do poder decisório. Contudo não há exemplos da participação vinculativa autônoma nas normas brasileiras. Em nosso caso, interessam as formas de participação que se situem na fase de tomada de decisão. São denominadas também de co-gestão pública, uma vez que as intervenções populares visam influenciar efetivamente o conteúdo da decisão administrativa ou mesmo constituir a própria decisão definidora das políticas públicas. Especificamente no que se refere às consultas populares, a co-gestão pode se dar tanto no âmbito do Poder Executivo, como também do Poder Legislativo, como no caso do orçamento e do planejamento urbano. A adoção da técnica participativa nas consultas populares envolve duas fases distintas. Uma inicial, que ocorre dentro da Administração, onde é formulado o conteúdo básico, o objeto da consulta popular. A outra é referente à execução do processo político da consulta popular, que se realizará junto à comunidade, no âmbito regional, englobando um ou vários bairros dentro de uma região, várias regiões ou mesmo toda a cidade. Vários são os exemplos de instrumentos de consulta popular no âmbito dos Municípios. Especificamente no que tange à participação popular no orçamento público, determinados municípios têm adotado, no âmbito da sua legislação, a previsão da participação popular na definição das prioridades de investimentos de interesse local, através de processo de consulta em Seminários Setoriais e Assembleias Regionais, cujo resultado tem-se denominado Orçamento Participativo no Projeto de Lei Orçamentária Municipal. A participação popular na elaboração e discussão do orçamento público encontra-se, ademais, expressamente prevista no parágrafo único, inciso I, do art. 48 da Lei Complementar no. 101/2000[18], sendo importante frisar, no que toca aos municípios, que referida participação é condição obrigatória para aprovação dos instrumentos de planejamento orçamentário (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Orçamento Anual) pela Câmara Municipal, consoante determina o art. 44 da Lei no. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).[19] 6. O orçamento participativo no município de belo horizonte. O orçamento participativo na cidade de Belo Horizonte surgiu a partir do ano de 1993. E muito embora já existissem outras formas de participação popular, elas não tinham essa designação e não possuíam o âmbito de abrangência do orçamento participativo implantado em 1993. Para sua implantação o orçamento participativo de Belo Horizonte sofreu algumas adaptações à realidade da política da cidade como, por exemplo, sempre passar pelo crivo do legislativo, para que não houvesse um desprestigio para os vereadores representantes das regionais. Além dessas adaptações o orçamento participativo em Belo Horizonte no decorrer dos anos sofreu grande evolução, se tornando mais especifico e com forma de participação popular mais democrática, assim, é observado em 1996 com a implementação do orçamento participativo habitação; em 1999 com a implementação do orçamento participativo Cidade; até se chegar ao Orçamento Participativo Digital no ano de 2006. Para cada tipo de orçamento participativo há uma forma de participação popular e de força dessa participação, até mesmo porque se levam em conta as suas características específicas. Aqui se fará um breve apanhado do que ocorre nas reuniões do Orçamento Participativo de Belo Horizonte que passa desde a escolha das obras até a sua realização. Assim, no Orçamento Participativo Regional ocorrem reuniões com a(s) comunidade/regionais para que elas apresentem as obras que entendem ser necessárias. A prefeitura faz um estudo técnico sobre a viabilidade de cada uma das obras, que consiste em análise financeira e estrutural, e leva novamente à população para que ela escolha a obra que mais lhe interessa na sua respectiva região. A escolha das obras é realizada através de cada sub-regional e neste ato são escolhidos os seus respectivos delegados. Nesta fase de escolha de obras pode ser observado um grande poder de contra argumentação da comunidade envolvida, pois que nem sempre uma obra que é votada é terminada no período programado, ou seja, elas podem ser realizadas em etapas. Neste momento, cada comunidade/regional deve demonstrar o porquê a continuidade da sua obra é necessária em detrimento das demais. A distribuição dos recursos é realizada da forma mais igualitária possível, pois que se divide a cidade em regiões, sendo que 50% (cinquenta por cento) do valor destinado ao orçamento participativo é destinado as regionais de forma igualitária e os outros 50% (cinquenta por cento) é dividido conforme critérios do índice de qualidade de vida urbana, ou seja, quanto maior o número da população de determinada regional e menor a qualidade de vida, maior será o recurso destinado àquela regional. O Orçamento Participativo Habitação, criado em 1996, tem como escopo a escolha de política pública de moradia para as famílias que se encontram em situações de risco ou de movimentos de sem teto. Para poder fazer parte do projeto a pessoa tem que ter domicílio em Belo Horizonte pelo prazo mínimo de 02 (dois) anos. Os líderes desses movimentos, escolhidos entre eles, é que têm a função de fiscalização e controle junto ao município sobre a realização das obras. Já o Orçamento Participativo Digital, idealizado a partir de 2006, foi criado para as grandes obras na cidade de Belo Horizonte definidas pela própria prefeitura, cuja participação popular se dá através da internet, bastando para tanto comprovar que tem domicílio eleitoral na cidade de Belo Horizonte. Segundo informações retiradas do próprio site da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte a primeira grande obra realizada através deste instrumento foi a revitalização da Praça Raul Soares. A sua finalidade era a de incluir a participação popular em obras que não estivessem ligadas diretamente no interesse regional, mas sim numa participação voltada para a política de estruturação da cidade. As rodadas para o Orçamento Participativo, que eram anuais, a partir de 1999 passaram a ser bienais, devido à própria dificuldade e burocracia nos processos licitatórios, facilitando o poder de resposta do Executivo Municipal para a população para o cumprimento das obras aprovadas. No que se refere ao controle social do Orçamento Participativo em Belo Horizonte, este se dá em duas ocasiões, quais sejam, no momento da escolha das obras indicadas pelas regionais que deverão ser levadas ao Executivo para a verificação de sua viabilidade e num segundo momento quando as obras viáveis são levadas às regionais e se escolhem os delegados para finalmente se escolher a obra que será realizada e também para que haja o controle de que a mesma será realizada pela Prefeitura. Este último controle não é verificado no Orçamento Digital, pois que a escolha das obras é realizada pela prefeitura, logo o estudo de viabilidade já está pronto, restando somente ao usuário da internet escolher a obra, sem que esta escolha passe novamente pelo crivo de qualquer órgão. A accountability no Orçamento Participativo de Belo Horizonte se dá através do trabalho exercido pela COMFORÇA – Comissão de Acompanhamento de Fiscalização da Execução do Orçamento Participativo. No caso do Orçamento Participativo Regional a eleição se dá através de Fórum Regional de Prioridades Orçamentárias, que é uma das etapas para a escolha da obra que será realizada pelo poder executivo na realização do Orçamento Participativo. Sobre a COMFORÇA do Orçamento Participativo da Habitação seus membros são escolhidos dentro dos movimentos sociais em prol de moradias, não são escolhidos regionalmente como ocorre com o primeiro, mas sim através das lideranças desses movimentos. Neste caso, a atribuição da COMFORÇA não é somente de fiscalização das obras realizadas pelo executivo municipal, mas também a própria tentativa de que não ocorra situações de clientelismo, o que foi muito verificado no início da implementação desta política. E para finalizar o processo de accountability existe a COMFORÇA municipal que agrega a COMFORÇA Regional e Habitação com o fino proposito de acompanhar e não somente atender seus objetivos, mas também para uma forma de controle e fiscalização no âmbito municipal, numa visão da cidade no geral. A prefeitura é representada pela GGOP – Grupo Gerencial do Orçamento Participativo que é formado por algumas Secretarias do Governo para exercer o papel fiscalizador. Não se pode olvidar para o fato de que é possível a verificação de clientelismos na escolha das obras, talvez seja por este motivo que a Câmara Municipal, atualmente, esteja de certa forma alijada de todo o procedimento do Orçamento Participativo de Belo Horizonte. Mas, muito embora tenham sido observados casos de favorecimento pessoal, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte vem tentando, através de procedimentos mais rigorosos e legais a inibição desse tipo de prática (AZEVEDO, 2009). Muito embora haja uma efetiva participação popular desde a escolha das obras até a sua finalização através da fiscalização e o incentivo para que a população participe das rodadas do Orçamento Participativo, todo o procedimento é determinado pela Prefeitura de Belo Horizonte, daí chegar-se a conclusão de que o poder de decisão é do Executivo Municipal. Apesar de determinação legal para que os recursos orçamentários dos municípios sejam discutidos através da participação popular os aportes financeiros do Orçamento Participativo no município de Belo Horizonte desde o início têm como percentual previsto de 5% (cinco por cento) do valor total do Orçamento Municipal destinado para as suas obras ARAÚJO (2012, p. 27). Assim, com esse caráter deliberativo, pois que a sociedade, mesmo limitada a aportes financeiros e de complexidade das obras, tem o poder, ainda que mínimo, de escolher o que é o melhor para a sua região e até mesmo a cidade, caso do orçamento participativo digital, o município de Belo Horizonte vem consolidando essa forma de participação social e controle. O estudo do Orçamento Participativo em Belo Horizonte, permite, ainda, concluir que uma vez que a comunidade participa do processo de escolha e de fiscalização, também ela se torna responsável pela sua região, como por exemplo, fazendo melhorias nos seus próprios imóveis e até mesmo mantendo-se naquela região (AZEVEDO, 2009). Logo, a participação popular na escolha das obras e na sua conclusão tem o caráter que é buscado atualmente no programa de Gestão Compartilhada que a Prefeitura de Belo Horizonte está tentando implementar, qual seja a de que a população também se torne corresponsável pelo futuro da cidade (AZEVEDO, 2009). 7. A gestão compartilhada como forma de participação popular. Com a consolidação do Orçamento Participativo, a Prefeitura de Belo Horizonte procurou implementar outras formas de participação popular, e no ano de 2011 criou, através da lei municipal 10.101 de 14 de janeiro deste ano, a Secretaria Adjunta de Gestão Compartilhada, cujo objetivo é o planejamento e a implantação de participação popular. A Gestão Compartilhada em Belo Horizonte teve como fundamento a melhora da participação da sociedade nas políticas públicas. Seu escopo era trazer à população a ideia de corresponsabilidade sobre os rumos que a cidade deve tomar para sua melhoria num longo prazo. Assim, busca dar efetividade ao planejamento, mas tentando atender os anseios da sociedade. Para tanto, existem programas de conscientização dessa responsabilidade da sociedade, por exemplo, grupos de teatros e palestras. A cidade foi dividida em 40 (quarenta) territórios, ao contrário do orçamento participativo em que há quantificação e grau de complexidade para a proposta da obra, na Gestão compartilhada basta um cidadão apresentar o projeto. Também difere do Orçamento Participativo por não haver limite de valor, complexidade ou tempo, pois que se trata de uma ação que planeja a cidade para o futuro, são metas a serem alcançadas. O Planejamento Participativo Regionalizado tem como proposta o aprimoramento de outras políticas de participação, como por exemplo, o próprio Orçamento Participativo, bem como a possibilidade de dar diretrizes de uma política pública a ser implantada ao longo dos anos. Para tanto, a partir de 2011 começou o ciclo de rodadas para que a população se inteirasse da nova proposta do governo. Com divulgação a Prefeitura de Belo Horizonte procurou trazer além da parte da população que já participava das decisões do Orçamento Participativo, também outros setores da sociedade. Neste caso, não há caráter deliberativo, somente de participação e opinativo, pois que ainda não se se verá a execução das obras ou intervenções escolhidas, mas sim uma diretriz do que a sociedade procura para o futuro da cidade. Mas o controle social em tese poderia ser mais efetivo, já que todos os setores da sociedade são chamados a participar. Conclusão A conclusão que se pode chegar neste trabalho é a de que após uma criação do Estado como o conhecemos hoje e, no caso do Brasil, a partir da Constituição de 1988, a participação popular tornou-se uma meta a ser alcançada pelos governos. Como forma de controle da sociedade deveria ser mais cobrada por esta, já que a falta de planejamento do Estado para determinadas ações trazem consequências muitas das vezes irreversíveis. Todavia, muito embora a descentralização política estimule a participação, o que acontece, muitas vezes, como observa José Murilo de Carvalho (Apud SANTOS, 2008, p. 28), é resultado de uma cultura política no Brasil de “estadania” – quando o cidadão cruza os braços e entrega ao Estado a definição das políticas públicas locais e a forma de alocação dos escassos recursos fiscais – e não de cidadania. Por tal razão, canais como ombudsman nos órgãos públicos, as corregedorias, o próprio Ministério Público como órgãos de controle da sociedade, ainda que de pouca atuação, devem ser fortalecidos. Ações de divulgação e até mesmo efetividade nas ações governamentais para que esse controle social se torne efetivo são importantes para que o cidadão se sinta um agente de modificação social e principalmente um corresponsável pelas diretrizes governamentais. Além disso, a obrigatoriedade da participação popular na elaboração da lei orçamentária, embora se possa questionar a sua extensão nas localidades onde tem sido implantada, é relevante instrumento para fortalecimento da cidadania, e superação da cultura da “estadania”. Especificamente no Município de Belo Horizonte, o Orçamento Participativo implantado em 1995, seguindo uma diretriz da Lei Orgânica Municipal que previa uma maior participação popular, conforme ditame da Constituição de 1988, adotando um modelo existente em outras cidades do Brasil, é um exemplo disso. Embora não tenha sofrido grandes modificações no que se refere aos valores alocados, ao longo dos anos o Orçamento Participativo do Município de Belo Horizonte se desdobrou para atender os anseios da sociedade, ou pelo menos tentar, nas formas de Orçamento Participativo regional, habitacional e digital. No ano de 2011 com uma nova proposta o Executivo Municipal trouxe uma forma de governar denominada Gestão Compartilhada. Tal iniciativa tem como escopo a conscientização da sociedade para a responsabilidade que ela tem sobre a cidade. Ainda em fase de implantação e implementação, pois que somente a partir deste ano de 2013 é que começaremos a observar e sentir as consequências desse novo modelo, se houver um maior engajamento da população e do Executivo Municipal, sem olvidar para o fato de que este é quem dita as regras do jogo, talvez se consiga alcançar o fim da lei que é trazer maior responsabilidade para a comunidade municipal belo horizontina sobre o seu próprio futuro. O alcance do patamar democrático desejado exige um equilíbrio das forças, com uma expansão ainda maior da participação popular, permitindo, ademais, que esta ocorra de forma efetiva. Caberia, para isso, a cada uma das partes dar um passo à frente na construção desse novo modelo democrático. É o que se espera com o aprimoramento da relação consensual na tomada de decisões.
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Plano diretor participativo: caminho para o exercício da cidadania
O presente trabalho traz o Plano Diretor Participativo, sob a perspectiva de mudanças que o cidadão pode propor em sua realidade mais próxima, através de sua contribuição pessoal. Compreendendo o papel do indivíduo enquanto homem e agente, assim como de sua atuação particular e atividade em sociedade, parte-se para a compreensão do que seria o papel do Município enquanto realidade mutável mais próxima, através de instrumentos legais postos a disposição para a população. A participação popular nas esferas mais próximas de sua realidade é o mais efetivo destes, desde que contenha em si a motivação apropriada para gerar tal mudança. Imposições e obrigações não criam os laços de pertença capazes de gerar comunidade, mas, motivações que partem das particularidades intrínsecas de cada cidadão são capazes de gerar cidadania e por consequência comunidade. A cidadania se constrói a partir da perspectiva do cidadão e o Plano Diretor Participativo é um instrumento eficaz de propiciar este desenvolvimento e está a disposição da comunidade para que esta possa ser ouvida e atendida conforme suas necessidades, a partir de sua perspectiva da realidade local.
Direito Administrativo
Introdução Por vezes, trata-se a cidadania através de um discurso de direitos, empregando uma ideia limitada de que o cidadão conhece seus direitos e pode exigir sua efetivação através do Estado, uma cidadania puramente passiva, sem expectativa de gerenciar mudanças. O que nos leva a entender as reclamações populacionais, no tocante a falta de cidadania, como a incompetência do Estado em cumprir suas obrigações: “A vida humana associada exige dois tipos de aprendizagem fundamental: o primeiro e mais importante deles é equilibrar os desejos e interesses de cada membro individualmente com os interesses e desejos dos outros, pois sem isso não é possível viver juntos”. [1] Com o intuito de perceber a motivação, ou falta desta manifestação da população, em sua execução, bem como da necessidade de compor todos estes interesses externalizados ou não, se usará dos conceitos de cidadania para compreensão de como seria seu exercício, sobremaneira nesta exigência legal de que trata o Plano diretor; assim como de sua abrangência, seus tipos, o que imaginamos, o que de fato temos e o que, utopicamente, gostaríamos de conceber. E diante destas exposições poder, ao final, tratar no tema de maneira objetiva, olhando para os exemplos de comportamento em nossa cidade, constatando como anda nossa participação, como a sociedade londrinense tem se comportado frente as necessidades legais de sua presença. Pensar global e agir local, ou seja, não apenas discorrer vagamente sobre o tema, mas esquadrinhar opções e, por assim dizer, possibilidades, de levá-lo de fato à realidade social de seu local de aplicação. Os contrapontos entre teoria e prática existem e sempre existirão, o que faremos frente a eles é que definirá que tipo de cidadãos somos. Para que não se torne apenas mais um projeto imaginário, belo na teoria, mas sem qualquer aplicação prática, é imprescindível um Plano Diretor que atenda as reais necessidades da população como um todo, não apenas daqueles, que por deter maior poder de barganha, se fazem ouvir, mas, particularmente, daqueles que ainda desconhecem seu direito de serem ouvidos, de terem suas carências atendidas, em reconhecimento de sua cidadania. Na mesma medida em que buscam uma participação em sociedade, contrapondo sua ação a ação do Estado. 1. Ser cidadão Para que se conheça como a participação popular na execução do Plano Diretor se faz, antes, é preciso compreender a premissa que antecede o ato de participar. É necessária a mitigação da ideia de que o envolvimento popular se trata, apenas e tão somente, de uma possibilidade que a sociedade abrangida pelo planejamento, possui, ou ainda limitar a compreensão desta participação a uma condição de legitimidade na feitura e aplicação desse plano. Entretanto é necessário, sobretudo, partir da condição desta participação como direito legal da população, como exercício de sua cidadania. Cidadania esta que, na conceituação de José Afonso da Silva, “qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política”.[2] Afirmativa que traz em seu liame a compreensão global do termo, qual seja: cidadania fonte de direitos e exercício de deveres. No entanto, antes de discutir a adequação ou não deste conceito é preciso diferenciar outros dois conceitos que são basilares para a compreensão do que de fato é a cidadania, são eles os conceitos de homem e cidadão: “O homem (indivíduo que se tornou membro de um grupo que produz algo = trabalho/corporação) que compreende sua condição de parte do todo se torna cidadão quando entende sua situação de ser livre em si e para si, ou seja, que sabe que é membro, que é homem, que têm direitos e deveres e, mais do que isso, que sabe que é parte do todo e, nesse todo, precisa movimentar-se, consciente, do sistema de relações que mantém um Estado e do qual ele é parte. […] Para ser cidadão, o indivíduo (ser jogado no mundo e nas suas contingências) tem de se tornar membro de alguma comunidade […] onde todos têm deveres e direitos. Para ser membro (indivíduo que mergulhado numa organização entende sua parte no todo), o indivíduo tem de negar a primazia dos seus interesses individuais e buscar o interesse comum”[3]. Dualidade esta responsável por contemplar a complexidade e a atuação da natureza humana. Em linhas gerais, compreendendo o homem como indivíduo que se torna cidadão na medida em que se insere em uma comunidade, tornando-se membro desta. 1.1 Homem vs. Cidadão Em sua definição mais elementar, como consta no dicionário de língua portuguesa, homem é “qualquer indivíduo pertencente a espécie animal que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva; o ser humano”[4]. Para o vocabulário jurídico homem é “vocábulo empregado para designar todo ente humano, notadamente no plural, homens, em que abrange os dois sexos. (…) Significa Indivíduo”[5]. Cidadão, por sua vez, é definido no dicionário de língua portuguesa como “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este (…) pop. Indivíduo, homem, sujeito”[6]. No vocabulário jurídico, cidadão “quer designar a pessoa que reside no território nacional”[7]. Para José Afonso da Silva “Cidadão, no direito brasileiro, é o individuo que seja titular dos direitos políticos de votar e suas consequências”[8]. Como se podem perceber os conceitos são demasiadamente abstratos e em determinadas definições se confundem, não nos permitindo compreender, de fato, o que são ou ainda perceber no que se diferem, para então serem aplicados. Já no século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778, se ocupou de fazer esta distinção. Filósofo, nascido em Genebra, na Suíça, inovou a forma de pensar a política, ao propor um exercício da soberania pelo povo, como primeira condição para sua libertação: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava. […] o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”.[9] Desta feita, o homem é aquele que busca sua própria felicidade, “em seu estado de natureza, o ser humano é livre, bom e inocente”,[10] mas o advento das estruturas sociais afetam negativamente a harmonia do homem, por se pautar sobre a lógica da propriedade privada, do lucro e do acúmulo, gerando escravidão e violência. No entanto o cidadão (homem partícipe das estruturas sociais) é aquele que apesar de ter sido corrompido em suas virtudes e em sua liberdade, busca uma mudança estrutural da trama social, a partir da vontade geral, que propiciará aos cidadãos uma liberdade por excelência, a liberdade moral, na qual o ser humano poderá seguir uma lei que prescreve a si mesmo. O corpo coletivo se torna soberano, uno e indivisível representando a sociedade em seu todo, ou seja, “o povo no exercício da vontade geral”:[11] “A vontade geral é a vontade indivisível do corpo de cidadãos, fundada no consenso em torno da justiça e do bem comum. É a base para a democracia e o fundamento de qualquer ato de soberania […] a vontade geral indica, em sua significação mais plena, o interesse comum que não pode ser reduzido à mera soma das diversas vontades dos indivíduos”.[12] Em sua totalidade, o homem deseja ser feliz, a felicidade é seu objetivo. O cidadão, por outro lado, é aquele membro de uma sociedade, esperando dela que lhe faça justiça, que esta coloque a sua disposição os bens imprescindíveis para que ele possa continuar buscando um projeto de vida feliz, ao seu próprio esforço.[13] Para os efeitos que este trabalho busca, compreende-se o homem como aquele sujeito que busca o máximo de sua felicidade, que possui seus conceitos de justiça e vive em harmonia e equilíbrio com o mundo no qual se encontra inserido, é o bom selvagem. O cidadão por outro lado, é aquele sujeito que apesar de ter sido corrompido pelas estruturas da sociedade, não deixa de ser homem, ou seja, não deixa de querer sua satisfação ou sua felicidade suprema, mas se resigna em sua liberdade individual para vivenciar o seu ápice, ou seja, sua liberdade moral, na qual em conjunto com os demais cidadãos unem forças para mudar a realidade de um Estado corrompido. A partir da união de suas vontades estabelecem seu interesse comum, que constituirá a base de uma estrutura democrática: “O homem não nasce cidadão; o homem se torna cidadão. A formação de um cidadão não é tarefa fácil: a família, a escola e mesmo o Estado não se sentem responsáveis pela sua formação. Transferindo-se a responsabilidade de uma instância para outra, quem sai perdendo é o indivíduo e a sociedade. […] Os homens não se tornam cidadãos através do aprendizado de alguns conteúdos. Para se tornar cidadão o indivíduo tem que se comprometer com a mudança e com as transformações [adesão]. Cidadão é aquele que entende seu papel no Estado [reconhecimento] e realiza sua parte na melhoria da sociedade”.[14] O processo de tornar-se cidadão acontece a partir do momento em que o homem se reconhece como ator social, como parte no Estado e se desenvolve com o real comprometimento deste cidadão com a evolução de sua sociedade, ou seja, aprimora-se esta cidadania com sua verdadeira aderência. 1.2 Liberalismo vs. Comunitarismo A partir desta diferenciação é possível compreender duas correntes que buscam teorizar como se daria uma maior coesão social, ou seja, o verdadeiro reconhecimento da sociedade por seus membros e a consequente adesão destes aos seus projetos comuns. Binômio reconhecimento e adesão, que compõe o conceito de cidadania, ou que pretende compor o que esta deveria ser. São as correntes do Liberalismo com a teoria sobre os mínimos de justiça e a corrente do Comunitarismo com sua teoria sobre os máximos de vida boa. O liberalismo político, uma das mais proeminentes correntes da atualidade, tem como representante John Rawls, o qual defende que “a tarefa da própria filosofia política consiste em elaborar uma teoria da justiça distributiva que possa ser compartilhada por todos os membros de uma sociedade com democracia liberal”.[15] A metodologia desta vertente trata de descobrir, dentro da cultura política de uma sociedade, o que seus cidadãos compreendem como justo. A partir desta percepção, intenciona construir uma teoria da justiça com a finalidade de infundi-la nas instituições elementares da sociedade. Como já dito, apesar de ser cidadão, o sujeito não deixou de ser homem, ainda que sob os moldes da sociedade, o indivíduo carrega sobre si o ideal de justiça. Ter deixado de lutar individualmente por ela, não quer dizer que este tenha deixado de concebê-la. “Aqueles valores que todos compartilham compõem os mínimos de justiça aos quais uma sociedade pluralista não está disposta a renunciar, embora os diversos grupos tenham distintos ideias de vida feliz”.[16] Quando aplicada a pequenos grupos, esta teoria pode parecer simples, contudo no momento em que aplicamos à sociedades amplas e plurais, como o Brasil, com diferentes crenças, diversas doutrinas filosóficas e diferentes ideologias políticas, com diferentes projetos de vida satisfatória, a convivência pode se tornar um tanto quanto conflituosa. Sendo assim, as diferenças precisam convergir no descobrimento dos interesses comuns, de valores comuns e compartilhados, que embora sejam diferentes frente às visões individuais de mundo, possuem comunitariamente semelhanças, constituindo assim, uma sociedade moralmente pluralista. Caso contrário se terá a imposição de um grupo sobre os outros, ou ainda a inexistência de convivência, com grupos individualizados e isolados. Situações essas que não cumprem com objetivo de ampliar a coesão social dentro da cidadania, ou como diria Rousseau, não comporia a vontade geral. Ampliar a adesão à uma concepção consciente ou inconsciente de justiça, tomando-a como pressuposto para resolver conflitos que se apresentem nesta sociedade constituída “é um dever moral de civilidade, é um dever moral que cria comunidade”.[17] Neste contexto é preciso enfatizar que a Teoria dos Mínimos de Justiça, ou Liberalismo Político, de Rawls, ou ainda, como prefere Cortina, “ética mínima”, leva em conta o cidadão, de maneira simples e concentrada, é aquele que deixa sua liberdade individual para viver em sociedade usufruindo de sua liberdade civil ou moral. Partindo da ótica do cidadão, este pretenderá cooperar com a sociedade na construção de um interesse coletivo que agregue suas necessidades as necessidades da vontade geral. Não apenas some, porque assim se teriam seres individuais buscando seus interesses pessoais através do coletivo, no entanto, sob esta perspectiva, se tem cidadãos que buscam aprimorar as tramas sociais através de sua liberdade moral, qual seja, constituir uma realidade justa que compreenda a todos.   Diametralmente oposta à teoria da ética mínima, se tem o movimento comunitário.  O comunitarismo, nascido nos anos 1980 como adversário da teoria liberal, não advém com a intenção de se tornar uma alternativa ao liberalismo, mas se apresenta como uma crítica as suas insuficiências: “O comunitarismo teme, com razão, que o princípio liberal de justiça possa configurar, na verdade, mais uma doutrina abrangente, mais uma ética de máximos, e tratar de exterminar as restantes. Nesse caso, cairíamos inevitavelmente no totalitarismo liberal, que em princípio se consideraria uma cultura superior às outras e acabaria por se proclamar uma cultura única”.[18] Para os comunitaristas a teoria liberal propõe apenas procedimentos, sem pontuar uma concepção concreta de vida boa, apenas indicando princípios que uma sociedade deveria eleger para ser justa. Perdendo sua força motivadora, por propor apenas um “minimalismo de justiça”. Os cidadãos deixam de colaborar com a coisa pública por se tratar apenas de procedimentos racionais. A teoria comunitarista, ou teoria dos máximos de vida boa, oferece o “maximalismo agatológico, uma concepção completa do bem”[19]. Objetivando um pleno exercício da cidadania, busca-se uma visível adesão dos cidadãos, através de laços ancestrais de pertença, de suas raízes históricas e tradicionais, não bastando apenas uma justiça procedimental, mas um propósito, um sentimento de felicidade que só é possível encontrar nas comunidades. É preciso vigorar nos cidadãos seu sentido de pertença a uma comunidade: “não basta a racionalidade da justiça, mas é necessário contar com a emotividade que procede do sentimento de pertença a uma comunidade”:[20] “Só a pessoa que se sente membro de uma comunidade concreta, que propõe uma forma de vida determinada; só quem se sabe reconhecido por uma comunidade desse tipo como um dos seus e adquire sua própria identidade como um membro dela pode sentir-se motivado a se integrar ativamente nela. A ética da autenticidade, de fidelidade à identidade individual e comunitária, precisa complementar ao menos a ética da justiça”.[21] A teoria dos máximos de vida boa, parte, diferentemente da teoria dos mínimos de justiça, da perspectiva do homem. Homem este que é por essência bom e busca sua felicidade, vivendo de maneira simples, por não comportar em sua natureza conceitos de acúmulo, pretende viver em equilíbrio com o meio ao qual está arraigado. O homem diferente do cidadão busca o que é inerente ao seu ser e não da coletividade, sua satisfação advém da conquista destas particularidades, do alcance da ‘vida boa’, esta é sua motivação. É a partir deste tipo de motivação que surge o reconhecimento do indivíduo como membro da sociedade e consequentemente sua adesão aos seus projetos comuns. Objetivos que a cidadania quer enraizar em seu conceito. 1. 3 Cidadania: Justiça Racional e Sentimento de Pertença A oposição entre liberais e comunitaristas não permite que se acresça em nenhuma área da vida humana ou social. Ganhar uma disputa teórica sem que esta tenha a possibilidade de se tornar real, não me parece uma vitória muito inteligente. No entanto, quando duas correntes teóricas conseguem concentrar dois ideais, os quais, juntos, possibilitam a formação de um terceiro conceito capaz de se efetivar e ainda trazer acréscimos significativos à sociedade, isso me parece uma vitória mais que merecida. A formação deste novo conceito, mais rico e completo, dá à cidadania “um conceito mediador porque integra exigências de justiça e, ao mesmo tempo, faz referência aos que são membros da comunidade, une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento de pertença”.[22] Da associação desses dois lados, leia-se, o racional e o obscuro, tem-se, respectivamente, uma sociedade que busca ser justa de forma que seus membros observem sua legitimidade, em conjunto com os vínculos de pertença, laços e sentimentos intrínsecos que fazem parte da identidade do homem. Ambos os aspectos contribuem adjuntamente para motivar os membros de uma sociedade a trabalhar por ela. A partir do fato de se saber e de se sentir cidadão compreende-se a realidade da cidadania: “Parece, pois que a racionalidade da justiça e o sentimento de pertença a uma comunidade concreta têm de andar juntos, se desejamos assegurar cidadãos plenos e, ao mesmo tempo, uma democracia sustentável. É por esse motivo que, na década de 1990, tornou-se atual um velho e novo conceito: o de cidadania”[23] Cidadania. Atual e antigo, este termo voltou ao nosso linguajar na década de 1990, a partir da necessidade de se manter duas conquistas da modernidade, a democracia liberal e o capitalismo, bem como quaisquer projetos políticos e econômicos. Período no qual as sociedades pós-industriais encontravam-se sob a necessidade de proporcionar em seus membros algum tipo de identidade que gerasse laços de acolhimento.  Dependia-se de uma revolução cultural capaz de garantir a civilidade, ou seja, de gerar no cidadão uma maior disponibilidade de atuar na coisa pública, de se comprometer com a atividade pública, de dar sua contrapartida para a manutenção do sistema político e econômico. A ausência desta participação caracteriza o cerne da problemática das sociedades de capitalismo tardio, ou seja, a dificuldade de “fazer com que seus cidadãos preocupados unicamente em satisfazer seus desejos individuais cooperem na construção da comunidade política”.[24] Desde muito já se percebeu a carência de adesão dos cidadãos à sua coletividade, com um comportamento primordialmente individualista, assim como também se sabe que este individualismo hedonista torna impossível à superação das crises. Quando estes cidadãos não se afeiçoam a sua comunidade não se disponibilizam a lutar por ela, quanto menos, irão sacrificar seus interesses em nome da res publica. Dentro desta realidade urgia a exaltação da virtude da civilidade, a qual não se pode obter apenas mediante o direito e uma legislação coercitivamente imposta, mas, sobretudo pela livre vinculação e participação dos cidadãos, ou seja, “pelo livre exercício da virtude moral da civilidade”:[25] “Mas a civilidade não nasce nem se desenvolve se não se produz uma sintonia entre os dois atores sociais que entram em jogo, entre a sociedade correspondente e cada um de seus membros. Por isso, a sociedade deve organizar-se de modo a conseguir gerar em cada um de seus membros o sentimento de que pertence a ela, de que essa sociedade se preocupa com ele e, em consequência, a convicção de que vale a pena trabalhar para mantê-la e melhorá-la. Reconhecimento da sociedade por seus membros e consequente adesão por parte destes aos projetos comuns são duas faces da mesma moeda que, ao menos como pretensão, compõem esse conceito de cidadania que constitui a razão de ser da civilidade”.[26] A cidadania caminha de encontro com esta necessidade de civilidade, uma vez que esta propõe não apenas o reconhecimento racional de sua vinculação com o Estado, mas propõe um sentimento de pertencimento, com vínculos que geram em seus membros, não apenas o dever de ser parte, mas o desejo de participar e tomar para si os desafios vivenciados por esta sociedade. 2. Cidadania O que hoje entendemos por cidadania adveio de inspirações clássicas de realidades do mundo greco-romano, “conceitos de cidadania que originam, por sua vez, duas tradições: a tradição política, própria do polités grego, e a tradição jurídica do civis latino”.[27] Contudo, atribuir à realidade de outrora à realidade atual não seria possível, uma vez que estas pertencem a “mundos diferentes, com sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentidos diversos”.[28] 2. 1 Origem Não foi a década de 1990, ou a urgência da civilidade que originou a existência do conceito de cidadania. Sua origem remonta desde a antiguidade clássica, na qual gregos e romanos cuidaram de cunhar esta prática. A ideia da cidadania é uma ideia clássica que perpassa através do tempo, a qual foi marcada pela realidade ateniense dos séculos V a IV a. C. e romana dos séculos III a. C. ao século I d. C: A história da cidadania é a história da caminhada dos seres humanos para afirmarem sua dignidade e os direitos inerentes a todas as pessoas. A história da cidadania é, de certa forma, a própria história dos direitos humanos e a história das lutas para a afirmação de valores éticos como a igualdade, a liberdade, a dignidade de todos os seres sem exceção, a proteção legal dos direitos, a sacralidade do trabalho e do trabalhador, a democracia e a justiça.[29] “Possuem o caráter de cidadania as pessoas que estão integradas em uma cidade-Estado e aí são oficialmente reconhecidas como detentoras dos direitos políticos previstos na sua Constituição”.[30] A cidadania dentro da acepção que temos atualmente foi se dilatando em paralelo ao desenvolvimento das cidades-estado. Ao longo dos séculos os territórios agrícolas foram, gradualmente se fechando, instituindo suas próprias fronteiras, organizando seus habitantes em estruturas caracterizadoras de uma comunidade, repreendendo os estrangeiros e defendendo coletivamente seus territórios cultivados de possíveis invasores.  Conjunto de elementos que culminou nas cidades-estado: “Cidades-estado eram comunidades num sentido muito mais forte do que nos Estados-nacionais contemporâneos. Eram também comunidades imaginárias, que se construíram e inventaram ao longo do tempo. Ao contrário do que pregava a historiografia tradicional, não era primevas, originais ou naturais, nem tampouco o resultado da divisão e subdivisão progressiva de um grupo de famílias. […] Sua identidade comunitária foi construída ao longo do tempo, a partir de populações muitas vezes díspares, sem unidade étnica ou racial. Foi criada e recriada, reforçada e mantida por mecanismos que produziram o cidadão ao mesmo tempo em que faziam nascer cultos comuns, moeda cívica, língua, leis, costumes coletivos – modos de a comunidade fechar-se sobre si mesma e definir seu território”.[31] Foram os laços de pertença e identidade comunitária, que propiciaram a ideia de cidadania. Os vínculos muitas vezes se davam por um ancestral comum, divindade, ou grupo de famílias. Idealmente a cidadania se transmitia por vínculos de sangue, sendo passada de geração em geração, no entanto a vida prática propiciou a formação das comunidades-cidadãs de modos distintos. “Como já ressaltava o filósofo grego Aristóteles, fora da cidade-estado não havia indivíduos plenos e livres, com direitos e garantias sobre sua pessoa e seus bens. Pertencer à comunidade era participar de todo ciclo próprio da vida cotidiana”.[32] Pertencer a uma cidade-estado, era estar em posição de privilégios, com um sentimento de pertença capaz de alocá-los ativamente em todo o ciclo pertinente a vida cotidiana “com seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações pessoais”.[33] Ser reconhecido por uma comunidade garantia ao indivíduo uma posição restrita e minuciosamente observada. Este premente zelo, cuidado e vigia, levou Atenas, no século V a. C. a fechar-se quase que completamente, admitindo em seu corpo de cidadãos apenas os filhos de pai e mãe ateniense. Muito embora no século VII a. C. passou-se a desenvolver, progressivamente, formas mais abertas de participação no poder, chamada pelos gregos de democracia, estendendo a participação a toda a população masculina cidadã. Ainda que tal democracia ateniense nunca tenha sido de todo includente, os que possuíam a prerrogativa de cidadãos puderam ensejar uma grande experiência de participação direta no poder de todas as camadas sociais, independente da riqueza ou da posição social.  Roma, por outro lado, permaneceu durante toda sua história mais aberta, exteriormente e interiormente. À medida que unia as cidades italianas a um amplo sistema de alianças e posteriormente à plena cidadania, proporcionava uma maior abertura externa, ao passo que com a integração dos escravos libertos ao corpo de cidadãos se mantinha aberta internamente. O cidadão romano “atua sob a lei e espera a proteção da lei em qualquer parte do império: é o membro de uma comunidade que compartilha a lei, e que pode se identificar ou não com uma comunidade territorial”: “Em síntese: a história da cidadania antiga só pode ser compreendida como um longo processo histórico, cujo deslanche é o Império Romano. De pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, a cidadania tornou-se, com o correr dos tempos, fonte de reivindicações e de conflitos, na medida em que diferentes concepções do que fossem as obrigações e os direitos dos cidadãos no seio da comunidade se entrechocaram. (…) Quando os pensadores iluministas do século XVIII retomaram, a seu modo, a noção de cidadania, foi em outro contexto, buscando inspiração não na cidadania estendida e amorfa do Império Romano, mas naquela, potencialmente participativa, das pequenas cidades-estado que um dia repartiram entre si os territórios das planícies do Mediterrâneo”.[34] A retomada da noção de cidadania no século XVIII não descarta suas origens, mas se aplica em um novo contexto, com uma nova compreensão, a partir de outras perspectivas e necessidades. 2. 2 Conceitos Quando se tem uma acepção fulgente do terreno sobre o qual a cidadania brotou, ou seja, quando se conhece as origens, princípios e contextos nos quais a cidadania foi construída, conceitos como o trazido pelo dicionário de língua portuguesa: “cidadania. (…) Qualidade ou estado de cidadão”,[35] ou pelo dicionário jurídico: “cidadania. (…) é a expressão, assim, que identifica a qualidade da pessoa, que estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo dessa cidadania”,[36] se tornam demasiadamente simplórios e insípidos ao nosso estudo. Ainda que a cidadania tenha suas raízes nas realidades gregas e romanas do período clássico, seu conceito atual não remonta o outrora concebido por estas, mas procede, sobretudo, de realidades mais recentes datadas dos séculos XVII e XVIII com as revoluções; francesa, inglesa, americana, e com o nascimento do capitalismo, acontecimentos, estes, responsáveis pela nova roupagem ao conceito de cidadania: “O conceito de cidadania nasce, pois, dessa dialética ‘interno/ externo’, dessa necessidade de união com os semelhantes que comporta a separação dos diferentes, necessidade que, ao menos no Ocidente, é vivida como um permanente conflito”.[37] Todavia conceituar um termo tão intenso e abrangente como tal é uma tarefa para poucos, houve quem o pretendeu fazer e serão citados na tentativa de clarificar as noções que nos foram pré-concebidas: “Cidadania é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-nação com certos direitos e obrigações universais em um específico nível de igualdade”.[38] Cidadania é “um conjunto de práticas políticas, econômicas, jurídicas e culturais que definem uma pessoa como membro competente da sociedade”.[39] “A cidadania é primordialmente um relação política entre um indivíduo e uma comunidade política, em virtude do qual o indivíduo é membro de pleno direito dessa comunidade e a ela deve lealdade permanente”.[40] “A cidadania é um tipo de relação de mão dupla: da comunidade para o cidadão e do cidadão para a comunidade. Sem dúvida, o cidadão assume alguns deveres com relação à comunidade e, em decorrência disso, deveria assumir ativamente suas responsabilidades nela”.[41] Contudo, o conceito de cidadania que se tornou padrão para os mais diversos estudos foi o de cidadania social desenvolvido pelo britânico Thomas H. Marshall, em 1950, o qual analisou a cidadania com base em três ciclos históricos e suas respectivas dimensões, sendo elas a civil, política e social.[42] A cidadania civil alcance a proteção da vida, das capacidades de exercício das liberdades de manifestação do pensamento e expressão, da garantia da propriedade e julgamento por tribunais de justiça imparciais. A cidadania política, por sua vez corresponde aos períodos de extensão do sufrágio e das normas políticas democráticas do século XX, integrado pelas liberdades de reunião e associação e dos mecanismos para a participação eleitoral e representação legítima nos órgãos de governo. Por fim, a cidadania social, cujo alcance se dá na consolidação do Estado de bem-estar no século XX, que estabelece garantias para uma vida digna e ao bem-estar dos indivíduos, como o acesso ao trabalho e à previdência social: “A partir dessa perspectiva, é cidadão aquele, que em uma comunidade política, goza não só de direitos civis (liberdades individuais), nos quais insistem as tradições liberais, não só de direitos políticos (participação política), nos quais insistem os republicanos, mas também de direitos sociais (trabalho, educação moradia, saúde, benefícios sociais em época de particular vulnerabilidade)”.[43] A perspectiva social veio acrescentar esta dimensão capaz de contemplar não apenas o homem, enquanto indivíduo, com seus direitos, mas o homem que se insere em uma sociedade, o cidadão. 2. 3 Dimensões da Cidadania O conceito desenvolvido por Marshall sofreu várias críticas entre elas a de conceber um conceito que se resume ao “direito a ter direitos”, sem tratar da cidadania ativa, ou seja, transformar “a cidadania acostumada a exigir em uma cidadania que queira participar de projetos comuns, assumindo responsabilidades”.[44] Para que se possa compreender um tanto mais a fundo o que seria a perspectiva ativa da cidadania é preciso compreender suas dimensões de ação, o seu alcance. Não se limitando a tratar do ponto de vista político ou social, mas observando aspectos que nos permitem evoluir não só conceitualmente, mas objetivamente. a)Cidadania Econômica A cidadania econômica é imprescindível para que os membros de uma sociedade se sintam pertencentes a ela, muito embora exista um consenso global de que para tratar de economia é preciso pertencer a esse mundo: “O conceito de ‘cidadão’, apesar de ter sido criado no âmbito político, foi se estendendo paulatinamente a outras esferas sociais, como é o caso da econômica, para indicar que, em qualquer uma delas, os afetados pelas decisões nelas tomadas são ‘seus próprios senhores’ e não súditos; isso implica propriamente que devem participar de forma significativa da tomada de decisões que os afetam. Qual deva ser a maneira de participar é algo a determinar nos casos concretos, mas, seja como for, ela deve ser significativa”.[45] Ainda que não se tenha determinado os meios de participação nesta dimensão econômica, suas decisões afetam de forma significativa seus cidadãos, o justifica a importância de sua participação. b) Cidadania Civil A cidadania civil, por sua vez, não se limita às dimensões política, social e econômica, crendo que o ser humano não é apenas um sujeito das duas primeiras gerações, leia-se, direitos a cidadania política e social, nem tampouco se limita a ser produtor de riqueza, leia-se cidadania econômica. O ser humano é antes de tudo um “membro de uma sociedade civil, parte de um conjunto de associações não políticas nem econômicas, essenciais para a sua socialização e para o desenvolvimento cotidiano de sua vida”.[46] A sociedade civil se caracterizaria mais por sua natureza espontânea e voluntária que por ser fonte de egoísmo, desejando fomentar a partir da sociedade civil a civilidade, a participação social e a solidariedade. Os comunitaristas, também chamados “teóricos da sociedade civil” defendiam que “os cidadãos não podem aprender a civilidade necessária para levar adiante uma democracia saudável nem no mercado nem na política, mas apenas nas organizações voluntárias da sociedade civil”.[47] “Estão equivocadas, portanto, as explicações economicistas do comportamento humano, que veem no incentivo econômico o motor essencial das ações, e também os que confiam no chicote, na sanção legal, porque a aprovação ou rejeição das associações, das comunidades em que vivemos, é um incentivo muito maior. As razões do coração superam em muito as do medo e do cálculo. Participar das comunidades e associações da sociedade civil é, em consequência, o melhor modo de aprender a ser um bom cidadão, segundo os teóricos da sociedade civil.” [48] Nesta perspectiva o desenvolvimento do cidadão se dá com sua experiência de participação em comunidade, sendo as experiências cotidianas as responsáveis pela vinculação do cidadão à sua sociedade e não experiências numéricas ou punitivas. c) Cidadania Intercultural Um conceito pleno de cidadania deveria integrar em seu radical um status legal, ou seja, um conjunto de direitos, e um status moral, que seria a contra partida do indivíduo, leia-se suas responsabilidades. Conjuntamente com sua identidade, processo no qual um homem se sente cidadão, se sente pertencente a uma sociedade. Este pertencimento gera um vínculo entre os diversos grupos da sociedade e por consequência caracterizam a cidadania de maneira complexa, pluralista e diferenciada. Quando este pertencimento se dá em sociedades que vinculam a convivência de culturas distintas, o que pode se dizer de quase todas as sociedades contemporâneas, deveria se gerar uma “cidadania multicultural, capaz de tolerar, respeitar ou integrar as diferentes culturas de uma comunidade política de tal modo que seus membros se sintam ‘cidadãos de primeira classe’”.[49] Este multiculturalismo compreende um “conjunto de fenômenos sociais, que derivam da difícil convivência e/ou coexistência em um mesmo espaço de pessoas que se identificam com culturas diferentes”.[50] A dificuldade primordial não se resume a existência de diversas culturas, mas da convivência de pessoas com bagagens culturais diferentes partilhando de um mesmo espaço social. A cidadania multicultural não quer buscar uma conservação das mais diversas culturas. Trata-se primeiramente de se conscientizar de que não há uma única cultura com soluções para todas as vicissitudes essenciais e ainda, existe a possibilidade de se aprender com as outras práticas, tanto para as soluções das quais necessita como para a compreensão de si mesma: “Nesse sentido, uma ética intercultural não se contenta em assimilar as culturas relegadas à vencedora, nem tampouco com a coexistência das culturas, mas convida a um diálogo entre as culturas, de forma que respeitem suas diferenças e esclareçam conjuntamente o que consideram irrenunciável para construir, a partir de todas elas, uma convivência mais justa e mais feliz. Tendo em conta, por outro lado, que a compreensão de outros obtida por meio da convivência e do diálogo é indispensável para a autocompreensão”.[51] Este legítimo diálogo seria capaz de construir uma teoria, que conservasse o melhor do universalismo e da sensibilidade diante do diferente, além de superar o já existente, sem desperdiçar as riquezas peculiares que a individualidade de cada um pode oferecer. Este terceiro seria a cidadania intercultural. d) Cidadania Cosmopolita É perfeitamente possível observar os alcances que o conceito de cidadania vai tomando, que se busca a cada nova dimensão uma maior abrangência, uma evolução, um aprimoramento, um ideal, uma cidadania ideal, também chamada por Kant de cidadania cosmopolita. Não obstante se faça necessário desenvolver um conceito ainda mais puro para o termo: “esse ideal deve estar de algum modo entranhado na natureza humana, já que, do contrário, teríamos dificuldade em extraí-lo dessa natureza, por mais que nos esforçássemos. Afortunadamente, porém ele faz parte da natureza humana e consiste em criar uma cidadania cosmopolita, um modo em que todas as pessoas se saibam e se sintam cidadãs”.[52] E para que se possa, não apenas contemplar a mais bela teoria sobre o que seria um ideal de cidadania, mas vivenciar esta idealização é preciso primeiramente contemplar um ideal de cidadão. A partir do momento em que se compreende o cidadão como agente e responsável direto pelo curso e proporção que a cidadania toma, é irrefutável que se comece o aperfeiçoamento por ele, para que seu exercício se aprimore por consequência. As distinções entre homem e cidadão nos auxiliam na percepção de um caráter genuinamente egoísta no homem, que apesar de inocente e pueril, busca seu contentamento acima da satisfação de outrem. O cidadão, uma vez deturpado pela sociedade acumuladora, esboça atitudes cada vez mais individualistas levando a pico conquistas sociais como a democracia e o capitalismo. Nesta perspectiva é preciso instigar, anteriormente, o aperfeiçoamento do cidadão, homem por natureza, mas cidadão por condição. Indivíduo este que tem enraizado em si a necessidade de evoluir, ao mesmo tempo em que prescinde da felicidade para continuar a viver. 2. 4. O Ideal de Cidadão Foi Aristóteles que deu cunho ao que poderíamos chamar de Cidadão Ideal. Filósofo, nascido em 384 a. C. na cidade de Estagira, foi classificado por boa parte dos historiadores da filosofia como realista. Partindo do pensamento platônico “Aristóteles tenta edificar um sistema realista, em que as coisas possam ser explicadas a partir do real, ou seja, a partir das coisas mesmas e não de formas ideais”.[53] Dentro desta perspectiva retirou-se de seus pensamentos um modelo ateniense de cidadão ideal. A ideia de que o cidadão é o membro de uma comunidade política que participa ativamente nela, nasce na experiência da democracia ateniense nos séculos V e IV a. C[54]. Neste contexto cidadão não se limitava àquele que vivia na cidade, mas era aquele que participava da esfera pública: “Sob essa perspectiva, o cidadão é o que se ocupa das questões públicas e não se contenta em se dedicar a seus assuntos privados, mas é também quem sabe que a deliberação é o procedimento mais adequado para tratar dessas questões, mais que a violência, mais que a imposição, mais até que a votação, que será apenas o recurso último, quando já se tiver empregado convenientemente a força da palavra”.[55] Sob esta ótica só estaria apto a uma vida digna o “cidadão que participa ativamente da legislação e da administração de uma boa polis, deliberando junto com seus concidadãos sobre o que é para ela o justo e o injusto porque todos eles são dotados de palavra e, em consequência, de socialidade”. Aqueles que se restringem aos seus assuntos particulares perdem sua cidadania real, mas, principalmente, perdem sua humanidade, quando não se está em convivência, deixa-se de participar da construção de uma sociedade mais justa, na qual seus partícipes podem desenvolver suas qualidades e adquirir virtudes. A cidadania seria, por assim dizer, “não um meio para ser livre, e sim o modo de ser livre, e o bom cidadão é aquele que tenta construir numa boa polis, buscando o bem comum em sua participação política”,[56] o qual possui seu direito de se pronunciar na assembleia de governo e ainda de exercer seus direitos, participando ativamente e exercendo cargos públicos, se a cidade assim o exigir. Diante do exposto convém concluir que a teoria racionalista de Aristóteles não se parece muito realista quando observado o contexto no qual foi desenvolvida. A realidade ateniense possuía uma cidadania puramente excludente, o cidadão era apenas os atenienses e a sua liberdade não era tão livre assim. Contradições à parte, ainda que o conceito de Aristóteles tenha suas limitações, não podemos nos limitar a elas. Apesar desta teoria não ter tido de fato uma aplicação é necessária a compreensão do que seria um cidadão ideal, para que se possa chegar a ideia do que seria uma cidadania ideal. Apesar das divergências, Aristóteles defendia uma ideia muito propícia ao objetivo que o presente se presta, afirmava ele que “a felicidade da cidade depende da felicidade do cidadão, em outras palavras, uma cidade somente será virtuosa se tiver cidadãos virtuosos”.[57] Tais palavras nos permitem concluir aquilo que já se expôs. Para que se contemple uma cidadania ideal, é preciso buscar cidadãos ideais. Quando se idealiza o cidadão se parte da prerrogativa que o indivíduo se limita a ser cidadão, entretanto o indivíduo é mais, ele é, também, homem. Este, “é um ser desejoso de felicidade, que tem a oportunidade de esclarecer inteligentemente quais tendências convém fortalecer e quais devem ser refreadas para alcançar a meta” [58] de sua felicidade: “O homem […] transcende em muito sua dimensão política, que é apenas uma, por mais relevância que possa ter para sua vida. A pessoa é um membro de uma família, de uma comunidade […] que ingressa voluntariamente, e em todos esses casos estabelece vínculos sociais com os membros desses grupos, que são essenciais para sua identidade pessoal. Também é membro de uma comunidade política, qualidade que a vincula aos que compartilham sua mesma cidadania, e que lhe confere assim outro traço de identidade. Mas é impossível reduzir a pessoa ao cidadão”.[59] O cidadão ideal será aquele que conseguir conciliar o desejo, natural do homem, com a inteligência, natural do cidadão. Aquele que não se dividir em si mesmo, mas estiver apto a concatenar seus ideais de vida particular e vida em sociedade, levando para sua comunidade a deliberação de assuntos comuns. Utilizando-se de sua prerrogativa de detentor da comunicação para conviver com os diferentes, sem levar a cabo a antiga premissa de que cidadania é a “aproximação dos semelhantes e separação em relação aos diferentes”.[60] O homem, por natureza, é um ser dotado de palavra, e por mais que o multiculturalismo constate que a convivência de diferentes pessoas é um tanto quanto conflituosa, há uma habilidade inerente ao homem que é a comunicação, meio que o capacita a “se relacionar com outros homens, de conviver com eles, e também de discernir junto com eles o que é bom e o que é mau, o que é justo e o que é injusto”.[61] É fato que nós nos vinculamos mais facilmente àqueles a quem somos semelhantes, este é o homem desejoso de sua própria felicidade, assim como é natural que o cidadão encontre o ápice da sua satisfação quando se desloca para exercer as atividades próprias à sociedade. Ideal será aquele que conviver satisfatoriamente com sua dualidade, se afeiçoando naturalmente aos que lhe assemelham, mas buscando a todo tempo uma melhor convivência com o diferente, objetivando torná-lo seu semelhante. Apreendendo e ensinando, este é o ciclo que constituí a dinâmica da vida e vida em comunidade, ou seja, de cidadania. 2.5 O Ideal de Cidadania A devida compreensão do que seria um cidadão ideal torna simples o entendimento do que seria uma cidadania ideal. Cidadania cosmopolita é aquela que segundo Kant “pode converter o conjunto de seres humanos em uma comunidade (…) porque o que cria comunidade é, sobretudo ter uma causa comum”,[62] um propósito comum. “Nosso propósito essencial [enquanto indivíduos] é nos tornarmos as melhores pessoas que podemos ser. É realizar o mais plenamente possível nosso potencial como seres humanos”, ou o que os comunitaristas chamariam de alcançar o máximo de felicidade. Atingir nosso propósito enquanto indivíduos nos leva a atingir nosso propósito como cidadãos, ou seja, nos leva a construir a comunidade, atingindo a esfera mais plena de cidadania. É esta tarefa conjunta, assumida livremente, que cria laços comuns, “é o que cria comunidade”,[63] o pertencimento a uma etnia ou a uma nação deixa de ser de primordial estima, passando a importar os propósitos comuns aos quais esta sociedade avoca. É nesta comunidade que liberais e comunitaristas poderão encontrar seus dias de glória. À medida que ambos buscam concentrar ideais do que seria uma cidadania plena, a comunidade vem a proporcionar espaço para que estes ideais se concretizem. É na comunidade que os mínimos de justiça, dos liberais, poderão ser encontrados. “Partir destes mínimos de justiça, compartilhados por distintos Estados, partir do que as diferentes culturas e os diferentes credos religiosos já têm em comum seria um bom caminho para construir essa paz duradoura sonhada desde muito”.[64]  E também será na comunidade que os cidadãos plenos encontrarão o ápice de sua felicidade, como desejam os comunitaristas: “porque exige de cada uma delas o respeito por culturas que só se encontram dentro dos limites de sua comunidade; e não apenas o respeito, mas também o diálogo”.[65] Para verdadeiramente vivenciá-la Kant propôs duas dimensões a serem desenvolvidas. Primeiramente a formação de habilidades necessárias, quais sejam, aprender os meios que precisam ser adotados para atingir uns ou outros fins, algo que segundo ele é apreendido e exercitado mecanicamente. Em segundo lugar a educação para a prudência. Virtude “necessária para saber adaptar-se à vida em sociedade, para conseguir ser amado e ter influência”,[66] compreendendo as boas maneiras, amabilidade e certa prudência para saber se servir das outras pessoas para os próprios fins. “Quem sabe servir-se dos outros é prudente e cívico e, portanto, compõe a imagem de um bom cidadão, porque sabe se comportar com destreza no âmbito público”.[67] Tendo como referência uma comunidade universal, o autêntico cidadão deseja participar de uma comunidade justa, que “faça com que todos os homens se sintam e se saibam cidadãos do mundo”.[68] “‘Aprender a conviver’ não basta; é preciso aprender a conviver com justiça”.[69] 3. Criar espaço para a cidadania Para que a cidadania em seu sentido pleno, ora denominada cidadania cosmopolita, aconteça de fato, é imprescindível que se crie um espaço capaz não só de abrigá-la, mas permitir que ela aconteça e se desenvolva, uma vez que “quem não é tratado como cidadão tampouco se identifica a si mesmo como tal”.[70] Entres às décadas de 1960 e 1970, Daniel Bell, propôs como outrora havido sugerido Rousseau, a promoção da religião civil e o fortalecimento do espaço público, como tentativa de que se insurgisse o espaço público. A religião civil consiste em atrair os cidadãos pelos símbolos que supostamente unem a todos, leia-se bandeira, hino, acontecimentos históricos. Algo muito similar ao que se passa conosco em época de copa do mundo, estes períodos, aglomerados em eventos que acontecem de quatro em quatro anos, geram mais comoção e sentimento nacionalista do que as eleições, também dispostas nesses períodos e que determinam muito mais de nossas vidas. Desta feita a religião civil passa a funcionar como um novo ópio do povo. Proposta, esta, que se parece um tanto quanto duvidosa. Por outro lado a sugestão de se fortalecer o espaço público soa mais convincente. Promover o espaço público é assegurar uma administração que supra as carências coletivas, como tentativa de incutir nas pessoas uma vontade por participar. “O espaço público é o setor da administração dos rendimentos e dos gastos do Estado que satisfaz as necessidades e aspirações públicas, e se situa além do espaço doméstico e da economia de mercado.” No entanto, como já constatado pelas exposições supracitadas, fornecer um mínimo decente não leva o cidadão a oferecer todo seu potencial ou tornar-se melhor, é preciso à criação de uma identificação do cidadão com este espaço público. “Adquirimos nossa identidade e nossa auto-estima (sic) no interior de uma comunidade que nos reconhece direitos ou os nega, que nos faz saber que somos seus membros ou faz com que nos sintamos estranhos”.[71] A identidade com a sociedade se dá através da disposição desta em proteger a autonomia de seus cidadãos concedendo-lhes direitos civis e políticos, os reconhecendo como cidadãos e não mais como vassalos ou súditos, ou seja, através do fortalecimento do espaço público. Porém, também se dá o sentimento de reconhecimento com a comunidade, quando esta se propõe a torná-los partícipes deste espaço por intermédio dos instrumentos de participação popular. É esta participação no espaço público que torna este local verdadeiramente frutífero. “A chamada ‘opinião pública’, hoje se revela um dos lugares mais adequados para exercer a cidadania”.[72] Neste contexto a Teoria do Discurso de Habermas, traz que, “toda e qualquer construção humana, quer seja política, ética ou econômica, que não passe pela apreciação e pelo debate livre e racional entre todos os envolvidos no processo constitui aviltamento da condição humana”,[73]ou seja, a opinião pública é único meio capaz de legitimar a vida política.[74] Esta, “transformada em poder comunicativo, pode de certa forma, direcioná-lo”:[75] “Habermas [1984] afirma que a existência humana, à medida que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes no mundo de homens ou de coisas feitas por homens. […] É na órbita da construção política feita por homens reais no mundo real, que segundo Habermas, a racionalidade comunicativa se estabelece como instrumento de consenso social da realidade […] o que a ação comunicativa busca explorar é […] o universo subjetivo, a ação política e a racionalidade dos indivíduos [que] constituem elementos estruturados de formação e revitalização da esfera pública, na busca da emancipação social”.[76] Esta esfera pública, segundo Habermas, seria “uma arena na qual a deliberação transforma os interesses individuais em entendimento mútuo, e a própria possibilidade de um ponto de vista consensual oferece uma base normativa para a legitimidade política”.[77] Arendt acrescenta que esta deliberação não deve envolver concessões de caráter excludente, prejudicando os que falam menos, mas “a deliberação na esfera pública está relacionada a um processo em que as pessoas reconhecem simultaneamente aquilo que as singulariza e aquilo que as une. É o que permite que se reconheça como um ser social e, ao mesmo tempo, reconhecer os outros atores com suas subjetividades plurais”.[78] A cidadania desde sua concepção mais primitiva até sua conceituação mais plena só encontrará lugar, quando este detiver uma administração bem estruturada, com um espaço público bem fortalecido e acrescido da expressão da opinião pública plural. Com o intuito perene de, através da comunicação com toda a esfera da sociedade abrangida, se alcançar um bem capaz de atingir o homem e a sociedade em todos os seus âmbitos: “Se a cidadania é algo que cresce à medida que é adquirida nos espaços de participação, tem também a ver com algo mais que o aumento da ação política em relação aos Estados. Tem a ver também com as maneiras pelas quais as pessoas se sentem parte da sociedade. Numa mistura tão heterogênea de pessoas, a experiência de negociar posições, ouvir os argumentos e conhecer as experiências dos outros, identificar-se com eles de outras formas, aprender a assimilar perspectivas múltiplas e chegar a um ponto de vista comum […] em relação à deliberação na esfera pública”.[79] “No caso da realidade brasileira, vários aspectos se apresentam como dificultadores não só da participação popular no processo de discussão e deliberação de políticas, mas de sua participação efetiva”.[80] “Cidade e cidadania são o mesmo tema, e não há cidadania sem a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades”:[81] “A sociedade brasileira necessita buscar novos caminhos para a cidadania. Uma das alternativas é a reorganização do próprio espaço, ou comunidade em que vive. Com o processo de ‘desmonte’ ou fragilização do Estado tradicional, que não atende mais às necessidades da população, é preciso criar novas formas de organização social. A tendência atual é que os municípios e, principalmente as cidades, assumam, gradualmente boa parte dos encargos que eram de competência dos governos estaduais e da União. É no espaço da comunidade que os cidadãos, através da prática associativa e da participação na tomada de decisões, podem conquistar melhores condições de vida”.[82] É nesta realidade mais próxima, leiam-se municípios e cidades, que se observa com mais facilidade as dificuldades, mas também se caracterizam como local propício para a aplicação direta destes instrumentos de criação de espaço para a cidadania. Local que permite uma reorganização de sua estrutura física e administrativa e ainda comporta a deliberação em seu espaço público. 4. Papel do município “Poderíamos dizer que a cidadania, de certa forma, começa nos municípios. Neste sentido: antes de ser um cidadão brasileiro consciente (ou uma cidadã brasileira consciente), a pessoa tem de ser um munícipe consciente”.[83] Atualmente os municípios vêm assumindo um local de destaque na construção de sua própria sociedade, bem como no desenvolvimento da cidadania, “os Estados e a União têm, nas últimas décadas, transferido para os municípios diversas atribuições e serviços de que antes se ocupavam diretamente”.[84] Quando analisado, sob a perspectiva social e política, o município deixou de se limitar a uma aglomeração de pessoas possuidoras de subsídios públicos, passando a ser responsável pela ordenação da cidade, pela organização de seus serviços e sua proteção, realizando seu próprio governo, delibera e executa tudo quanto respeite ao interesse local: “A cidade, neste sentido, se apresenta como local propício para o debate e tomada de decisões em complementação ou até mesmo em substituição às práticas administrativas estatais que se mostram invariavelmente ineficazes na solução das demandas sociais contemporâneas, pois é nela que as pessoas estão mais, próximas, travam vínculos de afetividade e se sentem partes de um conjunto de pessoas estruturado”.[85] Ainda que o crescimento exacerbado das cidades modernas tenha destituído muitas das relações de vizinhança e do espírito comunitário mais comum aos municípios da antiguidade, a administração municipal contemporânea não se restringe apenas à ordenação da cidade, mas se estende a todo o território do Município – cidade-campo – em tudo que concerne ao bem-estar da comunidade”.[86] Antes de passarmos para a compreensão de como se dá o papel da cidade no seu desenvolvimento em conjunto com o de seus cidadãos, é preciso entender a diferença dos vocábulos município e cidade: “O que é uma cidade, o que é um município? Há vinte e cinco séculos, o teatrólogo grego Aristófanes respondeu: as cidades são as pessoas. Cidades nada mais são do que grupos de pessoas que se reúnem em um determinado espaço físico para se protegerem mutuamente, trocar entre si os produtos de suas habilidades próprias, cumprir em conjunto tarefas e trabalhos que não podem ou não querem realizar sozinhos.[…] E municípios, embora sejam mais do que uma cidade, obedecem à mesma dinâmica: indivíduos que compartilham um determinado espaço físico, político legal e institucional para se protegerem e se auxiliarem mutuamente e para realizarem juntos tarefas que estejam adiante do alcance de cada um deles individualmente”. [87] Para Robert Ezra Park: “A cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de convivências sociais […] Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana”. [88] Por ter um caráter mais amplo, o conceito de município precisa ser observado sob os aspectos sociológico, político e jurídico, na explicação de Meirelles: “Do ponto de vista sociológico, o Município brasileiro, como qualquer outro, é o agrupamento de pessoas de um mesmo território, com interesses comuns e afetividades recíprocas, que se reúnem em sociedade para a satisfação de necessidades individuais e desempenho de atribuições coletivas de peculiar interesse local. Sob o aspecto político, o Município brasileiro é entidade estatal de terceiro grau, na ordem federativa, com atribuições próprias e governo autônomo, ligado ao Estado-membro por laços constitucionais indestrutíveis […]. Na ordem legal, o Município brasileiro é pessoa jurídica de Direito Público interno […] e, como tal, dotado de capacidade civil plena de exercer direitos e contrair obrigações em seu próprio nome, respondendo por todos os atos de seus agentes”.[89] O município abarca toda a “extensão territorial, constituída em divisão administrativa de um Estado federado”.[90] O termo município é muito mais do que a cidade, compreendendo seu conceito e possuindo competências constitucionais que vão muito além. O município engloba cidade e campo, ou seja, a cidade está dentro do município, representando sua zona urbana, seu “aglomerado urbano que serve como sua sede”, enquanto que o campo designa sua zona rural, este conjunto compõe a dimensão municipal. Não seria correto reduzir o município, tão somente, a sua área urbana, visto que “os poderes municipais têm de se preocupar igualmente com as áreas rurais sob sua jurisdição, [para] promover e fomentar a economia municipal”, [91] entretanto os assuntos pertinentes ao seu âmbito são majoritariamente urbanos, restando à União a competência para legislar sobre a zona rural. 4.1 Competência Municipal A Constituição Federal de 1988 trouxe algumas mudanças em relação aos municípios. Além de integrá-lo como entidade de terceiro grau, ampliou sua autonomia e expandiu suas competências, além de sua competência privativa para as hipóteses do art. 30,[92] ainda lhe compete comumente com a União, os Estados e o Distrito Federal o disposto no art. 23[93] da supracitada Carta. Tratando da competência privativa dos Municípios, o art. 30 elenca nove incisos com situações nas quais o município deve ser competente para agir. Circunstâncias em que impera a autonomia administrativa para gerir “tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal […] embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e a União”.[94] Contudo nos interessa o disposto no primeiro inciso[95] que versa sobre a competência municipal no que concerne aos assuntos de interesses locais, hipóteses caracterizadas pela predominância do interesse Municipal em face do Estadual e Federal e no oitavo[96] que disciplina sobre o planejamento municipal, norma de caráter urbanístico. É competência da União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”.[97] Assim como estabelecer normas gerais de urbanismo, com princípios urbanísticos ou princípios capazes de obrigar tanto as legislações regionais como locais a se submeterem a padrões mínimos abrangentes em todo o território nacional. Enquanto que “aos municípios cabem a normatividade edilícia e a imposição do plano diretor local”.[98] Sobre esta competência municipal dispõe o art. 182[99]da Constituição Federal, o qual institui para cidades com mais de vinte mil habitantes a obrigatoriedade do Plano Diretor, como instrumento da política urbana. Tal como consta no texto constitucional, a obrigatoriedade do plano diretor se dá às cidades enquanto que para os municípios a adoção teve ser de um planejamento integral, ou seja, mais amplo: “Cabe ao Município editar normas de atuação urbanística para o seu território, especialmente para a cidade, promovendo concretamente todos os assuntos […] dos quais dependem a vida e o bem-estar da comunidade local. […] As atribuições municipais, no campo urbanístico, desdobram-se em dois setores distintos: o da ordenação espacial, que se consubstancia no plano diretor e nas normas de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano e urbanizável […]; e o de controle da construção. […] Sua ação urbanística é plena na área urbana e restrita na área rural, pois que o ordenamento desta […] compete à União”. [100] O dispositivo constitucional foi disposto sob a necessidade de regulamentação posterior e esta se deu através da Lei Federal n° 10.257 de 2001,[101] denominada Estatuto da Cidade, subsídio legal destinado substancialmente para o município, oferecendo diretrizes gerais para a fixação da política urbana, tema que será futuramente abordado. 4.2 Planejamento Municipal Por contemplar uma seara mais ampla, ao Município é imprescindível a existência de um planejamento que faça jus a sua abrangência. Para que haja uma condução efetiva do planejamento estratégico municipal nos dias de hoje, Rezende e Castor[102] elencam uma série de pressupostos necessários, entre eles: O planejamento estratégico municipal deve ter caráter integral e integrado. Abordando tanto questões econômicas como sociais, culturais e territoriais na área urbana e na área rural, extrapolando assim os limites de um simples plano diretor municipal, em que são fundamentalmente tratados problemas espaciais e econômicos relacionados com o uso do solo e a distribuição das atividades produtivas. Deve igualmente ser integrado no sentido de que todas as suas dimensões devem ser compatibilizadas entre si, produzindo uma abordagem equilibrada entre elas. O planejamento estratégico municipal deve contemplar as ações e políticas cooperativas com demais entes federativos. Primeiro, porque a solução dos problemas municipais não se circunscreve às competências típicas e exclusivas do município. Segundo, porque as informações revelam a enorme interação entre finanças municipais, as estatuais e os recursos federais, para não mencionar a crônica dependência das primeiras em relação às demais. O planejamento estratégico municipal deve ter um caráter duplo, sendo a um tempo técnico e político. Os planos não podem abstrair seu papel racionalizador das condutas humanas, mas igualmente devem atentar para o caráter negociador que deve ser levado em conta na ordenação das coletividades. Um plano exclusivamente racionalizador pode se mostrar politicamente inviável [..]. Um bom plano municipal é aquele capaz de conciliar essas duas dimensões sem prejuízo para o fim último de propiciar melhores condições de sustentabilidade social e ambiental para a coletividade à qual pretende se aplicar. O planejamento estratégico municipal deve ser guiado pela racionalidade substantiva, ou seja, deve levar em conta os fatores de economia e efetividade na utilização dos meios, mas preocupando-se primordialmente com a qualidade substantiva dos fins almejados. […] O planejamento estratégico municipal não pode prescindir da participação ativa da comunidade em sua elaboração, acompanhamento e permanente avaliação, uma vez que a população não é apenas o objeto de suas preocupações, mas igualmente o sujeito político da determinação de prioridades e preferências. “Independente da obrigação legal, o planejamento municipal se justificaria por várias necessidades indissociáveis da vida humana: planeja-se para que se mantenham as condições de “convivialidade” – palavra que etimologicamente tem o significado de “viver em comum com outrem” – e de “habitabilidade” – que etimologicamente significa “que pode ser habitado” na área do município”.[103] O planejamento municipal perpassa o texto legal, atingindo a vida social de seus munícipes inclusive no tocante a sua vida privada, além de dizer sobre sua organização espacial. 4.3 Planejamento da Cidade “Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”.[104] O planejamento desta cidade, por sua vez, se dará pelas diretrizes do Plano Diretor, espécie de planejamento municipal, o qual por ser espécie deste possui uma área de atuação restrita à zona urbana. 4.4 Estatuto da cidade Após mais de uma década de discussões, a Lei federal n° 10.257, promulgada em 10 de julho de 2001, foi sancionada pelo Presidente da República, contendo em sua ementa que: “Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”. A lei autodenominada Estatuto da Cidade também foi chamada por alguns de Lei de Responsabilidade Social, em comparação com a Lei de Responsabilidade Fiscal, devido sua importância. “O Estatuto da Cidade é assim denominado por refletir um conjunto de regras jurídicas que condicionam e pontuam a atividade urbanística, criando verdadeiro pacto entre governos, suas Administrações, a população e a própria cidade”:[105] “O Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) é, sem dúvida, uma das mais importantes e inovadoras leis das que recentemente entraram em vigor no país, como parte de um processo de transformação e modernização da estrutura jurídica, da Administração Pública, da sociedade e dos costumes […] O Estatuto da Cidade está destinado a ser instrumento pelo qual a Administração Pública Municipal, atendendo aos anseios da coletividade, finalmente poderá determinar quando, como e onde edificar de maneira a melhor satisfazer o interesse público, por razões estéticas, funcionais, econômicas, sociais, ambientais etc”.[106] No artigo 2° do referido diploma estão dispostas suas diretrizes, elencadas em dezesseis incisos, que têm por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, bem como “a fixação da política urbana e, também, condicionando o exercício do direito de propriedade, bem como elegendo institutos jurídicos e administrativos facilitadores da ação estatal em matéria de urbanismo”.[107] O Estatuto tem sua incidência concentrada às limitações da cidade, enquanto conceito anteriormente estudado: “No Município, qualquer que seja, só há uma cidade, que é a sua sede, conforme definido pelo Decreto Lei Federal n° 311, de 2.3.38, que dispõe sobre a divisão territorial do País, podendo haver, isto sim, mais de uma vila. Assim, a incidência dessa lei há de ser tanto sobre a cidade como sobre as vilas. A política urbana deve ser, desse modo, ampla, sem, por óbvio, incluir a área rural, mesmo que o plano diretor tenha essa abrangência. […] Assim deve ser para possibilitar a integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socio-econômico do Município e do território sob sua área de influência […] sem, no entanto, que a política urbana deva alcançar a rural”.[108] O Estatuto da Cidade foi concebido com o intuito de regulamentar os dispositivos constitucionais, direcionando os PDP’s – Planos Diretores Participativos a analisar suas realidades, buscando uma melhor compreensão de sua própria realidade, com suas carências e potencialidades, riquezas e pobrezas. 5. Plano diretor A primeira vez que se utilizou o termo Plano Diretor data de 1930, no qual o urbanista francês Alfred Agache, elaborou um planejamento para a cidade do Rio de Janeiro, conhecido como Plano Agache. Naquela circunstância foi utilizado pela primeira vez o termo em francês plan directeur: “A ideia de plano diretor existe no Brasil, pelo menos desde 1930. Nesse ano foi publicado, em francês, o conhecido Plano Agache, elaborado por esse urbanista francês para a cidade do Rio de Janeiro. Nesse plano aparece pela primeira vez a palavra ‘plan directeur’”[109] A história do plano diretor poderia ser colocada em dois momentos no qual o divisor de águas seria a Constituição Federal de 1988, culminando com seu ápice em 2001 com a promulgação da Lei n° 10.257, a qual se autodenominou como o Estatuto da Cidade. 5. 1 Histórico O primeiro período data da década de 1960, ocasião em que foi criado o SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, pela Lei n° 4.380 de 1964, no Governo de João Goulart, dando aos planos uma maior importância. Os Planos Diretores Integrados – PDDI’s, ou Plano de Desenvolvimento Local Integrado – PDLI, nomenclatura então utilizada, deveria ter como campo de intervenção os aspectos sociais, econômicos, físicos e institucionais. Tal planejamento iniciava-se com um estudo preliminar e a partir deste se desenvolvia um plano de ação imediato, ou delimitava-se um plano de ação integrado. “A política de planejamento local integrado realizada pela SERFHAU, foi fornecer assessoria técnica aos municípios interessados, e financiar, com recursos do Banco Nacional de Habitação – BNH – a contratação do plano diretor”.[110] Em contra partida o setor privado forneceu grupos técnicos e empresas de consultoria para prestarem serviços aos municípios que desejavam o financiamento e estavam deslumbrados com o discurso tecnocrata. Nos anos 60 e 70 o planejamento municipal era externo a Administração Pública, não adentrando a sua seara, esta se limitava a comparecer apenas ao final para definir diretrizes e sua instrumentalização. Este planejamento clássico carregava em si uma forte tendência tecnocrata e racionalista, cuja inspiração era o pensamento modernista de Le Corbusier, arquiteto cuja filosofia se baseava no princípio da funcionalidade. “Acrescente-se a isto o fato de que as matérias abordadas pelo planejamento e a gestão territorial não são facilmente compreendidas pelos cidadãos”,[111] que são deixados de lado nos processos de debate sobre as questões concernentes ao seu município, surgindo “desarmonias entre o interior de um escritório e a realidade externa, […] que não corresponderá às expectativas de quem planejou e nem de longe atenderá as necessidades e aspirações de quem habita a cidade”.[112] Por se encontrar fora da Administração Pública visando apenas à funcionalidade da cidade, estes planos não contemplaram a realidade social à qual buscavam se inserir “planos desconectados com as lógicas e práticas reais, ignorando os conflitos a realidade das desigualdades, apresentando estratégias de regulação urbanística como objetos puramente técnicos”.[113] A visão tecnocrata destacava apenas o papel do técnico em sua elaboração, no entanto este não era capaz de entender os problemas sociais que permeavam todo o planejamento. Por certo que este planejamento neutro não poderia ter sucesso, a desconsideração da realidade política e social do município tornava o plano belo na teoria, mas sem qualquer aplicação na prática, o que levou a extinção do SERFHAU em 1974, bem como dos PDDI’s: “Os dados expostos acima nos dão um quadro bastante esclarecedor dos motivos do fracasso dos PDDI’s […] dos quais podemos considerar dois como os principais: 1) A obrigatoriedade da elaboração do plano diretor não conscientizou os agentes públicos municipais da importância do planejamento enquanto um processo mais eficiente de gestão, os quais encararam o plano apenas como uma exigência burocrática e inútil ou como um instrumento útil apenas para facilitar a obtenção de financiamentos públicos. 2) A elaboração da maioria dos planos diretores por órgãos ou empresas estranhas à administração pública local, o que tente a acarretar os seguintes problemas que inviabilizam sua implementação: a) os panos ficam interessantes tecnicamente mais inviáveis politicamente; b) os planos não ficam bons nem tecnicamente nem politicamente pois os elaboradores não conhecem a realidade local e; c) o plano diretor torna-se um corpo estranho à administração local que não participou de sua elaboração e, portanto, não o encara como um instrumento legítimo, não tendo assim interesse na sua implementação. O fracasso dos PDDI’s deveu-se, resumindo, à uma má concepção de planejamento por parte das autoridades legislativas, que resolveram instituí-lo por decreto e também de uma consequente não compreensão de seu significado pelas prefeituras”.[114] “A experiência dos erros e acertos do SFH [Sistema Financeiro de Habitação] até hoje repercute acerca do caráter tecnocrático somado à desconsideração dos direitos sociais e à negação de valores democráticos, conduzidos nos PDLI”.[115] Os planos diretores passaram por um longo período de descrédito em todo o país, como resultado do fracasso ocorrido. Não obstante: “com a promulgação da Constituição de 1988, o Plano Diretor volta a ser amplamente discutido, mesmo por que o parágrafo primeiro do artigo 182 deixa claramente explícito que os Planos Diretores são obrigatórios para os municípios”,[116] sendo um instrumento básico para a política de desenvolvimento e crescimento urbano. Com a promulgação da CF/88, o município foi consolidado como ente autônomo da federação, dando-se início ao processo de feitura das Leis Orgânicas Municipais – LOM, que passaram a ser exigidas pelo Poder Executivo Federal, nas quais deveria conter um capítulo exclusivo sobre a política urbana local. Além da exigência da implementação dos arts. 182 e 183, cujo Capítulo trata Da Política Urbana, dispondo da obrigatoriedade do Plano Diretor para os municípios com mais de vinte mil habitantes. Ambos os dispositivos deram uma nova perspectiva ao planejamento municipal, bem como para o planejamento das cidades. Estes novos planejamentos deixaram à clássica visão tecnocrata e passaram a olhar para o Plano Diretor como um instrumento que deve considerar mais do que a funcionalidade, deve considerar as contradições do sistema capitalista e toda a problemática social que o circunscreve. O planejamento técnico passou a ser democrático e participativo, devendo contemplar três aspectos, leia-se o técnico-científico, o político-institucional e o econômico-financeiro. “Os instrumentos deverão se constituir de três naturezas: técnico-científica, contendo os referenciais metodológicos de coleta, tratamento e interpretação de dados; político-institucional, suportando as relações entre as forças políticas constituídas e as articulações entre diversificados segmentos; e econômico-financeira, abrangendo os recursos orçamentários e de outras origens, previstos para o processo”.[117] O advento da Lei n°10.257, autodenominada Estatuto das Cidades, trouxe potencialidades capazes de reconstruir a ordem urbanística “com forte viés redistributivo e includente, objetivaram possibilitar: ampliação da intervenção do poder público municipal na questão da terra, […] democratização da gestão das cidades, entre outras”.[118] 5.2 Conceito Não há um conceito amplamente difundido para o que seja plano diretor, por não existir um consenso entre os atores envolvidos sobre o que exatamente seria este instrumento, contudo algumas tentativas foram feitas e ajudam a entender um pouco mais do que se trataria tal termo: “O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras de ação dos agentes que constroem e utilizam o espaço urbano”.[119] “É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados […], as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município”.[120] “O plano diretor […] é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo. Desejado pela comunidade local”.[121] “O plano diretor […] não é mais apenas um simples instrumento técnico de trabalho, mas sim, também, um instrumento jurídico de atuação do governo local. O plano diretor é um instrumento pelo qual a Administração Pública Municipal poderá determinar quando, como e onde edificar de maneira a melhorar satisfazer o interesse público, por razões estéticas, funcionais, econômicas, sociais, ambientais etc”.[122] “Plano diretor é um documento que sintetiza e torna explícitos os objetivos consensuados [sic] para o Município e estabelece princípios, diretrizes e normas a serem utilizadas como base para que as decisões dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento urbano convirjam, tanto quanto possível, na direção desses objetivos”.[123] O Plano Diretor é um planejamento que não contempla apenas e tão somente a espaço físico de uma cidade, mas este toca toda a dualidade de seus cidadãos, ou seja, o homem e o cidadão. Este planejamento não é responsável apenas pela organização e crescimento estrutural de sua cidade, mas pelo envolvimento e desenvolvimento de seus habitantes, no que diz respeito a sua vida em sociedade e particular. 5. 4 Ficha Técnica a) Natureza Jurídica O Estatuto da Cidade, em seu artigo 40, dispõe: “Art. 40. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”. (grifo nosso) Em conjunto com o art. 182 da CF, a natureza do Plano Diretor é de lei, devendo ser aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pelo Prefeito, Chefe do Executivo. b) Abrangência O §1° do art. 182 da CF[124] prevê a obrigatoriedade do Plano Diretor às cidades com mais de vinte mil habitantes. O Estatuto da Cidade, no entanto, dispôs em seu art. 41 de forma mais abrangente, incluindo neste rol: integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; para cidades em que o Poder Público pretenda lançar mão dos instrumentos de edificação ou parcelamento compulsório, do IPTU e desapropriação; áreas de especial interesse turístico; cidades sujeitas à influencia de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental e medidas de compensação. Este é rol que está obrigado a disciplinar um plano diretor, no entanto nem texto Constitucional, tampouco, o texto legal, alegam que as cidades não elencadas nos dispositivos estejam, sob qualquer circunstância, proibidas de fazê-lo, atitude que seria exemplar e construtiva. c) Objetivo O objetivo está expressamente exposto no caput do art. 182, o qual dispõe que este deverá ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. “O plano diretor não tem a pretensão de resolver todos os problemas das cidades”,[125] no entanto seu objetivo não se limita ao dispositivo, por ser um instrumento político objetiva a transparência e democratização da política urbana: “O grande objeto do Plano Diretor é construir cidades com uma qualidade urbana para todos […] Objetiva, ainda, ser um instrumento vivo, verdadeiro e legítimo para promover o fim das injustiças que o modelo de desenvolvimento econômico-social legou para as atuais gerações […] o Plano Diretor tem por finalidade orientar a atuação do poder público na construção participativa de iniciativas, para ampliar e reformular ofertas de serviços públicos essenciais, assegurando melhores condições de vida para a população. […] O que se pretende com o Plano Diretor é espelhar não um plano de governo […] mas um plano da cidade, abordando seus problemas de forma abrangente, considerando a cidade informal, os processos expansivos espontâneos, as irregularidades urbanísticas, edilícias e seus reflexos econômicos e sociais […] tem de ser um instrumento que ao indicar caminhos e traçar rumos, coloca o desafio para o município de atuar não apenas como um simples ordenador do espaço territorial das atividades, mas alargando horizontes […] deve revelar uma análise das transformações em processo no município e suas consequências”.[126] d) Características São vários os aspectos que caracterizam o Plano Diretor, contudo três se ressaltam: são eles o político, a transparência e o democratização. O aspecto político considera o contraponto entre a participação do ente político e dos técnicos. Apesar de ter um papel fundamental, a técnica por si só, torna, por vezes, o plano de difícil elaboração e entendimento pela comunidade. Os estudos técnicos são necessários sim, mas somente na medida em que dão subsídios e/ou avaliam a viabilidade técnica das propostas discutidas politicamente. O segundo aspecto trata da transparência, elencado como o mais importante, constituindo em si, além de característica, o principal objetivo do plano diretor, ou seja, dar transparência à política urbana, tornando pública, suas diretrizes e prioridades, para melhor avaliação e participação da sociedade. Por fim está a democratização como terceiro aspecto, de fundamental importância uma vez que é este o garantidor da transparência com a participação da sociedade, leva o planejamento de estritamente técnico e elitizado, para acessível e difundido. e) Elaboração Cabe ao Município elaborar seu plano diretor, por ser este “mais aparelhado tecnicamente, mais conhecedor da realidade local e mais próximo dos desejos da comunidade”.[127] Ao processo de elaboração cabe a participação efetiva dos agentes da Administração Pública, como conhecedores de realidades específicas, leia-se aspectos legais, e para melhores condições de uma implementação efetiva, bem como dos técnicos, restringindo-se sua atuação a medida em que subsidiam o planejamento: “Pode-se dizer que, intelectualmente (quer dizer, no que se referem aos conhecimentos técnicos científicos que podem se mostrar úteis na prática do planejamento e da gestão), o planejamento e a gestão constituem um campo interdisciplinar, e não o monopólio de uma única profissão. E, do ponto de vista político, o desejável é que os cidadãos tenham a oportunidade de decidir, eles próprios, sobre os destinos de seus espaços e de suas cidades”.[128] Os atores principais desta peça são os cidadãos, a participação da comunidade, através dos próprios indivíduos ou de entidades representativas, na elaboração do planejamento, é fundamental para o seu sucesso. Há “decisões judiciais que reconhecem a importância política desse processo de elaboração dos planos diretores, […] no sentido de anular os que foram aprovados sem terem sido submetidos à participação popular efetiva”.[129] A elaboração se dará, respeitando as particularidades de cada comunidade, em quatro etapas: estudos preliminares, diagnóstico, plano de diretrizes e instrumentação do plano. José Afonso da Silva[130] indica alguns requisitos a serem observados na elaboração do Plano Diretor: a) O processo de planejamento é mais importante que o plano; b) O plano deve ser exatamente adequado à realidade do Município; c) O nível de profundidade dos estudos deve ser exequível; d) O nível de profundidade dos estudos deve ser o necessário para orientar a ação da municipalidade; e) A elaboração do plano converge para dois documentos principais: 1) O plano de diretrizes – que fixa a política global do desenvolvimento do Município e as perspectivas mais gerais para o Planejamento do Município (médio e longo prazo); 2) O plano de ação do prefeito que representa a decisão e o compromisso assumido pelo Prefeito, quanto às metas de sua administração. Além de dois requisitos fundamentais: a) que as prioridades e as diretrizes, em termos de despesas para o Poder Público municipal, sejam previstas e conectadas com o plano plurianual, com as diretrizes orçamentárias e com os orçamentos anuais; b) que haja a efetiva e inafastável participação popular na elaboração do plano diretor. (grifo nosso) f) Aprovação “A elaboração e aprovação do plano diretor exigem a dupla atuação do Poder Público, uma vez que o Poder Executivo é responsável pela elaboração, e o Poder Legislativo pela sua aprovação na Câmara Municipal”.[131] É de suprema importância que os legisladores, ao votar a aprovação do Plano, não hajam sorrateiramente incluindo inúmeras emendas que venham a alterar a constituição outorgada pela sociedade partícipe, fato que desconfigura a necessidade da participação popular, tornando os cidadãos marionetes iludidas por falsas promessas. Assim como é de responsabilidade do Prefeito analisar estas situações antes de sancionar o Plano. g) Conteúdo Mínimo “O Plano Diretor é um documento técnico, contudo, o seu conteúdo deve expressar o resultado de uma discussão política sobre a cidade”.[132] O art. 42[133] do Estatuto traz como conteúdo mínimo: “a delimitação das áreas urbanas para aplicação do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, pela existência de infraestrutura e de demanda para utilização; direito de preempção; outorga onerosa do direito de construir; operações urbanas consorciadas; transferência do direito de construir; e acompanhamento e controle do plano diretor”. O Plano Diretor deve conter minimamente os seguintes tópicos: uso do solo urbano, expansão urbana, parcelamento do solo urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Todo o conteúdo administrado pelo Plano Diretor deve ser apropriadamente apresentado e discutido pela comunidade. h) Implementação Assim como a elaboração e aprovação, caberá ao município sua implantação, “que não é outra coisa senão a observância e execução de suas disposições”.[134] Etapa de maior preocupação aos seus elaboradores, uma vez que não há valia ou efeitos práticos de um plano elaborado e aprovado se este não for viável e exequível. “A principal virtude de qualquer plano está na sua exequibilidade e viabilidade. Um plano que não seja exequível é pior do que a falta de plano, porque gera custos sem resultados”.[135] Diante destas observações, mais uma vez se ressalta a necessidade dos agentes planejarem em conjunto. O Plano não pode, sob qualquer circunstância, ser meio de condutas ímprobas, com políticas de favorecimento pessoal, através da Administração Pública, com promessas impossíveis de serem cumpridas, legal ou tecnicamente. Assim como os técnicos não podem fazer do planejamento uma criptografia, entendida apenas por eles, e que agrega todo o seu imaginário de mundo perfeito, mas que não atende, necessariamente, as carências da sociedade. Nesse meio, a participação popular, precisa ser o contraponto, de um planejamento implementável. i) Sanções ao Descumprimento  O art. 52[136] do Estatuto da Cidade estipula um prazo de cinco anos para a aprovação de seu respectivo Plano Diretor, do descumprimento deste o Prefeito, na pessoa de representante do município, responsável por este, incorrerá em improbidade administrativa. Ao Município, cabe a punição de crescer desorganizadamente, ônus pago por toda a sociedade. j) Atualização Mesmo após todo o processo de elaboração, aprovação e implementação, com prazo de cinco anos, sob pena de punição ao Chefe do Executivo Municipal, o art. 40 §3°[137] do Estatuto da Cidade institui uma revisão do plano diretor a cada dez anos. Ainda que o Estatuto preveja revisões a cada decênio, existe a possibilidade de atualizações em períodos menores, na medida em que as mudanças da sociedade sobre o local, assim o exijam “O plano diretor não é estático, exigindo, assim, constantes atualizações pontuais”.[138] 6. Participação popular Comumente, participação é definida pelo dicionário de língua portuguesa como “2. Ter ou tomar parte. 3. Ter parcela em um todo, ou receber, em divisão ou em partilha, parte de um todo”.[139] O dicionário jurídico acrescenta “é a ação de participar ou de intervir, em qualquer condição. É, portanto, a ação de ser parte, ou ter cooperado para que alguma coisa se fizesse ou fosse feita”.[140] Dentro da perspectiva abordada no presente trabalho, tem o sentido de “projeto construído em torno da ampliação da cidadania e do aprofundamento da democracia”.[141] “O entendimento da participação como um processo através do qual as pessoas se organizam, se mobilizam e agem sobre o Estado para reivindicar os direitos que a Constituição lhes garante”.[142] Assim como a cidade só faz sentido se nela habitarem os cidadãos, o plano diretor só fará sentido se a população estiver entrelaçada a ele, permeando todo o seu processo, desde sua primeira análise para elaboração, passando por sua implementação até suas atualizações e revisões. “Para a implementação dos planos diretores participativos, primeiramente é necessário identificar e entender a realidade do município, sua potencialidade, problemas, cultura e contradições, pois assim como define Lefebvre a cidade é a “projeção da sociedade sobre um local” (2001, p. 56, destaque do autor) e não devemos entendê-la como a soma de partes isoladas, mas sim como um todo”.[143]  É esta compreensão unitária da cidade, através da atuação de sua sociedade, ou seja, de seus cidadãos, que permite observar a complexidade deste planejamento, mas, sobretudo, a significância da participação popular. 6. 1 Disposições Legais a) Previsão Constitucional A participação popular é um ato previsto tanto no texto constitucional como nas legislações infraconstitucionais relacionadas ao tema. A Constituição Federal prevê já em seu art. 1°[144] a necessidade da participação popular, seja ela na constituição do Estado Democrático de Direito, na soberania popular, no exercício da cidadania, ou ainda quando afirma categoricamente que o poder emana do povo. Restringindo ao tema ora proposto, o art. 29,[145] do mesmo texto, expressa, nas disposições a cerca da competência municipal, sobre a cooperação das associações nos assuntos de planejamento municipal e sobre a possibilidade de se ter projetos de leis municipais de iniciativa popular. b)Previsão Legal Mais especificamente, o Estatuto da Cidade dispõem em seu Capítulo III, art. 40[146] e seguintes, sobre circunstâncias de participação popular. O referido artigo começa disciplinando a atividade do Poder Executivo e Legislativo, quando da obrigação destes em promover audiências públicas, debates, disponibilização para a população de todos os documentos e informações necessárias para sua melhor participação, tanto na elaboração como na implementação sob pena de desobediência à Constituição. Na sequência o art. 42[147] traz, como conteúdo mínimo ao Plano Diretor, um sistema de acompanhamento e controle, que é composto, certamente, por membros do legislativo e executivo, por técnicos com áreas de especialização determinadas, mas, sobretudo, pela população, a qual esta diretamente vinculada, que experimenta diariamente os acertos e erros do planejamento e que compreende muito melhor a sua realidade. Por fim o Capítulo IV do Estatuto tem como título Da Gestão Democrática da Cidade, com os arts. 43[148] a 45, nos quais expressa como instrumento garantidor da gestão democrática a existência de debates, audiências e consultas públicas, conferências para tratar dos assuntos de interesse urbano e a iniciativa popular como fomentadora de projetos de leis, planos, programas e projetos que viabilizem o desenvolvimento urbano. O art. 44[149] ainda traz como inovação o orçamento participativo, no qual a população pode colaborar com propostas aos planos plurianuais, nas leis de diretrizes orçamentárias e ainda no orçamento anual, tudo submetido a aprovação posterior pela Câmara Municipal: “Mais do que um instrumento técnico, normalmente hermético ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano passa a ser um espaço de debates dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Não se trata aqui da tradicional fase de “consultas” que os planos diretores costumam fazer – a seus interlocutores preferenciais, clientes dos planos e leis de zoneamento que dominam sua linguagem e simbolização. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o que existe de mais vivo e vibrante no desenvolvimento de nossa democracia – a participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos decisórios”.[150] O art. 45 por sua vez traz a prerrogativa da inclusão obrigatória e significativa participação popular para o pleno exercício da cidadania: “Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”.[151] Ressalta-se que esta participação devera ser significativa, em quantidade e pluralidade de representação, abrangendo os mais diversos segmentos da sociedade, para que se garanta a transparência, mas, especialmente, um exercício efetivo de cidadania. c)Previsão na Carta Mundial pelo Direito a Cidade A proposta de uma Carta dos Direitos Humanos na Cidade foi apresentada pela ONG FASE na VI Conferência Brasileira de Direitos Humanos, em 2001, apoiada no uso ativo dos instrumentos internacionais de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.[152] Além de outras matérias atinentes a cidade, a Carta Mundial pelo Direito a Cidade traz em seus dispositivos, art. III,[153] o compromisso das cidades em efetivar espaços que proporcionem a ampla participação social, de maneira direta e democrática, tanto nos processos de elaboração e aprovação, como na gestão e avaliação das políticas e orçamentos públicos. A cidade também deve garantir que as audiências públicas, conferências, consulta à população e debates funcionem, bem como permitir à iniciativa popular o reconhecimento de seus projetos e planos. Seu art. VIII,[154] por sua vez, estende a participação à vida política local, através da eleição e todas as decisões que puderem, de alguma forma, afetar as políticas locais de planejamento e gestão da cidade. A participação popular como exercício de cidadania tem dispositivo específico. A Carta Mundial pelo Direito à Cidade traz: “Artigo II. Princípios e Fundamentos Estratégicos do Direito à Cidade, Do Exercício Pleno da Cidadania e Gestão Democrática da Cidade: 1.1 As cidades devem ser um espaço de realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assegurando a dignidade e o bem estar coletivo de todas as pessoas, em condições de igualdade, equidade e justiça, assim como o pleno respeito a produção social do habitat. Todas as pessoas têm direito de encontrar nas cidades as condições necessárias para a sua realização política, econômica, cultural, social e ecológica, assumindo o dever de solidariedade. 1. 2 Todas as pessoas têm direito a participar através de formas diretas e representativas na elaboração, definição, implementação e fiscalização das políticas públicas e do orçamento municipal das cidades, para fortalecer a transparência, eficácia e autonomia das administrações públicas locais e das organizações populares”.[155] Uma vez reconhecida à importância da cidade para o desenvolvimento humano, ressalta-se a participação popular, não apenas como direito, mas como instrumento de uma administração pública eficaz, transparente e fortalecida. 6. 2  Instrumentos de Participação Em um rol diverso de possibilidades, podem-se apontar alguns exemplos de situações em que a participação popular figura como polo ativo da relação. Ramos[156] destaca: a)Iniciativa legislativa popular: direito reconhecido a certo número de cidadãos de apresentarem projetos de lei ou propostas de emendas constitucionais, podendo ser apreciada pelo eleitorado (iniciativa direta) ou pelo órgão do Poder Legislativo (iniciativa indireta), como é mais usual; b)Plebiscito: consulta ao eleitorado concernente a alguma questão de natureza política, podendo gerar ou não a necessidade de providências legislativas; c)Referendum constitutivo: consiste na apreciação de um projeto de lei em tramitação no Parlamento pelo eleitorado, a pedido de certo número de cidadãos, antes da deliberação do órgão legiferante regular ou depois da aprovação da propositura, o que pode dar ensejo ao chamado veto popular; d)Referendem ab-rogativo: consiste na apreciação de uma lei pelo eleitorado, desde que solicitado por determinada parcela dos cidadãos; e)Recall ou revogação: manifestação popular no sentido da cassação do mandado de representante legislativo ou de funcionário eletivo, podendo, ainda, ter por objetivo decisão judiciária no sentido da inconstitucionalidade de lei; Além destas hipóteses de participação direta, há de se recordar a existência de múltiplas possibilidades de participação popular indireta. “É o caso, em certas circunstâncias, do vetusto direito de petição e, também, […] da ação popular”.[157] É possível exemplificar instrumentos, que por meio da participação popular possibilitam a ampliação da democracia, bem como de um exercício efetivo da cidadania, pode-se citar a participação popular em conselhos, comitês, plebiscitos e orçamento participativo, na esfera do Poder Executivo. No que tange o Poder Legislativo pode-se frisar as audiências públicas e iniciativas populares em matéria de lei urbanística, tal como prevê o Estatuto da Cidade. Além da ação civil pública para defesa de ordem urbanística, concebida como interesse difuso, e reconhecida a legitimidade ativa de ONG’s, movimentos sociais e do Ministério Público na alçada do Poder Judiciário. Observados alguns exemplos de ações afirmativas no sentido de inserir a população em um ambiente um tanto quanto inóspito para a grande parte dela, ou ainda, retirar a atmosfera jurídica de seus palacetes e inseri-la na sociedade à qual pertence e para a qual deveria atuar. É de grande valia apreciar exemplos concretos, de situações nas quais a população de fato se inseriu com o objetivo de expressar sua opinião, de ser verdadeiramente ouvida. 6. 3 Participação no Plano Diretor A participação popular no desenvolvimento do Plano Diretor parte do fundamento de que o interesse social se configura como grande mentor das definições das políticas públicas, especialmente no que concerne à aplicação de investimentos, verbas públicas e da própria atenção da Administração Pública. A efetiva participação da comunidade no planejamento, seja ele local ou municipal, é capaz de minimizar desigualdades sociais e ainda ser canal para o cumprimento das metas objetivadas pelo Plano Diretor. “Verifica-se assim, que o cidadão tem autorização expressa constitucional de exercer diretamente o poder, ou seja, de deliberar por uma determinada linha de atuação no alcance dos fins pré-estabelecidos”[158]. A “participação na elaboração de planos diretores deve ser encarada como uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurar um determinado nível de bem-estar coletivo”.[159] “Não se trata de convencer a população a aceitar as propostas da administração pública, mas sim, de ouvir as propostas trazidas pela população e analisar as possibilidades técnicas e jurídicas de incluir tais anseios no bojo do plano diretor. Essa participação deve englobar diversos segmentos da sociedade, evitando que qualquer segmento seja excluído do processo de tomada de decisões que interessam à coletividade. Assim deve ser garantida a participação de indivíduos ou grupos de indivíduos; de organizações e movimentos populares; de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”.[160] “Torna-se um desafio encontrar um novo formato de planejamento capaz de gerar intervenções governamentais efetivas na promoção da melhoria das condições de vida urbana, especialmente no que tangencia o conjunto dos trabalhadores”.[161] Muito embora se tenham um alcance menor, as ações locais não podem ser minimizadas em sua importância. Os temas para as conferências, debates e audiências públicas são os mais diversos possíveis, como as conferências sobre o planejamento habitacional ocorridas em Londrina, no Estado do Paraná, nos anos de 2006 e 2009, bem como as audiências públicas com os temas saúde, direitos da mulher, juventude, segurança pública. Dentre elas cita-se a 1ª Conferência Municipal de Habitação, foi estabelecida com o intuito de discorrer sobre o planejamento urbano local, teve suas atividades dispostas no ano de 2006, contanto com uma preparação pré-conferência de julho de 2005 a fevereiro de 2006, com a produção de seminários de nivelamento de conceitos, para que a participação pudesse ser de fato efetivada por todos, levando em consideração as desigualdades, especialmente entre as regiões da cidade. A 2ª Conferência Municipal de Habitação, em conformidade aos objetivos da anterior, teve com tema Morador Legal, e sub-temas: a regularização fundiária como política urbana de desenvolvimento e a elaboração e implantação de uma legislação urbanística adequada a área local, buscando uma continuidade dos debates: “esses direitos da população à participação política ativa vêm sendo reconhecidos nos instrumentos legais mais recentes; com efeito, além da obrigação de realização de audiências públicas para a aprovação de vários assuntos […] a Lei 10257/2001 (Estatuto da Cidade) foi além e institucionalizou a participação popular no planejamento municipal”.[162] Especificamente sobre o planejamento urbano, em consonância com o disposto no Estatuto da Cidade, as duas primeiras conferências que trataram do tema foram de âmbito nacional. A 1ª Conferência das Cidades, que aconteceu em 2003, sob o lema Cidade para Todos e tema Construindo uma política democrática e integrada para as cidades. Já nesta primeira conferência houve uma grande participação popular de todos os municípios brasileiros, na qual foi debatido e definido as bases e contornos iniciais do processo de formação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, estabelecendo os princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU, a criação e constituição do Conselho Nacional das Cidades, a sistemática de realização de conferências municipais, estaduais e nacional: “No ano de 2003, o governo do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva criou o Ministério das Cidades, dando prosseguimento à conquista do capítulo da Política Urbana na Constituição brasileira e à conquista da lei nacional do Estatuto da Cidade. Sua missão é formular e executar uma política urbana integrada – uma política de desenvolvimento urbano para o Brasil mediante articulação de parcerias com a sociedade civil e o poder público municipal, estadual e federal, com o objetivo de assegurar o acesso e o direito à cidade sustentável aos milhões de habitantes das cidades brasileiras […] A convicção na necessidade da participação da sociedade na formulação das políticas públicas de desenvolvimento urbano fundamentou a realização da 1ª Conferência das Cidades em 2003. […] O processo de sua realização mobilizou cerca de 320 mil representantes da sociedade civil organizada e do poder público em 3.457 dos 5.563 municípios brasileiros”.[163]  “A 2ª Conferência Nacional das Cidades foi realizada em Brasília no final de 2005, debatendo-se além das políticas setoriais de habitação, […] questões mais abrangentes relativas à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano”.[164] A 3ª Conferência das Cidades foi convocada pelo Ministério das Cidades em 2007, a ser realizada em etapas municipais, estaduais e nacional, oportunizando a toda a sociedade brasileira a participação nas discussões. O lema foi: Desenvolvimento urbano com participação popular e justiça social, com o tema: Avançando na gestão democrática das cidades. O objetivo era dar continuidade às primeiras discussões ocorridas nas conferências anteriores, “com vistas à construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano PNDU para o país, sem deixar de abordar temas centrais relacionados ao cotidiano da gestão do poder”.[165] A Etapa Municipal foi convocada pelo Executivo Municipal através do Decreto nº 286, de maio de 2007, realizada nos dias 26, 27 e 28 de julho.  A 4ª Conferência Municipal da Cidade aconteceu no dia 12 de dezembro de 2009, na Câmara Municipal de Londrina, com o lema Cidade para todos e todas com Gestão Democrática, Participativa e Controle Social e com o tema Avanços, Dificuldades e Desafios na Implementação da Política de Desenvolvimento Urbano: “Seus objetivos foram identificar os avanços e resultados das Conferências anteriores e quais as questões centrais em torno dos problemas e dificuldades na implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e propor a reflexão sobre a integração das políticas setoriais e sua relação com a participação democrática, no Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, notadamente da criação e consolidação dos Conselhos Estaduais e Municipais das Cidades, buscando a discussão sobre as especificidades de cada gestão”.[166] Posteriormente foram realizadas seis conferências no ano de 2010, sob o slogan “Londrina do Futuro – Plano Diretor Participativo”. Nominadas Conferência para aprovação das minutas das leis complementares do Plano Diretor, foram debatidas as leis que devem ser incorporadas ao Plano Diretor: – Lei de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural (30/01/2010); – Código de Posturas (09-10/02/2010); – Código Ambiental e Lei do Perímetro Urbano (17-18/04/2010); – Código de Obras (07-08-09/05/2010); – Lei do Sistema Viário e Lei do Parcelamento do Solo (25-26-27/06/2010); – Lei do Uso e Ocupação do Solo. A última conferência para tratar de assuntos tangentes ao Plano Diretor foi a I Conferência Municipal de Planejamento, realizada em 07 de novembro de 2010, ocorrida com o objetivo de efetivar o Plano Diretor, auxiliando na coordenação da implementação, além da recorrente discussão sobre temas específicos. 7. Plano diretor participativo do município de londrina – pdpml  O primeiro Plano Diretor de Londrina foi sancionado em julho de 1998. Como prevê o Estatuto da Cidade, sua revisão deveria ter sido feita com o prazo de 10 anos, datando de julho de 2008. A lei geral do Plano Diretor de Londrina, Lei n° 10.637/08, foi aprovada e sancionada em 24 de dezembro de 2008, ficando sob discussão suas leis complementares, leia-se: Lei de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural, Código de Posturas, Código Ambiental e Lei do Perímetro Urbano, Código de Obras, Lei do Sistema Viário, Lei do Parcelamento do Solo e Lei do Uso e Ocupação do Solo. Destas, até a data presente, faltam ser aprovadas a Lei de Sistema Viário (projeto 285/2010) e a nova Lei de Uso e Ocupação do Solo (projeto 398/2010), ainda sob discussão na Câmara de Vereadores. Jogos políticos a parte, a falta de uma prestação efetiva do Poder Público, leia-se Legislativo e Executivo, tem afetado diretamente a cidade. “O fato é que o Plano Diretor faz muita falta”,[167] segundo atesta Nilson Capucho, diretor da Ceal – Clube de Engenharia e Arquitetura de Londrina. “Entre setores organizados da sociedade, a avaliação é de que o atraso na aprovação do plano diretor traz prejuízos para a cidade. Para a presidente do Conselho Municipal, Margareth Pongelupe, a não aprovação do plano diretor “cria uma insegurança jurídica muito grande”. […] Segundo ela, com essa insegurança, “a cidade deixa de crescer”.[168] Mesmo com todas as conferências, debates e audiências públicas, ainda é preciso que a população participe, “[…] os vereadores concluíram que apesar da nova proposta de Plano Diretor ter sido amplamente discutida entre 2005 e 2006, quando houve dezenas de reuniões e audiências, seis anos mais tarde ainda há quesitos obscuros nos projetos, merecedores de esclarecimentos públicos para a cidade”.[169] Requerer estes esclarecimentos é papel da sociedade, assim como cobrar a implementação efetiva do planejamento para que a cidade seja prejudicada por sua falta. Sua opinião é de vital importância e motivadora de um grande diferencial. A discussão em plano se refere as 97 emendas propostas pelo Legislativo, capazes de desconfigurar a opinião populacional emitida anteriormente, representando um retrocesso em todo o processo de discussão e planejamentos anteriores, sobrepondo-se a participação popular: “Com o grande número de emendas, 97 ao todo […] a presidente do Ippul, Regina Nabhan, afirmou que a principal preocupação da administração é o fato de muitas emendas apresentadas pelos vereadores “representarem um retrocesso”. […] Regina destacou ainda que com essa postura de retrocesso por parte dos vereadores ignora a vontade da população. A presidente do Ippul argumentou que o documento foi elaborado depois de seis anos de trabalho, envolvendo oficinas, audiências públicas e conferências e que a sociedade não quer o retorno de determinadas situações. “Com esse posicionamento, os vereadores estão passando por cima da participação popular”, ressaltou”.[170]  O que se documenta são reclamações da população, mas estas não geram qualquer efeito jurídico. À população são dados instrumentos capazes de reverter esta situação, mas para isso é preciso uma mobilização. A participação é voluntária, o que não poderia ser diferente, já que a imposição de sua presença descaracterizaria a democracia e a própria cidadania: “As reuniões eram abertas e havia representantes da comunidade. Se as pessoas não comparecem, não podem agora achar ruim porque eram reuniões públicas” […] A advogada do Ippul atesta que a discussão do Plano Diretor foi aberta e contou com ampla divulgação, mas afirma como impossível “obrigar moradores a participar de tudo”. […] Segundo a advogada, a própria Caixa Econômica Federal, financiadora da discussão do Plano, aprovou o modelo de inserção popular no debate. “A divulgação foi intensa. Mas por mais que a gente se esforce, nem todo mundo vem. Infelizmente poderíamos ter muito mais gente participando. Poderia ter sido melhor, mas não há como obrigar”.[171] Parece-me que a grande crítica a ser pontuada ao Plano Diretor de Londrina é o resquício de um caráter tecnocrata, “a discussão feita na Câmara entre técnicos, engenheiros e arquitetos foi pouco receptiva para moradores comuns que não entendem gabaritos construtivos e outros padrões da engenharia necessários à discussão técnica”,[172] como outrora havido no período pré-constituição. Assim como fora anteriormente afirmado, não se dispensa a presença dos técnicos, mas estes precisam subsidiar o conhecimento necessário, para melhor implementação do Plano Diretor, ou seja, para que o planejamento possa ser exequível na prática, no entanto o que se observou foi a predominância de aspectos puramente técnicos os quais tornaram o planejamento inacessível a comunidade em geral. O estudo destas experiências concretas fornecem subsídios tamanhos, capazes de aperfeiçoar o exercício da cidadania na sociedade, assim como propicia meios concretos da cidadania cosmopolita, sair do mundo das ideias e passar ao mundo real: “o alcance do termo “cidadania” vem se ampliando no Brasil ao longo dos últimos anos vinte anos. Do simples exercício dos direitos civis elementares, como escolher seus governantes por meio do voto popular, a população passou a exigir ser ouvida nas decisões tomadas por seus representantes eleitos. Com isso, a tradicional equação público-privado, em que cabia ao munícipe meramente exercer um papel reivindicatório junto aos governantes, vem sendo substituída por uma presença mais ativa dos cidadãos na condução dos assuntos públicos”.[173] Contudo é preciso mais. Os avanços e evoluções pelas quais a cidadania passou são visíveis, mas ainda há substancialmente incutido na população uma ideia de cidadania de direitos e reclamações, se carrega uma comodidade eminente, uma posição muito passiva, permissiva e omissa, que apenas se põe em ação, na defesa de seus direitos, quando lesada diretamente. Sobretudo, a ignorância de uma população com poucos recursos, educacionais e culturais, que por vezes desconhece a estima de seu papel enquanto partícipe da sociedade, põe a cabo sua existência. A “participação facilmente se constituirá em letra morta se a população não exercer seus direitos e exigir a participação que lhe é garantida por lei”.[174] O que o Plano Diretor Participativo destaca são “processos através dos quais as pessoas, enquanto agentes políticos e atores coletivos, formulam as decisões que afetam suas vidas, como exercício da cidadania e da ação política”.[175] “a conscientização, a ação e a capacidade de luta são vistos como evidência de sua cidadania […] Para aqueles que nunca haviam participado das instituições, a experiência da participação pode ser a experiência dessa dimensão realmente diferente da cidadania”.[176] 8. Participação popular como escola de cidadania Não se pretende descaracterizar a importância das normas cogentes, constitucionais e infraconstitucionais, já que são estas que delineiam este universo cidadão. No entanto o exercício da cidadania vai além do que qualquer norma poderia propor. “Contextualizar os significados e as práticas da cidadania significa ir além dos direitos estabelecidos na Constituição ou associados a questões de nacionalidade e pertencimento. As ações que nascem de, e contribuem para, um senso de cidadania também estão na micropolítica cotidiana, nas arenas nas quais os indivíduos vão reivindicar o que consideram que lhes é devido e nos relacionamentos nas comunidades em que vivem ou por onde circulam. A cidadania é menos uma identidade, e mais algo que é exercido, afirmado e reconstituído de diferentes maneiras em diferentes espaços. Está intimamente relacionada com as formas pelas quais as pessoas se constituem como atores sociais e a visão que tem dos domínios sociais de que fazem parte”.[177] A multiplicidade de possibilidades que a participação popular abarca gera diversos efeitos na sociedade. Pode-se citar como exemplo o aprendizado que a participação proporciona, melhorando o conhecimento do indivíduo sobre sua perspectiva na comunidade, assim como um melhor entendimento sobre suas ações, as consequências do ativismo e do comodismo, do seu entorno, das possibilidades até então desconhecidas. A participação gera uma organização da sociedade local para tomada de decisões, provocando mais autossuficiência, tanto individual, do cidadão, que deixa de ser vítima da situação e se torna ativo, como coletivo, reforçando os vínculos e a filiação comunitária, que se aproxima, não apenas para buscar, mas para alcançar novos objetivos. Além de ser meio efetivo para o exercício da cidadania, para que se ensine e se aprenda a ser cidadão. A identidade de cidadão se dá, na medida em que, este passa do polo passivo ao polo ativo na relação política e social. As tensões entre interesses sempre existirão e acontecem porque nossas intuições pessoais fazem parte de quem somos e se fazem presentes em nossas atitudes. Contudo nossa capacidade única para a comunicação é capaz de superá-las, nos levando ao encontro da justiça mínima, mas, sobretudo, permitindo que, respeitados os limites da boa convivência, a sociedade enquanto conjunto de indivíduos possa buscar, com prudência, sua suprema felicidade, para se chegar à vivência em comunidade. Local, no qual o cidadão não se fecha em suas aspirações particulares, mas é convidado a se abrir a comunidade que pode lhe oferecer uma melhor qualidade de vida. “A experiência da vida comunitária pode constituir-se em ponto de partida para a própria reorganização da sociedade, a reformulação de suas instituições políticas, e a construção de um novo Estado que esteja, de fato, a serviço de seus cidadãos”.[178] Neste contexto é imprescindível que se “com-viva”, ou seja, que a vivência aconteça com a comunidade e, por derrogação, com o Estado. É fato notório que Estado possui responsabilidades e deveres de prover o bem-estar de seus cidadãos, no sentido mais lato do termo. No entanto, “o que o caso brasileiro mostra é que a simples aprovação de leis e criação de espaços de participação é só uma parte do que o Estado pode fazer para facilitar o envolvimento dos cidadãos na governança”,[179] mais do que a obrigação legal é preciso querer a cidadania, criar vínculos, é imprescindível que se deseje ser cidadão. Entretanto para que se possa cobrar é preciso dar sua contraprestação, ainda que nunca se tenha feito, sempre há novas oportunidades de se começar. A participação popular, no exercício da cidadania, mais do que um dever é uma necessidade do homem, indivíduo, que prescinde de sua cidadania plena para sua satisfação pessoal, enquanto homem e cidadão. Desvencilhar estas pessoas as tornam, ambas, incompletas, uma não terá possibilidade de existência sem a outra. Nas palavras de Miguel Etinger de Araujo Junior: “A falta de experiência, portanto, não pode ser motivo de não participação, até porque experiência é algo que se conquista com a prática. […] Eventuais dificuldades devem servir de estímulo para o aperfeiçoamento dos mecanismos de deliberação dos cidadãos, buscando implementar uma conscientização do cidadão, não só de seu direito, mas sobretudo no seu dever de efetivamente participar da gestão de sua cidade com o objetivo de solidificar as instituições, reafirmar os princípios constitucionais e alcançar a pacificação social”.[180] “A cidadania não consiste apenas em usufruir dos direitos sociais conquistados por outros cidadãos em outros tempos. A cidadania é uma construção continua, com o Estado e a sociedade, pela qual os homens são responsáveis”.[181] São nossas próprias conquistas que nos edificam enquanto homens-cidadãos e, por consequência, edificam nossa comunidade. A possibilidade de participar, sem dúvida, é uma aquisição de cidadãos de outros tempos, mas as conquistas que os cidadãos de hoje terão. Este é o grande desafio. Talvez os atuais cidadãos não alcancem o que outrora se idealizou, contudo terão subsídios que os permitirão chegar ao ápice do que se pretende, uma cidadania plena, composta de cidadãos plenos capazes de construir uma comunidade. Sem almejar uma simplória conquista de metas, mas, sobretudo, se empenhando para edificar uma comunidade sólida, cuja fundação já nos foi dada, e que possa abrigar cidadãos do amanhã. Conclusão Este trabalho teve como objetivo avistar este primeiro degrau, não se teve a pretensão de subi-lo, mas encontrá-lo. Sob uma perspectiva sociológica, tratou-se de um tema, visto por muitos como estritamente técnico, mas que traz em seu âmago um forte caráter social e comunitário, o qual não deveria ser manuseado sem estas considerações. Partindo da ótica do indivíduo, enquanto ator social, ou ainda ator principal no desempenho deste projeto, conheceu-se do ser enquanto homem e cidadão, com suas distinções, diferentes perspectivas, mas incontestável dependência, observados atentamente por diferentes correntes filosóficas. Uma vez conhecida à perspectiva particular, este homem-cidadão passa a ser inserido no ambiente que o circunda e do qual não é possível se apartar, neste contexto se dá a cidadania. Cidadania, esta, que teve sua origem desde o momento em que o homem se submete a vivência em sociedade para sobreviver, evoluindo com este até o presente momento, demonstrando novas fontes de interesse para a vida em sociedade. Assim como a evolução da sociedade se deu através da evolução das cidades, o conceito de cidadania teve de evoluir para acompanhar suas novas perspectivas e objetivos. O tão aclamado conceito de cidadania social passou a ser insuficiente permitindo novas acepções para o termo. De conceito bidimensional, de direitos e deveres, a cidadania passou a ganhar novas dimensões, dentre elas, foram citadas a econômica, civil, intercultural, até alcançar uma nova nomenclatura, denominada cidadania cosmopolita. Uma vez compreendida que a cidadania acontece na medida exata e proporcional ao crescimento do homem enquanto cidadão, para que se contemple a nova conceituação de cidadania ideal é imprescindível que se detenha um cidadão ideal. Não é de hoje que se busca esta idealização, Aristóteles já o tentara. Ilusões a parte, o que se pretende não é fantasiar um individuo, mas encontrar o caminho para se chegar ao ideal de cidadania, e este, indubitavelmente, passa pelo cidadão. Não obstante ainda se faz necessária a criação de um lugar, no qual esta cidadania possa acontecer, uma vez que esta só faz sentido no seio de uma sociedade. Para tanto já se observou algumas tentativas, que apesar de muito utilizadas não geram significativas conquistas. A religião civil traz uma valorização superficial e falsa do cidadão, com artifícios baratos que não são capazes de gerar vínculos verdadeiramente fortes culminando com uma sociedade ainda mais egoísta. O fortalecimento do espaço público encontra-se como uma opção pouco mais assertiva, uma vez que é neste que a vida comunitária se dá, que a cidadania acontece. Porém é preciso mais. Para que a população verdadeiramente se envolva e queira estar presente ativamente neste local, um bom lugar de convívio não basta, é necessário que o cidadão se identifique com esta realidade. Esta identificação é capaz de gerar vínculos de pertença, os quais se dão através da opinião pública. Esta vinculação se dá primeiramente em nossa realidade mais próxima, em nossa cidade, nosso município. Respeitadas as devidas distinções o município é competente para gerenciar sua realidade e a de seus cidadãos, tornando-se responsável pela vinculação dos mesmos em sua dinâmica. O planejamento municipal é título deste tema, planejamento este que deve apreciar não só as carências e aspirações da cidade, enquanto organismo social, mas, especialmente, de seus cidadãos que fazem parte desta rotina. Enquanto artifício legal, o Estatuto da Cidade, vem sob a égide da Constituição Federal de 1988, viabilizando os meios possíveis para que a cidade/município contemple seu melhor desenvolvimento, concatenado com a ampla participação de seus habitantes. O Plano Diretor, denominação de tal planejamento, existe desde longa data. Com pontuais fracassos no período pré Constituição, resurgiu com a nova Carta Magna sob uma nova roupagem, com um novo conceito, objetivos e metas. O Plano Diretor, constituído enquanto lei municipal, deve ser aprovado pela Câmara e sancionada pelo Prefeito, nas cidades com mais de vinte mil habitantes. Observando problemas locais, objetiva soluções pontuais para uma melhor qualidade estrutural e social. Observando os princípios pertinentes à administração pública como um todo, deve ter sua elaboração executada por um conjunto de participantes que contemplem toda sua complexidade, leiam-se técnicos, administradores, investidores, dando-se a todo o tempo potencial atenção à população que figura em foco nesta atuação. Respeitadas as exigências legais, o Plano Diretor deve contemplar as dificuldades locais com soluções reais, buscando sua possível implementação, para não se tornar apenas uma bela teoria. Suas atualizações devem acontecer a cada dez anos, de modo que, as metas de planejamento acompanhem a dinâmica da realidade da cidade. Caso estas disposições deixem de acontecer o chefe do executivo municipal será responsabilizado, incorrendo em improbidade administrativa. Superadas as questões técnica, necessárias para a melhor compreensão do assunto exposto, a contribuição do Plano Diretor se dá com a participação popular no seu exercício. Sua importância se faz disposta no texto constitucional, legal, alcançando perspectiva internacional. Ao longo da história, diversos foram os meios utilizados pela população para tomar partido em questões sociais, a legislação traz diversos caminhos para tal. O Plano Diretor Participativo é mais um destes instrumentos. Observando a evolução desta participação, em especial a realidade do nosso Município, é perceptível o quanto se desenvolveu este caminhar até chegar aos parâmetros que encontramos atualmente. No entanto ainda há obstáculos a serem superados. Muito já se conquistou em interação e vinculação da sociedade, mas ainda não é o bastante. As camadas dominantes, cominadas com um legislativo elitista em constante confronto com o executivo municipal, resultam em sérias perdas, tanto no crescimento da cidade como no desenvolvimento de seus cidadãos, os quais ainda se apresentam em número inexpressivo. Tendo sua opinião por vezes desvalorizada, gera-se um total retrocesso em sua vinculação com a comunidade, levando a cabo o exercício de sua cidadania. Ainda há muito a ser feito, no entanto a participação popular agrega em si um grande potencial de desenvolvimento da cidadania, não só como meio para que esta aconteça, mas como escola de cidadania. Ainda que se tenham diversas teorias sobre o tema, esta só acontece na realidade prática. Na vida e vida em comunidade. Teorias, leis e dispositivos norteiam seus caminhos, mas são incapazes de fazê-la acontecer isoladamente. Ao longo deste processo se observaram erros que já foram superados e outros que ainda precisam ser corrigidos, porém os acertos provêm em grande parte de experiências frustradas. É preciso que se continue a buscar estes ideais, não como objeto de insatisfação por não serem encontrados, mas como metas capazes de impedir a acomodação em uma realidade que por vezes se apresenta de forma medíocre. É preciso querer mais.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/plano-diretor-participativo-caminho-para-o-exercicio-da-cidadania/
As empresas estatais e o compromisso de ajustamento de conduta
O presente artigo versa sobre a possibilidade das empresas estatais firmarem compromisso de ajustamento de conduta
Direito Administrativo
Introdução  As últimas décadas foram de grandes transformações na área jurídica, mediante o aperfeiçoamento de determinadas matérias, bem como o surgimento de novos ramos do Direito[1]. É cediço que o Direito é uma ciência una, sendo que a sua divisão em ramos ocorre principalmente para facilitar o estudo (autonomia didática) e sua aplicação prática mediante leis específicas (autonomia legislativa). Nesse diapasão, um ramo do Direito é autônomo quando possui métodos, princípios, institutos e normas próprias.  Dentre as novidades das últimas décadas podem ser citadas o biodireito, o direito digital, o aperfeiçoamento do direito comercial para direito de empresa e a evolução dos direitos difusos, que, no Brasil, se expandiram com mais afinco a partir da década de 1980. Assim, a autonomia dos Direitos Difusos ocorreu concomitantemente com a modificação social oriunda da crescente urbanização da população, dos meios de produção em massa, da economia cada vez mais complexa, enfim, de uma sociedade cada vez mais plural e com interesses variados.  Por ser um ramo da ciência jurídica relativamente novo, em franca ascensão, muitas dúvidas surgem em relação à aplicação dos Direitos Difusos, seja em seu aspecto material ou processual. Nesse sentido, convém consignar que, até os dias atuais, o Brasil ainda não possui nenhum Código de Processo Civil Coletivo, apesar da tramitação de alguns projetos de lei sobre a matéria[2].  Desta feita, o presente trabalho pretende discutir uma dessas dúvidas, qual seja, saber se as empresas públicas e as sociedades de economia mista podem celebrar compromisso de ajustamento de conduta. O motivo de tal questionamento reside no fato de que a Lei Federal nº 7347/85, que regulamenta o procedimento da ação civil pública, prevê em seu artigo 5º, inciso IV, a legitimidade das empresas públicas e das sociedades de economia mista para ingressarem com ação civil pública. No mesmo preceito legal, em seu parágrafo 6º, a mencionada lei estabelece que os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.  É de se ver que o alcance da expressão “órgãos públicos” comporta divergência, afinal, ao mesmo tempo em que as empresas públicas e as sociedades de economia mista são “entidades estatais”, pois criadas ou autorizadas por lei, elas possuem a natureza jurídica de pessoas jurídicas de direito privado, submetendo-se ao regime jurídico de direito privado com algumas derrogações do direito público[3]. Logo, tecnicamente, elas não são consideradas “órgãos públicos”.  Desta maneira, o fato de tais entidades se submeterem ao regime jurídico de direito privado, ao mesmo tempo em que são obrigadas a observarem vários dispositivos de direito público, faz com que nasça a divergência se as empresas públicas e as sociedades de economia mista podem ou não celebrar compromisso de ajustamento de conduta. Tal polêmica é acentuada por recente posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal-STF que parece aproximar cada vez mais as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos[4] do regime jurídico de direito público, ou seja, do mesmo regime jurídico aplicável à Fazenda Pública. Sem a pretensão de esgotar o tema proposto, o objeto de estudo será analisado por diferentes perspectivas de diversos doutrinadores para, ao final, chegar à conclusão acerca da possibilidade ou não das empresas pública e das sociedades de economia mista celebrarem o compromisso de ajustamento de conduta. 1.Evolução legislativa e base constitucional da tutela dos interesses difusos e coletivos no ordenamento jurídico brasileiro  A atual concepção dos interesses transindividuais começou a ser traçada, especialmente, a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Reconheceu-se, a partir da década de 1950 e 1960, o surgimento dos chamados direitos difusos e coletivos, representando os “direitos de terceira dimensão”, em uma classificação de cunho didático que os coloca ao lado dos direitos de liberdade (primeira dimensão) e dos direitos sociais e econômicos (segunda dimensão). Com a evolução natural de uma sociedade de massa, era imprescindível a existência de mecanismos que pudessem levar esses conflitos coletivos à análise do Poder Judiciário. Em suma, a velha fórmula A versus B parecia não mais atender aos anseios sociais.  No âmbito infraconstitucional, a preocupação com os interesses transindividuais se refletiu na edição de alguns diplomas legais. Dentre estes, convém citar os mais relevantes, por ordem cronológica: Lei 4717/65 (Lei de Ação Popular), Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública), Lei 7853/89 (Lei de Ação Civil Pública em Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiências Físicas), Lei 7913/89 (Lei da Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários), Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente), Lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e lei 8429/92 (Lei da Improbidade Administrativa). Aqui, cabe esclarecer dois pontos: em primeiro lugar, obviamente, há outros diplomas legais que tratam da proteção dos interesses transindividuais (buscou-se apenas citar algumas leis que possibilitassem a compreensão da evolução legislativa acerca da matéria); em segundo lugar, é mister ressaltar que a Lei de Ação Civil Pública (lei nº 7347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (lei nº 8078/90) formam o expoente da proteção dos interesses transindividuais, o que a doutrina chama de “microssistema de tutela coletiva”, uma vez que estes dois diplomas legais possuem normas recíprocas e complementares de atuação do direito processual coletivo, constituindo o instrumento através do qual a pretensão coletiva será deduzida em juízo.  No âmbito constitucional, é inegável a contribuição que a Carta Magna de 1988 conferiu de forma pioneira no constitucionalismo brasileiro aos interesses transindividuais.  Isto porque, “além de prever a diretriz da defesa do consumidor – parte vulnerável na relação com o fornecedor – pelo Estado, concretizando o princípio da isonomia (art. 5º, XXXII; art. 170, V; art. 48 das Disposições Transitórias), a Constituição instituiu o mandado de segurança coletivo (art. 5ª, LXX); possibilitou aos sindicatos e associações defender em juízo interesses da respectiva coletividade (art. 5ª, LXXIII); aumentou o número de legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade; e, finalmente, fez referência expressa à ação civil pública, para a proteção do ‘patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos’, cuja promoção é função institucional do Ministério Público, sem exclusão de outros entes (art. 129, III e par. 1º)[5].” É importante salientar que, tanto com a Constituição Federal quanto com o Código de Defesa do Consumidor, houve a ampliação do objeto de incidência da ação coletiva. Assim, nos dias atuais, praticamente qualquer pretensão pode ser veiculada através da ação coletiva, desde que se caracterize tutela de interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo. Também qualquer pedido pode ser veiculado por essas ações, seja pedido de natureza constitutiva, declaratória, mandamental ou executiva, conforme dispõe o artigo 83 do CDC.  Por fim, ressalte-se que a evolução legislativa, pela sua própria natureza, é tarefa contínua, de modo que, atualmente, é muito comentada a necessidade de um Código de Processo Civil Coletivo, ainda em fase de projeto de lei em trâmite junto ao Congresso Nacional. 2.Breve introdução acerca do compromisso de ajustamento de conduta  Hodiernamente, com o fenômeno da excessiva “judicialização da vida”, é indubitável que o Poder Judiciário se encontra sobrecarregado. As causas deste congestionamento não são propriamente o escopo do presente trabalho, que mais se interessa com a consequência da morosidade judicial. Nesse cenário, qualquer forma de solução de controvérsia extrajudicial surge como tentativa de minimizar o problema do excessivo número de lides a cargo do Poder Judiciário, ao mesmo tempo em que busca atingir a pacificação social, objetivo este dito por muitos como o escopo da ciência jurídica.  Destarte, através do compromisso de ajustamento de conduta, é negociado um modo de alinhar a conduta do causador de um dano aos preceitos legais que disciplinam determinada matéria, de maneira mais econômica, ágil e eficaz em relação ao processo judicial. Assim, observa-se que a participação do responsável pelo suposto ato ilícito na solução do problema, tende a conferir maior legitimidade ao compromisso de ajustamento de conduta, se comparado a uma decisão judicial prolatada por um magistrado (negociação da solução versus imposição da solução). Isso faz com que o compromisso de ajustamento de conduta seja erigido a um relevante meio de proteção dos direitos transindividuais[6].  A previsão legal para a lavratura do compromisso de ajustamento de conduta está insculpida no art 5º, parágrafo 6º da Lei Federal nº 7347/85 (LACP), a qual possui a seguinte redação: “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.” Há outros diplomas legais que preveem expressamente a possibilidade de se firmar o compromisso de ajustamento de conduta: Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8069/90 em seu art. 211); Lei de Repressão a Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9605/98 em seu art. 79-A); Lei da Defesa da Concorrência (Lei Federal nº 12.529/11 em seu art. 85), além da Resolução nº 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público (art. 14).  É cediço que os legitimados que atuam na defesa dos direitos transindividuais não são os titulares do direito material objeto do litígio. Desta maneira, tais legitimados não possuem a disponibilidade do conteúdo material da lide, afinal, não podem dispor daquilo que não lhes pertencem. Assim, à primeira vista, os legitimados não poderiam transigir sobre interesses dos quais não são titulares.  Ocorre que, ao se discorrer sobre o compromisso de ajustamento de conduta, estar-se-á a falar, como o próprio nome designa, sobre o ajuste, às exigências legais, do modo de agir do suposto causador do dano ao interesse transindividual. Desta maneira, a “transação” em relação ao agir do causador do dano não tem o condão de significar transação sobre o direito material pertencente à coletividade, seja esta coletividade determinada ou não. 2.1.Conceito e natureza jurídica                Inicialmente, é importante conceituar o compromisso de ajustamento de conduta. Para Marcelo Sciorilli[7], “por compromisso de ajustamento de conduta entende-se, então, o negócio jurídico celebrado perante um órgão público para a adequação de conduta de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, às exigências legais, mediante cominações necessárias à prevenção, cessação ou reparação do dano a interesses supraindividuais.” O compromisso de ajustamento de conduta pode ser celebrado no bojo de um processo judicial (necessitando, pois, de homologação do juiz) ou extraprocessualmente. Em relação à natureza jurídica, Marcelo Sciorilli[8] sintetiza bem a divergência: “Das mais variadas são as opiniões sobre a natureza jurídica desse compromisso: transação, transação atípica, acordo em sentido estrito, ato administrativo negocial, dentre outras. No Superior Tribunal de Justiça, tem prevalecido a orientação de que o compromisso de ajustamento de conduta constitui uma transação.” Na lição de Hugo Nigro Mazzilli[9] “é, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete; o órgão público que o toma, a nada se compromete, exceto, implicitamente, a não propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no título.”  Parece, portanto, que a posição majoritária entende que o compromisso de ajustamento de conduta possui natureza jurídica de transação. Todavia, este entendimento é criticado pois o vocábulo “transação” está intimamente ligado à ideia de direito patrimonial de caráter privado (art. 841 do Código Civil). Obviamente, há pontos em comum entre a transação do direito privado e o compromisso de ajustamento de conduta, tais como o consenso na sua celebração. Todavia, não se pode afirmar que os interesses transindividuais ostentam caráter privado e, ainda por cima, patrimonial.  Assim, independentemente da corrente doutrinária que se adote em relação à natureza jurídica do CAC, fato é que, se celebrado extraprocessualmente, terá eficácia jurídica de título executivo extrajudicial[10] e, quando celebrado no bojo de um processo com a homologação do juiz, terá eficácia jurídica de título executivo judicial. Esta diferenciação guarda relevância prática em relação às matérias de defesa que futuramente poderão ser alegadas por aquele que descumprir o CAC. Vale ressaltar o caráter de facultatividade na celebração do CAC, seja pelo órgão público legitimado a firmá-lo ou pelo causador do dano interessado em ajustar a sua conduta aos preceitos legais.  Por fim, frise-se que “o compromisso é formalizado, em geral, por meio de um termo que contém as obrigações assumidas, prazos para cumprimento e respectivas cominações. Esse termo, que constitui o instrumento de formalização da avença, é comumente conhecido por TAC” (Termo de Ajustamento de Conduta)[11]. Termo, portanto, é o instrumento que formaliza o compromisso de ajustamento de conduta. 2.2.Objeto De uma maneira geral, podem ser objeto do compromisso de ajustamento de conduta todo e qualquer direito transindividual que possa ser tutelado por meio de ação civil pública.  Em outras palavras, todos os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos que digam respeito, por exemplo, aos consumidores, ao meio ambiente, à saúde pública, às crianças e aos adolescentes, podem ser objeto de celebração do CAC. Todavia, há uma exceção: o artigo 17, parágrafo 1º da Lei Federal nº 8429/92 (Lei de Improbidade Administrativa-LIA) veda expressamente a transação, acordo ou a conciliação em matéria de improbidade administrativa. Ocorre que tal exceção atualmente é compreendida como a vedação à qualquer espécie de transação em relação às sanções previstas no art. 12 da LIA, como perda de bens acrescidos ilicitamente, suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, multa civil etc. Porém, tem-se admitido a transação para fins de reparação integral do dano causado ao erário. Assim, poderia haver uma maneira de se conciliar a forma como será reparado o dano causado ao património público, sem que se possa transigir em relação às penalidades a que o causador do dano estará sujeito[12]. O CAC pode veicular qualquer tipo de obrigação jurídica, como fazer, não fazer, pagar certa quantia, tudo visando à efetiva prevenção, cessação ou reparação do dano.  Convém novamente explicitar que não é admitida a disponibilidade do direito material objeto da controvérsia, afinal, os legitimados para a celebração do CAC não são titulares dos bens jurídicos em questão. Vale dizer: não há a possibilidade de renúncia ou limitação de responsabilidade no CAC. 2.3.Requisitos e procedimento  Pode-se afirmar que o compromisso de ajustamento de conduta pertence ao gênero negócio jurídico e, como tal, para a sua validade requer (i) agente capaz, (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável (iii) forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil).  Além disso, outros requisitos são necessários, muito bem sintetizados por Marcelo Sciorilli[13]: a – ) forma escrita, ou seja, deve ser tomado mediante termo subscrito pelo agente público competente e pelo infrator ou seu representante legal; b – ) consenso entre o órgão público legitimado e o infrator, isto é, a celebração do CAC é uma faculdade, e não uma obrigação; c – ) descrição precisa do dano e/ou da conduta que se pretende evitar, cessar ou reparar; d – ) obrigações líquidas e certas, com modos e prazos de cumprimento bem definidos (art. 586 do CPC); e – ) cominações para o caso de inadimplência das obrigações, ressalvado o disposto no art. 645 do CPC.  Acerca do procedimento, convém esclarecer que o CAC poderá ser firmado tanto no bojo de um processo judicial quanto extraprocessualmente.  Se o CAC foi celebrado processualmente, o referido ajuste de conduta será homologado por sentença, passando a ostentar a natureza de título executivo judicial. Caso o polo ativo processual seja titularizado pelo Ministério Público, não há necessidade de homologação pelo Conselho Superior do Parquet, uma vez que o controle de legalidade já foi realizado pelo Poder Judiciário.  Para os compromissos tomados extraprocessualmente pelo Ministério Público, a celebração do CAC, em regra, levará ao arquivamento do inquérito civil (exceto em caso de ajuste preliminar ou parcial). Ocorrendo a hipótese de arquivamento do inquérito civil, com ou sem o compromisso de ajustamento de conduta, haverá a necessidade de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público ou órgão equivalente (art. 9º, parágrafo 1º da Lei 7347/85)[14].  No caso dos compromissos firmados extraprocessualmente por outros legitimados, é de se entender que haverá a ausência de justa causa para o prosseguimento das investigações ou para a propositura de ação de conhecimento, mesmo porque, via de regra, já haverá um título executivo extrajudicial reconhecendo o autor do dano e as obrigações a que este se comprometeu.  Tanto para os compromissos de ajustamento de conduta firmados no bojo de um processo judicial quanto para aqueles firmados extraprocessualmente, haverá a fiscalização do cumprimento do ajuste por parte do órgão público tomador da avença ou de qualquer outro legitimado (a exemplo do Ministério Público) que poderá, ainda, promover a execução do título, se necessário. 2.4.Efeitos da celebração do compromisso de ajustamento de conduta  Primeiramente, revela-se importante esclarecer que o CAC já possui eficácia de título executivo extrajudicial a partir do momento em que é firmado o termo entre o órgão público legitimado e o interessado. A Lei nº 7347/85 não impôs nenhuma condição para o CAC passar a produzir efeitos, a exemplo de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público ou arquivamento do inquérito civil[15].  Ocorre que isto não impede que o próprio compromisso de ajustamento de conduta preveja algumas hipóteses onde seja fixada uma condição ou termo entre o legitimado e o causador do dano para que se iniciem os efeitos do ajuste de conduta. Desta maneira, via de regra, assim que firmado o CAC, já surgem alguns efeitos principais, tais como (a) obrigar o interessado ao seu cumprimento e (b) a formação do título executivo extrajudicial ou judicial. Outros efeitos secundários também podem ser mencionados, a exemplo da suspensão do procedimento administrativo no qual foi tomado o CAC ou o seu arquivamento.  A mera concessão de prazo para o cumprimento do ajuste não significa que o CAC ainda não possui eficácia, afinal, o decurso do prazo já é um dos efeitos do compromisso[16]. Obviamente, o CAC somente tem repercussão na esfera jurídica daquele interessado que o firmou, ou eventualmente de seus sucessores. Para alguns estudiosos, uma vez firmado o CAC, faltaria aos demais legitimados interesse de agir em propor ação coletiva para se discutir os mesmos fatos objetos da avença anterior, desde que haja suficiência das obrigações e deveres assumidos às exigências legais, afinal, o interesse transindividual já estaria protegido pela formação de um título executivo extrajudicial. É a posição, por exemplo, de Geisa de Assis Rodrigues.[17] Isto se deve ao fato de que os legitimados representam a mesma coletividade lesada em seu direito material, não havendo diferença no polo ativo em relação à presença de um ou outro legitimado. Para outra parcela da doutrina, o CAC é uma garantia mínima de proteção aos interesses transindividuais, de forma que não retira dos demais legitimados a faculdade de elaboração de outro CAC ou de propositura de ação coletiva que pretendam ampliar a proteção dos interesses lesados, fato que será melhor explicitado mais adiante[18].  Em relação aos indivíduos lesados, o CAC tem o efeito de beneficiá-los, possibilitando, inclusive, a execução individual do ajuste, desde que mediante prévia liquidação, onde o lesado comprove que sofreu um dano decorrente dos mesmos fatos dispostos no termo. 3.Panorama geral da legitimidade para a celebração do compromisso de ajustamento de conduta Pelo artigo 5º da Lei Federal nº 7347/85 (Lei de Ação Civil Pública – LACP), são legitimados para a propositura da ação civil pública o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federados, as autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista e as associações que, concomitantemente, estejam constituídas há pelo menos um ano e incluam entre as suas finalidades a proteção aos interesses indicados no art. 5º, V, b, do mencionado diploma legal.  Já o artigo 5º, parágrafo 6º da LACP, estabelece que podem firmar o CAC os “órgãos públicos” legitimados à propositura da ação civil pública.  Em princípio, já se denota que a expressão “órgãos públicos” não foi utilizada em seu sentido técnico, isto é, como centro de atribuições administrativas desprovido de personalidade jurídica[19].  Em verdade, causa a impressão de que a lei quis se referir às pessoas jurídicas de direito público como legitimadas para firmar o CAC, deixando expressamente de fora as associações, os sindicatos e as fundações privadas. Especificamente sobre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, a divergência acerca da legitimidade é acentuada, motivo pelo qual será melhor abordada em tópico específico.  Interessante questão se refere à eventual diferença de legitimidade entre o CAC firmado de maneira judicial ou extrajudicial.  A legitimidade disposta em lei (art. 5º, parágrafo 6º da Lei 7347/85) se refere ao CAC firmado extrajudicialmente, afinal, a lei estabelece que ele terá eficácia de título executivo extrajudicial. Porém, para alguns doutrinadores, quando o CAC é firmado judicialmente, a legitimidade é ampliada, abrangendo não apenas os “órgãos públicos”, mas também quaisquer outros legitimados para a propositura da ação civil pública, a exemplo das associações e fundações privadas. Isto porque, a participação obrigatória do Ministério Público na lide (fiscal da lei) bem como a fiscalização do juiz confeririam um maior controle sobre o CAC firmado judicialmente, o que possibilitaria a ampliação da legitimidade. É a posição, por exemplo, de Geisa de Assis Rodrigues[20]. Em verdade, essa transação realizada pelas associações e fundações privadas no bojo de um processo judicial coletivo não pode ser considerada, em sua natureza jurídica, como um compromisso de ajustamento de conduta, mas sim como uma transação com o objetivo de por fim a um processo judicial, como pode ocorrer em qualquer demanda entre particulares. Tal fato ocorre pela ausência de legitimidade de tais entidades privadas para celebrar compromisso de conduta, como definido pela Lei 7347/85, preservando, entretanto, legitimidade para celebrar outras avenças no bojo dos processos judiciais em que é parte, inclusive nas ações coletivas, desde que, evidentemente, sem dispor do direito material transindividual. Ademais, é de se ressaltar que a referida avença sofrerá a fiscalização tanto do Ministério Público[21] quando do Poder Judiciário, afinal, dependerá de homologação judicial para possuir validade jurídica. 4.Das empresas públicas e sociedades de economista mista  A atividade administrativa do Estado tanto pode ser prestada diretamente ou por meio de outras pessoas. Neste último caso, o Estado transfere o exercício da atividade administrativa para particulares ou cria pessoas jurídicas para tal mister, em um fenômeno chamado descentralização[22].  Desta maneira, na descentralização, o Estado atua indiretamente, por meio de outras pessoas, que possuem personalidade jurídica distinta daquele, ainda quando o Estado seja o criador dos novos entes. Repare que as empresas públicas e as sociedades de economia mista que prestam serviços públicos são exemplos de descentralização administrativa, isto é, são entes distintos do Estado, mas criados por este, para o exercício de parcela da atividade administrativa, consistente justamente na prestação de serviços públicos.  Frise-se que a grande vantagem da descentralização administrativa repousa na especialidade do exercício da atividade, cabendo ainda lembrar que não haverá relação de hierarquia entre o Estado e o outro ente (afinal, as personalidades jurídicas são distintas), mas apenas relação de controle finalístico da atividade.  Já as empresas públicas e as sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica são entidades criadas pelo Estado como forma de intervenção no domínio econômico por participação, onde o Estado assume o controle de parcela dos meios de produção em um determinado setor da atividade econômica, agindo por meio de competição com as empresas privadas que continuam a atuar neste setor[23].  A atividade econômica, via de regra, é conferida à iniciativa privada, sendo que o Estado somente pode exercê-la quando necessária à segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, definidos em lei (art. 173, CF). Estas são as noções introdutórias que justificam a existência das empresas públicas e das sociedades de economia mista, sejam para a prestação de serviços públicos (art. 175, CF) ou para a exploração de atividade econômica (art. 173, CF). Ambas fazem parte, portanto, da Administração Indireta do Estado.  Segundo afirma José dos Santos Carvalho Filho[24], “ embora sejam de categorias jurídicas diversas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista devem ser estudadas em conjunto, tantos são os pontos comuns que nelas aparecem. Como veremos, essas entidades são dotadas de personalidade jurídica de direito privado e delas se vale o Estado para possibilitar a execução de alguma atividade de seu interesse com maior flexibilidade, sem as travas do emperramento burocrático indissociáveis das pessoas de direito público.”  A ideia central de ambas é o Estado intervindo em uma atividade precipuamente afeta aos particulares, uma vez identificado algum interesse público que legitime sua atuação.  Empresas públicas são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Indireta do Estado, criadas mediante autorização legal, sob qualquer forma jurídica adequada a sua natureza, para que o Governo exerça atividades gerais de caráter econômico ou, em certas situações, execute a prestação de serviços públicos[25]. Como exemplos, podem ser citados a Caixa Econômica Federal-CEF e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Já sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Indireta do Estado, criadas por autorização legal, sob a forma de sociedades anônimas, cujo controle acionário pertença ao Poder Público, tendo por objetivo, como regra, a exploração de atividades gerais de caráter econômico e, em algumas ocasiões, a prestação de serviços públicos[26].  A Constituição Federal faz expressa referência às empresas públicas e às sociedades de economia mista em seu artigo 173, parágrafo 1º. Há outros dispositivos na Carta Magna que igualmente mencionam as referidas entidades: criação e extinção autorizadas por lei (art. 37, XIX e XX) e vedação à acumulação remunerada de cargos e funções (art. 37, XVII), dentre outras menções expressas e implícitas.  No campo infraconstitucional, convém citar o Decreto-Lei nº 200/67, o qual traz a base dos conceitos dessas entidades. Em relação à personalidade jurídica, ambas seguem o regime jurídico de direito privado, obviamente com certas derrogações do direito público. 4.1.Diferenças entre as empresas públicas e as sociedades de economia mista São três as principais diferenças entre empresas públicas e sociedades de economia mista: (i) forma jurídica, (ii) composição do capital social e (iii) foro processual. Em relação à forma jurídica, as empresas públicas podem seguir qualquer forma societária. Desta maneira, podem se constituir sob a forma de sociedade limitada, sociedade anônima, sociedade civil etc. Já as sociedades de economia mista devem se revestir, obrigatoriamente, sob a forma de sociedade anônima, sendo regida, basicamente, pela Lei das Sociedades Por Ações (Lei Federal nº 6404/76).  A composição do capital das empresas públicas deve ser inteiramente público. Vale dizer: não há a possibilidade de participação de capital privado em sua composição; todavia, pode haver a junção de capital público de diferentes entidades públicas para a sua formação. Já nas sociedades de economia mista, como o próprio nome designa, há junção entre o capital público e o privado para a sua formação, sendo que as ações são divididas entre a entidade governamental e a iniciativa privada. O que se exige, neste último caso, é que a maior parte das ações com direito a voto sejam titularizadas pela entidade pública.  As empresas públicas federais que forem autoras, rés, assistentes ou opoentes em processos judiciais, terão as suas causas julgadas pela Justiça Federal, exceto nas ações de falência, acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça do Trabalho e à Justiça Eleitoral (art. 109, I, CF). As empresas públicas estaduais, distritais e municipais terão suas causas julgadas perante a Justiça Estadual.  As sociedades de economia mista, por sua vez, não foram contempladas com o foro processual da Justiça Federal, sendo que terão as suas causas julgadas pela Justiça Estadual, sejam tais entidades pertencentes ao âmbito federal, estadual, distrital ou municipal. 4.2.O fenômeno da autarquização das empresas estatais prestadoras de serviços públicos  O objetivo do presente trabalho não é discutir à exaustão a polêmica envolvendo o regime jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista que prestam serviços públicos. Todavia, a compreensão do fenômeno da autarquização das empresas estatais auxiliará na conclusão da ideia central deste trabalho.  É cediço que tais empresas estatais se submetem ao regime jurídico de direito privado. Contudo, cada vez mais o STF, através de sua jurisprudência, vem aproximando o regime jurídico de direito privado das empresas estatais que prestam serviços públicos ao regime jurídico de direito público, como se autarquias fossem, em um fenômeno conhecido como “autarquização das empresas estatais” [27].  Através desse fenômeno, o STF está conferindo prerrogativas antes exclusivas do regime jurídico de direito público a entidades submetidas ao regime jurídico de direito privado, principalmente no tocante à imunidade tributária recíproca e à impenhorabilidade dos seus bens, ensejando a execução dos débitos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos pelo regime constitucional do precatório (art. 100, CF).  Com o fenômeno da autarquização das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, diminuem-se as diferenças entre os regimes jurídicos de direito público e o de direito privado, transformando tais entidades em verdadeiras autarquias, ao arrepio de sua lei instituidora, o que traz certas consequências jurídicas. Uma dessas consequências, como se verá adiante, será a possibilidade de tais entidades firmarem o CAC para a proteção de interesses transindividuais lesados.  Acerca do tema, não se poderia deixar de mencionar o entendimento do STF na Ação Cível Originária nº 765/RJ, na qual o Pretório Excelso entendeu que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos-ECT faz jus à imunidade tributária recíproca, sob o argumento de que, em sendo empresa pública prestadora de serviço público, seu regime jurídico se assemelharia ao da Fazenda Pública (direito público), e não ao das empresas públicas (direito privado). Com isso, na prática, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos passaram a gozar dos mesmos privilégios e sujeições da Fazenda Pública, sob o regime jurídico de direito público. Observe-se a ementa: “EMENTA Tributário. Imunidade recíproca. Art. 150, VI, "a", da Constituição Federal. Extensão. Empresa pública prestadora de serviço público. Precedentes da Suprema Corte. 1. Já assentou a Suprema Corte que a norma do art. 150, VI, "a", da Constituição Federal alcança as empresas públicas prestadoras de serviço público, como é o caso da autora, que não se confunde com as empresas públicas que exercem atividade econômica em sentido estrito. Com isso, impõe-se o reconhecimento da imunidade recíproca prevista na norma supracitada. 2. Ação cível originária julgada procedente”. (ACO 765, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 13/05/2009, DJe-167 DIVULG 03-09-2009 PUBLIC 04-09-2009 EMENT VOL-02372-01 PP-00001 LEXSTF v. 31, n. 369, 2009, p. 21-45)   Há outros julgados do STF que corroboram o aludido fenômeno jurídico: “Casa da Moeda do Brasil (CMB). Empresa governamental delegatária de serviços públicos. Emissão de papel moeda, cunhagem de moeda metálica, fabricação de fichas telefônicas e impressão de selos postais. Regime constitucional de monopólio (CF, art. 21, VII). Outorga de delegação à CMB, mediante lei, que não descaracteriza a estatalidade do serviço público, notadamente quando constitucionalmente monopolizado pela pessoa política (a União Federal, no caso) que é dele titular. A delegação da execução de serviço público, mediante outorga legal, não implica alteração do regime jurídico de direito público, inclusive o de direito tributário, que incide sobre referida atividade. Consequente extensão, a essa empresa pública, em matéria de impostos, da proteção constitucional fundada na garantia da imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, a). O alto significado político-jurídico dessa prerrogativa constitucional, que traduz uma das projeções concretizadoras do princípio da Federação. Imunidade tributária da Casa da Moeda do Brasil, em face do ISS, quanto às atividades executadas no desempenho do encargo, que, a ela outorgado mediante delegação, foi deferido, constitucionalmente, à União Federal. Doutrina (Regina Helena Costa, inter alios). Precedentes. Recurso extraordinário improvido. “ (RE 610517/RJ – Rel. Min. Celso de Mello, dje. 17/06/013)  Em que pese o fato de tais acórdãos não tratarem especificamente da legitimidade das empresas estatais para firmarem o CAC, eles demonstram que as empresas públicas e as sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos estão, cada vez mais, auferindo benefícios tributários em detrimento de outras pessoas jurídicas de direito privado[28]. Mediante esta constatação, através de um raciocínio indutivo, pode-se afirmar que cada vez mais referidas entidades estatais estão se aproximando do regime jurídico público ao qual se submetem as pessoas jurídicas de direito público interno.  Tal lição jurisprudencial é corroborada na doutrina por Roque Antônio Carrazza[29]. Observe-se: “Podemos, pois, dizer que, neste caso, as sociedades de economia mista e as empresas públicas, pelas atribuições delegadas do poder público que exercitam, são, tão-só quanto à forma, pessoas de direito privado. Quanto ao fundo são instrumentos do Estado, para a prestação de serviços públicos ou a prática de atos de polícia. Acabam fazendo as vezes das autarquias, embora – damo-nos pressa em proclamar – com elas não se confundem.”  Assim, exemplificativamente, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos gozam de imunidade tributária recíproca em relação ao patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou dela decorrentes; não podem figurar no polo passivo de ações falimentares (art. 2º, I da Lei 11.101/05); somente podem dispensar seus empregados públicos após motivação (STF, RE nº 589.998/PI), valendo lembrar que eles são contratados através de concurso público (art. 37, II, CF); os bens públicos afetados às suas atividades finalísticas são impenhoráveis e insuscetíveis de usucapião (art. 102, Código Civil), chegando-se ao ponto do Supremo Tribunal Federal afirmar expressamente que a execução promovida em face da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos-ECT (empresa pública) deve ser feita por meio de precatório[30]. Todas essas características induzem à constatação de que há uma semelhança muito grande entre as empresas estatais prestadoras de serviços públicos e as autarquias, principalmente no tocante à adoção crescente do regime jurídico de direito público por parte das primeiras.  Cabe frisar que a autarquização das empresas estatais prestadoras de serviços públicos não atinge as empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, sob pena de se criar indevidos privilégios a estas últimas.  Nesta ocasião, convém lembrar que o Estado somente pode explorar atividade econômica de forma excepcional, por motivos de (i) segurança nacional ou (ii) relevante interesse coletivo (art. 173, parágrafo 1º da CF). Isto porque, conforme art. 170 da Carta Magna, cabe precipuamente aos particulares o exercício da atividade econômica. E, nesta exploração da atividade econômica, devem imperar as regras de direito privado (art. 173, parágrafo 1º, inciso II da CF), ou melhor dizendo, as empresas públicas e as sociedades de econômica mista exploradoras de atividade econômica devem se sujeitar ao regime jurídico próprio das empresas privadas quanto a direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias.  A razão de ser dessa obrigação é um tanto quanto evidente: se as empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica pudessem gozar de privilégios não extensíveis aos particulares, haveria nítido desequilíbrio no setor econômico de sua atuação. Isso significa dizer, por exemplo, que tais entidades seguem o direito privado em relação às ações por responsabilidade civil, não possuem prerrogativas processuais, seus empregados gozam dos mesmos direitos trabalhistas dos demais empregados de outras sociedades empresárias privadas, regime tributário idêntico aos particulares etc. 4.3.As empresas públicas e as sociedades de economia mista como legitimadas para a celebração de compromisso de ajustamento de conduta Ao se cotejar o art. 5º da Lei de Ação Civil Pública com o art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, há de se perceber que, via de regra, são legitimadas para a celebração do compromisso de ajustamento de conduta as pessoas jurídicas de direito público interno e os órgãos públicos. Desta maneira, estariam fora dessa legitimidade as associações civis, os sindicatos e as fundações privadas. Todavia, a expressão “órgãos públicos” comporta controvérsia bem sintetizada por Geisa de Assis Rodrigues[31]: (…) “cumpre verificar quais entes a norma abrange na locução ‘órgãos públicos’. Esse vocábulo tem um conceito técnico específico de direito administrativo, significando um centro de atribuições administrativas, sem personalidade jurídica. No entanto, reputamos, na companhia de toda a doutrina, que a lei adotou um significado mais amplo de órgãos públicos para dar uma ênfase às atribuições públicas de quem poderá promover a tutela extrajudicial desses direitos.” Observa-se, pois, que a legitimidade das empresas públicas e das sociedades de economia mista para celebrarem compromisso de ajustamento de conduta não é tão clara assim. A lei não dispõe, expressamente, se tais entidades são ou não legitimadas para celebrarem o CAC. As empresas públicas e as sociedades de economia mista não são pessoas jurídicas de direito público interno nem órgãos da Administração Direta. Em verdade, ambas possuem personalidade jurídica de direito privado, ainda que instituídas ou mantidas pelo Estado. Como se viu, há duas espécies de empresas públicas e sociedades de economia mista: as exploradoras de atividade econômica e as prestadoras de serviços públicos. A Constituição Federal determina que as empresas públicas e as sociedades de economia mista, sejam exploradoras de atividade econômica ou prestadores de serviços públicos, adotem o regime jurídico de direito privado, a fim de evitar a concessão de qualquer privilégio às empresas estatais que não sejam extensíveis às demais empresas do setor privado. Destarte, para alguns doutrinadores, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, sejam exploradoras de atividade econômica, sejam prestadores de serviços públicos, não teriam legitimidade para celebrar CAC, justamente por adotarem o regime jurídico de direito privado, sendo que a LACP (Lei Federal nº 7347/85) somente confere legitimidade para tal mister às pessoas jurídicas de direito público interno e aos “órgãos públicos”. Vale dizer: tendo em vista que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não são pessoas jurídicas de direito público nem órgão público, simplesmente a LACP não as teria contemplado como legitimadas para o CAC. Esta é a posição de José dos Santos Carvalho Filho[32], in verbis: “Em consequência, têm permissão para tomar o compromisso de ajustamento de conduta a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e fundações de direito público, e o Ministério Público. Não a terão, todavia, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas de direito privado (porque, embora da Administração Pública, são dotadas de personalidade de direito privado), bem como as associações que preencham os requisitos do art. 5º, I e II. Nenhuma destas últimas pode qualificar-se como órgão público, por mais ampla que seja a interpretação do texto legal.”  Por sua vez, Edis Milaré[33] aduz que, quando a LACP confere legitimidade aos “órgãos públicos”, ela não utiliza o vocábulo “público” em sua expressão técnica, mas apenas como forma de se afastar da legitimidade para a celebração do CAC as associações, que não guardariam qualquer vínculo com o Poder Público. Já as entidades paraestatais, em que pese possuírem personalidade jurídica de direito privado, teriam, em última instância, uma finalidade pública. Todavia, para outros doutrinadores (a exemplo de Hugo Nigro Mazzilli[34]), há a necessidade de se proceder a uma cisão entre as empresas públicas e as sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos daquelas entidades exploradoras de atividade econômica. Em outras palavras, quando as empresas estatais prestam serviço público, elas estão administrando um interesse público, de modo que se revela aceitável que possam celebrar o CAC, justamente como forma de se preservar o interesse social, entendimento este corroborado pela crescente autarquização das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, conforme exposto acima. Todavia, quando os entes estatais exploram atividades econômicas, não se pode admitir que celebrem o CAC, uma vez que não podem ser dotados de “privilégios” não extensíveis às demais empresas do setor privado. Haveria nítida desigualdade, com ofensa ao Princípio da Isonomia (art. 5º, caput, CF), caso as empresas estatais pudessem firmar o CAC em detrimento das demais empresas privadas existentes naquele setor econômico. Haveria, assim, um “superpoder” conferido às empresas estatais, o que inegavelmente afrontaria a Constituição Federal (art. 5º, caput e art. 173 da CF), sob duas vertentes: (i) as empresas estatais teriam uma prerrogativa não outorgada às demais empresas privadas exploradoras de atividade econômica, o que lhes conferiria maior relevância no mercado econômico e (ii) as empresas estatais, que não deixam de ser pessoas jurídicas de direito privado, teriam o “poder estatal” de firmarem o CAC com os supostos causadores do dano, em espécie de verdadeira “delegação do poder de polícia”, já rechaçada pelo STF[35]. Vale lembrar que a interpretação teleológica da Carta Magna dá a entender que não haverá privilégios conferidos às empresas estatais que não sejam extensíveis aos demais particulares. Para Geisa de Assis Rodrigues, “ a natureza privada do órgão, ao nosso sentir, tanto de associações, como de sociedades de economia mista e de empresas públicas exploradoras do domínio público, organizações sociais, invalida a existência do ajuste como tal, podendo constituir um pacto de intenções ou um acordo de cavalheiros, mas não um ajustamento de conduta.”[36] Poder-se-ia argumentar que as empresas estatais, ainda que exploradoras de atividade econômica, também perseguem o interesse público, uma vez que só podem explorar o mercado econômico por razões de segurança nacional e relevante interesse coletivo (art. 173, parágrafo 1º da CF).  Todavia, constata-se que, quando as empresas estatais exploram atividade econômica, a perseguição do interesse público acaba sendo relegada a um plano secundário. Em linguagem mais simples, o objetivo lucrativo ganha inegável contorno de prioridade frente ao interesse público. Melhor dizendo: as razões de segurança nacional e relevante interesse coletivo (art. 173, parágrafo 1º da CF) serviram de base para justificar a criação da empresa estatal exploradora da atividade econômica, sendo que, a partir de sua criação, a empresa estatal irá, efetivamente, como o próprio nome designa, explorar a atividade econômica em determinado setor do mercado de consumo, como se particular fosse. Em contrapartida, o escopo principal das empresas estatais que prestam serviço público é justamente atender à finalidade pública. Nas palavras de Roque Antonio Carrazza[37], “a circunstância de serem revestidas da natureza de empresa pública ou de sociedade de economia mista não lhes retira a condição de pessoas administrativas, que agem em nome do Estado, para a consecução do bem comum.”  Além disto, um argumento de ordem prática também reforça a tese da impossibilidade das empresas estatais exploradoras de atividade econômica firmarem o CAC: como elas atuam em determinado seguimento econômico em igualdade de condições com os particulares e tendo em vista que objetivam precipuamente a obtenção de lucro, fica fácil perceber que, se tais empresas estatais pudessem celebrar o CAC, poderia haver certo favorecimento ao interessado no CAC (leia-se, ao causador do dano) a depender do interesse econômico que estivesse por trás do objeto da avença. Obviamente, os legitimados pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor para firmarem o CAC também podem, ao arrepio dos requisitos legais, favorecerem indevidamente determinados particulares quando da assinatura da avença. Todavia, há normas de direito público (principalmente de direito processual e administrativo) que buscam minimizar tal risco ou punir o responsável pelo ato ilícito caso este venha a ocorrer. Assim, o regime jurídico de direito público é extremamente mais rígido e menos condescendente com eventual ato ilícito praticado quando da celebração do CAC. Ademais, em regra, tais entes legitimados buscam precipuamente a satisfação do interesse público, isto é, não há objetivo lucrativo na atividade estatal que exercem. Eventual desvio desta finalidade pode e deve ser punido pelo regime jurídico de direito público. Destarte, a possibilidade das empresas públicas e das sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos firmarem CAC também é defendida por Geisa de Assis Rodrigues[38]. Observe-se: “Nesse ponto, alteramos nosso entendimento anterior que nunca admitia a legitimidade das sociedades de economia mista e das empresas públicas para tomarem o compromisso de ajustamento de conduta. Na verdade, também para efeito de celebração de ajustamento de conduta, vale a distinção entre as sociedades de economia mista e as empresas públicas prestadoras de serviços públicos e as exploradoras de atividade econômica. As prestadoras de serviços podem ter, entre suas atividades, a celebração de ajustamento de conduta, sendo que as exploradoras do domínio econômico não poderiam ter essa atribuição.”  Essa tese doutrinária que confere legitimidade para firmar o CAC às empresas estatais que prestam serviço público, ao mesmo tempo em que a negam para as empresa estatais que exploram atividade econômica parece ser corroborada pelos recentes entendimentos jurisprudenciais que (praticamente) elevam as empresas estatais prestadoras de serviço público ao regime jurídico de direito público. Vale dizer: há uma tendência cada vez maior em se conferir as mesmas prerrogativas de Poder Público às empresas estatais prestadoras de serviço público. A grosso modo, não seria de todo descabido afirmar que as empresas estatais prestadoras de serviços públicos estão cada vez mais se assemelhando às autarquias e fundações públicas (obviamente respeitadas certas especificidades)[39]. As recentes decisões do STF, já retratadas alhures, confirmam esta verificação de tendência. Como reforço de argumentação, consigne-se que até mesmo a Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal – CJF, possui um enunciado que, apesar de não tratar exatamente do tema em debate, contribui para a sua elucidação: “Enunciado nº 287 da IV Jornada de Direito Civil – art. 98. O critério de classificação de bens indicado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classificados como tal o bem pertencente a pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de serviços públicos.”  Assim, é considerado bem público aquele pertencente à pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de serviços públicos. Logo, não cabe a interpretação literal no sentido de reputar que as empresas estatais, cujo regime jurídico é de direito privado por força da Carta Magna, se submetem de maneira estanque a todos os postulados de direito privado, sem submissão às regras de direito público. Pelo contrário: é cada vez maior a incidência do regime de direito público às empresas estatais que prestam serviços públicos, de maneira que não seria nenhum absurdo sustentar que tais entidades sofrem uma ingerência ao menos equivalente entre o direito público e o direito privado[40]. 4.4.Pertinência do compromisso de ajustamento de conduta às finalidades das empresas estatais Considerando-se a ideia exposta em tópicos anteriores, acerca da semelhança cada vez maior entre as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos e as autarquias (sem que, obviamente, elas se confundam), não poderia ser diferente tal aproximação em relação ao tema pertinência temática para firmar o CAC.  Para Geisa de Assis Rodrigues, todos os legitimados devem guardar certa pertinência temática com o objeto do CAC que firmam. Eis o seu entendimento[41]: “Por outro lado, só há legitimidade material da União Federal, do Estado, do Distrito Federal, do Município, dos seus órgãos públicos legitimados, de suas autarquias e fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços para celebrar o ajuste, se houver algum tipo de pertinência temática entre o conteúdo do ajuste e as atribuições do ente público. Assim, por exemplo, o CADE só pode firmar ajustes na sua área de atuação, o IBAMA só pode celebrar ajuste em matéria ambiental, o Município só pode celebrar ajuste referente a um problema que se circunscreve a seu território e em que ele tenha interesse peculiar, v.g., o ajustamento de conduta de funcionamento de um matadouro e assim por diante.” Todavia, há quem entenda de forma diversa. É a posição de Nelson e Rosa Nery, citados por Hugo Nigro Mazzilli, que exemplificam: “O Estado federado do Sul, por exemplo, pode ajuizar ação civil pública na defesa do meio ambiente do Estado do Amazonas, porque o interesse processual na ação civil pública é aferível em razão da qualidade do direito tutelado: difuso, coletivo ou individual homogêneo. Quando o Estado federado move ação civil pública, não está ali na tutela de direito seu, individual, mas de direito que transcende a individualidade.”[42]  Com o devido respeito à opinião dos processualistas Nelson e Rosa Nery, a posição doutrinária majoritária é favorável à exigência de pertinência temática dos legitimados para firmarem o CAC em relação ao objeto deste. Repare que os demais legitimados, quando ajuízam uma ação civil pública ou firmam um compromisso de ajustamento de conduta também não estão na defesa de interesse próprio, ou melhor dizendo, somente interesse próprio. Eles estão atuando na defesa de um interesse coletivo lato sensu. Todavia, seu interesse de agir advém de algum liame que os unem ao objeto tratado no CAC. Vale dizer: o legitimado não pode atuar em toda e qualquer matéria de direito transindividual, pois fatalmente lhe careceria interesse de agir em defender interesse que em nada se relaciona à sua finalidade pública. Seria de se estranhar admitir que o legitimado pudesse despender recursos humanos e financeiros na defesa de interesses que não lhe digam respeito, quer direta ou indiretamente. O direito coletivo não permaneceria sem proteção, justamente pela existência de outros legitimados concorrentes que teriam certa pertinência temática com o objeto da avença.  Desta forma, também seria exigível às empresas públicas e às sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos a pertinência temática para firmarem o CAC, isto é, algum liame que as unam ao objeto da avença. Hugo Nigro Mazzilli exemplifica a questão: “tomemos, por exemplo, uma empresa pública. Não nos parece possa despender recursos públicos para a defesa de interesses transindividuais que não guardem relação alguma com o seu objeto. Assim, uma empresa de transportes públicos não se pode pôr a defender assinantes de linhas telefônicas…”[43] É de se verificar que, também neste ponto (pertinência do objeto do CAC), as empresas estatais se assemelham às autarquias. Conclusão                            A Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7347/85) não foi muito clara ao delimitar, em seu artigo 5º, parágrafo 6º, que “os órgãos públicos legitimados [à ação civil pública] poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Em primeiro lugar, porque a expressão “órgãos públicos” comporta um sentido técnico no Direito Administrativo, o qual não se confunde com o sentido pretendido pelo legislador da Lei 7347/85, que, aparentemente, pretendeu dizer “pessoas jurídicas de direito público”. Em segundo lugar, ainda que o legislador tivesse utilizado a expressão “pessoas jurídicas de direito público” para se referir aos legitimados para firmarem CAC, mesmo assim haveria controvérsia sobre a inclusão ou não das empresas públicas e das sociedades de economia mista nesta legitimidade.  Isto porque, apesar de serem formalmente “pessoas jurídicas de direito privado”, por força do artigo 173, inciso II da Constituição Federal, tais entidades estatais se submetem ao regime jurídico de direito privado, com algumas derrogações do direito público, ou seja, não adotam um regime privado de forma absoluta, mas sim um regime jurídico híbrido.  Ademais, em se tratando de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestem serviços públicos, é acentuada a incidência do regime jurídico de direito público sobre as suas atividades. Como visto, o Supremo Tribunal Federal vem proferindo constantes decisões no sentido de conferir cada vez mais às empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos prerrogativas antes deferidas apenas às pessoas jurídicas de direito público, a exemplo da imunidade tributária recíproca (art. 150, VI, a, da CF). Tais fatos induzem ao raciocínio de que as empresas públicas e as sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos possam ser consideradas, ao menos no mundo fenomênico, como verdadeiras pessoas jurídicas de direito público, ostentando a legitimidade para celebrarem compromisso de ajustamento de conduta na sua área de atuação.  Trata-se, em verdade, de uma interpretação extensiva[44] do artigo 5º, parágrafo 6º da Lei nº 7347/85, no tocante à expressão “órgãos públicos”, ou seja, considera-se que a lei disse menos que a vontade do legislador. Presume-se que era vontade do legislador ter incluído as empresas públicas e as sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos como legitimadas para a celebração de compromisso de ajustamento de conduta. As empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica não ostentam tal legitimidade, uma vez que seu objetivo primordial é o lucro, o que poderia gerar entraves ou odiosos privilégios se lhes fossem conferida a mesma benesse.  Este entendimento, inclusive, vai ao encontro da necessidade de ampliação dos legitimados para a tutela dos interesses transindividuais, isto é, deve haver, sempre que possível, a ampliação dos legitimados para o ingresso de ações e para a celebração do CAC, o que, obviamente, confere maior proteção aos direitos coletivos lato sensu, observando-se a indispensável pertinência temática. Desta maneira, o Princípio do Amplo Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF) também passa a ser maximizado, e não amesquinhado.  Por todas essas razões, é de se entender que as empresas públicas e as sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos possuem legitimidade para celebrarem CAC em suas respectivas áreas de atuação, respeitando-se a finalidade disposta na lei de sua criação
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As sanções administrativas disciplinares de privação de liberdade no processo administrativo disciplinar militar do estado de pernambuco, em face dos preceitos dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana
Este trabalho analisa o sistema de sanções administrativas em vigor na Polícia Militar do Estado de Pernambuco por força da Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado, em especial no que se refere às penas de restrição de liberdade (detenções e prisões), seus fundamentos, sua aplicabilidade e eficiência, bem como a adequação aos preceitos universais das doutrinas de Direitos Humanos e aos princípios da dignidade da pessoa humana. Parte-se do pressuposto de que algo há de se fazer em busca da atualização de um regime que historicamente não evoluiu tanto para os militares quanto o fez para o cidadão civil. Não bastasse ter estancado no contexto temporal, a usabilidade dos preceitos punitivos do citado Código ainda enfrenta barreiras no cenário estrutural em que a Corporação se encontra, com o redimensionamento das estruturas físicas dos quartéis, que abandonaram o aspecto de grandes fortalezas para se tornarem peças arquitetônicas mais enxutas e com uma conotação que favoreça uma aproximação maior com a sociedade, mas que comprometem as condições de acomodar e alimentar dignamente aqueles em cumprimento de sanções administrativas. O escopo da proposta deste trabalho é delineado tomando-se por base um referencial teórico, através do qual se conclui por oferecer proposta de modificação no atual regime disciplinar em vigor na Corporação, buscando restaurar os fins a que as punições se destinam (reeducar o transgressor e prevenir novas transgressões) sem distanciá-las dos fundamentos dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, como reforço da hierarquia e da disciplina, pilares que sustentam a quase bissecular Polícia Militar do Estado de Pernambuco.[1]
Direito Administrativo
1. Introdução  Desde as primeiras elucubrações acerca do direito natural ou mesmo do direito divino, o homem buscou retribuir os atos que ofendessem as regras de conduta em comunidade com sanções, cuja finalidade inicial era pautada tanto na vingança quanto no exemplo que causaria o temor e coibiria novas transgressões.  Não se pode negar que a convivência social demanda o estabelecimento de limites, que quando não são respeitados atentam contra os direitos e liberdades alheias, e a ausência de tais inibidores levaria a um sistema caótico e descontrolado, que Hobbes (O Leviatã, 1651) muito bem definiu em sua obra, através do conceito Bellum omnia omnes, ou seja, num mundo sem regras haveria uma constante guerra de todos contra todos, cada um com a finalidade de se sobrepor aos demais, e onde o mais forte prevaleceria.  As teorias de Tomas Hobbes fundamentaram a estipulação, através de Rousseau, do “Contrato Social” (O contrato social, 1762), pelo qual os homens abriam mão de parte dos seus direitos em favor de um Governo que lhes garantisse a convivência pacífica entre seus pares.  O Estado passava então a estabelecer e fiscalizar limites ao livre arbítrio e a penalizar as atitudes que extrapolavam tais fronteiras, em regra, seguindo a política conhecida como: “olho por olho, dente por dente”, como forma de equilibrar a ação antissocial praticada com a sanção aplicada, contudo permitindo graves distorções em sua utilização, posto que o equilíbrio se pautava no valor econômico de cada indivíduo e não na igualdade do valor social. Exemplo claro de tais distorções era quando um rico, apenado com açoites ou com a morte, podia oferecer um escravo para sofrer os martírios em seu lugar. Com o passar dos tempos, as penas foram evoluindo e se humanizando. O processo mais remoto disso é visto na obra de Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas, 1764), que levanta a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva, o que levaria à aplicação de punições de consequências muito superiores e mais terríveis do que os males produzidos pelos delitos. Mesmo com as bases filosóficas lançadas, os efeitos práticos da humanização das penas proposto por Beccaria demoraram a verificar-se, exemplo disso foi a sentença a que foi submetido Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 1792 (Casos criminais célebres, 2003), condenado a morrer na forca, a chamada “morte natural para sempre”, restando bem visível o sentimento de vingança inscrito na medida, bem como a imposição do exemplo pelo horror, sendo notório que a sanção ultrapassava a pessoa do réu, ao atingir toda a sua descendência. A evolução dos Direitos Humanos e dos primados da dignidade da pessoa humana levou à busca de penas mais humanizadas e que, mesmo não infligindo tamanhos terrores e martírios, ainda fossem capazes de alcançar seus objetivos de: reforçar a existência de normas e limites; coibir, através do exemplo, o cometimento de novas transgressões; e reeducar o transgressor, reinserindo-o no convívio social.  A vida castrense, por seu turno, também estabelece regras próprias de conduta e convivência, em especial diante dos primados da hierarquia e da disciplina, que exigem, daqueles que cerram as fileiras das forças policiais, conduta diferenciada dos demais, posto que são o baluarte da defesa dos seus concidadãos e exemplos a serem seguidos, não se admitindo dos militares, agentes delegados do poder de polícia do Estado, o descumprimento das normas cuja observância possuam o dever institucional de fiscalizar. Nesse diapasão, e embora o fundamento das sanções administrativo-disciplinares se aplique aos funcionários públicos como um todo, o foco do presente trabalho foram os Policiais Militares do Estado de Pernambuco, em face do que prevê a Lei 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco. No contexto atual, dois prismas se abriram para a análise das penas administrativas de restrição de liberdade aplicadas aos militares do Estado de Pernambuco: o logístico e o dos Direitos Humanos.  Diante do viés logístico, buscou-se analisar se a redução das estruturas físicas das Unidades Policiais e a modificação na dinâmica de fornecimento de alimentação interferem no adequado alojamento dos apenados, o que poderia fazer com que a restrição de liberdade perdesse a sua aplicabilidade fática. Pela ótica dos Direitos Humanos, vislumbrou-se o aspecto da adequação da restrição de liberdade aos princípios dos direitos fundamentais, pois ainda que haja a previsão constitucional para tal, a evolução de que se falou previamente, e que restringiu ao cidadão comum a possibilidade de ser preso exclusivamente aos casos de flagrante delito ou de cumprimento de ordem judicial, não parece ter lançado seus auspícios sobre os militares, que continuaram podendo ser submetidos a prisões e detenções por decisões meramente administrativas.  Com esse fim, é importante entender porque, no cenário atual, as sanções disciplinares não atingem seus objetivos de reeducar e de prevenir o cometimento de novas transgressões, e a necessidade de propor alternativa ao sistema em vigor, aliando os princípios da hierarquia e da disciplina com os primados dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, ou se o regime instituído já atinge a tais propósitos.  Estabelecido o cenário, mostrou-se necessária a análise da eficiência e eficácia do atual sistema de sanções disciplinares, com destaque para as punições restritivas de liberdade, bem como a sua adequação aos preceitos insculpidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Dignidade da Pessoa Humana, e se considerou cabível e necessária a proposição de alternativa ao regime em vigor, tendo sido este o propósito a que se destinou o corrente estudo. 2. As sanções disciplinares na administração pública Como já falado anteriormente, o Estado necessitou criar um conjunto de regras de conduta a serem seguidas pelos indivíduos em sociedade, como forma de estabelecer e respeitar os limites de cada um. Contudo o descumprimento de tais preceitos fez surgir o jus puniendi, o direito que o Estado tem de punir aqueles que não seguem os princípios da coexistência em comunidade. O jus puniendi é exercido primordialmente pelo direito penal e suas sanções. O mesmo Estado, enquanto entidade responsável pelo bem estar, pela convivência harmônica e pela satisfação das necessidades de seus concidadãos, lança mão de diversas pessoas e institutos para tornar isso possível. A essa coletânea de pessoas físicas e jurídicas, órgãos, serviços e agentes, dá-se o nome de Administração Pública.   A Administração Pública, por seu turno, necessita estabelecer as regras para o seu próprio e correto funcionamento, de modo a alcançar os objetivos a que o Governo se destina, de forma eficiente e eficaz.  Tais normatizações aplicam-se não apenas ao Poder Público enquanto ente, mas também, e em caráter especial, a todos os seus agentes, posto que a atuação de cada um deles é o que faz funcionar a máquina estatal e, por conseguinte, a falha na atuação de um agente público nada mais é do que a falha na atuação da própria Administração. Surge então a necessidade de estender à Administração Pública o jus puniendi que o Estado detém, como bem definiu Freitas: (…) “como ramo do Direito Administrativo que tende regular as relações disciplinares entre o Estado-Administração e seu corpo funcional, ou seja, tem em vista a normatização dos deveres dos servidores, suas proibições, a apuração das faltas cometidas pelos mesmos, bem como o bom emprego da respectiva sanção disciplinar, objetivando, desse modo, permitir o bom funcionamento da máquina administrativa em acordo com os preceitos legais que norteiam a Administração Pública.” (FREITAS, 1999, p. 120)  É inegável o reconhecimento de um liame entre as sanções penais e as sanções disciplinares, em especial no que se refere às funções da pena que são, de acordo com a melhor doutrina, duas: retributiva e preventiva (geral e específica). A pena é retributiva por ser uma espécie de devolução ao transgressor do mal praticado. Nasceu da chamada vingança estatal, baseada nos fundamentos romanos da lex talioni (Lei de Talião), que buscava um equilíbrio de valores entre o crime e a pena, sendo bem lembrada pelo bordão: “olho por olho, dente por dente”. Talioni vem de “tal” ou “idêntico” e deu origem ao termo retaliação. Já o caráter educativo-preventivo se dá quando a pena é capaz de incutir na consciência do indivíduo que ele não deve transgredir as normas, seja pelo receio de ser punido novamente (específica), ou pelo temor de que a sanção aplicada a seu próximo seja cabível a si, em caso de agir em desconformidade com as regras (geral). Sendo patente e clara a necessidade de regular a relação entre o Estado-Administração e o agente público, surgem as normas obrigacionais e proibitivas a que os servidores públicos devem se submeter em face do exercício da função, pois como já mencionado acima, suas ações são a personificação das ações do Estado.  Em suma, para que o Estado alcance os fins a que se destina, há de exigir dos seus servidores, nos mesmos moldes do que ocorre nas relações de trabalho tuteladas pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), a forma como deseja que o serviço venha a ser executado, o que fazer e o que não fazer; e o descumprimento de tais preceitos será retribuído com a aplicação de uma sanção que busque reeducar o transgressor e prevenir, através do exemplo, o cometimento de novas infrações. E aí se estará diante do Direito Administrativo Disciplinar, que é o conjunto de normas e princípios de que se cerca o Poder Público para reger o ideal funcionamento da Administração Pública. 3. A hierarquia e a disciplina militares  No mesmo esteio em que se fundamenta o Direito Administrativo Disciplinar, encontram-se as bases do Direito Administrativo Disciplinar Militar, que é uma especialidade daquele ramo do direito público aplicado a uma categoria específica de servidores. Antes de trazer à baila outras fundamentações, impende destacar que os servidores públicos militares, ou militares federais/estaduais, em mais recente designação da categoria, diferem dos servidores civis em alguns aspectos, sendo o mais importante deles a sua missão institucional com graus de abrangência e de comprometimento mais rígidos. Se por um lado os servidores civis obrigam-se a empenhar-se pela melhor execução de suas atribuições em prol de uma coletividade que busca ou necessita dos seus serviços, os militares também o fazem, contudo a missão é temperada com o “risco da própria vida”. Colocar a própria vida em risco pelo bem de outrem é, por si só, um grande diferencial na esfera atributiva das duas classes de servidores mencionadas e a razão maior para a estipulação de regimes administrativos disciplinares diferenciados. Trazendo à baila as palavras de Sérgio Coutinho, em que pese referindo-se ao Exército, mas com plena aplicabilidade à categoria dos servidores militares em geral, tem-se que: “O Exército, como componente das Forças Armadas do país, é instrumento político do Estado e, ao mesmo tempo, é instituição nacional. É um aparelho voltado para a guerra, organizado, equipado e treinado para aplicação da violência. A sua natureza e destinação bélicas impõem que esteja submetido a valores éticos que lhe confiram finalidades morais, que tornem legítimo o uso da violência e que deem limites toleráveis à sua ação, sem o que, quando empregado, poderá se transformar em um instrumento letal indiscriminado, inescrupuloso e fora de controle da Nação a que serve.” (COUTINHO, 1997, p. 63)  Mutatis mutandis, os militares estaduais também são indivíduos com treinamentos e destinações que, se não estritamente beligerantes, mas gozando da prerrogativa de uso da força e do poder coercitivo do Estado no exercício de suas funções e de quem se exige, por conseguinte, a preservação e o culto de valores éticos, morais e profissionais que vão além do simples comprometimento em dar o melhor de si no cumprimento do dever, justificando sua submissão a um sistema de normatizações sui generis de direito e obrigações. Outro aspecto que não pode ser esquecido é o de que, como instrumento do poder fiscalizador e coercitivo do Estado, indispensável é que se exija desses agentes, conduta ilibada e exemplar, definidas através dos princípios da deontologia policial, e que dão legitimidade às ações, vez que o caráter legal é estabelecido na norma. A adequação das condutas dos agentes públicos em geral é a busca pelo que o ex-Ministro da Justiça Márcio Tomaz Bastos delineou ao definir, outrora, que “as instituições têm que ser virtuosas”. No mesmo caminho, e especificamente focada no regime policial militar, pode-se citar a manifestação do Desembargador Josué Antônio Fonseca de Sena, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), no Mandado de Segurança nº 0211507-5: “O cargo de policial militar certamente exige do investido uma retidão de conduta, bem como o comportamento exemplar intocável diante da dignidade que se espera de tal profissão”. (TJPE, 2010)  Seguindo a linha desse raciocínio, as instituições militares dependem de uma estrutura organizacional que possibilite o controle dos indivíduos que as compõem, para sua adequação aos preceitos mais rígidos que o militarismo exige. Surgem então os dois princípios básicos para que as engrenagens de tal sistema funcionem: a hierarquia e a disciplina, que para os Policiais Militares do Estado de Pernambuco são definidas através da Lei 6.783 de 17 outubro 1974 – Estatuto dos Policiais Militares de Pernambuco.  O referido diploma estabelece que a hierarquia é a organização da autoridade em diversos níveis dentro das instituições militares, enquanto a disciplina é a obrigação de obedecer tanto às ordens emanadas pelas autoridades hierárquicas quanto às normas a que estejam submetidos, e a abrangência de tais princípios alcançam inclusive os militares estaduais aposentados ou reformados. 3.1. As sanções disciplinares militares Entendido que o regime castrense é hierarquizado e disciplinado, e que dos militares (estaduais, in casu) é demandada uma observância e adequação maior a preceitos éticos, morais, profissionais e normativos, não se poderia olvidar que isso suscitasse a criação de um sistema disciplinar diferenciado e capaz de alcançar a subsunção dos militares ao dever de obediência às ordens e de observância aos regulamentos e normas que regem inclusive situações da sua vida privada e que digam respeito à eficiência da instituição.  Por tal ciclo de exigências e limitações, as instituições militares são definidas na doutrina como “Instituições Totais”, denominação teorizada por Erving Goffman (Manicômios, Prisões e Conventos, 1956) e adaptada ao universo militar por Frank Mc Cann: “característica central das ‘instituições totais’ é a ruptura das barreiras que separam as três esferas da vida – sono, lazer e trabalho – por meio do controle de onde, quando e como elas ocorrem”. (Mc CANN, 2009, p. 16-17).  Em decorrência de tais fundamentos, e mesmo levando em conta que um dos mais fortes elos entre os militares é a identificação com a causa que defendem, deduz-se que o fiel cumprimento dos preceitos a que se voluntariaram levaria à chamada disciplina consciente – cumprimento espontâneo de valores e deveres institucionais – mas em face da falibilidade humana, vê-se justificada a existência não apenas de um sistema administrativo disciplinar militar, como também que este seja imbuído de preceitos e regramentos mais rígidos, dadas as características da vida castrense abordadas preliminarmente, com normatização de sanções próprias, dentre as quais estão inseridas as penas administrativas de restrição de liberdade: detenção disciplinar e prisão disciplinar. 3.2. A evolução punitiva no tempo e a positivação das detenções e prisões disciplinares As instituições militares sempre trouxeram consigo sanções disciplinares de restrição de liberdade como parte do seu cabedal punitivo, que ainda continham: castigos físicos, trabalhos forçados e penas capitais em casos mais graves como o de deserção. As origens históricas de tais penalidades, segundo a doutrina, remontam aos exércitos romanos, que aplicavam cárceres, trabalhos forçados, castigos físicos e até a morte como forma de manter o controle de seus soldados, que nem sempre atendiam à sua vocação ou eram oriundos de escolas militares, pois havia aqueles arregimentados de ocasião, quando se fazia necessária a ampliação das tropas em face do período de conquistas e expansão dos impérios. Os mesmos preceitos se seguiram através das Ordenações Portuguesas, de onde se originou o militarismo brasileiro, mas não chegavam a fugir às regras que se aplicavam ao cidadão comum naquele período temporal, visto que se viviam os momentos anteriores ao delineamento dos direitos humanos. Os primeiros fundamentos para o processo de evolução histórica das penas foram lançados pelo filósofo Cesare Beccaria, na obra Dos delitos e das penas (1764), reforçados por Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir (1975), ambos tratando basicamente da necessidade de adequação do quantum punitivo ao quantum incidente. Embora Beccaria tivesse dado o pontapé inicial para a humanização das penas, a própria evolução da sociedade tem inspirado a continuidade de estudos buscando a adequação das sanções ao mínimo indispensável para a preservação da dignidade humana sem, contudo, destituí-las de suas finalidades retributivas, reeducativas e preventivas, mas evitando que se repetissem no tempo sentenças como a que se segue: “JUSTIÇA que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde. MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi. Sebão. Xer. de Vaslos. Couto.” (DOTTI, Rene Ariel. 2003, p. 27)  A simples leitura do texto deixa claro o sentimento de vingança pública incutido na pena aplicada e a sua exacerbada dosimetria que extrapola a esfera individual do réu, atingindo a totalidade de seus bens e mesmo a sua descendência. E, em contraponto à brutalidade do sistema, ganhou corpo a defesa de um processo evolutivo e humanizador, que veio a ser responsável por diversas modificações no sistema punitivo brasileiro, com a extinção dos castigos corporais, a extrema limitação da aplicabilidade da pena de morte, a proibição dos trabalhos forçados e a estrita previsão da possibilidade de prisões aos casos de flagrante delito e de ordens judiciais devidamente fundamentadas. Ocorre que, embora o cidadão comum tenha alcançado todos esses direitos, os militares permaneceram sendo tutelados por um regime específico e que lhes preteriu de certas faculdades, ditas universais, em face da manutenção, em sede constitucional, das prisões disciplinares, na forma do seu Art. 5º, inciso LXI: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (Constituição Federal, 1988).  Por conta disso, permaneceram válidas e em pleno uso as previsões normativas disciplinares que estabelecem sanções restritivas de liberdade aos militares, diante das transgressões que, eventualmente, verifiquem-se na conduta subsumida.  Até alguns anos atrás, as corporações policiais militares dos estados membros e do Distrito Federal eram todas tuteladas, na esfera administrativo-disciplinar, pelo Regulamento Disciplinar do Exército, fruto da origem dessas instituições policiais e do fato de que a Constituição Federal as define como forças reservas e auxiliares do Exército Brasileiro, na forma do artigo 144, Parágrafo 6º daquela Carta Magna: “§6º – As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.” (Constituição Federal, 1988).  Através de pesquisa normativa, verificou-se que 23 das 27 unidades federativas são regidas por regulamentos/códigos disciplinares ou de conduta próprios, permanecendo os quatro entes restantes (Maranhão, Paraná, Sergipe e o Distrito Federal) sob a égide do Regulamento Disciplinar do Exército, e sujeitos às transgressões e punições ali tipificadas. A respeito disso, cabe aqui destacar posicionamento do General do Exército Brasileiro Adriano Pereira Júnior, em entrevista concedida a uma emissora de televisão: “Não existe carreira de soldado do Exército, este é treinado para a guerra que é um serviço excepcional. E o soldado da PM tem uma vida inteira para desempenhar essa função, assim ele não pode ser pautado pelo REGULAMENTO DO EXÉRCITO, que é feito para períodos de exceção. As funções são de natureza diferenciada. Usar o regulamento do Exército para a Polícia Militar é infringir direitos trabalhistas duramente conquistados ao longo de décadas, precisamos rever isso com o máxima urgência.” (JÚNIOR, Adriano P. 30 julho 2012. Rio de Janeiro: Entrevista ao programa Canal Livre, Band) No caso específico do público alvo do presente trabalho, policiais militares do estado de Pernambuco, há a submissão aos ditames contidos na Lei 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco (CDME), que prevê em seu Art. 28, o rol das seguintes punições: advertência; repreensão; detenção; prisão; licenciamento a bem da disciplina; e exclusão a bem da disciplina. Afora as punições elencadas, há ainda a previsão de medidas administrativas que englobam: cancelamento de matricula em curso ou estágio; afastamento do cargo, função, encargo ou comissão; movimentação da Unidade; suspensão da folga, para prestação compulsória de serviço administrativo ou operacional à Unidade; e suspensão de pagamento, no saldo dos dias faltados, injustificadamente, e interrupção compatível à contagem do tempo de serviço, conforme disposto em legislação própria. No mesmo dispositivo ainda é mencionada a possibilidade de aplicação de advertência como medida alternativa à aplicação de penalidade disciplinar. 4. As punições militares em face dos direitos humanos A evolução dos Direitos Humanos trouxe consigo outro marco no processo de modernização das penas, pois em sua premente busca pelo equilíbrio entre a infração cometida e a sanção aplicada, levava ainda em conta a valorização da vida, e da integridade física e mental mesmo a daqueles que cometeram crimes, focando a primazia da dignidade da pessoa humana.  Além da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos que estabelece como regra o status libertatis e o tratamento digno e não degradante a todos os homens, outro documento foi importante ao positivar as garantias para as pessoas submetidas às medidas restritivas de liberdade: o Tratado de São José da Costa Rica (1969) incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, que só corroborava com os fundamentos até então prescritos. Dessa forma, ainda que os diplomas em comento não tenham feito quaisquer ressalvas em relação aos militares em geral, seja incluindo-os ou excluindo-os do rol de beneficiários das proteções universais ante o instituto da prisão, o assunto suscitava debates na doutrina e na própria jurisprudência, sendo inegável a constatação de que a mudança da mentalidade social encaminhava o direito para a modernização do regime punitivo disciplinar aplicável aos membros da caserna, de modo a adequá-lo aos preceitos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e suas normas derivadas, como declarou Jarbas Passarinho: “Novos critérios de valores morais, revelações científicas revolucionárias, particularmente no domínio psíquico, outros conceitos de liberdade e de direitos humanos, mudaram de modo radical a feição dos exércitos, pondo em relevo como nunca a responsabilidade dos chefes, no tocante a obterem integral cooperação de seus soldados.” (PASSARINHO, Jarbas. 1987, p. 20)  Mais uma vez, mutatis mutandis, tem-se a perfeita adequação dos ensinamentos, focados originalmente nas Forças Armadas, aos militares estaduais.  De maneira concreta, o direcionamento de ações nesse sentido é visível nos termos da Portaria Interministerial nº 2, da Secretaria de Direitos Humanos da República em conjunto com o Ministério da Justiça, de 15 de dezembro de 2010, que estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. O referido documento, dentre outras importantes diretrizes, prescreve as seguintes: “1) Adequar as leis e regulamentos disciplinares que versam sobre direitos e deveres dos profissionais de segurança pública à Constituição Federal de 1988;[…] 32) Erradicar todas as formas de punição envolvendo maus tratos, tratamento cruel, desumano ou degradante contra os profissionais de segurança pública, tanto no cotidiano funcional como em atividades de formação e treinamento.” (SEDH/MJ, 2010)  O Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), por seu turno, e acompanhando as linhas estabelecidas pela Portaria Interministerial, publicou em abril de 2012, a Recomendação 012 – CONASP/MJ, propondo aos Governadores dos Estados a extinção das penas disciplinares de privação de liberdade, sugerindo inclusive uma nova redação para o Art. 18 do Decreto Lei nº 667, de 02 de julho de 1969 – Lei básica das polícias e bombeiros militares, a fim de consignar expressamente a vedação. Para os membros do CONASP/MJ, o texto ficaria assim (em negrito as principais alterações ao texto original): “Art.18 – As polícias e Corpos de Bombeiros Militares serão regidos por Regulamento Disciplinar estabelecidos em Lei Estadual específica, respeitadas as condições especiais de cada corporação, sendo vedada pena restritiva de liberdade para as punições disciplinares, e assegurada o exercício da ampla defesa e o direito ao uso do contraditório.” (CONASP/MJ, 2012, grifo nosso) Não menos interessante é o posicionamento de Ythalo Frota Loureiro, Promotor de Justiça do Estado do Ceará, em artigo publicado na revista Ministério Público & Sociedade (Ano 5, nº12), ao tratar sobre a edição do novo Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará, que extinguia as penas administrativas de cerceamento de liberdade: “O Novo Código Disciplinar, em boa hora, extinguiu as melindrosas cadeias disciplinares (prisão disciplinar), que, encarcerando os policiais militares em xadrez, na verdade, humilhava-os, rebaixando-os aos criminosos que costumavam prender. As antigas prisões e detenções disciplinares eram medidas duras demais para transgressões disciplinares, além de possuírem duvidosa capacidade de redirecionamento dos policiais militares aos seus misteres profissionais. Eram sanções completamente incompatíveis à dignidade do encargo policial.” (LOUREIRO, Ythalo Frota. 2005, p. 24) Em pronunciamento anterior, datado de 2004, o mesmo membro do Ministério Público faz duras críticas ao regime disciplinar, alegando que estes priorizam o respeito à hierarquia e à disciplina em detrimento do respeito aos direitos humanos, acrescentando que a ideologia militar se fundamenta no autoritarismo e no pessimismo em relação à natureza humana, e por isso, nos frequentes momentos em que se deparam com conflitos de valores fundamentais, aplicaram os valores militares aprendidos na corporação, com prejuízo da dignidade da pessoa humana (LOUREIRO, Ythalo Frota. 2004). Como se demonstra, é bastante sólida a mobilização no sentido de estender aos militares os auspícios da humanização das sanções com vistas aos preceitos universalmente aceitos acerca dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana e à vedação do cerceamento da liberdade que não em casos de flagrante delito ou de ordem judicial devidamente justificada, demonstrando a total inadequação das penalidades administrativas de restrição de liberdade no cenário sociológico-jurídico vivido.  5. O atual regime de sanções administrativas disciplinares na polícia militar de pernambuco e a inviabilidade logística para cumprimento das penas restritivas de liberdade  No âmbito da Polícia Militar de Pernambuco há a previsão legal de seis modalidades de penas disciplinares: a) advertência; b) repreensão; c) detenção; d) prisão; e) licenciamento a bem da disciplina; f) exclusão a bem da disciplina.  A advertência e a repreensão são modalidades de uma mesma forma punitiva: a admoestação. Ambas partem do princípio de que a transgressão não foi grave e de que o histórico do transgressor leva a crer que uma reprimenda meramente verbal ou escrita será suficiente para fazê-lo refletir sobre a atitude que ensejou a sanção, reconhecer o erro e não mais voltar transgredir. Afeta diretamente a consciência e honra subjetiva do indivíduo. Instituto mais próximo do ideal previsto na chamada “disciplina consciente”. Assemelham-se à advertência prevista no Estatuto do Servidor Público e na Consolidação das Leis Trabalhistas.  A detenção e a prisão são formas de punição através do cerceamento da liberdade do transgressor. Possuem forte liame com as sanções penais e destinam-se às transgressões de grau médio e grave. De todas as categorias de empregados (atrelados ao regime da CLT) ou de servidores (vinculados ao regime estatutário), aplicam-se exclusivamente aos militares. Seu objetivo é o de retribuir ao infrator o fato típico praticado, restringindo-lhe o arbítrio e a liberdade de movimentação. Além de privar o militar apenado, temporariamente, do seu direito de ir e vir, também serve de exemplo aos demais sobre as repercussões que podem advir como consequência do cometimento de atos contrários às normas e regulamentações. Sem correspondente nas normas administrativo-disciplinares vigentes.  Licenciamento e exclusão a bem da disciplina são as sanções mais gravosas que podem ser aplicadas, em sede administrativa, aos militares. Leva em conta que a transgressão cometida inviabiliza a permanência do transgressor nas fileiras da corporação, por não se coadunar com os preceitos e diretrizes que regem a polícia militar. Pode ser aplicada tanto na esfera das praças quanto na dos oficiais e, em virtude do seu caráter terminativo da relação de trabalho, demandam um procedimento rigoroso e solene. Facilmente equiparável à demissão por justa causa prevista na norma trabalhista ordinária ou à demissão tratada no estatuto que rege os servidores públicos. Ora, apresenta-se desnecessário discorrer acerca da adequação das sanções unicamente admoestativas, ou mesmo das demissionárias, aos preceitos dos direitos humanos. As primeiras por se restringirem ao plano da consciência e da autocrítica do infrator, as segundas pelo fato de se mostrarem plenamente cabíveis ao ficar evidenciada a inadequação do homem ao serviço e às finalidades a que se propõe a Administração Pública que, como já discorrido previamente, exige um patamar diferenciado de procedimentos e regras a serem rigidamente cumpridos. Restam então as sanções administrativas de restrição de liberdade e a indagação sobre a recepção ou não aos fundamentos dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana. As sanções de privação de liberdade em uso no estado de Pernambuco e previstas no código disciplinar que rege os militares estaduais são a detenção e a prisão.  A principal diferença entre os dois institutos é a de que a definição da detenção informa a restrição do militar às dependências da unidade militar em que serve, mas sem confinar-lhe a nenhum aposento específico e sem importar em prejuízo para a instrução ou para o serviço. Já a prisão, além de delimitar o espaço de circulação do apenado à área do aquartelamento, ainda prevê o confinamento em local específico, seja o alojamento ou mesmo a cela, chamada de xadrez no linguajar de caserna. Sendo penalidades que restringem o militar às dependências do batalhão (ou equivalente) em que é lotado, há de se supor que o prédio contenha instalações suficientes, adequadas e dignas para alojar os apenados. Se, outrora, os quartéis ocupavam prédios grandes e fortificados, com muros altos e postos de sentinela, onde um grande número de militares cumpriam suas jornadas de serviço, que previam escalas com turnos de 24h (vinte e quatro horas), o que ensejava a necessidade de alojamento para os horários de descanso, e ainda contavam com celas prisionais, herança trazida das Forças Armadas (e que remontam aos cárceres para prisioneiros de guerra), atualmente as unidades policiais têm gradativamente passado por reformas e reconstruções que as tornam enxutas e funcionais em relação ao caráter cada vez mais dinâmico do serviço. Os resultados de tais evoluções arquitetônicas são: a redução dos espaços reservados aos alojamentos, que perderam parte da funcionalidade em face da prevalência de escalas de 12h (doze horas) de serviço desempenhadas eminentemente fora do aquartelamento, e deram lugar a simples vestiários; e a desativação dos xadrezes, em especial depois da construção do Centro de Reeducação da Polícia Militar (CREED), cuja função atual é a de receber presos oriundos da justiça militar, o que difere das prisões administrativas em comento.  Outro fator relacionado às modificações estruturais dos quartéis da Polícia Militar de Pernambuco foi mudança no sistema de fornecimento de refeições, que, anteriormente, eram preparadas nos chamados “ranchos” e servidas nos refeitórios ou “cassinos”, e passaram a ser supridas individualmente mediante o pagamento de auxílio alimentação, conforme regulado pelos Decretos Estaduais nº 29.181 e 29.788, ambos do ano de 2006. Resumidamente, as citadas normas extinguiram o fornecimento de alimentação pelos quartéis e instituíram o pagamento de vale-refeição no contracheque mensal dos militares estaduais.  Em valores atuais, o benefício é de R$154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) e equivale a 22 (vinte e duas) parcelas/refeições de R$7,00 (sete reais) cada, destinados a cobrir a média de dias úteis do mês trabalhado em expedientes administrativos, ou, no caso dos que concorrem a escalas, cobrir os dias de serviço no mesmo período, com uma pequena margem para eventuais sobrejornadas.  Fazendo então uma análise da aplicabilidade das penas administrativas de restrição de liberdade diante dos fatores expostos, tem-se que: 1 – A indisponibilidade de alojamento adequado para acomodar os apenados, interfere na sua permanência no perímetro do quartel em regime integral, obrigando os comandantes a liberarem os policiais em cumprimento de punições para pernoitarem em suas residências, o que compromete a essência da pena de restrição de liberdade em si. 2 – O outro obstáculo vivenciado é o que diz respeito à alimentação, pois considerando que os militares estaduais recebem mensalmente 22 (vinte e dois) vales-refeição, calculados para cobrir o estritamente necessário para os dias em que estejam de serviço, com poucas exceções, caso estejam cumprindo prisões e/ou detenções, os servidores precisarão arcar, com expensas próprias: o café da manhã, o almoço e o jantar dos dias em que estiverem recolhidos. Pelo que foi exposto, resta demonstrada a total incompatibilidade do regime de cumprimento das sanções disciplinares de restrição de liberdade no atual cenário logístico-operacional vivido pela Polícia Militar do Estado de Pernambuco. 5.1. Como agir diante dessa realidade?  Após a análise da doutrina emanada das Nações Unidas, que reserva a prisão como última alternativa no tratamento de delinquentes, e ainda as recomendações da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Segurança Pública, no tocante à humanização no tratamento dos operadores de defesa social e da própria evolução conjuntural e cultural da sociedade, era evidente que não se poderia ficar inerte. As penas restritivas de liberdade já cumpriram seus papéis em um momento histórico no qual se encaixavam perfeitamente pelo próprio arcabouço social em que se vivia, mas hoje se demonstram obsoletas, inadequadas, inaplicáveis e ineficazes no que se refere a atingir seus objetivos de reeducar e de prevenir novas transgressões e, por conseguinte, de reforçar as bases da hierarquia e da disciplina, pilares de sustentação de todas as instituições militares.  Ainda na análise do cenário nacional, observou-se que as penas alternativas à prisão configuram-se em meio eficaz no trato dos infratores em relação à sociedade em que se inserem. Apresentam reforço positivo tanto no interesse do infrator, quanto no da sociedade. Descabido então seriam os servidores públicos responsáveis pela segurança e incolumidade das pessoas, serem tratados disciplinarmente com a mais cruel das privações, a da liberdade, e daí se inferiu que a Polícia Militar de Pernambuco não deveria ficar atrelada a um regime que ainda acolhesse tal tipo de sanção administrativa. Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, na cidade de Porto Alegre, no ano de 1993, chegou-se à conclusão de que as penas alternativas geravam menos reincidência. Observou-se que, de todos os apenados que tiveram suas penas substituídas pela a prestação de serviços, apenas 12,54% reincidiram, ou seja, cerca de ¼ da média nacional de 48% de reincidência em relação aos que não foram beneficiados pela aplicação de penas alternativas no mesmo período. (SCHEICARA. 1998, p. 09) É inegável o dinamismo da sociedade, assim como é inegável o dinamismo evolutivo do direito. A vida castrense precisa se atualizar e implantar medidas modernas e mais eficazes no combate à indisciplina dentro dos quartéis. Por outro lado, medidas modernas e humanizadas não significa deixar de punir e fechar os olhos diante das infrações, mas envidar todos os esforços para a educação ou reeducação dos seus servidores, reconhecendo que, nos casos daqueles contumazes indisciplinados, a solução final é a expulsão, afinal, na função de preservação da ordem pública, não se pode contar com policiais que ensejem a desconfiança e insegurança da indisciplina, e a própria sociedade não quer isso. A privação da liberdade fica reservada aos criminosos de alta periculosidade, ainda que policiais militares, àqueles infratores irremediáveis da disciplina, aos que apresentem incorrigíveis desvios de conduta e de caráter, e se demonstrem nocivos ao convívio social da tropa e, consequentemente, à nobre missão de preservação da ordem pública.  Durante as pesquisas bibliográficas e doutrinárias realizadas, observou-se que algumas corporações já militam no campo da modernização de seus sistemas administrativo-disciplinares, dentre as quais se destacam a Polícia Militar do Estado do Ceará, que aboliu a prisão disciplinar e implantou a suspensão do serviço com prejuízo da remuneração, e a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, juntamente com a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que propuseram um sistema temperado, mantendo prisões e aplicando suspensões.  Não se pode negar que a suspensão, também presente nos Estatutos do Servidor Público (Federal e Estadual) e na Consolidação das Leis Trabalhistas, traz consigo uma sanção menos indesejável do que a restrição de liberdade, por outro lado, abarca a desvantagem de ocasionar prejuízo ao serviço, vez que o sancionado não cumprirá as suas obrigações enquanto estiver suspenso, assim como, no momento em que alcança o salário do servidor, poderá extrapolar os limites da pena, atingindo não só a pessoa do infrator como também seus familiares ou outros que dependam da sua renda, fator repudiado pelo direito pátrio. Também é importante frisar que no caso da suspensão (ou da aplicação de qualquer tipo de sanção) é esperado o sentimento inicial de insatisfação por parte do apenado, e que a sua permanência em casa, ocioso e sabedor de que ainda suportará decréscimo financeiro, poderá acarretar desentendimentos familiares, sendo certo, segundo informações obtidas diretamente junto à Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social, que já há um número alto de reclamações por agressões domésticas, à luz da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, e arriscar a ver esse número crescer não seria uma boa alternativa. Outras forças, como a Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Polícia Militar do Pará e a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais também evoluíram seus diplomas disciplinares no sentido de prever a possibilidade de comutação de parte da pena de reclusão em prestação de serviço, o que, embora já apresente um bom sinal, além de não apresentar diferença sensível em relação ao cerceamento de liberdade, ainda as deixam muito presas ao passado que se busca deixar pra trás.  Por outro lado, a imposição de sanção de prestação compulsória de serviço, com suspensão da folga, enseja em vantagens para os três atores do processo: a instituição, o administrado e a sociedade, garantindo ainda o reforço da hierarquia e da disciplina, mas sem submetê-los ao cárcere. A Polícia Militar de Pernambuco ganharia pelo fato de que o custo da punição de prestação de serviços é zero, em especial se comparado ao ócio e ao prejuízo para o serviço advindos da punição de privação de liberdade, pois o punido, além de estar produzindo e auxiliando, como força complementar, o Estado na persecução dos índices previstos no Pacto Pela Vida[2], não teria os custos administrativos de alojamento e alimentação, nem se obrigaria a dispor da guarnição de serviço para velar pela sua permanência no quartel. Ao transgressor, o maior beneficio seria a correção de sua infração em liberdade, permitindo que se mantenha em contato com a comunidade, gerando um convívio social saudável durante o cumprimento da punição, em especial quando se leva em conta que o meio favorece o desenvolvimento do homem. Outro aspecto é o de que, conforme identificado na pesquisa sobre reincidência e penas alternativas (IBCCrim, 1993), as chances do prestador de serviços voltar a transgredir são muito menores, comprovando o efeito reeducativo da medida.  A terceira parte a lucrar seria a Sociedade, que dispõe de mão-de-obra extra, gratuita e qualificada na prestação de um serviço indispensável e primordial como o de segurança. Por fim, observa-se ainda um aspecto em que os três atores do processo ganham: a prestação de serviços gera para a Corporação um marketing positivo junto a Comunidade, uma vez que a medida e a proximidade entre o policial e a população é simpática tanto para essa comunidade, quanto para o infrator.  Dito isso, propõe-se que o Código Disciplinar dos Militares Estaduais seja revisado com foco na atualização da lista de transgressões, tornando-as consonantes com a realidade social cotidiana, e que sejam excluídas da lista de sanções as penas de detenção e prisão, substituindo-as pelas de prestação compulsória de serviços no horário de folga. 6. A previsão de penas de prestação compulsória de serviço  O primeiro passo a ser seguido é a propositura de um projeto de Lei que modifique a Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado, permitindo a alteração do Art. 28 do referido diploma, revogando os incisos I e II, e acrescentando a previsão da prestação compulsória de serviço com suspensão da folga. De modo a permitir um alcance mais amplo dos objetivos pretendidos, devem ser observando os critérios abaixo: 1 – A sanção de prestação compulsória de serviços com suspensão da folga aplicar-se-á exclusivamente às transgressões médias e graves, ou nos casos de reincidência em transgressões leves que, preliminarmente, sejam sancionadas com advertências ou repreensões. Permitindo a gradação das punições em face da evolução das transgressões;  2 – A prestação compulsória seja cumprida, preferencialmente, na modalidade de Policiamento Ostensivo Geral a Pé, em turnos de serviço não inferiores a seis, nem superiores a oito horas ininterruptas. A medida visa possibilitar uma maior proximidade do apenado com a comunidade o que é produtivo tanto para a sua reeducação, quando para a integração polícia-comunidade, em especial quando, diante do dinamismo operacional que se vive, quase não existe emprego de policiamento a pé de maneira ordinária; 3 – A sanção não seja cumprida em jornada imediatamente anterior ou posterior ao serviço ordinário, não sendo permitida a geminação de turnos. Visando evitar prejuízos tanto ao serviço regular quanto ao cumprimento da sanção, por superposição de jornadas;  4 – O limite máximo por transgressão seja de até quinze jornadas extras mensais, o que, somado a uma prestação média de 15 serviços ordinários, levando-se em conta a jornada mais utilizada na Corporação (12x36h), perfaria um total de trinta dias, limite outrora estabelecido para as detenções e prisões; 5 – Para fins de modificação de comportamento (melhoria e depreciação), considerar-se-ão as penas aplicadas às transgressões médias produzindo os mesmos efeitos das extintas detenções e as penas vinculadas às transgressões graves como se se tratasse das extintas prisões, acompanhando o regramento já existente na referida Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado; 6 – Para os fins de anulação das punições da ficha disciplinar com o decorrer do tempo, seja observado o prescrito no item anterior; 7 – Considerando-se que as sanções de prestação compulsória se serviço com suspensão da folga passarão a ser penas propriamente ditas e não mais medidas administrativas complementares, seja revogado o inciso IV do §1º do Art. 28 do Código Disciplinar dos Militares Estaduais;  8 – Permanecem válidos todos os recursos disciplinares existentes aplicando-se, nos mesmos moldes, às penas de prestação compulsória com suspensão da folga; O controle externo à Corporação, que de certo trará mais confiança tanto para quem recorre à correição, bem como, isenção para quem julga e avalia, permanecendo sob os auspícios da Corregedoria Geral, ressalvados os poderes normativamente instituídos aos Comandantes, Chefes e Diretores.  A aplicação de prisões disciplinares restringir-se-á aos casos de repetidas violações ao rol de transgressões, indicando ser o agente um infrator contumaz e imune às penas previstas, ou nos casos de extrema necessidade de conter graves abusos e ofensas à ordem pública, devidamente motivados e homologados pelo Comandante Geral e sempre prévias às penas de exclusão. As modificações sugeridas proporcionam um maior controle disciplinar dos servidores do sistema, garantindo sua aplicabilidade e eficiência punitiva, extinguindo a sensação de impunidade que permeia o atual mecanismo de cumprimento de sanções administrativas para os militares estaduais, resguardando a disciplina militar em sua natureza rígida e rigorosa. 7. Considerações finais  No seio da Administração Pública, é indiscutível a necessidade de manutenção da disciplina, e mesmo nas esferas da vida social ela é cultivada. Importância ainda maior assume o controle da hierarquia e da disciplina no seio das chamadas instituições totais, como é o caso dos manicômios, prisões e conventos, no dizer de Erwin Goffman (Manicômios, prisões e conventos, 1984), e no qual é possível facilmente inserirem-se as corporações policiais militares. Entendida a necessidade de controle disciplinar, é mais fácil entender que a punição, não só no âmbito militar, mas em todas as atividades, tem a finalidade precípua de regular diretamente as ações humanas, e surgem então os diplomas destinados a prever uma punição que corresponda a uma falta cometida (princípio da retributividade da pena). Mesmo diante do controle, a falibilidade humana faz perceber que existirão atitudes indesejadas, momento em que será indispensável a reeducação do indivíduo, quando caberá a aplicação efetiva de punição face ao erro já consumado. Por fim, existe ainda o momento em que a sanção transcende da pessoa do punido e alcança também seus pares, superiores e subordinados, seja pelo temor de, em agindo de maneira desconforme com norma, também sofram do mesmo mal, seja visando o reforço da norma imposta e a harmonia na coletividade a que pertence e, no caso do policial militar, essa coletividade é a tropa. Em acordo com os princípios constitucionais vigentes é necessário que a punição disciplinar seja aplicada de forma justa e equilibrada, visto que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (Constituição Federal, Art. 5º, 1988), aí residindo a necessidade de estabelecer limites ao alcance punitivo estatal, posto que a ausência de tais parâmetros poderia ensejar em aplicações desequilibradas no quesito da dosimetria do quantum punitivo, sendo esse o entendimento de José Armando da Costa: “é o sistema predileto dos sádicos perseguidores. O mau administrador encontra neles o poder disciplinar como estilete de vingança pessoal” (Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 1981). Ainda em face do aspecto de que, embora o controle disciplinar, e com ele a imposição de penalidades, seja algo indispensável, também já foi bem demonstrado que o atual sistema está por demais obsoleto e preso a preceitos que não evoluíram com o tempo, como se esperaria de uma sociedade democrática de direito, como os ligados aos Direitos Humanos e à dignidade da pessoa humana. Muitos foram os direcionamentos doutrinários e mesmo filosóficos em prol da necessidade de humanização das penas administrativo-disciplinares militares, e a Polícia Militar de Pernambuco não poderia deixar de acompanhar a locomotiva do progresso nessa seara. Mais do que provado restou que o sentimento incutido tanto naqueles que aplicam as punições quanto na tropa em geral, que se submete aos auspícios do diploma disciplinar, é de que a aplicabilidade e eficácia das penas restritivas de liberdade entraram em colapso, além do que não se adequam aos preceitos dos direitos fundamentais conquistados ao longo de anos de evolução histórica. O cenário logístico também é fator que influencia no cumprimento das penalidades, seja pela falta de acomodações condignas ou pela indisponibilidade de recursos para provimento de alimentação. Propor uma solução que se baseasse na construção de novos cárceres e no provimento de refeições para garantir o mínimo existencial no período de reclusão seria encaminhar a instituição ao regresso do que se conquistou para a sociedade, sem contar que seria negar aos militares, em que pese a necessidade de serem submetidos a tratamento mais rígido e diferenciado, o direito de serem reconhecidos como cidadãos. Propor singelamente que as penas de cerceamento de liberdade sejam extintas seria muito fácil, o grande problema é fazer isso sem deixar de lado a preocupação com o reforço da hierarquia e da disciplina, e esse foi o desafio assumido pelo presente projeto. Nesse diapasão, sugere-se não apenas a modificação do rol punitivo, mas uma revisão geral do Código Disciplinar, adequando os tipos ali estabelecidos à realidade cotidiana, em face do princípio da mutação normativa, mas também a extinção das penas de detenção e de prisão, restritivas de liberdade em essência. Na ótica deste trabalho, algumas das transgressões disciplinares hoje previstas podem ser reprimidas através de simples admoestação, verbal ou escrita, acreditando-se no sentimento maior de amor às normas e da disciplina consciente que tanto se ouve falar nos períodos de formação das escolas militares. Ainda assim, há também aquelas situações em que a gravidade do mal causado à administração exige medidas mais drásticas, ou quando o transgressor insiste em transigir as regras a que jurou se submeter, e aí se estabelece o campo para a aplicação de sanções mais rígidas em face do benefício à coletividade, momento em que teriam espaço as penas de prestação compulsória de serviço com suspensão da folga. Impor ao administrado uma medida que lance mão do seu horário livre além de reprimir a ação atentatória à boa ordem do serviço, não deixando imperar a sensação de impunidade que, no entender de Beccaria, favorece o cometimento de novas transgressões, também não submete o apenado a um regime até certo ponto degradante e que, invariavelmente, o leva a comparar a sua situação com a do criminoso comum que o mesmo servidor se predispõe a combater na sua lida diária.  Não bastasse tudo isso, apontam-se complementarmente como decorrências positivas: o reforço operacional na manutenção do Pacto Pela Vida em detrimento do prejuízo deixado pela lacuna do militar afastado do serviço em face do cumprimento de medida disciplinar, e o marketing positivo junto às comunidades ao se disponibilizar mais efetivo para atender aos seus anseios na área da segurança. Outros caminhos se assomam quando são levadas em conta possibilidades como a de comutação parcial da pena em prestação alternativa ou na propositura de suspensão disciplinar com prejuízo pecuniário, contudo, e como já discorrido anteriormente, no primeiro caso não se observa considerável evolução no processo punitivo, mantendo muito forte o liame com os institutos que se pretende deixar para trás; já no segundo, há o receio de que, mesmo diante de limites normativamente impostos em relação à reprimenda financeira, esta atingirá não só o militar, mas todos aqueles que dele dependem para o seu sustento, sem se esquecer de que o Estado não contará com o servidor para o desempenho de suas tarefas durante o período de afastamento.  Por todos esses motivos que se aponta como remédio ao aparato disciplinar em voga a revisão de suas transgressões (na possibilidade de adequação temporal), a extinção das penas de cerceamento de liberdade (prisões e detenções), e a implantação da modalidade punitiva de prestação compulsória de serviço com suspensão da folga. A adoção dessas medidas contribuirá para a restauração da eficácia do sistema de controle da disciplina, estabelecendo um ambiente melhor de trabalho aos militares estaduais, e refletindo na qualidade do serviço prestado junto à Comunidade, público alvo e maior beneficiário de todo o mecanismo estadual de defesa social.
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Da possibilidade de controle das decisões das agências reguladoras através do recurso hierárquico impróprio
O presente artigo versa sobre a possibilidade de controle dos atos das agências reguladoras pelo Poder Executivo.
Direito Administrativo
Introdução O presente trabalho tem por escopo avaliar os limites do controle das decisões das agências reguladoras pelo Poder Executivo central, mais especificamente, através do mecanismo do recurso hierárquico impróprio. Em que pese a referida possibilidade carecer de previsão legal expressa, ela foi admitida no direito brasileiro através do Parecer AGU nº AC-51, de 12 de junho de 2006, aprovado pelo Presidente da República e, consequentemente, assumindo caráter normativo e vinculante perante toda a Administração Pública Federal. Também será tratada a questão da autonomia das agências reguladoras, realizando-se um esboço histórico do seu surgimento, bem como o poder de controle sobre as autarquias em geral. Ao final, será apresentada a conclusão do referido estudo, sem a pretensão de esgotar a análise do assunto, de forma a contribuir com o debate acadêmico visando ao aprimoramento das instituições. 1. Da organização administrativa / da administração pública direta e indireta É cediço que o Estado goza de autonomia política para executar as suas atividades da melhor forma que lhe aprouver, desde que respeitados os ditames constitucionais, ou seja, quando a Constituição Federal determina o exercício de uma função administrativa ao Estado, incumbe a ele prestá-la diretamente ou indiretamente através de interpostas pessoas. Isso inclui a possibilidade do Estado transferir aos particulares a execução de certas atividades que lhe são próprias ou criar pessoas jurídicas com personalidade jurídica própria (seja de direito público ou privado) para executá-las. Assim, em linhas gerais, quando o Estado[1] desempenha diretamente uma atividade, fala-se em centralização. E o Estado o faz mediante a estruturação da Administração em órgãos públicos, que são centros de competência administrativa despersonalizados. Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior:[2] “A Administração Direta ou Centralizada é aquela constituída a partir de um conjunto de órgãos públicos, através do qual o Estado desempenha diretamente a atividade administrativa. Aqui, é a própria pessoa estatal (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) que executa diretamente a atividade administrativa. Para tanto, vale-se dos órgãos públicos.” Na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello,[3] “órgãos são unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado.” Ao contrário, quando o Estado realiza determinada atividade através de interposta pessoa, isto é, indiretamente, fala-se em descentralização administrativa. Maria Sylvia Zanella Di Pietro[4] esclarece que “a descentralização administrativa ocorre quando as atribuições que os entes descentralizados exercem só têm o valor jurídico que lhe empresta o ente central; suas atribuições não decorrem, com força própria, da Constituição, mas do poder central.” Para o Decreto-Lei nº 200/67, a Administração Direta se constitui dos serviços integrados da estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios (art. 4º, inciso I), ao passo que a Administração Indireta compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações (art. 4º, inciso II).[5] Uma das principais vantagens da descentralização reside na especialização da prestação da atividade administrativa. É inegável que, com uma sociedade cada vez mais complexa, seria extremamente dificultoso que o Estado prestasse diretamente todas as atividades que lhe incumbe, sem a especialização necessária. Ademais, parece que desde o advento do Decreto-Lei 200/67, a descentralização se tornou a regra, ao menos no âmbito federal, afinal, o art. 10 do mencionado diploma legal estabelece que a execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada. Vê-se, pois, que a descentralização se tornou regra imperativa há quase 50 anos no direito brasileiro. Convém esclarecer que descentralização não se confunde com desconcentração. Isto porque, enquanto a descentralização é a distribuição de competências de uma para outra pessoa, física ou jurídica, a desconcentração é uma distribuição interna de competências, realizada dentro da mesma pessoa jurídica. Logo, desconcentrar nada mais é do que tirar do centro um volume grande de atribuições, para permitir seu mais adequado e racional desempenho.[6] São características das entidades da Administração Indireta a criação por lei específica, personalidade jurídica e patrimônio próprios, sujeição a controle pelo poder central, além de responsabilidade pelos atos que pratica. Firmadas as premissas acerca da Administração Pública Direta e Indireta, faz-se necessária a análise pormenorizada das autarquias e das agências reguladoras, uma vez que constituem o cerne deste trabalho. 1.1. Das autarquias A palavra autarquia, etimologicamente, provém da junção dos elementos autós (próprio) e arquia (comando, governo, direção), significando “comando próprio, direção própria, auto-governo”.[7] Pela definição legal, considera-se autarquia o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada (art. 5º, inciso I do Decreto-Lei 200/67). Para Dirley da Cunha Júnior,[8] […] “as autarquias devem ser compreendidas como pessoas jurídicas de direito público, com capacidade exclusivamente administrativa, criadas por lei específica para exercer, em caráter especializado e com prerrogativas públicas, atividades típicas referentes à prestação de certos serviços públicos. Para tanto, possuem autonomia administrativa, financeira e técnica e são dotadas de amplas prerrogativas” […]. Na Administração Indireta, as entidades de direito público possuem praticamente as mesmas prerrogativas próprias do Estado, enquanto as entidades de direito privado somente possuem aquelas que forem expressamente previstas na Constituição Federal ou em lei derrogatória do direito comum. Desta maneira, a autarquia, como pessoa jurídica de direito público, goza do processo especial de execução (art. 100, CF e arts. 730 e 731 do CPC), impenhorabilidade de bens, juízo privativo (art. 109, CF), prazos processuais diferenciados (art. 188, CPC), reexame necessário das decisões judiciais que lhe forem desfavoráveis, além da imunidade tributária dos impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços (art. 150, VI, “a” e parágrafo 2º da CF). Interessante questão se revela na relação que possui a autarquia com a pessoa que a criou, donde se extraem duas problemáticas: (a) como são criadas e extintas as autarquias e (b) o controle a que se submetem frente ao Poder Central. Quanto à criação e extinção, saliente-se que as autarquias somente podem ser criadas e extintas por lei (art. 37, inciso XIX da Constituição Federal). No tocante ao controle a que se submetem frente ao Poder Central, cabe frisar que, normalmente, a doutrina denomina de tutela o poder que assiste à Administração Central de influir sobre as autarquias com o propósito de conformá-las ao cumprimento dos objetivos públicos em vista dos quais foram criadas, harmonizando-as com a atuação administrativa global do Estado.[9] Dada a relevância da questão para o presente trabalho, o tema será melhor explicitado em tópico próprio. 1.2. Das agências reguladoras De início, convém tecer um breve esboço histórico sobre o surgimento e proliferação das agências reguladoras. É cediço que o modelo econômico influencia o modelo de Estado adotado, além de influenciar o ordenamento jurídico de um país. Nesse sentido, há basicamente três formas de intervenção estatal no domínio econômico: (1) pela disciplina, (2) pelo fomento e (3) pela atuação direta. A importância das agências reguladoras reside prioritariamente[10] na hipótese do Estado não prestar diretamente uma atividade de interesse público, quando então a agência será responsável pela regulação daquela atividade. As agências reguladoras tiveram origem no direito norte-americano, com o Interstate Commerce Comission (ICC), em 1887, visando à regulação do transporte ferroviário. Contudo, tais entidades somente ganharam projeção após o New Deal, na década de 1930.[11] Naquela época, os Estados Unidos passavam por grande recessão, ao mesmo tempo em que predominava o forte liberalismo econômico, calcado na propriedade privada e no cumprimento irrestrito dos contratos. Para amenizar tal situação e não exacerbar a situação caótica da maioria da população, proliferaram-se as agências reguladoras, com uma proposta de melhor capacitação técnica e melhor posicionamento da Administração para reagir de forma rápida e flexível no sentido de estabilizar a economia, além de proteger os menos favorecidos contra as oscilações dos mercados desregulados. Visavam, também, a driblar os entraves à regulação opostos por um Poder Judiciário predominantemente conservador, o que, na época, significava um Judiciário mantenedor do absoluto liberalismo econômico.[12] A proliferação das agências reguladoras no direito norte-americano tinha por objetivo formar centros de excelência e especialização, imunes ao poder político advindo dos poderes estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e com autonomia para tomarem decisões técnicas. Com o passar dos anos, as agências nos Estados Unidos foram perdendo parcela da sua autonomia, através da sucessiva edição de leis e atos administrativos, até atingir a sua conformação atual. Assim, hodiernamente, nos Estados Unidos, a discussão há muito deixou de ser a autonomia das agências, para se tornar (1) o seu controle político (gerado pela crescente intrusividade das agências nas atividades privadas), (2) a sua responsividade social (questionável eficiência das agências na gestão dos mercados regulados) e (3) a legitimidade democrática (ou seja, a não sujeição dos dirigentes das agências aos mecanismos tradicionais de accountability eleitoral).[13] No Brasil, o surgimento das agências reguladoras se deu em um contexto oposto à situação vivida nos Estados Unidos. No início da década de 1990, o Brasil vivia intensa crise fiscal e econômica, sofrendo severas críticas por não ter recursos para investir na prestação de certas atividades de interesse público, além de ser um péssimo administrador. Ensina Dinorá Adelaide Musetti Grotti[14] que o papel do Estado começou a mudar na quadra final do século passado, mediante a eleição da descentralização como estratégia, a imposição da redução do Estado através das privatizações, terceirizações e publicizações, a recuperação da sua capacidade financeira e administrativa, a necessidade de fortalecimento de sua função reguladora, fiscalizadora e fomentadora e o desmonte do Estado prestador, produtor, interventor e protecionista. A regulação no Brasil também objetivou (i) separar o provedor de utilidades públicas dos agentes encarregados da regulação e (ii) regular setores antes não regulados, a exemplo do setor de planos de saúde. Vale salientar que, no Brasil, as agências reguladoras foram criadas praticamente como uma exigência do capital estrangeiro para aqui realizar investimentos, clamando por uma segurança jurídica de que os contratos fossem cumpridos pelo governo brasileiro, ainda que houvesse mudanças ideológicas e políticas nas eleições vindouras. Destarte, em 1995, através das Emendas Constitucionais nº 8 e 9, passou-se a ter previsão expressa na Carta Magna a existência de “órgãos” reguladores para os setores de telecomunicações e de petróleo, conhecidas na doutrina como as agências reguladoras constitucionais, pois são as únicas duas agências com previsão direta na Carta Política (ANP e ANATEL). Várias leis ordinárias foram sucessivamente editadas com o objetivo de criar diversas agências reguladoras, a exemplo da ANS (Lei Federal nº 9961/00), ANVISA (Lei Federal nº 9782/99), ANTAQ (Lei Federal nº 10233/01), ANTT (Lei Federal nº 10233/01), ANCINE (Lei Federal nº 10454/02) etc. Assim, as agências reguladoras podem ser criadas mediante previsão constitucional ou infraconstitucional, sendo que, pelo princípio do paralelismo das formas, somente podem ser extintas pelo veículo normativo de mesma intensidade daquele que as criou. 2. Conceito, natureza jurídica e características das agências reguladoras Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,[15] as agências reguladoras são autarquias sob regime especial, criadas com a finalidade de disciplinar e controlar certas atividades, dentre as quais (a) serviços públicos propriamente ditos, (b) atividades de fomento e fiscalização de atividade privada, (c) atividades exercitáveis para promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, (d) atividades que o Estado também protagoniza, mas que, paralelamente, são facultadas aos particulares e (e) o uso de bem público. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[16] dentro da função regulatória, pode-se considerar a existência de dois tipos de agências reguladoras no direito brasileiro: (a) as que exercem, com base em lei, típico poder de polícia, com a imposição de limitações administrativas, previstas em lei, fiscalização e repressão (ex. ANVISA, ANS, ANA) e (b) as que regulam e controlam as atividades que constituem objeto de concessão, permissão ou autorização de serviço público ou de concessão para exploração de bem público. Prossegue a referida doutrinadora esclarecendo que as primeiras não são muito diferentes de outras entidades já existentes (ex. Banco Central, Cade etc), sendo que as segundas é que constituem novidade no direito brasileiro, ao assumirem poderes que antes só eram exercidos pela Administração Central.[17] É de se ver que, em relação à natureza jurídica, as agências reguladoras também são consideradas autarquias, porém sob um “regime especial”. Para parcela da doutrina, este “regime especial” consiste na possibilidade das agências reguladoras gozarem de independência/autonomia administrativa, financeira, funcional, patrimonial e de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e ausência de subordinação hierárquica, além de investidura dos seus dirigentes mediante prévia aprovação do Senado e com mandato fixo.[18] Nesse sentido, a título exemplificativo, convém mencionar o artigo 4º da Lei Federal nº 11.182/05, criadora da ANAC, o qual preconiza que “a natureza de autarquia especial conferida à ANAC é caracterizada por independência administrativa, autonomia financeira, ausência de subordinação hierárquica e mandato fixo de seus dirigentes. “ A Lei Federal nº 9.472/97 possui dispositivo semelhante em relação à ANATEL (art. 8º, par. 2º): “a natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.” Para Celso Antônio Bandeira de Mello,[19] o único ponto realmente peculiar das agências reguladoras em relação à generalidade das autarquias está nas disposições atinentes à investidura e fixidez do mandado dos dirigentes das agências, afinal, as demais características estão presentes em qualquer autarquia. Assim, os dirigentes das agências reguladoras somente poderiam deixar o exercício da função mediante hipóteses taxativamente expressas em lei, normalmente decorrentes da renúncia do titular, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar. Saliente-se que as agências são dirigidas em regime de colegiado, através de um Conselho Diretor ou Diretoria, conforme preleciona o artigo 4º da Lei Federal nº 9986/00.[20] O artigo 8º da Lei Federal nº 9.986/00 estabeleceu uma “quarentena”, período no qual “o ex-dirigente fica impedido para o exercício de atividades ou de prestar qualquer serviço no setor regulado pela respectiva agência, por um período de quatro meses, contados da exoneração ou do término do seu mandato.” Deve ser destacado que são conferidos às agências reguladoras os poderes normativo, fiscalizador, regulador e sancionatório. É comum encontrar na doutrina administrativista quem defenda que as agências reguladoras possuam poderes quase-judiciais, quase-legislativos e quase-regulamentares.[21] As agências também são responsáveis por atenuar os efeitos da formação de eventual monopólio, controlar preços e qualidade do serviço prestado, criar condições para a existência e manutenção da concorrência e buscar a universalização dos serviços.[22] Por fim, deve ser salientado que as agências estão sujeitas ao controle por parte dos Poderes Legislativo e Judiciário, além da tutela exercida pelo Poder Executivo, conforme será analisado no tópico seguinte. 3. Do controle ou tutela exercido pelo poder central em face das autarquias. As autarquias, para a realização do seu mister, gozam de autonomia administrativa, financeira[23] e técnica em relação ao Poder Central, visando à consecução das finalidades para as quais foram concebidas. Todavia, esta autonomia não é absoluta, ao ponto de se constituir em uma entidade imune ao controle administrativo exercido pela Administração Direta. Conforme dito alhures, fica fácil visualizar que, em âmbito federal, as autarquias estão submetidas ao controle dos Ministérios vinculados às atividades que executam ou à Presidência da República, no caso de autarquia vinculada diretamente a esta última. Isso porque, nos termos do art. 19 do Decreto-Lei 200/67, “todo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente, excetuados unicamente os órgãos mencionados no art. 32, que estão submetidos à supervisão direta do Presidente da República.” Ademais, não se olvide que a Constituição Federal estabelece, no artigo 84, inciso II, que compete ao Presidente da República “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal”, sendo que, no artigo 87, parágrafo único, inciso I da Carta Magna, está preconizado que compete ao Ministro de Estado “exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência […]”. Referido poder de controle ou tutela tem por objetivo supervisionar a eficiência administrativa da autarquia, além de conformá-la com a competência e os objetivos fixados em sua lei criadora, harmonizando-a com as políticas públicas firmadas pelo Governo Central. O controle das autarquias pode ser exercido de diversas maneiras: designação ou exoneração dos seus dirigentes; recebimento de relatórios sobre as funções realizadas pelas autarquias; aprovação da programação financeira; realização de auditoria e avaliação periódica de desempenho, além da intervenção na autarquia, caso ela esteja se desviando da sua finalidade precípua.[24] Importa esclarecer que este controle ou tutela do Poder Central não se confunde com o poder hierárquico. Conforme ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[25] há sensíveis diferenças entre tutela e hierarquia: (a) a tutela não se presume, pois só existe quando a lei a prevê, ao passo em que a hierarquia existe independentemente de previsão legal, porque é inerente à organização administrativa; (b) a tutela supõe a existência de duas pessoas jurídicas, uma das quais exercendo controle sobre a outra, existindo onde haja descentralização administrativa, enquanto a hierarquia existe dentro de uma mesma pessoa jurídica, relacionando-se com a ideia de desconcentração; (c) a tutela é condicionada por lei, ou seja, só admite os atos de controle expressamente previstos, sendo que a hierarquia é incondicionada e implica uma série de poderes que lhe são inerentes, como o de dar ordens, o de rever os atos dos subordinados (ex officio ou mediante provocação), o de avocar e delegar atribuições. Logo, não é admissível a interposição de recurso hierárquico próprio de decisão proferida pela autarquia para o respectivo Ministério, uma vez que a autarquia é dotada de personalidade jurídica própria, não sendo hierarquicamente subalterna ao Poder Central. Todavia, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello,[26] “[…] só poderia caber o chamado recurso hierárquico impróprio, isto é, quando previsto na lei própria da autarquia (ou em alguma outra lei).” E, mais à frente, esclarece o mencionado professor que tal recurso teria como base a Constituição Federal, mais especificamente o direito de petição ao Poder Público (art. 5º, XXXIV, “a”). Frise-se que Celso Antônio Bandeira de Mello aduziu expressamente à necessidade da previsão legal para o cabimento do recurso hierárquico impróprio, sendo que este dado será relevante para a discussão acerca do cabimento deste recurso em face das decisões proferidas pelas agências reguladoras. No mesmo sentido, Dinorá Adelaide Musetti Grotti entende que os atos das agências reguladoras não podem ser revistos ou alterados pelo Poder Executivo, salvo se houver expressa previsão legal para a admissão do recurso hierárquico impróprio.[27] Quanto à classificação do controle,[28] este pode ser de legitimidade, quando diga respeito ao exame da conformidade do comportamento autárquico com os ditames legais, ou será de mérito quando, por força de lei, o controlador possa apreciar a conveniência e oportunidade das decisões das autarquias. O controle também pode ser preventivo, quando a autarquia necessita da prévia manifestação do controlador para que o seu ato tenha eficácia ou repressivo, quando o controle é realizado após a produção do ato. 4. Do controle ou tutela exercido pelo poder central em face das agências reguladoras  Conforme já afirmado, o Poder Central não detém poder hierárquico[29] em face das autarquias, principalmente em face das agências reguladoras, que foram concebidas justamente para serem entidades especializadas e autônomas, alheias à eventual ingerência política. O que existe é o poder de controle ou tutela, como forma de garantir a observância da legalidade e o cumprimento de suas finalidades institucionais. Na medida cautelar proferida na ADI nº 1668/DF, o Relator Ministro Marco Aurélio,[30] em julgamento específico sobre as agências reguladoras, assentou que “A citada independência não afasta, em si, o controle por parte da Administração Pública Federal, exercido, de forma direta, pelo Ministro de Estado da área e, de maneira indireta, pelo Chefe do Poder Executivo, o Presidente da República. Na verdade, o que encerra a alusão à citada independência é a autonomia, em si, do serviço […]. Destarte, o enquadramento ocorrido, considerado o que se apontou como regime autárquico especial, longe está de revelar a existência de uma entidade soberana, afastada do controle pertinente” Logo, em não havendo hierarquia, revela-se incorreto se falar em recurso hierárquico próprio interposto para o Ministério respectivo em face de uma decisão proferida pela agência reguladora. Acerca do cabimento do recurso hierárquico impróprio, o tema será tratado especificamente no tópico seguinte. De qualquer maneira, é importante salientar que a autonomia/independência[31] que as agências reguladoras possuem não se caracteriza como prerrogativa absoluta, imune a eventual controle do Executivo, Legislativo e Judiciário. Se assim o fosse, as agências reguladoras constituiriam verdadeiros “Estados soberanos” dentro do Estado brasileiro, fato este não admitido pela Carta Magna. Assim, entende-se não existir nenhum óbice ao controle da legalidade e do cumprimento das finalidades das agências por parte do Poder Central, através do denominado poder de controle. O controle deve ser exercido até mesmo como forma das agências reguladoras evitarem o abuso no exercício das suas funções normativas e fiscalizatórias. O que não pode haver é o controle sobre as decisões técnicas tomadas pelas agências, para as quais elas gozam de maior autonomia. Do contrário, seria desnecessária a criação de novas entidades (agências reguladoras) se todas as suas decisões estivessem sujeitas à análise do Poder Central, inclusive as suas decisões técnicas. Logo, a política regulatória é incumbência privativa das agências reguladoras, ao passo que as políticas públicas são de incumbência do Poder Central, a serem concretizadas pelos diversos Ministérios. Assim, cabendo a cada qual uma atribuição diferente, mas que se aproximam em certos aspectos, não é de se estranhar que existam conflitos entre as agências reguladoras e os respectivos Ministérios. 5. Da possibilidade de interposição de recurso hierárquico impróprio em face das decisões proferidas pelas agências reguladoras Recursos administrativos são todos os meios que podem utilizar os administrados para provocar o reexame do ato pela Administração Pública.[32] Nesse sentido, o recurso hierárquico próprio é aquele dirigido ao agente público superior da autoridade prolatora do ato questionado, no mesmo órgão em que o ato foi praticado ou em órgão diverso mas com autoridade hierárquica sobre o órgão prolator da decisão. Já recurso hierárquico impróprio é aquele dirigido à autoridade de outro órgão, não inserido na mesma relação hierárquica daquele que praticou o ato questionado, necessitando de expressa previsão legal. Como afirmado acima, as decisões técnicas das agências, como regra, não estão sujeitas à revisão pelo Poder Central. Se estivessem, não haveria a necessidade de serem criadas as agências reguladoras com autonomia técnica para a tomada de decisões na sua respectiva área. Obviamente, as decisões das agências reguladoras podem ser questionadas junto ao Poder Judiciário, em obediência ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF). Outro fator que, em um primeiro momento, impediria a interposição de recurso hierárquico impróprio reside no fato de que nenhuma lei criadora de agência reguladora admite expressamente a sua previsão. Pelo contrário: em algumas leis está expressamente previsto que a decisão tomada pela agência reguladora encerra a instância administrativa.[33] Todavia, poder-se-ia argumentar que, com exceção das leis que preveem expressamente que determinadas agências encerram a instância administrativa (a exemplo das leis criadoras da ANATEL e da ANVISA – onde a polêmica seria maior), as demais leis instituidoras das agências reguladoras não vedam a utilização do recurso hierárquico impróprio dirigido ao Poder Central. Ademais, seria o recurso hierárquico impróprio mero instrumento para o exercício do chamado controle ou tutela a ser manejado pelo Poder Central, o qual poderia, até mesmo, exercê-lo de ofício, quando a agência desborde do limite legal para o qual foi criada. Nesse sentido, parte da doutrina administrativista entende desnecessária a exigência de expressa previsão legal para o cabimento do recurso hierárquico impróprio, afinal, a agência reguladora deve conformar suas decisões aos limites legais, sem desbordar da sua competência legal, sob pena do Poder Central poder exercer o controle ou tutela sobre os atos inválidos praticados pelas agências. Há ainda quem entenda que o art. 19 do Decreto-Lei 200/67 confere o fundamento legal para o cabimento do recurso hierárquico impróprio interposto em face das decisões das agências reguladoras para o respectivo Ministério. Confira-se o teor do aludido preceito legal: “Art . 19. Todo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente, excetuados unicamente os órgãos mencionados no art. 32, que estão submetidos à supervisão direta do Presidente da República.” Desta maneira, tal ponto deve ser esclarecido nesta ocasião, para possibilitar a análise do cabimento ou não do recurso hierárquico impróprio. 6. Do parecer agu nº ac-51/2006 / das hipóteses de cabimento de recurso hierárquico impróprio em face das decisões das agências reguladoras                     O parecer AGU nº AC-51/2006 é relativamente conhecido na área jurídica pois, a despeito da inexistência de previsão legal, fixou expressamente a possibilidade do cabimento de recurso hierárquico impróprio em face das decisões proferidas pelas agências reguladoras para o respectivo Ministério. Referido parecer foi aprovado pelo Presidente da República, passando a ostentar força vinculante na Administração Pública Federal, nos termos do art. 40, parágrafo 1º da Lei Complementar nº 73/93.[34] Observe-se a ementa do mencionado parecer: “PORTO DE SALVADOR. THC2. DECISÃO DA ANTAQ. AGÊNCIA REGULADORA. CONHECIMENTO E PROVIMENTO DE RECURSO HIERÁRQUICO IMPRÓPRIO PELO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES. SUPERVISÃO MINISTERIAL. INSTRUMENTOS. REVISÃO ADMINISTRATIVA. LIMITAÇÕES. I – -O Presidente da República, por motivo relevante de interesse público, poderá avocar e decidir qualquer assunto na esfera da Administração Federal- (DL nº 200/67, art. 170). II – Estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades administrativas ou que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou, ainda, violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração direta. III – Excepcionalmente, por ausente o instrumento da revisão administrativa ministerial, não pode ser provido recurso hierárquico impróprio dirigido aos Ministérios supervisores contra as decisões das agências reguladoras adotadas finalisticamente no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor. IV – No caso em análise, a decisão adotada pela ANTAQ deve ser mantida, porque afeta à sua área de competência finalística, sendo incabível, no presente caso, o provimento de recurso hierárquico impróprio para a revisão da decisão da Agência pelo Ministério dos Transportes, restando sem efeito a aprovação ministerial do Parecer CONJUR/MT nº 244/2005. V – A coordenação das Procuradorias Federais junto às agências reguladoras pelas Consultorias Jurídicas dos Ministérios não se estende às decisões adotadas por essas entidades da Administração indireta quando referentes às competências regulatórias desses entes especificadas em lei, porque, para tanto, decorreria do poder de revisão ministerial, o qual, se excepcionalmente ausente nas circunstâncias esclarecidas precedentemente, afasta também as competências das Consultorias Jurídicas. O mesmo ocorre em relação à vinculação das agências reguladoras aos pareceres ministeriais, não estando elas obrigadas a rever suas decisões para lhes dar cumprimento, de forma também excepcional, desde que nesse mesmo âmbito de sua atuação regulatória. VI – Havendo disputa entre os Ministérios e as agências reguladoras quanto à fixação de suas competências, ou mesmo divergência de atribuições entre uma agência reguladora e outra entidade da Administração indireta, a questão deve ser submetida à Advocacia-Geral da União. VII – As orientações normativas da AGU vinculam as agências reguladoras. VIII – As agências reguladoras devem adotar todas as providências para que, à exceção dos casos previstos em lei, nenhum agente que não integre a carreira de Procurador Federal exerça quaisquer das atribuições previstas no artigo 37 da MP nº 2.229-43/2001.” Em linhas gerais, o mencionado parecer fixou o entendimento de que (a) cabe recurso hierárquico impróprio das decisões proferidas pelas agências caso estas desbordem os limites de competência definidos em lei ou violem as políticas públicas definidas pela Administração Direta; (b) as agências devem obediências às políticas públicas definidas pelos respectivos Ministérios; (c) se a decisão da agência envolver matéria finalística desta autarquia (isto é, competência regulatória) e estiver em consonância com a política pública do setor, não caberá recurso hierárquico impróprio para o Ministério respectivo. Convém detalhar as conclusões obtidas da análise do parecer AGU nº AC-51/2006. Em primeiro lugar, frise-se que o próprio parecer ressalva que as decisões tomadas pelas agências reguladoras em matérias finalísticas não estão sujeitas a controle a cargos dos respectivos Ministérios, ou seja, em relação àquelas decisões proferidas “no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor”. É que, em relação às matérias finalísticas, seria um contrassenso o Poder Central criar as agências reguladoras, dotadas de autonomia técnica para, em seguida, reformar toda decisão finalística que a agência viesse a tomar. Em segundo lugar, também deve ser esclarecido que o mencionado parecer conferiu a possibilidade da existência de recurso hierárquico impróprio em face das decisões das agências para o respectivo Ministério sem previsão legal expressa que regulamentasse a questão. Aqui, cabe frisar que parte da doutrina administrativista sempre se manifestou no sentido da necessidade da existência de previsão legal para a admissão do recurso hierárquico impróprio.[35] Por outro lado, alguns doutrinadores entendem desnecessária a expressa previsão legal para o cabimento do recurso hierárquico impróprio, uma vez que ele não passaria de uma maneira de concretizar o poder de controle ou tutela que o Poder Central exerce sobre suas autarquias. Em linguagem bem simples, ainda que não houvesse previsão legal, a autarquia não poderia ficar imune ao controle do Poder Central. Em terceiro lugar, frise-se que o parecer em análise identificou três hipóteses nas quais é cabível o recurso hierárquico impróprio: (1) decisões das agências referentes às suas atividades administrativas ou (2) que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou, ainda, (3) que violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração Direta. Em relação às duas primeiras hipóteses, quais sejam, decisões referentes às atividades administrativas e decisões que ultrapassam os limites de competência das agências, não se vislumbram tantos óbices ao controle por parte do Poder Central. É que as atividades-meio (administrativas) das agências podem ser definidas em conjunto com o Poder Central sem que isso possa significar ingerência na matéria técnica-finalística. Quanto à exacerbação de competência por parte da agência, é de se salientar que configura prerrogativa do Poder Central impedir que as agências e demais autarquias desbordem dos limites definidos em suas leis criadoras. É de se crer, portanto, que o maior problema reside na terceira hipótese, qual seja, a possibilidade do manejo do recurso hierárquico impróprio quando as agências reguladoras violarem as políticas públicas definidas pela Administração Direta para o setor regulado. A grande dificuldade reside na delimitação exata do que é política pública, visto este ser um conceito aberto que, eventualmente, poderia ser indevidamente utilizado para representar uma ingerência política irregular nas agências reguladoras. É cediço que política pública é o conjunto de ações, programas e atividades desenvolvidas pelo Estado, seja direta ou indiretamente, como forma de concretizar um direito previsto constitucionalmente, com vistas ao bem estar social.[36] Para Maria das Graças Rua:[37] “As políticas públicas (policies), por sua vez, são outputs, resultantes da atividade política (politics): compreendem o conjunto das decisões e ações relativas à alocação imperativa de valores. Nesse sentido é necessário distinguir entre política pública e decisão política. Uma política pública geralmente envolve mais do que uma decisão e requer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar as decisões tomadas. Já uma decisão política corresponde a uma escolha dentre um leque de alternativas, conforme a hierarquia das preferências dos atores envolvidos, expressando – em maior ou menor grau ‑ uma certa adequação entre os fins pretendidos e os meios disponíveis. Assim, embora uma política pública implique decisão política, nem toda decisão política chega a constituir uma política pública. Um exemplo encontra‑se na emenda constitucional para reeleição presidencial. Trata‑se de uma decisão, mas não de uma política pública. Já a privatização de estatais ou a reforma agrária são políticas públicas. – grifos no original.” Obviamente, a definição da política pública a ser seguida deve ficar a cargo da Administração Direta, por uma razão bem simples: o chefe do Poder Executivo foi democraticamente eleito justamente com a incumbência de definir as políticas públicas que o corpo administrativo irá concretizar, seguindo os ditames constitucionais. Em sendo definida a política pública pelo chefe do Poder Executivo, não cabe às agências, por mais autonomia que tenham, contrariar ou ignorar as diretrizes formuladas. Não haveria desenvolvimento social se o Poder Central se orientasse a partir da política pública “x” enquanto as autarquias entendessem que deveria ser seguida a política pública “y”. Ademais, repita-se que não cabe às agências reguladoras formularem política pública, mas tão somente política regulatória. Ocorre que o cumprimento da política pública não pode se transformar em indevido instrumento de ingerência política nas autarquias, em especial nas agências reguladoras. Não se deve esquecer que as agências foram criadas exatamente com o objetivo de serem centros especializados e autônomos imunes à ingerência política, com certa independência para a tomada de decisões técnicas, mormente em relação à política regulatória de determinado setor. Assim, o conceito de política pública não pode ser deturpado com a intenção de que o poder de controle/tutela seja transmudado para verdadeiro poder hierárquico a ser exercido pelo Poder Central em face da agência. Repita-se: não há hierarquia entre o Poder Central e as agências reguladoras. Há, tão-somente, poder de controle ou tutela. Destarte, afigura-se aparentemente lícito que as agências reguladoras tenham o dever de seguir as políticas públicas definidas pelo Poder Central, uma vez que os dirigentes das agências reguladoras não possuem a prerrogativa de definir as políticas públicas do país, sequer sendo democraticamente eleitos para tanto. Contudo, deve-se evitar o abuso por parte do Poder Central, no sentido de transformar o poder de tutela em verdadeiro poder hierárquico a ser exercido sobre a agência reguladora, inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro. Conclusão A Administração Pública Indireta consiste no conjunto de entes que prestam um serviço público ou de interesse público, possuidores de certa autonomia na concretização das finalidades legais para as quais foram criados. Como regra, a Administração Direta não exerce poder hierárquico em face da Administração Indireta, possuindo apenas a prerrogativa do poder de controle ou tutela. Nesse sentido, as agências reguladoras são consideradas autarquias sob regime especial, possuindo uma maior autonomia técnica na tomada das decisões administrativas que lhe incumbem. Logo, a Administração Direta não possui hierarquia sobre as agências reguladoras, apenas exercendo o poder de controle. Assim, percebe-se que não é cabível o chamado recurso hierárquico próprio interposto para o Poder Central em face das decisões proferidas pelas agências reguladoras, justamente pela falta de relação hierárquica entre ambos. Ocorre que, conforme o Parecer AGU AC-51/2006, houve a explicitação de três hipóteses nas quais se admitiram o cabimento do recurso hierárquico impróprio interposto em face das decisões das agências reguladoras para o respectivo Ministério, quais sejam, (1) decisões das agências referentes às suas atividades administrativas ou (2) que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou, ainda, (3) que violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração Direta. Insta salientar que não há previsão legal expressa para o cabimento do referido recurso. Todavia, o artigo 19 do Decreto-Lei nº 200/67 estabelece que todo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro do Estado competente. Segundo parte da doutrina, neste dispositivo legal reside a possibilidade genérica do poder de controle ou tutela exercido pelos Ministérios em face das agências reguladoras. A hipótese mais polêmica do cabimento do recurso hierárquico impróprio reside na possibilidade do Ministério admitir o cabimento do mencionado recurso quando a decisão da agência reguladora contrariar a política pública definida pelo Poder Central. Obviamente, compete ao Poder Central a definição da política pública, uma vez que o chefe do Poder Executivo foi democraticamente eleito para tanto, sendo que as agências devem harmonizar a política regulatória com a política pública traçada. Nesse sentido, as agências não possuem autonomia absoluta para contrariar, até mesmo, a política pública definida pelo Governo. Contudo, deve-se ter cautela para que tal hipótese não seja deturpada ao ponto do Poder Central passar a controlar e rever as decisões técnicas das agências reguladoras, afinal, elas foram criadas justamente para serem centros especializados, dotados de autonomia técnica para a matéria regulatória, imunes à eventual ingerência política. Não haveria sentido na criação das agências reguladoras se as decisões técnicas tomadas por esta pudessem ser constantemente modificadas pelo Poder Central. Assim, não se confundem o exercício do poder hierárquico e o exercício do poder de controle ou tutela da Administração Direta em relação às agências reguladoras, em que pese o fato de que, no mundo fenomênico, muitas vezes seja difícil diferenciar com clareza os institutos.
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A aquisição de passagens aéreas por meio do credenciamento de companhias áreas: um modo racional de contratação
O presente trabalho pretende abordar a nova metodologia de aquisição de passagens aéreas pela Administração Pública por meio do credenciamento de companhias aéreas. O estudo apresenta, ainda, o histórico das principais metodologias de aquisição de passagens aéreas, além dos entendimentos do TCU, AGU e MPOG sobre o assunto.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A quase totalidade dos órgãos e entidades da Adminstração Pública necessita da constante aquisição de passagens aéreas para os mais diversos fins. Por essa razão, há, inclusive precedentes do Tribunal de Contas da União no sentido de considerar a emissão de bilhetes aéreos como serviços continuados, à luz das especificadade do órgão ou entidade em questão. São as mais diversas finalidades que ensejam o acionamento desse tipo de serviço, como a participação de servidores em cursos e outros eventos de capacitação, o deslocamento de autoridade para reuniões e outros eventos institucionais fora da sede do órgão ou mesmo a realização de atividades técnicas e/ou finalísticas em sedes descentralizadas da mesma instituição. Por essas razões, a discussão em torno da forma como a Administração adquire as passagens aéreas voltadas a essa finalidade é matéria de suma relevância para o cotidiano de gestores e demais agentes públicos. Recentes modificações no mercado em questão foram determinantes para o surgimento de interessante celeuma, especialmente, em torno da metodologia a ser adotada nas contratações que visam a suprir as necessidade da Administração em termo de serviços de transportes aéreos. 1. AS PRINCIPAIS METODOLOGIAS DE AQUISIÇÃO DE PASSAGENS AÉREAS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Até bem pouco tempo, quase todos os órgãos e entidades que integram a Administração Pública costumavam firmar contratos com agências de viagens ou empresas de turismo para a intermediação dos serviços de emissão de bilhetes aéreos. Os preços cobrados por esses agentes privados eram os mesmos que as companhias aéreas (TAM, Gol, Azul, Avianca etc.) exigiam em seus sítios eletrônicos ou lojas oficiais. A remuneração das agências de viagens se dava mediante as comissões a elas pagas pelas companhias aéreas sobre o valor do bilhete emitido. Nesse sentido, o critério de ajudicação nos certames licitatórios voltados à futura contratação das agências de vaigens costumava consistir no: A) maior deSconto sobre a comissão paga à agência pela companhia AÉREA, QUE CORRESPONDIA A UM PERCENTUAL DO BILHETE CHEIO. Para a Administração, tratava-se de medida, em tese, vantajosa, pois ela acabava se beneficando com o deságio sobre o valor do bilhete referente a esse desconto. Por outro lado, na prática, constatava-se a ausência de diligência das agências de viagens contratadas em buscar as melhores tarifas dos bilhetes, uma vez que sua comissão se dava sobre os respectivos valores. Recentes alterações no mercado de passagens aéreas impuseram a imperiosa necessidade de adaptação à Administração Pública. É que as companhias aéras, a partir de 2013, deixaram de pagar às agências de viagens as comissões que, no final das contas, eram a sua remuneração na metodologia que os órgãos públicos costumavam adotar. Trata-se de medida que as companhias aéreas, a propósito, há muito adotavam no mercado privado. Por isso, não restou outra alternativa, por ora, à Administração, nos casos em que pretendesse contratar agências de viagens para a emissão permanente de passagens, senão passar a remunerá-las mediante o: B) PAGAMENTO DE TAXA DE ADMINISTRAÇÃO (NORMALMENTE UM PERCENTUAL), COBRADA A MAIS, SOBRE O VALOR DO BILHETE EMITIDO.   Aquilo que era, pois, aparentemente, vantajoso para a Administração, passou a ser manifestamente antieconômico. O propósito, pois, do presente trabalho reside em demonstrar que há uma alternativa a esse dois modelos, os quais se revelam impraticáveis: o primeiro, porque inviável do ponto de vista prático e o segundo porque irracional e antieconômico. 2. HISTÓRICO DAS ALTERAÇÕES NORMATIVAS E JURISPRUDENCIAIS A RESPEITO DO TEMA. Diante das significativas modificações mercadológicas já introduzidas no tópico supra, a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento editou sucessivos normativos com vistas a disciplinar a nova sistemática de contratação de passagens aéreas, tendo em vista que a própria jurisprudência do TCU foi oscilante a respeito do tema. O quadro sinótico a seguir enumera os normativos e decisões editados a respeito da questão: Toda a celeuma instaurada em torno do tema teve início com a já citada mudança no mercado de passagens aéreas, ocorrida a partir da deliberação das companhias aéreas no sentido de não mais pagar às agências de viagens parcela dos valores das passagens adquiridas a título de comissão. Trata-se de postura que já existia no mercado particular que se estendeu para a aquisição em favor de órgãos públicos. Isso inviabilizou a manutenção do critério que anteriormente se adotava nos certames licitatórios, que optavam pela adjudicação conforme o maior desconto sobre a comissão paga pelas companhias aéreas. A IN 07 SLTI teve por objetivo adequar as contratações públicas a essa nova realidade. Assim, instituiu-se, como novo critério de adjudicação o “menor valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens” (art. 2º, §1º). Em sede de cautelar, o TCU chegou a suspender os efeitos da referida IN em virtude de representação apresentada pela Associação Brasileira de Agências de Viagens – ABAV. Sem embargo, no acórdão 1973/2013-13, o Plenário do tribunal voltou atrás e, após acolher as ponderações da Secretaria de Controle Externo – SECEX que instruiu o feito, findou por compreender que a IN 07 não consistiu em uma opção da Administração, mas sim em uma necessidade, sob pena de se inviabilizarem todas as contratações vindouras. Assim, a disciplina da IN 07/2012 SLTI/MPOG encontra-se em pleno vigor, de modo que a metodologia de contratação por ela recomendada se delinea a partir do que dispõem seus arts. 2º a 4º, verbis: “Art. 2º Por se tratar de serviço comum, a licitação será realizada, preferencialmente, na modalidade pregão, em sua forma eletrônica.  § 1º A licitação deverá utilizar o critério de julgamento menor preço, apurado pelo menor valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens.  § 2º Agenciamento de Viagens compreende a emissão, remarcação e cancelamento de passagem aérea pela agência de viagens.  § 3º Passagem aérea, a que se refere o § 2º deste artigo, compreende o trecho de ida e o trecho de volta ou somente um dos trechos, nos casos em que isto represente toda a contratação.  § 4º Trecho, a que se refere o § 3º deste artigo, compreende todo o percurso entre a origem e o destino, independentemente de existirem conexões ou serem utilizadas mais de uma companhia aérea.  § 5º O valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens deverá ser único, independentemente de se tratar de passagem aérea nacional ou internacional. Art. 3º Além do serviço de Agenciamento de Viagens, o instrumento convocatório poderá prever, justificadamente, outros serviços correlatos. § 1º A remuneração pela prestação dos serviços dispostos no caput será calculada por um percentual incidente sobre o valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens, devida a cada utilização, e definido pelo órgão ou entidade no instrumento convocatório. § 2º É permitida a adoção de um percentual próprio para cada serviço indicado no instrumento convocatório. Art. 4º A remuneração total a ser paga à agência de viagens será apurada a partir da soma dos seguintes valores: I – valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens multiplicado pela quantidade de passagens emitidas no período faturado; e II – valores decorrentes da incidência dos percentuais sobre o valor de Agenciamento de Viagens definidos para a prestação dos serviços correlatos, multiplicado pela quantidade destes serviços efetivamente realizados.” (GRIFOS NOSSOS) 3. A IRRACIONALIDADE E A ANTIECONOMICIDADE DO REGIME DE PAGAMENTO DE TAXA DE ADMINISTRAÇÃO ÀS AGÊNCIAS DE VIAGENS Não é necessário nenhuma genialidade para deduzir que o regime proposto pela IN 07/2012 para a emissão de bilhetes aéreos é manifestamente antieconômico para a Administração. É que, atualmente, os órgãos e entidades pagam, sobre o valor do bilhete cheio, um percentual, para a agência de viagens, pago a título de taxa de administração (serviço de agenciamento nos termos da IN).  O artigo 15, III, da Lei 8.666/93, estabelece que “As compras, sempre que possível, deverão submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado”. A lógica de tal dispositivo é de simples dedução: como, no mercado privado, os agentes econômicos atuam, via de regra, com vsitas à obtenção de lucro, é de sua natureza, buscar as condições de contratção que alcancem o melhor custo-benefício. Não há, pois, racionalidade alguma em impor à Administração a obrigatoriedade de contratação de um agente intermediário para a emissão de bilhetes aéreos, mediante o pagamento de taxa adicional de administração, quando as passagens podem ser facilmente adquiridas diretamente junto às companhias por intermédio, por exemplo, de seus sítios eletrônicos. Trata-se do mecanismo adotado por toda a iniciativa privada, o qual, por ser-lhe manifestamente vantajoso, deve por ela ser adotado. 4. O CREDENCIAMENTO DIRETO DAS COMPANHIAS AÉREAS: UMA SOLUÇÃO INEVITÁVEL. No tópico 02 supra, antecipou-se o objetivo do presente estudo no sentido de propor uma alternativa às metodologias de  contratação até então majoritariamente adotadas pela Administração. Pois bem, essa alternativa reside na contratação, mediante credenciamento, das próprias companhias aéreas atuantes em território nacional, a fim de ver atendidas as necessidades do setor público. O credenciamento é uma forma de contratação direta por inexigibilidade de licitação, com base no art. 25, caput, da Lei 8.666/93. Por meio desse mecanismo, os órgãos e entidades contratam o maior número possível e quiçá todos os agentes econômicos que atuam em determinados mercado. Por isso, a concorrência restaria prejudicada, na medida em que, inviável diante da amplitude do interesse da Administração. Trata-se, por exemplo, de mecanismo amplamente adotado na contratação de médicos, laboratórios, clínicas, hospitais e etc., pelos órgãos públicos que dispõem de planos de autogestão em saúde. In casu, a ideia seria contratar tantas quantas fossem as companhias áreas disponíveis no mercado (TAM, Gol, Azul, Avianca e outras companhias de caráter regional), mediante o credenciamento, para que os bolhetes aéreos pudessem ser junto a ela diretamente emitidos, por meio dos seus mecanismos usuais (sítio eletrônico, lojas autorizadas etc.), fugindo-se, assim, do custo extra e desnecessário consistente no pagamento de taxas de administração às agências de viagens. No acórdão 351/2010, Plenário, o TCU delineia os requisitos básicos para a contratação direta por inexigilibilidade por meio do credenciamento: a) a contratação de todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições fixadas pela Administração, não havendo relação de exclusão; b) a garantia da igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido; c) a demonstração inequívoca de que as necessidades da Administração somente poderão ser atendidas dessa forma, cabendo a devida observância das exigências do art. 26 da Lei 8.666/93, principalmente no que concerne à justificativa de preços. A esses requisitos, acrescenta-se a necessidade de que o órgão ou entidade, por meio de sua instância competente, discipline o uso dos contratos fruto do credenciamento. No caso da emissão de bilhetes aéreos, o regulamento interno deverá, fatalmente, prever a necessidade de consulta prévia aos sítios das companhias que oferecem o trecho de viagem pretendido, para que a Administração, necessariamente, adquira o bilhete mais barato entre aqueles viáveis para o atendimento de sua necessidade em questão. 5. O ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, DA ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO E DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Diante de todas as ponderações acima tecidas, não é de se surpreender que diversas de nossas instâncias administrativas e jurisdicionais tenham levantado a necessidade ou a possibilidade de que a Administração adote o mecanismo de credenciamento das companhias aéreas para a aquisição de bilhetes aéreos. O próprio TCU, no acórdão  1973-13, Plenário, recomendou, expressamente, a análise a respeito da possibilidade de contratação direta das companhias aéreas por meio de seu credenciamento:
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Reflexões introdutórias sobre o regime, em âmbito federal, dos termos de cooperação e sobre sua nova designação como termos de execução descentralizada
O presente trabalho reflete sobre o regime dos termos de cooperação, com ênfase em sua nova designação como termos de execução descentralizada e na diversificação de suas hipóteses de cabimento.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A doutrina administrativista ostenta pontuais trabalhos que têm por objeto a análise dos acordos celebrados entre entes ou órgãos de uma mesma esfera federativa. A origem da dita escassez de trabalhos doutrinários provavelmente reside na carência de disciplina normativa a respeito do tema, o que gera sérias dificuldades aos gestores e aplicadores das normas administrativas quando confrontados com a necessidade de celebração de tais ajustes, especialmente quando demandam o repasse de recursos, fator que requer sua maior cautela. Recente inovação normativa, porém, pretende reverter esse vácuo regulatório no que diz respeito a esse tipo de troca de experiências entre órgãos e entes da Administração Pública Federal. O presente artigo objetiva, pois, de maneira introdutória, delinear a evolução da disciplina normativa dos Termos de Cooperação até a sua atual configuração, bem assim, discorrer sobre suas atuais hipóteses de cabimento. 1. A EVOLUÇÃO DA DISCIPLINA NORMATIVA DOS ACORDOS FIRMADOS ENTRE ENTES INTEGRANTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA  FEDERAL A Lei 8.666/93 é o diploma normativo que, por excelência, regula os ajustes em que figurem como parte, em pelo menos um de seus polos, órgãos e entidades da Administração Pública. Embora suas normas estejam, essencialmente, voltadas à disciplina dos contratos e licitações, a referida lei reserva lugar, ainda que discreto, aos acordos sem natureza contratual, nos quais haja interesses comuns entre suas partes. A matéria, porém, na referida lei, se resume, essencialmente, ao disposto no caput e no §1º de seu art. 116, verbis: “Art. 116.  Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. § 1º A celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos ou entidades da Administração Pública depende de prévia aprovação de competente plano de trabalho proposto pela organização interessada, o qual deverá conter, no mínimo, as seguintes informações: I – identificação do objeto a ser executado; II – metas a serem atingidas; III – etapas ou fases de execução; IV – plano de aplicação dos recursos financeiros; V – cronograma de desembolso; VI – previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão das etapas ou fases programadas; VII – se o ajuste compreender obra ou serviço de engenharia, comprovação de que os recursos próprios para complementar a execução do objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento recair sobre a entidade ou órgão descentralizador (…)”. A aplicação da Lei 8.666 aos acordos celebrados entre entes da Administração é, pois, subsidiária, na medida em que o comando legal acima reproduzido afirma que sua incidência em tais espécies de ajuste se dará apenas “no que couber”. Os convênios e acordos de cooperação encontram, então, sua disciplina mais específica no Decreto nº 6.170/07, que tem por objeto dispor sobre “as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse”. O referido decreto teve seus termos regulamentados por meio da Portaria Interministerial 507/2011/MPOG/MF/CGU, a qual esmiuça os requisitos e procedimentos relativos aos “contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos”. Em 30 de dezembro de 2013, foi editado o Decreto nº 8.180, o qual alterou, sensivelmente, uma série de disposições do já citado decreto nº 6.170. O objetivo de tais inovações normativas foi, manifestamente, conferir mais precisa disciplina aos acordos, com repasses de recursos, firmados entre entes que integram a Administração Pública Federal. O novel decreto suprimiu a designação “termo de cooperação” e a substituiu pela expressão “termo de execução descentralizada”, à qual, conferiu o seguinte significado: “instrumento por meio do qual é ajustada a descentralização de crédito entre órgãos e/ou entidades integrantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, para execução de ações de interesse da unidade orçamentária descentralizadora e consecução do objeto previsto no programa de trabalho, respeitada fielmente a classificação funcional programática.”[1] Trata-se de inovação que, embora interessante porque capaz de corrigir o equívoco semântico da regulamentação anterior, mantém, em essência, a natureza dos antigos termos de cooperação. Diz-se isso porque o caráter de instrumento de descentralização de crédito orçamentário dos até então designados termos de cooperação já decorria daquilo que dispõe um terceiro regulamento presidencial, o Decreto nº 825/1993, que “estabelece normas para a programação e execução orçamentária e financeira dos orçamentos fiscal e da seguridade social, aprova quadro de cotas trimestrais de despesa para o Poder Executivo”. Nesse sentido, o Decreto 825/93 dispõe, em seu capítulo II, o que segue: “Art. 2° A execução orçamentária poderá processar-se mediante a descentralização de créditos entre unidades gestoras de um mesmo órgão/ministério ou entidade integrantes dos orçamentos fiscal e da seguridade social, designando-se este procedimento de descentralização interna. Parágrafo único. A descentralização entre unidades gestoras de órgão/ministério ou entidade de estruturas diferentes, designar-se-á descentralização externa. Art. 3° As dotações descentralizadas serão empregadas obrigatória e integralmente na consecução do objeto previsto pelo programa de trabalho pertinente, respeitada fielmente a classificação funcional programática. Art. 4° As empresas públicas federais que não integrarem os orçamentos fiscal e da seguridade social, mas que executarem as atividades de agente financeiro governamental, poderão receber créditos em descentralização, para viabilizar a consecução de objetivos previstos na lei orçamentária. § 1° Quando a execução dos programas de trabalho for confiada a entidade ou órgão gestor de créditos integrantes dos orçamentos fiscal e da seguridade social da União, será adotado o critério de descentralização, conforme disciplinado neste decreto. § 2° Aplicam-se às entidades referidas neste artigo, no tocante à execução dos créditos descentralizados, as disposições da Lei n° 4.320, de 17 de março de 1964, as deste decreto e demais normas pertinentes à administração orçamentário-financeira do Governo Federal.” Já a Portaria Interministerial nº 507/2011, que tem por objeto regulamentar o Decreto 6.170/07, ainda não sofreu os influxos da novel disciplina do decreto 8.180/2013. De qualquer sorte, pode-se dizer que seu propósito essencial sempre foi reger os convênios, em especial aqueles entre entidades de esferas federativas distintas. A disciplina por ela estabelecida para os termos de cooperação foi ligeira e subsidiária. Nesse sentido, o seu art. 89: “Art. 89. Os termos de cooperação serão regulados na forma do art. 18 do  Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007. Parágrafo único. Os Secretários-Executivos dos Ministérios da Fazenda, do  Planejamento, Orçamento e Gestão e da Controladoria- Geral da União,  aprovarão em ato conjunto, minuta-padrão do termo de cooperação, a fim de orientar os órgãos e entidades envolvidos na celebração deste instrumento, enquanto não for regulamentado.” Por fim, a minuta padrão citada no parágrafo único acima reproduzido foi aprovada por intermédio da Portaria Conjunta 08/2012/MPOG/MF/CGU, a qual não trouxe nenhuma novidade em matéria de disciplina dos, então, termos de cooperação, além de instituir o modelo padrão de seu instrumento. O modelo, a propósito, estabelecido pela referida portaria é tão simples quanto todo o conteúdo do dito normativo. Veja-se-o: Assim, resta, por ora, aguardar a regulamentação interministerial a respeito dos novos “termos de execução descentralizada”, a qual deverá substituir ou atualizar o que dizem as Portarias 507/2011 e 02/2008, à luz das alterações promovidas no Decreto 6170/2007 pelo Decreto 8.180/2013. 2. ATUAIS HIPÓTESES DE CABIMENTO DOS TERMOS DE COOPERAÇÃO/TERMOS DE EXECUÇÃO DESCENTRALIZADA. Os convênios e termos de cooperação (atuais termos de execução descentralizada) guardam entre si uma característica comum: a necessidade de que as entidades envolvidas tenham interesses igualmente comuns na consecução de seu objeto. À luz de tal característica, o TCU tem sempre exigido que a entidade recebedora do crédito tenha condições de executar o objeto do termo e que este seja condizente com suas atribuições estatutárias e regimentais. Veja-se: Acórdão TCU nº 1771/2009  – Plenário “9.2.2. avalie, previamente, na hipótese de descentralização de créditos, se a entidade a ser beneficiada tem, nas suas atribuições estatutárias ou regimentais, compatibilidade com o objeto pretendido, de modo a evitar transferência de crédito como a pretendida na Nota de Crédito 2007NC000015, emitida pela Embratur em 26/12/2007, em observância aos princípios constitucionais da legalidade e da eficiência;” (grifamos) Neste aspecto, o Decreto  6.170/93, por meio de seu art. 12-A,  com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto 8.180/2013, traz interessante elucidação dos propósitos a que se destinam os termos de execução descentralizada (antigos termos de cooperação). Veja-se: “Art. 12-A.  A celebração de termo de execução descentralizada atenderá à execução da descrição da ação orçamentária prevista no programa de trabalho e poderá ter as seguintes finalidades:  (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) I – execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco, em regime de mútua colaboração;  (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) II – realização de atividades específicas pela unidade descentralizada em benefício da unidade descentralizadora dos recursos;  (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) III – execução de ações que se encontram organizadas em sistema e que são coordenadas e supervisionadas por um órgão central; ou  (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) IV – ressarcimento de despesas. (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) § 1º A celebração de termo de execução descentralizada nas hipóteses dos incisos I a III do caput configura delegação de competência para a unidade descentralizada promover a execução de programas, atividades ou ações previstas no orçamento da unidade descentralizadora. (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013) § 2º Para os casos de ressarcimento de despesas entre órgãos ou entidades da administração pública federal, poderá ser dispensada a formalização de termo de execução descentralizada. (Incluído pelo Decreto nº 8.180, de 2013).” O que há de mais interessante na disciplina instituída nos dispositivos acima reproduzidos é a ampliação das hipóteses de cabimento de termos de execução descentralizada em relação ao que antes se tinha por cabível para os termos de cooperação. Nesse sentido, a antiga redação do art. 1º do Decreto 6.170 restringia os termos de cooperação às hipóteses “de interesse recíproco”, as quais, atualmente, são somente um dos casos que admitem o referido ajuste. 3. QUADRO RESUMO DOS NORMATIVOS SOBRE OS TERMOS DE EXECUÇÃO DESCENTRALIZADA/ TERMOS DE COOPERAÇÃO   CONCLUSÃO Atualmente, o instrumento utilizado para a celebração de acordos entre entes ou órgãos distintos na Administração Pública Federal que envolvam a transferência de recursos são os Termos de Execução Descentralizada. Tais termos não só substituíram os antigos Termos de Cooperação em sua nomenclatura, como também passaram a dispor de um maior número de hipóteses de cabimento, não mais se restringindo aos casos em que caracterizado o “interesse recíproco” entre as unidades administrativas nele envolvidas. Os Termos de Execução Descentralizada são, essencialmente, regulados pelo Decreto 6.170/07, com a redação que lhe conferiu o Decreto 8.180/2013 e devem, no que for cabível, observar, até a edição de nova regulamentação interministerial, as exigências contidas na Portaria Interministerial 507/2011 e a minuta padrão estabelecida na Portaria Conjunta 08/2012.
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As ações cautelares na Lei de Improbidade Administrativa
O presente artigo visa analisar e discutir a efetividade e utilidade acerca das técnicas de tutela eficazes previstas na lei de improbidade administrativa no ordenamento jurídico brasileiro, as ações cautelares, destacando cada uma delas presente na Lei n° 8.429/1992, com o fito de alcançar a virtuosa probidade na administração pública no Brasil. Desde modo, sendo necessário abordar de forma aprofundada, pontualmente descrever cada medida cautelar da lei de improbidade administrativa, proferir os posicionamentos atuais acerca do tema, bem como a doutrina nacional especializada e jurisprudência dos tribunais pátrios, e, além disso, ter como parâmetro, essencialmente, o Código de Processo Civil Brasileiro a fim de buscar a definição, natureza jurídica e princípios norteadores das ações cautelares. A Lei n° 8.429/1992 consagrou, nos arts. 7º, 16 e 20, três medidas cautelares, compreende-se em: a indisponibilidade; o sequestro de bens; e o afastamento cautelar do agente público. Ademais, espera-se galgar a compreensão limpa e didática acerca do tema, como as especialidades de cada medida cautelar dentro da lei de improbidade administrativa, bem como as suas respectivas consequências jurídicas no direito administrativo brasileiro.[1]
Direito Administrativo
Introdução Este artigo trata das ações cautelares na Lei de improbidade administrativa, em que se analisam as três ações cautelares em espécie, quais sejam, a indisponibilidade de bens, o sequestro de bens e o afastamento cautelar do agente público, sob prisma de sua eficácia na repressão dos atos de improbidade de administrativa no Brasil. Para isso, foi realizada pesquisa bibliográfica envolvendo os principais doutrinadores que tratam deste tema. É conveniente esclarecer que a presente discussão acerca das ações cautelares contidas na Lei n° 8.429/1992, visa demonstrar o procedimento de cada ação cautelar em espécie e sua real repressão no combate dos atos de improbidade administrativa, protegendo o erário, garantindo-se o respeito aos princípios da administração pública e evitando o enriquecimento ilícito. A problemática da pesquisa foi caracterizada pela eficácia ou não das ações cautelares previstas na Lei n° 8.429/1992, como instrumento de combate aos atos de improbidade administrativa que assolam a sociedade brasileira, tendo como problema científico da pesquisa a seguinte indagação: As ações cautelares prevista na Lei de improbidade administrativa são instrumentos processuais eficazes na repressão ou prevenção no combate aos atos de improbidade administrativa no Brasil? Diante disso, elaborou-se a seguinte hipótese para esta pesquisa: As ações cautelares são medidas eficazes e necessárias no combate aos atos de improbidade administrativa nos tempos hodiernos; quais suas respectivas características e cabimento. A tutela cautelar é um direito do Estado, imprescindível para que própria jurisdição garanta a seriedade e utilidade de seu fim. O objetivo geral desta pesquisa configura-se em: Pesquisar as ações cautelares em espécie previstas na Lei n° 8.429/1992, e seus respectivos procedimentos, tendo como os objetivos específicos: a) Descrever sobre a ação cautelar; b) Descrever sobre a Lei de improbidade; c) Analisar as ações cautelares previstas na lei de improbidade administrativa e sua eficácia.    O método científico da pesquisa foi bibliográfico, já que ela se desenvolveu com base em material já elaborado, constituído de livros e artigos científicos, tendo como enfoque epistemológico hermenêutico, de abordagem qualitativa, de aspecto temporal sincrônico. Deste modo, houve necessidade de se averiguar as variáveis norteadoras deste processo, constituídas pelos arcabouços legais, compreendendo as normas da CRFB, de 1988, da Lei n° 8.429/1992, e a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973. A delimitação do espaço temporal da pesquisa compreende o período de agosto de 2014 a outubro de 2014, totalizando três meses de pesquisa bibliográfica. As fontes primárias de coleta de dados elaborados pela própria pesquisadora em face de seu estágio no Ministério Público Federal. As fontes secundárias de informação representam todo o acervo bibliográfico diagnosticado por meio do levantamento bibliográfico da pesquisa exploratória: livros, periódicos científicos, artigos científicos, doutrinas, dentre outros. As fontes terciárias de informação tratam da participação da pesquisadora em eventos esporádicos: aulas no curso de graduação em Direito da Estácio – SEAMA, audiências públicas, palestras, reuniões, congressos, seminários, workshops, dentre outros que contribuíram para a construção deste artigo. A partir do levantamento bibliográfico fez-se uma listagem dos fundamentos teóricos da pesquisa, com o fim de realizar o fichamento bibliográfico das citações, além das leituras propedêuticas dos pressupostos teóricos e jurídicos que subsidiaram a elaboração do corpus do referencial teórico do presente trabalho. O fundamento teórico deste artigo referente as ações cautelares na Lei de Improbidade Administrativa compreenderam as listagens bibliográficas fichadas para esta pesquisa. Foram utilizados aportes teóricos referentes à metodologia adotada neste trabalho, além de sua normalização técnica obedecer às regras emanadas pela Revista especializada Âmbito Jurídico. Convém enfatizar que este artigo está divida em cinco (3) partes: A primeira parte versa sobre ações cautelares, conceitos, natureza jurídica e princípios. A segunda parte foi dedicada à discussão teórica da Lei de improbidade administrativa e breve histórico. A terceira parte constituiu a análise das ações cautelares na lei de improbidade administrativa em espécies, indisponibilidade de bens, sequestro de bens, o afastamento cautelar do agente público e análise das suas eficácia. Nas considerações finais do artigo foram discutidas as problemáticas contidas nas ações cautelares estudadas, em especial quanto a sua eficácia na repressão e prevenção dos atos de improbidade administrativa. Metodologia A construção do artigo científico foi realizada mediante a observação e identificação dos fatos, efeitos e consequências relacionadas ao tema do artigo, ensejando na análise e discussão acerca das tutelas técnicas prevista na Lei n° 8.429/92. A abordagem utilizada na pesquisa foi qualitativa, face aos objetivos traçados para a elaboração do artigo, também foi utilizada pesquisa descritiva, mediante análise documental e bibliográfica através de: periódicos, revistas, artigos, livros, documentos públicos, legislação e jurisprudência nacional, adequados à finalidade do artigo científico. A análise realizada foi documental e bibliográfica em razão da necessidade de se consultar as diversas fontes existentes a instrumentalizar a pesquisa, extraindo-se diversas informações e diferentes conhecimentos. Foi utilizada ainda, a pesquisa bibliográfica, que proporcionou análise e conhecimento das contribuições científicas do passado e presente existentes sobre um determinado assunto, fazendo a explanação completa para o desenvolvimento deste artigo científico. A linha de abordagem adotada para feitura deste artigo científico foi a de direito administrativo, com enfoque nas ações cautelares previstos na lei específica n° 8.429/92, que trata sobre improbidade administrativa no Brasil. O artigo científico foi realizado por meio de uma ampla revisão bibiográfica dos conceitos jurídico-teóricos das obras dos principais autores que abordam os temas: processo cautelar, requisitos e características, improbidade administrativa, sua conceituação, natureza jurídica e as medidas cautelares em espécies prevista na Lei n° 8.429/92. Diante do que foi exposto, alguns recortes metodológicos foram necessários no que se refere à pesquisa jurisprudencial, no intuito de viabilizar a obtenção de resultados atualizados e em caráter exaustivo. Inicialmente, em relação aos tribunais pátrios a serem considerados na pesquisa, uma vez que a temática proposta envolve todos os entes da Federação. 1.Ação cautelar  No direito brasileiro, o Código de Processo Civil adotou a tripartição da atividade jurisdicional em funções distintas, a saber, o conhecimento, a execução e a cautelar. Na atual sistemática, o processo cautelar, ganhou especial autonomia como meio de prestação jurisdicional, superando o antigo entendimento de que era um processo acessório. Encontra sua previsão legal no Art. 796, livro III do CPC, um título único, “Das Medidas Cautelares”, dividido em dois capítulos, o capítulo 1 trata das disposições gerais, e o capítulo 2, dos procedimentos cautelares específicos. É certo que muitas vezes a morosidade processual torna o provimento jurisdicional ineficaz e sem valia. Nesse sentido, a tutela cautelar é o remédio processual que pode amenizar a morosidade processual, garantindo a sua efetividade. Apresenta finalidade estritamente assecuratória, acautelatória, resguardando resguardar e satisfazer uma pretensão, até o deslinde do processo principal. Vejamos agora a sua definição. 1.2.Conceito  O processo cautelar é um meio de garantia efetividade da tutela satisfativa de outro processo. Nesse sentido, Donizetti, (2010, p. 1083) ensina: “Ação cautelar é o direito subjetivo da parte de invocar a tutela jurisdicional do Estado no sentido de garantir a efetividade de um processo (de conhecimento ou de execução) em curso ou a ser instaurado. Processo cautelar é o instrumento, o método, pelo qual vai atuar a jurisdição. Finalmente, medida cautelar é o provimento jurisdicional, dado em resposta ao pedido imediato formulado pelo requerente.” O procedimento cautelar apresenta dependência ao processo principal, podendo ser instaurado antes ou no curso deste, mas não podendo ser instaurado sem o principal, conservando-se a autonomia de ambos. Assim, após a devida conceituação, destaca-se que o processo cautelar pode ser definido em duas espécies. Senão vejamos: 1.3.Natureza das espécies das ações cautelares  O Código de Processo Civil, elenca no art. 813 e seguintes as chamadas medias cautelares especificas, bem como no art. 798, o poder geral de cautela. Assim, na chamada medida cautelar específica, também chamada de tipificada ou nominada, existe certa taxatividade, pois sempre que houver previsão de medida cautelar especifica (arresto, sequestro, busca e apreensão), não se pode postular provimento diverso do previsto no CPC. No entanto, caso não haja medida cautelar específica, pode-se invocar o poder geral de cautela do juiz, atendo situações novas diversas das previstas no CPC. Em síntese, as medidas cautelares são classificadas em típicas e atípicas, ou nominadas e inominadas. O primeiro grupo estão expressamente previstos no Código, já as inominadas não estão previstas, podem ser criadas ou condida pelo uso do poder geral de cautela do juiz. Para melhor compreensão das medidas cautelares vejamos os seus requisitos legais. 1.4.Requisitos da medida cautelar  Em primeiro aspecto, observa-se as condições gerais da ação (possibilidade jurídica do pedido, legitimidade da parte e o interesse de agir), somando-se em segundo plano dois requisitos próprios das medidas cautelares, quais sejam o fumus boni iuris e o periculum in mora. O fumus boni iuris é a fumaça do bom direito, define-se como sendo a probabilidade da existência do direito para a concessão da medida, devendo demonstrar também a titularidade do direito material. Já o periculum in mora, perigo da demora, é o fundado receio de um dano irreparável ou de difícil reparação acerca do direito postulado, demonstrando o perigo da lesão. Em relação à natureza dos requisitos de concessão cautelar a doutrina majoritária defende que constitui o próprio mérito da ação cautelar. Nesse sentido, posiciona-se Donizetti, (2010, p. 1087) “A meu ver a mais razoável, julgar o mérito da ação cautelar é reconhecer a existência da fumaça do bom direito e do perigo da demora”. De mais, para melhor compreensão das medidas cautelares devemos conhecer as suas principais caraterísticas. Vejamos. 1.5.Características das medidas cautelares  As medidas cautelares apresentam características próprias, que as diferenciam de todos do procedimento de conhecimento e executório. As principais características são: instrumentalidade, provisoriedade, revogabilidade, autonomia, modificabilidade e fungibilidade. Nesse sentido, vejamos as lições de Donizetti, acerca do presente tema (2010, p. 1087-1091): “a) Instrumentalidade: conforme já salientamos, o processo cautelar tem por escopo garantir a efetividade do processo principal, daí seu caráter instrumental; b) provisoriedade: Toda medida cautelar é provisória, não se reveste de caráter definitivo, ou seja, tem duração limitada no tempo, produzindo efeitos até que desapareça a situação de perigo, ou até a superveniência do provimento principal… c) revogabilidade: por se tratar de provimento emergencial de segurança, concedida com base em cognição sumária, a medida cautelar é revogável…d) autonomia: conquanto dependente no plano da existência do processo principal, a medida cautelar goza de autonomia técnica com relação àquele. e) modificabilidade: pelas mesmas razões que possibilitam a revogação da medida cautelar, possível também será sua modificação, a qualquer tempo…f) fungibilidade: ,,,“a medida cautelar poderá ser substituída, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pela prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido, sempre que adequada e suficiente para evitar a lesão ou repará-la integralmente.” Destarte, feitas as presentes considerações acerca das ações cautelares, estas servirão de base para a compreensão das medidas cautelas previstas na Lei da Improbidade administrativa, conforme o tema proposto neste artigo. Assim, vejamos agora os principais aspectos da lei de improbidade administrativa. 2.Lei de improbidade administrativa  As ações cautelares prevista na lei de improbidade administrativa, visam combater o enriquecimento ilícito e o prejuízo ao erário, de forma preventiva e repressiva. A Lei nº 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA), apresenta o rol dos atos que configuram improbidade administrativa, bem como rol especifico de ações cautelares que visam proteger a Administração Pública. Assim, vamos conceituar a improbidade administrativa: 2.1. Conceito  Embora a doutrina brasileira não apresente uniformidade no conceito de improbidade administrativa, o capítulo II, da Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, apresenta como atos de improbidade administrativa, os que importam em enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário e atos que atentam contra os princípios da administração pública. Conceituando-se em atos que violam a moralidade pública, afronta os princípios da honestidade, dever de lealdade, boa-fé, entre outras que versam sobre a ética e a moral. Nesse sentido, o ilustre autor José Afonso da Silva (2005. p. 652) assim define “A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem […]”. Definindo o conceito de improbidade administrativa, vejamos a breve jornada histórica na legislação brasileira: 2.2.Breve histórico  A Lei de improbidade Administrativa também conhecida como “lei do colarinho branco”, foi resultado do projeto de Lei 1.446/91, que buscava dar maior eficácia material ao princípio da moralidade. Em sua acepção etimológica “o termo improbidade tem sua origem do latim – improbitate – e significa, desonestidade, falsidade, desonradez, corrupção”, (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 13). Dessa forma, a improbidade administrativa já teve previsão legal e constitucional, ao longo do seu passado normativo. Nesse sentido, a constituição do império, de 1824, previa a irresponsabilidade do imperador (art. 99), na constituição de 1891, o art. 54, previa condutas que configuravam crimes de responsabilidade do presidente da república, constituição de 1934, o art. 57, apresentava correspondência a constituição de 1891, na constituição de 1937, art. 85, “d' e art. 86 que definia o procedimento, já na constituição de 1946, no art. 89, V, (probidade da administração) e VII (guarda e o legal emprego do dinheiro público) e art. 141, §31, que previa o sequestro e o perdimento de bens, em caso de enriquecimento ilícito, no âmbito público. Todas as leis apresentavam eficácia limitada, (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 14-15). E mais, adveio a Lei. 3.1644/57, conhecida como lei Pitombo Godói-Ilha, trouxe o sequestro e perda em favor da Fazenda Pública, Lei. 3.502/58, conhecida como Lei Bilac Pinto, regulamentou o sequestro e o perdimento de bens nos casos de enriquecimento ilícito, Lei 4.717, regulamentou a ação popular, constituição de 1967, passou a prever atos contra a probidade administrativa como passiveis de enquadramento em crimes de responsabilidade, ato institucional 05/1968, ato institucional 14/69. (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 14-15). Por fim, na Constituição Federal de 1988, teve previsão no art. 14, §9º, art. 15,V, art. 37, §4º e art. 85, V. e finalmente a  Lei nº 8.429/92 Destarte, resta evidente a dificuldade no processo legislativo brasileiro em relação ao controle dos atos de improbidade administrativa, tendo sido uma longa caminhada para chegarmos aos modernos meios de repressão e prevenção aos atos ímprobos previstos na Lei nº 8.429/92. Após a análise histórica, vejamos a sua natureza jurídica. 2.3.Natureza jurídica  A doutrina e jurisprudência majoritária é pacífica no sentido de que os ato de improbidade administrativa são ilícitos de natureza cível, em sentido aberto ou extrapenal, logo, não apresentam caráter penal. Nesse sentido, a própria Constituição Federal se refere às penas derivadas da improbidade, sem descartar a ação penal cabível. Precedente jurisprudencial, STJ Rcl 2723/SP, j. 15.10.2008. Dessarte, vejamos os sujeitos envolvidos na apuração do ato de improbidade administrativa. 2.4.Sujeitos do ato de improbidade administrativa  Conforme estabelece a Lei 8.429/1992, os atos de improbidade só podem ser praticados por agente público, servidor ou não, em desfavor da administração direta ou indireta, no âmbito municipal, estadual e federal. 2.4.1Sujeito passivo  Pode-se definir o sujeito passivo como sendo o sujeito imediato, ou seja, aquele prejudicado pelo ato ímprobo. Nesse sentido, CRISTINA e PAVIONE (2014, p.21), elencam como sujeito passivo: “a) administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes dos entes da federação. Portanto, empresas públicas ou sociedades de economia mista podem ser sujeitos passivos, a despeito de erem pessoas jurídicas de direito privado; b) entidade para cuja criação ou custeio o Estado haja concorrido ou concorra com mais de 50 % do patrimônio ou receita anual; c) entidade que recebem subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% do patrimonio ou receita anual, limitando-se, neste, casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.[..]” Agora, vejamos quem é considerado como sujeito ativo. 2.4.2Sujeito ativo  Em relação ao sujeito ativo, a lei de improbidade é bastante ampla, extensivo aos agentes públicos, servidores ou não, bem como particulares beneficiados. Importante destacar a classificação dos agentes públicos: Agentes políticos, servidores estatais, particulares em colaboração com o Estado (honoríficos, delegados e credenciados), (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 27-28). Dessa forma, definidos os sujeitos envolvidos no ato de improbidade administrativa, passemos a classificação de suas modalidades. 2.5.Modalidades  A lei de improbidade administrativa classifica os atos de improbidade administrativa em três modalidades, quais sejam, enriquecimento ilícito do ímprobo, prejuízo ao erário e violação aos princípios da administração pública. Urge asseverar que se trata de um rol exemplificativo, podendo a legislação extravagante  apresentarem outras condutas ímprobas, como por exemplo, no estatuto das cidades e lei das eleições. 2.5.1.Lesão ao patrimônio público  O patrimônio público apresenta amplo conceito, tendo como espécie o erário. Deve ser entendido da forma mais ampla possível. Nesse sentido, “patrimônio público o conjunto dos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 52). O art 5º, da lei de improbidade administrativa prevê “Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiros, dar-se-á o integral ressarcimento do dano” Não há presunção de lesão, para haver ressarcimento deve haver comprovação do prejuízo ao patrimônio público. Demais, vejamos as questões pertinentes ao enriquecimento ilícito. 2.5.2.Enriquecimento ilícito  Conforme o art. 11, da LIA, o enriquecimento ilícito ou enriquecimento sem causa, consiste em qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego do agente público. O art. 6º prevê “nos casos de enriquecimento ilícito, poderá o agente público ou terceiro beneficiário os bens ou valores acrecidos ao seu patrimônio”. Apresenta como requisitos “a) locupletamento de uma parte, b) empobrecimento de outra; c) falta de justa causa; d) nexo de causalidade”. (CRISTINA e PAVIONE. 2014. p. 56). 2.5.3.Ofensa aos princípios da administração pública  Os princípios são preceitos centrais de um sistema, servindo de base e ditando regras fundamentais que alcança diferentes ramos e normas, definindo racionalmente o sistema normativo, conferindo o objeto e sustentando sua interpretação harmoniosa, com eficácia jurídica e efetividade. Vislumbra-se que, a gravidade de se violar um princípio possui proporções maiores do que a transgressão uma norma. A desídia em relação ao princípio implica em grave ilegalidade, de acordo com o nível do princípio violado, pois significa ferir e ir de encontra com todo o sistema, como se ofendesse a sustentação da estrutura do ordenamento jurídico.               Na Constituição Federal de 1988, no art. 37, consagra os princípios da administração pública, quais sejam: Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. No entanto, este rol não é taxativo, possuindo vários princípios implícitos decorrentes destes. Como forma de dar efetividade proteção aos bens jurídicos tutelados pela Lei de improbidade administrativa, surge as ações cautelares na própria lei de improbidade administrativa, como instrumentos de prevenção e repressão ao ato improbo, visando, sobretudo a proteção do patrimônio público e da moralidade administrativa. 3.Ações cautelares na lei de improbidade administrativa  Uma das ferramentas mais relevantes no combate a improbidade administrativa e ressarcimento de dano ao patrimônio público é o processo cautelar na Lei 8.429/1992. Assim, demonstrado que o processo cautelar apresenta importante meio para implementação das medidas no âmbito do processo de improbidade, por intermédio de uma cognição sumária, garantindo eficácia ao provimento final, em face da demora da instrução processual e prestação jurisdicional. Nesse sentido, o processo cautelar, segundo Pacheco Alves (2008, p. 723, vai buscar fundamento no princípio da inafastabilidade da jurisdição). Importante ressaltar, que a concessão de qualquer medida cautelar tem como requisito o fumus boni iuris e periculum in mora, havendo, ainda a possibilidade da concessão inaudita altera pars. Nesta linha de raciocínio, os requisitos ao norte demonstrados, formam a tutela de urgência, todavia, a Lei n° 8.429/92 possui uma sistemática na qual a finalidade das tutelas cautelares possui a tutela de evidência. Neste sentido, a tutela de evidência visa prepondera casos em que há plausibilidade concreta do autor legitimado a requerer a tutela estar correto em suas alegações, com consequências de grande relevância social, de acordo com o poder geral de cautela do magistrado, possibilita a concessão da ação cautelar de forma provisória e imediata. Diferentemente, da tutela de urgência, preocupando-se, no entanto, em assegurar o objeto para que não seja alvo de danos e inutilidade pela morosidade na prestação jurisdicional. Além disso, é possível a adoção de medidas cautelares nos próprios autos ou de forma incidental em autuação apartada, podendo ser agravada, com prazo de 30 (trinta) dias a partir da efetivação da medida. 3.1. Ações cautelares em espécie previstas na lei n° 8.429/92  A Lei 8.429/1992 regula no art. 7°, 16° e 20° três instrumentos cautelares, quais seja, indisponibilidade de bens, sequestro de bens e afastamento do agente público, de mais, em que pese as presentes providências, trata-se de rol exemplificativo, aberto, medidas atípica que podem ser adotadas para real efetividade do processo. Ressaltando-se que, as medidas cautelares patrimoniais (indisponibilidade de bens e sequestro) não possuem o caráter de pena, o intento de punir, apenas de resguardar e dar eficiência a sentença a ser cumprida. Vejamos, agora, as medidas típicas em espécie. 3.1.1. Indisponibilidade de bens  O ressarcimento do dano deve ser eficiente. De acordo com o art. 10 da Lei n° 8.429/1992, a ocorrência da lesão ao erário, ou seja, ao patrimônio público acarreta na responsabilização do sujeito. Aplica-se, no presente caso, a regra do art. 591 do Código de Processo Civil, que profere que o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. A presente medida está consagrada no art. 7° da Lei de Improbidade Administrativa: “Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado”. Assim, a decretação da indisponibilidade de bens, visa alcançar a integral reparação do dano, buscando o status quo anterior. Nesse sentido, traduz na vedação de alienação de bens, materializando-se em diversas maneiras, quais sejam: registro da inalienabilidade imobiliária, bloqueio de contas e aplicações financeiras, a fim de que, no final da ação, haja a eficaz reparação integral ao dano. Desta forma, em relação aos bens imóveis a inalienabilidade é feita por ato judicial no registro do imóvel, não impedindo que o agente utilize sua posse, desde que não haja plausibilidade de dilapidação do bem. No que tange os bens móveis, não há vedação que o próprio requerido funcione como depositário, todavia, com a devida ressalva haja vista a possibilidade do desvio de bens. É certa que a indisponibilidade de bens é medida assecuratória para futuro ressarcimento ao erário. Nesse sentido, (PACHECO ALVES, 2008, p.750) “busca garantir futura execução por quantia certa (a reparação do dano material e moral, assemelhando-se ao arresto do CPC, que também pode recair sobre qualquer bem do devedor”. Nesse sentido, cabe salientar que esta medida cautelar é utilizada tanto para o ato ímprobo que acarreta enriquecimento ilícito, indisponibilizando o patrimônio adquirido de forma ilícita, bem como o dano ao erário, alcançando os bens até o valor do dano. Além disso, a distinção entre a indisponibilidade dos bens e o sequestro, haja vista que, a indisponibilidade abre mão da individualização dos bens pelo autor, alcançando a universabilidade de bens ou valores do patrimônio do réu, assim vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido, ressalta PACHECO ALVES e EMERSON GARCIA, 2008, p. 751: “daí a importância de indicação, pelo autor da ação de improbidade, de pelo menos uma estimativa do valor do dano causado (quantum debeatur) parâmetro a ser utilizado apenas como vista ao dimensionamento da indisponibilidade.” Ressalta-se ainda, que para a concessão da presente medida, faz-se necessário a presença do fumus boni iuris e periculum in mora, que, de modo geral, é presumido pelo art. 7° da Lei de Improbidade Administrativa. Nesse sentido, a Lei n° 8.429/92, dispensa a comprovação do perigo de dano, presumindo o risco, bem como outros diplomas legais, por exemplo, agente público condenado por ação popular, indisponibilidade de bens de ex-administradores de instituições financeiras em liquidação, entre outros. Desse enfoque, é de toda monta salientar que, a indisponibilidade de bens apresenta limitações, não podendo alcançar aqueles bens considerados como impenhoráveis na forma da lei (art. 649 do CPC), isso em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana. De mais, quando também restar caracterizado crime, após sentença penal passado em julgado, não poderá ser invocada a impenhorabilidade do bem de família (art. 3°, VI da Lei n° 8.009/90). Urge asseverar, a possibilidade da oposição de embargos de terceiros pela mulher do réu, posto que, sua meação não pode ser alcançada pelo complemento do ilícito praticado pelo marido. De mais e mais, é inegável a possibilidade do magistrado decretar de ofício a indisponibilidade de bens em casos excepcionais para garantir a imparcialidade do julgador e, além do mais, o processamento da indisponibilidade de bens pode ser requerida nos próprios autos da ação principal. Ademais, a presente medida pode ocorrer por intermédio de processo cautelar e incidental, inclusiva, na própria Ação Civil Pública por Ato de Improbidade, como reza o art.12 da Lei n° 8.429/92, não incidindo o prazo de 30 (trinta) dias do procedimento elencado no art. 806 do CPC. Doutro giro, com base no poder geral de cautelar a indisponibilidade de bens pode ser manejada para satisfazer futura execução de multa civil, que é modalidade de sanção na hipótese de dano ao patrimônio público cabível. Nesse diapasão, não há nenhuma vedação que a presente medida seja decretada quando ocorrer a violação de princípios que regem a administração pública, em especial, visando a reparação do dano moral. Pois, o art. 7° da Lei n° 8.429/92 submete a indisponibilidade de bens a chamada “lesão ao patrimônio público”, que é interpretada de forma ampla, abrangendo o patrimônio moral do ente.   3.1.2. Sequestro na Lei 8.429/92  Anote-se, conforme preleciona Humberto Theodoro Júnior, 1997, p. 454: “o seqüestro é a medida cautelar que assegura futura execução para entrega de coisa e que consiste na apreensão de bem determinado, objeto do litígio, para lhe assegurar entrega, em bom estado, ao que vencer a causa. Atua o seqüestro, praticamente, através de desapossamento, com o escopo de conservar a integridade de uma coisa sobre que a disputa judicial, preservando-a de danos, de depreciação ou deterioração.” Ressalta-se que, a referida medida na lei específica e no Código de Processo Civil, deve recair sobre coisa certa, determinada, não atingindo de forma genérica sobre os bens do agente, utilizada contra os atos de improbidade por enriquecimento ilícito, conforme o art. 9° da Lei 8.429/92, havendo a possibilidade nomear os bens que serão alvos da constrição, ou seja, aqueles que foram agregados ao patrimônio do agente de forma ilícita, alcançando e produzindo efeitos aos bens originados por intermédio de ilicitudes, frisa-se ainda, a ocorrência a limitação ao patrimônio adquirido no decorrer da função pública. Neste caso, distinguindo-se o sequestro do arresto, pois, o primeiro tem o intento de assegurar na fase de execução a entrega de coisa certa e o segundo, assegura a quantia certa, podendo incidir sobre bens de maneira indiscriminada. Ensejando, desta forma, a ocorrência do instituto de perdimento de bens e valores, acrescidos ilegalmente, revestindo em favor da Administração Pública vítima do ato ímprobo. Nesse sentido, a presente medida distingue-se da indisponibilidade do bem, pois este versa sobre os bens indisponíveis, tendo o agente ímprobo a posse, o direito sobre o bem. Na medida do sequestro, o agente perderia a posse, o direito sobre o bem, tornando-se assim mais gravosa, com efeitos mais rigorosos. A presente medida, consagrada no art. 16 da Lei 8.429/92, no âmbito administrativo, o sequestro pode ser requerido pelo Ministério Público ou à procuradoria do órgão, ressaltando-se, no entanto, que o Ministério Público não está vinculado a representação elaborada pela autoridade administrativa, e, ainda, em caráter excepcional, pode ocorrer a decretação do sequestro de bens de ofício pelo magistrado, preservando e garantindo a imparcialidade do Poder Judiciário. No entanto, caso o ato de improbidade administrativa já esteja judicializado, somente caberá ao Ministério Público ou a pessoa jurídica pública lesada, seja se tratando de atos de enriquecimento ilícito ou de danos ao erário, não sendo possível utilizar desta medida para executar a multa civil. Não obstante, existe a possibilidade do autor se dispor como depositário do objeto, e, em casos de bens imóveis, a medida cautelar será encaminhada ao registro e o autor manter a posse do bem, não produz efeitos a alegação da impenhorabilidade da coisa, pois a Lei n° 8.009/90 produz seus efeitos a fim de não propagar o enriquecimento ilícito. 3.1.3. Afastamento do agente público  O art. 20 da Lei de Improbidade determina que a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos apenas produzam efeitos com o trânsito em julgado de sentença condenatória, permitindo ainda, por autoridade judicial ou administrativa a possibilidade de determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo ou função, sem abster da remuneração, quando se fizer imprescindível. Desde modo, a presente medida traz consequências graves, concretizando a perda da função pública e da suspensão dos direitos políticos não haver recursos pertinentes, em homenagem ao princípio da não-culpabilidade. No entanto, no parágrafo único do referido artigo encontra-se a possibilidade de um afastamento provisório em sede cautelar, a fim de garantir ao Poder Judiciário a instrução processual sem intervenções de agentes ímprobos, garantindo o saneamento do procedimento sem mácula ou manipulação, como ameaçar testemunhas, destruir documentos de grandes valores probatórios, entre outros. Possibilitando, ainda, alcançar quaisquer cargos desde que possua elo com fato e o processo a serem apurados.    Fazendo-se necessária, os requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora, até mesmo os indícios já se farão o suficiente para exigir a medida cautelar, sem fugir do seu caráter de excepcionalidade. Como já dito ao norte, é possível requerer a presente medida em âmbito administrativa, por exemplo, no Inquérito Civil, porém, só pode ser decretado por magistrado competente, incidindo na regra do art. 17, caput da Lei 8.429/92, de ajuizar ação no prazo de 30 (trinta) dias após se efetivar a cautelar. Destarte, deve-se ter um parâmetro que provoque a limitação a fim de evitar excessos, ou seja, quando for decretado o afastamento provisório de um agente público e ao ser produzidas as provas necessárias para corroborar a instrução, o agente público deve voltar para o seu exercício, ou seja, esta medida cautelar tem a finalidade imprescindível de evitar danos, dolo em prejuízo ao patrimônio ocasionado pelo agente público. Frisa-se, ainda, sobre a possibilidade do afastamento do agente público incidir em afastamento de agentes políticos, no entanto, o art. 20 da Lei n° 8429/92 profere que a autoridade judicial e administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, ou seja, existe omissão legislativa em relação ao mandato e não se permite a interpretação extensiva em prejuízo ao agente ímprobo, concluindo-se, por fim, que o afastamento provisório de agente político é medida excepcional não prevista na hodierna Lei de Improbidade. Nesse sentido, se incide em contradição em relação ao rol de sujeitos ativos previsto no art. 2° da referida lei, pois ao proferir sobre os agentes públicos, indubitavelmente, fala-se sobre os agentes políticos, em razão disso, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o afastamento provisório em relação a agentes políticos, com exceção ao Presidente da República,  Deputados Federais, bem como os Senadores, pois estes possuem regimento próprio. Conforme a jurisprudência pátria, observa o STJ a necessidade de determinar um lapso temporal a fim de evitar que as medidas cautelares tornem-se exacerbadas e haja desvio da sua finalidade precípua, uma vez que, a Lei de Improbidade é omissa em relação aos prazos. Assim, o magistrado sempre deve fixar lapso prazal para a existência da medida cautelar, preferencialmente, aplicar o prazo de 112 (cento e doze dias), que seria a soma de todos os prazos elencados na Lei n° 8.429/92 para a marcha processual de ação civil pública por ato de improbidade. Ademais, vislumbra-se o devido cabimento das medidas cautelares no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa, demonstrado suas nuances, requisitos e fundamentação legal, cabe apresentar um quadro analítico sobre a eficácia destas medidas atualmente conforme a legislação específica e o posicionamento jurisprudencial. 3.2.Ações cautelares na lei de improbidade administrativa e sua eficácia Conforme já explicitado, as ações cautelares previstos na Lei n° 8.429/92 possuem a finalidade precípua de resguardar e preservar a administração pública dos mais diversos atos ímprobos, garantindo a imácula ao erário. Deste modo, se faz necessário a análise da eficácia na utilização destas tutelas técnicas manejadas pelos legitimados que podem requerer, no entanto, a eficácia, de forma conceitual, é a aptidão de obter o efeito almejado por intermédio de uma ação realizada. Com efeito, no âmbito do direito administrativo, a Lei n° 8.429/92 prevê as medidas cautelares da indisponibilidade dos bens, sequestro e o afastamento do agente público são consequências dos atos de enriquecimento ilícito, dano ao erário e violação dos princípios que norteiam a administração pública tem se tornado constantes e eficazes no Poder Judiciário. Vejamos alguns julgados demonstrando a utilização dessas medidas e o posicionamento dos demais tribunais brasileiros: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – LIMINAR – AFASTAMENTO DOS AGENTES PÚBLICOS DE SUAS FUNÇÕES PÚBLICAS – RISCO EFETIVO DE COMPROMETIMENTO DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. Defere-se a liminar, em ação cautelar preparatória de ação civil pública por improbidade administrativa, para determinar o afastamento dos agentes públicos de suas funções, uma vez demonstrado o risco efetivo de comprometimento da instrução processual. (TJ-MG – AI: 10209130048421001 MG , Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 16/01/2014, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/01/2014) AGRAVO DE INSTRUMENTO. INDISPONIBILIDADE DE BENS. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDÍCIOS DE ENVOLVIMENTO DOS DEMANDADOS NOS ATOS DE IMPROBIDADE EM APURAÇÃO. DENÚNCIA DE LICITAÇÃO FRAUDADA E SUPERFATURAMENTO DE AMBULÂNCIAS, ENVOLVENDO A DENOMINADA "MÁFIA DAS SANGUESSUGAS". "FUMUS" PRESENTE. "PERICULUM IN MORA" ÍNSITO NA PRÓPRIA NATUREZA CAUTELAR DA MEDIDA. RESTRIÇÃO DO BLOQUEIO AOS BENS SUFICIENTES A POSSIBILITAR O RESSARCIMENTO DO VALOR DOS SUPOSTOS DANOS AO ERÁRIO. LIBERAÇÃO DE CONTA EM QUE SÃO DEPOSITADOS PROVENTOS DA 1ª AGRAVANTE, DADA A NATUREZA ALIMENTAR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. "A indisponibilidade dos bens não é indicada somente para os casos de existirem sinais de dilapidação dos bens que seriam usados para pagamento de futura indenização, mas também nas hipóteses em que o julgador, a seu critério, avaliando as circunstâncias e os elementos constantes dos autos, demonstra receio a que os bens sejam desviados dificultando eventual ressarcimento. (…) A indisponibilidade recairá sobre tantos bens quantos forem necessários ao ressarcimento do dano resultante do enriquecimento ilícito, ainda que adquiridos anteriormente ao suposto ato de improbidade" (STJ – AgRg na MC 11139/SP, 1ªT, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ 27.03.2006, p. 152). PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. MEDIDA CAUTELAR. SEQÜESTRO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 1. O seqüestro de que trata o art. 16 da Lei n. 8.429/92 é cabível tanto nos casos de enriquecimento ilícito quanto nos de dano ao erário. Dentre os bens que se sujeitam à constrição, encontram-se, em primeiro lugar, aqueles que caracterizam o enriquecimento ilícito. Para que os demais bens do agente se sujeitem à constrição, adquiridos antes ou depois dos fatos, seja lícita ou ilicitamente, cumpre à parte requerente demonstrar, de modo razoável, a imprescindibilidade da medida para assegurar a utilidade prática da sentença de mérito que, além de decretar a perda dos bens havidos ilicitamente, determine o pagamento de valor correspondente à lesão ao erário ou aplique outra sanção pecuniária (Lei n. 8.429/92, art. 18). 2. A medida cautelar proposta com base no enriquecimento ilícito (Lei n. 8.429/92, art. 9º, VII) tende a ensejar a constrição sobre os bens cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público. Para que o seqüestro incida sobre outros bens, cumpre ao requerente demonstrar a relação de instrumentalidade entre a constrição e a sentença de mérito a ser proferida na ação principal. 3. Imóvel adquirido por sucessão hereditária anteriormente aos fatos ilícitos não se sujeita ao seqüestro, caso não demonstrado razoavelmente que ele integra a responsabilidade patrimonial para satisfação do crédito a ser constituído em sentença condenatória, à míngua de indicação concreta de que teria havido, para além da aquisição de bens de valor, efetivo dano ao erário. 4. Motoneta adquirida por intermédio de consórcio não representa bem de valor incompatível com a evolução patrimonial de Agente da Polícia Federal. Para que o seqüestro incida sobre tal bem, cumpre ao requerente demonstrar que sobre ele recairá a responsabilidade patrimonial em virtude de condenação por dano ao erário. 5. Veículos antigos, adquiridos no período indicado como o dos fatos ilícitos, sujeitam-se ao seqüestro, pois não se pode estimar, sem reservas, o seu valor. O mero recibo inscrito no verso dos respectivos Certificados de Registro de Veículos não justifica a liberação dos bens, considerado que ainda se encontram cadastrados em nome do antigo proprietário no DETRAN. Na dúvida, esta se resolve no sentido da preservação da cautelar, que garante a utilidade prática da sentença de mérito sem, contudo, transitar em julgado (CPC, art. 807). 6. Agravo de instrumento parcialmente provido.”(TRF-3 – AG: 29592 SP 2001.03.00.029592-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL ANDRÉ NEKATSCHALOW, Data de Julgamento: 30/08/2004, QUINTA TURMA) Ademais, indubitavelmente, as medidas cautelares prevista na Lei de Improbidade se têm apresentado eficiente, contumazes e concedidas a rigor da lei pelo judiciário, conforme suas nuances, com observação ficta, são instrumentos combativo e imprescindível a fim proteger o erário e a administração pública das práticas vis de corrupção e atos ímprobos. Considerações finais No inicio desse artigo científico fez-se uma abordagem sucinta dos procedimentos que seriam adotados. A primeira fase do artigo científico foi possibilitar a compreensão da ação cautelar, o conceito, os princípios, os requisitos e característica, desse modo, uma visão pontual sobre a ação cautelar, tanto na Lei n° 8.429/92 como no Código de Processo Civil. Na segunda fase o presente artigo científico expôs sobre a improbidade administrativa, estabelecendo conceito, breve histórico, natureza jurídica, os sujeitos passivo e ativo e as modalidades dos atos de improbidade administrativa. A terceira fase do artigo científico se analisou e se discutiu sobre ações cautelares em espécie presentes na Lei de Improbidade Administrativa: indisponibilidade de bens, sequestro e afastamento do agente público, bem como suas consequências, nuances, requisitos, características  e cabimento de cada medida cautelar previsto na referida Lei, bem como sua eficácia. A corrupção e os atos de improbidade são problema enfrentado pelo Brasil que tem se agravado com passar do tempo e ocasionado sérias consequências, corrompendo a sociedade, banalizando os princípios pela qual a administração se sustenta, os desvios de recursos públicos vira um negócio rentável para os praticantes destas condutas desonestas e de má-fé, muitas das vezes essas condutas geram corolário no âmbito criminal brandas, fazendo permear na sociedade o sentimento perpétuo de impunidade. Diante do que foi explanado, vislumbra-se que a Lei n° 8.429/92 traz medidas com caráter reparatório e com o intento de salvaguardar, sobretudo, a administração pública, a saber: indisponibilidade de bens, sequestro e o afastamento do agente público, consagrados, respectivamente no art. 7°, 16 e 20 da referida lei. Com efeito, estas medidas que acautelam o erário, atualmente, como já  exposto por meio de jurisprudências nacionais, são eficazes e constantes no Poder Judiciário e no âmbito administrativo, trazendo resultado efetivo no combate a improbidade e corrupção. Por fim, cabem, mormente aos legitimados para requerer estas medidas que garantem o erário, a atuação eficazes e fortalecer estes instrumentos com o desiderato de diminuir os vultosos esquemas criminosos e ímprobos dentro da Administração Pública.
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Como o aplicador do direito pensa: uma perspectiva sobre a atuação do advogado público
Um enfoque sobre hermenêutica jurídico especialmente centrado na influência dos vieses sobre a atuação do advogado público.
Direito Administrativo
Introdução Refletindo acerca do introito do presente trabalho não se pode deixar de lado o debate acerca das questões que envolvem o simples ato de pensar. É o começo de todo trabalho humano; pensar envolve, dentre ouras ações, planejar, detalhar, prever e mensurar riscos. Toda ação, profissional ou não, concretiza-se através do pensar, que externa a própria razão. Não é possível deixar de imaginar como essas constatações afetam a vida do ser humano. Que ações são realmente pensadas ou refletem mera repetição de outras já testadas, sem qualquer atividade crítica? Raciocinar dá trabalho. Envolve, inúmeras vezes, atividade criativa na qual o agente sente-se desconfortável. Vê-se obrigado a mensurar questões, hipóteses e argumentos verdadeiramente fora de sua álea de ações automatizadas, que irão demandar esforço fora do contexto comum. 2 A advocacia pública e a aplicação do Direito Em fato, a natureza humana é predominantemente e em algum aspecto estúpida, aqui entendida a estupidez em seu sentido técnico-comportamental, que deixa o indivíduo ao largo do processo criativo, demente e inconsciente de sua incapacidade de criticar e contribuir para o avanço do conhecimento, praticando, muita vez, ações impensadas que representam decréscimo para o status social e técnico. Pitkin[1] referiu que: “Pode-se fàcilmente provar que a estupidez é o supremo Mal Social. Três fatores se combinam para estabelece-la como tal. Primeiro, e antes de qualquer coisa, os indivíduos estúpidos são legião. Em segundo lugar, a maior parte do poder, no comércio nas finanças, na diplomacia e na política, está nas mãos de indivíduos mais ou menos estúpidos. Finalmente, altas habilidades frequentemente estão ligadas a séria estupidez, de tal modo que as habilidades brilham ante o mundo, enquanto os traços de estupidez se escondem em sombras profundas, só discernidas pelos íntimos ou pelo olhar escrutador dos ‘reporters’”.  A obra do filósofo e psicólogo estadunidense, traduzida para quinze idiomas, faz chamar a atenção para um fato simples da vida cotidiana: o ser humano pensa quando é absolutamente necessário e mesmo aqueles dotados de habilidades fora do comum guardam em seu interior algum nível de estupidez que os coloca na vala comum do não pensar e os faz deixar de interagir com o senso crítico, voltando o foco para ações automáticas e pouco ou nada planejadas.  Todavia, o pensar é pressuposto à atividade do aplicador da lei, especialmente quando a subsunção da hipótese legal ao caso concreto implica em esforço hermenêutico além do que se considera trivial. Questões diversas são postas de forma a impingir um elucubrar complexo e repleto de possibilidades distintas que levam a caminhos diversos e consequências sequer supostas pelos criadores do texto legal aplicável. No ápice da indeterminação legislativa encontram-se os princípios, aqui entendidos como vetores de aplicação da lei, destinados a possibilitar a integração do ordenamento jurídico e a supressão de lacunas, mas hospedeiros de toda sorte de intenções, nem sempre acordes com o sentido comum de justiça. Sua utilidade como meio de alcançar inúmeros objetivos que não somente o bem estar social vem sendo muitas vezes destacada[2]: “Criou-se certo hábito, sobretudo entre órgãos de controle da Administração Pública, de chamar de ‘princípio’ à própria licitação, isso para legitimar uma interpretação redutora de todas as regras que autorizam a contratação sem licitação. Nesse argumento, ‘princípio’ tem claro sentido de ‘norma principal’. É um exemplo poderoso do jogo de interesses que pode estar por trás da identificação de princípios. Órgãos de controle tiram seu poder e influência do valor que se às exigências que se caiba controlar; é compreensível que, para crescerem institucionalmente, eles procurem ampliar sempre mais esse valor. Pregar o caráter principiológico da licitação é retórica útil a um projeto e poder. Mas é muito difícil sustentar racionalmente a ideia de que licitar é melhor, mais importante ou mais adequado que não licitar; são apenas dois modos diversos de contratar, necessários ou úteis em situações diferentes – donde a impertinência de orientar a interpretação por um critério de preferência em favor de um deles”. Verifica-se, portanto, que o aplicador depara-se com dois problemas no momento de interpretar e dar significado concreto à norma: a) desenvolver a atividade cognitiva; e b) lidar com a indeterminação dos conceitos. Esses dois parâmetros, de difícil enfretamento, podem ser analisados à vista dos desvios cognitivos que influenciam o hermeneuta em sua atividade. Freitas[3] destaca que: “Os desvios cognitivos estão presentes em toda atividade cerebral, sem que a interpretação jurídica represente exceção, por maior que se queira destinar para os comandos externos que determinam a imparcialidade. É o que acontece com a heurística do afeto, consoante a qual as aversões e preferências, ao sabor e saltos infundados, culminam em julgamentos distorcidos. Daí a relevância de arrolar os principais vieses (biases) que comprometem a isenção e o balanceamento da interpretação jurídica, selecionados entre os mais frequentes”.  Os vieses interferem no julgamento do aplicador, exercendo grande poder sobre o processo de tomada de decisões. São de diversas naturezas e influenciam de forma diferenciada, entre eles destacam-se[4]: a) o viés da confirmação; b) o viés da falsa coerência; c) o viés da aversão à perda; d) o viés dos status quo; e) o viés do enquadramento; f) o viés do otimismo excessivo; e g) o viés do presente.  O estudo desses vieses demandaria um trabalho inteiro ocupado no afã de explicar suas influências no processo de tomada de decisão. Todavia, vale-se do presente escrito para compreender sua interferência na ótica estrita do advogado público, com especial destaque o viés do otimismo excessivo, que parece exercer especial poder sobre aqueles que devem dizer o direito no âmago interno da Administração Pública e fixam o entendimento sobre o alcance de diversas normas, tendo inclusive a competência de dispor sobre o real alcance das decisões judiciais a serem executadas. Por qual motivo os membros da advocacia pública estariam enviesados pelo otimismo excessivo de forma que isso venha a interferir sobre suas decisões? A questão é de simples reposta: há um consenso de que os procedimentos internos adotados pela administração estão revestidos de presunção e correto tratamento legal e técnico, o que, muitas vezes, dá ao parecerista a sensação de perfeita adequação do processos às normas vigentes.  Pode, à primeira vista, parecer um argumento ingênuo, até mesmo pueril, haja vista que é obrigação do advogado público verificar se o desiderato colimado do processo que se apresenta está de acordo comas prescrições legais[5]. Todavia, dois dispositivos normativos[6], com especial enfoque para a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (AGU), embasam essa teoria e chamam a atenção para os equívocos que podem e são cometido em nome de uma suposta “esperança” e que tudo está certo. Conclusão Veja-se que a restritividade à manifestação não está expressa na norma, mas decorre de interpretação do dispositivo pela própria instituição, de forma coletiva e orquestrada, que retira de si a responsabilidade pela análise de questões de “ordem técnica, financeira ou orçamentária”. Seria uma “fraude inocente”? Gailbraith[7] refere de forma muito útil: “Ignorando a realidade, a empresa moderna condena a palavra ‘burocracia’. É coisa do governo. A administração empresarial, termo que se costuma tomar como referência, tem um tom ativista. Os membros da estrutura empresarial podem ser desnecessários, ineptos, egoístas, mas não sã burocratas. Em organizações governamentais decisões coletivas, ações demoradas e mens competentes são normais; é a burocracia. Mas não na indústria privada. Mais uma manifestação de fraude inocente”. A referência ao economista estadunidense há que ser entendida a contrário senso, posto que o texto trata da fraude conceitual de que o setor público é burocrata e ineficiente enquanto que o privado pode padecer de outras mazelas, mas dessas não.  A fraude aqui cometida e que dá guarida ao viés do otimismo excessivo é que o advogado público não necessita adentrar em temas de ordem técnica, financeira e orçamentária. Ora, na Administração Pública tudo envolve, em maior ou menor medida, um desses assuntos, já que não há discussão exclusivamente jurídica, do contrário estar-se-ia discutindo lei em tese.  A disseminação dessa “fraude inocente” tem por finalidade enviesar o parecerista no sentido de que está “tudo certo”, que o único assunto que ele deve se preocupar é o jurídico. E mais, se se adentra no mérito técnico está-se chamando para si a responsabilidade por eventuais “enganos” ocorridos no curso da análise do processo.  Para desfazer o engodo no qual é induzido o advogado público deverá estar atento para a sua real função de “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação”, incluindo aspectos não estritamente jurídicos, mas que sempre estarão imbricados com o direito.
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Autorização de uso emergencial de agrotóxicos: uma análise das controvérsias envolvendo a nova disciplina legal
Este trabalho tem o escopo de analisar controvérsias sobre a inovação trazida pelo advento na Lei Federal n° 12.873, de 24 de outubro de 2013, que instituiu a autorização de uso de agrotóxicos em emergências fitossanitárias, a sua compatibilidade com a Lei Federal n° 7.802, de 11 de julho de 1989, e o entendimento atual do Poder Judiciário sobre o tema.
Direito Administrativo
Introdução: A produção agrícola está sujeita à incidência de pragas e doenças. Para evitar prejuízos, o Poder Público adota diversas medidas de proteção sanitária vegetal. Dentre as medidas disponíveis, o combate à infestação de pragas pode ser realizado pelo uso de agrotóxicos previamente aprovados pelo Governo Federal e cadastrados nos Órgãos Estaduais. O controle das atividades relacionadas com a importação, o comércio e uso dos agrotóxicos na agricultura estão previstas na Lei n° 7.802/1989 e também, a partir de 2013, pela Lei n° 12.873, que trouxe novo instrumento – a autorização emergencial de agrotóxicos – como medida para possibilitar o efetivo controle de pragas ou doenças em situações que demandam ações ainda não suficientes ou não disponíveis para o seu controle ou erradicação. Essa Lei de 2013 concedeu ao Poder Executivo Federal a possibilidade de declarar estado de emergência fitossanitária e de expedir o ato de autorização de uso de agrotóxicos, quando for constatada situação epidemiológica que indique risco iminente de introdução ou de surto de epidemia de doença ou de praga quarentenária. Entretanto, a implementação junto aos Estados dessa nova medida tem encontrado resistência. Acalorados debates têm sido observados. Membros dos Ministérios Públicos têm recomendado aos Estados que não autorizem o uso emergencial de agrotóxico, mesmo que já aprovado pela União. Por sua vez, o Poder Judiciário tem decidido favorável à autorização emergencial. O presente artigo visa, assim, examinar as controvérsias envolvendo a aplicação da nova legislação. Para tanto, abordou-se, inicialmente, a questão das competências dos entes da Federação para tratar do tema, bem como do resumo da legislação aplicável e da doutrina firmada até então. Assentadas tais premissas, passou-se à análise dos fundamentos das recomendações que visam evitar a efetividade da Lei nº 12.873. 1. Das competências legislativas: A teor do art. 24 da Constituição Federal compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (IV), responsabilidade por dano ao meio ambiente (VIII) e proteção à saúde (XII). No âmbito dessa competência concorrente, os parágrafos do art. 24 da CF/88 disciplinam que a União estabelece normas gerais e os Estados suplementar. Confiram-se: “§ 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º – Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º – A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.” Assim, cabe à União expedir normas gerais sobre agrotóxicos, detendo competência para estabelecer os critérios de vedação de uso dessas substâncias químicas (como foi estipulado na Lei nº 7.802/89 e na Lei n° 12.873/13). Já quanto a competência suplementar dos Estados, estes devem seguir a disciplina federal, conforme MACHADO (1996) esclarece “a competência dos Estados para legislar, quando a União já editou uma norma geral, pressupõe obediência à norma federal, se editada de acordo com a Constituição Federal. Situa-se no campo da hierarquia das normas e faz parte de um sistema chamado fidelidade federal”. A repartição de competência legislativa entre as entidades políticas da Federação segue-se o princípio da predominância do interesse, conforme doutrina, com propriedade, do professor SILVA (2005, pág. 478): “O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional…”. MORAIS (2002, pag. 198) reforça esse entendimento, destacando a competência estadual quanto à apreciação de suas particularidades: "A Constituição brasileira adotou a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis. É a chamada competência suplementar dos Estados-membros e Distrito Federal (CF/88, art. 24, § 2º). Essa orientação, derivada da Constituição de Weimar (art. 10), consiste em permitir ao governo federal a fixação de normas gerais, sem descer a pormenores, cabendo aos Estados-membros a adequação da legislação às peculiaridades locais.” (negrito nosso). Sobre essas particularidades ou do interesse regional e quanto ao tema agrotóxico, VAZ (2006, pág. 25) explica que “os Estados e o DF podem legislar sobre produção, comércio, uso e armazenamento de agrotóxicos, dispondo sobre aspectos de especificidade regional.”. Distinguem-se os temas gerais e os de especificidade. A competência para estabelecer as condições gerais de restrições a vedações do uso dos agrotóxicos é dada à União, por Lei Federal (Lei n° 7.802/89 e Lei n° 12.873/13), com supremacia às normas estaduais que devem cuidar para acurar a disciplina geral do uso no respectivo Estado em função das condições locais. Ou seja, ao Estado federado é permitido legislar supletivamente para restringir as condições de uso de agrotóxicos no Estado, porém, essa restrição suplementar pode ser adotada estritamente em função de efetiva constatação de condições ou peculiaridades locais que a justifiquem, pois, do contrário, estar-se-ia indo de encontro com a competência constitucional federal.2. 2. Da legislação aplicável: A Lei n° 7.802/89 estabeleceu as competências dos entes federados no tema relacionado aos agrotóxicos. Veja-se: “Art. 9º No exercício de sua competência, a União adotará as seguintes providências: I – legislar sobre a produção, registro, comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico; II – controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e exportação; III – analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e importados; IV – controlar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação. Art. 10. Compete aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos dos arts. 23 e 24 da Constituição Federal, legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno.” Esse art. 10 concede competência aos Estados para realizar o controle estadual, o qual MACHADO (1995, pág.367) ilustra que “nada impede os estados de criar um sistema de registro ou cadastro de agrotóxicos e seus componentes, observando as normas gerais existentes na legislação federal.”. A fabricação, o comércio, o transporte e uso de agrotóxicos, pela sua periculosidade, devem ser controlados pelo Poder Público, conforme ilustra VAZ (2006, pág. 61): “Dispõe a Constituição que incube ao Poder Público controlar a produção, a circulação, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225,§1º, V).”. A competência estadual para estabelecer um cadastro de agrotóxicos e a sua abrangência para vedar ou permitir o uso – em consonância com o que já foi decidido pela União – já foi apreciada pelo judiciário, conforme a recente decisão: “MEIO AMBIENTE. CADASTRO DE PRODUTO AGROTÓXICO. PARAQUAT. REGISTRO ANVISA. FEPAM. A FEPAM tem competência para exigir o cadastramento de agrotóxicos para sua comercialização no Estado do Rio Grande do Sul. Não pode, contudo, negar o cadastro a produto registrado na ANVISA por considerá-lo nocivo à saúde e ao meio ambiente. (…) O exame da conveniência do emprego do produto no País por meio da ponderação entre os riscos e benefícios que apresenta é da competência da União, (…) Trata-se de partilha do poder no âmbito da Federação. Assim, enquanto vigente o registro do produto, na ANVISA, é ilegal a negativa do cadastro para fins de comercialização no Estado do RS. Recurso provido.” (AGI, Vigésima Segunda Câmara Cível, nº 70058567801, n° CNJ: 0049343-67.2014.8.21.700, TJRS, 15/5/2014.). Demonstrado, enquanto vigente a anuência da União (pela existência do registro previsto na Lei nº 7.802/1989) o Estado não pode negar o cadastro estadual sob aspectos ou motivos já apreciados e aprovados pela União, ressalvados motivos e fundamentos “de especificidade regional.”. Em analogia, em relação às autorizações previstas na nova Lei 12.873/13, esse também é o procedimento que deve ser adotado quanto à decisão dos Estados para autorizar o uso dos agrotóxicos em emergências fitossanitárias. No caso, a Lei n° 12.873/13 também passou a dispor sobre agrotóxicos especificamente para uso em caráter extraordinário e dispensou o registro (art. 53, caput, inciso II, § 3º, da Lei Federal n.º 12.824/13): “A importação, produção, comercialização e o uso de agrotóxicos, seus componentes e afins, ao amparo da autorização emergencial temporária, prescindem do registro de que trata o art. 3° da Lei no 7.802, de 11 de julho de 1989”. Dessa forma, especialmente, em emergência fitossanitária, ao Estado não lhe é permitido adotar procedimento (para efetuar o controle e dispor sobre a sua especificidade regional) que obrigue ao particular a apresentação de certificado de registro expedido pelo Governo Federal, pois de acordo com a Lei de 2013 este registro não será expedido. Porém, sem considerar a divisão de competências, geral ou suplementar, e a nova possibilidade de anuência estabelecida pela Lei n° 12.873/13 (que previu apenas uma autorização e dispensou expressamente a necessidade de expedição do específico registro federal concedido nos termos da Lei nº 7.802/89) membros do Parquet efetuaram recomendações a diversos órgãos estaduais e quanto aos Estados da Bahia e do Mato Grosso (que divergiram acerca das recomendações) intentou duas Ações Civis Públicas- ACP em face dos respectivos órgãos estaduais, com as seguintes abordagens que trato nesse artigo: “Com base no Inquérito Civil nº (…), que segue apenso, a presente demanda visa compelir o Estado da Bahia, bem como sua autarquia ADAB, com base na legislação aplicável, a fiscalizarem e proibirem o uso de produtos agrotóxicos …, uma vez que tal componentes químicos não possuem registro no órgão federal competente…”. Portanto, à luz da disciplina atual sobre a matéria, a comercialização e o uso de agrotóxicos para aplicação na produção agrícola na Bahia estão condicionados ao prévio registro dos mesmos junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), bem como ao cadastro perante a ADAB. Do quanto aqui expendido acerca da disciplina legal, seja em âmbito federal ou estadual, nota-se como condição imprescindível para a comercialização e uso de agrotóxicos o prévio registro destes junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), bem como o cadastro perante a ADAB.”. (ACP 0302121.90.2013.8.05.0022 do MP do Estado da Bahia em face de Órgão Estadual).  “Com base no Inquérito Civil nº (…), que segue apenso, a presente demanda visa compelir o Estado do Mato Grosso, bem como sua autarquia INDEA, com base na legislação aplicável, a fiscalizarem e proibirem o uso de produtos agrotóxicos …, uma vez que tal componentes químicos não possuem registro no órgão federal competente. Ou seja, mesmo em caso de urgência, a legislação exige que o agrotóxico esteja previamente registrado no órgão federal competente para que seja regularmente comercializado e utilizado”. (ACP 4546-12,2014.4.01.3600 do MPF em face de Órgão do Estado do Mato Grosso). O que se constata é que nas teses das duas ACP, o trato quanto às competências e a nova legislação federal não foram adotadas, prevalecendo a tese somente da disciplina da Lei Federal de 1989 e das normas estaduais que unicamente previam a possibilidade de permissão de uso no Estado se previamente registrado nos termos da Lei n° 7.802/89. 3. Dos Atos de Registro de Agrotóxico e de Autorização de uso emergencial: De fato, a Lei nº 7.802/89 exige que para os agrotóxicos serem utilizados, deve-se obter o registro perante o Governo Federal. Entretanto, o Governo Federal inovou na legislação brasileira de agrotóxicos ao editar a Lei nº 12.873/13 que instituiu uma autorização de agrotóxicos exclusivamente em usos emergenciais ao invés do registro em sentido estrito conforme previsto na lei de 1989. A anuência prevista na Lei nº 12.873/13 superveniente e excepcional prescinde do registro previsto na Lei n° 7.802/89, mas exige que seja concedida uma autorização para importação e para uso quando declarado, pelo Governo Federal, estado de emergência fitossanitária. Essas normas trazem as seguintes regras: “Lei 7.802/89, art. 3º “Os agrotóxicos, seus componentes e afins, de acordo com definição do art. 2º desta Lei, só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, se previamente registrados em órgão federal, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura. Lei n° 12.873/2013, Art. 53. “Fica a instância central e superior do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária de que trata o § 4o do art. 28-A da Lei no 8.171, de 17 de janeiro de 1991, autorizada, nos termos do regulamento, em caráter extraordinário, a anuir com a importação e a conceder autorização emergencial temporária de produção, distribuição, comercialização e uso, quando declarado estado de emergência fitossanitária ou zoossanitária de:… II – agrotóxicos e afins; e”. Por sua vez, o Decreto n° 4.074/02, que regulamenta a lei de 1989 define registro como: “XLII-registro de produto – ato privativo de órgão federal competente, que atribui o direito de produzir, comercializar, exportar, importar, manipular ou utilizar um agrotóxico, componente ou afim;”. Tanto o registro como as autorizações previstas naquelas normas transcritas são espécies de atos administrativos, igualmente como os de admissão, concessão, permissão, aprovação, licença, alvará e homologação (MELLO, 2005, pág. 403). Todos decorrem de anuência do Poder Público para que determinado interessado desempenhe uma atividade. São necessários para legitimar a atividade a ser executada, nos termos do parágrafo único do art. 170 da CF/88 “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”. A autorização é o tipo de ato administrativo que a Lei n° 12.873/13 adotou para conceder o direito de utilizar determinado produto para controle de praga em emergência fitossanitária e segundo explica MELLO (2005, pág.409) “Autorização é ato administrativo unilateral pela qual a Administração, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo como regra o caráter precário’”. Este caráter precário da autorização corresponde à precariedade prevista na nova lei (art. 28) “autorização emergencial temporária…”. Dessa forma, perfeitamente cabível a anuência do Poder Público, via ato administrativo de autorização, conforme estabelecido na legislação. Importante destacar que apesar do rito processual distinto e expedição do ato administrativo precário (com prazo determinado) e centralização das avaliações em um Órgão da União, a nova legislação estabelece as idênticas restrições ou vedações estabelecidas na Lei n° 7.802/89, quanto aos aspectos toxicológicos nocivos ao homem ou ao meio ambiente, e ainda acrescentou outra: “Lei 12.284/2013, Art. 6º, § 4º A anuência ou a autorização emergencial temporária de que trata o caput somente poderão ser concedidas para produtos cujo emprego seja autorizado para culturas similares em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE que adotem, nos respectivos âmbitos, o International Code of Conduct on the Distribution and Use of Pesticides da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO.” 4. Conflito aparente de normas e Incidência da lei superveniente: A circunstância da legislação federal anterior (Lei n° 7.802/89) e bem assim as legislações estaduais preverem a necessidade de efetuar o cadastro do produto no órgão competente do Estado ou do Distrito Federal com a apresentação do prévio registro concedido pela União não têm a força de derrogar os preceitos legais especiais das normas aplicáveis quando se tratar de situação excepcional e de emergência fitossanitária, tal qual a de que se cuida no caso em análise, que versaram expressamente sobre a dispensa do registro no órgão federal, pois nesse aparente conflito de normas, deve-se adotar a disciplina prevista no art. 2º, §1º, do Decreto-Lei nº 4567/1942- Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Art. 2o § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” Essa é a interpretação que nos parece a mais autorizada, até mesmo por força do comando previsto na Constituição Federal, art. 24, § 4º: “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”. A interpretação desse dispositivo constitucional já foi motivo de diversas manifestações do Judiciário, das quais selecionamos: “(…) A superveniência de lei federal dispondo normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. No caso, o citado texto normativo estadual (Lei 6.915/1995), por disciplinar de forma diversa e ser posterior à lei federal, nem chegou a ter eficácia, prevalecendo, pois, o art. 76, da Lei 8.213/1991, que estabelece a data da inscrição ou habilitação como termo inicial da concessão do benefício em favor de dependentes posteriormente incluídos.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 595.586, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-2-2010, Segunda Turma, DJE de 12-3-2010.) “Produção e consumo de produtos que utilizam amianto crisotila. Competência concorrente dos entes federados. Existência de norma federal em vigor a regulamentar o tema (Lei 9.055/1995). Consequência. Vício formal da lei paulista, por ser apenas de natureza supletiva (CF, art. 24, § 1º e § 4º) a competência estadual para editar normas gerais sobre a matéria.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 8-5-2003, Plenário, DJ de 1º-8-2003. “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL – INEXIGIBILIDADE – SUPERVENIÊNCIA DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL – DECISÃO MANTIDA.  O pedido de antecipação dos efeitos da tutela para fins de compelir o proprietário a realizar a averbação de área de reserva legal em Cartório de Registro de Imóveis deve ser indeferido, diante da superveniência do Novo Código Florestal – Lei nº. 12.651/2012 – que afasta esta exigência.” (TJ-MG – AI: 10155120019288001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 26/03/2013, Câmaras Cíveis/2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/04/2013). Portanto, em que pese a possibilidade de o Estado realizar cadastro estadual de produto agrotóxico com a apresentação do correspondente prévio registro expedido por Órgão Federal, nos ditames da Lei n° 7.802/89, não se vislumbra ser pertinente a interpretação de norma estadual ou a adoção de teses que insistem na necessidade de cadastro do registro federal de agrotóxico para uso em emergência fitossanitária. Não é permitido desconsiderar a vigência da regra da nova legislação que trouxe regime diferenciado. Esse foi o sentido do entendimento adotado pelo Ilustre Desembargador Federal Jirair Meguerian, que apreciou pedido de reconsideração elaborado pelo Ministério Público Federal em face de decisão desse magistrado que já havia atribuído efeito suspensivo contra decisão proferida por Juiz Federal que, por sua vez, havia concedido liminar para suspender a autorização estadual de uso de agrotóxico em emergência fitossanitária: “Assim, tem-se que a importação emergencial e extraordinária do agrotóxico não está registrada pelas normas citadas pelo agravado, mas sim pela Lei 12.873/2013, que trata do regime diferenciado de importação, comércio e utilização de agrotóxico, quando declarado estado de emergência fitossanitária e zoossanitária.” (TRF 1ª Região, AGI 0027841-14.2014.4.01.0000/MT, 11/07/2014). 5. Do controle Estadual previsto na Lei nº 12.873/2013: A fabricação, o comércio, o transporte e uso de agrotóxicos, pela sua periculosidade, devem ser controlados pelo Poder Público, conforme ilustra VAZ (2006, pág. 61): “Dispõe a Constituição que incube ao Poder Público controlar a produção, a circulação, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225,§1º, V).”. Tanto os agrotóxicos registrados como aqueles autorizados são objeto de controle dos Órgãos Estaduais. No caso da autorização que foi motivo das duas ACP, a legislação prevê controle estadual mais rigoroso. Jirair Meguerian, em apreciação do tema, constatou que: “E esse é exatamente o caso em comento, em que se constata um surto de largata helicoverpa armigera nas lavouras de soja e algodão, motivo pelo qual o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA declarou o estado de emergência fitossanitária e autorizou a importação e utilização emergencial do produto, utilização essa, inclusive, que não fica ao livre arbítrio dos produtores, mas que deve obedecer a regulamentação da Secretaria de Defesa Agropecuária. A partir dessa autorização é que os órgãos estaduais responsáveis, como o Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso – INDEA, devem atestar a necessidade de utilização do produto nos respectivos estados”. (TRF 1ª Região, AGI 0027841-14.2014.4.01.0000/MT, 11/07/2014). Essa Constatação de Meguerian há de ser destacada, pois, nos termos da Portaria n° 1.109/2013 do Ministério da Agricultura e Pecuária, que estabeleceu os procedimentos para autorizar a importação e uso de agrotóxico em emergência fitossanitária, o interessado deve obter previamente uma manifestação do órgão Estadual sobre um plano de segurança e controle do produto, bem como há a necessidade identificar previamente os usuários que poderão fazer o uso do produto: “Art. 6º O interessado deverá requerer, junto ao setor competente da Secretaria de Defesa Agropecuária – SDA do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, a solicitação emergencial temporária para importação do produto Benzoato de Emamectina, instruída com os seguintes documentos: III – plano de segurança e controle no transporte, armazenamento, aplicação e eliminação de resíduos e sobras ao final da vigência do estado de emergência fitossanitária, e destinação final das embalagens vazias, devidamente aprovado pelo Órgão Estadual ou Distrital de Defesa Agropecuária;”. Ademais, autorização para venda e uso não se dá para agricultores em geral, conforme a regulamentação da Lei n° 12.873/13, pelo Decreto n° 8.133/2013: “Art. 6º § 2º A anuência com a importação e a autorização emergencial temporária de produção, distribuição, comercialização e uso deverão ser requeridas pelos interessados, individualmente ou em conjunto, desde que identificadas as pessoas físicas ou jurídicas abrangidas.”. A autorização de uso estadual é dada para agricultor específico, com a sua identificação, localização, quantidade autorizada e entre outras informações previamente exigidas e atestadas pelo Estado. Portanto, a forma simples do ato administrativo expedido pelo Governo Federal (a autorização para uso emergencial) além de não eximir a necessidade de verificação, por parte de Órgão da União, das hipóteses de vedação de aprovação pela eventual nocividade à saúde ao homem ou ao meio ambiente (mesmas da Lei nº 7.802/89) e ainda demonstrar que se encontra registrado em países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico/OCDE – não subtrai qualquer competência estadual de aprovação e do controle do uso dos agrotóxicos. Pelo contrário, a norma geral expedida pelo Governo Federal obriga instrumentalização de cuidados no controle estadual (plano de segurança e controle sobre os usuários), que inexistem semelhanças em relação àqueles produtos registrados perante a Lei nº 7.802/89. 6. Considerações finais: Assim, temos que os argumentos que buscam recomendar aos Estados a não autorização de uso ou de aplicação de agrotóxicos já aprovados pela União – pela ausência de registro expedido pelo Ministério da Agricultura, conforme estabelecido pela Lei n° 7.802/89 e sem motivos acerca de eventuais condições locais desfavoráveis – padecem de equívoco, pois a Lei n° 12.873/2013 superveniente e especial (que deve prevalecer) informa que prescinde o registro que trata aquela lei de 1989 e prevê que a anuência do Poder Público para utilizar o agrotóxico em emergência se dá por expedição de ato administrativo de autorização temporária, nos termos da lei nova, a qual não somente manteve as competências constitucionais estaduais, para exercer a aprovação e o controle sobre o uso local, como ainda previu procedimento específico e rigoroso de controle estadual.
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O controle da administração pública
O presente trabalho tem por objeto analisar o controle da Administração Pública sob as suas mais variadas formas, realizados por cada uma das esferas de Poder, delineando os principais aspectos desse instituto.
Direito Administrativo
Introdução Por força do regime democrático e do sistema representativo, certo é que a atividade estatal não pode desbordar da satisfação do interesse público. O exercício da administração pública deve, então, ser destinado à obtenção do bem comum, invariavelmente. A partir disso, importa ter-se claro que a coisa pública não pertence à Administração Pública, tampouco aos agentes públicos, mas sim ao povo, verdadeiro titular do interesse público. Àqueles cabe tão-somente geri-la e conservá-la em prol da coletividade. Este é o substrato do princípio da indisponibilidade do interesse público, um dos pilares do regime jurídico-administrativo. Nesse contexto, é natural que a atuação do Poder Público esteja sujeita a controle justamente no objetivo de assegurar que a Administração Pública atue com estrita observância aos princípios que lhe tocam e, mais do que isso, garantir que o Estado tenha sempre em mira o interesse público. É sobre isto que versará o presente trabalho. 1. Conceito Na lição de Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 435) o controle sobre a Administração Pública pode ser definido como o "poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico”. Já os autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2011, p. 791) conceituam o controle administrativo como "o conjunto de instrumentos que o ordenamento jurídico estabelece a fim de que a própria administração pública, os Poderes Judiciário, Legislativo, e ainda o povo, diretamente ou por meio de órgãos especializados, possam exercer o poder de fiscalização, orientação e revisão da atuação administrativa de todos os órgãos, entidades e agentes públicos, em todas as esferas de Poder". Analisando-se os dois conceitos fornecidos por esses autores observa-se que a segunda definição apresenta uma completude maior na medida em que, diferentemente da primeira, inclui o administrado como legitimado capaz de exercer o controle administrativo, o que pode ser feito, por exemplo, por meio da ação popular, como será demonstrado adiante. 2. Espécies de controle No que se refere à classificação das espécies de controle da administração a doutrina não é unânime. Para Celso Antonio Bandeira de Mello (2009, p. 930) o controle assume somente duas formas: controle interno e controle externo. O primeiro realizado pela própria Administração e o segundo exercido pelos Poderes Legislativo e Judiciário e, também, pelo Tribunal de Contas. De modo a complementar a categorização dada pelo eminente professor, Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 436) classifica também o controle quanto ao órgão, podendo ser administrativo, legislativo ou judicial, quanto ao momento, podendo ser prévio, concomitante ou posterior e quanto ao aspecto da atividade, podendo ser de legalidade ou de mérito. Ao lado dos controles interno e externo, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2011, p. 793) acrescentam outra espécie: o controle popular. Vejamo-los cada um deles. O controle interno é aquele exercido dentro de um mesmo Poder, ou seja, é o controle que as chefias exercem sobre os atos de seus subordinados dentro de um órgão público. De outro lado, o controle externo é aquele exercido por um Poder sobre os atos administrativos praticados por outro Poder. Sobre isso, registre-se que Maria Zanella Di Pietro (2002, p.436) entende que o controle exercido pela administração direta sobre as entidades da administração indireta seria também classificado como controle externo. Concepção que não é partilhada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 929) que defende que o controle interno refere-se a todo e qualquer controle exercido no âmbito de um mesmo Poder, ainda que entre pessoas jurídicas diferentes. Ainda, o controle popular é aquele que confere aos administrados a possibilidade de verificarem a regularidade da atuação administrativa (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 793). Paralelamente, o controle prévio é aquele exercido antes do início da prática ou antes da conclusão do ato administrativo; o concomitante é exercido durante a realização do ato; e o posterior é exercido após a conclusão do ato. Além desses, o exercício do controle de legalidade permite que seja confirmada a validade de atos praticados em conformidade com o ordenamento jurídico, ou anulados atos administrativos ilegais. Por outro lado, o controle de mérito tem por objeto verificar a oportunidade e a conveniência administrativas do ato controlado, ou seja, trata-se do exercício do poder discricionário, o qual, como regra, compete exclusivamente ao próprio Poder que, exercendo função administrativa, editou o ato, revogá-lo (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 797). Agora, serão analisados os controles exercidos pelas diferentes esferas de poder. 3. Controle exercido pela Administração De acordo com o artigo 74 da CFRB/88, a Administração deverá manter um sistema integrado de controle interno com a finalidade de avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; de comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; de exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União e de apoiar o controle externo. Simetricamente, o artigo 25 do Decreto-lei nº 200/67 prevê que o controle abrangerá os aspectos administrativo, orçamentário, patrimonial e financeiro, tendo por principais objetivos assegurar, em cada Ministério, a observância da legislação e dos programas do Governo, coordenar as atividades dos distintos órgãos e harmonizá-las com as dos demais Ministérios, avaliar a atuação dos órgãos supervisionados, fiscalizar a aplicação dos recursos públicos e sua economicidade. Desse modo, pode-se dizer que o controle levado a cabo pela Administração é o poder de fiscalização e correção que a Administração Pública em sentido amplo exerce sobre sua própria atuação, sob os aspectos de legalidade e mérito, por iniciativa própria ou mediante provocação. Trata-se de controle interno e decorre do poder de autotutela que permite à Administração Pública rever os próprios atos quando ilegais, inoportunos ou inconvenientes (DI PIETRO, 2002, p. 436). A respeito disso, o Supremo Tribunal Federal editou as súmulas 346 e 473. A primeira estabelece que "a administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e a segunda determina que “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Esse controle sobre os próprios atos pode ser exercido de ofício, quando a autoridade competente constatar a ilegalidade de seu próprio ato ou de ato de seus subordinados e, também, pode ser provocado pelos administrados por meio dos recursos administrativos (DI PIETRO, 2002, p. 437). Segundo Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 437) os recursos administrativos são todos os meios que podem utilizar os administrados para provocar o reexame do ato pela Administração Pública. Os recursos administrativos possuem fundamento constitucional nos incisos XXXIV e LV do artigo 5º da CFRB/88. O primeiro garante a todos, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Por sua vez, o segundo assegura aos litigantes o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes. Nesse contexto, é de se notar que o direito de petição alberga inúmeras modalidades de recursos administrativos, como, por exemplo, a representação, a reclamação administrativa, o pedido de reconsideração, a revisão e os recursos hierárquicos próprios e impróprios. No entendimento de Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 438) a representação é a denúncia de irregularidades feita perante a própria Administração; a reclamação administrativa é o ato pelo qual o administrado, seja particular ou servidor público, deduz uma pretensão perante a Administração Pública, visando a obter o reconhecimento de um direito ou a correção de um ato que lhe cause lesão ou ameaça de lesão; o pedido de reconsideração é aquele pelo qual o interessado requer o reexame do ato à própria autoridade que o emitiu; a revisão é o recurso de que se utiliza o servidor público, punido pela Administração, para reexame da decisão, em caso de surgirem fatos novos suscetíveis de demonstrar a sua inocência; e o recurso hierárquico é o pedido de reexame do ato dirigido à autoridade superior à que proferiu o ato, sendo qualificado como próprio quando dirigido à autoridade imediatamente superior, dentro do mesmo órgão em que o ato foi praticado, e como impróprio quando é dirigido à autoridade de outro órgão não integrado na mesma hierarquia daquele que proferiu o ato. Ao analisarmos o controle exercido pela Administração Pública, não se poderia deixar de abordar os institutos da coisa julgada e prescrição administrativas que representam limitações ao controle administrativo. Apresentando distinções quanto à coisa julgada no âmbito jurisdicional, a coisa julgada administrativa restringe-se às limitações do poder de revogar os atos da Administração. Nesse sentido, não podem ser revogados os atos vinculados, os que exauriram os seus efeitos, os meros atos administrativos, e os que geraram direitos subjetivos. Estes, não podendo ser revogados, tornam-se irretratáveis pela própria Administração, fazendo coisa julgada administrativa (DI PIETRO, 2002, p. 443). Por seu turno, a prescrição administrativa designa diferentes situações em que o ordenamento jurídico impõe prazos para que o administrado ou a administração pública instaurem ou provoquem a instauração de processos ou procedimentos na esfera administrativa. Refere-se, ao mesmo tempo, a perda do prazo para recorrer de decisão administrativa, a perda do prazo para que a Administração reveja os próprios atos e a perda do prazo para aplicação de penalidades administrativas. No que concerne à prescrição do prazo para revisão dos próprios atos pela administração, quando se tratar de direito oponível à administração esta ocorre em cinco anos, na forma do Decreto nº 20.910/32, por outro lado, em se tratando de direitos de natureza real prevalecem os prazos previstos no Código Civil (DI PIETRO, 2002, p. 443). A respeito do prazo prescricional, confira-se o seguinte julgado emanado pelo Supremo Tribunal Federal no qual ficou assentado que o Tribunal de Contas da União, no exercício da competência de controle externo da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadorias, reformas e pensões, não se submete ao prazo quinquenal: "Agravo regimental em mandado de segurança. Concessão inicial de pensão julgada ilegal pelo Tribunal de Contas da União. Inaplicabilidade da decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99. Ausência de comprovação do exame de legalidade pelo TCU da concessão da aposentadoria do servidor falecido. Não ocorrência de violação do princípio da segurança jurídica. Agravo regimental não provido. 1. Esta Suprema Corte possui jurisprudência pacífica no sentido de que o Tribunal de Contas da União, no exercício da competência de controle externo da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadorias, reformas e pensões (art. 71, inciso III, CF/88), não se submete ao prazo decadencial da Lei nº 9.784/99, iniciando-se o prazo quinquenal somente após a publicação do registro na imprensa oficial. 2. Ainda que pudesse subsistir a argumentação da impetrante de que o exame de legalidade realizado pela Corte de Contas recaiu sobre situação consolidada desde 1996, relativa à aposentadoria de seu falecido marido, não foram apresentados fatos e provas concretos de que o cálculo da aposentadoria concedida ao marido da recorrente tivesse sido considerado legal pelo TCU. 3. Submetida que está a administração pública ao princípio da legalidade, havendo previsão normativa, não há óbice a que o Tribunal de Contas da União – na qualidade de órgão auxiliar do controle externo exercido pelo Congresso Nacional e no exercício da competência que lhe foi conferida pelo art. 71, III, da Constituição Federal – aprecie a correspondência do ato de concessão inicial de pensão com o regime legal vigente na data em que veio a óbito o instituidor do benefício. Precedentes. 4. A presumida boa-fé estende-se apenas até o julgamento da legalidade pelo órgão responsável. Violação do princípio da segurança jurídica não configurada, tendo em vista que a pensão foi instituída em 2005 e, logo em 2008, foi considerada ilegal, tendo sido negado o seu registro. 5. Agravo regimental não provido. (MS 30830 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 27/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244 DIVULG 12-12-2012 PUBLIC 13-12-2012)". 4. Controle exercido pelo Poder Legislativo Por certo, o controle que o Poder Legislativo exerce sobre a Administração Pública tem que se limitar às hipóteses previstas na Constituição Federal, do contrário implicaria na interferência de um Poder nas atribuições de outro. Também em razão disso, não pode esse controle ser ampliado para fora do âmbito constitucional, como, por exemplo, para a esfera estadual, uma vez que o controle legislativo é exceção ao princípio da separação de poderes. Conforme Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 445), existem dois tipos de controle legislativo: o político e o financeiro. O controle político poderá abranger aspectos de legalidade e/ou de mérito. Justamente pelo fato de albergar a discricionariedade administrativa, ou seja, a oportunidade e conveniência diante do interesse público, é que esta espécie de controle possui natureza política (DI PIETRO, 2002, p. 445). São exemplos desse controle a competência do Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V, CFRB/88) e também para julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo (art. 49, IX, CFRB/88). O controle financeiro que abrange a fiscalização contábil, financeira e orçamentária é exercido sobre os atos de todas as pessoas que administrem bens ou dinheiro públicos (art. 70 a 75 da CFRB/88). No entanto, cumpre repisar que, no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 930), esta é tão-somente espécie de controle externo exercido pelo Tribunal de Contas e não espécie de controle legislativo. Divergindo neste ponto, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2011, p. 836) afirmam que o controle financeiro pode ser exercido tanto internamente quanto externamente. O primeiro é aquele que cada Poder exerce em seu próprio âmbito, e o segundo é aquele exercido pelo Poder Legislativo com o auxílio dos tribunais de contas. Sobre isso, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou declarando que não fere a autonomia municipal, tampouco implica em usurpação de competência do Tribunal de Contas da União, a fiscalização levada a cabo pela Controladoria-Geral da União quanto à aplicação dos recursos públicos federais repassados aos municípios. Na oportunidade, restou assentado que a Controladoria tem competência para fiscalizar a aplicação de recursos da União onde quer que ela ocorra, e que, ao mesmo tempo, essa fiscalização tem a natureza de controle interno, uma vez que, embora incida sobre verbas destinadas a repasse a outros entes federados, esta é exercida exclusivamente sobre verbas originárias do Poder Executivo federal: "RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSOS PÚBLICOS FEDERAIS REPASSADOS AOS MUNICÍPIOS. FISCALIZAÇÃO PELA CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO – CGU. POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. I – A Controladoria-Geral da União pode fiscalizar a aplicação de verbas federais onde quer que elas estejam sendo aplicadas, mesmo que em outro ente federado às quais foram destinadas. II – A fiscalização exercida pela CGU é interna, pois feita exclusivamente sobre verbas provenientes do orçamento do Executivo. III – Recurso a que se nega provimento. (RMS 25943, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2010, DJe-041 DIVULG 01-03-2011 PUBLIC 02-03-2011 EMENT VOL-02474-01 PP-00033)". 5. Controle exercido pelo Poder Judiciário “O controle judicial é aquele realizado pelos órgãos do Poder Judiciário, no desempenho de atividade jurisdicional, sobre os atos administrativos praticados pelo Poder Executivo, bem como sobre os atos administrativos editados, no exercício da função administrativa, pelo Poder Legislativo e pelo próprio Poder Judiciário” (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 855). Registre-se que esta é uma espécie posterior de controle a qual verifica exclusivamente a legalidade dos atos administrativos, jamais se inserindo na análise de seu mérito. Demais disso, tendo em conta o princípio da inércia da jurisdição, este controle será exercido sempre mediante provocação do interessado ou do legitimado. “Interessante destacar, ademais, que no Brasil vige o sistema de jurisdição única, de modo que cabe exclusivamente ao Poder Judicante decidir com força definitiva o direito aplicável ao caso concreto, sejam quais forem os litigantes ou a natureza da relação jurídica controvertida”(MELLO, 2009, p. 936). Ressalte-se que o fundamento constitucional do sistema da unidade de jurisdição é o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que proíbe a lei de excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. “O Poder Judiciário pode examinar os atos da Administração Pública, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou discricionários, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, também, sob o aspecto da moralidade (DI PIETRO, 2002, p. 449). Nesse ponto, não se deve confundir a vedação de que o Poder Judicante aprecie o mérito administrativo com a possibilidade de aferição por este Poder da legalidade dos atos discricionários. De fato, os atos discricionários podem ser controlados pelo Judiciário no que se refere à sua legalidade ou legitimidade. Ainda, os controles de razoabilidade e proporcionalidade possibilitam anulação por parte do Poder Judiciário de atos discricionários que tenham sido praticados fora da esfera de mérito administrativo estabelecida pela lei, ou seja, avalia-se a legitimidade da extensão dos efeitos destes atos (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 855).” Dentro desse tema, há muito se discute a possibilidade de se questionar em juízo a higidez de concursos públicos, a qual tem sido negada peremptoriamente pelos tribunais sob o argumento de que se trata de mérito administrativo. Contudo, em interessante julgado o STF admitiu o controle jurisdicional sobre a legalidade de um concurso público quando as questões da prova desbordam do programa descrito no edital: "DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA AO EDITAL. DESCONFORMIDADE ENTRE QUESTÕES DE PROVA E O PROGRAMA DO CERTAME. IMPROCEDÊNCIA DA ALEGAÇÃO. ORDEM DENEGADA. I – Ambas as Turmas desta Corte já se manifestaram pela admissibilidade do controle jurisdicional da legalidade do concurso público quando verificado o descompasso entre as questões de prova e o programa descrito no edital, que é a lei do certame. Precedentes. II – Inexistência de direito líquido e certo a ser protegido quando constatado que os temas abordados nas questões impugnadas da prova escrita objetiva aplicada aos candidatos estão rigorosamente circunscritos às matérias descritas no programa definido para o certame. III – Mandado de segurança parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado, cassada a liminar anteriormente deferida. (MS 30894, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 08/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 21-09-2012 PUBLIC 24-09-2012)". Maria Zanella Di Pietro (2002, p. 450) ressalva ainda que os atos interna corporis – regimento dos atos colegiados –, em regra, não são apreciados pelo Poder Judiciário, uma vez que se limitam a estabelecer normas sobre o funcionamento interno dos órgãos, no entanto, se exorbitarem em seu conteúdo, ferindo direitos individuais e coletivos, poderão sê-lo. A propósito, este também é o entendimento albergado pelo Pretório Excelso: "CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATOS DO PODER LEGISLATIVO: CONTROLE JUDICIAL. ATO INTERNA CORPORIS: MATÉRIA REGIMENTAL. I. – Se a controvérsia é puramente regimental, resultante de interpretação de normas regimentais, trata-se de ato interna corporis, imune ao controle judicial, mesmo porque não há alegação de ofensa a direito subjetivo. II. – Mandado de Segurança não conhecido. (MS 24356, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/02/2003, DJ 12-09-2003 PP-00029 EMENT VOL-02123-02 PP-00319)". Dentre as medidas judiciais cabíveis para correção da conduta administrativa, afora as afetas ao Direito Privado, tais como, ações indenizatórias, possessórias, reivindicatórias, a Constituição prevê ações específicas as quais são denominadas remédios constitucionais. Estas ações são assim designadas porque têm a natureza de garantia de direitos fundamentais, no sentido de promover a higidez dos atos lesivos praticados pela Administração (DI PIETRO, 2002, p. 455). São remédios constitucionais o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação popular. Vejamos sinteticamente cada um deles. O habeas corpus, previsto no artigo 5º, LXVIII, da CFRB/88, é cabível sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Impende registrar que sua impetração dispensa procurador judicial e prescinde de qualquer formalidade, sempre que, em razão das circunstâncias, esta possa obstar sua ampla utilização, além de ser uma ação gratuita (MELLO, 2009, p. 943-4). Porém, cumpre fazer a ressalva de que este remédio constitucional não pode ser utilizado em relação a punições disciplinares militares, por expressa vedação constitucional (art. 142, §2º, CFRB/88). O habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, em benefício próprio ou de terceiro, e possui os seguintes pressupostos: (i) ilegalidade ou abuso de poder, seja por parte de autoridade pública, seja por parte de particular; e (ii) violência, coação ou ameaça à liberdade de locomoção (DI PIETRO, 2002, p. 456). O habeas data, previsto no artigo 5º, LXXII, da CFRB/88, será concedido para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público e, também, para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo. Esta ação é regulada pela Lei nº 9.507/97 que acrescentou mais uma hipótese de cabimento da medida, além das duas previstas na Constituição, qual seja, para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável. O sujeito ativo do habeas data é a pessoa, brasileira ou estrangeira, a que se refere a informação, enquanto o passivo é a entidade governamental ou de caráter público que tenha registro ou banco de dados sobre a pessoa (DI PIETRO, 2002, p. 459). Sobre este remédio constitucional, cabe assinalar que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 2 que prevê que “não cabe habeas data se não houver recusa por parte da autoridade administrativa”, incorrendo em flagrante inconstitucionalidade, uma vez que este entendimento fere o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CFRB/88). Será concedido mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, na forma do artigo 5º, LXXI, CFRB/88. Trata-se de instrumento hábil para que o impetrante obtenha, em um caso concreto, mediante suprimento judicial, a disciplina necessária indispensável ao exercício dos mencionados direitos, frustrados pela ausência de norma regulamentadora, cuja falta esteja a inviabilizar-lhes o exercício (MELLO, 2009, p. 945). A respeito desse remédio constitucional, é interessante tecer considerações sobre o seu objeto. Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal entendia que a decisão em mandado de injunção apenas decretaria a mora do poder omisso, reconhecendo-se formalmente a sua inércia (MI 107-DF). No entanto, esse posicionamento era por muitos criticado, porquanto a manifestação jurisdicional era inócua nesses casos. Assim, intermediariamente, passou-se a fixar um prazo e comunicar o Legislativo omisso para que elabore a norma em determinado período, de modo que, transcorrido este sem manifestação daquele Poder, o autor teria assegurado o seu direito (MI 232-RJ). Há, também, precedentes do STF que evidenciam a sua atuação proativa ao legislar no caso concreto, produzindo efeitos erga omnes até que sobrevenha norma integrativa pelo Legislativo (MI 670-ES). Veja-se o seguinte excerto desse último julgado: "[…] Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir amplamente ao legislador a última palavra acerca da concessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito fundamental positivado. Tal premissa, contudo, não impede que, futuramente, o legislador infraconstitucional confira novos contornos acerca da adequada configuração da disciplina desse direito constitucional. 4.2 Considerada a omissão legislativa alegada na espécie, seria o caso de se acolher a pretensão, tão-somente no sentido de que se aplique a Lei no 7.783/1989 enquanto a omissão não for devidamente regulamentada por lei específica para os servidores públicos civis (CF, art. 37, VII). […]". O mandado de segurança, previsto no artigo 5º, LXIX e LXX, da CFRB/88, é ação civil de rito sumaríssimo pela qual qualquer pessoa pode provocar o controle jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus nem habeas data, em decorrência de ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas, praticado com ilegalidade ou abuso de poder. Para efeitos do mandado de segurança, considera-se líquido e certo o direito, independentemente de sua complexidade, quando os fatos atinentes sejam demonstráveis de plano, ou seja, independam de instrução probatória. O mandado de segurança individual tem por objetivo assegurar o direito que diz respeito individualmente ao impetrante ou impetrantes, por outro lado, o mandado de segurança coletivo é o instrumento disponível aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, às organizações sindicais, entidades de classe ou associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa das finalidades que lhes correspondem e dos interesses de seus membros (MELLO, 2009, p. 944). Sobre o mandado de segurança o Supremo Tribunal Federal editou as seguintes súmulas: 101, 248, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 294, 299, 304, 319, 330, 405, 429, 433, 474, 506, 510, 511, 512 e 597. A ação popular, prevista no artigo 5º, LXXIII, da CFRB/88 e regulada pela Lei nº 7.417/65, é a ação civil pela qual qualquer cidadão pode pleitear a invalidação de atos praticados pelo poder público ou entidades de que participe, lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, à moralidade administrativa ou ao patrimônio histórico e cultural, bem como a condenação por perdas e danos dos responsáveis pela lesão (DI PIETRO, 2002, p. 479). Embora também se trate de medida de controle judicial, antes disso, a ação popular, como o próprio nome sugere, é instrumento de controle popular sobre a Administração Pública. Somado a isso, interesse salientar que somente poderá ser autor da ação popular o cidadão, assim considerado o brasileiro nato ou naturalizado, desde que esteja no pleno gozo de seus direitos políticos. Nesse ínterim, foi editada a Súmula nº 365 do Supremo Tribunal Federal que estabelece que pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular. Além dos remédios constitucionais até aqui abordados, cabe fazer menção a outros instrumentos também relevantes no controle judicial da Administração, vale dizer, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de improbidade administrativa. A ação civil pública, prevista no artigo 129, III, da CFRB/88 como função institucional do Ministério Público, é um instrumento apto a evitar danos ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico ou paisagístico, ou, então, para promover a responsabilidade de quem haja causado lesão a estes mesmos bens (MELLO, 2009, p. 946). Além desta, Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 947) elenca com acerto a ação direta de inconstitucionalidade como modalidade de controle judicial da Administração, porquanto esta visa a retirar do ordenamento jurídico as leis ou atos do Poder Público incompatíveis com a Constituição. Esta ação é regulada pela Lei nº 9.868/99. Não obstante, como bem observam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2011, p. 894), a ação de improbidade administrativa também se constitui como um instrumento hábil nesta espécie de controle. A tutela da probidade administrativa está prevista no artigo 37, §4º, da CFRB/88. No plano infraconstitucional, a Lei nº 8.429/92 regulamenta a matéria, criando-se um verdadeiro subsistema jurídico voltado para a punição da prática de atos de improbidade. Considerações finais Diante do que se expôs, pode-se sintetizar as seguintes conclusões: a) atuação do Poder Público está sujeita a controle justamente no objetivo de assegurar que a Administração Pública atue com estrita observância aos princípios que lhe tocam; b) o controle pode ser exercido pela própria Administração, pelos Poderes Legislativo e Judiciário e pelo povo; c) o controle pode ser classificado quanto ao órgão, como interno ou externo, quanto ao momento, como prévio, concomitante ou posterior, e quanto ao aspecto da atividade, como de legalidade ou de mérito; d) o controle exercido pela Administração é o poder de fiscalização e correção que a Administração Pública em sentido amplo exerce sobre sua própria atuação, sob os aspectos de legalidade e mérito, por iniciativa própria ou mediante provocação; e) os recursos administrativos constituem meios hábeis a provocar o reexame do ato pela Administração Pública e a prescrição e coisa julgada administrativas representam limitações ao controle administrativo; f) o controle legislativo da Administração Pública pode ser político ou financeiro; g) o controle judicial é aquele realizado pelos órgãos do Poder Judiciário, no desempenho de atividade jurisdicional, sobre os atos administrativos praticados pelo Poder Executivo, bem como sobre os atos administrativos editados, no exercício da função administrativa, pelo Poder Legislativo e pelo próprio Poder Judiciário; h) tem-se os remédios constitucionais do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular como medidas judiciais cabíveis para correção da conduta administrativa; i) a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de improbidade administrativa constituem instrumentos também relevantes no controle judicial da Administração.
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Autorização de uso emergencial de agrotóxicos: uma análise das controvérsias envolvendo a nova disciplina legal
Este trabalho tem o escopo de analisar controvérsias sobre a inovação trazida pelo advento na Lei Federal n° 12.873, de 24 de outubro de 2013, que instituiu a autorização de uso de agrotóxicos em emergências fitossanitárias, a sua compatibilidade com a Lei Federal n° 7.802, de 11 de julho de 1989, e o entendimento atual do Poder Judiciário sobre o tema.
Direito Administrativo
Introdução: A produção agrícola está sujeita à incidência de pragas e doenças. Para evitar prejuízos, o Poder Público adota diversas medidas de proteção sanitária vegetal. Dentre as medidas disponíveis, o combate à infestação de pragas pode ser realizado pelo uso de agrotóxicos previamente aprovados pelo Governo Federal e cadastrados nos Órgãos Estaduais. O controle das atividades relacionadas com a importação, o comércio e uso dos agrotóxicos na agricultura estão previstas na Lei n° 7.802/1989 e também, a partir de 2013, pela Lei n° 12.873, que trouxe novo instrumento – a autorização emergencial de agrotóxicos – como medida para possibilitar o efetivo controle de pragas ou doenças em situações que demandam ações ainda não suficientes ou não disponíveis para o seu controle ou erradicação. Essa Lei de 2013 concedeu ao Poder Executivo Federal a possibilidade de declarar estado de emergência fitossanitária e de expedir o ato de autorização de uso de agrotóxicos, quando for constatada situação epidemiológica que indique risco iminente de introdução ou de surto de epidemia de doença ou de praga quarentenária. Entretanto, a implementação junto aos Estados dessa nova medida tem encontrado resistência. Acalorados debates têm sido observados. Membros dos Ministérios Públicos têm recomendado aos Estados que não autorizem o uso emergencial de agrotóxico, mesmo que já aprovado pela União. Por sua vez, o Poder Judiciário tem decidido favorável à autorização emergencial. O presente artigo visa, assim, examinar as controvérsias envolvendo a aplicação da nova legislação. Para tanto, abordou-se, inicialmente, a questão das competências dos entes da Federação para tratar do tema, bem como do resumo da legislação aplicável e da doutrina firmada até então. Assentadas tais premissas, passou-se à análise dos fundamentos das recomendações que visam evitar a efetividade da Lei nº 12.873. 1. Das competências legislativas: A teor do art. 24 da Constituição Federal compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (IV), responsabilidade por dano ao meio ambiente (VIII) e proteção à saúde (XII). No âmbito dessa competência concorrente, os parágrafos do art. 24 da CF/88 disciplinam que a União estabelece normas gerais e os Estados suplementar. Confiram-se: “§ 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º – Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º – A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.” Assim, cabe à União expedir normas gerais sobre agrotóxicos, detendo competência para estabelecer os critérios de vedação de uso dessas substâncias químicas (como foi estipulado na Lei nº 7.802/89 e na Lei n° 12.873/13). Já quanto a competência suplementar dos Estados, estes devem seguir a disciplina federal, conforme MACHADO (1996) esclarece “a competência dos Estados para legislar, quando a União já editou uma norma geral, pressupõe obediência à norma federal, se editada de acordo com a Constituição Federal. Situa-se no campo da hierarquia das normas e faz parte de um sistema chamado fidelidade federal”. A repartição de competência legislativa entre as entidades políticas da Federação segue-se o princípio da predominância do interesse, conforme doutrina, com propriedade, do professor SILVA (2005, pág. 478): “O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional…”. MORAIS (2002, pag. 198) reforça esse entendimento, destacando a competência estadual quanto à apreciação de suas particularidades: "A Constituição brasileira adotou a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis. É a chamada competência suplementar dos Estados-membros e Distrito Federal (CF/88, art. 24, § 2º). Essa orientação, derivada da Constituição de Weimar (art. 10), consiste em permitir ao governo federal a fixação de normas gerais, sem descer a pormenores, cabendo aos Estados-membros a adequação da legislação às peculiaridades locais.” (negrito nosso). Sobre essas particularidades ou do interesse regional e quanto ao tema agrotóxico, VAZ (2006, pág. 25) explica que “os Estados e o DF podem legislar sobre produção, comércio, uso e armazenamento de agrotóxicos, dispondo sobre aspectos de especificidade regional.”. Distinguem-se os temas gerais e os de especificidade. A competência para estabelecer as condições gerais de restrições a vedações do uso dos agrotóxicos é dada à União, por Lei Federal (Lei n° 7.802/89 e Lei n° 12.873/13), com supremacia às normas estaduais que devem cuidar para acurar a disciplina geral do uso no respectivo Estado em função das condições locais. Ou seja, ao Estado federado é permitido legislar supletivamente para restringir as condições de uso de agrotóxicos no Estado, porém, essa restrição suplementar pode ser adotada estritamente em função de efetiva constatação de condições ou peculiaridades locais que a justifiquem, pois, do contrário, estar-se-ia indo de encontro com a competência constitucional federal.2. 2. Da legislação aplicável: A Lei n° 7.802/89 estabeleceu as competências dos entes federados no tema relacionado aos agrotóxicos. Veja-se: “Art. 9º No exercício de sua competência, a União adotará as seguintes providências: I – legislar sobre a produção, registro, comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico; II – controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e exportação; III – analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e importados; IV – controlar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação. Art. 10. Compete aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos dos arts. 23 e 24 da Constituição Federal, legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno.” Esse art. 10 concede competência aos Estados para realizar o controle estadual, o qual MACHADO (1995, pág.367) ilustra que “nada impede os estados de criar um sistema de registro ou cadastro de agrotóxicos e seus componentes, observando as normas gerais existentes na legislação federal.”. A fabricação, o comércio, o transporte e uso de agrotóxicos, pela sua periculosidade, devem ser controlados pelo Poder Público, conforme ilustra VAZ (2006, pág. 61): “Dispõe a Constituição que incube ao Poder Público controlar a produção, a circulação, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225,§1º, V).”. A competência estadual para estabelecer um cadastro de agrotóxicos e a sua abrangência para vedar ou permitir o uso – em consonância com o que já foi decidido pela União – já foi apreciada pelo judiciário, conforme a recente decisão: “MEIO AMBIENTE. CADASTRO DE PRODUTO AGROTÓXICO. PARAQUAT. REGISTRO ANVISA. FEPAM. A FEPAM tem competência para exigir o cadastramento de agrotóxicos para sua comercialização no Estado do Rio Grande do Sul. Não pode, contudo, negar o cadastro a produto registrado na ANVISA por considerá-lo nocivo à saúde e ao meio ambiente. (…) O exame da conveniência do emprego do produto no País por meio da ponderação entre os riscos e benefícios que apresenta é da competência da União, (…) Trata-se de partilha do poder no âmbito da Federação. Assim, enquanto vigente o registro do produto, na ANVISA, é ilegal a negativa do cadastro para fins de comercialização no Estado do RS. Recurso provido.” (AGI, Vigésima Segunda Câmara Cível, nº 70058567801, n° CNJ: 0049343-67.2014.8.21.700, TJRS, 15/5/2014.). Demonstrado, enquanto vigente a anuência da União (pela existência do registro previsto na Lei nº 7.802/1989) o Estado não pode negar o cadastro estadual sob aspectos ou motivos já apreciados e aprovados pela União, ressalvados motivos e fundamentos “de especificidade regional.”. Em analogia, em relação às autorizações previstas na nova Lei 12.873/13, esse também é o procedimento que deve ser adotado quanto à decisão dos Estados para autorizar o uso dos agrotóxicos em emergências fitossanitárias. No caso, a Lei n° 12.873/13 também passou a dispor sobre agrotóxicos especificamente para uso em caráter extraordinário e dispensou o registro (art. 53, caput, inciso II, § 3º, da Lei Federal n.º 12.824/13): “A importação, produção, comercialização e o uso de agrotóxicos, seus componentes e afins, ao amparo da autorização emergencial temporária, prescindem do registro de que trata o art. 3° da Lei no 7.802, de 11 de julho de 1989”. Dessa forma, especialmente, em emergência fitossanitária, ao Estado não lhe é permitido adotar procedimento (para efetuar o controle e dispor sobre a sua especificidade regional) que obrigue ao particular a apresentação de certificado de registro expedido pelo Governo Federal, pois de acordo com a Lei de 2013 este registro não será expedido. Porém, sem considerar a divisão de competências, geral ou suplementar, e a nova possibilidade de anuência estabelecida pela Lei n° 12.873/13 (que previu apenas uma autorização e dispensou expressamente a necessidade de expedição do específico registro federal concedido nos termos da Lei nº 7.802/89) membros do Parquet efetuaram recomendações a diversos órgãos estaduais e quanto aos Estados da Bahia e do Mato Grosso (que divergiram acerca das recomendações) intentou duas Ações Civis Públicas- ACP em face dos respectivos órgãos estaduais, com as seguintes abordagens que trato nesse artigo: “Com base no Inquérito Civil nº (…), que segue apenso, a presente demanda visa compelir o Estado da Bahia, bem como sua autarquia ADAB, com base na legislação aplicável, a fiscalizarem e proibirem o uso de produtos agrotóxicos …, uma vez que tal componentes químicos não possuem registro no órgão federal competente…”. Portanto, à luz da disciplina atual sobre a matéria, a comercialização e o uso de agrotóxicos para aplicação na produção agrícola na Bahia estão condicionados ao prévio registro dos mesmos junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), bem como ao cadastro perante a ADAB. Do quanto aqui expendido acerca da disciplina legal, seja em âmbito federal ou estadual, nota-se como condição imprescindível para a comercialização e uso de agrotóxicos o prévio registro destes junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), bem como o cadastro perante a ADAB.”. (ACP 0302121.90.2013.8.05.0022 do MP do Estado da Bahia em face de Órgão Estadual).  “Com base no Inquérito Civil nº (…), que segue apenso, a presente demanda visa compelir o Estado do Mato Grosso, bem como sua autarquia INDEA, com base na legislação aplicável, a fiscalizarem e proibirem o uso de produtos agrotóxicos …, uma vez que tal componentes químicos não possuem registro no órgão federal competente. Ou seja, mesmo em caso de urgência, a legislação exige que o agrotóxico esteja previamente registrado no órgão federal competente para que seja regularmente comercializado e utilizado”. (ACP 4546-12,2014.4.01.3600 do MPF em face de Órgão do Estado do Mato Grosso). O que se constata é que nas teses das duas ACP, o trato quanto às competências e a nova legislação federal não foram adotadas, prevalecendo a tese somente da disciplina da Lei Federal de 1989 e das normas estaduais que unicamente previam a possibilidade de permissão de uso no Estado se previamente registrado nos termos da Lei n° 7.802/89. 3. Dos Atos de Registro de Agrotóxico e de Autorização de uso emergencial: De fato, a Lei nº 7.802/89 exige que para os agrotóxicos serem utilizados, deve-se obter o registro perante o Governo Federal. Entretanto, o Governo Federal inovou na legislação brasileira de agrotóxicos ao editar a Lei nº 12.873/13 que instituiu uma autorização de agrotóxicos exclusivamente em usos emergenciais ao invés do registro em sentido estrito conforme previsto na lei de 1989. A anuência prevista na Lei nº 12.873/13 superveniente e excepcional prescinde do registro previsto na Lei n° 7.802/89, mas exige que seja concedida uma autorização para importação e para uso quando declarado, pelo Governo Federal, estado de emergência fitossanitária. Essas normas trazem as seguintes regras: “Lei 7.802/89, art. 3º “Os agrotóxicos, seus componentes e afins, de acordo com definição do art. 2º desta Lei, só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, se previamente registrados em órgão federal, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura. Lei n° 12.873/2013, Art. 53. “Fica a instância central e superior do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária de que trata o § 4o do art. 28-A da Lei no 8.171, de 17 de janeiro de 1991, autorizada, nos termos do regulamento, em caráter extraordinário, a anuir com a importação e a conceder autorização emergencial temporária de produção, distribuição, comercialização e uso, quando declarado estado de emergência fitossanitária ou zoossanitária de:… II – agrotóxicos e afins; e”. Por sua vez, o Decreto n° 4.074/02, que regulamenta a lei de 1989 define registro como: “XLII-registro de produto – ato privativo de órgão federal competente, que atribui o direito de produzir, comercializar, exportar, importar, manipular ou utilizar um agrotóxico, componente ou afim;”. Tanto o registro como as autorizações previstas naquelas normas transcritas são espécies de atos administrativos, igualmente como os de admissão, concessão, permissão, aprovação, licença, alvará e homologação (MELLO, 2005, pág. 403). Todos decorrem de anuência do Poder Público para que determinado interessado desempenhe uma atividade. São necessários para legitimar a atividade a ser executada, nos termos do parágrafo único do art. 170 da CF/88 “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”. A autorização é o tipo de ato administrativo que a Lei n° 12.873/13 adotou para conceder o direito de utilizar determinado produto para controle de praga em emergência fitossanitária e segundo explica MELLO (2005, pág.409) “Autorização é ato administrativo unilateral pela qual a Administração, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo como regra o caráter precário’”. Este caráter precário da autorização corresponde à precariedade prevista na nova lei (art. 28) “autorização emergencial temporária…”. Dessa forma, perfeitamente cabível a anuência do Poder Público, via ato administrativo de autorização, conforme estabelecido na legislação. Importante destacar que apesar do rito processual distinto e expedição do ato administrativo precário (com prazo determinado) e centralização das avaliações em um Órgão da União, a nova legislação estabelece as idênticas restrições ou vedações estabelecidas na Lei n° 7.802/89, quanto aos aspectos toxicológicos nocivos ao homem ou ao meio ambiente, e ainda acrescentou outra: “Lei 12.284/2013, Art. 6º, § 4º A anuência ou a autorização emergencial temporária de que trata o caput somente poderão ser concedidas para produtos cujo emprego seja autorizado para culturas similares em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE que adotem, nos respectivos âmbitos, o International Code of Conduct on the Distribution and Use of Pesticides da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO.” 4. Conflito aparente de normas e Incidência da lei superveniente: A circunstância da legislação federal anterior (Lei n° 7.802/89) e bem assim as legislações estaduais preverem a necessidade de efetuar o cadastro do produto no órgão competente do Estado ou do Distrito Federal com a apresentação do prévio registro concedido pela União não têm a força de derrogar os preceitos legais especiais das normas aplicáveis quando se tratar de situação excepcional e de emergência fitossanitária, tal qual a de que se cuida no caso em análise, que versaram expressamente sobre a dispensa do registro no órgão federal, pois nesse aparente conflito de normas, deve-se adotar a disciplina prevista no art. 2º, §1º, do Decreto-Lei nº 4567/1942- Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Art. 2o § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” Essa é a interpretação que nos parece a mais autorizada, até mesmo por força do comando previsto na Constituição Federal, art. 24, § 4º: “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”. A interpretação desse dispositivo constitucional já foi motivo de diversas manifestações do Judiciário, das quais selecionamos: “(…) A superveniência de lei federal dispondo normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. No caso, o citado texto normativo estadual (Lei 6.915/1995), por disciplinar de forma diversa e ser posterior à lei federal, nem chegou a ter eficácia, prevalecendo, pois, o art. 76, da Lei 8.213/1991, que estabelece a data da inscrição ou habilitação como termo inicial da concessão do benefício em favor de dependentes posteriormente incluídos.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 595.586, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-2-2010, Segunda Turma, DJE de 12-3-2010.) “Produção e consumo de produtos que utilizam amianto crisotila. Competência concorrente dos entes federados. Existência de norma federal em vigor a regulamentar o tema (Lei 9.055/1995). Consequência. Vício formal da lei paulista, por ser apenas de natureza supletiva (CF, art. 24, § 1º e § 4º) a competência estadual para editar normas gerais sobre a matéria.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 8-5-2003, Plenário, DJ de 1º-8-2003. “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL – INEXIGIBILIDADE – SUPERVENIÊNCIA DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL – DECISÃO MANTIDA.  O pedido de antecipação dos efeitos da tutela para fins de compelir o proprietário a realizar a averbação de área de reserva legal em Cartório de Registro de Imóveis deve ser indeferido, diante da superveniência do Novo Código Florestal – Lei nº. 12.651/2012 – que afasta esta exigência.” (TJ-MG – AI: 10155120019288001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 26/03/2013, Câmaras Cíveis/2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/04/2013). Portanto, em que pese a possibilidade de o Estado realizar cadastro estadual de produto agrotóxico com a apresentação do correspondente prévio registro expedido por Órgão Federal, nos ditames da Lei n° 7.802/89, não se vislumbra ser pertinente a interpretação de norma estadual ou a adoção de teses que insistem na necessidade de cadastro do registro federal de agrotóxico para uso em emergência fitossanitária. Não é permitido desconsiderar a vigência da regra da nova legislação que trouxe regime diferenciado. Esse foi o sentido do entendimento adotado pelo Ilustre Desembargador Federal Jirair Meguerian, que apreciou pedido de reconsideração elaborado pelo Ministério Público Federal em face de decisão desse magistrado que já havia atribuído efeito suspensivo contra decisão proferida por Juiz Federal que, por sua vez, havia concedido liminar para suspender a autorização estadual de uso de agrotóxico em emergência fitossanitária: “Assim, tem-se que a importação emergencial e extraordinária do agrotóxico não está registrada pelas normas citadas pelo agravado, mas sim pela Lei 12.873/2013, que trata do regime diferenciado de importação, comércio e utilização de agrotóxico, quando declarado estado de emergência fitossanitária e zoossanitária.” (TRF 1ª Região, AGI 0027841-14.2014.4.01.0000/MT, 11/07/2014). 5. Do controle Estadual previsto na Lei nº 12.873/2013: A fabricação, o comércio, o transporte e uso de agrotóxicos, pela sua periculosidade, devem ser controlados pelo Poder Público, conforme ilustra VAZ (2006, pág. 61): “Dispõe a Constituição que incube ao Poder Público controlar a produção, a circulação, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225,§1º, V).”. Tanto os agrotóxicos registrados como aqueles autorizados são objeto de controle dos Órgãos Estaduais. No caso da autorização que foi motivo das duas ACP, a legislação prevê controle estadual mais rigoroso. Jirair Meguerian, em apreciação do tema, constatou que: “E esse é exatamente o caso em comento, em que se constata um surto de largata helicoverpa armigera nas lavouras de soja e algodão, motivo pelo qual o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA declarou o estado de emergência fitossanitária e autorizou a importação e utilização emergencial do produto, utilização essa, inclusive, que não fica ao livre arbítrio dos produtores, mas que deve obedecer a regulamentação da Secretaria de Defesa Agropecuária. A partir dessa autorização é que os órgãos estaduais responsáveis, como o Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso – INDEA, devem atestar a necessidade de utilização do produto nos respectivos estados”. (TRF 1ª Região, AGI 0027841-14.2014.4.01.0000/MT, 11/07/2014). Essa Constatação de Meguerian há de ser destacada, pois, nos termos da Portaria n° 1.109/2013 do Ministério da Agricultura e Pecuária, que estabeleceu os procedimentos para autorizar a importação e uso de agrotóxico em emergência fitossanitária, o interessado deve obter previamente uma manifestação do órgão Estadual sobre um plano de segurança e controle do produto, bem como há a necessidade identificar previamente os usuários que poderão fazer o uso do produto: “Art. 6º O interessado deverá requerer, junto ao setor competente da Secretaria de Defesa Agropecuária – SDA do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, a solicitação emergencial temporária para importação do produto Benzoato de Emamectina, instruída com os seguintes documentos: III – plano de segurança e controle no transporte, armazenamento, aplicação e eliminação de resíduos e sobras ao final da vigência do estado de emergência fitossanitária, e destinação final das embalagens vazias, devidamente aprovado pelo Órgão Estadual ou Distrital de Defesa Agropecuária;”. Ademais, autorização para venda e uso não se dá para agricultores em geral, conforme a regulamentação da Lei n° 12.873/13, pelo Decreto n° 8.133/2013: “Art. 6º § 2º A anuência com a importação e a autorização emergencial temporária de produção, distribuição, comercialização e uso deverão ser requeridas pelos interessados, individualmente ou em conjunto, desde que identificadas as pessoas físicas ou jurídicas abrangidas.”. A autorização de uso estadual é dada para agricultor específico, com a sua identificação, localização, quantidade autorizada e entre outras informações previamente exigidas e atestadas pelo Estado. Portanto, a forma simples do ato administrativo expedido pelo Governo Federal (a autorização para uso emergencial) além de não eximir a necessidade de verificação, por parte de Órgão da União, das hipóteses de vedação de aprovação pela eventual nocividade à saúde ao homem ou ao meio ambiente (mesmas da Lei nº 7.802/89) e ainda demonstrar que se encontra registrado em países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico/OCDE – não subtrai qualquer competência estadual de aprovação e do controle do uso dos agrotóxicos. Pelo contrário, a norma geral expedida pelo Governo Federal obriga instrumentalização de cuidados no controle estadual (plano de segurança e controle sobre os usuários), que inexistem semelhanças em relação àqueles produtos registrados perante a Lei nº 7.802/89. 6. Considerações finais: Assim, temos que os argumentos que buscam recomendar aos Estados a não autorização de uso ou de aplicação de agrotóxicos já aprovados pela União – pela ausência de registro expedido pelo Ministério da Agricultura, conforme estabelecido pela Lei n° 7.802/89 e sem motivos acerca de eventuais condições locais desfavoráveis – padecem de equívoco, pois a Lei n° 12.873/2013 superveniente e especial (que deve prevalecer) informa que prescinde o registro que trata aquela lei de 1989 e prevê que a anuência do Poder Público para utilizar o agrotóxico em emergência se dá por expedição de ato administrativo de autorização temporária, nos termos da lei nova, a qual não somente manteve as competências constitucionais estaduais, para exercer a aprovação e o controle sobre o uso local, como ainda previu procedimento específico e rigoroso de controle estadual.
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Aspectos da Licitação na Lei 11.079/04
O presente artigo tem por intuito apresentar aspectos gerais do instituto da licitação na lei nº 11.079/04 apresentando o procedimento licitatório, com suas características que são inerentes na lei de parcerias público-privadas.
Direito Administrativo
Introdução O Capítulo V da Lei n° 11.079/04 nos arts. 10 a 14 determinou algumas regras especiais para a realização do procedimento licitatório na instituição das parecerias público-privadas, e apesar de não estabelecer o procedimento a ser observado na realização da concorrência (modalidade adotada pela lei), erigiu algumas normas específicas que por sua vez complementam ou derrogam parcialmente as Leis 8.666/93 e 8.987/95 de aplicação subsidiária ao instituto das PPPs. A adoção de certas peculiaridades é inerente ao instituto, pois como bem assegura o autor BENEDITO PORTO NETO[1], rebatendo críticas à lei por seus procedimentos especiais: “Segundo os críticos, essas normas abririam oportunidade para o direcionamento de resultados nos certames. Eles propunham que as parcerias deveriam ser precedidas de licitação no exato regime da Lei n° 8.666/93, com observância, quando elas tivessem por objeto a concessão de serviço público (concessão patrocinada), das normas adicionais contidas na Lei n° 8.987/95” O autor então propõe sua justificativa a favor dos procedimentos especiais: “A licitação, contudo, não pode desviar a Administração Pública dos objetivos por ela perseguidos. Ela não é uma finalidade em si mesma, mas mero instrumento para, uma vez definido o interesse público, selecionar proposta mais vantajosa para implementá-lo e com dispensa de tratamento isonômico aos interessados. Daí porque não tem sentido condicionar cláusulas e condições das PPPs ao regime de licitações, com amesquinhamento dos fins por ela perseguidos. O caminho a ser percorrido deve ser o inverso: as normas que disciplinam a licitação devem ser adequadas às peculiaridades das PPPS e aos objetivos a serem por meio delas alcançados”. (grifo nosso) Posto isto, se faz necessário elencar as peculiaridades da Lei n° 11.079/04 no tocante a licitação, e posteriormente debate-las uma a uma conforme os artigos da Lei: “a) Ao escolher a forma de parceria público-privada, o poder público deverá justificar sua escolha por esse instituto como condição da abertura do procedimento. b) Possibilidade de realização do certame licitatório sem a existência de projeto básico, que tem por intuito detalhar o objeto perseguido, conforme determina a Lei de Licitações. c) A existência de consulta pública, de caráter obrigatório, com a devida publicação da minuta do contrato e do instrumento convocatório, com prazo de trinta dias para recebimento de sugestões por parte daqueles que se interessarem pelo certame. (princípio da publicidade) d) Adoção de critérios especiais de julgamento, conforme elaborados no edital de convocação, instituídos pelo poder concedente de acordo com a conveniência e oportunidade. e) Possibilidade de elaboração de novas propostas econômicas ao longo do procedimento. f) Abertura de fase extraordinária para eventuais saneamentos de erros no documento de habilitação das proponentes. g) Possibilidade de inversão das fases do procedimento de concorrência.” 2 – Aspectos Prévios ao Procedimento Licitatório O art. 10 adota as providências preliminares para a abertura do certame licitatório, em seus incisos condiciona a abertura do procedimento à justificativa por parte do poder público acerca da necessidade da adoção do instituto das PPPs para a concessão pública. Nota-se, que o legislador apenas fez valer a Teoria dos Motivos Determinantes, conforme preconizado na lição de CLÁUDIO BRANDÃO DE OLIVEIRA: “Na verdade, tanto os atos vinculados quanto os discricionários podem ser necessariamente motivados, desde que seu conteúdo seja decisório e possa interferir no direito de particulares. Com a motivação o ato fica vinculado à fundamentação apresentada, exigindo-se a compatibilidade das razões de fato com a realidade e das razoes de direito com a lei. Assim, a teoria dos motivos determinantes exige a harmonia das razões de fato do ato com a realidade e do fundamento legal com a lei, sob pena de ficar caracterizada a nulidade do ato”[2]. Nota-se que a justificativa imposta pela lei quando na adoção de um contrato de concessão na forma de PPP, tem por base a motivação dos atos administrativos que vislumbrem um ônus excessivo e duradouro ao Estado, e ainda, o contrato que irá ser celebrado deve atender ao interesse público, devendo, portanto, ser justificado pelo poder concedente, não apenas se atendo ao interesse público propriamente dito quando na instituição de uma PPP, e sim à justificativa pela opção desse instituto em detrimento dos contratos sujeitos a Lei Geral das Licitações. O motivo para tanto, é o fato que como já visto antes, as PPPs têm longo prazo de vigência, variando entre 5 e 35 anos, o que obriga a Administração concedente a onerar os cofres públicos e o bem público por um prazo além de sua gestão, vindo a vincular os futuros administrados elegidos democraticamente pelo povo Continuando o estudo das determinações emanadas pelo art. 10, temos em seus incisos I, b e c, a V, os estudos técnicos anteriores a abertura da licitação. A visão do legislador foi a de consagrar a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101, de 4-5-2000), porém a dificuldade de privilegiar o instituto é imensa, visto que os contratos de PPPs ultrapassam o período de gestão do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual, gerando então um conflito entre os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e a finalidade da Lei n° 11.079/04. “Não há como o ordenador da despesa fazer estimativas que cubram todo o período de vigência do contrato. As estimativas são feitas para o exercício em que a despesa for efetuada e os dois subseqüentes (conforme art. 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal). Em razão disso, ou essa lei resultará descumprida, na medida em que empenhará orçamentos futuros, ou levará à rescisão dos contratos que venham a descumpri-la no decorrer de sua execução, com as conseqüências financeiras que toda rescisão extemporânea acarreta para o poder público”.[3] Outra questão abordada pelo art. 10 da Lei n° 11.079/04 está inserido em seu incisos VI e VII ora transcritos: “VI – submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato, seu valor estimado, fixando-se prazo mínimo de 30 (trinta) dias para recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á pelo menos 7 (sete) dias antes da data prevista para a publicação do edital; e VII – licença ambiental prévia ou expedição das diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento, na forma do regulamento, sempre que o objeto do contrato exigir.” Temos no inciso VI a observância do princípio da participação popular, além da publicidade dos atos e contratos administrativos, princípio constitucional explícito e de observância obrigatória pela Administração pública, fazendo valer-se o interessado de sua prerrogativa constitucional do direito de petição (art. 5°, XXXIV, “a”, CRFB/88) quando notadamente estiver em desacordo com a minuta do edital divulgada pelo poder público. Tal garantia de publicidade do procedimento licitatório já era tratada pela Lei n° 8.666/93 em seu art. 39, porém não faz referência expressa a obrigatoriedade de divulgação de minuta do edital e do contrato em questão. Mais uma vez a lei n° 11.079/04 inovou, impondo prazo para a divulgação de documentos à audiência pública (prazo mínimo de 30 dias para recebimento de sugestões), e ainda determinando a publicação em imprensa oficial contendo a justificativa para a contratação, além da identificação de seu objeto, prazo e valor. O inciso VII por sua vez trata da Licença Ambiental anterior à abertura do certame, previsão essa que repete o constante na Lei n° 6.938/81 que trata da Política Nacional do Meio Ambiente. Ainda, a Constituição Federal de acordo com seu art. 225, parágrafo 1°, inc. IV preconiza “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”. 2 – O Procedimento Licitatório Superada as fases preliminares, dar-se início ao certame em si, e para tanto elencamos a seguir os aspectos do procedimento licitatório, com suas particularidades da Lei n° 11.079/04 em seu Capítulo V, artigos 11 a 13. O art. 11 em seu caput refere-se ao instrumento convocatório, dando aplicabilidade aos artigos 15, §§ 3° e 4°, e 18, 19 e 21, além do artigo 11, caput e parágrafo único da Lei n° 8.987/95, tornando o edital adstrito a essas determinações legais enquanto na sua elaboração. No que tange ao projeto básico, anterior à abertura do procedimento licitatório, estaria este previsto no inciso II do art. 11 da Lei das PPPs, porém recebeu o veto presidencial.[4] A Lei n° 8.666/93 em seu art. 6°, IX condiciona o certame à existência de tal projeto, erigindo seus elementos qualificadores. A Lei n° 11.079/04, portanto, não adota tal condição, e a justificativa se dá na contraposição do sistema adotado pela Lei Geral de Licitações e Contratos – que tem por intuito definir o modelo do contrato, cabendo ao concessionário cumprir as determinações- diferentemente do que ocorre com a Lei das PPPs, visto que é inerente ao instituto da parceria o compartilhamento das atividades, pela qual o parceiro público determina os fins, e o parceiro privado elege os meios a serem empregados com o propósito único de levar o projeto à consagração. O inciso III do artigo 11 trouxe a arbitragem, conforme cláusula pactuada pelas partes, como método de solução de controvérsias. Tal preceituação divide a doutrina, e conforme se extrai da obra de TOSHIO MUKAI[5]: “Muito se tem discutido sobre a legalidade da utilização da arbitragem nos contratos administrativos. Uma corrente entende que isso não seria possível, sob o argumento de que a arbitragem não pode ser utilizada em questões que envolvam o Poder Público, por estarem em jogo direito públicos, indisponíveis. Outra corrente entende ser possível, desde que a lei autorize tal possibilidade (posição do Tribunal de Contas da União)”. E ainda: “Portanto, a arbitragem somente poderá ser utilizada em matéria de PPPs quando se tratar de questões em que o Poder Público não abrirá mão de bens e interesses públicos portadores da condição de indisponibilidade. Nessas condições a via de solução de conflitos só pode ser a judicial.” Passando ao artigo 12, verificamos que o mesmo se atém à licitação propriamente dita, erigindo as normas específicas que devem ser observadas, derrogando, portanto, as Leis 8.666/93 e 8.987/95, aplicando-se a primeira em tudo o que não for conflitante com a Lei n° 11.079/04. O inciso I do referido artigo trata da desqualificação técnica preliminar dos licitantes que não alcançarem à pontuação mínima prevista no edital (critério de julgamento objetivo). Tal determinação legal tem o intuito de afastar do certame as propostas que não atinjam o interesse público e aos critérios pré-estabelecidos, lembrando, que tal desqualificação deverá ser devidamente justificada, afim de não tornar-se elemento atentatório à moralidade administrativa, quando na sua utilização para favorecimento ilícito. O inciso II indica os critérios de julgamento, a saber: “II – o julgamento poderá adotar como critérios, além dos previstos nos incisos I e V do art. 15 da Lei n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes: a) menor valor da contraprestação a ser paga pela Administração Pública; b) melhor proposta em razão da combinação do critério da alínea a com o de melhor técnica, de acordo com os pesos estabelecidos no edital;” A diferenciação a ser feita está na existência de critérios objetivos adotados, qual seja os de aspectos econômicos (menor tarifa, maior oferta pela outorga, menor valor da contraprestação devida pela Administração, e a combinação entre eles), que por sua vez não deixam margem à discricionariedade do poder concedente tal qual se faz com os critérios subjetivos, que são os de caráter técnico. Tal previsão de julgamento com base em critérios técnicos já vinha prevista na Lei n° 8.987/95, não sendo novidade para as concessões patrocinada. Todavia a inovação veio para as concessões patrocinadas. Conforme bem afirma BENEDICTO PORTO NETO[6]: “É claro que sem possibilidade de oferta de soluções próprias e diferençadas que se reflitam no objeto da concessão administrativa não se justifica a adoção de critérios técnicos para julgamento das propostas técnicas. Não basta, portanto, que a licitação tenha por objeto PPP para que critérios técnicos possam ser adotados no julgamento das propostas. A Administração deve demonstrar, ainda, a pertinência da adoção desses critérios em face dos resultados que ela almeja alcançar.” Ainda: “O julgamento de propostas por critérios técnicos deve garantir maior objetividade possível, mediante ato motivado com base em exigências, parâmetros e indicadores de resultados pertinentes ao objeto, definidos com clareza e objetividade no edital (art. 12, parágrafo 2°)”. Analisando o art. 12, inciso III, se faz necessário a analise conjunta com o parágrafo 1° do citado artigo. O inciso III define a apresentação das propostas econômicas, sendo: a) propostas escritas em envelopes lacrados, ou; b) escritas, seguidas de lances em viva-voz. A Lei n° 11.079/04 utiliza-se do procedimento estabelecido pela Lei n° 10.520/02 (Modalidade de Pregão), através do qual é possível a modificação das propostas econômicas ao longo do procedimento, com a possibilidade de apresentação de lances verbais e sucessivos, viabilizando a ampliação da competição, com vistas a ser mais vantajoso para o Poder Público. O Parágrafo 1° vem limitar a apresentação dos lances, admitindo que os feitos em viva voz serão sempre oferecidos na ordem inversa da classificação das propostas escritas, sendo vedado ao edital limitar a quantidade de lances, porém podendo restringir a apresentação de lances em viva voz aos licitantes cuja proposta seja no máximo 20% maior que o valor da melhor proposta. Outra previsão estabelecida pela Lei n° 11.079/04 consta em seu art. 12, inciso IV, que diz respeito a fase de saneamento, ora transcrito: “IV – o edital poderá prever a possibilidade de saneamento de falhas, de complementação de insuficiências ou ainda de correções de caráter formal no curso do procedimento, desde que o licitante possa satisfazer as exigências dentro do prazo fixado no instrumento convocatório.” Conforme observa BENDICTO PORTO NETO[7], no tocando a fase de saneamento: “Concebida originariamente no anteprojeto de Lei Geral de Contratações da Administração Pública (APL), elaborado na gestão anterior no Ministério do Planejamento, as vantagens da nova fase são bastante claras. Ela evita a eliminação desnecessária de licitantes e propostas, com ampliação da disputa; reduz a quantidade de recursos administrativos e judiciais contra decisões de inabilitação ou desclassificação, agilizando o procedimento; impede o dirigismo da licitação por meio de definição de cláusulas editalícias obscuras ou contraditórias, para que lhes seja fixado o sentido concreto depois da apresentação dos documentos e propostas pelos licitantes”. A sustentação feita por alguns juristas é no sentido da ilegalidade da norma, no tocante a afronta ao princípio da competitividade nas licitações (art. 3°, § 1°, I, da Lei n° 8.666/93), e inconstitucional porque atenta contra o princípio da igualdade (art. 37, XXI, da CF). Todavia, filiando-se a corrente da Profª Maria Sylvia Di Pietro, nas palavras ainda do mesmo autor acima citado, tem-se a sustentação a favor da norma, em uma brilhante passagem ora transcrita: “O Direito, contudo, não é um mundo-de-papel ou um mundo-de-faz-de-conta. Nem a licitação é um esporte, onde o resultado da disputa é decidido por pequenos detalhes ou por pequenos deslizes. Licitação é coisa muito diferente. Ela tem um resultado substancial, real, a alcançar: selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, com dispensa de tratamento isonômico aos que efetivamente possam cumprir o contrato”[8]. Ainda: “O formalismo tem importante papel para garantir respeito às finalidades públicas, mas o procedimento definido em lei deve permitir a aferição de dados do mundo real. São eles que interessam. Licitação não é gincana para premiar o melhor cumpridor de edital”[9]. Sendo assim, conclui-se que, estando prevista em lei e no edital, a fase de saneamento permite tratamento isonômico, e ainda permite que os licitantes apresentem propostas qualificadas e com conteúdo que atenda às finalidades públicas. Outra novidade instituída pela Lei das PPPs em relação à Lei Geral de Licitações está na possibilidade da inversão das fases de habilitação e julgamento. Invertendo as fases, eventualmente poderíamos nos deparar com a violação ao princípio da impessoalidade e moralidade, visto que a verificação do atendimento das exigências da habilitação deve ocorrer depois do conhecimento das demais propostas. Quanto à oportunidade de interpor recurso, a Lei n° 11.079/04 ao silenciar-se, faz com que a Lei 8.666/93 seja o regime adotado quando na oportunidade de recurso em dois momentos, uma contra o ato de habilitação e outra contra o de classificação de propostas. Conclusão O presente artigo demonstrou aspectos do procedimento licitatório na lei nº 11.079/04 e suas principais peculiaridades. Conclui-se que há aspectos particulares no que toca à licitação na lei de parcerias público-privadas tais quais: Justificativa por parte do poder público para escolha da PPP como modalidade concessória; a dispensa de projeto básico; exigência de consulta pública; critérios especiais de julgamento das propostas; inversão de fases e fase extraordinária durante o procedimento licitatório.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/aspectos-da-licitacao-na-lei-11-079-04/
Do direito de opção pelo regime público de previdência complementar
O presente artigo pretende abordar uma relevante questão no que tange ao direito administrativo e constitucional. Trata-se da aplicação compulsória do regime de previdência complementar aos servidores públicos federais admitidos no funcionalismo a partir de 04/02/2013 (vigência da Lei 12.618/2012), mas egressos de outros entes federados que não instituíram o regime de previdência complementar. Isto é, a exceção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal é aplicável aos funcionários públicos federais que, até 03/02/2013, ingressaram no serviço público em outro ente da Federação? A mudança de esfera de governo, sem quebra da continuidade, impede o exercício da opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal?
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo pretende abordar uma relevante questão no que tange ao direito administrativo e constitucional. Trata-se do regime de previdência complementar para servidores públicos federais titulares de cargos efetivos. Como se sabe, a Lei 12.618/2012, regulamentando o artigo 40 da Constituição Federal, estabeleceu o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais. A partir da vigência da Lei 12.618/2012, fixada em 04/02/2013, os benefícios pagos pelo regime de previdência dos funcionários públicos federais possuem o mesmo limite dos benefícios pagos pelo INSS para o regime geral de previdência. Para compensar essa limitação, o constituinte derivado facultou a criação do sistema de previdência complementar. Em cumprimento ao § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, todos os funcionários públicos que ingressaram no serviço público federal antes da efetiva implantação do sistema de previdência complementar, ou seja, todos que ingressaram até 03/02/2013, podem optar pelo novo regime, ou permanecer no sistema até então vigente. A questão relevante é: a exceção do § 16 do Artigo 40 da Constituição Federal é aplicável aos funcionários públicos que, até 03/02/2013, ingressaram no serviço público em outro ente da Federação? A Constituição Federal (§ 16, artigo 40), ao afirmar: “ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar”, faz alguma restrição ao ente federado no qual houve o ingresso no serviço público? Em outras palavras, como interpretar a expressão ‘serviço público’ inserida no § 16 do artigo 40 da Constituição Federal? Seria legítimo, por meio de interpretação, retirar do âmbito de incidência do referido dispositivo constitucional os funcionários que ingressaram no serviço público em outro ente da Federação e, a partir de 04/02/2013, ingressaram no serviço público federal sem quebra da continuidade? Essa é a questão que o presente artigo pretende responder. 1 .DO REGIME PREVIDENCIÁRIO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO O regime de previdência dos funcionários públicos passou por diversas modificações desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. No presente artigo, não será possível analisar com profundidade o regime originário de previdência. Contudo, para o deslinde da questão ora proposta, é preciso ressaltar a importância das emendas constitucionais nº 20/1998, 41/2003 e 47/2005. Todas implicaram profundas mudanças no regime de previdência. Em apertada síntese, pode-se afirmar que o escopo de todas as referidas emendas foi tornar o regime de previdência dos funcionários públicos o mais próximo possível do regime de previdência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Nesse sentido, esclarece Maria Sylvia Zanella DI Pietro: “As bases para a chamada reforma previdenciária foram lançadas pela Emenda Constitucional nº 20/98. O objetivo último é de reduzir os benefícios sociais – mais especificamente proventos de aposentadoria e pensão – dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos e seus dependentes, colocando-os, paulatinamente, nos mesmos patamares vigentes para o regime geral de previdência social, que inclui o trabalhador do setor privado e os servidores não ocupantes de cargo efetivo. O que se objetiva, na realidade, é a unificação da previdência social. Não podendo ser feita de imediato, tendo em vista as situações consolidadas com base na legislação vigente, pretende-se alcançar esse objetivo de forma paulatina[1].” No que tange ao escopo do presente artigo, é preciso destacar as regras para aposentadoria conforme a data de ingresso no serviço público. Para tanto, vamos adotar como marco temporal a Emenda Constitucional nº 41/2003. Note-se que a análise concentrou-se nos casos em que o funcionário ingressou após a publicação da Emenda nº 41/2003, na medida em que os funcionários que ingressaram no serviço público antes da referida emenda contam com a possibilidade de aposentadoria integral. Para o servidor que ingressou em cargo público efetivo de qualquer ente federado após a entrada em vigor da Emenda nº 41/2003, não há opção. Deve-se respeitar as regras de aposentadoria estabelecidas pelo art. 40, §§ 1º, 4º e 5º, com proventos a serem definidos em lei, na forma do § 3º do referido dispositivo legal. Contudo, aos funcionários públicos que ingressaram após a Emenda Constitucional 41/2003, resta a possibilidade de aplicação das seguintes regras, todas previstas no artigo 40 da Constituição Federal: “§ 14 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/98) § 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003) § 16 – Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos  §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/98)” Verifica-se que, para o funcionário público que ingressou após a Emenda nº 41/2003, é facultada a opção pelo regime de previdência complementar, ou manutenção do regime de ingresso. Para tanto, é necessário que, quando do ingresso no setor público em cargo efetivo, não estivesse em vigor o sistema de previdência complementar (§ 16 do artigo 40 da Constituição Federal). No caso dos servidores federais, a regra é a seguinte: (i) para aqueles que ingressaram a partir de 04/02/2013 (data da vigência da Lei 12.618/2012, que instituiu o sistema de previdência complementar), é obrigatório o novo regime, composto pela previdência pública limitada ao teto do regime geral de previdência do INSS, acrescido do sistema de previdência complementar; (ii) para aqueles que ingressaram após a Emenda 41/2003, mas antes de 04/02/2013, é assegurada a opção pelo regime de previdência complementar, ou a manutenção do regime vigente quando do ingresso no funcionalismo. Ocorre que essa explanação não resolve todas as questões envolvidas, especialmente no que tange aos servidores que ingressaram no funcionalismo público federal a partir de 04/02/2013, mas são egressos, sem quebra de continuidade, de outro ente federado que não havia instituído o sistema de previdência complementar. A problemática surge em função do seguinte trecho do § 16, do artigo 40 da Constituição Federal: “poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar”. Note-se que o texto Constitucional utiliza a expressão ingresso no serviço público, de forma geral. Vale dizer, a redação constitucional não é expressamente restritiva, impondo o ingresso no serviço público em determinada esfera de governo. Essa questão é o foco principal do presente artigo. Para completa elucidação do tema, será preciso, ainda, estudar outros institutos. 2. DO SISTEMA DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR É preciso uma breve análise sobre o plano de previdência complementar instituído pela Lei 12.618/2012, especialmente a finalidade almejada e a regra mestre para pagamento de benefícios. Inicialmente, cumpre destacar que se trata de um regime de previdência pública, de caráter complementar, e organizado de forma autônoma em relação aos demais regimes (regime geral de previdência e regime próprio do servidor público). Maria Sylvia Zanella DI Pietro faz a seguinte explanação sobre tema: “A Emenda Constitucional nº 20, no artigo 40, § 14, veio outorgar à União, Estados, Distrito Federal e Municípios a possibilidade de instituir regime de previdência complementar para os seus servidores titulares de cargo efetivo, ou seja, para os que se sujeitam ao regime do artigo 40. Nesse caso, poderão tais servidores ficar sujeitos ao limite máximo estabelecido para os benefícios do regime de previdência social de que trata o artigo 201, seja para proventos de aposentadoria, seja para a pensão por morte. […] A ideia é que a previdência social, como encargo do Poder Público, remanesça apenas para cobrir os benefícios limitados a esse valor, ficando para a previdência complementar a cobertura de valores maiores. Cada ente governamental tem competência própria para instituir o regime, mediante lei de iniciativa do Poder Executivo (art. 40, § 15, com redação dada pela Emenda nº 41/03). Essa previdência complementar, disciplinada pela Lei Complementar 109 de 29-5-2001, somente é possível para os servidores que ingressarem no serviço público após a instituição do novo regime; para os demais, dependerá de sua expressa opção (art. 40, § 16, da Constituição)[2].” Conforme se extrai da lição doutrinária acima transcrita, a inovação do texto magno tem por escopo a equiparação do regime de previdência dos funcionários públicos, com o regime geral de benefícios do INSS. Para valores de benefícios superiores ao teto do INSS, há o regime complementar de previdência. Pois bem, em cumprimento ao disposto no texto magno, a Lei 12.618/2012 instituiu o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais. A justificativa contida no projeto de lei que deu origem à mencionada lei ressalta, mais uma vez, a finalidade da modificação do regime de previdência: “[…] o objetivo básico do Projeto de Lei é implementar o regime de previdência complementar para o servidor público federal, dando seqüência à reforma da previdência iniciada com a aprovação da Emenda Constitucional n° 41, de 19 de dezembro de 2003, viabilizando a recomposição do equilíbrio da previdência pública e garantindo sua solvência no longo prazo, isto é, a existência dos recursos necessários ao pagamento dos benefícios pactuados.  3. É certo supor que seu efeito reduzirá a pressão sobre os recursos públicos crescentemente alocados à previdência, permitindo recompor a capacidade de gasto público em áreas essenciais à retomada do crescimento econômico e em programas sociais. 4. A minuta de Projeto de Lei ora apresentada viabiliza uma nova configuração dos dispêndios e obrigações futuras da União para com seus servidores e permite a construção de um modelo de previdência sustentável.” Evidente, portanto, que o escopo final da reforma da previdência é gerar, mesmo a médio e longo prazo, economia de recursos públicos. A sistemática para pagamento de benefícios pelo regime complementar está disposta nos seguintes artigos: “Art. 12. Os planos de benefícios da Funpresp-Exe, da Funpresp-Leg e da Funpresp-Jud serão estruturados na modalidade de contribuição definida, nos termos da regulamentação estabelecida pelo órgão regulador das entidades fechadas de previdência complementar, e financiados de acordo com os planos de custeio definidos nos termos do art. 18 da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, observadas as demais disposições da Lei Complementar nº 108, de 29 de maio de 2001. § 1o A distribuição das contribuições nos planos de benefícios e nos planos de custeio será revista sempre que necessário, para manter o equilíbrio permanente dos planos de benefícios. § 2o Sem prejuízo do disposto no § 3º do art. 18 da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, o valor do benefício programado será calculado de acordo com o montante do saldo da conta acumulado pelo participante, devendo o valor do benefício estar permanentemente ajustado ao referido saldo. § 3o Os benefícios não programados serão definidos nos regulamentos dos planos, observado o seguinte: I – devem ser assegurados, pelo menos, os benefícios decorrentes dos eventos invalidez e morte e, se for o caso, a cobertura de outros riscos atuariais; e II – terão custeio específico para sua cobertura. § 4o Na gestão dos benefícios de que trata o § 3o deste artigo, as entidades fechadas de previdência complementar referidas no art. 4o desta Lei poderão contratá-los externamente ou administrá-los em seus próprios planos de benefícios. § 5o A concessão dos benefícios de que trata o § 3o aos participantes ou assistidos pela entidade fechada de previdência social é condicionada à concessão do benefício pelo regime próprio de previdência social. Art. 13. Os requisitos para aquisição, manutenção e perda da qualidade de participante, assim como os requisitos de elegibilidade e a forma de concessão, cálculo e pagamento dos benefícios, deverão constar dos regulamentos dos planos de benefícios, observadas as disposições das Leis Complementares nºs 108 e 109, de 29 de maio de 2001, e a regulamentação do órgão regulador das entidades fechadas de previdência complementar. Parágrafo único.  O servidor com remuneração inferior ao limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social poderá aderir aos planos de benefícios administrados pelas entidades fechadas de previdência complementar de que trata esta Lei, sem contrapartida do patrocinador, cuja base de cálculo será definida nos regulamentos. Art. 14.  Poderá permanecer filiado aos respectivos planos de benefícios o participante: I – cedido a outro órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive suas empresas públicas e sociedades de economia mista; II – afastado ou licenciado do cargo efetivo temporariamente, com ou sem recebimento de remuneração; III – que optar pelo benefício proporcional diferido ou auto patrocínio, na forma do regulamento do plano de benefícios. § 1o Os regulamentos dos planos de benefícios disciplinarão as regras para a manutenção do custeio do plano de benefícios, observada a legislação aplicável. § 2o Os patrocinadores arcarão com as suas contribuições somente quando a cessão, o afastamento ou a licença do cargo efetivo implicar ônus para a União, suas autarquias e fundações. § 3o Havendo cessão com ônus para o cessionário, este deverá recolher às entidades fechadas de previdência complementar referidas no art. 4o desta Lei a contribuição aos planos de benefícios, nos mesmos níveis e condições que seria devida pelos patrocinadores, na forma definida nos regulamentos dos planos.” Conforme expressamente determinado pela norma legal transcrita, trata-se de regime de contribuição definida. Ou seja, há fixação do valor da contribuição a ser efetuada pelo servidor, mas não há determinação antecipada do valor do benefício. Isso porque, o valor dependerá de uma série de variantes. A mais relevante é o montante acumulado pelo servidor. A ideia central é que o próprio servidor, por meio de contribuição e contrapartida do ente público, forme capital suficiente para garantir o pagamento da complementação da aposentadoria. Trata-se, na verdade, de mais um efeito da ideologia liberal que invadiu os países em desenvolvimento a partir dos anos 1990. A ideia é a migração do sistema de solidariedade (os servidores atuais pagam o benefício dos servidores inativos) para o regime de formação de capital individual (o próprio indivíduo propicia a formação de capital para arcar com o valor da aposentadoria). Essas são as notas relevantes sobre o regime de previdência complementar que demandam análise. 3. DOS EGRESSOS DE OUTROS ENTES FEDERADOS Como já dito em outros itens, para o funcionário público que ingressou após a Emenda nº 41/2003 é facultada a opção pelo regime de previdência complementar, ou manutenção do regime de ingresso. Para tanto, é necessário que, quando do ingresso no setor público em cargo efetivo, não estivesse em vigor o sistema de previdência complementar (§ 16 do artigo 40 da Constituição Federal). Em observância ao disposto no § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, a Lei 12.618/2012 assim determinou: “Art. 1o  É instituído, nos termos desta Lei, o regime de previdência complementar a que se referem os §§ 14, 15 e 16 do art. 40 da Constituição Federal para os servidores públicos titulares de cargo efetivo da União, suas autarquias e fundações, inclusive para os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público da União e do Tribunal de Contas da União. Parágrafo único. Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo que tenham ingressado no serviço público até a data anterior ao início da vigência do regime de previdência complementar poderão, mediante prévia e expressa opção, aderir ao regime de que trata este artigo, observado o disposto no art. 3o desta Lei. […] Art. 3o  Aplica-se o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social às aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de previdência da União de que trata o art. 40 da Constituição Federal, observado o disposto na Lei no 10.887, de 18 de junho de 2004, aos servidores e membros referidos no caput do art. 1o desta Lei que tiverem ingressado no serviço público: […] Art. 22.  Aplica-se o benefício especial de que tratam os §§ 1o a 8o do art. 3o ao servidor público titular de cargo efetivo da União, inclusive ao membro do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União, oriundo, sem quebra de continuidade, de cargo público estatutário de outro ente da federação que não tenha instituído o respectivo regime de previdência complementar e que ingresse em cargo público efetivo federal a partir da instituição do regime de previdência complementar de que trata esta Lei, considerando-se, para esse fim, o tempo de contribuição estadual, distrital ou municipal, assegurada a compensação financeira de que trata o § 9o do art. 201 da Constituição Federal.” Verifica-se que o § 1, artigo 1º da referida norma, ao tratar da obrigatoriedade do regime de previdência complementar, utiliza o ingresso no serviço público como critério diferenciador, sem fazer referência expressa ao ente federado em que houve o ingresso. O artigo 22 da referida norma faz referência aos servidores públicos egressos de outros entes da federação (estados e municípios) que, sem quebra de continuidade, ingressaram no serviço público federal após a vigência do regime complementar. A redação dos referidos dispositivos legais gerou a seguinte indagação: a exceção do § 16 do Artigo 40 da Constituição Federal é aplicável aos funcionários públicos que, até 03/02/2013, ingressaram no serviço público em outro ente da Federação e, a partir de 04/02/2013, foram, sem quebra de continuidade, admitidos no serviço público federal? A questão, além de teórica, gerou diversas indagações envolvendo casos concretos, tendo a Advocacia-Geral da União (AGU) sido chamada para dirimir a questão. Foi elaborado o parecer nº 009/2013/JCBM/CGU/AGU, que restou aprovado pelo Advogado-Geral da União. Diante dos detalhes da questão envolvida, alguns trechos do referido parecer merecem destaque: “A questão é saber se o servidor carrega consigo, ou não; o direito de não sujeitar-se ao regime complementar do Ente Político no qual ingresse. No caso da União, a faculdade de aderir ou não ao regime complementar objeto da Lei n. 12.618/12. Não há previsão constitucional nem legal, de que o servidor transporta de um Ente Político para outro, o direito de não aderir ao regime de previdência complementar, pelo fato de não tê-lo feito na origem. Ou de fazer nova opção. A opção do § 16 do art. 40 da CF/88 diz respeito a determinado regime jurídico. Regime jurídico da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Cada Ente da Federação possui autonomia para instituir seu próprio regime jurídico (art. 39 da CF/88), e a opção por regime jurídico está atrelada a cada Ente Federado. Não há regime jurídico universal de opção. O servidor público efetivo tem relação estatutária com o Ente Federado que o admitiu. Daí, não ostenta direito oponível à União de não sujeitar-se às regras estabelecidas na Lei 12.618/12, precedente a seu ingresso. A opção do § 16 do art., 40 da CF/88 é opção por determinado regime jurídico: Regime jurídico próprio de previdência, sem observância do teto do RGPS ou, opção pelo regime complementar (quando o regime próprio do ente Federado arcar com benefício máximo do teto do RGPS). O STF tem entendimento firmado quanto a ausência de direito adquirido a determinado regime jurídico administrativo. Cite-se recentíssima decisão no At 857007 AgR/RS – Rio Grande do Sul, AR. REG no Agravo de instrumento. Relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/09/2013, 1ª Turma, DJE de 08/10/2013. […] A opção do § 16, art. 40 da CF/88 é uma faculdade que em deferência à legalidade (art. 37, caput da CF/88), somente pode ser exercitada nos limites da norma positivada. No caso da União, a Lei nº 12.618/2012. O direito de opção apenas surge no momento da instituição do regime complementar. E essa opção deve ser exercitada junto ao Ente Federado onde admitido o servidor e no prazo estipulado na Lei de regência. A Lei 12.618/12 é um marco regulatório. O direito de opção (§ 16 do art. 40 da CF/88) somente pode ser exercitado por quem era servidor público federal quando do início de vigência do Funpresp-Exe em 4/2/2013. Quem entrou depois, não detém a mesma prerrogativa do servidor que já estava nos quadros da União. Seria um super direito de expectativa para quem nem era servidor federal. Imagine-se a hipótese de servidores que ingressem nos quadros federais daqui a 5, 10, 15, 20 anos, após a Lei 12.618/12, querendo ostentar direito de receber além do teto do RGPS pelo regime de previdência da União. Refoge a qualquer lógica. A Lei 12.618/12 estabeleceu nos arts. 3º e 22 marcos temporais. Dizem com sua aplicabilidade: um a partir do início da sua vigência (4/2/2013) e o outro até a data anterior ao início da sua vigência (3/2/2013). […] É compulsório a aplicação do limite máximo do RGPS para os ingressos nos quadros federais a partir de 4/2/2013. Não houve distinção de origem; se egresso de Estado, DF ou Município. Quem ingressou no serviço público federal a partir da vigência do FUNPRESP-Exe, em 4/2/2013, sujeita-se ao teto do RGPS para fins de benefício junto ao RPPS, independe de adesão do servidor ao Fundo. Se não aderir, terá seu benefício no Regime de Previdência da União limitado ao teto do RGPS.” Verifica-se, portanto, que o parecer da AGU é claro ao afirmar pela negativa da possibilidade de opção de regime previdenciário para os servidores públicos egressos de outros entes da federação (estados e municípios) que, sem quebra de continuidade, ingressaram no serviço público federal após a vigência do regime complementar. Ressalte-se que o caso em análise adota a premissa que o ente federado ao qual pertencia o funcionário não havia instaurado regime de previdência complementar e houve o ingresso no serviço público federal sem quebra de continuidade. Afirma a AGU que, diante de regime jurídico, não há que se falar em direito adquirido. Portanto, somente os funcionários federais existentes quando da instauração do regime de previdência complementar da Lei 12.618/2012 é que poderiam realizar a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Na visão da AGU, o direito à opção só surge quando da instauração do regime e se exaure no prazo fixado na norma. Os servidores que ingressarem posteriormente, mesmo egressos de outro ente federado, não ‘carregam’ o direito à opção do regime de previdência; vale dizer, não ‘carregam’ a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Apesar da qualidade do trabalho técnico e da correção de todas as premissas jurídicas elencadas no parecer da AGU, entendemos que essa não é a melhor solução. Ao contrário do afirmado pela AGU, é possível ao servidor egresso de outro ente federado nas condições aqui expostas realizar a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, a qualquer tempo. A questão em voga não é direito adquirido. Se pensarmos em direito adquirido a regime jurídico, seria de rigor concordar com a conclusão do parecer, sobretudo quando se trata, como bem destacado, de novo marco regulatório. Mas o ponto fulcral da questão é a dimensão e os limites da opção inserida no texto constitucional. Vale dizer, qual o limite da opção inserida no § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Verifica-se que o § 16 do artigo 40 da Constituição Federal afirma que o direito é garantido ao funcionário que ingressar no serviço público. Note-se que o texto constitucional fala em serviço público e não delimita o ente federado. Assim, por se tratar de norma constitucional que estabelece direitos e garantias, não cabe interpretação restritiva para afirmar que o § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, ao se referir a serviço público, o faz no contexto de cada ente federado. Isto é, diante da ausência de limitação expressa do texto constitucional quanto ao ente federado de ingresso no serviço público, não se pode admitir interpretação restritiva. A solução que se impõe, portanto, é facultar ao servidor egresso de outro ente federado nas condições acima expostas o direito a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Note-se que não se trata de direito adquirido, mas de mera delimitação do comando constitucional. Afinal, onde o constituinte não restringiu, não é lícito ao intérprete fazê-lo. Interessante notar que as premissas aqui expostas foram adotadas pela própria AGU, em 2000, ao tratar dos efeitos da Emenda nº 20/1998 para os servidores federais egressos de outros entes federados, sem quebra de continuidade: “A nomeação e a posse constituem relação jurídica entre o servidor e o Estado, gerando direitos e deveres. A exoneração os extingue. Se a vacância de um cargo decorre da posse em outro inacumulável, cessam os direitos e deveres adstritos ao cargo que vagou e, em razão do cargo provido, são criados ou contraídos outros, nos termos da legislação vigente na data da nova investidura. Na hipótese de tratar-se de posse e conseqüente vacância de cargo pertencente à União, são preservados os direitos personalíssimos incorporados ao patrimônio jurídico do servidor, mesmo se, na data em que este for empossado, os preceptivos de que advieram os direitos não mais integrarem a ordem estatutária, pois subsistirá a relação jurídica e nenhuma interrupção ocorrerá na condição de servidor da entidade empregadora. Nos casos de provimento e vacância envolventes de pessoas político-federativas distintas, aproveita-se o tempo de serviço ou de contribuição, conforme o caso, para efeito de aposentadoria. Não resulta na interrupção da condição de servidor público e, em decorrência, na elisão dos direitos garantidos pelo art. 3º da Emenda Constitucional n. 20, de 1998, a mudança de cargos oriunda de posse e de conseqüente exoneração, desde que os efeitos destas vigorem a partir de uma mesma data. Os cargos podem pertencer a uma mesma ou a diferentes pessoas jurídicas, inclusive de unidades da Federação diversas. Parecer Nº 013, de 11 de dezembro de 2000. -Aprovo-. Em 11-XII-2000. (Processos nº 00400.001788/99-63 e 00416.011419/99-91).” Não se vislumbra fundamento para mudança da orientação fixada em 2000. Sobretudo quando, no caso concreto, o texto constitucional limita-se a falar em ‘serviço público’. O Ministério Público do Estado de São Paulo, ao tratar da aplicação do § 16 do Artigo 40 da Constituição Federal, assim se manifestou: “DESPACHO DO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, de 21.06.2012  Protocolado n. 86.773/12  Interessado: Área de Preparação e Controle de Pagamento de Pessoal  Objeto: consulta referente ao regime de previdência complementar instituído pela Lei Estadual n. 14.653, de 22 de dezembro de 2011  EMENTA : CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PREVIDENCIÁRIO. CONSULTA. REGIME PREVIDENCIÁRIO. PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR. 1. O regime de previdência complementar previsto no art. 40, §§ 14 a 16, CF/88, não se aplica àqueles que ingressaram no MPESP após a vigência da Lei Estadual n. 14.653/11 e que já eram servidores públicos da União, de outros Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que não haja solução de continuidade, pois, o § 16 do art. 40 CF/88 não aninha a distinção promovida pelo legislador estadual em favor exclusivamente dos servidores públicos estaduais. […].” Cabe destacar que o Ministério Público de São Paulo faz exatamente a mesma ressalva exposta no presente artigo. Vale dizer, o § 16 do artigo 40 da Constituição Federal não faz ressalva quanto ao ente federado de ingresso no funcionalismo público. Logo, não se pode admitir norma legal ou interpretação que reduza o âmbito de incidência do texto constitucional. Assim, é possível ao servidor egresso de outro ente federado nas condições aqui expostas realizar a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, a qualquer tempo. 4. CONCLUSÃO O regime de previdência dos funcionários públicos passou por diversas modificações desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Pode-se afirmar que o escopo de todas as modificações foi tornar o regime de previdência dos funcionários públicos o mais próximo possível do regime de previdência do INSS (regime geral). Dentre as referidas modificações, a Emenda nº 41/2003 facultou a criação do sistema de previdência complementar, instaurado em âmbito federal, a partir de 04/02/2013, pela Lei 12.618/2012. A partir da vigência da Lei 12.618/2012, fixada em 04/02/2013, os benefícios pagos pelo regime de previdência dos funcionários públicos federais possuem o mesmo limite dos benefícios pagos pelo INSS para o regime geral de previdência. Para os valores que superem o referido limite, há o sistema de previdência complementar, de contribuição determinada. Para o servidor que ingressou em cargo público efetivo de qualquer ente federado após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 41/2003, não há opção. Deve-se respeitar as regras de aposentadoria estabelecidas pelo art. 40, §§ 1º, 4º e 5º, com proventos a serem definidos em lei, na forma do § 3º do referido dispositivo legal. Contudo, para os referidos funcionários, é facultada a opção pelo regime de previdência complementar, ou manutenção do regime de ingresso. Para tanto, é necessário que, quando do ingresso no setor público em cargo efetivo, não estivesse em vigor o sistema de previdência complementar (§ 16 do artigo 40 da Constituição Federal). No caso dos servidores federais, a regra é a seguinte: (i) para aqueles que ingressaram a partir de 04/02/2013 (data da vigência da Lei 12.618/2012, que instituiu o sistema de previdência complementar), é obrigatório o novo regime, composto pela previdência pública limitada ao teto do regime geral de previdência do INSS, acrescido do sistema de previdência complementar; (ii) para aqueles que ingressaram após a Emenda nº 41/2003, mas antes de 04/02/2013, é assegurada a opção pelo regime de previdência complementar, ou a manutenção do regime vigente quando do ingresso no funcionalismo. O direito de opção acima exposto é garantido pelo § 16 do Artigo 40 da Constituição Federal. A aplicação do referido dispositivo constitucional gerou a seguinte indagação: o direito à opção é aplicável aos funcionários públicos que, até 03/02/2013, ingressaram no serviço público em outro ente da Federação e, a partir de 04/02/2013 foram, sem quebra de continuidade, admitidos no serviço público federal? Ressalte-se que o caso em análise adota a premissa que o ente federado ao qual pertencia o funcionário não possuía regime de previdência complementar. O parecer nº 009/2013/JCBM/CGU/AGU, que restou aprovado pelo Advogado-Geral da União, concluiu pela impossibilidade. Afirma a AGU que não existe direito adquirido a regime jurídico. Portanto, somente os funcionários federais existentes quando da instauração do regime de previdência complementar da Lei 12.618/2012 é que poderiam realizar a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Os servidores que ingressarem posteriormente, mesmo egressos de outro ente federado, não ‘carregam’ o direito à opção do regime de previdência. Ao contrário do afirmado pela AGU, é possível ao servidor egresso de outro ente federado realizar a opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal, a qualquer tempo. A questão em voga não é direito adquirido. O ponto fulcral da questão é a dimensão e os limites da opção inserida no texto constitucional. Vale dizer, qual o limite da opção inserida no § 16 do artigo 40 da Constituição Federal. Verifica-se que § 16 do artigo 40 da Constituição Federal afirma que o direito é garantido ao funcionário que ingressar no serviço público. Note-se que o texto constitucional fala em serviço público e não delimita o ente federado. A solução que se impõe, portanto, é facultar ao servidor egresso de outro ente federado nas condições acima expostas o direito à opção do § 16 do artigo 40 da Constituição Federal.
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O entendimento jurisprudencial acerca da vinculação dos preços lançados na planilha de custos e formação de preços aos efetivamente suportados pelo contratado em contratos públicos de prestação de serviços firmados pelo regime de empreitada global
O presente trabalho contempla uma breve análise do atual posicionamento das Cortes Pátrias acerca da existência ou não de vinculação dos preços lançados na Planilha de Custos e Formação de Preços ofertada em certames licitatórios com escopo na contratação de prestação de serviços em regime de empreitada global aos efetivamente suportados pela Contratada, apurando se tal planilha detém força vinculativa ou se é mero instrumento para averiguar a exequibilidade do valor ofertado pela licitante.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO Como é de amplo conhecimento, uma licitante, ao ofertar sua proposta de preço em um certame licitatório, deve elaborar uma planilha discriminando, individualmente, os preços dos materiais, serviços e demais itens que compõem o preço final da proposta apresentando. No que se refere aos contratos de prestação de serviços, em regra, dentre os itens de maior relevância temos o efetivo profissional empenhado, custo este que é calculado em função do quantitativo de mão de obra, bem como dos salários e demais adicionais custeados pela Contratada à seus empregados. Ocorre que, por muitas vezes, no momento da elaboração da planilha, é apresentado um efetivo profissional e bases salarias que, durante o curso do contrato, vêm a sofrer variações, seja em função da sazonalidade das contratações ou do avanço tecnológico e das técnicas empenhadas os quais acabam por permitir o desempenho de uma mesma tarefa com igual qualidade valendo-se de um efetivo profissional menor. Todavia, ao constatar tal desvio, a Administração impõe glosas no faturamento do contrato, glosas estas que se fundam, unicamente, no fato da contratante vir a suportar um custo menor que aquele apresentado na Planilha de Custos e Formação de Preços. Destarte, o presente artigo visa analisar o atual entendimento de nossas Cortes acerca das glosas impostas no faturamento da contratada no caso noticiar-se a contratação com salários menores que os estipulados na Planilha de Custos e Formação de Preços ou mesmo a prestação do serviço com efetivo menor que o inicialmente previsto. Registre-se que a analise em tela limita-se à contratos de prestação de serviços típicos, firmados pelo regime de empreitada por preço global, estando excluídos aqueles que têm natureza de cessão de mão de obra ou firmados por outros regimes de contratação. 1. A NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DA PLANILHA DE CUSTOS E FORMAÇÃO DE PREÇOS Como se sabe, em procedimentos licitatórios, por força do Art. 7ª, §2ª, II da Lei n.º 8.666/93, é imperioso a existência de um orçamento detalhado por meio de planilhas onde haja a discriminação dos custos unitários de cada serviço ou material que componha o objeto licitado. Assim, todas as licitantes, ao apresentarem suas propostas em um certame licitatório, devem instruí-la com uma planilha que possibilite à Administração Pública obter a composição detalhada da proposta ofertada, permitindo, deste modo, a aferição da exequibilidade da proposta ofertada, por meio da comparação dos valores dos itens que a compõe com os praticados no mercado. Registre-se que a Planilha de Custos e Formação de Preços é item fundamental para o auxílio nas futuras repactuações de preços, as quais visam à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo encetado pelas partes. Como se percebe, a Planilha de Custos e Formação de Preços tem o condão de servir como base para a aferição da exequibilidade da proposta ofertada, bem como auxiliar o processo de repactuação de preços, visando à manutenção do necessário equilíbrio econômico-financeiro do contrata firmado entre o particular e o ente público. Nesta esteira, temos que a planilha de custos se apresenta como um mero referencial dos custos efetivamente suportados pela empresa contratada, não tendo esta, ao que se percebe, força vinculante. Em face de tais fatos, podemos concluir que a planilha tem como principal função os fatos. 1 – permitir à Administração conhecer a composição do preço do licitante, de modo a facilitar a identificação dos preços que se apresentem, eventualmente, inexequíveis;  2 – auxiliar no processo de repactuação, permitindo a aferição de eventuais fatores de elevação de custos e; 3 – facilitar a glosa relativa aos serviços não executados. Isto posto, resta-se demonstrado a manifesta ilegalidade da glosa em tela, vez que fundada unicamente na divergência entre os valores efetivamente suportados pela Autora e os lançados na Planilha de Custos, a qual, segundo entendimento majoritário, detém natureza meramente exemplificativa, não vinculando a adoção dos valores ali constantes pela Autora. 2. O ENTENDIMENTO DAS CORTES JUDICANTES Após vermos a razão de ser necessária a apresentação da Planilha de Custos de Formação de Preços nos contratos de prestação de serviços firmados pelo regime de empreitada global, cumpre discorrer acerca do entendimento das cortes judicantes acerca da existência de uma pretensa natureza vinculativa desta aos preços suportados pela contratada. Quanto ao tema, podemos afirmar que existe uma forte corrente jurisprudencial em nossos tribunais que caminham na esteira de não haver qualquer vinculação entre a planilha de custos e formação de preços e os valores efetivamente praticados pela contratada. Isto porque, tratando-se de um contrato de prestação de serviços firmado pelo regime de empreitada global, o ente público se comprometeu a adimplir um determinado valor fixo como contrapartida à prestação de um serviço certo e determinado e não pela cessão de mão de obra, modalidade contratual que tem natureza distinta. Destarte, no que tange ao efetivo utilizado para a prestação dos serviços, malgrado tenha a contratado especificado um quantitativo mínimo em sua planilha de custos ofertada durante o certame licitatório, sua obrigação cinge-se à prestação regular e pontual do serviço contratado, independentemente do efetivo utilizado para a sua prestação. Registre-se que, até mesmo a implementação de glosas em desfavor do contratado em função de divergências salariais, desde que se tenha respeitado os pisos salarias e demais direitos trabalhistas, mostra-se descabida em contratos desta natureza, devendo o ente público limitar-se à fiscalização do regular cumprimento do escopo contratual, bem como ao respeito às normas trabalhistas vigentes. Cumpre aduzir que o entendimento jurisprudencial caminha no sentido de serem tais glosas manifestas revisões de preços dos contratos efetivas de forma contrária à lei que rege as relações advindas de certames licitatórios. Com o fito de demonstrar a veracidade dos fundamentos declinados, cumpre trazer à baila o Aresto abaixo colacionado de lavra do Ilustre Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, por meio do qual se entende ser defeso à Administração Pública promover alterações unilaterais de preço por divergência entre os valores efetivamente suportados e os lançados na Planilha de Custos, senão vejamos: “ADMINISTRAÇÃO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. MODIFICAÇÃO UNILATERAL DO PREÇO AVENÇADO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Depois de findo o processo licitatório, firmado o contrato e iniciada a execução de seu objeto, a Administração não pode modificar unilateralmente o preço avençado, excetuada as hipóteses previstas em lei; 2. É nula, portanto, a ordem de recebimento expedida pelo INSS em desfavor da autora, sob o argumento de que os valores acertados em contrato firmado ao final de processo licitatório (sob o regime de empreitada por menor preço global) deveriam ser reduzidos, em razão de inconsistências que teriam sido encontradas em planilhas de composição de custos apresentadas quando da proposta; 3. Remessa oficial improvida”. (Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima. DJE 23 de abril de 2010 p. 362). Conforme se infere da leitura da Ementa acima, entendeu o Colendo Tribunal Federal da 5ª Região que, uma vez aceita a Planilha pelo ente público e, notadamente, o seu preço final, o qual, frise-se, foi o menor dentre todas as propostas apresentadas, tendo-se iniciado a execução do objeto do contrato, não pode a Administração Pública implementar glosas sob o pretexto de inconsistências na Planilha de Custos. Com a fundamentação distinta do Acórdão acima, no que se refere aos salários adimplidos aos empregados empenhados na prestação do serviço contratado, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por meio de julgado de relatoria o Juiz Federal Convocado Ricardo Perlingeiro, entendeu que somente haverá descumprimento contratual passível de glosa caso haja desrespeito ao piso mínimo estabelecido à categoria, podendo este, ressalvada tal hipótese, praticar salários inferiores aos lançados na planilha, conforme se verifica: “Em sendo assim, não vislumbro irregularidades na conduta da agravante, uma vez que é lícito ao empresário estipular, em sua proposta, um determinado valor a título de custos com salários e, no momento de executar o contrato, com a mudança das condições do mercado, reduzir suas expectativas de gastos com contratações de menor poder salarial, aumentando, assim, sua margem inicial idealizada de lucro. Logo, no âmbito do contrato de prestação de serviços, não cabe à DATAPREV tecer considerações sobre o valor dos salários dos empregados, se estes estiverem sendo pagos de acordo com o patamar mínimo exigido pela convenção coletiva da categoria, limitando sua atenção ao atendimento dos serviços, bem como dos prazos contratados.” (Juiz Federal Convocado RICARDO PERLINGEIRO. Rio de Janeiro 07 de fevereiro de 2012. E-DJF2R 29 de fevereiro de 2012 p.100-110) No que se refere à necessidade de expressa previsão contratual, cumpre trazer à baila o entendimento exposto no seio da sentença proferida pelo juízo da 8ª Vara Federal de São Paulo nos, o qual, em que pese o magistrado de tal causa deter entendimento no sentido de haver necessidade de manutenção do efetivo previsto na planilha de custos, reconhece que, inexistindo cláusula expressa autorizando o desconto, ilegal é a glosa decorrente de tal pretenso descumprimento contratual, conforme se verifica: “Assim, se é certo que a autora tem a obrigação de manter o número de empregados descrito na planilha de custos apresentada por ocasião de sua habilitação no certame, também não é menos correto que do descumprimento dessa obrigação não decorre permissão de desconto dos serviços efetivamente prestados – mesmo porque, conforme já frisado, não há nem no edital tampouco no contrato cláusula descritiva dos critérios matemáticos que permita apurar o custo das faltas.“ ( Ação Declaratória. Processo n.º 0018167-64.2009.4.03.6100 DJE 24 de maio de 2010 p. 26) Conforme se verifica, o entendimento até o momento exposto no presente trabalho é claro no sentido de não haver que se falar em glosas decorrentes do descumprimento dos valores lançados na planilha de custos nos contratos de prestação de serviços firmados sob o regime de empreitada global. Já a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul detém posicionamento que, a nosso ver, é o mais sensato no que se refere ao tema objeto deste trabalho, visto que entende que a obrigação da contratada é o de prestar o serviço de forma adequada, devendo o contratante limitar-se a fiscalizar tão somente o serviço na forma exposta abaixo:  “É que vivemos em uma sociedade capitalista, onde os custos de mão-de-obra são ditados pelas condições de mercado, que podem variar, ao longo do tempo, em função dos níveis de oferta e procura desse componente de custo. Além disso, em situações da espécie, o empreiteiro fica sujeito à sazonalidade da necessidade de mão-de-obra, que pode variar em termos quantitativos e qualificativos, durante a execução da obra ou dos serviços contratados; e, bem assim, às inovações tecnológicas, em geral tendentes a proporcionar dispensa de mão-de-obra.” (Ação Declaratória. Processo n.º 0010476-42.2008.4.03.6000) Conforme se denota da leitura da decisão acima transcrita, restou-se declarada ilegal glosa pautada em divergência de valores e quantitativos lançados na Planilha de Custos e Formação de Preços e os efetivamente suportados pela Contratada em contrato de prestação de serviços de manutenção mostra-se descabida, impedindo até mesmo que o contrato adote meios mais efetivos para o cumprimento do escopo contratual, tendo o D. Juízo daquela causa exposto claro entendimento no sentido de que, em se tratando de contrato de prestação de serviços, caberia à Contratante tão somente glosar serviços deficientes ou não executados, não havendo que se falar em fiscalização acerca de quantitativo empenhado ou mesmo valores salarias adimplidos. Destarte, diante do até aqui analisado, resta-se claro e inequívoco que posicionamento de nossas cortes judicantes é firme no sentido de ser ilegal a imputação de glosas fundadas unicamente em divergências de valores e quantitativos lançados na planilha de custos e os efetivamente suportados pelo contratado, inobstante o fato da Administração Pública insistir em sua procedência, obrigando o Poder Judiciário a suportar grande avalanche de demandas decorrentes de tal posicionamento equivocado do ente público. 3. O ENTENDIMENTO DAS CORTES DE CONTAS Superada o ponto onde se debate o entendimento das cortes judicantes, cumpre asseverar que não só estas detêm tal entendimento, mas como também as Cortes de Contas adotam idêntico entendimento, conforme se verifica por meio do Acórdão nº 4.621, da 2ª Câmara do TCU, o qual declarou, de forma expressa, que os valores lançados na Planilha de Custos são meramente referenciais, não estando vinculados aos custos efetivamente suportados pela contratada, como se demonstra: “Não é demais lembrar que a Administração não pagará diretamente pelos encargos trabalhistas indicados na planilha, pois são eles de responsabilidade da contratada. Não interessa para a contratante, por exemplo, se em determinado mês a contratada está tendo gastos adicionais porque muitos empregados estão em gozo de férias ou não. À contratante interessa que haja a prestação de serviços de acordo com o pactuado. Ou seja, a planilha de formação de custos de mão de obra constitui um útil ferramental para a análise do preço global ofertado, mas não constitui em indicativos de serviços unitários a serem pagos de acordo com a sua execução, como quando ocorre com os serviços indicados no projeto básico de uma obra pública, os quais são pagos de acordo com o fornecimento de cada item unitário. Aliás, nem poderia ser diferente, pois a contratação prevê um pagamento fixo mensal e os valores dos encargos trabalhistas indicados estão sujeitos a variações que escapam ao controle das partes contratantes (v. g., aviso prévio indenizado, auxílio doença, faltas legais, licença maternidade/paternidade, faltas legais, etc.). Desta forma, os valores correspondentes aos encargos são meras estimativas apresentadas pela licitante, de forma que eventuais divergências entre o apresentado e o efetivamente ocorrido devem ser considerados como inerentes aos riscos do negócio, impactando positivamente ou negativamente sobre o lucro da contratada.”( Ministro BENJAMIN ZYMLER. Brasília, 01 de setembro de 2009) Registre-se que não só o Acórdão acima, como todo o atual entendimento da Corte de Contas, caminha no sentido de não haver vinculação dos preços unitários ofertados na Planilha de Custos e Formação de Preços, àqueles que serão efetivamente suportados pela Contratada, conforme Acórdão TCU n.º 2.215/2012, proferido pelo Plenário da Corte. O entendimento acima mencionado resta-se evidente no seio do referido Acórdão, vez que este informa que a apresentação da Planilha pelo Licitante “não tem como causa, porém, a futura vinculação dos preços unitários ofertados àqueles que serão efetivamente pagos pelas contratadas a seus fornecedores e prestadores de serviços. Nem o edital nem os termos de contrato criaram essa vinculação. Tanto que se for verificada uma oscilação do preço dos insumos que for considerada usual ou dentro de uma álea ordinária, o contratado seguirá sendo obrigado a prestar os serviços na forma e preços pactuados, sem direito a indenizações ou aumentos de valores, salvo pelo reajuste anual a que se refere o art. 40, XI, da Lei de Licitações.”.( Ministro WALTON ALENCAR RODRIGUES. Brasília, 22 de agosto de 2012) Cumpre asseverar que entendimento no sentido de não haver qualquer vinculação entre os valores mostrou-se ainda mais robusto no âmbito da Corte de Contas, vez que, em recente julgamento, o Plenário do TCU deixou claro que a existência de qualquer vinculação entre a Planilha de Custos e Formação de Preços depende de expressa previsão editalícia e contratual, conforme se infere por meio do trecho abaixo colacionado, extraído do seio do Acórdão n.º 2.438/2013: “O que se depreende, portanto, dos fundamentos do Acórdão 2784/2012-Plenário, é que o pagamento de salários inferiores aos da proposta somente configuraria descumprimento contratual caso houvesse cláusula expressa no edital e no contrato exigindo a identidade entre esses valores, sendo a regra geral a de que as quantias constantes da proposta correspondem aos preços dos serviços, e não aos custos da contratada. Assim, uma vez que não há cláusula dessa natureza nos contratos de engenharia consultiva em comento, não se pode falar em violação ao contrato na realização desses pagamentos.”(Ministro RAIMUNDO CARREIRO. Brasília, 11 de setembro de 2013) Frise-se que se trata de um entendimento emanado do Tribunal Pleno do TCU, de setembro de 2013, ou seja, trata-se de um precedente jurisprudencial tão forte, quanto recente, o que tem o condão de demonstrar que a interpretação da corte quanto ao tema caminha na esteira de, salvo expressa previsão contratual, inexiste qualquer vinculação de preços entre os lançados no seio da Planilha de Custos e Formação de Preços e aqueles efetivamente praticados pela contratada. Destarte, segundo entendimento consagrado no seio do Acórdão n.º 2.215/2012 do Plenário do TCU, bem como do Acórdão nº 4.621, da 2ª Câmara do TCU, resta-se claro que o atual entendimento do Tribunal de Contas da União é no sentido de não ser a Planilha de Custos vinculante, possuindo esta natureza meramente referencial. Assim, não há o que tergiversar no sentido de que as cortes de contras igualmente às cortes judicantes, detêm entendimento firme no sentido de inexistir qualquer vinculação entre os preços das planilhas de custos e os efetivamente suportados pelo contratado. CONCLUSÃO Face aos argumentos aqui expostos, podemos concluir que, no que tange a contratos de prestação de serviços típicos firmados sob o regime de empreitada global, o atual posicionamento jurisprudencial, seja das cortes judicantes, seja das cortes de contas, é no sentido de que, salvo expressa previsão contratual, não há que se falar em vinculação entre os valores informados na Planilha de Custos e Formação de Preços e os efetivamente suportados pela contratada. Registre-se que o Colendo Tribunal de Contas já deteve entendimento contrário ao posicionamento aqui defendido, sendo certo que este posicionamento já se encontra superado face às atuais decisões da Corte, conforme expresso no seio do presente trabalho. A nosso ver, tal entendimento nos parece o mais acertado, vez que, sendo respeitados todos os pisos salariais e a legislação laboral vigente, engessar o empresário aos preços lançados na Planilha de Custos, parece ir de encontro à dinâmica que rege as relações empresariais, impedindo, até mesmo o avanço das técnicas empenhadas para o cumprimento do escopo contratual. Ademais, como já mencionado no seio do presente trabalho, os valores dos salários muitas vezes esta ligado à sazonalidade da mão-de-obra disponível, sendo certo que, havendo maior oferta de mão-de-obra, a tendência são os salários baixarem, não sendo crível que o empresário oferte salário maior que o demandado pelo mercado tão somente em função dos valores lançados na planilha de custos. Registre-se ainda que, no que se refere ao quantitativo de mão de obra empenhado, os avanços das técnicas e demais tecnologias permite um uso menor de recursos humanos para a prestação de um mesmo serviço, sem que com isso haja deterioração em sua qualidade podendo, inclusive, haver melhoras. Por fim, como já mencionando, permitir a gerencia sobre os custos e salários praticados pelo contratado vai de encontro à natureza do contratado de prestação de serviços, transmutando-o em um verdadeiro contrato de cessão de mão-de-obra, modalidade esta que não guarda qualquer semelhança com o contrato de prestação de serviços. Isto posto, por todos os prismas que se observe, não há qualquer razão para a vinculação dos valores lançados no seio da Planilha de Custos e Formação de Preços àqueles efetivamente suportados pela contratada, sendo acertado, portanto, o entendimento atualmente aceito por nossas cortes.
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A conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa
No artigo examina-se a constitucionalidade da punição de condutas culposas pela Lei de Improbidade Administrativa. Inicialmente, demonstra-se que a natureza e o regime jurídicos da responsabilidade por improbidade administrativa demandam uma aproximação com o regime jurídico penal, mais desenvolvido doutrinariamente, permitindo, inclusive, o estabelecimento de limitações constitucionais comuns às diferentes vertentes do poder punitivo estatal. Considerando que o princípio da culpabilidade é uma das formas de limitação do ius puniendi do Estado, perquire-se se a culpa stricto sensu é suficiente para, à luz da Constituição, configurar o ato ímprobo. Essa investigação, contudo, depende do conteúdo jurídico atribuído à expressão improbidade administrativa, pois é o conceito adotado que determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa.
Direito Administrativo
Introdução A expressão improbidade administrativa, como ato ilícito, sempre foi utilizada no direito pátrio para designar infrações de natureza política (desde a primeira Constituição da República, de 1891), enquadrando-se como crime de responsabilidade (atualmente disciplinado na Lei n° 1.079/50). Somente a partir da Constituição de 1988 (CF/88) é que se passa a aplicar a expressão às infrações praticadas por servidores em geral. A despeito do uso restrito do signo (improbidade administrativa) antes da CF/88, a previsão de sanções para atos de servidores que importassem prejuízo à Fazenda Pública remonta à década de 40 (DI PIETRO, 2009, p. 803-810; GARCIA; ALVES, 2006, p. 173-196). Percebe-se que a preocupação em preservar a coisa pública sempre esteve presente de alguma forma no direito pátrio, embora até a CF/88 essa preocupação estivesse mais restrita aos prejuízos materiais impostos aos cofres públicos. Foi a Lei n° 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), regulamentando o art. 37, § 4°, da CF/88, que ampliou os contornos de proteção do patrimônio público, agora considerado material e imaterial, deixando de exigir o dano financeiro ou o enriquecimento indevido do agente para a configuração da ilicitude (GARCIA; ALVES, 2006, p. 265). Embora inovadora, justamente pelo alcance de seus dispositivos, formados por cláusulas gerais e conceitos indeterminados, a Lei de Improbidade Administrativa permite a punição exacerbada, desproporcional, do agente, podendo servir como instrumento para arbitrariedades e injustiças. Por certo, o controle e o combate aos atos de corrupção e de má gestão da coisa pública constituem objetivos dos Estados Democráticos de Direito, todavia, a tentativa de evitar essas práticas ilícitas não pode se tornar a finalidade precípua do Estado, gerando a paralisação da máquina pública. Assim, sem olvidar da importância desse diploma legal como instrumento de combate à corrupção e de proteção ao patrimônio público (material e imaterial), cumpre harmonizá-lo, mediante interpretação de seus preceitos, ao sistema jurídico-constitucional, a fim de obter a máxima e razoável efetivação da norma. Nesse contexto, o presente ensaio visa a abordar um ponto específico da Lei de Improbidade Administrativa: a previsão de punição de condutas culposas; e a perquirir sobre a sua (in)constitucionalidade. Trata-se de uma busca por limitações constitucionais ao poder punitivo estatal em matéria de improbidade administrativa, a partir da definição de sua natureza e regime jurídicos, tendo por base o princípio constitucional da culpabilidade (exigência de responsabilidade subjetiva). O objetivo deste trabalho consiste em averiguar se a culpa em sentido estrito é suficiente para, à luz da Constituição, caracterizar o ato ímprobo, tal como previsto na Lei 8.429/92, ou se somente o dolo é elemento subjetivo hábil a configurar a improbidade administrativa. A solução para esse problema, contudo, perpassa a definição do que seja a improbidade administrativa, pois, conforme será demonstrado, o preenchimento do conteúdo dessa expressão determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, conforme o conceito adotado, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa. O assunto é tortuoso, não tendo alcançado, ainda, pacificação na doutrina e na jurisprudência, razão pela qual não temos a pretensão de esgotá-lo, mas apenas lançar as linhas gerais do que se entende ser uma interpretação constitucional do conteúdo da improbidade administrativa, especialmente no que se refere ao alcance da Lei n° 8.429/92 às condutas culposas.  1 Natureza e regime jurídicos da responsabilidade por improbidade administrativa Na ADI 2.797, o STF asseverou a natureza civil da ação de improbidade administrativa, com fundamento no art. 37, §4º, da CF/88, que prevê que as sanções aos atos de improbidade serão aplicadas “sem prejuízo da ação penal cabível”. Ocorre que, à exceção dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes, vencidos, os demais Ministros não adentraram ao mérito do regime jurídico das sanções da Lei 8.429/92, mas tão somente afirmaram a natureza não penal da ação, a fim de afastar das ações de improbidade o foro por prerrogativa de função, típico das ações penais. O Ministro Cezar Peluso chegou a afirmar em seu voto que não cabia, naquele caso, a discussão acerca do regime jurídico da improbidade, bastando o reconhecimento de seu caráter não penal. Nesse contexto, encaixa-se perfeitamente a reflexão de OSÓRIO (2006, p. 175-176): "Superado o estágio da rejeição da tese penalista, restaria, como restou, o vazio. Isto porque toda a doutrina e jurisprudência pátrias se debruçaram sobre o caráter não penal das sanções contempladas na Lei 8.429/92, olvidando-se que depois haveria que vislumbrar o regime jurídico dessas sanções, a partir de sua inserção no sistema constitucional. […] Afirmado o caráter não penal dessas sanções, pelo juízo negativista, há que se reconhecer também o caráter não civil, não trabalhista, não empresarial, não ambiental, etc. O juízo negativo perpassa todos os ramos jurídicos, até o ponto em que se haveria de indagar: estaríamos diante de um novo ramo do Direito Público, ao contemplarmos a Lei 8.429/92? Claramente, a resposta contundente há de ser de rechaço a essa cogitação."    Com efeito, não obstante a referida decisão do STF, e em que pese a existência de abalizada doutrina em sentidos diversos, pois neste campo a divergência prevalece, entende-se, na esteira de OSÓRIO (2006, p. 176-177), que a responsabilidade por improbidade administrativa, assim como a responsabilidade disciplinar, é espécie do Direito Administrativo Sancionador[1], entre outras razões, porque a Lei 8.429/92 possui como objeto “o foco na normativa da função pública”, e porque os dispositivos que estabelecem os modelos de condutas proibidas “estão vazados no plano material do Direito Administrativo”. Definida a natureza jurídica do ilícito de improbidade, cumpre averiguar as regras incidentes, ou seja, qual o regime jurídico aplicável à responsabilização por improbidade administrativa. Há certo consenso na doutrina no sentido de que inexistem distinções substanciais ou ontológicas entre os ilícitos penais e administrativos. Foi Merkel quem primeiro sustentou a unidade do ilícito como violação culposa da lei, e provou que a sanção penal tem caráter subsidiário, ou seja, é meio mais enérgico, que deve ser aplicado quando não há outro meio suficiente (MARQUES, 1997, p. 21). No direito pátrio, HUNGRIA (1945, p. 17-18) há muito já defendia a inexistência de distinção substancial entre ilícito administrativo e ilícito penal, inclusive quanto às sanções aplicadas, remanescendo tão somente uma diferença de grau ou quantidade. A distinção, portanto, repousa na reação cominada pelo ordenamento jurídico a uma ou outra forma de ofensa, determinando-se a natureza do ilícito por mera opção legislativa baseada no interesse social e estatal, que pode variar no tempo e no espaço, levando em consideração, ainda, as diretrizes contidas na Constituição. Por essa razão, quando se trata dos diferentes regimes de responsabilização, condutas diferentes que violem o mesmo bem jurídico podem ser caracterizadas como penais e não-penais, conforme sejam consideradas mais ou menos intoleráveis (desvalor da conduta – tutela seletiva do bem jurídico – princípio da fragmentariedade). Nesse contexto, conquanto a própria Lei preveja que a punição por improbidade administrativa decorre de responsabilidade distinta e independente das responsabilidades penal, civil e administrativa (disciplinar) previstas na legislação específica (art. 12, caput, da Lei n° 8.429/92), tem-se observado um estreitamento entre as fronteiras do regime jurídico penal e do regime jurídico administrativo em matéria punitiva (Direito Administrativo Sancionador), mediante, principalmente, a importação para o Direito Administrativo de princípios e garantias tradicionalmente concebidos na esfera penal, ainda que com certas modulações. Nas palavras de PRADO (2001, p. 27-28): "ditos regimes jurídicos, que corriam como dois rios paralelos, passam a apresentar pontos de contato, suas águas começando a se misturar. Mas é oportuno assinalar que o direito penal mereceu elaboração teórica minuciosa, ao passo que as infrações administrativas só muito recentemente mereceram um esforço coerente de sistematização, ainda não consolidado em definitivo – razão pela qual o intercâmbio entre as duas áreas caracteriza-se mais pela transferência para o âmbito administrativo de princípios e garantias tradicionalmente concebidos na esfera penal"[2]. Há ainda de se destacar que, "tanto quanto os delitos, os atos de improbidade administrativa contêm uma conotação infamante, ensejando uma particular reprovação social que não se observa, de ordinário, na generalidade das infrações administrativas, ademais, as hipóteses de improbidade coincidem, em larga medida, com tipos delituosos que, com diferenças de extensão, contemplam, frequentes vezes, as mesmas condutas" (PRADO, 2001, p. 24-25). Essas características fazem com que os atos de improbidade administrativa, embora configurem infrações administrativas, aproximem-se em larga medida das infrações penais, apresentando-se ambos (atos de improbidade e infrações penais) “como derivações de um jus puniendi estatal que as submete a princípios comuns, aplicáveis em ambas as esferas” (PRADO, 2001, p. 29)[3]. Apesar dessa aproximação, não existe identidade absoluta de regimes jurídicos entre essas categorias de ilícito, porquanto, ainda que seja incontestável a aplicação de princípios fundamentais comuns aos âmbitos administrativo e penal, em razão das peculiaridades dos regimes jurídicos de cada um desses ramos do Direito, quando concretizados, esses princípios ganham contornos distintos. Ademais, mesmo quando alguns princípios penais são aplicados ao Direito Administrativo Sancionador, o são com certas modulações – ou adaptações, mitigações – em razão das peculiaridades dos regimes jurídicos. De fato, em certos casos, faz-se politicamente necessário que uma mesma conduta violadora seja sancionada tanto na esfera extrapenal quanto na esfera penal, pois a finalidade e o objetivo de uns (civil/administrativo) e outro (penal) ramos do Direito são diversos, além de serem diversas as formas de interpretação dos princípios aplicáveis (CERVEIRA, 2005, p. 31 e 35-36).    Não obstante a inaplicabilidade da tese da unidade do ius puniendi, a ausência de distinções substanciais ou ontológicas entre os ilícitos penais e não-penais permite falar em um “direito constitucional limitador do ius puniendi do Estado”, ou seja, o direito constitucional pode limitar, a um só tempo, qualquer exercício de pretensão punitiva, inclusive as sanções privadas (OSÓRIO, 1999, p. 79). Essa busca por limitações ao ius puniendi estatal no campo da improbidade administrativa decorre do reconhecimento – ainda pouco desenvolvido pela doutrina e jurisprudência pátrias – de que, embora não configurem infrações penais, a gravidade das sanções cominadas aos atos ímprobos exige maior rigor científico para sua aplicação, inclusive mediante a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal. Com efeito, muitas vezes “o poder punitivo estatal em diplomas extrapenais é mais drástico, repressor e antidemocrático que o próprio direito penal, encontrando-se o cidadão, por conseguinte, arbitrariamente [por opção legislativa – ainda que essa opção deva encontrar fundamento na Constituição] fora do círculo de proteção de garantias e princípios do direito penal” (CAPEZ, 2010, p. 187). O próprio HUNGRIA (apud CAPEZ, 2010) já considerava a possibilidade de que a sanção administrativa fosse mais rigorosa que a criminal, embora admitisse que o contrário fosse mais comum[4]. Destarte, torna-se necessário, independentemente da natureza atribuída às sanções previstas na Lei de Improbidade, assegurar a incidência de princípios e garantias constitucionais – em geral restritas ao âmbito penal – como forma de contenção da arbitrária punição estatal. Corolário desse entendimento traduz-se na necessidade de alterar o paradigma ainda vigente na atualidade, que concentra a análise do ato ímprobo no desvalor do resultado e não no desvalor da conduta, a fim de verificar a conformidade não apenas formal da conduta com a lei, mas também sua conformidade material com o conteúdo do que seja objetivamente considerado ato ímprobo, para, numa segunda etapa, legitimar a responsabilização subjetiva do agente (CAPEZ, 2010, p. 18 e 175-176)[5]. No presente trabalho, entretanto, restringir-nos-emos a investigar apenas um aspecto do que CAPEZ considera uma segunda etapa de limitação do ius puniendi estatal, qual seja, a responsabilização subjetiva do agente no que concerne à possibilidade de enquadramento da conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa.         2 Princípio constitucional da culpabilidade: exigência de responsabilização subjetiva do agente Entre os princípios constitucionais que limitam o poder punitivo do Estado também no campo do Direito Administrativo pode-se citar o princípio da culpabilidade – no sentido de vedação da responsabilidade objetiva ou exigência de responsabilidade subjetiva – o qual, segundo OSÓRIO (2000, p. 84), não é um princípio exclusivamente penal, mas sim constitucional, embora não esteja explícito na Carta Magna (trata-se de princípio constitucional implícito). Por certo, no direito contemporâneo é inadmissível a imputação de um resultado danoso sem um elo psíquico que o vincule ao agente (princípio da culpabilidade), ressalvados os casos de responsabilidade objetiva, expressamente previstos no ordenamento jurídico[6]. Destarte, considerando que o dolo e a culpa são figuras que se fazem presentes no ordenamento jurídico como um todo, não sendo privativas do direito penal, além do vínculo causal-objetivo entre a conduta do agente e o resultado lesivo, é necessária a existência de um vínculo subjetivo conectando o agente à conduta (GARCIA; ALVES, 2006, p. 280-281)[7]. O estudo do elemento subjetivo e do dogma causal constitui importante barreira na contenção do ius puniendi. Todavia, esse estudo é relegado a segundo plano nos ramos jurídicos extrapenais, como tem ocorrido com a improbidade administrativa. Essa situação se deve ao pressuposto de que ao direito penal incumbiria, via de regra, a tarefa de sancionar mais gravosamente as condutas violadoras da ordem jurídica, constituindo a ultima ratio da repressão. Destarte, nesse ramo do Direito haveria maior preocupação doutrinária em se aprofundar no estudo de elementos limitadores do poder punitivo estatal. Ocorre que, como já referido alhures, “O ato de improbidade possui hoje a mesma carga sancionadora, impondo ao agente público idêntica nódoa à da imputação penal, infligindo os mesmos constrangimentos e trazendo equivalente aflição”. Logo, “não se pode admitir que exista maior exigência para a configuração de um crime, do que de um ato de improbidade”. Urge, portanto, o aprofundamento da doutrina em relação aos limites da Lei de Improbidade Administrativa, entre eles o elemento anímico dos atos ímprobos (requisito de natureza subjetiva para a configuração do tipo), inclusive mediante a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal, com a proteção de institutos solidamente edificados no bojo do direito penal, “a fim de conter o arbítrio na satisfação da pretensão de punir” (CAPEZ, 2010, p. 298 e 316-317 e 326).         No ponto, ressalva-se que, a despeito da tendência da doutrina e da jurisprudência de não vincular os conceitos referentes às diversas esferas de responsabilidade existentes, a ação ou a omissão praticada pelo agente é uma só e, portanto, a mesma para o direito penal, civil e administrativo[8]. O que varia são os efeitos decorrentes dessa conduta. Destarte, tem-se que a estrutura estabelecida para a ação pela doutrina penal é a mesma utilizada nas demais esferas de responsabilidade, ainda que com alguns “matizes” peculiares a cada um dos regimes jurídicos (como exemplo dessas peculiaridades pode-se citar a aceitação da presunção de culpa no direito civil, inadmissível no direito penal). Logo, embora as concepções de dolo e culpa não sejam privativas do direito penal, considerando a “ausência de uma dogmática edificada em bases sólidas” (CAPEZ, 2010, p. 219) no que concerne à interpretação e aplicação das normas contidas na Lei de Improbidade, e, principalmente, considerando a gravidade das sanções cominadas aos atos ímprobos, que aconselha a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal (como instrumento de delimitação do poder punitivo estatal), é com apoio na doutrina penal que trataremos do assunto, ou seja, é o modelo de responsabilização penal que será utilizado para a análise do elemento subjetivo da improbidade administrativa. Leciona TAVARES (2009, p. 03.) que a culpa em sentido estrito é “criação da ordem jurídica”, uma vez que “Não há crime culposo em sentido natural”. JESUS (2009a, p. 293) ensina que na vida em sociedade os indivíduos devem pautar suas condutas de forma a não produzir danos a terceiros. “É o denominado cuidado objetivo”, que corresponde ao comportamento que teria adotado uma pessoa dotada de discernimento e prudência. No delito culposo, “A inobservância do cuidado necessário objetivo é elemento do tipo” (BITENCOURT 2008, p. 283-284).[9] Todavia, questiona-se: qual seria o cuidado exigível da pessoa-modelo, dotada de prudência e discernimento? Surge então o que a doutrina denomina de “previsibilidade objetiva”[10], isto é, a antevisão do resultado por uma pessoa prudente e de discernimento (JESUS, 2009a, p. 293-295). Previsibilidade é a possibilidade de antevisão do resultado da conduta. Todavia, “O legislador exige que o sujeito preveja o que normalmente pode acontecer, não que preveja o extraordinário, o excepcional”. Logo, a previsibilidade objetiva deve ser aferida não do ponto de vista do sujeito que realiza o ato, mas sim do homem prudente e de discernimento colocado na situação concreta. Conclui-se que a observância do dever genérico de cuidado que se espera dos indivíduos que vivem em sociedade pode ser aferida da seguinte maneira: o sujeito deve agir (no sentido lato: ação ou omissão) com diligência, antevendo o resultado normalmente obtido com a conduta que pretende praticar. Se o resultado era previsível pela pessoa-padrão, dotada de prudência e discernimento, mas não foi previsto pelo sujeito em questão, está caracterizada a inobservância do dever de cuidado objetivo e, portanto, a culpa inconsciente. Se essa conduta vier a produzir um resultado, estará configurado o crime culposo (JESUS, 2009a, p. 296-297). Por outro lado, a responsabilização penal pela conduta culposa pressupõe a causação de um resultado naturalístico – com raras exceções – ou seja, ainda que o agente tenha deixado de observar seu dever de cuidado, se seu comportamento não gerar dano aos bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal, não responderá o agente por crime culposo (GRECO, 2008, p. 200-201). Do mesmo modo, o resultado deve ser consequência da inobservância do dever de cuidado, ou seja, se observado o dever de cautela e, mesmo assim, ocorrer o resultado, não se poderá falar em crime, sob pena de responsabilização objetiva do agente. “A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade” (BITENCOURT, 2008, p. 284-286). Este autor destaca, ainda, que, embora nos crimes culposos se dê preponderância ao desvalor da ação (representado pelo cuidado objetivamente devido), somente quando ao desvalor da ação acrescenta-se o desvalor do resultado fica constituído o injusto nos delitos culposos, pois sem resultado não se pode falar em crime culposo. GARCIA e ALVES (2006, p. 281), citando Hungria e Wolf, respectivamente, resumem a questão: “‘No dolo, ação (ou omissão) e resultado são referíveis à vontade; na culpa, de regra, somente a ação (ou omissão)’. ‘A incorreção representada pelo dolo provém da fraqueza da vontade, e a incorreção que a culpa representa provém da debilidade do intelecto’”. Em geral, nos delitos de natureza culposa a conduta voluntária é dirigida a um fim lícito, mas que, por inobservância do dever de cuidado, dá causa a um resultado não querido, nem mesmo assumido, tipificado previamente na lei penal, ou seja, há uma deficiência na execução da finalidade (pune-se a conduta mal dirigida). Ao contrário, na conduta dolosa, como regra, existe uma finalidade ilícita (pune-se a conduta dirigida a um fim ilícito). Portanto, nos crimes culposos o que importa não é a finalidade do agente (que normalmente é lícita), nem a simples causação do resultado, mas sim o modo e a forma imprópria com que atua (MIRABETE, 2009, p. 132).       À primeira vista, a Lei de Improbidade Administrativa está em conformidade com o princípio constitucional da culpabilidade, limitador do ius puniendi estatal, ao exigir a responsabilização subjetiva do agente, em regra, pela presença do dolo (arts. 9º, 10 e 11), e, excepcionalmente, pela presença da culpa em sentido estrito na conduta (art. 10). Todavia, esclarecido em que consiste a conduta culposa, resta averiguar se ela é suficiente para, do ponto de vista constitucional, caracterizar o ato ímprobo, tal como previsto na Lei 8.429/92, ou se somente o dolo é elemento subjetivo hábil a configurar a improbidade administrativa. A solução para esse problema, contudo, perpassa a definição do que seja a improbidade administrativa. 3 Delimitação do conceito de improbidade administrativa 3.1 Interpretação jurídico-constitucional de conceitos indeterminados Para desvendar o conteúdo jurídico-constitucional da expressão improbidade administrativa e, consequentemente, averiguar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da punição de condutas culposas no âmbito da Lei n° 8.429/92, é necessário realizar um “saneamento hermenêutico” (FREITAS, 1996, p. 70), primeiramente, entendendo os significados atribuídos aos termos moralidade administrativa e probidade administrativa – que representam os valores positivos exigidos dos agentes públicos – bem como determinando seus pontos de tangenciamento; e, em seguida, examinando a finalidade da norma que trata da improbidade administrativa, a fim de compatibilizar sua interpretação com a totalidade do sistema, evitando a existência de contradição em seu interior[11]. Inicialmente, a dificuldade desse mister encontra-se: (i) na inexatidão ou imprecisão inerente à linguagem, que permite diferentes interpretações dos termos empregados e (ii) na abertura ou incompletude do sistema jurídico, eivado de contradições e lacunas, que possibilita a modificabilidade da própria ordem jurídica[12]. Esta última característica é indispensável para a adaptação das normas aos valores sociais vigentes no momento de sua aplicação, uma vez que seria inviável acompanhar as mutações sociais mediante produção legislativa[13]. Por outro lado, o atual método legislativo utilizado (conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, etc) afrouxou o vínculo que prendia o juiz à lei, permitindo o protagonismo da atividade interpretativa (criativa) do aplicador do Direito. Essa abertura do sistema, contudo, não autoriza a discricionariedade judicial na atividade subjetiva de conferir conteúdo ao vocábulo jurídico, pois   existem métodos de interpretação das normas jurídicas destinados a evitar a arbitrariedade (interpretação gramatical, histórica, teleológica, sistemática) sendo que, na maioria das vezes, uma interpretação adequada da norma dependerá da combinação desses métodos[14]. Diante dessa perspectiva, pode-se dizer que a atividade interpretativa é limitada pelo núcleo semântico (núcleo significativo mínimo) (FIGUEIREDO, apud HARGER, 2009, p. 168) do termo interpretado, pela situação anterior à lei e toda sua evolução histórica (consideradas pela ‘vontade do legislador’), pela ratio do preceito legal, ou seja, pela finalidade visada pela lei, bem como por todas as demais normas, princípios e valores jurídicos do sistema (respectivamente: interpretação gramatical, histórica, teleológica e sistemática). Destarte, mesmo os conceitos jurídicos indeterminados são finitos. BITENCOURT NETO (2005, p. 100), com fundamento na lição de Enterría e Fernández, destaca que embora os conceitos indeterminados não possam ser imediatamente determinados no momento da leitura, o serão no momento da aplicação, havendo “uma única solução justa” para sua aplicação, ou melhor, uma única interpretação justa, ao contrário do que ocorre nas hipóteses de discricionariedade, em que há opção entre mais de uma solução justa[15]. Todavia, OSÓRIO (2000, p. 77-78) adverte que podem haver "discrepâncias judiciais na interpretação de termos e elementos juridicamente nebulosos e indeterminados, discrepâncias que, em última análise, não eliminam o ideal de uma única resposta correta, embora o Direito deva conformar-se, por exigências pragmáticas, em certas circunstâncias (nem sempre, portanto), com pluralidade de respostas diversas, considerando-as, todas, juridicamente corretas".     Essas discrepâncias podem resultar tanto da pluralidade de sentidos de uma palavra que exprime o conceito, quanto da imprecisão dos limites do conceito. Na primeira hipótese, é “a interpretação a partir do contexto que tira a claro qual dos sentidos está em jogo em cada caso”. Já na segunda hipótese, pode-se distinguir nos conceitos jurídicos indeterminados um núcleo conceitual (quando se tem noção clara do conteúdo e da extensão do conceito) e um halo conceitual (onde as dúvidas começam) (ENGISCH, 1996, p. 208-210 e 259). Em outras palavras, existem três zonas de incidência: a zona de certeza positiva, a zona de certeza negativa, e a zona gris, ou seja, algumas situações indubitavelmente estarão inclusas no conceito, outras jamais serão abrangidas por ele, mas existem aquelas que estarão numa zona de incerteza (HARGER, 2009, p. 169-170).[16] Assim, ainda que os conceitos constitucionais de moralidade e improbidade sejam indeterminados, eles possuem certas propriedades que estão relacionadas ao conteúdo mínimo de seu significado (núcleo semântico). São essas propriedades que condicionarão o agir dos administradores, legisladores infraconstitucionais e juízes.  Isso significa que “os conceitos normativos utilizados pelo constituinte nada mais são do que seletores de ‘propriedades’ que condicionam administradores, legisladores e juízes” (HARGER, 2009, p. 172). Portanto, não há como desvincular completamente os termos moralidade e improbidade de seus sentidos originais/constitucionais, sob pena de ferir a unidade do sistema em meio à multiplicidade axiológica, ampliando o alcance da norma a limites não almejados constitucionalmente[17].   3.2 Moralidade administrativa Não se pretende, aqui, esgotar o significado dos termos ‘moral’ e ‘moralidade administrativa’, inclusive porque, no que se refere a esta última, mesmo após mais de 20 anos da consagração da expressão na Constituição Federal, a mais abalizada doutrina ainda encontra dificuldades em preencher seu conteúdo. Destarte, o que se pretende é tão somente fornecer subsídios, a partir de um significado mínimo, para a análise da sua relação com a probidade administrativa. A “semente de consciência” da distinção entre Moral e Direito acha-se em Roma: ‘Non omne quod licet honestum est’ – nem tudo que é lícito é honesto (GARCIA; ALVES, 2006, p. 68)[18]. Tanto a Moral, quanto o Direito, buscam regular as relações humanas, pautando o atuar dos indivíduos na sociedade. Todavia, o Direito se satisfaz com a conformidade externa da conduta à regra (heteronomia), enquanto a Moral exige a identificação entre a vontade do agente e o enunciado da regra moral (autonomia) (BITENCOURT NETO, 2005, p. 58, 66, 70 e 71). A despeito da distinção, GARCIA e ALVES (2006, p. 69-70) explicam que o Direito encampa a Moral naquilo que considera mais relevante para a estabilidade das relações sociais, ou seja, “Não raras vezes, a regra moral penetra no mundo jurídico e, com o auxílio do poder de coerção estatal, torna-se uma regra obrigatória de conduta”. Em síntese, a Moral sempre se fará sentir no Direito, seja por tomar a forma de norma de direito, seja por fornecer subsídios para a interpretação e integração da norma de direito na realidade social. E concluem esses autores: "Identificada a existência de um regramento moral e outro jurídico, a observância deste será tanto mais forte quanto for sua superfície de coincidência com os padrões de moralidade do grupamento que haverá de ser por ele regido. Correspondendo ao ideal moral, a norma será respeitada de forma voluntária, tendo-se um reduzido número de irresignações. Colidindo com os padrões de moralidade, haverá grande resistência à sua observância (…)". Nesse contexto, o princípio da moralidade administrativa trata de uma “moral jurídica”, ou seja, de valores juridicizados, que se destinam a nortear a conduta do administrador (CAMMAROSANO, apud HARGER, 2009, p. 174-175)[19]. No ponto, quando se utiliza a expressão valores juridicizados, pretende-se ampliar o significado até então conferido pelo princípio da legalidade, de modo que “a atuação do Estado deve estar em harmonia com o Direito”, abrangendo, portanto, todo o ordenamento jurídico (regulamentos, princípios gerais, etc) e não apenas as regras (GARCIA; ALVES, 2006, p. 49; BITENCOURT NETO, 2005, p. 78). Essa tendência de aproximação entre o Direito e a Moral já era sentida no Direito Privado, onde foram consagrados conceitos como os de abuso de direito e locupletamento indevido. Para BITENCOURT NETO (2005, p. 78 e 80), foi a partir do conceito de abuso de direito que se construiu o conceito de desvio de poder no âmbito de atuação do Estado, sendo este, por seu turno, o “embrião do conceito de moralidade administrativa”. Poder-se-ia dizer que a moralidade administrativa engloba tanto noções de moral comum, como, por exemplo, o conceito de honestidade, como regras técnicas, em última instância derivadas da finalidade pública (busca do bem comum). Entretanto, embora, esteja impregnada de noções da moralidade comum, com esta não se confunde, visto que a moralidade administrativa “implica, tão somente, na necessidade de que os atos externos e públicos dos agentes detentores de poder e de atribuições sejam praticados de acordo com as exigências da moral e dos bons costumes, visando uma boa administração” (DELGADO, 1992, p. 36-37). A moralidade administrativa é, portanto, uma vertente da moralidade pública[20], correspondendo aos valores morais abarcados pelo Direito – juridicizados – e relacionados à atividade estatal. Há autores, por outro lado, que consideram a moralidade administrativa desvinculada da intenção do agente (foro íntimo), bastando o atendimento ao standard jurídico da boa administração, que pode ser aferido da apreciação dos motivos em relação ao objeto do ato, o qual deve estar em harmonia com o interesse público, com o dever de bem administrar[21] e com a concretização do bem comum (MOREIRA NETO, 1992, p. 07-14). São muitas, portanto, as dificuldades doutrinárias para o preenchimento do conteúdo da moralidade administrativa, pois, como sintetiza GIACOMUZZI (2002, p. 180), com fundamento na tese de Germana de Oliveira Moraes, o conteúdo do princípio está relacionado “ora com a teoria do desvio de poder, ora com a moral interna da Administração, ora com o dever de boa administração, ora com pautas éticas da atuação dos agentes públicos”. 3.3 Probidade administrativa e sua relação com a moralidade administrativa Alguns autores defendem que, diante do conteúdo dos textos legais que a partir da Constituição de 1988 se referem à moralidade e à probidade administrativas, essas noções se tornaram independentes e distintas (GIACOMUZZI, 2002, p. 287;. FERNANDES, 1997, p. 172). Todavia, parece inviável tratar de uma sem referir-se à outra, uma vez que a doutrina em geral, ao definir a probidade, remete ao conceito de moralidade administrativa como sendo gênero ou espécie daquela. No ponto, portanto, não é pacífica a doutrina: para alguns, a moralidade engloba a probidade, enquanto, para outros, é a probidade que abarca a moralidade. Para uns, a probidade está diretamente relacionada com a honestidade e a boa-fé (em contraposição à má-fé, subjetiva pois), de modo que a improbidade seria uma imoralidade qualificada pelo elemento subjetivo. Para outros, contudo, a improbidade como ato ilícito (atos previstos na Lei 8.429/92) não está relacionada com os princípios da probidade e da moralidade administrativas, pois abrange principalmente atos ilegais. A dificuldade na conceituação do dever – ou princípio – de probidade administrativa refletirá no preenchimento do conteúdo da improbidade administrativa e, consequentemente, na delimitação do alcance dos tipos previstos na Lei n° 8.429/92, conforme será demonstrado a seguir.   3.4 Improbidade administrativa Nem a Constituição, nem a Lei n° 8.429/92 apresentam um conceito de improbidade administrativa geral e amplamente aplicável, embora este diploma legal identifique alguns atos de improbidade por meio da combinação: cláusulas gerais (caput) mais método casuístico (incisos). Ocorre que a ausência de uma definição mínima do conteúdo jurídico-constitucional da improbidade administrativa compromete não apenas a compreensão do instituto, mas, principalmente, a adequada subsunção das condutas dos agentes públicos às prescrições da Lei de Improbidade, em conformidade ao princípio da juridicidade. Assim, necessário se faz o preenchimento, pela doutrina, do conteúdo da expressão improbidade administrativa, ainda que essa tarefa envolva um risco, “pela insuficiência do conceito que venha a ser obtido, diante da amplitude da proteção conferida aos princípios constitucionais norteadores da Administração Pública, e considerando também a diversidade de situações que seu texto enquadra nesse conceito” (DECOMAIN, 2007, p. 22). Em geral, para os autores que consideram a probidade administrativa como uma espécie ou derivação do princípio da moralidade administrativa fica evidente que os valores honestidade, honra, lealdade e afins preenchem o conteúdo significativo da expressão probidade administrativa, de modo que sua violação (ato de improbidade) depende de condutas intrinsecamente desonestas, desonrosas e desleais (HARGER, 2009; PAZZAGLINI FILHO, 2007). GIACOMUZZI (2002, p. 288-289) sintetiza seu entendimento sobre o âmbito de aplicação da Lei de Improbidade na máxima proposta por Pedro Henrique Távora (lapidada por Cláudio Ari Mello): “o legislador pune o administrador desonesto, não o administrador incompetente”. Para estes devem ser aplicadas outras sanções, que não as punições extremadas previstas na Lei 8.429/92.[22] Há autores, entretanto, que consideram que a improbidade administrativa, com o advento da Lei n° 8.429/92, superou o conceito de desonestidade, adquirindo um significado normativo próprio, que afasta o significado semântico usualmente utilizado (BARBOZA, 2008; GARCIA; ALVES, 2006). Nesse caso, a improbidade estaria relacionada com a atuação desconforme às normas (regras e princípios) e, sendo a eficiência um dos princípios norteadores da Administração Pública, sua inobservância (por ineficiência ou incompetência do agente) também geraria violação à probidade administrativa. Para estes autores é, portanto, plenamente possível a existência de atos de improbidade culposos. A multiplicidade de conteúdos fornecidos pela doutrina à expressão improbidade administrativa interfere na avaliação da constitucionalidade da previsão de condutas ímprobas na modalidade culposa. Se adotarmos um conceito de improbidade administrativa recheado de valores morais, como honestidade e lealdade (intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito), parece inviável falar-se em improbidade nessa modalidade. Por outro lado, se adotarmos um conceito mais objetivo, no sentido de conduta contrária às normas, então inexistiria qualquer impedimento para a improbidade culposa.       Não temos, portanto, a pretensão de estabelecer o conteúdo jurídico-constitucional da expressão improbidade administrativa, mas apenas demonstrar que o preenchimento desse conteúdo determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, conforme o conceito adotado, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa. 4. (In)constitucionalidade da conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa A Lei n° 8.429/92, ao disciplinar os atos que causam lesão ao erário (art. 10), previu expressamente a possibilidade da existência de improbidade administrativa em decorrência de atos culposos. Cumpre, neste momento, analisar se essa previsão encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio. Dentre os dispositivos tipificadores dos atos de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11 da LIA), somente o art. 10 se refere ao elemento subjetivo da conduta. É mais ou menos pacífico na doutrina que, por força da aplicação analógica do art. 18, do CP, somente havendo expressa previsão legal é que se pode punir o agente em virtude de uma conduta culposa, destarte, inexistindo referida previsão nos arts. 9º e 11, somente as condutas dolosas subsumem-se a esses dispositivos[23]. No que concerne ao art. 10, da LIA, GARCIA e ALVES (2006, p. 48, 109-110, 282-284) defendem a constitucionalidade do preceito, sustentando a inexistência de identidade entre os conceitos constitucionais de moralidade, improbidade e desonestidade; bem como que a Constituição, em seu art. 37, § 4°, conferiu amplo espectro ao legislador ordinário, concedendo-lhe total liberdade de conformação para integrar à tipologia dos atos de improbidade inclusive condutas culposas[24]. Para eles, se a Lei 8.429/92 apenas tivesse feito referência à violação da probidade e estabelecido a respectiva sanção, à integração do conceito deveria concorrer seu sentido semântico, entretanto, o legislador preferiu indicar expressamente o que se deve entender por improbidade, “daí a impossibilidade de o semântico sobrepor-se ao normativo”. Por outro lado, entretanto, esses autores defendem a possibilidade de dosagem da punição de acordo com o grau de culpa, sendo viável, inclusive, o afastamento da incidência do tipo legal, quando for reduzida a previsibilidade do dano e o descumprimento dos deveres do cargo for por demais insignificante. Nesse contexto, partindo do pressuposto de que a improbidade administrativa é caracteriza pela atuação em desconformidade com as normas (regras e princípios) às quais está sujeito o agente, é possível a configuração do ato ímprobo na modalidade culposa, considerando a culpa como a inobservância do dever de cuidado objetivo.   DECOMAIN afirma que a ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preservação daquilo que pertence à Administração Pública (pouco caso pela coisa pública) configura-se como desonestidade, em razão da incúria no exercício da função. Todavia, com essa afirmação não podemos concordar, uma vez que conceitos morais, como o de desonestidade, estão intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito, logo, carecem do elemento subjetivo doloso. Essa também é a crítica cabível ao entendimento esposado por GIACOMUZZI (2002, p. 300-302), que afirma não haver incompatibilidade entre desonestidade e culpa, pois considera que o conteúdo do dever de diligência muda em função da espécie do suporte fático, podendo coincidir com o comando de normas legais ou regulamentares. Dessa forma, no caso da improbidade culposa, “o dever de diligência é relativo ao cuidado com o Erário, explícito no caput do art. 10 da LIA”. Para esse autor o elemento culpa stricto sensu ganha maior relevância no ilícito administrativo de improbidade do art. 10, da LIA, “porque indica firmemente um maior dever de cuidado ao patrimônio público”, parecendo evidente que “o legislador, no art. 10 da LIA, emprestou […] força ao desvalor do resultado (dano ao Erário)”. Em primeiro lugar, entende-se que o dever de diligência é um só, consubstanciado no dever dos indivíduos de pautar suas condutas de modo a não produzir danos a terceiros (incluído aí o Estado e o patrimônio público). Portanto, a culpa está relacionada à previsibilidade do resultado decorrente de uma conduta. O agente público deve agir (no sentido lato: ação ou omissão) com diligência, antevendo o resultado normalmente obtido com a conduta que pretende praticar. Se o resultado era previsível pela pessoa-padrão, dotada de prudência e discernimento, mas não foi previsto pelo sujeito em questão, está caracterizada a inobservância do dever de cuidado objetivo e, portanto, a culpa. Essa culpa, de nenhuma forma pode ser vinculada à desonestidade do agente, mas antes à “debilidade do intelecto”[25]. JUSTEN FILHO (2005, p. 686-687 e 690-691) sustenta que a configuração da improbidade “depende da consciência e da intenção de promover as condutas ímprobas”, não havendo improbidade culposa, embora não se exija dolo específico, devendo-se, ainda, considerar a existência de diversidade de graus de consciência e reprovabilidade. Quanto à previsão do art. 10, da Lei n° 8.429/92, que alude a ações ou omissões culposas, afirma que “Essa hipótese apenas pode ser admitida como geradora de responsabilidade limitada, em situação excepcional”, ou seja, a regra é a exigência do elemento subjetivo doloso, todavia algumas hipóteses previstas no art. 10 da Lei n° 8.429/92 comportam a possibilidade de configuração da improbidade culposa, especialmente quando se trate de conduta omissiva, como ocorre, por exemplo, no inciso X daquele dispositivo. Por tudo quanto já foi dito, o posicionamento de JUSTEN FILHO parece-nos uma contradição em termos, pois explicitamente afirma que a improbidade “pressupõe a atuação maliciosa preordenada à obtenção de um resultado conhecido como indevido” e, logo em seguida, admite a possibilidade de configuração da improbidade culposa, sem, entretanto, explicar a razão dessa conclusão. FREITAS (1996, p. 67) entende que as sanções cominadas às espécies de improbidade administrativa não devem ser aplicadas aos agentes que tenham condutas culposas leves ou levíssimas, “exatamente em função do ‘telos’ em pauta e por não se configurar a improbidade, nestas situações, sequer por violação aos princípios, sendo de grifar que a preservação do sistema jurídico não se coaduna com excessos de qualquer matiz”. Conclusão lógica do entendimento esposado por FREITAS é o de que somente a culpa grave deve ser punida como ato de improbidade tipificado no art. 10 da Lei n° 8.429/92 quando causar prejuízo ao erário. Ocorre que, quando trata da conduta tipificada no art. 11 do mesmo diploma legislativo, esse autor afirma que “o cometimento de uma irregularidade acompanhada pela marca indelével da desonestidade do agente ou da deslealdade para com o Poder Público, implica, sem suficiente grau, a violação ao princípio da probidade administrativa”, caracterizando, portanto, a improbidade (FREITAS, 1996, p. 78). Tal afirmação, somada àquela já citada, no sentido de que o princípio da probidade administrativa é especificação (subprincípio) do princípio da moralidade, significando vedação de atos desonestos ou desleais para com a Administração Pública (FREITAS, 1996, p. 70-71) levam à conclusão da impossibilidade de existência de ato de improbidade por conduta culposa, uma vez que a culpa, justamente por ser involuntária, não pode caracterizar um agir desonesto ou desleal. Portanto, ao contrário do quanto afirmado por esse autor, nem mesmo a culpa grave poderia ser punida como ato de improbidade. No ponto, cumpre observar que a gravidade da culpa não está relacionada à intenção da conduta, mas sim à maior possibilidade de antevisão (previsão do resultado) pelo homem-padrão, ou seja, a maior gravidade da culpa não a aproxima do dolo, visto que, ainda que fosse mais facilmente previsível o resultado por uma pessoa dotada de prudência e discernimento, não o foi pelo agente. Assim, como bem acenaram GARCIA e ALVES (2006), em se tratando de atos culposos, a intensidade da culpa não é capaz de limitar a incidência do tipo, mas tão somente das sanções, que devem ser aplicadas de acordo com o princípio da proporcionalidade.       PAZZAGLINI FILHO (2007, p. 78-79), mesmo defendendo a possibilidade de existência de improbidade administrativa na modalidade culposa, admite a dificuldade em “se harmonizar em uma atitude ilícita do administrador as marcas simultâneas de improbidade e de culpa”, pois "o vocábulo ‘improbidade’, constante da formulação constitucional, repele a possibilidade de sancionar, como ímprobos, atos que não evidenciem um desvio ético, uma desonestidade, uma transgressão consciente a preceito de observância obrigatória". Em sentido contrário, defendendo a impossibilidade de incidência da Lei de Improbidade às condutas culposas, FIGUEIREDO (2009, p. 49-50 e 97) afirma que não é crível punir o agente público ou equiparado “quando o ato acoimado de improbidade é, na verdade, fruto de inabilidade, de gestão imperfeita, ausente o elemento de ‘desonestidade’, ou de improbidade propriamente dita”. Para esse autor, o art. 10 da Lei n° 8.429/92 ultrapassou a previsão constitucional ao estabelecer um conceito elástico de improbidade administrativa, que abarca, de forma desproporcional e desarrazoada, “qualquer ação ou omissão dolosa ou culposa”. Destarte, para afastar a inconstitucionalidade, é necessário abrandar o rigor legal para amoldá-lo ao espírito constitucional, interpretando o referido dispositivo conforme a Constituição. Com efeito, beira as raias do absurdo pensar que um agente público, em razão de uma conduta culposa (involuntária, portanto, quanto ao resultado danoso), que cause pequena lesão ao erário, tenha seus direitos políticos suspensos, seus bens indisponíveis e, ainda, perca a função pública, entre outras sanções previstas no inciso II, do art. 12, da Lei n° 8.429/92. Destarte, os princípios da proporcionalidade, da proibição de excesso e da racionalidade devem ser utilizados como balizadores para uma adequada interpretação do elemento subjetivo do tipo, a fim de se evitar situações arbitrárias. É sempre necessária “uma análise global do fato, e sua adequada punição, tendo sempre em mente a proporcionalidade das previsões e suas consequências” (FIGUEIREDO, 2009, p. 97). ALVARENGA (apud GIACOMUZZI, 2002, p. 301), justamente por entender que a improbidade é uma imoralidade qualificada pela desonestidade, conclui pela inconstitucionalidade da expressão culposa constante no art. 10, da LIA. Na mesma linha, HARGER (2009) defende a inconstitucionalidade do dispositivo porque as hipóteses nele previstas dependem da ocorrência de dolo específico de causar lesão ao erário. De tudo quanto foi exposto extrai-se que a multiplicidade de conteúdos fornecidos pela doutrina à expressão improbidade administrativa – ora relacionando-a a valores morais como desonestidade e deslealdade, intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito, ora definindo-a tão somente como conduta contrária às normas – acaba por dificultar a compreensão do instituto e a delimitação do alcance dos tipos sancionadores. CONCLUSÕES Parece-nos incontestável que, aceitando-se a definição de probidade administrativa como o dever do agente público de, no desempenho de suas funções, agir com honestidade, decência e honradez, movido sempre e exclusivamente pela concreção dos fins de interesse público da Administração a que está vinculado, a improbidade somente estará caracterizada quando o elemento volitivo da conduta estiver eivado de desonestidade, deslealdade, etc, ou seja, somente se poderá falar em improbidade quando houver conduta dolosa, pois considerar alguém desonesto por mera culpa configura uma contradição. No ponto, nem mesmo o princípio democrático (no sentido de opção discricionária do legislador) pode ser chamado a defender a constitucionalidade do art. 10, da LIA, sob pena de incongruência do sistema jurídico considerado como um todo (incluídas as noções de dolo e culpa, bem como de moralidade que perpassam os princípios informadores da Administração Pública). Por outro lado, se considerarmos a improbidade administrativa sob um aspecto objetivo – ou seja, sem preenchê-la com conceitos intrinsecamente morais – como atuação contrária às normas regentes da Administração (incluídas aí todas as regras e princípios tanto constitucionais quanto de legislações setoriais), torna-se plenamente possível, pelo menos do ponto de vista lógico, a existência de improbidade administrativa na modalidade culposa. Ocorre que, conforme afirmado alhures, o sistema deve ser interpretado como um todo, e os conceitos jurídicos, mesmos os indeterminados, possuem certas propriedades que estão relacionadas ao conteúdo mínimo de seu significado (núcleo semântico) e que devem condicionar o agir dos administradores, legisladores infraconstitucionais e juízes. Nessa perspectiva, acreditamos que a improbidade administrativa, seja do ponto de vista gramatical, seja do ponto de vista histórico e teleológico, sempre esteve conectada indissociavelmente ao combate à corrupção. Atualmente, ainda que o espectro de proteção do patrimônio público tenha sido alargado pela LIA, não podemos olvidar de sua interpretação sistemática, que está intimamente ligada à punição de condutas abertamente (e, portanto, dolosas) contrárias às normas regentes da Administração Pública. Entendimento contrário levaria a cunhar de ímprobos praticamente todos os erros de previsibilidade cometidos pelos agentes públicos, os quais, por evidente, não devem restar impunes, ante a exigência de maior cuidado decorrente da função pública desempenhada, todavia, afirmar que a conduta culposa não configura improbidade administrativa não acarreta a impunidade do agente estatal, uma vez que existem outros regimes de responsabilidade menos gravosos, mas que cumprem satisfatoriamente o escopo de proteção do patrimônio público, sem, entretanto, impingir a pecha de corrupto ou desonesto ao agente tão somente incauto.
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O Ministério Público Federal e a sua atuação junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE): sugestões e críticas em face da Lei Orgânica do MP (8.625/93) e da Constituição da República de 1988
A ordem econômica constitui-se pelas proposições normativas ou instituições jurídicas que têm por objeto as relações econômicas, dentre as quais, algumas possuem hierarquia constitucional e, assim, compõem a Constituição Econômica, ou seja, a parcela da Constituição que cuida do econômico. Essa ordem é regida conforme fundamentos e princípios constitucionais estruturantes, nos quais se destacam a dignidade da pessoa humana, perseguida através da valorização do trabalho humano. Evidencia-se, assim, que a proteção dessa ordem, através de medidas tais como o Sistema de Defesa da Concorrência é essencial para a própria preservação do Estado Democrático de Direito. E, para tal proteção, algumas instituições apresentam notável importância, como o Ministério Público, que passou por importantes mudanças e evoluções ao longo da história constitucional brasileira, até firmar a sua independência funcional na vigência da Constituição da República de 1988. Dessa forma, faz-se mister o estudo de dita instituição e sua atuação no Sistema Brasileiro de Defesa Econômica, inclusive para a melhor compreensão dessa seara.
Direito Administrativo
Introdução A ordem econômica constitui-se pelas proposições normativas ou instituições jurídicas que têm por objeto as relações econômicas, dentre as quais, algumas possuem hierarquia constitucional e, assim, compõem a Constituição Econômica, ou seja, a parcela da Constituição que cuida do econômico. Essa ordem é regida conforme fundamentos e princípios constitucionais estruturantes, nos quais se destacam a dignidade da pessoa humana, perseguida através da valorização do trabalho humano. Evidencia-se, assim, que a proteção dessa ordem, através de medidas tais como o Sistema de Defesa da Concorrência é essencial para a própria preservação do Estado Democrático de Direito. E, para tal proteção, algumas instituições apresentam notável importância, como o Ministério Público, que passou por importantes mudanças e evoluções ao longo da história constitucional brasileira, até firmar a sua independência funcional na vigência da Constituição da República de 1988. Dessa forma, faz-se mister o estudo de dita instituição e sua atuação no Sistema Brasileiro de Defesa Econômica, inclusive para a melhor compreensão dessa seara. 1. O Ministério Público e as Constituições brasileiras Primeiramente, e antes de adentrar no tema nuclear do presente trabalho, qual seja, a atuação do Ministério Público Federal perante o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, é importante compreender a consolidação de tal Instituição nas diversas Constituições brasileiras, com o fim mesmo de compreender o seu papel em nosso ordenamento jurídico, bem como na organização de um Estado Democrático Moderno. Façamos assim, portanto, um paralelo do Ministério Público nas Constituições brasileiras. 1.1. A Constituição de 1824 Começaremos este estudo traçando o perfil da Constituição de 1824, a primeira Constituição brasileira, denominada de Constituição do Império. Como se sabe, no ano de 1822, o Brasil possuía a sede do governo no Rio de Janeiro, de onde já estabelecia relações internacionais independentes de Portugal. Não obstante, apesar de os deputados constituintes de nossa primeira Carta Magna terem sido livremente eleitos para redigi-la, os poderes monárquicos, em sua totalidade, foram preservados, tendo ficado a constituição sob aprovação do Imperador, que a promulgou a em 25 de março de 1824. Conquanto trouxesse princípios expressos em seu próprio texto, a Constituição de 1824 não conseguiu efetiva-los, tendo sido promulgada e vigido sobre grande instabilidade política e institucional. No tocante ao papel do Ministério Público, a não ser pelo seu art. 48 que dispunha que “No juízo dos crimes, cuja acusação não pertence à Câmara dos Deputados, acusará o procurador da Coroa e Soberania Nacional”, nada mais se falava a respeito de tal Instituição. Percebe-se, portanto, que o MP se encontrava desorganizado e desarticulado na ordem então vigente, sendo que até o recrutamento de seus membros ocorria de maneira precária, até pela insuficiência de bacharéis diplomados. Cumpre relevar que a Instituição, na época, era completamente subordinada ao poder moderador do Monarca. Nas palavras de Jose Dilermando Meireles[1], seus agentes reduziam-se a meros prepostos Poder Executivo. É notório que o Poder Moderador de que dispunha a Constituição do Império era na realidade uma forma de constitucionalizar o absolutismo vigente. Aliás, o artigo 101 do mencionado texto constitucional elencava as competências inerentes ao Poder Moderador, sendo elas: “Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43. II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio. III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62. IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua. VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado. VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154. VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença. IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado”. Em suma, possuía o Imperador os poderes para nomear senadores, convocar assembleia geral extraordinária, sancionar os decretos e resoluções da assembleia geral, aprovar e suspender interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogar ou adiar a assembleia geral e dissolver a Câmara dos Deputados, bem como fazer a livre nomeação e demissão dos Ministros de Estado, suspender magistrados em determinados casos, perdoar ou mitigar penas e conceder anistia em caso de urgência. 1.2. A Constituição de 1891 A Constituição de 1891 tem como grande inovação no ordenamento jurídico brasileiro, tratar-se de uma Constituição Republicana. A partir de 15 de novembro de 1889 o Brasil deixou, de forma inédita, de viver a forma absolutista. Para essa nova República era imprescindível à existência de instituições estáveis e propícias a garantir os novos ideais republicanos, razão pela qual, de forma pioneiramente, previu a Instituição do Ministério Público, a quem empregou uma forma estruturalmente organizada, necessária a cumprir com todas suas funções de maneira efetiva. Não obstante a previsão do Ministério Público, a Carta Constitucional apenas mencionou, inclusive de maneira indireta, acerca da nomeação do Procurador-Geral da República, conforme parágrafo segundo do art. 58, que aconteceria por meio do Poder Executivo, através de uma escolha arbitrária entre os membros da cúpula do Poder Judiciário: “Art 58 – Os Tribunais federais elegerão de seu seio os seus Presidentes e organizarão as respectivas Secretarias. § 1º – A nomeação e a demissão dos empregados da Secretaria bem como o provimento dos Ofícios de Justiça nas circunscrições judiciárias, competem respectivamente aos Presidentes dos Tribunais. § 2º – O Presidente da República designará, dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, cujas atribuições se definirão em lei”. Vê-se, pois, não ter sido ainda atribuída uma verdadeira autonomia à Instituição, sendo que o próprio Procurador-Geral era eleito dentre membros da Corte Constitucional. Ainda no que diz respeito ao Procurador-Geral da República, a Carta de 1891 trazia atribuições ao Procurador-Geral como, por exemplo, dar-lhe competência funcional para exercitar a revista criminal ex officio (artigo 81, §1º). 1.3. A Constituição de 1934 Com a promulgação da Constituição de 1934, a qual fora recebida com um grande entusiasmo pela população nacional, sobretudo por tratar de direitos de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturas), fora dispensado maior atenção à Instituição do Ministério Público. Ao contrário do que se verificava anteriormente, o Ministério Público finalmente foi desvencilhado da estrutura do Poder Judiciário, sendo introduzido no capítulo que referia à organização dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais (Seção I do Capítulo VI do Título I): “CAPÍTULO VI Dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais SEÇÃO I Do Ministério Público Art. 95 – O Ministério Público será organizado na União, no Distrito Federal e nos Territórios por lei federal, e, nos Estados, pelas leis locais. § 1º – O Chefe do Ministério Público Federal nos Juízos comuns é o Procurador-Geral da República, de nomeação do Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos estabelecidos para os Ministros da Corte Suprema. Terá os mesmos vencimentos desses Ministros, sendo, porém, demissível ad nutum. 2º – Os Chefes do Ministério Público no Distrito Federal e nos Território serão de livre nomeação do Presidente da República dentre juristas de notável saber e reputação ilibada, alistados eleitores e maiores de 30 anos, com os vencimentos dos Desembargadores. § 3º – Os membros do Ministério Público Federal que sirvam nos Juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só perderão os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo administrativo, no qual lhes será assegurada ampla defesa. Art. 96 – Quando a Corte Suprema declarar inconstitucional qualquer dispositivo de lei ou ato governamental, o Procurado Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal para os fins do art. 91, nº IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva, de que tenha emanado a lei ou o ato. Art. 97 – Os Chefes do Ministério Público na União e nos Estados não podem exercer qualquer outra função pública, salvo o magistério e os casos previstos na Constituição. A violação deste preceito importa a perda do cargo. Art. 98 – O Ministério Público, nas Justiças Militar e Eleitoral, será organizado por leis especiais, e só terá na segunda, as incompatibilidades que estas prescrevem”.  Vê-se que a Carta de 1934 previu que lei federal deveria estruturar a Instituição do Ministério Público, embora tenha mantido a nomeação do Procurador-Geral por escolha discricionária e demissão ad nutum pelo Presidente da República, disposição determinante que coloca o membro dessa Instituição ainda subordinado ao Poder Executivo. Não obstante, inovou ao assegurar ao Ministério Público a estabilidade funcional de seus componentes e dispôs que os mesmos deveriam ingressar na carreira através de nomeação precedida de concurso público, além de apenas perderem seus cargos nos moldes da lei e por sentença judicial. Previu-se, ademais, a sua existência tanto no plano Federal, como no Estadual. Percebe-se que a Lei Maior de 1934 contribuiu para uma acentuada valoração do Ministério Público, tendo confiado a tal Instituição o dever de comunicar ao Senado Federal a inconstitucionalidade de uma lei, além de declarar que e revisão criminal em benefício aos condenados, ex officio, era de titularidade do MP (art. 76). 1.4. A Constituição de 1937 Como se sabe, a Constituição de 1937 foi outorgada por Getúlio Vargas, redigida sob influência do fascismo de Mussoline e o nazismo implantado por Hitler. Mas de fato o conteúdo do seu texto jamais foi verdadeiramente aplicado. No aspecto político o Poder Legislativo foi dissolvido, sendo que a Câmara dos Deputados só existia nominalmente, sendo que o Presidente usurpou todo o poder de legiferar desses órgãos, concentrando-o na sua pessoa. Em outras palavras, os princípios de separação de poderes foram totalmente desconsiderados. Também o Poder Judiciário sofreu notórios abusos do Poder. Tal não fora diferente quanto ao Ministério Público. A Carta de 1937 representou, dessa forma, um verdadeiro retrocesso para tal Instituição. Tratou de fazer apenas algumas referências esparsas aos seus membros no decorrer de seu texto. No art. 99 da Carta Constitucional fica explicita a subordinação do judiciário em relação ao Poder Executivo, ou seja, a pessoa do Presidente da República, já que o artigo confirmava a competência privativa do Presidente para efetuar nomeação e demissão do Procurador-Geral da República: “Art. 99 – O Ministério Público Federal terá por Chefe o Procurador-Geral da República, que funcionará junto ao Supremo Tribunal Federal, e será de livre nomeação e demissão do Presidente da República, devendo recair a escolha em pessoa que reúna os requisitos exigidos para Ministro do Supremo Tribunal Federal”. Não obstante os retrocessos do período, com a promulgação da Constituição Polaca, foi sob esse regime que os integrantes do Ministério Público adquiriram o benefício de concorrer ao preenchimento do quinto constitucional nos tribunais superiores, conforme artigo 105: “Art. 105 – Na composição dos Tribunais superiores, um quinto dos lugares será preenchido por advogados ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação ilibada, organizando o Tribunal de Apelação uma lista tríplice”. Ao Ministério Público cabia a possibilidade de interpor recursos contra as decisões de última ou única instância denegatórias de habeas corpus (artigo 101, parágrafo único), além de poder representar a Fazenda Federal em juízo (artigo 109, parágrafo único). Mesmo com todo o retrocesso que a Constituição de 1937 representou para o Ministério Público, com a edição do Código Penal em 1941, alargou-se em muito as funções dessa Instituição. 1.5. A Constituição de 1946 Com a queda de Getúlio Vargas e, consequentemente, do Estado Novo, ocorre no Brasil um período de redemocratização dos direitos fundamentais. A Constituição de 1946 trouxe de volta o princípio federativo e propiciou grande autonomia aos Estados e Municípios. Além disso, buscou restaurar ao Poder Legislativo e Judiciário, prerrogativas decorrentes de um Estado Democrático de Direito. Resta evidenciado que foi com a Carta de 1946 que o Ministério Público deixou de ser considerado, de uma forma geral, como um instrumento político pelos governantes. João Francisco Sauwen Filho[2], em sua obra sobre a Instituição, conclui que: “O advento da Constituição Federal de 1946 viria a consolidar a independência do parquet, em relação aos demais órgãos governamentais, apartando-o da esfera de abrangência de qualquer dos poderes do Estado”. Na Carta Constitucional de 1946 a Instituição do Ministério Público foi consagrada com um Título inteiro a seu respeito, sendo que determinava, ainda, que sua organização, no plano federal, deveria ser feita através de lei infraconstitucional: “TÍTULO III Do Ministério Público Art. 125. A lei organizará o Ministério Público da União junto aos órgãos judiciários federais (art. 94, I a V). Art. 126 – O Ministério Público federal tem por Chefe o Procurador-Geral da República. O Procurador, nomeado pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos indicados no artigo 99, é demissível ad nutum. Parágrafo único – A União será representada em Juízo pelos Procuradores da República, podendo a lei cometer esse encargo, nas Comarcas do interior, ao Ministério Público local. Art. 127 – Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais da carreira mediante concurso. Após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária ou mediante processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos a não ser mediante representação motivada do Chefe do Ministério Público, com fundamento em conveniência do serviço. Art. 128 – Nos Estados, o Ministério Público será também organizado em carreira, observados os preceitos do artigo anterior e mais o princípio de promoção de entrância a entrância”. Como se vê, a Constituição de 1946 manteve a tradição de nomeação do Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público, pelo Presidente da República, prevendo ainda a exoneração do cargo de forma ad nutum. Retomou o referido Texto Constitucional disposição já existente anteriormente na Constituição de 1934, que estabelecia o acesso aos cargos iniciais de carreira através de aprovação prévia em concurso público. De igual forma, as garantias da estabilidade e inamovibilidade, mutiladas pela Constituição Polaca, foram retomadas. Ademais, é importante ressaltar que a Carta Magna de 1946 estabelecia de maneira contundente que era o Ministério Público Federal quem representaria a União em juízo. Percebe-se das observações feitas até a presente oportunidade, que foi com a Constituição da República de 1946 que a Instituição do Ministério Público ganhou destaque e independência em nosso ordenamento. De suam importância, para o MP, portanto, referida Carta Magna. 1.6. A Constituição de 1967 A Constituição de 1967 está fundada na Ditadura instaura no Brasil a partir de 1964. Sabe-se que nesse momento, os atos institucionais, computados em cinco, dentre outros fatores negativos, suspenderam as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, extinguiram os partidos políticos e centralizaram por completo o Poder na figura do Chefe do Executivo, oriundo das Forças Armadas. Segundo Paulo Bonavides e Paes de Andrade[3]: “Outorgar uma “Constituição” (ela é na verdade uma emenda constitucional) como a de 69 depois de baixar o AI – 5, é um insulto a vocação democrática do nosso povo que, afinal, a recebeu como uma piada de mau gosto. Mas o fato é que, mais uma vez, a preocupação com a fachada foi decisiva”. Referida Constituição, apesar de apresentar certo grau de liberalismo econômico em seu texto formal colidia de frente com a realidade autoritária do período. No que diz respeito aos membros do Ministério Público, o texto constitucional o colocou no Capítulo concernente ao Poder Judiciário, tratando-o em seção autônoma. Mais uma vez na história brasileira, determinou que a organização do Ministério Público perante juízos e tribunais, na esfera federal, fosse feita por intermédio de lei infraconstitucional. Dispôs o ingresso inicial na carreira por intermédio de concurso público de provas e títulos, além de ter propiciado aos seus membros prerrogativas de estabilidade e inamovibilidade. Ao se referir ao Procurador-Geral da República, a Carta Magna manteve a sua nomeação pelo Presidente da República e sua exoneração ad nutum. “SEÇÃO IX Do Ministério Público Art 137 – A lei organizará o Ministério Público da União junto aos Juizes e Tribunais Federais. Art 138 – O Ministério Público Federal tem por Chefe o Procurador-Geral da República, o qual será nomeado pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos Indicados no art. 113, § 1º. § 1º – Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais de carreira, mediante concurso público de provas e títulos. Após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária, ou em virtude de processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos, a não ser mediante representação do Procurador-Geral, com fundamento em conveniência do serviço. § 2º – A União será representada em Juízo pelos Procuradores da República, podendo a lei cometer esse encargo, nas Comarcas do interior, ao Ministério Público local. Art 139 – O Ministério Público dos Estados será organizado em carreira, por lei estadual, observado o disposto no parágrafo primeiro do artigo anterior. Parágrafo único – Aplica-se aos membros do Ministério Público o disposto no art. 108, § 1º, e art. 136, § 4º”. Em de 17 de outubro de 1969 foi outorgada a Emenda Constitucional nº 1, que substituiu a Constituição vigente e passou a vigorar como a nova Carta. Com as mudanças propostas pela emenda, e a prevalência de todo um novo texto, denominado de Constituição de 1969, o Ministério Público foi situado na Seção VII dentro do Capítulo destinado ao Poder Executivo: “SEÇÃO VII Do Ministério Público Art. 94. A lei organizará o Ministério Público da União junto aos juízes e tribunais federais. Art. 95. O Ministério Público federal tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República, dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. § 1º Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais de carreira, mediante concurso público de provas e títulos; após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária ou em virtude de processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa, nem removidos a não ser mediante representação do Procurador-Geral, com fundamento em conveniência do serviço. § 2º Nas comarcas do interior, a União poderá ser representada pelo Ministério Público estadual. Art. 96. O Ministério Público dos Estados será organizado em carreira, por lei estadual, observado o disposto no §1° do artigo anterior”. Ficou claro a intenção de mais uma vez transformar a Instituição do Ministério Público em um instrumento arbitrário do governo. No mais, manteve as mesmas disposições atinentes ao parquet. 1.7. A Constituição de 1988 e o perfil Constitucional contemporâneo do Ministério Público A Constituição da República de 1988, também chamada de Carta Cidadã, foi promulgada sob uma forte busca pela valorização dos direitos fundamentais, sobretudos aqueles ligados às liberdades individuas, conforme se verifica do extenso artigo 5º da atual Carta Magna. Não obstante todo o discurso democrático dos tempos atuais, certo é que vivemos cada vez mais uma sociedade consumista e competitiva, em que se verifica uma desigualdade social em constante crescimento. O presente contexto real exige das Instituições uma nova posição, como é o caso mesmo do Ministério Público que, na busca pela manutenção de uma ordem jurídica de defesa da democracia, deve se ater para os direitos transindividuais, próprios de um mundo globalizado. Assim ensina Marcelo Zenkner, Promotor de Justiça[4]: “A urbanização e a industrialização dos países geraram uma sociedade de massas, na qual os meios de comunicação, de transporte, de produção e de consumo operaram numa escala macrodimensionada, ao mesmo tempo em que o meio ambiente é cada vez mais degradado e as desigualdades sociais são cada vez maiores”. Portanto já visando toda essa evolução e necessidade decorrente dela que vem inovar a Constituição de 1988 como nunca visto antes na história de nosso país. A atual Carta Magna veio libertar o país de anos de autoritarismo e restaurar o regime democrático tão almejado pela população. No que diz respeito ao Ministério Público, a atual Constituição lhe deu uma precisa definição institucional, provendo o necessário avanço para lhe empregar autonomia. Dedicou a Lei Maior de 1988 toda a seção de um capítulo, denominado “Das Funções essências à Justiça” ao Ministério Público (capítulo IV), dentre outros artigos esparsos em seu texto. No seu art. 127 a Constituição descreve a Instituição: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. É no art. 129 que a Lei Constitucional confere privatividade ao parquet como titular da ação penal pública, pois até então a Instituição concorria com a autoridade policial e com o Juiz, segundo o procedimento judicialiforme descrito no art. 531 e seguintes do Código de Processo Penal, além de ter ampliado a titularidade do Inquérito Civil e Ação Civil Pública para “outros interesses difusos e coletivos”, conforme dita o inciso III. Vem determinada como seus princípios Institucionais, no parágrafo primeiro do art. 127, a unidade, indivisibilidade e a independência funcional. Quanto à escolha do Procurador-Geral não atende inteiramente as expectativas de total independência da Instituição. O Procurador-Geral da República é eleito pelo Presidente dentre os integrantes da carreira, e sua admissão e demissão é condicionada à aprovação obrigatória do Senado. Nos Estados membros é escolhido a partir de lista tríplice apresentada pela Instituição ao Governador, e a destituição do cargo é aprovada pela Assembleia Legislativa. As funções institucionais estão presentes em nove incisos do art. 129 da Lei Magna: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”. Tem-se, assim, que com o advento da atual Constituição, o Ministério Público finalmente recebe a atenção especial que lhe cabia. Feitas as considerações acerca do histórico constitucional de tal Instituição, passemos a analisar a Lei nº 8.625/93, denominada de Lei Orgânica do Ministério Público. 2. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público Além das disposições acerca do Ministério Público na Constituição da República de 1988 temos, ainda, na sua regularização, a Lei nº 8.625/93, denominada de Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências. Entre as disposições de maior relevância na atual formação do Ministério Público, desde a CR de 1988 e a Lei Orgânica, podemos destacar alguns pontos, na linha dos artigos 127 da Constituição, e 1º da Lei em questão: “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. “Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Temos assim, os seguintes pontos de destaque: a) Instituição permanente: após a edição da atual Carta Constitucional, foi suprimida a possibilidade de desconstituição de tal Instituição. Hugo Nigro Mazzilli[5] aponta que: “(…) ao afirmar seu caráter permanente, o poder constituinte originário vetou, implicitamente, que o poder constituinte derivado suprimisse ou deformasse a Instituição ministerial, pois, caso contrário, haveria forma indireta de burlar o princípio”. b) Essencial à função jurisdicional do Estado: na formação atual do MP, não há dúvidas da sua importância jurisdicional. Contudo, e de acordo com Hugo Nigro Mazzilli[6], essa expressão, adotada em nosso ordenamento, não seria de todo adequada, vez que ela: “(…) diz menos do que deveria (o Ministério Público tem inúmeras funções exercidas independentemente da prestação jurisdicional, como na fiscalização de fundações e prisões, nas habilitações de casamento, na homologação de acordos extrajudiciais, na direção de inquérito civil, no atendimento ao público, nas funções de ombudsman) e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, diz mais do que deveria (pois o Ministério Público não oficia em todos os feitos submetidos à prestação jurisdicional, e sim, normalmente, apenas naqueles em que haja algum interesse indisponível, ou, pelo menos, transindividual, de caráter social, ligado à qualidade de uma das partes ou à natureza da lide)”. c) Defesa da ordem jurídica: é da atividade do Ministério Público zelar pela defesa da ordem jurídica nacional. Emerson Garcia[7] ensina que: “(…) tem o dever funcional de defender a ordem jurídica, o que pressupõe a aferição de todos os atos praticados pelos órgãos do Estado, podendo ajuizar as medidas necessárias à coibição de abusos ou ilegalidades, sempre buscando mantê-los adstritos aos limites da Constituição e do Direito. – Ordem jurídica não guarda similitude com a lei, mas, sim, com o Direito, sendo noção eminentemente mais ampla”. É justamente nessa linha, aliás, que se insere o artigo 27 da Lei Orgânica: “Art. 27. Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: I – pelos poderes estaduais ou municipais; II – pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; III – pelos concessionários e permissionários de serviço público estadual ou municipal; IV – por entidades que exerçam outra função delegada do Estado ou do Município ou executem serviço de relevância pública. Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: I – receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas; II – zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos; III – dar andamento, no prazo de trinta dias, às notícias de irregularidades, petições ou reclamações referidas no inciso I; IV – promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito”. Veja que tal dispositivo prevê que cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito pelos poderes estaduais ou municipais; pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; pelos concessionários e permissionários de serviço público estadual ou municipal; e por entidades que exerçam outra função delegada do Estado ou do Município ou executem serviço de relevância pública. Assim, deve ser abandonado o designativo de custos legis, pois é mais apropriada a expressão custos iuris para explicitar a missão do Ministério Público de defender o ordenamento jurídico a partir das bases estabelecidas na Constituição Federal. d) Defesa do regime democrático: em linhas com a concepção atual e constitucional do Estado Democrático de Direito, é inerente à função do MP a defesa dos preceitos democráticos. Para Hugo Nigro Mazzilli[8], a defesa do regime democrático pelo Ministério Público deve ser realizada em dois níveis: “a) controle de constitucionalidade das leis que violem princípio constitucional, a ser feito ‘sob forma concentrada’ (especialmente por meio da propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, de representações interventivas e de algumas ações civis públicas para defesa de interesses difusos); b) controle de constitucionalidade das leis que violem princípio constitucional, a ser feito ‘sob forma difusa’, caso a caso, impugnando-se as medidas e atos concretos que violem uma norma constitucional (especialmente por meio da ação penal, do inquérito civil e da ação civil pública para defesa de interesses sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, além de outros mecanismos de fiscalização e controle afetos à Instituição)”. É exatamente a partir desta destinação que a Constituição da República, em seu artigo 103, inciso VI, e a própria Lei Orgânica, em seus artigos 25, inciso I, e 29, inciso I, conferiram ao Ministério Público legitimidade para as ações de controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional: “Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:(…) VI – o Procurador-Geral da República”; “Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público: I – propor ação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face à Constituição Estadual”; “Art. 29. Além das atribuições previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, compete ao Procurador-Geral de Justiça: I – representar aos Tribunais locais por inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual”; Vem daí, também, o mister da Instituição de fiscalizar todo o procedimento eleitoral como forma de garantir a eficácia do preceito estabelecido no caput do artigo 14 da Constituição de 1988, no sentido de que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. e) Defesa dos interesses sociais: Os direitos fundamentais sociais estão expressamente enumerados no artigo 6º da Constituição Federal, dentre outros, e assim são reconhecidos a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Esses direitos – que não são esgotados pelo artigo 6º – constituem prestações positivas proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais, tudo em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e da cidadania. São, assim, direitos que se ligam ao direito de igualdade, como ensina José Afonso da Silva[9] (Direito Constitucional Positivo, 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 289). Cumpre observar, inclusive com base na expressiva lição de Jorge Miranda[10] que, por meio dos direitos fundamentais sociais se objetiva atingir uma liberdade tendencialmente igual para todos, a qual apenas pode ser alcançada com a superação das desigualdades e não por meio de uma igualdade sem liberdade. A atuação do MP, na defesa desse fim, é de fundamental importância para a manutenção da ordem democrática. f) Defesa dos interesses individuais indisponíveis: um das funções primordiais do MP na função jurisdicional do Estado é justamente a presente. Indisponível, de acordo com Ricardo Pieri Nunes[11]: “(…) é o interesse que, pela sua precípua relevância para a coletividade, se apresenta como indispensável à manutenção da integridade do corpo social e, por conseguinte, à própria existência do Estado. Diante desta magnitude, os interesses indisponíveis são tutelados por normas cogentes, imperativas ou de ordem pública, que jamais podem ser afastadas por convenção das partes, incidindo obrigatoriamente quando determinada situação concreta se amolda ao seu preceito abstrato”. É o que ocorre, por exemplo, numa ação de investigação de paternidade, na qual o Ministério Público atua em favor do direito de filiação do autor-investigante, em vista do comando constitucional que proíbe quaisquer designações discriminatórias ou mesmo incorreções a esse respeito, consoante artigo 227, § 6º: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.(…) § 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. 3. O Ministério Público Federal e sua atuação perante o CADE Feitas as devidas considerações acerca do Ministério Público e suas funções primordiais e sua forma de organização, passemos a analisar a sua atuação dentro do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e, em especial, junto ao CADE. Conforme se infere da leitura da Constituição da República de 1988, o Brasil adotou um regime de livre mercado (embora regulado e fiscalizado), com bases capitalistas, regido pelos princípios elencados em seu artigo 170, senão veja-se: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência;  V- defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Ademais, conforme as redações do parágrafo quarto do artigo 173, e caput do artigo 174 da Carta Magna brasileira, a Constituição traz para o ordenamento brasileiro normas de defesa da ordem econômica e da livre concorrência: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.(…) § 4º – A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. A partir de tais dispositivos, estrutura-se em nosso ordenamento jurídico o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, ao qual cabe aqui tecer alguns esclarecimentos, a fim de se verificar a atuação do Ministério Público nessa seara. 3.1. O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência Com a entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011, foi reestruturado o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, por meio da revogação da Lei nº 8.884/94, na estruturação do sistema administrativo de defesa da concorrência, no rito do processo administrativo e na tipificação dos atos de infração contra a ordem econômica, dentre outros aspectos. A finalidade do processo administrativo, conforme dispõe o art. 1º (tanto da Lei nº 12.529/2011 quanto da Lei nº 8.884/94), é de prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica, de acordo com os princípios constitucionais norteadores da ordem econômica, especialmente a liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa da concorrência, defesa do consumidor e repressão ao abuso do poder econômico. Na antiga estrutura, tratada pela Lei nº 8.884/94, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência era formado por três órgãos, quais sejam, (i) Secretaria de Direito Econômico (SDE); (ii) Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE); e o (iii) Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) Contudo a nova lei modificou a estrutura administrativa, passando as funções (relativas ao direito da concorrência) da Secretaria de Direito Econômico (SDE) para o CADE. Portanto, a partir do início da vigência da nova lei, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência passou a ser formado por apenas dois órgãos: a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Contudo, a Secretaria de Direito Econômico não foi extinta e permanece com suas funções em outros setores. Salienta-se que a Lei nº 12.529/2011 se limitou a excluir a SDE do SBDC, mas não chegou a extinguir o órgão. Ao incorporar o Departamento de Proteção e Defesa Econômica da SDE, o CADE passa a ser dividido em três órgãos[12]: Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, Superintendência-Geral e Departamento de Estudos Econômicos, que serão analisados separadamente, adiante. 3.2. A estrutura do CADE O Tribunal Administrativo de Defesa Econômica é o órgão judicante do CADE, com a principal atribuição de julgar os processos administrativos regulamentados pela Lei nº 12.529/2011. A nova lei seguiu vício comum em normas e estatutos brasileiros, ao designar como “Tribunal” um ente administrativo apenas por deter a atribuição de julgar, como, por exemplo, os diversos “Tribunais Administrativos Tributários” e “Tribunais de Justiça Desportiva” existentes no país. Apesar da denominação de “Tribunal”, o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica é um órgão administrativo, que não integra o Poder Judiciário nacional. Tal erro já vinha sendo cometido desde a legislação anterior (Lei nº 8.884/94). Contudo, cabe aqui fazer algumas ressalvas e críticas a essa questão. Inicialmente, cite-se o disposto no artigo 4º da nova lei de defesa da concorrência: “Art. 4o: O CADE é entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, que se constitui em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, e competências previstas nesta Lei”. Assim como a redação do artigo 3º da antiga lei, o legislador empregou ao CADE a suposta condição de entidade judicante e detentora de jurisdição. Pois bem! Quanto ao caráter de judicante, consistente no ato de julgar, no sentido amplo da palavra, não se tem dúvida da sua realização pelo dito órgão, tendo em vista que o CADE emite posição sobre os assuntos que lhe são submetidos, como a aprovação de fusões e aquisições em que se possa evidenciar controle de mercado. Da mesma forma, por exemplo, que os Tribunais Desportivos decidem controvérsias surgidas ao longo das competições esportivas, como o STJD na realização do campeonato brasileiro de futebol profissional, conquanto também seja órgão exterior ao Judiciário. Contudo, a posição emitida pelo CADE, ou seja, o “julgamento” por ele realizado, não chega a lhe conferir “jurisdição”, não estando seus atos sequer isentos de revisão pelo Poder Judiciário, a teor do disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988. Diferentemente da significação de judicante, a expressão “jurisdição” é mais ampla, e limita-se mesmo à atuação do Poder Judiciário, na essência de suas atribuições, ou a quem lhe faça as vezes, como o árbitro, nos termos da Lei nº 9.307/96. Em termos simples, jurisdição seria então a função perpetrada pelos Juízes, ou seja, o ato de declarar o direito com base nos princípios e regras que integram o ordenamento jurídico. Como aponta Marinoni[13], considerando-se que: “(…) a lei é resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso frequentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos, torna-se evidente a necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em consideração os princípios de justiça (…)”. E, tais princípios, que têm qualidade de normas jurídicas constitucionais, são, ainda nas palavras do autor, “vinculantes da interpretação das leis”. Em suma, o que CADE faz em verdade é uma análise técnica e política dos atos que lhes são submetidos, analisando os seus impactos perante o mercado, a fim de verificar se esse ou aquele ato chocam-se com os princípios da ordem econômica nacional. Não obstante, essa análise feita pelo órgão em questão não se trata exatamente da declaração do direito, mas sim, como dito, de uma análise técnica de um caso concreto. E todo aquele que de alguma forma atua com as normas jurídicas, deve obediência às mesmas. Não obstante, a credibilidade adquirida pelo CADE ao longo dos anos lhe empregou um acerto natural em sua função judicante, o que muitas vezes evita que os casos a ele submetidos sejam levados ao Poder Judiciário. Mas, novamente, essa questão também não lhe emprega jurisdição alguma, sendo essa uma função que não lhe cabe! Feita essa distinção e crítica aos dizeres legislativos, passemos então a compreender a estrutura e a composição formal do CADE. O Tribunal compõe-se de um Presidente e seis Conselheiros, que devem ter mais de 30 anos de idade, com notório saber jurídico e/ou econômico, de reputação ilibada, e que são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, consoante determina o art. 6º da Lei nº 12.529/2011. Essa composição se assemelha à forma prevista na Lei anterior, sem maiores novidades. O Tribunal atua de três distintas maneiras: (i) pelo Plenário, quando atuando com a presença de todos os seus membros; (ii) pelo Presidente; ou (iii) por cada um de seus Conselheiros. A Lei nº 12.529/2011 enumera dezenove atribuições ao Plenário, nas quais se destacam as funções administrativas do próprio órgão, como elaborar e aprovar regimento interno do CADE, dispondo sobre seu funcionamento, forma das deliberações, normas de procedimento e organização de seus serviços internos; propor a estrutura do quadro de pessoal do CADE, e elaborar proposta orçamentária nos termos desta Lei. Também compete ao Plenário as funções principais do CADE, como zelar pela observância da Lei 12.529/2011, seu regulamento e do regimento interno do CADE; decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral; ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar; aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, bem como determinar à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento; apreciar, em grau de recurso, as medidas preventivas adotadas pelo Conselheiro-Relator ou pela Superintendência-Geral; apreciar processos administrativos de atos de concentração econômica, na forma desta Lei, fixando, quando entender conveniente e oportuno, acordos em controle de atos de concentração; determinar à Superintendência-Geral que adote as medidas administrativas necessárias à execução e fiel cumprimento de suas decisões; e instruir o público sobre as formas de infração da ordem econômica. O Presidente, ao seu turno, detém doze funções próprias, como representar legalmente o CADE no Brasil ou no exterior, em juízo ou fora dele; presidir, com direito a voto, inclusive o de qualidade, as reuniões do Plenário; distribuir, por sorteio, os processos aos Conselheiros; convocar as sessões e determinar a organização da respectiva pauta; solicitar, a seu critério, que a Superintendência-Geral auxilie o Tribunal na tomada de providências extrajudiciais para o cumprimento das decisões do Tribunal; fiscalizar a Superintendência-Geral na tomada de providências para execução das decisões e julgados do Tribunal; e orientar, coordenar e supervisionar as atividades administrativas do CADE. Já os Conselheiros conta com dez funções próprias, dentre as quais as de emitir voto nos processos e questões submetidas ao Tribunal; proferir despachos e lavrar as decisões nos processos em que forem relatores; adotar medidas preventivas, fixando o valor da multa diária pelo seu descumprimento; solicitar, a seu critério, que a Superintendência-Geral realize as diligências e a produção das provas que entenderem pertinentes nos autos do processo administrativo, na forma desta Lei; propor termo de compromisso de cessação e acordos para aprovação do Tribunal; e prestar ao Poder Judiciário, sempre que solicitado, todas as informações sobre andamento dos processos, podendo, inclusive, fornecer cópias dos autos para instruir ações judiciais. A Superintendência-Geral do CADE é o órgão que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011, passa a desempenhar as atribuições do Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico. A Superintendência-Geral é composta por um Superintendente-Geral e dois Superintendentes-Adjuntos, cargos de dedicação exclusiva e inacumuláveis, exceto nas situações constitucionalmente admitidas, como o cargo de professor. O Superintendente-Geral é nomeado pelo Presidente da República e escolhido entre cidadãos com mais de 30 anos de idade, com notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada, e submetido à aprovação pelo Senado Federal. Já os Superintendentes-Adjuntos são indicados pelo Superintendente-Geral. Dentre as dezoito atribuições da Superintendente-Geral, destacam-se a obrigação de zelar pelo cumprimento da Lei de Defesa da Concorrência, monitorando e acompanhando as práticas de mercado; acompanhar, permanentemente, as atividades e práticas comerciais de pessoas físicas ou jurídicas que detiverem posição dominante em mercado relevante de bens ou serviços, para prevenir infrações da ordem econômica, podendo, para tanto, requisitar as informações e documentos necessários, mantendo o sigilo legal, quando for o caso; promover, em face de indícios de infração da ordem econômica, procedimento preparatório de inquérito administrativo e inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica; decidir pela insubsistência dos indícios, arquivando os autos do inquérito administrativo ou de seu procedimento preparatório; e instaurar e instruir processo administrativo para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, procedimento para apuração de ato de concentração, processo administrativo para análise de ato de concentração econômica e processo administrativo para imposição de sanções processuais incidentais instaurados para prevenção, apuração ou repressão de infrações à ordem econômica. Por fim, o Departamento de Estudos Econômicos tem a função principal de elaborar estudos e pareceres econômicos, de ofício ou por solicitação do Plenário, do Presidente, do Conselheiro-Relator ou do Superintendente-Geral. É vinculado administrativa e financeiramente ao Tribunal Administrativo. Referido Departamento é chefiado por um Economista-Chefe, nomeado em conjunto pelo Presidente do Tribunal Administrativo e pelo Superintendente-Geral, devendo ser brasileiro (nato ou naturalizado), com reputação ilibada e notório conhecimento econômico. A criação de um órgão especializado em Economia tem relação direta com a atividade do CADE, de apurar atos que possam resultar em abuso de poder econômico e garantir o funcionamento do mercado. Logo, é necessário o suporte técnico para a análise dos casos e a elaboração das decisões. Nesse sentido, o art. 17 da Lei nº 12.529/2011 menciona que o Departamento de Estudos Econômicos deve zelar pelo rigor e pela atualização técnica e científica das decisões do Tribunal Administrativo. 3.3. Da atuação do Ministério Público Como se viu, na atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, destacam-se o princípio da livre concorrência, o qual tem como objetivo garantir aos agentes econômicos a oportunidade de competição no mercado de forma justa e livre de práticas abusivas do poder econômico, bem como o princípio da defesa da concorrência, de natureza transindividual. Ademais, o mercado não é patrimônio de alguns, mas de todos, conforme determina o artigo 219[14] da Carta Magna brasileira, razão pela qual a liberdade de atuação em seu interim é medida de imperativo lógico para o perfeito funcionamento da ordem econômica nacional. Voltando-se à livre concorrência, esta é então um dos princípios que norteia a ordem econômica brasileira, elencado no art. 170, IV, da Constituição da República de 1988. A livre concorrência é, portanto, fator determinante no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, uma vez que incentiva as empresas a buscarem sempre se aperfeiçoarem em modernas tecnologias, tentando reduzir os custos, bem como aumentar a produtividade e a qualidade de sua produção, corroborando ainda na diversificação do mercado com lançamento de produtos novos, sempre mais acessíveis para o consumidor. Também incentiva práticas sustentáveis e baseadas em preceitos éticos para a atuação empresarial. Mas não apenas os princípios mencionados no artigo 170 da Constituição da República de 1988, fundamentam o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Muito além, temos no texto constitucional diversos outros fundamentos a nos emprestar teor valorativo a esse sistema. Dentre eles tem-se, por exemplo, o já mencionado parágrafo quarto do artigo 173, da Constituição brasileira de 1988. Percebe-se, assim, que a defesa da concorrência, indubitavelmente, corresponde a uma das mais importantes facetas da intervenção estatal na ordem econômica nacional. Nesse ponto, colhe-se a crítica realizada pelo Professor João Bosco Leopoldino da Fonseca[15]: “A Constituição de 1948 inscrevera essa matéria num artigo independente. Já a Constituição de 1967-1969 deu a esse dispositivo o nível de princípio da ordem econômica e social e o inseriu no art. 160. O Constituinte de 1988 errou gravemente ao colocar essa norma no contexto do art. 173, que nada tem a ver com abuso de poder econômico. De qualquer sorte, pela importância que a matéria vem hoje tendo, tal norma mereceria figurar em artigo, e não num simples parágrafo”. No Brasil, a defesa da concorrência relacionou-se, inicialmente, nas Constituições de 1934 e 1937, com a tipificação dos crimes contra a economia popular. Somente com a Carta Maior de 1946 e, após, nas Constituições de 1967 (emenda de 1969) e 1988, é que o nosso ordenamento passou a tratá-la com uma das formas de abuso do poder econômico, dando maior ênfase ao tema. Atualmente, essa matéria recebeu importância também na ordem infraconstitucional, com a regularização do tema em legislação específica que, na estruturação de um Sistema de Defesa da Concorrência criou, dentre outros fatores, um Conselho Administrativo de Defesa Econômica, como já se viu anteriormente. Mas como se destacou, pelas funções do Ministério Público, é de extrema importância que esse também atue na defesa da concorrência, e na repressão ao abuso do poder econômico. Assim é que a Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, elencou, acerca do Ministério Público, algumas atribuições, conforme se infere de seus artigos 9º, §2º, 20, e 66, §8º: “TÍTULO III DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PERANTE O CADE  Art. 9o Compete ao Plenário do Tribunal, dentre outras atribuições previstas nesta Lei:(…) § 2o. As decisões do Tribunal não comportam revisão no âmbito do Poder Executivo, promovendo-se, de imediato, sua execução e comunicando-se, em seguida, ao Ministério Público, para as demais medidas legais cabíveis no âmbito de suas atribuições”. “Art. 20.  O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público Federal para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator”.  “Art. 66.  O inquérito administrativo, procedimento investigatório de natureza inquisitorial, será instaurado pela Superintendência-Geral para apuração de infrações à ordem econômica.(…) § 8o. A Superintendência-Geral poderá solicitar o concurso da autoridade policial ou do Ministério Público nas investigações”. São funções do MP, então, na defesa da ordem econômica da livre concorrência, a execução das decisões do plenário do CADE, bem como a contribuição com as investigações para apuração de infrações à ordem econômica, inclusive com a emissão de pareceres. Não obstante tais funções, cabe aqui indagar-se acerca desse último cargo atribuído ao Ministério Público, haja vista que o artigo 20 da Lei nº 12.529/12 prevê a possibilidade de o Conselheiro-Relator requerer parecer do Parquet. Tal questão pode se apresentar como uma equivocada hierarquia formal do CADE em relação ao Ministério Público, o que seria inaceitável, tendo em vista que de forma alguma pode o MP achar-se subordinado a outro órgão, inclusive o CADE, vez que, como vimos da análise da Constituição da República de 1988, a teor do parágrafo primeiro do artigo 127, que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” sendo “princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”. Dessa forma, o permissivo de requisição de parecer pelo Conselheiro-Relator do CADE ao Ministério Público, tal como colocado pelo artigo 20 da Lei Antitruste, se revela inconstitucional, vez que cria uma inaceitável subordinação de um órgão constitucionalmente independente. Ora, para que tal fosse possível, o comando em questão deveria emanar de iniciativa do próprio Ministério Público, conforme determina o parágrafo quinto do artigo 128 do CR/88: “Art. 128. O Ministério Público abrange:(…) § 5º – Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros”. Veja-se que para se criar a obrigação imputada ao MP pelo artigo 20 da Lei de Defesa da Concorrência, tal matéria deveria ser objeto de lei complementar de iniciativa do Procurador-Geral da República, o que, no caso, não ocorre, vez que a legislação em questão foi de iniciativa do próprio Poder Legislativo, emanada de sua câmara baixa. Não bastasse, certo é que a Lei nº 12.529/12 trata-se de lei ordinária, o que leva a reforçar ainda mais o caráter de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. Isso porque, conforme determina o artigo 128 acima, além da iniciativa da lei dever emanar do próprio Procurador-Geral, tal deve ser editada através de uma lei complementar, e não simplesmente uma lei ordinária. E duas questões chamam a atenção nesse caso: (i) a uma que o quórum de aprovação de uma lei ordinária observa tão somente a maioria simples, nos termos do artigo 47 da Carta Magna brasileira, enquanto que a lei complementar necessita de um quórum qualificado, de maioria absoluta, consoante artigo 69; (ii) a duas, porque a matéria tratada em uma lei complementar é diferente da tratada em lei ordinária, não se podendo utilizar uma pela outra, ainda mais no caso em tela. Assim, é de se questionar a legalidade da imposição de requisição de parecer por Conselheiro do CADE ao membro do Ministério Público. Não obstante tal questão, é de se afirmar que independente da disposição em questão, se feito de ofício, ou seja, se apresentado o parecer por livre espontaneidade do Parquet, então o alvitre é aceitável. E, por toda a atribuição do Ministério Público analisada nesse trabalho, essa questão seria cabível independente de qualquer disposição da Lei nº 12.529/12, já que prezar pela ordem econômica é função também vinculada ao MP, defensor de toda a sociedade. Conclusão Por todo o exposto, é de se concluir que o Ministério Público percorreu notável caminho na conquista de sua independência funcional, bem como do reconhecimento de sua importância no ordenamento jurídico nacional. A proteção dos interesses da coletividade, na concepção atual do Direito brasileiro, não pode passar desorientada do crivo de tal instituição, no que se insere a defesa da ordem econômica, cujos detentores finais são os próprios consumidores. Não obstante, a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica não pode se sobrepor às formalidades constitucionais, no que se encaixa a citada independência do Ministério Público, instituição notadamente dotada de princípios que definem sua unidade, indivisibilidade e independência funcional.
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Acúmulo de recomendações: trabalhos auditoriais realizados em uma autarquia
Toma-se como caso específico de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, onde o objetivo principal é pesquisar os efeitos do controle interno e externo sobre os atos dos gestores, e, como estes percebem o trabalho de auditagem. A amostra pesquisada são os principais gestores do órgão, que vivem a rotina burocrática desta instituição de ensino, e assim pode-se ter uma noção da valoração do conhecimento adquirido por estes e seu imediato repasse. A coleta de dados foi feita por meio de questionário, que tem o foco na percepção dos gestores de como os trabalhos de auditoria são realizados no órgão, e paralelamente, busca informações capazes de municiar a AUDIN (Auditoria Interna) com ferramentas capazes de auxiliar no assessoramento administrativo. Como resultado, busca-se incorporar diversos conhecimentos para se obter um melhor desempenho frente às demandas do Controle Interno e Externo. Com o passar dos anos, as auditorias de acompanhamento da gestão objetivam atuar em tempo real sobre os atos de gestão e os efeitos potenciais positivos e negativos. Tal trabalho resultou em um acumulo significativo de recomendações, o que indica a presença de possíveis falhas na gestão do referido órgão. Assim sendo, apresentamos os resultados das auditorias realizadas pelo Controle Interno e Externo e a sua eficácia, bem como ferramentas que possam mudar o quadro atual da referida Instituição de Ensino.
Direito Administrativo
1. A GESTÃO PÚBLICA NO PANORAMA NACIONAL ATUAL. São muitos os problemas de gestão encontrados no Brasil, entre eles é comum verificar a contratação irregular sem concurso público, o desvio de verbas públicas e as tradicionais irregularidades em licitações. Muitas denúncias são levadas ao Tribunal de Contas da União (TCU), para ocorrerem em penalizações administrativas, porém muitas chegam ao Superior Tribunal de Justiça visando uma penalização civil e criminal. O Brasil sofre com a capacidade ínfima de profissionais capazes de gerir a máquina pública[1]. O site do FONAI-MEC (Fórum Nacional de Auditores Internos) aponta que utilizando o orçamento para 2014 para os institutos federais, universidades e hospitais universitários, e dado o número de auditores internos, a relação é de um auditor para cada R$ 168 milhões de orçamento. Sem o fito de esgotar o tema, Marçola (2011) mostra em sua obra dois fatos que podem explicar a falta de motivação por parte do gestor em criar ou aparelhar a auditoria interna: “falta de compreensão sobre a importância do trabalho de assessoria realizado pela auditoria interna bem como sobre seu funcionamento, e receio de que a criação da unidade possa restringir sua liberdade de direção.” Essas atitudes negligentes e sem compremetimento, de imperícia vistas durante a realização das atribuições administrativas podem afetar uma cidade, um estado ou até mesmo toda nação. Bogoni et al. (2010), dentro desse enfoque, diz que o cidadão é um “acionista” do Estado, pois o mesmo contribui de diversas formas para sua manutenção (impostos, contribuições, taxas…). Assim, o cidadão possui o direito de intervir e influenciar nas decisões do Estado, só que para isso é necessário o controle. A Controladoria Geral da União publicou em seu site dados que nos remetem a atuação da Administração em demitir os servidores corruptos, ou que por outro motivo não se adequa ao trabalho ético e disciplinar. A certeza de que o controle pode melhorar nos órgãos da Administração Indireta deve ser movida pela sua própria teoria conceitual e devidamente arrastada à prática para estabelecer uma melhor relação de confiança entre o cidadão e a administração pública ao exercer a: "prestação de contas, transparência, equidade e responsabilidade" (OLIVEIRA et al., 2010, p.2). Quando se permite a fiscalização em um órgão da Administração Indireta, esclarece Bourgon (2010) que a fiscalização garantirá que os titulares de cargos públicos sejam devidamente responsabilizados pelo exercício de seu poder, reduzindo a impunidade, promovendo a transparência, incentivando a participação do cidadão no ciclo da política pública para garantir representação de seus interesses de forma mais ampla e equitativa. Marçola (2011) traz a experiência de ter vivido a criação do controle em um órgão público no Estado de São Paulo com o adequado aparelhamento de materiais e potencial humano, isso o fez concluir que: “o principal resultado da auditoria interna na administração pública foi o estabelecimento de uma cultura de parceria entre os auditores internos e os servidores, na medida em que esses passaram a entender e até mesmo solicitar a presença de auditores internos a fim de analisar procedimentos e controles internos, com o fito de verificar o grau de confiabilidade e aperfeiçoá-los e, logo, impactar positivamente a área auditada.” Não é possível afirmar, como já foi dito, que por si só a capacitação e a qualificação dos servidores inibem a má gestão. Se faz necessário a presença efetiva de mecanismos de controle para fomentar um espaço se "exige uma ética que valorize a solução coletiva e a construção da sociedade com relações que se baseiem na cidadania e igualdade" (MATIAS-PEREIRA, 2010, p.66). A conscientização em realizar uma gestão livre de defeitos não vem somente da qualificação do gestor, Di Pietro (2012, p.90) mostra que as funções desempenhadas pelos gestores se revestem da prerrogativa de autoridade para que os bons gestores possam fazer valer a vontade da lei sobre a vontade individual, caracterizando mais uma vez o valor do público sobre o privado. Dentro desse enfoque, Mano (2011) enfatiza a análise atenta das notícias que são veiculadas na mídia, mostrando que existe nos segmentos organizados da sociedade um consenso de prioridade no trato da corrupção e da melhoria da gestão pública como um todo. Necessário se faz buscar os fatores que remetem a Instituição Federal de Ensino a um mau desempenho, questionar o que se julga problemático para, somente ao fim, apresentar uma proposta de solução. É de se reputar crucial para a busca de uma solução, entender a posição da Controladoria Geral da União sobre os resultados obtidos por ela mesma e sobre a falta de atendimento de suas recomendações. A razão de existir a auditoria nasce com a organização do Estado, para que a Administração Pública alcançasse as metas designadas a ele. Cientificamente, esse estudo teve grande contribuição de pensadores como Frederick Taylor, que publicou a obra Princípios da Administração Científica em 1911 e Henri Fayol com a Teoria Clássica da Administração de 1916. Ao se organizar, o Estado toma para si a responsabilidade de se autocontrolar, Di Pietro (2012, p. 37) afirma que houve um "sensível acréscimo nas funções assumidas pelo Estado", em virtude das "crescentes necessidades coletivas nos âmbitos econômico e social". Assim, sabe-se que uma boa administração será bem sucedida se esta aderir aos princípios de organização, planejamento, comando e controle. Mas, para tanto, é necessário o apoio do Estado. Nas palavras de Matias-Ferreira (2010, p.192): "fortalecimento nas relações entre Estado e sociedade constitui-se em um importante investimento que leva ao aperfeiçoamento das políticas públicas, elemento fundamental da boa governança, permitindo ao governo obter novas fontes de idéias relevantes, informações e recursos para a tomada de decisões" Para Matias-Pereira (2010, p.75), fica oficialmente constatado a competência irrestrita do Estado em um sistema de governo apoiado nos pilares da democracia criar mecanismos que "estimulem a participação da sociedade, definindo diretrizes específicas para sua participação nas decisões, no acompanhamento e fiscalização das políticas públicas". Almeja-se que os órgãos de controle devam possuir mecanismos próprios para fazerem valer suas decisões. Se realmente possuem, devem utilizá-los, pois poderia a unidade auditada, em tese, estar de má fé e não ter a intenção de cumprir as determinações. Se assim fosse, as recomendações nunca seriam cumpridas? O que mencionaríamos sobre a utilidade dos trabalhos das auditorias e dos certificados de auditoria anualmente expedidos? Tem-se que relevar também sobre o que é apontado pela CGU, uma vez que os relatórios de auditoria são subjetivos. Essa é uma fragilidade apontada por Datta Pratim e Nwankpa Joseph (2012) onde ele diz que, “os relatórios de auditoria são opiniões de auditor formais com base em suas percepções de um sistema organizacional. Está bem estabelecido que a qualidade de um relatório de auditoria é baseada nas percepções do auditor. A qualidade da auditoria é uma avaliação subjetiva da probabilidade de que o auditor vai descobrir e denunciar uma violação no sistema da organização. A qualidade percebida de uma auditoria se concentra em oferecer garantias razoáveis ​​de que as demonstrações financeiras estão livres de erros materiais (causada por erro ou fraude)”. Seguindo adiante, observa-se que poderiam os gestores justificar a ausência de acompanhamento das determinações devido à falta de servidores. Isso não é uma verdade, tendo em vista que o crescimento de servidores é substancial e já fora demonstrado estatisticamente nesse trabalho. Critica-se também a falta de acompanhamento interno das recomendações, mas tal justificativa é um paliativo, uma vez que as recomendações são dirigidas aos gestores (grande maioria direcionada à Diretoria de Gestão de Pessoas). Muitas das vezes apenas o chefe máximo do órgão exerce algum tipo de mando sobre o destinatário da recomendação, isso lhes confere liberdade para atuarem como bem entenderem. Em resumo a problematização é esta, o controle estatal identifica vários problemas legais e gerenciais ocorridos no órgão, recomenda/determina ações de reparo ao ato viciado, a unidade auditada não atende as recomendações. O controle interno/externo pouco tem sancionado atos ilegais de gestores, na grande maioria das vezes a recomendação é simplesmente repetida no ano seguinte, gerando um acúmulo de recomendações não atendidas. 2. RESULTADOS PRELIMINARES, DISCUSSÕES E PROPOSTAS. Optou-se por apresentar, no corpo do texto, alguns resultados, deixando-se a totalidade dos mesmos no Apêndice. Desta forma, as discussões serão ampliadas com a continuidade desta pesquisa e as possibilidades de outras conclusões também será possível. O questionário, submetido aos gestores da autarquia, de modo direto, por meio eletrônico (e-mail), se estruturou em perguntas fechadas, dando apenas uma pequena abertura em seu último questionamento, conforme pode ser visto no Apêndice. As questões formuladas foram baseadas na contextualização proposta no Referencial Teórico. Assim, foi feita uma lista de e-mails dos gestores e em seguida usada uma tabela randômica na escolha dos gestores que seriam pesquisados. Os resultados foram: Quando os gestores são questionados sobre o grau de conhecimento que possuem sobre Gestão Pública, 24% se declaram pouco esclarecidos com a questão, 2% confessou não possuir nenhum conhecimento e 68% sabem o necessário para desempenhar a função. Isso, mostra que, aliado às respostas do item anterior, o órgão possui gestores titulados, porém 26% deles dizem não possuem conhecimento para exercerem a própria função. Se faz um dado relevante, pois se a autarquia federal busca melhorar seu desempenho, deve possuir gestores que saibam desempenhar a própria função. Quando os gestores são questionados se conhecem os relatórios de Auditoria Interna, espantosos 46% não conhecem e apenas 5% fazem uso do relatório de auditoria para amparar suas decisões. A tabela acima demonstra o resultado obtido: Isso mostra a enorme distância existente entre os trabalhos da Auditoria Interna e os gestores da Instituição e a consequente ausência de divulgação das recomendações de auditoria. Nessa construção, recomenda-se fazer a análise de quais setores acumulam mais recomendações e se essas decorrem de outras recomendações, divulgando-as aos servidores. Em um segundo momento registrar a prioridade de cada recomendação e a possibilidade de atendimento (leva-se em consideração o tempo, complexidade, número de servidores disponíveis para resolver o problema, consequência de não cumprimento da recomendação, etc.). No caso em tela, recomenda-se buscar informações das bases de dados do SIAPE e do SIAFI, pois são as bases mais confiáveis e mais disponíveis aos servidores. No quesito experiência em gestão pública, tem-se que 11% dos gestores da autarquia federal são novatos, com menos de 1 ano frente à gestão e que 13% possuem uma carreira longa na posse de um cargo comissionado ou função gratificada. A maioria dos gestores se encontram na faixa de 2 a 4 anos, totalizando 33% dos questionados. Neste momento são realizadas perguntas que buscam avaliar o grau de comunicação e entendimento entre AUDIN-Gestor, visando alcançar os objetivos constitucionais da administração pública, e para tanto foi questionado se a AUDIN age por intermédio de diálogos, contatos telefônicos, e-mails, reuniões e outros meios, desenvolvendo as suas atividades com perspectivas de detectar, avaliar, comunicar e sugerir melhorias no modo de gerir os recursos públicos. Na tabela acima, exatos 46% discordaram que a AUDIN possui a postura de se comunicar e assessorar sobre a melhor forma de gerir o recurso público e apenas 7% concordaram plenamente. Dessa forma, as respostas evidenciam uma percepção negativa quanto ao assessoramento realizado pela Auditoria Interna junto aos gestores da instituição. Diante das respostas apresentadas acima, consta que 14 pessoas, ou 20% dos gestores concordam totalmente com a posição legalista da Auditoria Interna, outros 34 gestores preferiram uma posição nula.  A posição nula de grande parte dos gestores pode se dá pelo fato de que 45% dos gestores respondentes não conhecem o relatório de auditoria, como já foi relatado anteriormente. Estes resultados soam negativamente quando se reconhece a obrigação que a Auditoria Interna possui de auxiliar os gestores em tomadas de decisões. As questões legais devem ser vistas tanto quanto as questões gerenciais, atende-se assim, às necessidades mais atuais e acolhe-se as exigências da sociedade frente ao órgão. Também objeto dessa pesquisa o estudo da comunicação, inclusive encontra-se na Gestão do Conhecimento técnicas capazes de resolver ou amenizar esse problema. Assim, resolve-se questionar aos gestores se o canal de comunicação com a auditoria satisfaz. Como resposta 61% dos entrevistados estão completamente insatisfeitos com essa pauta e apenas 1% estão satisfeitos. Conclui-se que a AUDIN não participa dos processos gerenciais da autarquia. Na assertiva: A auditoria interna atua de modo coercitivo? Os resultados obtidos se resumem na forma da tabela abaixo. Ao estuda-los de uma maneira global, verifica-se que 24% dos gestores concordaram com um tratamento coercitivo, ainda que parcialmente, e, 42% esboçaram uma posição nula sobre o assunto. Diante dos resultados, a auditoria interna necessita rever a forma de proceder seus trabalhos, passando a atuar como parceiro do gestor, e não primar pela coercibilidade junto aos auditados. Uma assertiva mais direta foi feita aos gestores – A auditoria interna tem colaborado para o avanço do meu setor. Apenas um gestor concordou plenamente que a Auditoria Interna tem colaborado para o avanço de seu setor. Já 40% dos respondentes alegaram discordar totalmente de que a Auditoria Interna colabora para o avanço dos setores da autarquia. Outros 34% preferiram não responder, ou se manter em uma posição nula a respeito do questionamento. Essas informações também insinuam uma falta de pró-atividade por parte da Auditoria Interna, sugerindo então mudanças na forma de atuar da Auditoria Interna. Grande parte dos entrevistados concentraram suas respostas na posição nula (42%) ou discordaram totalmente (28%). Isso pode indicar que 60% dos entrevistados não vêem com clareza uma inserção de inovação no âmbito administrativo. A responsabilidade de propor novas ferramentas de gestão pode partir da Auditoria Interna, pois a finalidade está em prepara os gestores à responder com agilidade e qualidade ao Controle Interno e Externo. Conhecer as modernas práticas de gestão é umas das sugestões e disseminar esse conhecimento ajudaria na redução das recomendações que se encontram pendentes. Mais uma vez os respondentes concentraram suas respostas na posição nula (43%), como também 22 gestores discordaram totalmente (31%). O fato de apenas 1 respondente concordar totalmente com o ato de a Auditoria Interna motivar gestores por intermédio de feedback, pode sugerir, ou, que não existe essa motivação, ou, que não se dá a devida importância ao aproveitamento do feedback. Nesse sentido, a implantação de indicadores Balanced Scorecards também auxiliaria nessa comunicação gestor/usuário. Com sua implantação é possível obter o feedback entre o topo da organização e o operacional, permitindo a instituição refletir e possivelmente corrigir seus erros.  Isso automaticamente remete no aperfeiçoamento da qualidade de seus procedimentos, identificando o seu elo mais fraco nas relações de causa efeito. Resultados similares aos da Tabela 15, e os respondentes concentraram suas respostas na posição nula (46%), como também 18 gestores discordaram totalmente (25%). O fato de nenhum respondente concordar totalmente com o ato de a Auditoria Interna demonstrar aos gestores os resultados de suas decisões administrativas, como também o impacto causado aos usuários dos serviços prestados pela autarquia federal, pode indicar que isso não vem sendo feito com frequência, ou se é feito, alguns gestores não estão tomando conhecimento. Demonstrar aos gestores os resultados de suas proprias decisoes administrativas, assim como conhecer o impacto causado aos usuários é essencial para o aperfeiçoamento continuo da gestão pública. Os usuários do serviço público emitem opinião de como estão sendo utilizados os recursos públicos, e consequentemente se os objetivos estão sendo alcançados. Portanto, além de contribuir com a transparência, o feedback é uma força motriz que que alimenta o processo de aprendizagem organizacional. Quando fora pedido para os gestores se expressarem em uma única palavra o sentimento que possui ao se deparar com os trabalhos realizados pela auditoria interna da autarquia federal obtiveram-se as seguintes respostas: Foi então estruturado o quadro 2 na forma ensinada por Bardin (1977) dividindo as palavras citadas por seu significado nos seguintes grupos: NEGATIVO, NEUTRO E POSITIVO. Com a finalidade de manter a neutralidade na pesquisa, os respondentes não se identificaram. Nesse último questionamento, onde se pediu para o gestor demonstrar com uma única palavra o sentimento sobre os trabalhos realizados pela auditoria, algumas respostas merecem destaque. Inicia-se à análise das respostas, lembrando que os fragmentos analisados foram mantidos em sua íntegra: Respondente 1:  “A relação com a CGU está melhor que com a AUDIN (não encontramos uma palavra para isso).”   A resposta dada coaduna com a percepção negativa dos trabalhos de auditoria, alimentando uma contraposição, pois é sabido que os servidores da AUDIN pertencem aos quadros da Instituição, e apesar disso, os auditores da CGU mantém uma relação melhor mesmo sendo pertencente ao outro órgão. Respondente 2: “Quê trabalho?” Esse tipo de resposta demonstra claramente que os trabalhos de auditoria não são divulgados pela Instituição, uma vez que falta a publicação dos relatórios atuais em sua página na internet, faltando assim transparência na gestão. Sugere-se a divulgação dos trabalhos de auditoria pelo Conselhos Superior (responsável pela auditoria) como pela própria Auditoria Interna, fazendo que o conhecimento do que está sendo auditado seja uma base para que outros gestores melhorem suas tomadas de decisões. Respondente 3: “Burocráticos” Reforça a ideia de que a auditoria Interna direciona seus trabalhos para aspectos legalistas em detrimento dos aspectos gerenciais. Respondente 4: “Distantes comunicação/informação” Dessa forma, as respostas evidenciam uma percepção negativa quanto ao assessoramento realizado pela Auditoria Interna junto aos gestores da instituição. Esse trabalho propõe uma nova forma de interação com o gestor. A finalidade de a Auditoria Interna buscar a interação com os gestores justamente evitar que novas recomendações sejam feitas no futuro, assim poder-se-ia trabalhar com mais tempo as recomendações que já se encontram pendentes. Respondente 5: “Medo” Pode demonstrar a atuação coercitiva nos trabalhos de auditoria. A presença de prazos exíguos para que o gestor responda a várias recomendações de auditoria pode causar esse tio de sentimento nos gestores. Esse sentimento, também se faz presente pelo desconhecimento dos objetivos do Controle Interno e Externo, que quase sempre são resumidos ao objetivo de punir, o que não é verdade. Respondente 6: “papelório” Essa resposta pode ter o fito de chamar a atenção para o excesso de formalismo, uma das mais comuns formas de disfunção da burocracia. O conceito popular liga a burocracia à um setor onde os papéis se avolumam em cima de uma mesa. O termo papelório pode também condicionar à um pensamento onde os profissionais de auditoria estariam presos à regulamentos e rotinas. Respondente 7: “Técnica” Chama atenção para esse termo, uma vez que o gestor respondente poderia ter entendido que os trabalhos auditorias vêm encontrando seus objetivos. Um dos fatores que favorecem o desenvolvimento de uma gestão moderna é a utilização da superioridade técnica – em termos de eficiência – do tipo burocrático de administração, servindo como uma força autônoma para impor sua prevalência. 2.1 CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES PARA ESTUDOS FUTUROS. O presente trabalho buscou orientar aa autarquia federal, mais precisamente à Auditoria Interna, na implementação dos métodos e das técnicas da Gestão do Conhecimento em suas atividades para tentar diminuir a quantidade de recomendações não atendidas pela administração. Para tanto, foi necessário identificar as percepções dos gestores do ÓRGÃO sobre o papel de orientação e assessoramento na busca dos objetivos e metas, dentro de um contexto geral de gestão. Na busca de detectar essas percepções, fora realizado um questionário capaz de demonstrar, por intermédio das respostas dos gestores, a visão representativa dos trabalhos de auditoria, abordando um tema de assessoramento, informação, comunicação e aplicação dos fundamentos da Gestão do Conhecimento. Com o resultado das pesquisas, observou-se um ambiente administrativo não eficaz no que condiz a relação interpessoal profissional de gestores e da Auditoria Interna. As ferramentas e o planejamento que devem ser propostos para sistematizar o conhecimento na busca de reduzir as falhas da gestão encontram dificuldades comuns em muitas organizações como; falta de conhecimento em processos e procedimentos básicos; ausência de recursos humanos para a implantação; ausência de recursos financeiros; falta de uma cultura voltada para o trabalho em conjunto com a auditoria; falta de ferramentas da tecnologia da informação para auxiliar as tarefas do servidor e a falta de conhecimento sobre a busca da estratégia organizacional. O trabalho também demonstrou, por intermédio dos gestores respondentes, o afastamento da Auditoria Interna dos trabalhos gerenciais e de assessoramento, o que pode ser uma consequência do pouco contato existente ou da baixa frequência na discussão laboral dos afazeres institucionais entre os administradores e os auditores. Nesse Contexto, não verificou-se a presença de uma política de execução da auditoria operacional a ser comandada pela Auditoria Interna, quer seja consequência da falta de material humano, ou de sua deficiente estrutura regimental. Nota-se também que a Auditoria Interna deve reforçar seu canal de comunicação com os gestores em um nível hierárquico superior, onde ocorre os processos gerencias mais dispendiosos, e onde frequentemente se centraliza as decisões mais importantes. A aplicação das ferramentas de Gestão do Conhecimento deve ser mais frequente nesses locais, para que se possa responder com agilidade e qualidade ao controle interno e externo. A aplicação do sistema de gestão do conhecimento na Auditoria Interna apenas terá êxito se houver comprometimento com modernas práticas de gestão, o que a faz, cada vez mais, afastar do atual modelo burocrático. Este estudo inova na utilização da gestão do Conhecimento em apoio aos trabalhos auditoriais, nesse sentido, Batista (2012, p. 27) diz que; “há poucos estudos na literatura de Gestão do Conhecimento que, com base nas características específicas da Administração Pública, listam fatores críticos de sucesso para a implementação exitosa da Gestão do Conhecimento em organizações públicas e propõem modelos específicos para a Administração Pública.” A dificuldade de se encontrar modelos prontos e acabados de sistemas de gestão do conhecimento também são escassos, levando, segundo Batista (2012, p.27), “as organizações públicas não terem referências de modelos específicos para a administração pública.” Nessa linha de pensamento recomenda-se ainda a realização de estudos em outros Institutos Federais de Educação visando comparar e contribuir com novidades acerca da aplicação da gestão do Conhecimento no ramo das Auditorias Internas. A replicação do estudo com as adaptações necessárias, em uma amostra de pesquisa em outra autarquia, é outra sugestão. Pesquisas com verificação in loco podem contribuir para explicações sobre a ausência de controle e transparência. Finalmente, conclui-se que, devido às percepções obtidas nesta pesquisa, se faz necessário à aplicação imediata de ferramentas da gestão do Conhecimento para que a Auditoria Interna e a Gestão se coadunem com as novas visões da gestão pública. Em um outro momento, deve haver uma mudança na forma de agir da Auditoria Interna para não somente buscar divergências em questões legalistas, mas que vise melhores resultados gerenciais sem deixar de focar nos princípios constitucionais da economicidade, eficiência e eficácia, para melhor prestar seus serviços aos cidadãos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/acumulo-de-recomendacoes-trabalhos-auditoriais-realizados-em-uma-autarquia/
O tempo e a sua importância na vida processual administrativa e judicial
O presente trabalho tem como objetivo abordar os aspectos essenciais relativos a aplicabilidade do ´´Tempo´´ nos procedimentos administrativos e processos judiciais, enquanto fenômeno prático-jurídico, e sua relação com outros institutos correlatos, com base nos liames dos códigos Civil, Penal, Administrativo e demais áreas do direito, trazendo ainda estudos relativos aos impactos advindos do mau uso do mesmo, ou a perda que se tem dele, ou a sua correta aplicação, trazendo os resultados práticos, seus benefícios e desvantagens, no dia a dia das pessoas que litigam no judiciário ou fora dele, com ênfase às situações sentidas pelos operadores do direito, à luz da legislação portuguesa contemporânea, com um breve comparativo com a forma como tal procedimento ocorre no Brasil e no mundo.[1]
Direito Administrativo
Introdução Em linhas gerais e de forma sumária, iniciaremos o presente trabalho com apresentação de conceitos e questões essenciais concernentes a um tema muito importante, intrigante e que, com a globalização e o advento da tecnologia da informação, vem contribuindo bastante para uma maior uniformização do Direito Administrativo na Europa, Ásia e América, despertadando a atenção de todos. Estamos a falar do fenômeno denominado: ´´Tempo´´. Iremos demonstrar que a utilização do tempo, hoje crucial na vida das pessoas, está presente em todas as fases do processo, seja pelo cumprimento dos prazos estabelecidos na legislação, para os expedientes processuais, seja em relação ao tempo estabelecido para que seja ajuizada uma determinada ação, enfim, à prática forense. Procuramos, pois, nesta pesquisa, aprofundar o estudo do tema, sem qualquer intenção de esgotá-lo, mas de, precipuamente, trazer à tona questões importantes para uma melhor compreensão e análise crítica deste importante assunto ligado ao direito administrativo contemporâneo, estando presente ainda em todos os ramos do direito, em um contexto de recentes mutações, tanto no direito português, como em toda a UE e no Direito Brasileiro. Em seguida, explicitaremos os pontos principais concernentes aos limites do uso do tempo, e a sua aplicabilidade no direito português, com um pequeno comparativo com o que se pratica no direito brasileiro. Fazer-se-á ainda, menção as recentes alterações implementadas pelo novo Código de Processo Civil Português (Lei 41/2013), quanto as alterações de alguns prazos, e ainda no Direito do Trabalho (Lei 58/2013), através das recentes mudanças implementadas no tempo de trabalho para os funcionários públicos, tudo com o fito de melhor situar o estudo deste intrigante e proveitoso assunto, no regime legal proposto pelo ordenamento jurídico português. Após isso, dedicamos capítulo específico para falar sobre o tempo na prática processual portuguesa, fazendo uma interessante abordagem comparativa de alguns prazos existentes no direito Europeu com o Direito Brasileiro e a prática utilizada nos USA, chegando a conclusão que a ausência de Tribunais Administrativos, nesses países menos desenvolvidos, contribuem para os altíssimos índices de violência, diante da ausência de punição em casos como, por exemplo, de corrupção ativa e formação de quadrilha. Procuraremos, também, preparar o terreno para investigar a dimensão e a abrangência do tema, sabendo que as tintas com que são pintadas às críticas ao assunto na prática forense, podem respingar no andamento do processo judicial ou administrativo e, as evidências do tema, na prática do direito em Portugal. Em uma segunda etapa, apresentaremos fatos que nos levam a analisar a existência de diferentes prazos no direito em um mesmo país, em matérias administrativas e judiciais e toda a sua abordagem e utilização, inclusive para fins de reforma, e ainda a aplicação prática e seu amoldamento, na corrida da modernização do arcabouço jurídico do Direito e no repensar de alguns de seus elementos. Para tanto, o pano de fundo normativo a ser analisado nesse artigo será o da legislação portuguesa, mais precisamente ligada ao Direito Administrativo, que tem sido alvo de constantes alterações. A busca pela diversidade que o tema comporta, nos leva a doutrinadores de renome, como o Doutor Luís Filipe Colaço Antunes[2], que possui avançado estudo em Portugal e o Mestre José dos Santos Carvalho Filho[3], no Brasil. A jurisprudência seguiu o que restou extraído do site do STA e diversos Acórdãos do Sul e Norte de Portugal. De fato, o tema nos convida a uma interessante viagem dentro dos mais diversos definidores do fenômeno ´´tempo´´ dentro dos mais variados tipos de processos e nas mais diferenciadas áreas do Direito, com foco no Direito Administrativo. É sabido que no Brasil, inexiste um sistema unitário (Tribunais) para os processos administrativos, fato que sempre interligou esses instrumentos a cada uma das pessoas políticas, por força de sua autonomia e capacidade auto administrativa, peculiares à forma Federativa de Estado, o que alterou-se com o advento da Lei 9784/99, a nível Federal, sendo que hoje, cada Estado possui Leis próprias que tratam do processo administrativo, nos mais variados modos, e da mesma forma, a nível municipal. Procuraremos, portanto, ao final, estabelecer a abrangência do fator tempo nas relações processuais, sabendo que o ´´tempo´´ sempre foi o ponto inicial e primordial dos processos administrativos e judiciais ao longo da história e permanece tendo a importância na regulação das Leis e dos atos administrativos, através do seu impacto na vida das pessoas, com a utilização da informática para a otimização do tempo na prática processual contemporânea. 1. O TEMPO: 1.1. A busca de uma definição prática:  O Tempo… Como definir essa grandeza? A resposta não é óbvia. Requer uma análise mais aprofundada, coisa que hoje poucos de nós se dispõe a fazer, seja por falta de tempo, seja por não saber utilizá-lo! O tão precioso tempo é hoje consumido quase que inteiramente na luta pela vida, na batalha diária que se estende por anos, décadas, até a gloriosa apoteose: a auto condecoração com a medalha de “vencedor”, comenda que outorga ao agraciado o direito de desfrutar do ócio caseiro, com a consciência do dever cumprido. Abrigado nessa última trincheira ele poderá então, finalmente, aproveitar seu tempo.  Faço aqui um parênteses para tergiversar sobre o tema, de uma maneira genérica. É verdade que durante o desenrolar dessa luta cotidiana, da insana correria das pessoas, conseguimos reservar algumas horas semanais para o lazer, o estudo e o descanso, mas não para meditar nas questões cruciais da vida. Para essas coisas não dispomos de tempo algum, não podemos absolutamente perder tempo com isso!  “Assunto de filósofos!”, dirão muitos num estalo, com o passo apertado e os olhos cravados no relógio. E assim vamos todos nós, filósofos e não filósofos, a correr pela vida a fora, sem vivê-la, sem vivenciá-la realmente, sem extrair dela os ensinamentos e reconhecimentos que nos possibilitariam crescer como espíritos humanos que somos.  A vivência do ser humano muda a partir de certa idade, e não o tempo. O tempo não muda. Os movimentos dos ponteiros do relógio apenas registram numericamente a nossa passagem dentro do tempo. O tempo não passa, nós é que passamos dentro dele!  A mesma situação se dá com a aplicabilidade do Tempo no Processo. Este não muda, apenas registra numericamente o andamento do processo, seja ele físico ou virtual, na esfera judicial ou administrativa, dentro de um tempo estabelecido. O processo, e não o prazo processual, passa dentro do tempo. Importante, ao nosso ver, esta analogia filosófica. O tempo não se altera, ele permanece estacionado. O que muda, conforme dito, é a percepção que temos dele, segundo nossa própria mobilidade espiritual. É como numa viagem de trem, em que a paisagem parece passar com maior ou menor rapidez diante da janela, conforme a velocidade da composição. Apesar de dar essa impressão, não é a paisagem que se movimenta, e sim o trem é que passa através dela com velocidade maior ou menor. A paisagem é o tempo, o trem é o espírito humano, a velocidade é a sua capacidade de vivenciar.  Em termos processuais, posso dizer que: A percepção que as partes têm do processo é que se altera. Se o Juiz for diligente, o tempo de trâmite da ação, como muitos erradamente a denominam, seria rápido. Caso contrário, chama-se o judiciário e todos os seus operadores de ´´morosos´´, ´´lentos´´. Na viagem de trem, o processo seria a paisagem e o trem o judiciário e a velocidade é a sua capacidade de resolver a lide. Com isso, tendo os operadores do direito capacidade de vivenciar o processo e com isso movimentá-lo, cumprindo os prazos estabelecido, ter-se-á um tempo processual curto, rápido, célere, algo dificilmente visto no Direito Brasileiro, seja na esfera administrativa ou judicial. Já no direito Português, e ainda nos USA e Alemanha, tal jaezz não se visualiza, devido a maior celeridade processual. O tempo é mais bem aplicado na prática processual.  Por sua vez, é sabido que existe uma íntima correlação entre tempo e espaço. Einstein formulou a teoria da relatividade com base nisso. O tempo, portanto, existe realmente; todavia ele não "passa" por nós, como temos geralmente a impressão. Nós, repita-se, é que passamos dentro dele. O que muda é, pois, a percepção que temos do tempo, segundo nossa própria movimentação interior, nossa capacidade de vivenciar. O conceito de tempo é que é mutável, e não o tempo realmente. Em assim sendo, faz-se necessária neste momento, a definição de Tempo, abrangendo a matéria no âmbito administrativo e judicial, e sua aplicação no direito Português (Tempo), e alguns países da União Europeia, como a Alemanha (Zeit), Grécia (χρόνος), França (Heure), Inglaterra (Time), Rússia (время) dentre outros, com um comparativo a tal prática no direito americano, com ênfase para o Brasil.  O tempo sempre será definido de forma idiossincrática, tanto que importantes estudiosos ousaram sentenciá-lo de diversas formas: "É o jeito que a natureza deu para não deixar que tudo acontecesse de uma vez só." (John Wheeler); "Uma ilusão. A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão." (Albert Einstein); "Cada segundo que passa é um milagre que jamais se repete." (Antiga frase dita pela Rádio Relógio do Rio de Janeiro-Brasil). Crianças de colo não têm a noção de tempo, e adultos com certas doenças neurológicas e ou psiquiátricas podem perdê-la. Com base na percepção humana, a concepção comum de tempo é indicada por intervalos ou períodos de duração. Interessante definição nos é dada pelo Doutor Luís Filipe Colaço Antunes[4], ao nos dizer que: ´´A relação entre ciência jurídica e a realidade é estabelecida pelo tempo. O tempo é um componente essencial do facto jurídico, do agir administrativo e da respectiva tutela jurisdicional (…)´´. Indaga-se então: qual a melhor definição de Tempo? Como se sabe, inexiste uma definição perfeita, no entanto. Uma definição interessante, no sentido lato, ora se transcreve: ´´o tempo é uma componente do sistema de medições usado para sequenciar eventos, para comparar as durações dos eventos, os seus intervalos, e para quantificar o movimento de objetos´´.  1.2. A Lei, o Tempo e o Direito: A história dos homens, desde sempre, diz que há um passado, um presente e um futuro. Mesmo quando estáveis paradigmas, nos vários campos do saber sucumbem à velocidade e ao inesperado, parece razoável admitir que essas três parcelas do tempo serão ainda e sempre consistentes. A lei sempre foi feita para conformar os atos futuros, e não os pretéritos. Esse entendimento, aparentemente simplório, prevalece desde a mais remota antiguidade e constitui a base da legislação luso-brasileira. Funda-se na razão natural das coisas. O Direito, como instrumento primordial de regulação das relações sociais, não poderia ficar imune ao constante evolver da sociedade. Logo, a substituição do Direito Natural pelo Direito Positivo visou, precisamente, a responder a essas novas exigências, e a acompanhar essa evolução. Dentro deste evoluir, nos deparamos com dois limites temporais relacionados à vida da lei: o termo inicial e o termo final. E a esta dimensão temporal também se diz eficácia da lei no tempo. Via de regra, uma lei é eficaz até que outra a revogue ou derrogue, isto é, até que seja antiquada ou modificada por outra. Contudo, a lei nova não pode retirar do "mundo” o fato jurídico, pois o evento já ocorreu e interferiu no “mundo jurídico”. Fato jurídico é o próprio fato do mundo com repercussões no mundo jurídico. O fato jurídico que ainda não ocorreu, esse sim, está à mercê da lei nova. O fato ocorrido não, porque é algo perfeito e acabado, que pertence ao passado. Está aqui presente, a primeira aplicação do assunto ´´tempo´´ no processo. A própria vacaccio legis está definida como tempo em que uma determinada Lei entra em vigor!  Assim, com a revogação da norma anterior e a existência de nova norma, dúvidas surgem com relação aos efeitos de ambas, face a situações existentes, as quais podem estar consumadas totalmente ou não. Com isso, a natureza social e dinâmica do Direito, diante da sucessão dos fatos extremamente intensa (principalmente nos dias atuais), o obriga a se modificar constantemente, quer em sua forma, quer em sua interpretação, a fim de, com segurança, efetividade e eficácia, poder normatizá-los, visando a paz e o bem-estar social. Finalmente, chega-se à sua morte, como decorrência dos passos, hoje velozes, do caminhar do homem. Palavra grave para se dizer a respeito da norma jurídica, mas, sim, também ela perece com o decurso inelutável do tempo. Envelhece, perde seu vigor, sua força, sua eficácia, sua razão de vida. Deixa de gerar efeitos desejáveis e, assim, tem de ser substituída. O tempo está sim, muito presente no Direito. Entretanto, sucede que, com o surgimento de lei nova, a lei antiga pode ter criado relações jurídicas de tal natureza, que se impõe a permanência destas, apesar da vigência do diploma revogador. Por outro lado, pode acontecer que o interesse social e público leve o legislador a determinar que essas relações, a partir da lei nova, regem-se por esta e não por aquela sob cujo império se criaram, ou, ainda, que se desfaçam por completo, aplicando-se, pois, o novo diploma no pretérito.  Neste complexo de fatos, aos problemas que daí advêm, relacionados com a medida de eficácia da lei nova e da lei antiga, uma em face da outra, e ainda as mais diversas formas de intervenção do tempo no processo, é que encontra-se o objeto deste artigo. O respeito aos direitos individuais, e à própria segurança e estabilidade jurídica do ordenamento, depende do fato de, o cidadão poder confiar que os atos ou decisões públicas Incidentes, sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados de acordo com as normas jurídicas vigentes, ligam-se aos efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Porém, muito mais do que isso, é fundamental que em uma sociedade em que o relativismo impera – em face da vertiginosa dinâmica das relações sociais da atualidade, de se encontrar um “porto seguro”, se pode buscar refúgio nos momentos tensos de alteração normativa – mormente se dê significativo impacto sócio econômico, na certeza de que alguns direitos já definitivamente vinculados aos respectivos titulares serão, em qualquer hipótese, respeitados. De igual modo, parece-nos extremamente importante sublinhar que a proteção constitucionalmente outorgada aos direitos adquiridos não deve assumir uma dimensão que imobilize totalmente o sistema normativo diante das transformações na estrutura social que lhe é subjacente. Tal enriquecimento exacerbado é particularmente danoso no tocante à renovação das normas constitucionais, podendo importar em autêntica esclerose dos condutos normativos vigentes, ameaçando de morte o complexo jurídico-constitucional que os alberga, com graves riscos à sobrevivência da democracia.[5] Por tais razões, a importância e a relevância da análise a prática do tempo nas relações processuais, consolidou o ordenamento e a interpretação das leis que hoje respeitamos. Em virtude disto, as normas jurídicas têm um período de vigência determinado pelo começo e fim de sua obrigatoriedade, decorrendo daí que elas nascem, vivem e morrem. Seu nascimento diz respeito à precisão da sociedade em ver uma determinada situação regulamentada e, via de conseqüência, resguardada pelo ordenamento jurídico. Sua vida relaciona-se à eficácia da norma em ser sempre utilizada para direcionar, dirigir, orientar, disciplinar a situação para qual ela surgiu, não sendo isto possível todas as vezes, de onde decorrem as regras interpretativas e de aplicação das normas jurídicas. O fato é que o tempo rege o direito administrativo, quando estabelece prazos para defesa administrativa, tempo para responder a uma solicitação, enfim, os prazos definidos no CPA, CPTA, etc. Já na esfera judicial, se estabelece, como dito, prazo para interposição de recurso, para impetrar Mandado de Segurança (até 120 dias do ato de coação no Brasil), para ajuizar as diversas ações possíveis, e ainda a quantidade de vezes que se pode interpor um determinado processo contra a mesma parte (evitando a perempção), ou seja, aplica-se o TEMPO em tudo e a todo instante no processo judicial, seja ele cível, trabalhista, empresarial, fiscal, ambiental ou criminal. Daí a importância do tema que ora estudamos, para a vida prática dos operadores do direito, em todos os segundos, minutos e horas das nossas vidas. 1.3. O Tempo no Direito Ocidental e no Direito Oriental: É a partir da imagem do tempo como o grande médico das aporias do direito, que as fraturas entre culturas jurídicas ocidentais se evidenciam. Na common law, o tempo no direito é formado por narrativas individuais que “constroem o tempo da nação, um tempo tão imemorial e tão inoxidável quanto a própria common law”. Já o tempo da cultura jurídica da França é descrito pelos autores como um tempo que está preso ao passado, ao seu momento fundador, no caso, a Revolução Francesa. Nessa temporalidade distinta, podemos inferir as grandes distinções das tradições jurídicas. Se na civil law francesa, o tempo se apresenta preso ao passado e a verdade jurídica é ditada pela lógica dos antecedentes, a mudança é indesejada. Nessa cultura jurídica, direito e o juiz estão comprometidos com o mito fundador e com a promessa de um futuro sem males e nesse sentido, o futuro deve ser igual ao passado, quando tudo começou. Já na common law, ao contrário, o tempo no direito não tem sentido nem direção. Ele realiza a cada processo o acordo acerca do que é melhor para o futuro, perseguindo uma lógica de conseqüentes, que tem seu desenvolvimento alcançado de forma incremental. É, em uma análise sociológica mais ampla, um tempo que se coaduna com o tempo da globalização econômica, da condição pós-moderna. Um tempo comprimido e desterritorializado, no qual o que vale é o aqui e o agora. O que vem iluminar a frase final da famosa obra dos já citados Garapon e Papadopoulos, que nos diz: ´´É preciso mais ênfase no local para atingir o universal; que é preciso que haja mais democracia primitiva para se adaptar à globalização, mais perda de tempo para ganhá-lo em seguida, mais economia para ter o simbólico, mais Direito para que haja mais política”. 1.4. O fator ´´Tempo´´ nas relações jurídicas:  Seguindo a linha do pensamento que encerrou o item anterior, entendo que o fator tempo tem grande influência nas relações jurídicas afloradas no seio da sociedade, pois não se admite a eterna incerteza nas relações intersubjetivas a que o direito cofere juridicidade. Já dizia Caio Mário5, ´´o tempo domina o homem, na vida biológica, privada, social e nas relações civis´´. Em alguns momentos, o tempo é utilizado em sua forma contrária. Exemplo disso está na ausência de prazo para que seja pedida a nulidade de actos administativos, como estabelece o art. 58, No. 1 do CPA. Interessante é observar que no inciso 2º, alínea ´´a´´, do mesmo artigo, a Lei já define um tempo (prazo) de um ano para o MP deduzir a sua anulabilidade. Nas relações jurídicas, a matéria processual tem um nuance técnico importante, quando trazemos à tona o assunto Prescrição, totalmente ligada ao tempo. Notável é o magistério de Aníbal Bruno[6], acerca do assunto, verbis: ´´o tempo que passa, contínuo, vai alterando os fatos e com estes as relações jurídicas que neles se apóiam. E o direito, com seu senso realista, não pode deixar de atender a essa natural transmutação de coisas. Além disso, o fato cometido foi-se perdendo no passado, apagando-se os seus sinais físicos e as suas circunstâncias na memória dos homens´´. Escaceiam-se e tornam-se incertas as provas materiais e os testemunhos assim crescem os riscos de que o Juízo que se venha sobre ele se extravie, com grave perigo para a segurança do direito. Uma e outras razões fazem da prescrição um fato de reconhecimento jurídico legítimo e necessário. Em todo caso, um fato que um motivo de interesse público justifica.  Dando eco a esse pensamento, aponta Wilson de Souza Campos Batalha[7], com a maestria que lhe é peculiar: ´´O tempo jurídico corta, opera dividindo, secando. Não é fluxo contínuo, não constitui um desenrolar-se, um envolver, um transformar-se´´. Continua o jurisconsulto, dizendo: ´´O termo jurídico, na fixação dos termos e dos prazos, fatais, peremptórios, improrrogáveis ou prorrogáveis, corta a realidade dura, distinguindo a legalidade de ontem da legalidade de hoje, separando a validade do que se fez ontem, e a invalidade do que se fez hoje, o útil de hoje e o útil de amanhã, a perda e a aquisição´´.  Como se disse, o direito não é imutável, posto que é baseado em realidade empírica, tendo, por isso, que evoluir com a sociedade. Já que é produto natural, não pode o direito ficar inerte. Nessa justificação, a Prescrição toma assento. Importante estudo foi realizado pelo memorável San Tiago Dantas, que disse: ´´Essa influência do Tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais´´. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado das coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro. Quem podia reclamar, não mais pode.  A segurança jurídica é um princípio inovador e basilar na salvaguarda da pecificidade e estabilidade das relações jurídicas. E como tudo na vida contemporânea, está interligado ao fator ´´Tempo´´. Não é a toa que a segurança jurídica é a base fundamental do estado de direito, elevada que está no altiplano axiológico. Relativamente ao referido princípio no âmbito da Administração Pública, merecem guarida as judiciosas observações do Mestre JOSÉ GOMES CANOTILHO[8]:  ´´Na atual sociedade de risco, crescem a necessidade de actos provisórios e actos precários a fim de a administração poder reagir à alteração das situações fáticas e reorientar a prossecução do interesse público segundo os novos conhecimentos técnicos e científicos. Isso tem que articular-se com a salvaguarda de outros princípios constitucionais, entre os quais se conta a proteção da segurança, a segurança jurídica, a boa-fé dos administrados e os direitos fundamentais no tempo atual´´  O tempo tem sido, atualmente, novamente objeto de inovações em prol da sua boa utilização. Estamos a falar da digitalização dos processos, que tem como principal objetivo, a redução do tempo de tramitação dos processos judiciais. 2. O TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL: 2.1. Direito Português Em Portugal, em linhas gerais, sabe-se que o Tempo é extremamente importante na aplicabilidade das Leis. É inevitável dizermos que, em toda e qualquer matéria ligada ao Direito Administrativo, ou ainda a qualquer outro ramo do direito, o fator Tempo está completamente interligado aos procedimentos. Diferentemente do Brasil e outros países sub desenvolvidos, o Direito Português é detentor de uma prática muito interessante que é a tutela jurisdicional efetiva, onde o Magistrado tem prazo para julgar os processos, estando inclusive disposto no art. 2º do CPTA. No entanto, os prazos estabelecidos pelo CPC (Lei 41/2013), não se aplicam aos processos que tramitem no TA (Tribunal Administrativo). O art. 29º do mesmo códex, define os prazos (totalmente ligado ao assunto tempo) para os atos processuais no Direito Administrativo, que é de 10 dias. Em relação ao tempo de trabalho, este sofreu recentes alterações advindas da Lei 58/2013. Já os prazos do art. 41 do CPTA, referem-se aos processos administrativos comuns, enquanto os do art. 29 do mesmo dispositivo, dizem respeito aos atos processuais. Chama-se a atenção para o disposto no item 2 do art. 41 que estabelece prazo de 6 meses para se requerer a anulação de contratos administrativos. Já no Brasil, tal prazo é definido pelo Código Civil, pela inexistência de um Código de Processo Administrativo, que é de 2 anos (exemplo do contrato de compra e venda). No entanto, tal prazo não é absoluto, pois depende do tipo de contrato a ser anulado. No Direito Administrativo brasileiro, no âmbito Federal, a Lei 9784/99 estabelece prazo de 5 (cinco) dias, prorrogáveis por motivo justo. Outro prazo interessante está no art. 44 do CPTA, que estabelece um tempo para que a Administração cumpra determinada decisão, podendo, se assim achar interessante, determinar a aplicação de sanção pecuniária compulsória como estabelece o art. 169 CPTA. Já no Brasil, por exemplo, o art. 461 do CPC e art. 84 do Código de Defesa do Consumidor[9], definem a pena por descumprimento de ordem judicial, através de multa diária estabelecida pelo Magistrado no momento em que determina à Administração que proceda conforme sua determinação. Atenta-se para o fato de tal situação ocorrer não só em processos administrativos (exemplo: ação onde o Juiz determina que o Estado, por exemplo, nomeie e emposse pessoa que logrou êxito em um concurso em 3º colocado, tendo sido convocado o de colocação inferior à do mesmo, onde o Juiz estabelece multa diária por descumprimento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais)), mas também em processos tributários (Estado é proibido de cobrar taxa de turismo, por exemplo e permanece descumprindo ordem), cível (multa diária em caso de descumprimento de ordem que manda banco devolver veículo indevidamente apreendido) ou ainda na esfera trabalhista (ordem do magistrado para que a empresa readmita o empregado que foi indevidamente demitido), enfim, podem ser aplicados nas mais diversas formas. No Brasil, tal sanção pecuniária recebe o nome de ´´ASTREINTES´´, que advém do Direito Francês, pouco aplicado nos Códigos Brasileiros, que têm muito do Direito Italiano, Português e Alemão. Não tem limites e só cessa quando cumprida a obrigação (arts. 461, 644 e 645 do CPC). Já o Direito Norte Americano, vincula as decisões judiciais à sanções pecuniárias em caso de descumprimento, denominando-o meios coercitivos de cumprimento de decisões. Lá se alude à doutrina dos inherent powers (poderes inerentes), segundo a qual os magistrados possuem poder amplo para a adoção de medidas de execução indireta para dar efetividade às suas decisões. Diante dessa prerrogativa, podem os tribunais editar e implementar regras para lidar com o litígio a ser examinado[10] e ainda determinar a punição em caso de desrespeito ao tribunal (contempt of Court).[11] Essa garantia opera como condição necessária para a realização da independência do Poder Judiciário, sendo prevista constitucionalmente[12]. Os arts. 58 e 59 do CPTA já estabelecem outra medição temporal, quando definem os prazos de impugnação e os procedimentos para sua aplicabilidade. Interessante observar que o Ministério Público (MP), tem prazo de 1 ano e as demais partes, prazo de 3 meses, para processos previstos no CPC. Já o art. 69 do CPTA, estabelece prazo para exercer o direito de ação em caso de inércia da administração, que é de 1 ano, a contar do termo do prazo legal para a emissão do ato ilegalmente omitido. Já no Brasil, em caso de inércia ou omissão da administração, por uma autoridade, que se chama ato de coação, tem, como disse acima, como procedimento cabível, o Mandado de Segurança, cujo prazo legal estabelecido é de 120 dias a contar da data do ato de coação da autoridade administrativa, considerado processo urgente.  Outra medida temporal no processo administrativo português, está no prazo concedido à entidade pública demandada ou dos contra interessados para contestar as ações, que é de 30 dias (art. 81 CPTA). O tempo no Processo Administrativo está contemplado no art. 58 do CPA, o tempo de tutela e autotutela administrativas (arts.108, 109, 140 e ss e ainda art. 158 e ss do CPA), e ainda arts. 109, 112, 121 e 131 do CPTA). Interessante ainda observarmos o tempo do interesse público e dos seus direitos fundamentais (arts. 24 e ss e 266 e ss da Constituição Portuguesa).  Em mais uma brilhante passagem da imprescindível obra sobre Direito Ambiental e Direito Administrativo, da autoria do renomado Doutor Luís Filipe Colaço Antunes[13], nos chama bastante atenção, quando nos diz, verbis: ´´O tempo dá-nos a idéia da finitude do sujeito e dos bens ambientais. A vida é uma espécie de ´´entre´´: entre um passado, que já não é, e um futuro que ainda não é´´[14].  Em todo o mundo, existem os processos ditos urgentes, onde o tempo é ainda mais visado, uma vez que não só as partes encontram-se em emergência, como os operadores do direito, que urgem angariar uma decisão célere do Judiciário ou ente da administração pública. Nestes casos, o que chamo de ´´denominador do tempo, no caso o prazo´´, é aplicado de forma especial, uma vez que, para que o direito seja utilizado, faz-se necessária a aplicação dos prazos estabelecidos na Legislação, estando o tempo muito presente nos processos ditos emergentes. Exemplos destes casos são os Mandados de Segurança, as Ações Cautelares, as Ações Ordinárias com pedidos de tutelas emergenciais para casos de saúde dentre outros.  Outra forma de aplicação do tempo, está na competência ratione temporis, quando constata-se, em resumo, que o tempo não tem uma incidência sobre o direito de um órgão público usar a sua competência. Ou seja, o ato administrativo só é inválido quando viola o prazo peremptório (perentórios na linguagem portuguesa). O fato é que, o direito administrativo prevê inúmeros prazos para a administração agir, o que nada tem a ver com a competência e sim com a formação do ato administrativo. Um trecho importante de outra obra do renomado jurista retro mencionado, explica bem o assunto quando diz: ´´A competência ractione temporis evapora-se rapidamente porque o órgão continua a dispor da sua competência para além do prazo de caducidade´´. E diz mais em sua obra[15], quando descreve: ´´Com efeito, a Administração mantém, em regra, a possibilidade de praticar o ato para além do prazo, enquanto o particular perde, em princípio, o direito de praticá-lo´´. Tal dispositivo ora descrito se denomina, no direito brasileiro, como Preclusão, exposto no item 2.3.2, mais à frente. Assim, os prazos previstos no ordenamento jurídico administrativo português para os órgãos tomarem as suas decisões, dizem mais respeito ao poder que este órgão dispõe do que à sua competência, que não sofre qualquer inibição temporal. 2.2. O processo administrativo na doutrina estrangeira: Não objetivando a fuga do tema, mas complementando-o, buscamos os entendimentos dos diversos doutrinadores de países, como a Argentina, México, Itália e França e principalmente de Portugal, onde se tem avançado bastante na esfera do direito processual administrativo. O Brasil, ao meu ver, desde 1999, ficou ´´paralisado´´ no tempo, em relação a esta matéria, na esfera processual. Importantes estudiosos como Sylvia Zanella di Pietro, Celso Ribeiro Bastos, Celso Antônio Bandeira de Melo e Diógenes Gasparini avançaram bastante no tema, mas o legislador não incorporou tal pensamento. Segundo importante estudo de José dos Santos Carvalho Filho, em sua obra Processo Administrativo Federal14, vê-se uma interessante abordagem às variadas formas como a doutrina estrangeira aplica o tema Processo Administrativo e as particularidades de cada cultura. Para termos uma idéia, os Direitos Argentino, Italiano e Mexicano definem procedimento como indicativo de processo, diferentemente da doutrina Francesa, com Vedel. 2.3. O Tempo no Direito Brasileiro:  O Código utiliza determinações de tempo para a prática dos atos processuais sob dois ângulos diferentes: a) O de momento adequado ou útil para a atividade processual; e b) o de prazo fixado para a prática do ato. A primeira regra sobre o tempo hábil à prática dos atos processuais é a do art. 172 do CPC e art. 23 da Lei Federal 9784/99, que determina sejam eles realizados em dias úteis, de 6 às 20 horas[16].  Entende-se por dias úteis aqueles em que há expediente forense, de modo que “durante as férias e nos feriados não se praticarão atos processuais” (art. 173). O mesmo se diz dos sábados e domingos, que, conforme a maioria das Organizações Judiciárias, não são dias úteis[17]. Toda a matéria relativa a este assunto, está embutida e controlada pelo tempo e nos ditames estabelecidos no CPC e na Lei Federal acima citada, de forma que os atos processuais administrativos são também muito bem controlados pelos prazos e especificações que lhe são peculiares.  No mais, o Direito Brasileiro tem-se a aplicação do tempo em todos os âmbitos do Direito. No Direito Penal, por exemplo, além dos prazos, aplica-se o fenômeno ´´tempo´´, por exemplo, na dosagem e medição das penas a serem aplicadas pelos Magistrados. Aplica-se também na prescrição da pena e ainda no prazo para cumprimento dos inquéritos policiais, ajuizamento das demandas criminais etc. No Direito Administrativo, por exemplo, no tempo de 3 anos, por exemplo, para licença ambiental e assim nos mais diversos ramos do direito.  No Direito Previdenciário, por exemplo, aplica-se bastante, uma vez que além dos prazos estabelecidos na Lei 8112/90, tem-se ainda o tempo de serviço, tempo de contribuição como requisitos da aposentadoria (Reforma no Direito Português), e ainda o prazo trintenário para requerer o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).  Tem-se ainda o decurso do tempo (Trânsito em Julgado) como condição, levantada inclusive pela ilustre Maria Isabel Galloti (R.D.A. 170:29), que disse: ´´A estabilidade da relação jurídica projeta a segurança das relações travadas com o poder público´´. Enfim, A indeterminação e a perpetuidade da administração pública rever seus atos ad eternum, cria verdadeiro caos para a sociedade, administrados e servidores públicos, em razão da criação da instabilidade jurídica que seria vivida por todos. 2.4. PRAZOS – Filho do tempo: O art. 177 do CPC, que está sofrendo alterações para o ano de 2014, assim dispõe: “os atos processuais realizar-se-ão nos prazos prescritos em lei”. Prazo, que em termos processuais, é a melhor definição extemporânea de tempo, é a fração ou delimitação de tempo dentro do qual deve ser praticado o ato processual, assegurando que o processo se desenvolva através do iter procedimental. Não se confunde com termo, que são os marcos (limites) que determinam a fração chamada prazo. O prazo ocorre justamente entre dois termos: tem início com o advento do termo a quo (inicial) e se expira com o advento do termo ad quem (final). Subdividem-se, em: Prazos próprios (os que dizem respeito às práticas de atos processuais pelas partes), Exemplo: sem contestação, podem ocorrer os efeitos da revelia. Prazos impróprios (os prazos do juiz, do escrivão e dos seus serventuários. O descumprimento não gera qualquer desvalia em matéria processual, nem mesmo a preclusão). Prazos Legais, Judiciais e Convencionais. Por fim, em havendo omissão pelo juiz, o Código prevê um prazo legal subsidiário, de 5 dias, para a prática dos atos processuais (artigo 185 do Código de Processo Civil), Dilatórios (podem ser ampliados ou reduzidos) e peremptórios (não podem ser alterados, só em casos excepcionais).  Em regra, os prazos são contados, com exclusão do dia de começo e com inclusão do de vencimento (art. 180CPC no Brasil). Como é a intimação o marco inicial dos prazos (art. 240 CPC), estes só começam a fluir a partir do dia útil seguinte ao da intimação. A intimação feita numa sexta-feira, só permitirá o início do prazo na segunda-feira (se for útil). Esta citação prática, como também o prazo de 10 dias para se recorrer de uma decisão em processo administrativo, estabelecido no art. 59 da Lei Federal 9784/99, são exemplos claros de como o ´´TEMPO´´ rege o processo e como regulamenta a vida de todas as pessoas envolvidas no mesmo. Daí a importância do tema.  O tempo define inclusive as regras para o Ministério Público e para a Fazenda Pública, que no Brasil, são os entes da União, Estados e Municípios, sendo este diferenciado. Da mesma forma, diferencia-se o prazo quando se trata de ações onde existam litisconsórcio, onde o prazo é diferenciado em detrimento das várias partes que compõem a lide no pólo passivo. Quando falo ´´filho do tempo´´, defino prazo como o principal medidor do tempo no processo, seja ele judicial, administrativo…… 2.5. PRECLUSÃO – O tempo ´´mau´´?:  Todos os prazos processuais, mesmo os dilatórios, são preclusivos. Portanto, “decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declaração judicial, o direito de praticar o ato” (no Brasil, definido no art. 183 CPC). Opera, para o que se manteve inerte aquele fenômeno que se denomina preclusão processual.  A perda do direito, através da preclusão, seria a perda do tempo? Trazemos, novamente, a importante lição que nos é dada pelo Doutor Colaço Antunes, que citando A. Schnell (coord.) em sua obra Le Temps, Paris 2007[18], nos esclarece a importância do tempo no Direito, verbis: ´´(…), o Direito faz uma utilização do tempo extremamente sumária e instantânea. Desde ARISTÓTELES a SANTO AGOSTINHO ou de KANT a HEGEL há um abismo de dúvidas e perguntas. Como perguntou SANTO AGOSTINHO, o que é o tempo? Se ninguém nos fizer a pergunta, sabemos muito bem o que é o tempo, mas se a pergunta nos for feita, não saberemos responder ou explicar o que é o mistério do tempo. Este não é o objetivo principal deste artigo que ora produzimos, mas sim o desvendamento de parte deste íntimo e infinito mistério.  O fato é que tal instituto da preclusão não pode ser definido como tempo ´´mau´´, como tentei vinculá-lo acima, porquanto ser, na verdade, uma não utilização do prazo estabelecido em Lei pela parte, o que não torna o tempo algo maléfico e sim como se a parte não o tivesse obedecido e com isso perdido o prazo para pleitear o seu próprio ´´Direito´´. Parece-nos confuso, no entanto não o é, uma vez tratar-se de uma prerrogativa legal. 2.6. OUTROS EXEMPLOS ONDE O TEMPO INFLUI E CONTRIBUI:  Para se ter uma ideia da situação de como este assunto é interessante, a Concessão no Brasil, também é regida pelo ´´tempo´´, uma vez que, de acordo com o art. 175 da Constituição Brasileira, ´´as concessões só podem ser outorgadas por tempo determinado´´ e atender ao princípio da igualdade. Como a concessão é feita através de Contratos Administrativos, o trâmite legal segue os ditames da Lei 8666/93 (Estatuto dos contratos e licitações) e a Lei Federal 8987, em seu art. 23, XII, que trata da prorrogação dos contratos. Os princípios do contraditório e da ampla defesa resta presente em ambos os casos.  A abrangência do assunto é tamanha, que vemos a influência impressionante do ´´tempo´´ dentro de um determinado assunto do Direito Administrativo como se fosse uma ´´bola de neve´´. Exemplo disso está em uma intervenção do Chefe do Executivo em um contrato de concessão falho, onde lhe é concedido prazo de 30 dias para a abertura de procedimento administrativo e 180 dias para encerramento desta apuração, atendendo ainda, atentemos para isso, os princípios do contraditório e da ampla defesa. Importante a forma como o autor brasileiro Carvalho Filho[19] trata o tema, no Direito contemporâneo.  O art. 37, α5o da Constituição Brasileira estabelece que cabe a Lei fixar os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, que provoquem prejuízo ao erário. Interessante esta abordagem que ora faço, uma vez que se pode observar aqui a presença do tempo medindo um assunto e vários julgamentos de uma vez só, senão vejamos: O empregado público prevarica, beneficia-se do erário, e com isso terá que responder, primeiramente a um procedimento administrativo (Sindicância) e com isso instaurado o processo administrativo em caso de ser denunciado para tal na sindicância, se atendido e cumprido todos os prazos. Após isso, ou as vezes após a sindicância, ajuizado procedimento penal, o mesmo empregado público estará regido permanentemente pelo tempo, não só de trâmite da ação penal, como dos atos processuais, mas pelo tempo da pena, se condenado for, ou da prestação de serviços à comunidade, se comportar. Vê-se, a forte importância do ´´tempo´´, neste exemplo. Daí, seu merecido destaque.  No Brasil, assim como em Portugal, vários são os temas ligados à matéria, haja vista o fator ´´tempo´´ definir praticamente todas as fases de um processo, seja ele administrativo, eleitoral ou judicial. 3. O USO DO TEMPO NO PROCESSO – UMA ABORDAGEM MUNDIAL: O tempo como medidor de todas as fases no processo, diferencia-se, em alguns pontos, dependendo de cada cultura. Vamos, neste tópico, deflagrar algumas diferenças interessantes da aplicabilidade deste fator em detrimento da lei específica de cada país. Os atos administrativos anulatórios, por exemplo, gozam de uma retroatividade natural em respeito ao princípio da legalidade, que é o alicerce do Direito Administrativo (art.266 – 2 da CRP e art. 3º do CPA). O tempo aqui é utilizado para regular um direito, da mesma forma que o prazo impugnatório do ato administrativo. Este tema resta bastante discutido pela doutrina, porém não está esgotado. Desde 2002, vários Acórdãos19 foram publicados, e com isso conceberam uma sobreposição parcial entre eficácia e inopugnabilidade do ato, uma vez que é de conhecimento público que um ato administrativo somente terá eficácia, quando devidamente comunicado-notificado. Outra novidade consiste no prazo denominado: stand still period, que é o prazo mínimo suspensivo dirigido a impedir, depois do ato de adjudicação, a celebração do contrato por um certo período de tempo. Certamente tal instituto por assim dizer, está ligado aos contratos e aplica-se no âmbito da União Européia, mesmo sendo um termo inglês. Resta definido na Directiva No: 66/2007/CE, transposta para o Ordenamento Jurídico Português pelo Decreto-Lei No: 131/2010. O art. 4º estabelece claramente que: ´´durante o stand still, a celebração do contrato fica suspensa´´. Assim, esclarece o autor Luís Filipe Colaço Antunes, em sua valorosa obra literária20: ´´(…) Assim, a proibição de concluir o contrato não incide sobre a executoriedade do ato de adjudicação mas sobre a execução do contrato, materializada durante o stand still period. Tal prática inexiste no direito brasileiro e em toda a América do Sul. O tempo de ter tempo deveria ser completamente repensado pelas pessoas. Será que as pessoas de hoje têm tempo de ter tempo? E os Órgãos da Administração, idem? Como bem disse os filósofos acima mencionados, e ainda o saudoso e corajoso filósofo Baruch de ESPINOSA (1632-1677): ´´um entendimento finito, não pode compreender o infinito´´. Ora, sendo o tempo processual algo finito, em sua essência, quem somos nós para entende-lo infinitamente? O fato é que devemos todos, buscarmos tempo para cumprirmos os dispositivos temporais definidos na Lei Constitucional, Civil, Administrativa, Criminal, Ambiental, assim como também os gestores dos Órgãos da Administração Pública. 4. JURISPRUDÊNCIAS ATUALIZADAS SOBRE O TEMA: Por tratar-se de um tema bastante polêmico, muitas questões são ajuizadas perante o Judiciário a respeito do tema. No Brasil, por exemplo, vários entendimentos e correntes são formadas diariamente a respeito do assunto. Procuraremos mostrar abaixo, as decisões mais atuais a respeito do tema, extraído dos sites ligados ao assunto aqui abordado, como forma de enriquecer o entendimento sobre o tema, na prática forense trabalhista, senão vejamos: Tema 1: O TAF de Viseu julgou improcedente a impugnação do Recurso da empresa A Ltda, contra a alegada dívida de IVA exercício 2002. Utilizando-se o princípio do inquisitório e busca da verdade material, que resultou em caso de Nulidade prevista no artigo 201.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT. Em recentíssima decisão, assim tem se manifestado o STA a respeito do tema: “NULIDADE PROCESSUAL.OMISSÃO DE DILIGÊNCIA.DILIGÊNCIAS PROBATÓRIAS. PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO I – Não impondo a lei ao juiz que proceda sempre à produção dos meios de prova oferecida pelas partes, antes estabelecendo que este pode e deve dispensá-la se considerar que pode conhecer imediatamente do pedido (cfr. o artigo 113.º do CPPT), a dispensa de produção de prova não consubstancia a preterição de uma formalidade legal, geradora de nulidade processual quando possa influir no exame ou na decisão da causa (artigo 195.º n.º 1 do CPC). II – Não obstante, atento o princípio do inquisitório, a omissão de diligências de prova quando existam factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, pode afectar o julgamento da matéria de facto, acarretando, consequentemente, a anulação da sentença por défice instrutório.” Tema 2: O TAF de Lisboa, em processo de execução fiscal, julgou improcedente a reclamação judicial, tendo sido deflagrada a Prescrição da dívida na origem, pelo própria AT (Adm. Trib.), deixando de existir como obrigação civil, A situação em que, no n.º 2 do art. 304.º do CC, se proíbe o reembolso da quantia utilizada no pagamento de obrigação prescrita é apenas o do pagamento espontâneo, (neste sentido, vide, Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, anotação 10 ao art. 175.º do CPPT, anotado e comentado, cit…. p. 210), sendo o recente e interessante Acórdão (16/10/2013) modificativo, para revogar a sentença recorrida e julgar procedente a reclamação judicial deduzida contra o despacho reclamado, verbis: “I – O cumprimento coercivo da obrigação dá-se, não com a venda executiva, mas com a aplicação do produto da venda nos pagamentos. II – Se, em momento prévio ao dos pagamentos foi oficiosamente declarada a prescrição da dívida exequenda fica impedida a aplicação do produto da venda no pagamento desta, porquanto tal pagamento coercivo corresponderia à realização coactiva de uma prestação, que se tornou judicialmente inexigível, sendo lícito ao executado recusar o cumprimento da prestação ou opor-se, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (artigo 304.º n.º 1 do CC).” Tema 3: Acórdão recente do STA, onde se aplica ao mesmo tempo, dois fatores ligados ao tempo, que são o prazo para recorrer de uma decisão e a vacacio legis (lei vacante, tempo para que uma lei entre em vigor). Presente aqui a figura dos ´´dispositivos transitórios´´. Este Acórdão advém de recurso julgado pelo TFA de Almada, que negou o pedido para que fosse anulada a liquidação da taxa de justiça, de 415,00 €. Tendo sido o processo autuado em 2006 (antes da entrada em vigor da Lei 7/2012) e envolve o disposto na alínea ´´a´´ do art. 15 do RCP (Regulamento das Custas Processuais). Interessante e recente decisão (16/10/2013), onde o acórdão que pôs termo ao processo data de 22 de Junho de 2012 e que a Entidade Demandada se presume notificada para proceder ao pagamento da taxa de justiça em 2 de Julho de 2012 (cfr. fls. 1385-verso dos autos), concluiu que o acto que determina o pagamento da taxa de justiça ocorreu após a entrada em vigor das alterações introduzidas no RCP e, consequentemente, que o artigo 15, nº 2 deste Regulamento se aplica, sem margem para dúvidas, ao caso em presença. Vejamos a Ementa: “I – Por força da norma que, sob o n.º 2, foi aditada ao art. 15.º do Regulamento das Custas Processuais pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, as partes que beneficiam de dispensa do prévio pagamento da taxa de justiça, independentemente de condenação a final, devem ser notificadas com a decisão que decida a causa principal, ainda que susceptível de recurso, para efectuar o seu pagamento no prazo de 10 dias. II – Essa regra aplica-se não só aos processos iniciados após a entrada em vigor da Lei n.º 7/2012 (em 29 de Março de 2012) como a todos os processos pendentes nessa data (n.º 1 do art. 8.º). III – Não obsta à aplicação da referida regra aos processos pendentes o n.º 9 do art. 8.º da Lei n.º 7/2012, norma que apenas se destina a obviar a que aqueles que haviam beneficiado do diferimento do pagamento da taxa de justiça e que, por força do novo regime introduzido no Regulamento das Custas Processuais pela Lei n.º 7/2012 deixaram de beneficiar, fossem compelidos, após a entrada em vigor desta Lei e por força da sua aplicabilidade aos processos pendentes, ao pagamento de imediato da taxa de justiça.” Constatou-se, pois, que nos assuntos acima descritos, as decisões estão interligadas ao fator ´´Tempo´´. Os demais temas resumem os assuntos trazidos durante o presente trabalho, de forma rica e atualizada dentro da jurisprudência mais recente do STA. Teríamos aqui ainda, muitas jurisprudências a abordar, sobre as mais diversas questões ligadas ao “Tempo de Trabalho”. No entanto, por não podermos nos alongar mais, procuramos trazer as decisões mais recentes sobre o assunto, assim como as mais polêmicas. 5. CONCLUSÃO Este trabalho, sobre o Tempo, nas esferas administrativa e processual, à luz da legislação lusitana, levou-nos a constatar que o assunto é bastante atual e de ampla abrangência, embora já venha sendo discutido e alterado à várias décadas, guardando, indubitavelmente, relação próxima com o Direito Administrativo. Exemplo disto, vê-se nos inúmeros julgados extraídos dos Tribunais Administrativos e Superiores Tribunais Administrativos Portugueses, inexistentes em países como o Brasil, onde tal denominação judicial contenciosa administrativa sequer existe. Contudo, procurou-se rebuscar o assunto nas mais diversas óticas e aplicabilidades no Direito, levantando a curiosidade e a imaginação do leitor para o que vem à frente, tudo discutido de forma abrangente no decorrer deste trabalho sob a forma de Artigo. O tempo da Administração confronta-se agora com o tempo do Juiz e da pessoa humana concreta na sua relação com o tempo dos bens objeto de tutela, ou seja, estamos em uma era em que o tempo é medidor da vida das pessoas. Todo mundo, como diz o provérbio popular, corre atrás do tempo, mas na verdade, o tempo está sempre em movimento, nós seres humanos e objetos é que temos que nos adaptar a ele. Processualmente falando, a situação não é diferente, como se procurou mostrar ao longo deste estudo. Tem-se o tempo como medido permanente do andamento do processo, nascendo antes mesmo do ajuizamento de uma demanda, quando se observa a existência ou não de prescrição do direito a ser pleiteado, e ainda o prazo para resposta de ações intentadas contra sí, bem como em casos onde resta presente a urgência processual em detrimento da matéria colimada, e na esfera administrativa, está presente por exemplo, no cumprimento dos prazos exíguos para julgamento das matérias ali discutidas. Proporcionou ainda este estudo a constatação, mesmo no atual contexto da relativização do tempo nos processos administrativos, muitas vezes requisitado pelas empresas do setor público, objetivando sempre o bem estar social do trabalhador e o binômio atividade profissional com ética do empregado público no desempenho das suas funções. Inferiu-se que, o tema aqui discutido nos faz rebuscar em longínquos séculos, a sua aplicabilidade, não só no dia a dia das pessoas no mundo cotidiano, como nos processos judiciais e administrativos, tanto na cultura ocidental, como na oriental. Em Portugal, por exemplo, o CPA veio temporalizar os atos administrativos, de forma que os seus efeitos jurídicos agem de forma temporal e concreta, através da eficácia do ato administrativo (art. 127 e seguintes do CPA). O Direito, pois, descobre o tempo de maneira permanente e sempre de forma atualizada. Até uma Lei para entrar em vigor, precisa obedecer o ´´tempo´´ de vacância, ou seja, até a própria lei precisa obedecer a ´´Lei do Tempo´´. Falou-se aqui dos prazos definidos no CPTA, como os definidos no arts. 41º – 1 e 2, e arts. 56, 58, 89, 132, 144 do CPA e como bem definiu Mário Aroso de Almeida, em sua obra Manual de Processo Administrativo, 2013, Editora Almedina, fls.308 a 316 e 337. Procurei ainda estabelecer um comparativo entre os prazos estabelecidos no Direito Português e no Direito Brasileiro, opinando de forma clara e objetiva no pensamento contemporâneo, através de uma linguagem simples, de modo a esclarecer ao leitor o meu ponto de vista a respeito desse tema, que é e sempre foi bastante relevante no Direito Administrativo. Transcrevo importante trecho da obra: ´´A Ciência Jurídica Administrativa´´, do renomado jurista, Luís Filipe Colaço Antunes, 2013, Editora Almedina, que diz: ´´Não há, ou nem sempre há, continuidade entre conceitos e institutos jurídicos. Por vezes, há descontinuidade e até rutura, como sucede debaixo dos nossos olhos entre Grundnorm e sistema jurídico´´. Conclui-se haver uma corrida de flexibilização e modernização do direito europeu continental, no que concerne a esta matéria, tendo sofrido alterações em 2009, 2011 e agora em 2013, influenciada pela correlação do dinamismo da economia dos demais países da CE e ainda com base nas mudanças realizadas pelo Governo Português em detrimento da TROIKA. Constatou-se a imprescindibilidade de trazermos os conceitos de preclusão, assim como do que chamamos de flexibilização do direito dentro da Comunidade Europeia, quando vemos tratamentos diferenciados no processo administrativo de países como Portugal, França e Itália. Viu-se ainda a diferença existentes dentro do Direito Americano, tanto no Sul, como no Norte, e em países como Brasil e México, assim como Argentina e USA, de forma que em qualquer que seja a situação, o fator ´´Tempo´´ move e remove montanhas! Tal pesquisa objetivou o enriquecimento das informações aqui relatadas. Reputamos que o repensar do assunto ´´Tempo´´, ao nosso ver, deve ser sempre realizado não só pelos operadores do Direito, mas pelo Legislador e por toda a população mundial.
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Estudos introdutórios ao Estatuto Geral das Guardas Municipais: Lei nº 13.022, de 8/8/2014
Estudo introdutório da lei que regulamentou as guardas civis municipais a partir da sua previsão constitucional do art. 144, §8º. Conceito de estatuto. Princípios aplicáveis no exercício da função. Direitos humanos e políticas públicas.
Direito Administrativo
Introdução. O desenvolvimento deste trabalho seguirá as etapas de construção de textos jurídicos, ou seja, de análise de disposições legais em cotejo com aspectos de ciência do direito. Assim como os demais trabalhos, este texto busca tornar acessíveis aos cidadãos a leitura e a compreensão dos textos legais que podem e devem trazer reflexos na vida de cada um. Estatuto Geral das Guardas Municipais. A Lei 13.022, de 8/8/2014, que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, institui normas gerais para as guardas municipais, disciplinando o art. 144, §8º da Constituição Federal de 1988. Ao tratar de um estatuto geral, a lei estabelece o corpo de regras em que são postos os princípios institucionais ou orgânicos de todas as guardas municipais do país. A Lei 13.022, de 2014, disciplina o art. 144, da Constituição Federal de 1988, que prevê que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos órgãos que prevê, dentre os quais: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. Após esta previsão, por meio do §8º do mesmo artigo, a Constituição assegura aos Municípios a possibilidade de constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme disposição legal.[1] Em outras palavras, a Constituição mesma previu a criação pelos municípios de suas guardas com fins específicos de proteger os seus bens, serviços e instalações, conforme a lei que ora se analisa. Estatuto. A palavra estatuto nasceu do latim e significava estabelecer, constituir, fundar. Amplamente considerado, estatuto é lei ou regulamento onde são estabelecidos princípios institucionais ou orgânicos de uma corporação pública ou privada.[2] Estatuto é o conjunto de normas ou regras observadas por uma instituição, a ser utilizado como lei orgânica, pelas qual, desta forma, passa a ser regida.[3] Os estatutos criam regras para as relações dos indivíduos componentes da instituição de que tratam e podem impor sanções para os atos contrários aos interesses sociais, consistentes na exclusão ou na suspensão de direitos, ou de outras penalidades, até mesmo pecuniárias.[4] Os estatutos não possuem características contratuais, mas de pacto ou legal. Estatuto é, assim, a constituição fundamental da pessoa jurídica, por ela regulada. É um pacto coletivo.[5] Para o Direito Administrativo refere-se ao conjunto de princípios e regras que regulam as atividades dos servidores públicos, assegurando as vantagens e direitos sobre o exercício dos respectivos cargos ou funções. “É o estatuto dos servidores”.[6] Disposições preliminares. A Lei 13.022, além de cumprir a determinação constitucional de regular as guardas municipais criadas para protegerem seus bens, serviços e instalações, a título de disposição preliminar também determina que é tarefa das guardas municipais, instituições civis e não militares, uniformizadas e armadas de acordo com previsão legal, exercer a atribuição preventiva de proteção ao município, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal. Princípios. O caput do art. 3º da Lei fala em princípios mínimos de atuação das guardas municipais. Não se pode deixar de abordar o significado da adjetivação utilizada para caracterizar os princípios da atuação das guardas municipais. Mínimo é o que há de menor em alguma coisa. Por princípios mínimos de atuação das guardas municipais, portanto, podem ser considerados os valores primeiros e iniciais de atuação das guardas municipais em relação às sociedades onde forem as mesmas constituídas. Proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas. Inicialmente, princípio mínimo de atuação da guarda municipal é a proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas. As guardas municipais, como não poderiam deixar de ser, são garantidoras dos direitos humanos fundamentais dos munícipes e constituem, desta forma, o primeiro grupo de proteção a estes direitos posto que tudo começa no município. Também o exercício dos direitos da cidadania é objeto de proteção das guardas municipais. Direitos de cidadania podem ser considerados aqueles relativos ao poder de participação da vida política do município ou do país.[7] Observe-se que é muito comum a utilização conjunta das referências aos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos de cidadania. Entretanto, pode ser explicado de modo independente cada um destes termos relativos aos direitos humanos, aos direitos fundamentais e aos direitos de cidadania. Já em relação ao texto legal, também se pode utilizar um significado próprio para liberdades públicas. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Direitos humanos têm a ver com as necessidades mais básicas de toda a humanidade que nem sempre foram respeitados pelos governantes. Abordar direitos humanos muitas vezes é legitimar barreiras aos poderosos que, em uma situação de maior força e poder, abusam dos mesmos sobre as pessoas e as atingem em seus direitos mais fundamentais, em seus direitos mais básicos e elementares facilmente perceptíveis. As origens dos direitos humanos estariam em todos os momentos nos quais, a qualquer título, uma pessoa natural tivesse seus direitos mais fundamentais, seus direitos naturais, violados por alguém.[8] Segundo Erival Oliveira, os direitos humanos foram incrementados em importância durante o século XX. No século XXI, portanto, já estariam incorporados ao pensamento jurídico. Os fundamentos teóricos dos direitos humanos estariam no positivismo ou no jusnaturalismo. Segundo os autores do positivismo, previstos no ordenamento jurídico interno, ou seja, na Constituição e nas normas infraconstitucionais, como é o caso brasileiro, os direitos humanos podem ser exigidos. Além disto, também podem ser exigidos se estiverem previstos em tratados e em convenções internacionais sobre direitos humanos. Em relação aos que defendem os direitos humanos como parte do jusnaturalismo, a pessoa humana seria o fundamento, seria a base e a razão de ser dos direitos humanos. A pessoa humana deveria ser tratada de modo justo e solidário. Seriam marcos históricos dos direitos humanos o Iluminismo, a Revolução Francesa e a IIª Guerra Mundial. O Iluminismo foi o movimento caracterizado pela exaltação da razão, do espírito crítico e da fé na ciência, em geral. Foram personalidades marcantes os filósofos John Locke, Jean-Jaques Rousseau, Thomas Hobbes, Immanuel Kant e Montesquieu. Estes autores teriam precedido os direitos humanos, teriam fundamentado filosoficamente o momento seguinte que experimentou a sociedade humana após a eclosão do movimento da Revolução Francesa de 1789.  As primeiras declarações de direitos humanos foram impulsionadas pelo iluminismo. Destaque-se a Declaração de direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789. A Revolução Francesa teria feito nascer os ideais dos direitos humanos representados nos seguintes valores: igualdade, liberdade e fraternidade. Após o fim da II Guerra Mundial, em 1945, tomou-se consciência de que as atrocidades então cometidas pelos alemães, pelos ingleses, norte-americanos e por quaisquer outros exércitos não poderiam acontecer novamente. No momento seguinte foi criada a Organização das Nações Unidas e foram assinados diversos tratados internacionais de direitos humanos como, por exemplo: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional de direitos Civis e Políticos, etc. Direitos Humanos são os direitos básicos de todos os seres humanos. Direitos civis e políticos, podem ser exemplificados como direito à vida, direito  à propriedade, direito às liberdades de pensamento, direito de  expressão, direito de  crença, direito de igualdade formal de todos perante a lei, direito à nacionalidade, direito de participação do governo do seu Estado, direito de votar e direito de ser votado, entre outros, com base no valor de liberdade.[9] Também são considerados direitos humanos os direitos econômicos, sociais e culturais como direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência social, à moradia, à distribuição de renda, entre outros, fundamentados no valor igualdade de oportunidades.[10] Finalmente, são os direitos difusos e coletivos, direito à paz, direito ao progresso, direito à autodeterminação dos povos, direito ambiental, direitos do consumidor, inclusão digital, entre outros, fundamentados no valor fraternidade.[11] Em relação aos Direitos Fundamentais, ponto pacífico é a sua identidade com os direitos humanos. Em outras palavras, direitos fundamentais são direitos humanos. O texto da Constituição Federal de 1988, em seu Título II, denominado Direitos e Garantias Fundamentais, segundo Silva, é subdividido em cinco capítulos, ou seja, direitos individuais e coletivos, previstos no art. 5º e ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; partidos políticos.[12] Direitos da cidadania. Em relação aos direitos da cidadania, por sua vez, são os mesmos considerados uma extensão dos direitos humanos. É comum a expressão direitos humanos e da cidadania significando ponto chave para a produção de políticas públicas com o fim de satisfazê-las mediante a sua promoção, garantia e defesa.[13] No município de Belo Horizonte, por exemplo, a Secretaria Municipal Adjunta de Direitos da Cidadania atua em volta de três grandes eixos, ou seja, Educação Política em Direitos Humanos e Cidadania, Promoção de Ações Afirmativas e Atendimento Psicossocial e Orientação Jurídica.[14] Tal consideração seria um sinal de atuação para reforçar a indivisibilidade destes direitos. Além disto, a estrutura de uma Secretaria Municipal consolidaria administrativamente a universalidade e a especificidade dos direitos fundamentais para a consolidação da cidadania contemporânea.[15] Observação. A constatação a que se chega é a de que as guardas municipais devem primeiramente pautar sua ação pelo respeito aos direitos humanos e pela garantia aos munícipes do exercício de seus direitos de cidadãos. Preservação da vida e redução do sofrimento e das perdas O segundo princípio mínimo da atuação das guardas municipais é o da preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas. Preservação da vida é o próprio dever de resguardar o direito humano à vida em todas as suas dimensões, incluídas a redução do sofrimento e a diminuição das perdas decorrentes de todo o tipo de fatos que causem dor e prejuízo aos cidadãos dos municípios. Patrulhamento preventivo O princípio do patrulhamento preventivo tem a ver com a presença dos guardas municipais nas ruas da cidade a fim de evitar a prática de atos que causem prejuízos aos munícipes, destacando-se, primeiramente, a atuação daqueles que desrespeitam as leis e ou os direitos dos demais munícipes, fazendo imperativa a utilização do poder de polícia a ser conferido aos guardas municipais para restringir a utilização abusiva de direitos individuais ou a prática de atos ilícitos contra os demais cidadãos do município. O princípio do patrulhamento preventivo, no entanto, deve ser amplamente discutido em sua aplicação a fim de não se sobrepor à atuação do policiamento realizado pelas polícias militares estaduais na defesa da segurança dos cidadãos. Compromisso com a evolução social da comunidade. Este compromisso deve ser ponderado a partir da competência dos municípios de cuidar dos assuntos de interesse local. A evolução social de uma comunidade representa todo um arcabouço de políticas públicas e de medidas de ação dos poderes públicos em prol do desenvolvimento das coletividades que fazem parte dos municípios. O princípio do compromisso com a evolução social da comunidade, então, representa o dever das guardas municipais praticarem na implantação mesma das políticas públicas municipais de melhoria na vida de todos os seus habitantes. Princípio do uso progressivo da força Exemplos do princípio do uso progressivo da força podem ser os das guardas municipais que utilizam armamentos que causam paralisia temporária aos infratores, sendo exemplos o spray de pimenta e os equipamentos teaser.[16]A compra destes  armamentos pelo Ministério da Justiça com recursos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci)[17] foi realizada para o lançamento da Campanha Nacional do Desarmamento. A utilização de equipamentos causadores de paralisia temporária e dos sprays de pimenta é um passo à frente na atuação das Guardas Civis Municipais em prol do atendimento do princípio do uso progressivo da força na preservação da vida e dos direitos humanos como um todo. Para se caracterizar o uso progressivo da força, basta ser considerado que para ameaças menores, medidas de menor potencial capazes de neutralizá-las podem e devem ser utilizadas, algo como o cumprimento do princípio administrativo da proporcionalidade entre meios e fins evitando o abuso de poder dos guardas municipais.  De outra forma, o uso progressivo da força é estudado e considerado no que toca aos seguintes passos: 1. A força deve ser utilizada progressivamente, sempre que possível; 2. O aumento da utilização da força ocorrerá se as circunstâncias mudarem e deve ser feito de maneira consciente e proporcional.[18]
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Lei nº 13.022, de 8/8/2014: competências das guardas municipais
Texto comentando a Lei nº 13.022, de 2014 de modo descritivo e com comentários doutrinários acerca de institutos de direito público. Enfoque principal na descrição e detalhamento das competências das guardas municipais.
Direito Administrativo
Introdução. Este texto trabalha com a análise da Lei 13.022, de 2014 e estuda todos os seus sentidos para a correta aplicação no âmbito dos municípios que instituírem guardas municipais com enfoque na competência das guardas municipais. Competência. Competência é o poder-dever de agir do agente público conferido pela lei para o exercício de sua função. De Plácido e Silva explica que a palavra competência tem origem latina e significa estar em gozo ou no uso de alguma coisa, ser capaz, pertencer ou ser próprio. Para a técnica jurídica, dois são os sentidos. Inicialmente, competência significa faculdade, aptidão para exercer, manter ou proteger um direito ou poder de exercer atribuição legal a respeito de certos atos jurídicos. Em seguida, competência também é entendida como o poder que é conferido à pessoa ou à instituição, autoridade jurisdicional para deliberação e decisão acerca de assuntos determinados, de acordo com as regras que a conferem este mesmo poder.[1] Para o Direito Público, a expressão competência administrativa é a soma de poderes outorgados às autoridades administrativas pelas leis para o exercício de gestão ou administração pública. É o poder-dever de agir conferido pelo ordenamento legal especificamente para cada autoridade. A competência administrativa se fundamenta na Constituição Federal.[2] Cada esfera de governo tem assim, a sua própria competência. Segundo o art. 4º da Lei 13.022, as guardas municipais têm competência geral de protegerem os bens, serviços e logradouros públicos municipais além das instalações do mesmo município. O parágrafo único detalha que os bens mencionados no caput do artigo podem ser os bens de uso comum, os bens de uso especial e os bens dominiais. Bens públicos. O Vocabulário Jurídico indica que bem público é a coisa integrada ao domínio público ou tudo aquilo que se realiza para o bem estar da coletividade. Logicamente, no entanto, não é este o sentido para o qual se volta a Lei 13.022, de 2014. Na doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, bens públicos são todos aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público e os que estejam afetados à prestação de um serviço público.[3] O domínio público, então, é uma noção formada pela reunião dos bens públicos.[4] Bens públicos podem ser classificados como bens de uso comum e bens pertencentes ao domínio particular do Estado. Amplamente, logo, bens públicos são destinados à utilização e gozo da população e ou reservados para o uso próprio do Estado, de suas instituições, de seus serviços públicos.[5] O Código Civil elenca como bens públicos aqueles do domínio nacional que pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno. Todos os demais bens são particulares, seja quem for a quem pertencerem.[6] Os bens públicos podem ser de três espécies: bens de uso comum do povo; bens de uso especial e bens dominicais. Bens de uso comum do povo são os rios, os mares, as estradas, as ruas e as praças. Bens de uso especial são os edifícios ou terrenos com destinação específica de utilização a serviço ou a estabelecimento da administração pública de qualquer esfera de governo, ou seja, administração pública federal, estadual, municipal ou territorial, sendo incluídos os edifícios ou terrenos de suas autarquias. A Lei que instituiu o Código Civil, Lei nº 10.406, de 2002, neste artigo 99, inciso II, não especifica a administração pública do Distrito Federal, mas aborda a Administração dos Territórios, que porventura forem criados.  Finalmente, os bens públicos podem ser dominicais, ou seja, aqueles bens que constituírem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. O parágrafo único do mesmo artigo especifica que não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial não podem ser alienados enquanto assim o forem considerados, de acordo com a legislação. Já os bens públicos dominicais, desde que observadas as exigências da lei, podem ser sim alienados. Em último lugar, o artigo 103 do Código Civil explica que o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou remunerado, de acordo com previsão legal a cuja administração pertencerem. Em outras palavras, lei municipal, por exemplo, pode estabelecer retribuição pela utilização de bem público do município onde for promulgada a referida lei.[7] Os bens públicos são inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.  No entanto, por ato emanado de autoridade competente, podem ser cedidos a particulares. Perdem, assim, a qualidade de públicos, que também pode decorrer do abandono ou desafetação dessa qualidade pelos próprios poderes constituídos.[8] Serviços públicos. Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que serviço público é atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.[9] Já José dos Santos Carvalho Filho ensina que serviços públicos são todas as atividades prestadas pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade.[10] Logradouros públicos. Logradouros públicos devem ser entendidos, então, como os locais mantidos pelos poderes públicos para utilização pelos habitantes locais como praças, jardins e hortos ou também pelos locais construídos pelos particulares para uso próprio, quando serão denominados logradouros particulares.[11] Desenvolvimento das competências. Em seguida, o artigo 5º da Lei 13.022 especifica as competências das guardas municipais em atenção às competências federais e estaduais. Zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos municipais. Atividades de zelo ou guarda patrimonial do município. Prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Prevenir é evitar ou tomar precauções para impedir que algo aconteça.[12] Inibir é dificultar ou impedir uma ocorrência determinada. A presença e a vigilância das guardas municipais, então, além de práticas para reprimir infrações penais ou administrativas e atos atentatórios contra os bens, serviços e instalações municipais, completarão o conjunto de medidas e ações para proteger os bens, serviços e demais instalações de cada município. Proteção sistêmica da população local. As guardas municipais devem atuar preventivamente e de modo contínuo, em todo o território municipal para exercer proteção de modo sistêmico, ou seja, de forma organizada e criteriosa da população que faz uso dos bens, serviços e instalações municipais. Colaboração visando à paz social. As guardas municipais devem colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social. A atuação organizada de todos os órgãos de segurança pública deve permitir uma atuação mais coesa e substancial para a obtenção da paz da sociedade, por meio da atuação uníssona das mesmas no combate aos inimigos comuns da segurança pública. Pacificação de conflitos e Direitos Humanos. As guardas municipais devem agir em conjunto com as demais forças públicas de forma a acrescentar esforços de colaboração para a solução pacífica de conflitos que seus agentes presenciarem, sempre com respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos. Guardas de Trânsito. As guardas municipais devem exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos do Código de Trânsito Brasileiro, ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal.[13] Proteção Ambiental. Compete às guardas municipais proteger o patrimônio ecológico, histórico, cultural, arquitetônico e ambiental do Município, inclusive por meio da adoção de medidas educativas e preventivas. Cooperação para a defesa civil. As guardas municipais também atuarão em conjunto com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades. Participação popular. As guardas municipais devem interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades. Já que os interesses são públicos, nada mais razoável do que permitir a participação do público para debater possíveis soluções. Parcerias para ações preventivas integradas. É competência das guardas municipais agir para estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas. Políticas sociais interdisciplinares de segurança no Município. Compete às guardas municipais articularem-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município. Integração para normatização e fiscalização de posturas e ordenamento urbano municipal. Polícia Judiciária e Polícia Administrativa. As guardas municipais devem integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal. Órgãos de polícia administrativa são todos aqueles por meios dos quais os agentes administrativos exercem o poder de polícia de limitar o exercício individual de direitos que prejudique o interesse público. É clássica a divisão em polícia judiciária e polícia administrativa. A polícia judiciária seria responsável pela preparação para a atuação da função jurisdicional penal, regulada pelo Código de Processo Penal e realizada pela polícia civil ou pela polícia militar. Já a polícia administrativa seria realizada pelos órgãos administrativos de caráter fiscalizador. É a polícia administrativa plena de caráter preventivo enquanto a judiciária tem nítida característica repressiva.[14] Garantia do atendimento de ocorrências emergenciais. Compete às guardas municipais garantir o atendimento de ocorrências emergenciais ou fazê-lo diretamente no momento em que se depararem com as mesmas. Condução dos autores de flagrante delito ao delegado de polícia. Também é competência das guardas municipais proceder ao encaminhamento ao delegado de polícia, nos casos de flagrante delito, do autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário. Esta é uma competência também bastante útil de apoio ao que já é feito atualmente pelas demais polícias militar e civil dos Estados. Estudos do impacto das grandes obras na segurança local. As guardas municipais devem ajudar nos estudos de impacto na segurança local provenientes das grandes obras, de acordo com as disposições do plano diretor dos municípios.  Ações de prevenção à violência. As guardas municipais possuem a atribuição de fazer progredir ações com o objetivo de prevenir antecipadamente a violência como um todo, de forma isolada ou em conjunto com outros órgãos municipais locais, de outros Municípios, Estados ou da União. Colaboração na segurança de grandes eventos. Às guardas municipais compete auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários. Segurança escolar. As guardas municipais atuarão preventivamente na segurança escolar no Município, devendo cuidar do entorno das escolas, devendo realizar ações educativas com professores e alunos, para, desta forma, auxiliar na criação de uma cultura de paz na comunidade local.    Hipóteses de atuação conjunta. Finalmente, ao exercer suas competências, a guarda municipal poderá colaborar,  atuando conjuntamente com órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal ou de congêneres de Municípios vizinhos e, nas hipóteses de atendimento direto de atendimento de emergências e de encaminhamento de autores de delitos detidos em flagrância ao delegado de polícia, diante do comparecimento das polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, polícia civil ou polícia militar e corpos de bombeiros militares, cabe à guarda municipal prestar todo o apoio à continuidade do atendimento, ou seja, deverá atuar conjuntamente com os mesmos. Conclusão. Extremamente positiva a criação das guardas municipais e bastante pontual o estatuto segundo o qual as mesmas exercerão seus ofícios. Em face do crescimento vertiginoso dos municípios brasileiros, do acúmulo crescente de população nos mesmos e da necessidade de reforço nas medidas de segurança pública, as guardas municipais vêm em importante momento e poderão contribuir decisivamente para a realização de níveis mais amplos de medidas de proteção e de segurança pública aos cidadãos dos municípios brasileiros.
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Aspectos da Licitação na Lei 8.987/95
O presente artigo tem por intuito apresentar aspectos gerais do instituto da licitação na lei nº 8.987/95 apresentando os artigos mais importantes da lei para a aplicação do tema na prática.
Direito Administrativo
Introdução O instituto da licitação serve como uma salvaguarda ao erário no sentido de garantir o uso dos recursos públicos de acordo com os princípios constitucionais que regem a administração pública, além de permitir a isonomia entre os interessados em contratar com o poder público. O presente artigo pretende apresentar aspectos gerais da aplicação do instituto das licitações na concessão de serviços públicos fazendo uma abordagem dos principais artigos que regem o tema na lei de concessões de serviços públicos nº 8.987/95. 1. Licitação na Lei n° 8.987/95 Inicialmente, verificamos o comando emanado pelo art. 14 da Lei, que nada mais é que a repetição do que preceitua o art. 3° da Lei de Licitações, referindo-se aos princípios de observância obrigatória. “Art. 14. “Toda concessão de serviço público, precedida ou não de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório”. Em termos do procedimento adotado, a Lei n° 8.987/95 exige licitação, na modalidade de concorrência. Conforme visto anteriormente, essa modalidade exige um procedimento mais elaborado, sendo o mais adequado em se tratando de concessão de serviço público, visto que esta deve atender ao interesse público e aos princípios já elencados, e assim a concorrência se torna o procedimento que mais atende a esses anseios, devido suas peculiaridades. Conforme preleciona André de LAUBADÈRE em sua obra Traité Theorique et Pratique de Contrats Administratifs[1]. “destinada a proteger os interesses financeiros da Administração, permitindo-lhe celebrar contrato com particular, disposto a aceitar as condições de preço mais favoráveis para a coletividade pública. Este objetivo supõe, primeiramente, a abertura, para o maior número possível de empreiteiros ou fornecedores, de um sistema de competição que os conduza a se apresentarem e a fazerem propostas à Administração; esta idéia de competição vai animar a primeira fase da operação de adjudicação, a saber, a participação na concorrência; ela é informada pelos princípios da publicidade e da livre concorrência”. Deve ser ressaltado, que o comando específico para a realização de concessões através da concorrência tem caráter de norma geral, preceituada pelo art. 22, XVII CRFB/88, que institui à União legislar em caráter privativo, não podendo os entes federados, em suas atribuições legislativas, suprimir o procedimento de concorrência para concessões de seus serviços públicos ou realização de obras públicas. A Lei n° 9.427/96, que instituiu a ANEEL e também disciplina a concessão de serviços públicos de energia elétrica, previu que além da concorrência, poderá ser utilizada a modalidade Leilão quando na exploração de potenciais hidráulicos. A Lei n° 9.427/97 foi mais além, o que gerou vício de constitucionalidade por adentrar em competência privativa da União visto que em seu art. 55 delegou à Agência Nacional de Energia Elétrica a possibilidade de utilizar-se de “procedimentos próprios de contratação, nas modalidades de consulta e pregão”, e sendo assim, à Agência estaria sendo permitido criar normas de procedimento licitatório reservadas ao legislador. O art. 15 da Lei de Concessões enunciou os critérios de julgamento das propostas no procedimento de licitação, portanto, a Lei n° 9.648/98 alterou o artigo, ficando estabelecidos os seguintes critérios: “ I- o de menor valor da tarifa; II- o da maior oferta (de pagamento ao Poder Concedente) III- a combinação, dois a dois, dos critérios referidos nos itens i, ii e vii; IV- o da melhor proposta técnica, com preço fixado no edital; V- o da melhor proposta em razão da combinação dos critérios de menor valor da tarifa com o de melhor técnica; VI- o de melhor proposta em razão da combinação dos critérios de maior oferta pela outorga da concessão com o de melhor técnica; e VII- o de melhor oferta de pagamento pela outorga após qualificação das propostas técnicas.” Inicialmente deve ser observado que o critério de julgamento deve atender ao princípio do julgamento objetivo das propostas, que por sua vez devem constar de forma clara no instrumento convocatório. O julgamento técnico se faz na fase preliminar ao certame, e estes serão incluídos no edital conforme ao art. 18, inciso IX, “ os critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros a serem utilizados no julgamento técnico e econômico-financeiro da proposta”. MARIA SYLVIA DI PIETRO[2] aduz: “A melhor interpretação era no sentido de que o julgamento técnico se insere como uma fase preliminar ao julgamento do preço. Em muitos casos, a complexidade do serviço a ser concedido é incompatível com a escolha exclusivamente pelo critério do preço, o que justifica que somente sejam avaliados os preços das empresas que tinham sido aceitas e classificadas, previamente, em uma fase preliminar de avaliação dos critérios técnicos exigidos no edital”. Quanto ao julgamento do preço, este deverá emanar do edital, esclarecendo os critérios de julgamento para o menor preço, atendendo a igualdade entre os licitantes. Ainda, pelo entendimento extraído do §2° do art. 15, tem-se que o edital de licitação conterá os parâmetros exigidos para o julgamento de propostas técnicas, restando demonstrado a discricionariedade deixada pelo legislador em favor da Administração Pública, que por sua vez é responsável pela elaboração do edital (lei interna da licitação). Por fim, os parágrafos 3° e 4° do art. 15, respectivamente se referem à desclassificação de proposta atentatória aos interesses do poder público que não atenda as condições mínimas exigidas no edital, julgamento desclassificatório este, que deverá atender aos critérios objetivos de julgamento. O outro parágrafo por sua vez, institui um favorecimento à empresa brasileira que participe do certame licitatório e por ventura, estando em igualdade de condições com empresa estrangeira, tenha sua proposta empatada. O art. 16 expõe o principio da exclusividade, que por sua vez é exceção e deverá ser fundamentado pelo poder público em ato administrativo anterior ao certame licitatório, quando na utilização da outorga de serviço público a concessionário com exclusividade, para que assim, justificadamente, e baseado na inviabilidade técnica e econômica, excepcione a regra da livre concorrência impressa no art. 175, § 4° da Constituição Federal. O art. 17 tem em seu escopo o intuito de sobrelevar o principio da isonomia entre os concorrentes, vedando o favorecimento pelo poder público a qualquer um deles através de incentivos tributários ou qualquer outro tipo de privilégio que torne a proposta de um, vantajosa sobre a de outro. Ainda, a preservação da moralidade administrativa está garantida por esse artigo, na medida em que afasta da competição entidade que necessite de subsidio do poder público para obter êxito no procedimento licitatório e assim viabilizar sua proposta. No que tange ao edital, esse deve conter as exigências do art. 18, e por ser o instrumento convocatório a lei interna da licitação, devem ser observados os princípios e ainda os requisitos a serem observados no certame e na posterior homologação do vencedor, contendo o objeto, as obrigações que serão devidas pelo concessionário, seus direitos e aspectos financeiros do contrato. A ausência desses requisitos ou ofensa aos princípios da licitação poderá tornar o edital nulo, seja mediante anulação ou revogação pela própria administração pública ou por anulação do Poder Judiciário quando devidamente provocado. O legislador atento às vicissitudes enfrentadas por uma empresa que assume a concessão de um serviço público, tal qual o aporte de capital elevado, dentre outros riscos inerentes a atividade, previu a possibilidade da formação de consórcios para que assim, empresas legalmente constituídas nessa modalidade societária possam juntas, na forma da lei, prestar o serviço público. O art. 19, porém além de permitir essa formação de consórcio, também elegeu algumas garantias para que este não ocorra de forma arbitrária, e sendo assim, ao longo de seus quatro incisos estabeleceu que cada uma das consorciadas deve apresentar prova de sua capacitação técnica, idoneidade financeira, regularidade jurídica e fiscal, além de vetar a participação de uma empresa em mais de um consorcio, evitando que essa empresa participe do certame com mais de uma proposta. Além, está prevista a solidariedade das consorciadas, cabendo ao poder concedente escolher dentre as empresas, aquela(as) que irão responder pelos atos do consórcio. Nessa esteira, o art. 20 trouxe um comando discricionário ao poder concedente, que poderá fazer previsão no edital para que o consórcio se estabeleça em empresa antes da celebração do contrato. Para tanto cite-se os comentários da doutrina especializada. MARIA SYLVIA DI PIETRO[3]: “A justificativa para a norma é muito clara: como a concessionária vai gerir serviço público ou executar obra pública, administrando paralelamente patrimônio público, e como a empresa faz jus ao equilíbrio econômico-financeiro, podendo, para fazer valer desse direito, exigir sua recomposição pela alteração das cláusulas financeiras, é evidente que não há conveniência em misturar recursos públicos e privados, destinados uns e outros a finalidades diversas. O próprio controle da entidade fica muito mais difícil, senão impossível, se a mesma empresa desempenha um serviço público e, ao mesmo tempo, um serviço privado. A situação torna-se mais complexa quando se trata de consórcio de empresas”[4]. Ainda, “sempre que no interesse do serviço a ser concedido for necessário ou conveniente que os compromissários constituam empresa única, não é facultada, mas obrigatória, a previsão da exigência no edital, e pelo mesmo motivo, quando for desnecessária ou inconveniente a constituição de nova empresa, desaparecerá a faculdade.” O art. 21 determina que o vencedor da licitação venha a ressarcir o poder concedente quando este houver realizado estudos acerca da viabilidade da concessão, levantamento de projetos, obras ou investimentos efetuados, vinculados a concessão, de utilidade para a licitação. Trata-se de uma novidade da lei n° 8.987/95, visto que a Lei de Licitações somente fazia previsão do ressarcimento com os custos relativos às cópias reprográficas dos documentos constantes do edital da licitação. Com o intuito de materializar o direito de petição previsto na Constituição Federal, o art. 22 da Lei de Concessões afim de dar maior transparência no procedimento licitatório, assegurou a qualquer pessoa a obtenção de informações sobre os atos, pareceres, decisões e contratos relativos às concessões e licitações.  No que concerne às hipóteses de dispensa de licitação, as Leis 8.987 e 9.074 silenciaram-se, e tendo a Lei n° 8.666 previsto tais hipóteses e sendo esta de aplicação subsidiária ao instituo das concessões no que tange ao seu procedimento licitatório, ficou claro que as mesmas hipóteses de dispensa previstas na Lei de Licitações se aplica a Lei de Concessões. Todavia, há divergência doutrinária nesse sentido, ficando registrada a opinião da Profª MARIA SYLVIA DI PIETRO[5], quando afirma: “Considero inaceitável esse entendimento, porque a dispensa de licitação, ao contrário da inexigibilidade, ocorre em situações em que o legislador faculta a contratação direta, embora haja possibilidade de competição. Em contrato como a concessão de serviço público, de natureza extremamente complexa, envolvendo grande volume de recursos e bens públicos, e com duração longa para permitir ao concessionário a recuperação dos investimentos, não se justifica a contratação direta, a não ser em casos de inexigibilidade de licitação. Aliás, examinando-se o elenco do art. 24 da Lei 8.666, verifica-se que as hipóteses de dispensa de licitação, válidas para outros tipos de contrato, são incompatíveis com a concessão e a permissão de serviço público”. E assim, a autora ainda destaca a legislação paulista, na Lei n° 7.835/92, na qual estão elencadas as três hipóteses de dispensa em seu art. 4°, quais sejam: No caso de guerra, grave perturbação da ordem ou calamidade pública; nos casos de emergência, quando caracterizada a urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança das pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e quando não acudirem interessados à licitação e esta não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas neste caso as condições preestabelecidas. É flagrante que tais hipóteses se configuram casos de inexigibilidade apesar de serem tratadas como dispensa, pois a competição estaria impedida por circunstâncias excepcionais e não por simples inviabilidade de competição. E ainda, o §2° determina que em tais hipóteses (incisos I e II do art. 4° da referida lei paulista) seja a concessão realizada mediante permissão, visto que esta atende aos anseios da medida excepcional por ser de natureza precária, podendo ser revogada a qualquer tempo quando cessada a necessidade que instituiu a concessão com caráter de urgência.  Conclusão O presente artigo não tem por intuito esgotar o tema e se apresenta como um norte para os acadêmicos de direito que buscam entender os aspectos da lei de licitações aplicáveis às concessões de serviços públicos. Verifica-se que há reprodução de vários artigos da lei de licitações no diploma aqui exposto, devendo ser aplicada de forma subsidiária quando diante do caso concreto na análise da concessão de serviços públicos.
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O jogo de fortuna ou azar no direito português
O Direito Português do Jogo assenta numa bipartição fundamental entre o jogo lícito e o jogo clandestino. Este último é objeto de repressão penal, ao passo que o primeiro goza das prerrogativas da legalidade. Sem embargo, o jogo legal é estreitamente controlado pelo Estado, que procura dele retirar os possíveis benefícios de cariz económico e fiscal, não deixando contudo de o encarar com uma ineludível carga de desconfiança. A posição do legislador português é assim um pouco ambígua, tratando o próprio jogo legal como uma atividade dalgum modo tolerada (mais do que abertamente admitida), o que se traduz numa regulamentação pouco linear, senão mesmo intrinsecamente nebulosa.
Direito Administrativo
Introdução O jogo de fortuna ou azar (que doravante identificaremos também, indistintamente e brevitatis causa, como jogo) continua envolto, em Portugal, num clima de nebulosos enleios, que nem a sua legalização conseguiu dissipar. Desde há muito considerado ética e socialmente reprovável por corporizar um perigoso embarque numa ilusão[1], e objeto de proibição jurídica já no Direito Romano Antigo[2], o jogo foi também criminalmente perseguido logo no Portugal Medievo; é certo que se encontra, nas Ordenações Manuelinas, uma alusão à permissão da prática dos jogos que eram jogados com tábulas em tabuleiros, a fim de não vedar estas formas de divertimento (Livro V, Título XLVIII); mas os ditos jogos com tábulas (pequenas peças redondas) em tabuleiro (mais precisamente o jogo do gamão, das damas, etc.) devem distinguir-se dos jogos de fortuna ou azar, pois os resultados daqueles não dependiam exclusivamente nem principalmente do acaso. É de notar que não existiu no Direito Português, durante muito tempo, um conceito legal de jogo de fortuna ou azar; foi com o Código Civil de 1867 que surgiu a primeira definição legal daquele, tomado como o jogo em que a perda ou o ganho dependiam unicamente da sorte e não das combinações do cálculo ou da perícia do jogador (art. 1542º, nº 2, § 1º). O jogo continuava a constituir, à data, um ilícito criminal, qualificação que foi confirmada pelo Código Penal de 1886 (artigos 264º a 269º). Mas deu-se em 1927 uma mudança na perspetiva do seu enquadramento jurídico, quando o Estado Português, admitindo que a erradicação daquele não era possível, optou por autorizar a respetiva exploração e prática sob apertada regulação e controlo. A referida mudança de regime, que ocorreu com o Decreto 14.643, de 3 de Dezembro de 1927, não se consubstanciou porém no recorte conceitual do jogo de fortuna ou azar, considerado então como aquele cujos resultados fossem inteiramente contingentes, não dependendo da perícia, destreza, inteligência ou cálculo do jogador (art. 1º). Com a supradita alteração de regime esperava-se, isso sim, contribuir para afastar da clandestinidade jogadores que perigosamente se iam acoitando em autênticos antros, para além de se alcançar um precioso meio de obtenção de apreciáveis receitas. A regulação do jogo não viria contudo a seguir os cânones legislativos habitualmente aplicáveis às demais atividades económicas, e isso quanto a variados aspetos: no tratamento sui generis previsto para as relações entre jogador e casino; na tributação especial das receitas do jogo; no confinamento do jogo a espaços afastados das vistas públicas; nas exigências de requinte dos ambientes de jogo impostas às empresas exploradoras deste; etc. A lei atualmente em vigor, que prescreve, para a qualificação dum jogo como de fortuna ou azar, que os seus resultados assentem exclusiva ou fundamentalmente no acaso (art. 1º da Lei do Jogo, aprovada pelo Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei 114/2011, de 30 de Novembro), não se afasta, nos seus traços gerais, do rumo do Decreto de 1927. Neste particular houve contudo alguma alteração, com os resultados do jogo podendo assentar não só exclusivamente, mas também fundamentalmente, no acaso; isto decerto devido à diversidade de jogos que foram sendo autorizados, muitos dos quais exigem alguma perícia por parte dos jogadores, continuando embora a ter o acaso como fator determinante do seu desfecho (e portanto enquadráveis com propriedade na categoria de jogos de fortuna ou azar). Independentemente destas precisões, interessa sublinhar, em termos gerais, que o Estado Português tem balançado entre o dever de diminuir os malefícios do jogo e a vantagem da admissibilidade deste como atividade generosa para o erário público. 1. A história jurídica próxima Como foi dito, o jogo de fortuna ou azar foi visto em Portugal, durante muito tempo, como algo endémico e socialmente reprovável em absoluto, tendo-se mantido durante séculos a sua proibição jurídica; a título de mero exemplo, basta referir que o jogador, que fizesse do jogo o seu modo de vida, não só se arriscava a ser interdito por prodigalidade (art. 340º do Código Civil de 1867), como, sobretudo, era punido como vadio (art. 264º do Código Penal de 1886). Tal estado de coisas prolongou-se até finais da segunda década do Séc. XX, altura em que, reconhecendo embora o carácter maléfico do jogo mas considerando que a respetiva inclusão no domínio da legalidade acautelaria melhor os interesses dos jogadores (e, nomeadamente, dos seus familiares), o Estado Português optou por autorizar a exploração daquele, embora de forma condicionada, passando a controlar a respetiva prática. Ocorreu assim, com o Decreto 14.643, de 3 de Dezembro de 1927, uma histórica viragem: a legalização do jogo de fortuna ou azar foi a medida de que o Estado Português lançou mão, na tentativa de contribuir para a diminuição dum flagelo cuja erradicação não havia conseguido pela via da repressão penal[3]. Apostado em transferir os jogadores dos antros de jogo clandestino para um ambiente controlado, onde a proteção dos seus interesses seria garantida pela tutela do Estado, o legislador estabeleceu, pela primeira vez, um sistema de jogo lícito[4], cuja licitude circunscreveu porém a estabelecimentos especialmente criados para o efeito (os casinos e, mais tarde, também as salas de bingo), em áreas qualificadas como zonas de jogo (artigos 2º, 3º e 4º). A exploração do jogo de fortuna ou azar passou a ser concessionada, em regime de exclusivo e por meio de concurso público (art. 6º), a empresas que, aceitando as exigentes condições contratuais impostas pelo Estado, se obrigavam a fazer nascer luxuosas construções, dotadas de espaços capazes de oferecer um alto nível de comodidade e conforto aos jogadores, ao mesmo tempo que tinham de garantir recato na prática do jogo (artigos 8º, 20º, 26º e 28º, nomeadamente). O Decreto 14.643 fornecia uma definição jurídica de jogo de fortuna ou azar, conceituando-o como aquele cujos resultados eram inteiramente contingentes por não dependerem da perícia, destreza, inteligência ou cálculo do jogador (art. 1º). E determinava que a prática deste jogo tivesse lugar exclusivamente em casinos, explorados por empresas a quem tal exploração viesse a ser concessionada; em quaisquer outras circunstâncias este jogo permanecia proibido, e a sua repressão era cometida a todas as entidades policiais e às próprias empresas detentoras do exclusivo do jogo regulamentado (art. 5º). O acesso aos locais de jogo foi vedado a certas categorias de pessoas, a saber, menores, estudantes, funcionários de certos ministérios, militares no ativo, magistrados judiciais, profissionais cujas funções implicassem ter dinheiro à sua guarda, todos os que não conseguissem fazer prova de auferirem determinados rendimentos anuais, e ainda cidadãos de outras nacionalidades que não provassem estar de passagem em Portugal (art. 32º). Tal restrição, naturalmente limitadora da liberdade de ação dos destinatários, visava porém, dum lado, afastar do meio viciante do jogo as pessoas às quais eram reconhecidas certas fragilidades ou incompatibilidades relacionadas com o exercício das respetivas funções e, doutro lado, acautelar o património dos próprios ou os patrimónios de outras pessoas ao alcance daqueles. A fiscalização das normas reguladoras da exploração e prática do jogo foi cometida aos agentes de polícia com delegação do Ministro do Interior, bem como a qualquer funcionário superior da polícia de segurança pública quando uniformizado, para além de agentes especiais do Ministério do Interior encarregados de vigiar a atividade dos empregados das concessionárias e a adequada prática do jogo em função dos interesses do Estado; em matéria tributária, a fiscalização ficou a cargo dos funcionários do Ministério das Finanças (art. 35º). A concessão da exploração da indústria do jogo implicava encargos especiais nada despiciendos. Desde logo era devida ao Estado, pelas empresas concessionárias, uma renda anual fixa, a título de contrapartida pela atribuição da concessão (art. 8º, nº 7º). Para além disso, o exercício desta indústria ficava sujeito ao pagamento do imposto de jogo, que incidia sobre o jogo efetivamente disponibilizado e sobre os lucros brutos obtidos nas bancas: esse imposto recairia sobre os jogos através de uma parcela contabilizada em função do capital em giro inicial, vale dizer, da soma da importância com que a banca se iniciava acrescida dos respetivos reforços, e de uma outra respeitante aos lucros mensais brutos das mesmas bancas; nos últimos quinze anos do prazo de cada concessão far-se-ia o apuramento total dos lucros auferidos, os quais, após deduzidos os prejuízos sofridos e os impostos pagos ao Estado pelos jogos jogados, seriam tributados segundo um figurino de taxas progressivas (artigos 44º a 51º). As empresas concessionárias do jogo tinham ainda de assumir, nos termos dos respetivos contratos de concessão, obrigações específicas relativas à construção de equipamentos como casinos e hotéis, bem como obrigações de promoção de atividades ligadas à cultura e ao lazer (art. 8º, nº 6º). Os montantes pagos ao Estado em contrapartida da exploração do jogo eram consignados, na sua maior parte, à receita geral do Estado e, em distintas e menores proporções, à assistência pública, às câmaras municipais dos concelhos das respetivas zona de jogo, às câmaras municipais das regiões de turismo oficialmente designadas, e à dotação especial das estradas de maior acesso aos centros e regiões de turismo (art. 50º). Tais verbas forneciam um precioso contributo financeiro para o processo de desenvolvimento económico-turístico das regiões de implantação do jogo. A inclusão da exploração do jogo no âmbito das atividades permitidas por lei viria a revelar-se uma medida com algumas virtudes: para além de instrumento de combate ao jogo clandestino e, por essa via, de toda a ação criminosa que frequentemente lhe é associada (branqueamento de capitais, tráfico, corrupção, etc.), a legalização do jogo viria a tornar-se, por via da tributação deste, um importante meio de angariação de receitas para o Estado. Pesem embora as alterações que sobrevieram ao texto do Decreto 14.643, pode dizer-se que a disciplina jurídica atual do jogo se mantém muito próxima do quadro delineado por aquele decreto: na verdade, como de seguida se verá, a atividade legiferante posterior incidiu essencialmente no aprofundamento da regulação e da fiscalização do jogo. 2. O regime jurídico atual O Código Civil de 1867 foi substituído pelo Código Civil de 1966, o qual, deixando de conter qualquer noção legal de jogo de fortuna ou azar, se limita a preceituar que o contrato de jogo não é válido nem constitui fonte de obrigações civis, sendo embora fonte de obrigações naturais quando lícito, exceto se nele concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade ou houver fraude do credor na sua execução (art. 1245º). Noutra disposição essencial, o Código Civil de 1966 ressalva contudo a legislação especial sobre a matéria (art. 1247º), corporizada presentemente no Decreto-Lei 114/2011, de 30 de Novembro. Este último, muito largamente baseado no Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, contém o essencial da disciplina especial atual do jogo de fortuna ou azar. Com o Decreto-Lei 114/2011 continua a ser rigidamente enquadrado o jogo lícito, cujo regime jurídico se pauta por um conjunto normativo bastante detalhado. Tal postura resulta designadamente duma certa desconfiança do legislador quanto ao fenómeno do jogo[5], que o leva a restringir, confinar e controlar estreitamente a respetiva prática: na verdade e por via de regra, aquela somente pode ter lugar em casinos, que são estabelecimentos do domínio privado do Estado ou reversíveis para este no término das concessões (art. 27º, nº 2), e que visam essencialmente, entre mais, assegurar a honestidade do jogo (art. 27º, nº 1). No Decreto-Lei 114/2011 consigna-se uma noção legal de "jogo de fortuna ou azar", cujos ingredientes definitórios revelam alguma variação relativamente ao conceito consagrado no Decreto 14.643 e mantido até ao Decreto-Lei 422/89: aponta-se na lei atual, como elemento caracterizador deste jogo, uma contingência maioritária (não absoluta) dos resultados da sua prática (art. 1º), com o que se melhorou o teor do conceito legal[6]; por outro lado, o legislador continua a não definir o que considera como "jogo"[7], embora tudo indique que tem em vista a ideia corrente de um sistema no qual um (ou mais) jogador(es) se envolve(m) num conflito artificial submetido a regras e conducente a um resultado; a lei acaba por continuar a identificar implicitamente os jogos que tem em vista, dado fazerem parte duma listagem taxativa cuja característica geral identificadora consiste em serem praticados em casinos (art. 4º). Embora não conste da noção legal, verifica-se, desde logo, que este tipo de jogo cabe nos vulgarmente chamados "jogos a dinheiro"[8], pois a lei vem dizer que os ditos jogos só podem praticar-se com a utilização efetiva de moeda com curso legal (art. 59º, nº 1), sem prejuízo de o dinheiro poder ser substituído por símbolos convencionais representativos daquele (art. 59º, nº 2). Para completar o entendimento da visão legal dos jogos de fortuna ou azar, importa ainda notar que a lei os contrapõe às "modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar", caracterizadas como sendo as operações oferecidas ao público, em que a esperança de ganho reside conjuntamente no acaso e perícia do jogador, ou somente no acaso, e que atribuem como prémios coisas com valor económico (art. 159º, nº 1); numa enumeração meramente exemplificativa, são legalmente qualificados, como tal, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (art. 159º, nº 2). A continuidade legislativa básica reflete-se outrossim no facto de o regime jurídico do jogo de fortuna ou azar se manter assente na divisão fundamental entre o jogo legal e o jogo clandestino, que ressalta com particular visibilidade dos artigos 9º, 27º, e 108º a 111º. De igual modo se mantém, como base do edifício normativo de enquadramento do jogo, a existência de zonas de jogo (quer permanente quer temporário) nas quais é assegurado o exclusivo da respetiva exploração e prática (art. 3º), bem como o recurso a concurso público para efeitos de seleção dos exploradores dessas zonas (art. 10º) e a celebração dum contrato público de concessão contendo as cláusulas consubstanciadoras dos termos da exploração do jogo (art. 9º e seguintes). Por outo lado e salvo poucas exceções, nomeadamente o caso especial do bingo (art. 8º), o jogo continua a poder ser unicamente praticado em casinos (artigos 3º e 27º, nº 1), mais precisamente nas salas de jogos dos casinos (art. 32º, nº 1).[9] A legislação atual consolida a antecedente escolha duma íntima ligação entre o jogo e o turismo[10], desdobrada numa série de vertentes que passamos a enumerar. Desde logo, a tutela do jogo compete ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo (art. 2º). Depois, as receitas fiscais advindas da exploração do jogo, fundamentalmente consubstanciadas no imposto especial de jogo, revertem na sua larga maioria (77,5%) para um organismo do Estado que apoia o sector do turismo (art. 84º). Por ocasião de manifestações de relevante interesse turístico, o membro do Governo da tutela pode autorizar a exploração e a prática fora dos casinos de jogos não bancados (art. 7º, nº 1); e, em localidades onde a atividade turística seja predominante, o membro do Governo da tutela pode autorizar a exploração e a prática do jogo em máquinas de fortuna ou azar em estabelecimentos hoteleiros ou complementares (art. 7º, nº 2); tudo isto, portanto, em derrogação da proibição da prática do jogo fora dos casinos. As concessionárias têm ademais obrigação de levar regularmente a cabo, nos casinos, programas de animação de bom nível artístico (art. 16º, nº 1, al. a)). As concessionárias têm outrossim obrigação de promover e organizar manifestações turísticas, bem como de colaborar nas iniciativas oficiais de idêntica natureza, e também de subsidiar ou realizar a promoção das respetivas zonas de jogo no estrangeiro (art. 16º, nº 1, al. b)). Os empreendimentos turísticos previstos nos contratos de concessão podem usufruir dos benefícios inerentes à figura da utilidade turística (art. 18º, nº 3). Os casinos visam fundamentalmente, para além do resto, proporcionar uma oferta turística de alta qualidade (art. 27º, nº 1): devem satisfazer, mais precisamente, os requisitos de funcionalidade, conforto e comodidade próprios dum estabelecimento turístico de categoria superior (art. 27º, nº 5). Para além disso deve ser assegurado, nas salas de jogo, um bom nível social e turístico (art. 76º, nº 2, al. d)). E finalmente, pelo que toca ao destino das receitas fiscais do jogo arrecadadas pelo Estado, pode fazer-se uma associação direta ou indireta ao turismo no concernente a 77,5 % dessas receitas (art. 84º, nº 3). Prevê a lei, ainda, uma certa ligação entre o jogo e a assistência social, ao prescrever que certas quantias oriundas do mundo do jogo revertam para a assistência social: é assim que as importâncias ou fichas encontradas no chão, deixadas sobre as mesas ou abandonadas no decurso da partida e cujo dono não seja possível determinar, serão entregues às misericórdias (art. 66º, nº 1); e também será dado igual destino às quantias das paradas em divergência quando, não sendo possível identificar o verdadeiro dono, os litigantes não cheguem a acordo até ao momento de se iniciar o golpe seguinte (art. 66º, nº 2); prevê-se igualmente que tais disposições são aplicáveis a situações idênticas ocorridas nas salas privativas de máquinas e do jogo do bingo (art. 66º, nº 5). Pode ainda falar-se dum certo elitismo do jogo legal, embora ligeiramente menos enfatizado no cotejo com tempos anteriores, pois já não tem lugar uma rotunda imposição de características luxuosas dos casinos. A lei atual pretende garantir mais exatamente, em termos gerais, a comodidade dos jogadores (art. 27º, nº 1), acrescentando que os casinos devem satisfazer os requisitos de funcionalidade, conforto e comodidade próprios dum estabelecimento turístico de categoria superior (art. 27º, nº 5); e decretando, para além doutras particulares imposições (art. 29º, nº 2, al. e), art. 30º, nº 1 e art. 96º, nº 2), que a abertura à exploração de salas, bancas, máquinas ou grupos de máquinas deve ter em conta o imperativo de assegurar a comodidade dos jogadores (artigos 54º e 55º, nº 2). Preceitua-se ainda que as concessionárias devem fazer executar regularmente nos casinos, nas dependências para tal destinadas, programas de animação de bom nível artístico (art. 16º, nº 1, al. b))[11]. Dentro da mesma ordem de ideias incide também, sobre os trabalhadores em serviço nas salas de jogos, o dever especial de cuidarem da sua boa apresentação pessoal (art. 82º, al. c)). Portugal não optou todavia pelo modelo dos mega-casinos, contrariamente ao que tem sido seguido ou proposto noutros Estados[12]. A exploração e a prática do jogo encontram-se sujeitas a uma especial inspeção tutelar do Estado (art. 95º, nº 1), caracterizada nomeadamente pela circunstância de o serviço de inspeção em cada casino ser permanente (art. 97º, nº 1), traduzindo pois uma fiscalização apertada do próprio jogo legal. Verificam-se também, no atual diploma regulador do jogo, variadas restrições pessoais de contacto com o jogo legal, seja por proibição da própria frequência dos locais de jogo, seja por proibição da prática do jogo. Prevêem-se desde logo, numa enumeração exemplificativa, proibições pessoais de frequência dos próprios casinos, abrangendo: no período sequente às 22 horas, os menores de 14 anos, exceto quando maiores de 10 anos e acompanhados pelos respetivos encarregados de educação (art. 29º, nº 2, al. a))[13]; as pessoas que não manifestem a intenção de utilizar ou consumir os serviços prestados nos casinos (art. 29º, nº 2, al. b)); as pessoas que recusem, injustificadamente, o pagamento dos serviços utilizados ou dos bens consumidos (art. 29º, nº 2, al. c)); as pessoas que possam causar cenas de violência, distúrbios do ambiente ou causar estragos (art. 29º, nº 2, al. d)); as pessoas que possam incomodar os demais utentes do casino com o seu comportamento e apresentação (art. 29º, nº 2, al. e)); as pessoas que sejam acompanhados por animais, exerçam a venda ambulante ou prestem serviços (art. 29º, nº 2, al. f)); e, genericamente, as pessoas que deem azo a indícios suficientes da inconveniência da sua presença nos casinos (art. 29º, nº 3). Prevêem-se ademais, noutra enumeração meramente exemplificativa, proibições de acesso às salas de jogos dos casinos, visando: os menores de 18 anos (art. 36º, nº 2, al. a)); os incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta, desde que não tenham sido reabilitados (art. 36º, nº 2, al. b)); os membros das Forças Armadas e das corporações paramilitares, de qualquer nacionalidade, quando se apresentem fardados (art. 36º, nº 2, al. c)); os trabalhadores das concessionárias que prestam serviço em salas de jogos, quando não em serviço (art. 36º, nº 2, al. d)); os portadores de armas, engenhos ou matérias explosivas e de quaisquer aparelhos de registo e transmissão de dados, de imagem ou de som (art. 36º, nº 2, al. e)); e as pessoas que deem azo, em termos gerais, a indícios suficientes da inconveniência da sua presença nas salas de jogos dos casinos (art. 37º, nº 2). Existem ainda proibições de acesso às salas de jogos dos casinos determinadas oficiosamente pelas autoridades fiscalizadoras do jogo, ou sequentes a pedidos dos próprios jogadores, ou então sequentes a pedidos das concessionárias (art. 38º). Mas não se vislumbram, por outro lado, restrições específicas à prática do jogo por pessoas estranhas ao funcionamento dos casinos e autorizadas a aceder às respetivas salas de jogos. A lei prescreve que é proibido fazer empréstimos nas salas de jogos ou em outras dependências ou anexos dos casinos (art. 60º, nº 1). Nessa conformidade veda designadamente que os trabalhadores afetos às salas de jogos façam empréstimos nos casinos (art. 83º, nº 1, al. b)), determinando preventivamente que esses trabalhadores são obrigados a usar, em serviço, o trajo aprovado pela concessionária, o qual, excetuando um pequeno bolso exterior de peito, não pode ter quaisquer bolsos (art. 83º, nº 1, al. c)). Com esta rigorosa proibição de empréstimos para jogo parece ter-se elegido, como objetivo principal, o de procurar contrariar-se qualquer tendência dos jogadores para eventuais prosseguimentos insensatos da prática do jogo, defendendo-os contra impulsos próprios compulsivos a jogar[14]. O jogo clandestino é, por seu turno, alvo duma clara repressão, operada em algumas frentes: a exploração do jogo levada a cabo fora dos locais legalmente autorizados é qualificada como crime e punida com pena de prisão (art. 108º, nº 1); é igualmente qualificada como crime, e punida com pena de prisão, a prática do jogo fora dos locais legalmente autorizados (art. 110º); e incorre também numa pena de prisão, por conduta criminosa, quem for encontrado em local de jogo ilícito e por causa deste (art. 111º). Nos últimos anos vem-se assistindo, internacionalmente, à tendência para uma crescente tolerância ao jogo a dinheiro[15], tendo esta expansão mundial do jogo gerando uma próspera indústria[16]. Todavia, dados os inúmeros malefícios associados ao jogo[17], existem motivos ponderosos para o restringir ou mesmo, na opinião de alguns, para o proibir[18]. A lei portuguesa mantém a escolha da via não proibitiva, associada porém a um forte condicionamento da exploração e prática do jogo legal. Como vantagens importantes da permissão do jogo legalmente admitido podem apontar-se uma maior fiscalização da sua prática, bem como a contribuição daquele para a dinamização da economia e para o aumento das receitas fiscais[19], adicionadas à subtração de certos jogadores às tentações do jogo marginal. E a favor duma admissibilidade moderada do jogo pode aduzir-se o considerando de que nem todos os males sociais provêm necessariamente daquele[20]. Conclusão O regime jurídico português do jogo de fortuna ou azar assenta, desde os anos vinte do século passado, na fundamental bipartição entre jogo legal e jogo clandestino. O jogo clandestino é alvo de repressão penal: é criminalizada a exploração do jogo bem como a sua prática, fora dos locais legalmente autorizados; e incorre também em conduta criminosa quem for encontrado em local de jogo ilícito e por causa deste. O jogo lícito não se encontra liberalizado: é objeto dum enquadramento estrito, devido a alguma desconfiança do legislador quanto ao fenómeno geral do jogo, a qual conduz a lei a restringir e controlar apertadamente o próprio jogo legal. Como base do edifício normativo deste último lobrigam-se três pilares: a existência de zonas de jogo, onde é assegurado o exclusivo da sua exploração e prática; o recurso a concurso público para seleção dos exploradores das zonas, ligado à celebração dum contrato público de concessão para a respetiva exploração; e, salvo poucas exceções, a permissão do jogo unicamente em casinos. Para além disto, a exploração e a prática do jogo legal encontram-se sujeitas a uma especial e apertada fiscalização, contando-se, mais especificamente, a proibição da celebração de empréstimos nos casinos (parecendo procurar contrariar-se assim eventuais impulsos excessivos a jogar, que seriam fortemente alimentados por tais empréstimos). Sem embargo, e num sentido algo contraditório, pode falar-se todavia dalgum elitismo do jogo legal, manifestado designadamente no imperativo de que os casinos satisfaçam os requisitos próprios de estabelecimentos turísticos de categoria superior. Existem, por outro lado, variadas restrições pessoais de acesso ao jogo legal, assentes em dissonantes posturas do legislador: manifestação de reserva face ao mundo do jogo; preocupação com a comodidade dos jogadores e com uma boa ambiência dos casinos; consideração implícita do jogo como uma realidade menos digna; e também, entre mais, receio de inseguranças derivadas da atividade do jogo. Realça-se finalmente uma profunda ligação entre o jogo e o turismo, desdobrada em várias vertentes, como as identificadas nos seguintes pontos: tutela do jogo (atribuída ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo); receitas fiscais da exploração do jogo (revertendo em larga maioria para um organismo do Estado que apoia o sector do turismo); dever das concessionárias de realização de manifestações turísticas e de promoção das respetivas zonas de jogo; e obrigação, incidente sobre os casinos, de proporcionarem uma oferta turística de alta qualidade. Prevê-se ainda uma ligação entre o jogo e a assistência social, embora bastante menor, ao prescrever-se que certas quantias oriundas do mundo do jogo revertam para a assistência social. Pode dizer-se, num balanço, que o Direito Português admite o jogo, condicionando porém fortemente a sua exploração e prática. O jogo é simultaneamente visto como portador dalguns benefícios (nomeadamente económicos e fiscais), mas também de vertentes nocivas, senão mesmo perigosas. E, apesar de se lhe apontar algum elitismo, é outrossim encarado como roçando a zona cinzenta das realidades sociais menos confessáveis. O legislador português revela afinal, sobre um pano de fundo algo equívoco, uma posição pouco espontânea e compromissória.
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Princípio da motivação e controle do poder estatal
O presente estudo pretende iniciar uma reflexão acerca do princípio da motivação e sua importância para o controle do poder estatal. Serão abordados os aspectos históricos da formação do Estado Democrático de Direito e suas consequências no âmbito social e jurídico discutindo os limites legais a serem respeitados pela Administração Pública e a problemática originada pelo escasso controle social
Direito Administrativo
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, referido princípio encontra-se implícito tanto no art. 1°, II, indicando a cidadania como um dos fundamentos da República, quanto em seu parágrafo único, o qual define que todo poder emana do povo, como ainda no art. 5°, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito. [1] O princípio da motivação é a justificativa dos atos administrativos praticados a partir da exposição dos fatos (pressupostos de fato), que ensejam o ato e seus preceitos jurídicos (pressupostos de direito), que autorizam sua prática.[2] A maioria dos juristas entendem o princípio da motivação como dever, uma vez que é pressuposto lógico para o exercício do controle social e jurídico, garantindo a eficácia e validade do ato administrativo. O primeiro artigo da Carta Magna vigente dispõe que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, o que formaliza no texto constitucional o processo de redemocratização vivida pelo Estado brasileiro após a ditadura militar (1964 a 1985). Longe de ser uma ruptura com o antigo regime, essa transição foi marcada pela heterogeneidade política e entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas[3], misturadas com a adoção de valores democráticos. Dentre tais valores, a submissão de todos à vontade da lei, certamente indica uma vitória da democracia sobre o autoritarismo estatal, uma vez que permite a salvaguarda os direitos e liberdades individuais. Para entender o significado do Estado Democrático de Direito, é importante lembrar que ele é produto de uma série de fatos históricos e revoltas sociais ocorridas durante séculos, envolvendo a queda do absolutismo, consolidação do liberalismo econômico, sucessivas revoluções sociais contra a lógica do capital e posterior intervenção do Estado na economia, a fim de garantir o mínimo de bem estar social. Assim, a tripartição dos poderes idealizada por Montesquieu, a garantia aos direitos fundamentais, o sufrágio universal e o respeito à soberania popular são consequências de várias transformações sociais e políticas, culminando nos princípios e valores consolidados no texto constitucional vigente. Desse modo, a lei torna-se o principal instrumento de afirmação dos interesses coletivos, substituindo a vontade individual do governante, que deve submeter-se às regras, além de prestar contas àqueles que o elegeram. O emérito professor Hely Lopes Meirelles bem assevera que: “No Direito Público, o que há de menos relevante é a vontade do administrador. Seus desejos, suas ambições, seus programas, seus atos, não têm eficácia administrativa, nem validade jurídica, se não estiverem alicerçados no Direito e na Lei”.[4] Portanto, o direito público também é forma de controle de atuação dos três poderes, mas segundo Marçal Justen Fillho esse controle se estende inclusive àqueles que não sendo instituições estatais atuem na seara dos direitos fundamentais.[5] Ainda sobre o processo democrático, José Afonso da Silva ensina que: “A democracia que o Estado de Democrático de Direito realiza há de ser processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (Art. 3°, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (Art. 1°, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo”.[6] Desse modo, verifica-se que a participação popular é indispensável para o amadurecimento da democracia, na medida em que controla a atuação dos agentes governamentais e fiscaliza o cumprimento da lei. Daí também a importância do princípio publicidade para o controle de legalidade, sendo que Nesse sentido, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LC n° 101/00, prevê uma seção intitulada “Da Transparência da Gestão Fiscal”, na qual explicita as formas de participação popular no controle do orçamento, incluindo a obrigatoriedade de publicação dos dados de execução orçamentária em meios eletrônicos[7] Assim, o modelo burocrático de gestão da res publica vem sendo substituído pelo modelo gerencial, no qual se pretende atender às necessidades do cidadão contribuinte de forma eficiente, oferecendo serviços de boa qualidade a baixo custo. Nesse modelo, além de beneficiário, o cidadão é responsável pela fiscalização do serviço público. O professor Idalberto Chiavenato, ao dissertar sobre o modelo gerencial, defende que: “(…) os cidadãos teriam, além de direitos, obrigações perante à sociedade, tais como a fiscalização da res publica, vindo a cobrar, inclusive, que os maus gestores sejam responsabilizados (accountability) por atos praticados com inobservância da legislação ou do interesse público”[8].   Contudo, esse controle de legalidade dos atos emanados pela Administração Pública durante o exercício de suas funções executivas somente pode ser realizado se presentes os motivos que fundamentam a decisão proferida. Nesse sentido, Lucia Vale Figueiredo explica que:” A motivação, como forma de controle da atividade administrativa, é de extrema importância. Aqui lembro frase feliz de Benthan, citada por Michelle Taruffo: “good decisions are such decisions for which good reasons can be given” (“boas decisões são aquelas decisões para as quais boas razões podem ser dadas”.[9] No Brasil, ainda que haja previsão legal de instrumentos de controle, tais como direito de petição (artigo 5°, XXXIV, CF/88), remédios constitucionais e criação de ouvidorias em diversos órgãos públicos, ainda não se tem implantada a cultura da participação popular na gestão pública, o que torna o controle social muito pouco efetivo. Essa falta de autoridade do controle social faz com que a limitação do poder estatal seja realizada majoritariamente pelo poder judiciário. Segundo Marçal Justen Fillho: “Quanto menos eficientes os controles sociais para disciplinar a conduta dos agentes estatais, mais relevante se torna o controle jurídico formal. Quando o governante não encontra limites no mero relacionamento com os cidadãos e as organizações da sociedade, caberá ao direito impor tais limites”.[10] Ainda que a Constituição de 1988 tenha sido um passo importante para implantação de valores democráticos, há um longo caminho a ser percorrido no tocante ao controle da atividade estatal por parte da sociedade. Isso porque quanto maior for a participação e fiscalização popular, maior será o amadurecimento da democracia, na medida em que vincula a Administração Pública ao atendimento do interesse coletivo, responsabilizando-o pelas eventuais ilegalidades. Não há dúvida, portanto, que o respeito ao princípio da motivação é pressuposto não só para o exercício do controle social, mas também do controle judicial, já que a exposição dos motivos que fundamentam as decisões tomadas pelos gestores públicos possibilita a verificação da legalidade e atendimento ao interesse público.
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O instituto da desapropriação e seus aspectos gerais
este artigo tem o objetivo de abordar o instituto da desapropriação. Para que essa finalidade seja cumprida, mesmo que de maneira simples, algumas das principais características do tema foram abordadas. Além disso, o tema é de extrema relevância no meio acadêmico e na prática jurídica, de forma geral. Portanto, durante o trabalho, o leitor terá uma visão global do instituto da desapropriação.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A desapropriação é um instituto do direito público, sendo o meio pelo qual é exercitado o direito constitucional de prevalência do interesse coletivo sobre o do indivíduo (LEITE, 1967). Historicamente, este instituto foi introduzido no direito brasileiro por influência do direito português, derivando, assim, a primeira regra constitucional sobre o tema na Constituição Imperial de 1824, a qual dispunha em seu artigo 179, XXII: “É assegurado o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade privada do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização”. Assim, nos primeiros momentos em que o Estado começou a se utilizar dos instrumentos de intervenção na propriedade privada, percebe-se que muitos atos de autoritarismo foram cometidos, tendo a própria desapropriação, sua origem pautada no confisco estatal. Nesse contexto, o instituto da desapropriação se consagrou no ordenamento jurídico brasileiro e no advento das constituições seguintes. Atualmente, pode-se dizer que a desapropriação ou expropriação é a mais agressiva forma de intervenção do Estado na propriedade privada, pois se trata de um procedimento excepcional de transformação compulsória de bens privados em públicos, mediante o pagamento de indenização, o qual varia conforme a modalidade expropriatória realizada. Dessa maneira, para dirimir eventuais conflitos nos atos de intervenção realizados pela Administração Pública, a figura do Poder Judiciário mostra-se de suma importância. Contudo, o citado instituto não deve ser confundido com a denominada desapropriação privada, prevista no artigo 1.238, parágrafo 4°, do Código Civil, que na verdade representa uma hipótese de usucapião, instituto do Direito Civil, enquanto o instituto da desapropriação, aqui estudado, representa uma figura tradicional do Direito Administrativo. Nesse diapasão, a intervenção do Estado na propriedade privada é assunto de elevada importância no Direito Brasileiro, vez que se trata de matéria corriqueira dentro da Administração Pública, sendo assim, um tema cotidiano e de extrema relevância para a vida do Estado e dos particulares afetados por suas condutas. 1.1. Panorama histórico-evolutivo No contexto histórico, a propriedade caracterizava-se por ser coletiva, alterando-se esta situação com o fim do nomadismo, quando se transformou paulatinamente em propriedade privada. Assim, no século XVIII, nos primórdios da Revolução Francesa, o Estado iniciou intensas restrições à propriedade, como forma de rejeição ao sistema feudal então vigente. Enquanto isso, em 1789 a “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão” trazia uma concisa proteção à propriedade, ao tratá-la como um “direito inviolável e sagrado”. Já no Brasil, a proteção à propriedade privada iniciou-se com uma lei de 21 de maio de 1821, a qual dispunha que à propriedade não seria retirada pelo Estado, quaisquer que fossem suas necessidades, se antes não fosse ajustado o preço a se pagar ao proprietário pelo Estado, pagamento este que deveria ser feito no ato da entrega do bem. No âmbito constitucional, logo em nossa primeira Constituição, na Imperial de 1824, o tema ganhou amparo, garantindo-se o direito de propriedade em sua plenitude, devendo-se indenizar, previamente, o valor do imóvel, caso o Estado necessite utilizar-se deste, conforme estabelecia o artigo 179, inciso XXII, da Imperial. Dessa maneira, as seguintes Constituições brasileiras deram guarida ao tema, passando-se a exigir, com a Constituição de 1934, indenização prévia e justa do Estado.  Ainda na vigência desta Constituição de 1934, foi editado o Decreto-Lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941, que disciplina as desapropriações por utilidade pública até os dias atuais. Já a Emenda Constitucional n° 10, de 9 de novembro de 1964, instituiu a modalidade de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, permitindo-se a indenização em títulos da dívida pública, quando o imóvel a ser desapropriado tratar-se de um latifúndio, tal como definido em lei, porém as benfeitorias necessárias e úteis realizadas no bem deveriam ser pagas em dinheiro (DI PIETRO, 2010, p. 157 a 159). Com a Ditadura Militar, através do Ato Institucional n° 9, de 24 de abril de 1969, deixou-se de exigir que a indenização fosse prévia na desapropriação por reforma agrária. Chegando a nossa atual Constituição, esta acrescentou uma nova modalidade de desapropriação por interesse social, a ser realizada pelo Município, e o pagamento desta deve ser feito em títulos da dívida pública, pois incide sobre imóveis que não atendam a função social da propriedade, conforme versa o artigo 182, parágrafo 4°, inciso III, da Constituição Federal de 1988: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.(…) § 4º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:(…) III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. No tocante a nossa Carta Magna, esta ainda trouxe a previsão de uma hipótese de desapropriação sem indenização, quando as terras forem utilizadas para o cultivo de plantas psicotrópicas legalmente proibidas, nos termos do artigo 243, da Constituição Federal de 1988, disciplinada pela Lei n° 8.257, de 26 de novembro de 1991: “As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Ainda no âmbito da Constituição, em seu artigo 5°, inciso XXIII, logo após consagrar o direito à propriedade, estabelece que esta, deve atender a função social. Logo, ansiando o bem comum através da função social da propriedade, o Estado criou diversos instrumentos de intervenção sobre a propriedade privada, dentre elas a desapropriação. 1.2. Conceito Podemos conceituar desapropriação como forma de aquisição compulsória e originária da propriedade pelo Estado ou por quem esteja fazendo às vezes dele, para implementação de interesses públicos ou sociais mediante indenização, via de regra em dinheiro e previamente ou fruto de aplicação de sanção. Nesse contexto, a origem da palavra desapropriação é latina (propriu), sendo um vocábulo parassintético, ou seja, formado pela adição simultânea do prefixo e sufixo ao radical próprio: a) des – prefixo que apresenta ideia de afastamento; b) a – que indica passagem de estado; c) cão – sufixo formador de nomes de ação ou resultado de ação em palavras derivadas de verbo; e d) próprio – radical (SALLES, 1980). Assim, desapropriação significa privar alguém de sua propriedade, possuindo natureza jurídica de procedimento administrativo, de acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro: “Desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização, sendo que desse conceito abstrai-se cinco características do instituto: a) aspecto formal, com a menção de um procedimento; b) o sujeito ativo: Poder Público ou seus delegados; c) os pressupostos: necessidade pública, utilidade pública ou interesse social; d) o sujeito passivo: o proprietário do bem; e) o objeto: perda de um bem; f) a reposição do patrimônio expropriado por meio de justa indenização” (DI PIETRO, 2010, p.153). 1.3. Fundamentos da desapropriação Podemos subdividir os fundamentos da desapropriação em jurídico, político, normativo constitucional e normativo infraconstitucional. Dessa forma, o fundamento jurídico da desapropriação consiste no reflexo dos princípios políticos acolhidos pelo ordenamento normativo. Já o fundamento político do poder de suprimir compulsoriamente a propriedade privada decorre, em primeiro lugar, do domínio eminente (dominium eminens) que o Estado exerce sobre todos os bens situados em seu território.  Além disso, a competência expropriatória encontra respaldo, também, no supraprincípio da supremacia do interesse público sobre o particular, quando ocorrer uma incompatibilidade entre eles, bem como na necessidade de que todo imóvel atenda a função social da propriedade. Quanto ao fundamento normativo constitucional temos diversos dispositivos na Constituição Federal de 1988 que tratam do tema desapropriação: a) artigo 5°, inciso XXIV: define os três fundamentos ensejadores da desapropriação : necessidade pública, utilidade pública e interesse social. Somado a isso, determina que, como regra geral, a indenização deve ser prévia, justa e em dinheiro; b) artigo 22, inciso II: fixa a competência privativa da União para legislar sobre o assunto; c) artigo 182, parágrafo 4°, inciso III: permite ao Município que promova desapropriação sancionatória urbanística do imóvel não edificado, subutilizado ou não utilizado, com pagamento mediante títulos da dívida pública com prazo de resgate em até dez anos; d) artigo 184: defini a competência exclusiva da União para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, resgatáveis no prazo de até vinte anos; e) artigo 184, parágrafo 5°: embora o dispositivo fale em “isenção”, na verdade a referida norma delimita a imunidade tributária de impostos federais, estaduais e municipais sobre operações de transferência de imóvel desapropriado para fins de reforma agrária; f) artigo 185: impede que a desapropriação para reforma agrária recaia sobre a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra e em caso de propriedade produtiva; g) artigo 243: prevê o confisco de glebas utilizadas para o plantio ilegal de plantas psicotópicas empregadas na produção de drogas, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções.      Agora, no plano infraconstitucional, temos diversos diplomas sobre o tema, sendo eles: a) Decreto-Lei n° 3.365/41: disciplina as desapropriações por necessidade e utilidade pública, sendo considerada a lei básica sobre o tema; b) Lei n. 4.132/62: disciplina desapropriações por interesse social; c) Decreto-Lei n° 1.075/70: dispõe sobre imissão na posse initio litis em imóveis desapropriados urbanos; d) Lei Complementar n° 76/93 combinada com a Lei n° 8.629/93: disciplina desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária; e) Lei Complementar n° 101/00: artigo 46 – torna nula de pleno direito o ato de desapropriação de imóvel urbano expedido sem atender o disposto no artigo 182, parágrafo 3º, da Constituição Federal ou sem prévio depósito judicial do valor da indenização; f) Lei n° 8.257/91: expropriação de terras usadas para cultivos ilegais, sem indenização; g) Lei n° 3.833/60: disciplina a desapropriação por utilidade pública para execução de obras no Polígono da Seca, adotando regime especial para fins do pagamento da indenização; h) Lei n° 10.257/01 (Estatuto da Cidade): regulamenta a desapropriação urbanística, de competência do Município, como importante instrumento de política urbana; i) Lei n° 10.406/02 (Código Civil): este diploma possui diversos dispositivos tratando do tema desapropriação, entre eles: 1) artigo 519 (defini um caso de tresdestinação lícita, ao permitir que o bem expropriado receba destinação diversa daquela inicialmente prevista no decreto expropriatório); 2) artigo 1.228, parágrafo 3° (refere-se à desapropriação como forma de privação da propriedade); 3) artigo 1.257 (inclui a desapropriação entre os institutos de perda da propriedade). Não obstante, ainda tratam do assunto diversas súmulas do Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, quais sejam: a) Súmulas do STF: 164 (juros compensatórios); 345 (desapropriação indireta); 416 (indenização); 561 (correção monetária); 618 (juros compensatórios); b) Súmulas do STJ: 12 (juros compensatórios e moratórios); 56 (juros compensatórios); 67 (correção monetária); 69 (juros compensatórios); 70 (juros moratórios); 102 (juros moratórios e compensatórios); 113 (juros compensatórios na desapropriação direta); 114 (juros compensatórios na desapropriação indireta); 119 (prazo prescricional da desapropriação indireta); 131 e 141 (honorários advocatícios); 408 (juros compensatórios). 1.4. Natureza jurídica A desapropriação possui natureza jurídica de procedimento administrativo, que consiste em um conjunto ordenado de atos administrativos. Por este motivo, a desapropriação não pode ser tratada como um ato jurídico isolado ou um fato administrativo, nem mesmo como processo administrativo. Somado a isso, ao afirmar que a desapropriação é um processo administrativo, reforça-se a ideia de que a referida sequência de atos encontra-se submetida diretamente à incidência dos princípios e normas do Direito Administrativo, e não de outro ramo jurídico. Dessa maneira, entende Hely Lopes Meirelles e Maria Sylvia Zanella di Pietro, que ao conceituar o instituto da desapropriação, a ele se refere como procedimento administrativo: “Desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização” (DI PIETRO, 2002, p. 153). Contudo, Marçal Justen Filho possui entendimento diverso, lecionando ser a desapropriação um ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade: “A desapropriação não é um procedimento, mas um ato. Esse ato pressupõe, de modo inafastável um procedimento prévio. A desapropriação é o ato final desse procedimento” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 612). 1.5. Pressupostos De acordo com os artigos 5˚, inciso XXIV e 184 da Constituição Federal, são pressupostos da desapropriação: necessidade pública, utilidade pública e interesse social. Nesse contexto, as hipóteses de necessidade pública envolvem situações de emergência, que tornam imprescindível a transferência de bens de terceiros para o domínio público, propiciando o imediato uso pela Administração Pública. Entretanto, não há em nosso ordenamento jurídico uma lei disciplinando especificamente os casos de desapropriação nesta modalidade, porém o artigo 5˚, alíneas “a”, “b” e “c”, do Decreto-Lei n° 3.365/41, prevê algumas hipóteses que melhor se enquadrariam como necessidade pública, tais como: segurança nacional, defesa do Estado e socorro público em casos de calamidade. Importante ressaltar, que nos casos de desapropriação por necessidade pública, o pedido de imissão provisória na posse é indispensável, diante da urgência da situação concreta. Quanto aos casos de desapropriação por utilidade pública, tais ocorrem quando a aquisição do bem for conveniente e oportuna, mas não indispensável, como se dá na hipótese anterior. Dessa forma, as hipóteses de utilidade pública para fins de desapropriação estão previstas no artigo 5˚, do Decreto-Lei n° 3.365/41, sendo elas: a) segurança nacional; b) defesa do Estado; c) socorro público em caso de calamidade; d) salubridade pública; e) criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; f) aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica; g) assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais; h) exploração ou a conservação dos serviços públicos; i) abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais;         j) funcionamento dos meios de transporte coletivo; k) preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; l) preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artístico; m) construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios; n) criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves; o) reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária; p) demais casos previstos por leis especiais. Convém mencionar, que embora o citado artigo seja considerado como rol legislativo das hipóteses de utilidade pública, as três primeiras hipóteses nele referidas (segurança nacional, defesa do Estado e socorro público em caso de calamidade) são doutrinariamente consideradas hipóteses de necessidade pública, como dito anteriormente. Já a desapropriação por interesse social, esta será decretada, de acordo com o artigo 1˚, da Lei n° 4.132/65, para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social. Assim, esta modalidade de desapropriação possui caráter eminentemente sancionatório, sendo uma punição ao proprietário do imóvel que descumpre a função social da propriedade, podendo incidir, portanto, apenas sobre bens imóveis. Nesta esteira, os bens desapropriados por interesse social não são destinados a Administração Pública, mas à coletividade ou a determinados destinatários legalmente definidos, sendo que a indenização não é paga em dinheiro, é paga em títulos da dívida pública, sendo resgatável em dez anos, se for urbana e em vinte anos se for rural. O artigo 2˚, da Lei n° 4.132/62, considera-se interesse social: I. aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico; II. estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola; III. manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias; IV. construção de casa populares; V. terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas; VI. proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais; VII utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas. Cumpre ainda destacar, que a Lei Complementar n° 76/93 estabelece procedimento contraditório especial de rito sumario para a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Devemos ainda colocar em pauta, as diferenças entre desapropriação por utilidade pública e por interesse social. Assim, além das diferentes hipóteses legais que autorizam o poder expropriatório, temos ainda diversos prazos de caducidade, que no caso de utilidade e necessidade pública será de cinco anos, enquanto por interesse social, o prazo será de dois anos, e por fim a competência para desapropriar também diverge, pois podem desapropriar por utilidade e necessidade pública a União, Estados, Municípios e Distrito Federal, já por interesse social a competência será exclusiva da União, se o proprietário descumprir a função da propriedade rural (artigo 186, da Constituição Federal) ou exclusiva dos Municípios, se o proprietário descumprir a função social da propriedade urbana (artigo 182, parágrafo 2˚, da Constituição Federal). 1.6. Objeto da desapropriação O artigo 2˚, caput, do Decreto-Lei n° 3.365/41 estabelece como objetos suscetíveis  de desapropriação: “Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios”. Dessa maneira, todo bem, imóvel ou móvel, corpóreo ou incorpóreo, pode ser objeto da desapropriação, inclusive o espaço aéreo e o subsolo. Quanto aos bens públicos, estes também poderão ser desapropriados, porém deve se observar algumas condições, quais sejam: a União é competente para desapropriar bens dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios; já os Estados, Distrito Federal e Territórios poderão desapropriar bens dos Municípios, devendo preceder, em qualquer caso, de autorização legislativa, conforme dispõe o artigo 2˚, parágrafo 2˚, do Decreto-Lei n° 3.365/41. Há ainda uma vedação legal para que os Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios desapropriem ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República, segundo versa o parágrafo 3˚, do já citado artigo 2˚, do Decreto-Lei n° 3.365/41. No tocante aos bens pertencentes às entidades da Administração Indireta, deve se aplicar, por analogia, o mesmo artigo 2˚, do Decreto-Lei n° 3.365/41 sempre que se trate de bem afetado a uma finalidade pública, sendo assim, insuscetível de desapropriação por entidade política menor. Nesse sentido, quando se trata de desapropriação para fins de reforma agrária, o objeto da mesma será o imóvel rural que não atenda a sua função social definida pelo artigo 186, da Constituição Federal, sendo vedada esta modalidade de desapropriação, nos termos do artigo 185, da Constituição Federal, sobre: a) Pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; b) Propriedade produtiva. Já quanto à modalidade expropriatória prevista no artigo 182, parágrafo 4˚, da Constituição Federal, esta somente incidirá sobre o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, e desde que seu proprietário não tenha cumprido as exigências previstas no mesmo dispositivo legal. Por fim, resta mencionar os bens insuscetíveis de desapropriação, que são os direitos personalíssimos, tais como à honra, a imagem, a liberdade, à vida, dentre outros; são ainda insuscetíveis ao dinheiro, moeda corrente no País, por ser este o próprio meio de pagamento da indenização pela perda da propriedade, porém se admite que moedas raras sejam desapropriadas; e ainda as pessoas não são desapropriáveis, mas apenas bens e direitos acionários relativos a elas, bem como os bens móveis comuns, por significar tal conduta fraude ao dever de licitar. Nesse sentido, assim leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto sobre os bens objeto deste instituto: “A doutrina inclui, ainda, acertadamente, bens das missões diplomáticas, os que se tornarem inalienáveis por ato jurídico, os bem móveis temporariamente situados no estrangeiro, as ações de sociedades anônimas e os direitos autorais; por outro lado, exclui o cadáver e o dinheiro” (moeda corrente do País) (MOREIRA NETO, 1976, p. 294). 1.7. Sujeito ativo e passivo da desapropriação O sujeito ativo da desapropriação é aquele que, nos termos da Constituição e da legislação ordinária, é atribuído o direito subjetivo de expropriar, o que se faz pela declaração de utilidade pública ou interesse social do bem. Assim, o Decreto-Lei n° 3.365/41, em seu artigo 2˚, estabelece como sujeitos ativos da desapropriação por utilidade pública a União, Estados, Distrito Federal, Municípios e Territórios. Já a desapropriação por interesse social, se possuir fundamento no artigo 182, parágrafo 4˚, da Constituição Federal, regulamentada pela Lei n° 10.257/01 (Estatuto da Cidade), será de competência exclusiva dos Municípios. Agora, se for fundamentada no artigo 184, da Constituição Federal, que é a modalidade de desapropriação para fins de reforma agrária, disciplinada pela Lei n° 4.504/64 e pela Lei Complementar n° 76/93, será de competência exclusiva da União. Porém, se for a hipótese do artigo 5˚, inciso XXIV, da Constituição Federal, regulamentada pela Lei n° 4.132/62, será competente a União, Estados, Distrito Federal, Municípios e Territórios. Outrossim, nada impede que uma lei federal atribua o mesmo poder expropriatório a outras entidades da Administração Indireta, tal como ocorreu com a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, o Departamento de Estradas de Rodagem – DNER e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT (MAZZA, 2013). No tocante ao sujeito passivo da desapropriação, este é o expropriado, que pode ser pessoa física ou jurídica, pública ou privada. Importante ressaltar, que em princípio a desapropriação se faz em favor de pessoas de Direito Público ou de Direito Privado delegados ou concessionárias de serviço público, possuindo caráter excepcional a desapropriação em favor de pessoas de Direito Privado que não reúna tais características, mas desempenhem atividade considerada de interesse público. CONCLUSÃO Podemos concluir que o instituto da desapropriação é um instituto complexo que abrange diversas esferas do direito público, abarcando extensa legislação sobre o tema, bem como diversas súmulas e posicionamentos dos mais diversos nos tribunais. Pode-se notar, também, que o instituto tem amplo impacto social e econômico, pois interfere de forma contunde nas atuações dos poderes públicos em suas diversas esferas. Além disso, as esferas públicas podem desapropriar bens de acordo com sua hierarquia e finalidade jurídica. Isso significa que o tema afeta sempre uma quantidade muito grande entes e participantes. Portanto, podemos concluir que a desapropriação guarda uma quantidade enorme de possibilidades e modificações sociais muito diversas. Em todo caso, o estudo do tema deve ser feito, sempre, com base em pressupostos legais e constitucionais, que determinam e acabam por delinear todo o desenrolar das administrações públicas em suas diversas esferas.
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As relações virtuais entre o cidadão e a administração pública através do email-administrativo-fale-conosco
O presente trabalho, constituído a partir da pesquisa bibliográfica, da pesquisa de campo e de documentos legais e normativos relativos ao “Email – Fale Conosco” como meio para o exercício do direito à informação pública virtual, visa apresentar alguns dos principais conceitos e categorias próprios da Teoria Sistêmica Autopoiética proposta por Niklas Luhmann, aplicados ao Direito, à política e aos cibersistemas como subsistemas da sociedade, que em relação e comunicação sistêmica produzem cibercomunicações. A comunicação, a autopoiese e o acoplamento estrutural são os fios condutores do exercício sistêmico autopoiético aqui proposto, sendo descritos os principais eventos que servem à sua realização. O direito fundamental à informação pública pode ser observado a partir das cibercomunicações ocorridas tanto nos âmbitos comunicacionais do subsistema político como também nas demais relações e comunicações sistêmicas. Ainda que existam controvérsias sobre a ocorrência da autopoiese em países de modernidade periférica, é possível observar que ante à inexistência de normas, não é possível identificar a ocorrência do acoplamento estrutural realizado pela Constituição Federal de 1988 entre o sistema jurídico e político considerando a inexistência de um dos princípios constitucionais próprios da Administração Pública, qual seja, o princípio da legalidade. A teoria sistêmica autopoiética possibilita uma outra observação sobre as cibercomunicações ocorridas a partir do “Email Fale Conosco” de uma organização pública, possibilitando uma reflexão mais concreta e real de sua funcionalidade, dos paradoxos advindos dos subsistemas político e jurídico, visando a evolução da Administração Pública e cada vez mais a concretização dos direitos fundamentais sociais previstos na Constituição Brasileira.[1]
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A proposta teórica ousada de Niklas Luhmann (1927-1998), descreve a sociedade contemporânea a partir da teoria sistêmica autopoiética por ele proposta através da comunicação interdisciplinar, transitando nos mais variados subsistemas da ciência, partindo de Parsons, das pesquisas de Bertalanffy, pelas pesquisas empíricas desenvolvidas na biologia (através, em especial, do conceito de autopoiese de autoria de Maturana e Varela), na neurofisiologia, na neurologia, na cibernética, na matemática e na lógica não-formal, dentre as perceptíveis. A teoria sistêmica autopoiética procura romper com as teorias clássicas, aqui, em especial, da sociologia, da política, da administração e do direito, apresentando novos paradigmas, categorias e conceitos que formam um complexo quadro teórico, aliás, paradoxalmente, uma vez que pretende reduzir complexidade comunicando complexidade teórica. No presente texto pretende-se descrever algumas possíveis observações sobre as relações e comunicações que ocorrem entre os subsistemas jurídico, político e os cibersistemas a partir do “Email Fale Conosco” da Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha: se estas relações virtuais entre os cidadãos (público ou sistemas psíquicos) e o ente público (administração-organização) e as comunicações que ocorram podem ser observadas e descritas a partir da teoria sistêmica autopoiética (1); se o “Email Fale Conosco” é aceito no subsistema jurídico (2); e, se em tais relações e comunicações a Constituição Brasileira funciona como acoplamento estrutural entre os subsistemas jurídico e político para garantir o efetivo exercício do direito à informação pública conforme o previsto no art. 5º, inciso XXXIII da CF/88 (3). Estas são as três hipóteses observadas e descritas neste texto, que não visa identificar, descrever e prescrever fórmulas mágicas, soluções definitivas e últimas. Distante das lógicas dos grandes discursos metanarrativos, com saídas mágicas e emancipatórias, busca apenas trazer uma outra observação por meio da Teoria Sistêmica Autopoiética e dos subsistemas nos quais se acoplam para que o “Email Fale Conosco” seja melhor observado e descrito, visando, por consequência, contribuir para uma possível concretização do direito fundamental à informação pública. 1. Alguns conceitos da Teoria Sistêmica Autopoiética A Teoria Sistêmica Autopoiética, também denominada de “novo Sistemismo” (NEVES: 2005, p. 172), com a pretensão de “(…) abarcar todo el campo del objeto de la sociologia y de constituirse, en esse sentido, en una teoría universal sociológica” (LUHMANN: 1998b, p. 39), traz como elemento fundante a observação da sociedade contemporânea, dado o cenário científico e social (pós-) moderno, como um sistema social, que “es una sociedad mundial unica” (MANSILLA: 2007, p. 151). Vejamos alguns conceitos. Objetivamente, o sistema não pode ser observado e descrito a partir de suas partes, mas no momento da diferenciação entre o próprio sistema e seu entorno. Não há hierarquia, causalidade, consenso, rigidez estrutural, inexiste “a priori”, fundamento último, mas há, sim, comunicação. A comunicação estrutura os sistemas sociais a partir da seleção, as comunicações compõem o sistema social, sendo a principal operação inter e intra-sistêmica, que garante a unidade e a auto-reproduçao do sistema, ou seja, contribui diretamente para a realização da autopoiese, sendo que ela não ocorre entre indivíduos, somente entre sistemas. O conceito de autopoiese é incorporado ao que se chama da 2ª fase da obra teórica de Luhmann, advindo de Maturana e Varela, que transporta do biológico ao social, aqui, ao sistema jurídico, um mecanismo de seleção e estabilização de expectativas, com a função de reduzir a complexidade advinda do ambiente social. O Direito é um sistema social que se diferencia e se especifica funcionalmente em relação ao seu entorno. Possui um código próprio (direito/não-direito), que lhe permite, autonomamente, manter sua cláusula operativa fechada, ao mesmo tempo em que mantém abertura cognitiva ao meio envolvente e aos demais subsistemas através da comunicação, ocorrendo, paradoxalmente, o aumento e a redução da complexidade social, e se autorreproduz a partir das operações e dos elementos intra-sistêmicos. A política também é um sistema funcionalmente diferenciado que realiza sua autopoiese a partir das suas próprias comunicações/decisões vinculantes. Ante a incontrolável complexidade, os sistemas proliferam-se na evolução (não-linear, não-simultânea, imprevisível, instável, dentre outras características), a partir de sua diferenciação funcional e seleção continuada, em relação ao ambiente e aos demais subsistemas, sendo o sentido o critério seletivo que demarca limites ou contornos dos sistemas sociais. Em relação ao objeto fático da pesquisa, é possível afirmar que as relações virtuais entre os cidadãos e uma prefeitura municipal ocorrem na diferença e na relação sistema/entorno (sistemas psíquicos em interdependência com o subsistema político mediados pelos cibersistemas) bem como no interior do subsistema político (uma vez que a Administração, para Luhmann e adiante referido, consiste em uma subdivisão deste sistema) e no jurídico (a relação entre cidadãos e órgãos públicos é também uma relação/comunicação jurídica), tudo no meio virtual. 1.1. Observando a complexa relação virtual No momento em que o objeto de pesquisa trata de relações virtuais, é possível identificar, a partir da teoria aqui utilizada, as relações intersistêmicas entre o público e a Administração Pública como também entre os sistemas psíquicos, a organização pública (a Prefeitura), ambos mediados por cibersistemas através do “Email Fale Conosco” disponível aos cidadãos através do site oficial da Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha. As relações virtuais entre uma Prefeitura Municipal (se observada como organização pública) e os cidadãos, patrulhenses ou não, que residem no Município ou não, na rede mundial de computadores, constituem-se numa questão relevante, atual e complexa, que precisa ser observada (por instrumental teórico que dê conta desta complexidade como a teoria sistêmica), selecionada e reduzida conforme o funcionamento e o cumprimento das funções do subsistema político e jurídico. Considerando a complexidade incontrolada do ambiente e a parcialidade de cada sistema, o ambiente é sempre mais complexo do que o sistema (LUHMANN:1998, p. 49), ou seja, para que ocorra a relação virtual entre os cidadãos e uma organização pública há necessidade de que os subsistemas envolvidos reduzam as complexidades advindas da própria sociedade e dos demais subsistemas que compõem, aqui, o entorno da política, do direito e dos sistemas psíquicos. Outra categoria fundamental na teoria luhmanniana, conforme já dito, é a comunicação. Para Luhmann, a comunicação é síntese (que somente será possível se os meios de comunicação permitiram a produção de sentidos) entre a informação, o ato de comunicação e a compreensão e, “[…] não existe nenhum sistema social que não tenha como operação própria a comunicação e não existe comunicação fora dos sistemas sociais” (NEVES: 2005, p. 176). Um sistema social surge quando a comunicação desenvolve mais comunicação, a partir da mesma comunicação. Assim, “… as consciências individuais são apenas um dos múltiplos meios pelos quais a comunicação/organização do sistema e entorno processa-se” (NEVES: 2005, p. 176-177). A relação virtual entre a Prefeitura e os cidadãos poder ser considerada como um evento relacional/comunicacional sistêmico, garantindo o cumprimento das funções do sistema político e jurídico? O email “fale conosco” é um meio de comunicação que permite a relação sistêmica entre público e administração pública? Que tipo de relação sistêmica ocorre através dos emails? Este texto pretende responder tais questões que tratam do objeto das observações e descrições propostas, em especial, a observação de como ocorre, do ponto de vista da teoria sistêmica autopoiética, a relação virtual entre os cidadãos e um órgão público e suas comunicações nos subsistemas jurídico e político. 1.2. Os subsistemas jurídico e político O Direito pode ser conceituado como “expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos” (LUHMANN: 1983a, p. 57), no qual gera “uma imunização simbólica das expectativas contra outras possibilidades” (LUHMANN: 1983a, p. 110), cumprindo “a função de garantir e manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo direito e oferecer respostas, claras e justificadas no caso de conflito” (CAMPILONGO: 2002, p. 78-79). Assim, torna-se redutor da complexidade, onde a norma orienta os indivíduos, aliviando “[…] a consciência no contexto da complexidade e da contingência” (LUHMANN: 1983a, p. 52), sendo que as operações fático-sociais, internas ao próprio Direito como sistema funcionalmente diferenciado, determinam o que é e o que não é o Direito, demarcando a diferença entre o ambiente e o sistema jurídico, mas que não se confundem com as estruturas dos quais depende (LUHMANN: 2002, p. 41). A expressão classificatória “autopoiese[2] do biológico”, é considerada “a primeira fase da teoria autopoiética (TEUBNER: 1989. p. I – prefácio). ”, oriunda dos estudos de Maturana e Varela, que desde seu início se tornou um modelo teórico de “maior repercussão interdisciplinar e” (que) “tenha despertado maior polêmica (.. – prefácio)”. A teoria autopoiética proposta pelos neurocientistas chilenos sustenta que os componentes celulares, quando examinam um sistema vivo, estão relacionados dinamicamente “[…] numa rede contínua de relações, esse metabolismo celular produz componentes e todos eles integram a rede de transformações que os produzem, alguns formam uma fronteira, um limite para essa rede de transformações. Em termos morfológicos, podemos considerar a estrutura que possibilita essa clivagem no espaço como uma membrana” (MATURNA; VARELA: 2001, p. 52). O Direito é um sistema autopoiético de segundo grau, constituído a partir de sua diferenciação funcional e da autorreferencialidade dos seus próprios elementos. O sistema jurídico se autoproduz e se auto-organiza a partir de elementos do ambiente, ao mesmo tempo em que “[…] tiene la capacidad de entablar relaciones consigo mismos y de diferenciar esas relaciones frente a las de su entorno” (LUHMANN: 1998a, p. 38): La organización interna de cada sistema está basada en una relacionalidad selectiva que se adquiere mediante estos órganos fronterizos, lo cual provoca que los sistemas sean indeterminados entre sí y que se creen sistemas de comunicación para la regularización de esa indeterminación (p. 52). Ocorre que em países de modernidade periférica (NEVES: 2007, p. 2 e 147), no qual está inserida a experiência brasileira (NEVES: 2006, p. 244), arcaica, “[…] que apóia o jeitinho brasileiro, é hierárquica, é patrimonialista, não tem espírito público, defende a lei do talião (…)” (ALMEIDA: 2007, p. 26), ocorre a alopoiese, qual seja, o rompimento dos limites e dos códigos dos subsistemas político e jurídico. Na relação virtual entre cidadãos e a prefeitura, através dos emails “fale conosco”, é possível distinguir subsistemas se relacionando/comunicando e seus respectivos entornos: quando um cidadão patrulhense envia um email para a prefeitura solicitando alguma providência, por exemplo, dentre tantas outras possibilidades. Primeiro é possível observar que a Administração Pública está dentro da sociedade, ela funciona para a sociedade, então é uma administração pública da sociedade, sendo possível observá-la, também a partir da sociedade, como também a partir da própria administração, através de suas comunicações intra e intersistêmicas e da produção decisões que sejam vinculantes. O ambiente, aqui a sociedade patrulhense, o subsistema econômico, jurídico, científico, cultural, é sempre mais complexo e rico de possibilidades do que o sistema político. As demandas sociais, expressas através dos meios de comunicação midiáticos e eletrônicos, ante a complexidade e a dupla contingência, trazem muita complexidade e possibilidades, das quais o subsistema político somente poderá comunicar àquelas próprias da sua diferenciação funcional. Para LUHMANN (2007, p. 94), a função do subsistema político “ … que ho provocado la diferenciación del sistema político puede caracterizarse como el empleo de la capacidad de imponer (Parsons: effectiveness) decisiones vinculantes (…) donde vínculo ha de entenderse siempre como vínculo colectivo, en el sentido de que éste (siempre hasta nuevo aviso) vincula a la selección tomada, tanto a quienes adoptan das decisiones como a los destinatarios de las mismas”. O subsistema político, autopoiético, dispõe de três “espaços” comunicativos, resultante da evolução do sistema de bi para tridimensional, do … trânsito de una diferenciación estratificada a otra funcional ha provocado modificaciones decisivas (LUHMANN: 2003, p. 62). O tripé de diferenciação do subsistema político é constituído pela política, administração e pelo público (LUHMANN: 2003, p. 62). Estes espaços de comunicação interna aumentaram a comunicação intra/intersistêmica e podem “… tratarse como entorno respectivo, filtrando y simplificando así el proceso comunicativo” (p. 63). O público é o cidadão patrulhense ou não. A Administração que, “… en el sentido más amplio, incluye gobierno e legislación” (LUHMANN: 2003, p. 63) contempla “… a la totalidad de las instituciones que, apoyándose en mandatos o puntos de vistas políticos, crean decisões vinculantes” (p. 63). Nesta perspectiva, “… las estructuras heredadas del Estado de Derecho y la división de poderes adquieren así un nuevo significado” (LUHMANN: 2003, p. 63). Estes novos significados são paradigmáticos e ocasionam mudanças substanciais para a observação do subsistema político e suas divisões comunicativas, como por exemplo, a Administração (Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha, aqui definido pelo observador, uma vez que o conceito de administração, para Luhmann é amplo) que poderá se orientar por programas e discursos da política propriamente dita ou conforme a manifestação do público. Nesta perspectiva não há como falar de poder político hierárquico, ainda que a maioria das organizações públicas sejam pautadas pela hierarquia vertical, fundamentada também em programas e comunicações jurídicas, sendo possível reconhecer uma relação circular entre estas instâncias comunicativas. A relação parasitária entre o sistema político e o jurídico se reflete no funcionamento sistêmico da administração, como âmbito comunicacional, numa permanente comunicação, acoplamentos e irritações mútuas. Nenhum destes sistemas está acima ou é superior que o outro, ainda que “… a política opera num quadro de complexidade elevada e indeterminada, o direito atua num contexto de complexidade já reduzida e determinada por limites estruturais mais rigorosos” (CAMPILONGO: 2002, p. 25). Então, no Sistema Político de Santo Antônio da Patrulha (ainda que esta pesquisa não trate de observações sistêmica sobre a prefeitura como organização, uma vez que demandaria observar e descrever as estruturas, funcionamentos e dinamicidades comunicacionais desta), inexiste âmbito comunicacional (política, administração e público) superior ao outro e de onde emanem as decisões que orientem aos demais, ao contrário, os eventos de circularidade e contra-circularidade podem ser aqui utilizados para comprovar tal descrição. Mas o Prefeito não é chefe do Poder Executivo? Sim, não se está afirmando que inexistem hierarquias nas estruturas organizacionais públicas, mas que entre a administração, o público e a política, como espaços de comunicação, inexiste superioridade entre esses âmbitos, perceptível através das externalizações destes (opinião pública, direito e pessoas) e dos movimentos circulares e contra-circulares que ocorrem nas relações comunicacionais do subsistema político. As relações virtuais entre o público e a Administração, o subsistema jurídico, dentre tantas outras possibilidades, externalizam as relações que ocorrem entre as instâncias comunicativas do sistema. Neste compasso é possível incluir a correspondência eletrônica através do email, dentre tantas outras possíveis, como as redes sociais (Orkut, facebook, etc.) como no surgimento de inovações tecnológicas, inclusive as tecnologias de informação e comunicação, que têm provocado inúmeras irritações, gerando ao mesmo tempo, maior complexidade e sua respectiva redução, devido não somente a ser uma novidade mas por provocar inúmeras comunicações paradoxais nos subsistemas políticos e jurídicos, adiante examinadas através dos emails que foram observados, da entrevista realizada e dos julgamentos do TJRS, que não deixam dúvidas sobre o “estranhamento” contraditório do Sistema Jurídico Brasileiro em relação a esta forma/meio de comunicação eletrônica. Os resultados das operações que compõem a evolução dos sistemas também são inesperados, não-calculados, ainda que a evolução restrinja “alguns caminhos, tornando o sistema mais previsível em alguns aspectos, ao mesmo tempo em que torna outros caminhos possíveis, reafirmando a imprevisibilidade do sistema” (NEVES: 2005, p. 48). Tais dinâmicas evolutivas podem ser observadas na relação virtual entre público e a administração (prefeitura), nos emails encaminhados e respondidos e que trazem informações e comunicações que requerem respostas sistêmicas da administração que por sua vez, precisa reduzir tais complexidades advindas do ambiente (da sociedade, do direito, da própria política, etc.). E, nestas relações, seria possível afirmar que a Constituição Federal de 1988, apesar de importante dispositivo para o subsistema jurídico, suas comunicações, programas e princípios incidem também no subsistema político, como nas relações virtuais entre o público e a administração? A relação entre o público e administração observa/respeita/cumpre as normas constitucionais que garantem o direito fundamental à informação? No Brasil, tal funcionalidade à Constituição Federal ocasiona o fenômeno já abordado, denominado “alopoiese”, no qual, os subsistemas jurídico e político não conseguem manter seu fechamento operacional ante às apropriações e entradas que perturbam e interferem no funcionamento intra-sistêmico, como a influência da economia nestes dois subsistemas para a aprovação de projetos de loteamento, para a contratação administrativa, dentre outros exemplos. Na teoria sistêmica autopoiética de Luhmann, a Constituição, antes das observações sobre as comunicações entre os subsistemas do direito e da política, será descrita como funciona diferencialmente como acoplamento estrutural entre o subsistema do Direito e o da Política. A partir da Constituição Federal de 1988 e o desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo (e suas categorias/conceitos novos, no surgimento do pós-positivismo, na supremacia e unidade da Constituição, a normatividade dos princípios, etc) a discussão e o debate sobre os direitos fundamentais e sociais, bem como o papel e a relação da cidadania com o Estado, ganham relevância e aprofundamento teórico e, por que não, político e social. Tratar dos direitos fundamentais, sociais, humanos, aqui, o direito à informação e também o de comunicação que todo cidadão brasileiro porta, inclusive os estrangeiros que estiverem no País, previsto no art. 5º, inciso XXXIII[3] da CF/88, que visa à democratização e controle social por parte da cidadania, frente à realidade brasileira, adquire importância significativa, ainda mais neste momento do “(neo) constitucionalismo” e da discussão sobre o Estado, seu papel, sua estrutura, seu funcionamento e sua relação com os cidadãos. O direito constitucional fundamental à informação é uma das possibilidades que o cidadão tem para comunicar-se com a Administração Pública, aqui Municipal, sendo que devido aos princípios constitucionais previstos no caput do art. 37 da CF/88, será processado através de procedimento administrativo, em regra ainda físico em boa parte das administrações públicas, que tramitará internamente nas estruturas administrativas públicas, percorrendo diferentes órgãos, que tem funções e funcionamentos diferenciados, integrantes da Administração. 2. A relação virtual entre o público e a Administração Pública Municipal O exercício sistêmico aqui proposto resulta em apresentar descrições de observações de 2ª ordem sobre as relações virtuais entre os cidadãos patrulhenses ou não (o público como âmbito comunicativo do subsistema político ou através dos sistemas psíquicos) e a Prefeitura (administração como âmbito comunicativo do mesmo subsistema ou como organização) através do email “fale conosco”. Foram selecionados somente àqueles que foram enviados por cidadãos no exercício do direito à informação, ora solicitando informações, em alguns casos também solicitando providências administrativas, ora se manifestando e criticando as ações da organização pública, como meio/instrumento de acesso ao exercício do direito fundamental à informação pública. E, ainda, se estas relações são aceitas no subsistema jurídico garantindo o cumprimento do direito à informação pública, restrita aqui, exclusivamente àquelas solicitadas via email. Tal recorte se faz necessário porque o direito à informação pública é amplo e comumente está relacionado ao controle social, ao exercício da democracia, à transparência pública, etc., sendo que neste trabalho as observações e descrições se referem à solicitações individuais de informações públicas através da correspondência eletrônica, o email. É oportuno citar que em 18.11.2011 foi editada a Lei nº 12.527, que regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal. Conforme dispõe seu art. 1º, Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto na CF/88, em vigência no Sistema Jurídico Brasileiro desde maio de 2012, timidamente ainda em fase de implantação nos entes públicos. A partir deste texto jurídico (comunicação jurídica e do subsistema político que elaborou, votou e aprovou a lei), que certamente terá reflexos no subsistema político, em seus âmbitos comunicativos, em especial na administração, qual seria a situação jurídica das informações, hoje, prestadas por email, aqui, da administração para o público? Se o texto normativo acima citado somente teve vigência a partir de maio de 2012, qual seria a função do email na relação virtual entre o público e a administração, mediada pela rede internacional de computadores até então? Os emails quando “entram” no subsistema político no ciberespaço, ainda que sejam tratados como simples mensagens à procura de informações, geram que tipo de operação, relação ou comunicação nestes dois subsistemas? Atualmente, o endereço eletrônico que a Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha disponibiliza aos cidadãos, no seu site oficial (http://www.santoantoniodapatrulha.rs.gov.br/prefeitura/), possibilita observar que este meio de comunicação virtual, que acopla o sistema social, o subsistema político e o sistema virtual, atualmente, se constitui como um paradoxo para ambos os subsistemas (político e jurídico), conforme as descrições sistêmicas a seguir propostas a partir da observação sobre a observação de integrantes da Prefeitura (exposta em um questionário aplicado ao Setor de Comunicação Social da Prefeitura e através das manifestações nos emails) e de cidadãos sobre suas próprias comunicações realizadas através da correspondência eletrônica. Se o email da Prefeitura está disponível no site oficial, sua utilização, as respostas e encaminhamentos via email se constituem em atos administrativos? Se ocorrer algum erro que gere danos aos cidadãos consulentes via email, a impressão desta correspondência eletrônica (do email) poderá comprovar os fatos ocorridos? Tais questionamentos serão a seguir abordados. Ao descrever observações sobre a relação virtual entre âmbitos comunicacionais do subsistema político, e mesmo a relação intersistêmica entre sistemas psíquicos (pessoas) e o subsistema político, a figura do computador nesta relação, ainda não descrita por Luhmann, possibilitará questionar a própria teoria sistêmica sobre a possibilidade de ocorrer comunicação entre sistemas psíquicos e sociais por intermédio dos computadores. Assim, além dos processos comunicativos que ocorrem no funcionamento e na autopoiese dos sistemas, quando estes se relacionam com os elementos do seu ambiente, também é possível a relação (e não a comunicação) entre sistemas, sociais ou psíquicos, que poderá ocorrer através do acoplamento estrutural, das interpenetrações, organizações e as interações. Na relação virtual entre o público e a administração, por exemplo, ocorre uma das possibilidades de observação: os dois subsistemas, o político e o jurídico recorrem a estruturas recíprocas, para que possam reduzir complexidade e cumprir com sua diferenciação funcional. Quando um cidadão envia um email para a Prefeitura, esta, como instância comunicativa do subsistema político, poderá ou não utilizar as estruturas e comunicações de ambos os subsistemas para a relação ou comunicação com o público, no caso o cidadão que enviou tal correspondência eletrônica. Através do acoplamento estrutural será possível descrever se a forma “relação virtual através do email” traz irritações e questões que devem ser atendidas a partir da diferenciação funcional dos subsistemas relacionados (aqui a política e o direito) e, conforme já referido, se a Constituição Brasileira de 1988 é utilizada como acoplamento estrutural entre os subsistemas político e jurídico. Quando ocorre o acoplamento estrutural, o processo comunicativo reflete-se no outro para auxiliar o funcionamento das operações internas do sistema, sendo construído um significado dentro do sistema onde ocorreu o processo comunicativo. É o que ocorre na relação intersistêmica entre o subsistema da política com o do direito, quando as normas legais e administrativas têm reflexo sobre o subsistema político, mais precisamente na administração, que deve pautar sua relação a partir da Constituição Federal de 1988. Há um empréstimo de um sistema para outro, das estruturas indispensáveis para que sejam realizadas as operações sistêmicas internas, constituindo uma relação funcional. Poderão ocorrer perturbações e irritações para o sistema (através, por exemplo, dos emails encaminhados por cidadãos à Prefeitura Municipal), pois as estruturas do outro sistema (política), ao servirem o primeiro sistema (jurídico), por desconhecerem um do outro os processos comunicativos e as operações internas, também poderão aparecer como informação desorganizada. Os sistemas mais consolidados, codificados e que realizam a autopoiese sofrem menos ingerências externas em seus processos internos. Podem se relacionar com sistemas menos complexos, através da comunicação operacional, sem que um utilize as estruturas mais avançadas do outro. Ainda que o subsistema político e jurídico estejam consolidados, a opinião pública, o ponto de externalização da relação do público com a política através dos meios de comunicação, inúmeras vezes causa irritações ao subsistema político gerando comunicações internas, movimentos (contra) circulares, como, após o recebimento de determinado email de um cidadão, com determinada crítica ou reclamação, tal correspondência administrativa encaminhada (também através de email) e quando tramita por vários órgãos até a produção de nova manifestação administrativa, ou seja, a relação virtual provoca eventos sistêmicos e gera novas relações e ou comunicações. Nesta relação circular, contracircular e multimensional é possível identificar a relação sistêmica existente entre o cidadão e a Prefeitura através de email. Ainda, também é possível, considerando que o público está inserido no subsistema político, observar as relações virtuais, mediadas pelos cibersistemas, como comunicações sistêmicas, ou seja, é possível identificar que as comunicações virtuais que ocorrem no “Email Fale Conosco” podem ser descritas a partir da teoria sistêmica autopoiética, observando tanto a partir das relações/comunicações entre os sistemas psíquicos e sociais, como também a partir das relações internas do subsistema político, mais precisamente entre os âmbitos Administração e Públicos, todas mediadas pelos cibersistemas. Existem inúmeras definições utilizadas na realidade virtual, no chamado espaço cibernético, que seria “… a instauração de uma rede de todas as memórias informatizadas e de todos os computadores” (LÉVY: 2000, p. 13), como as de ciberespaço (“Aliada à comunicação, a informática permite que esses dados cruzem oceanos, continentes, hemisférios, concectando potencialmente qualquer ser humano no globo de uma mesma rede gigantesca de transmissão e acesso…” (SANTAELLA: 2003, p. 71))”, e a de “Cibercultura” (“A cultura contemporânea, associada às tecnologias digitais (ciberespaço, simulação, tempo real, processos de virtualização, etc), vai criar uma nova relação entre a técnica e a vida social que chamamos de cibercultura” (LEMOS: 2008, p. 15)). A questão, para LUHMANN (2007), nas relações entre a consciência (dos sistemas psíquicos), a comunicação e “las computadoras (p. 235), dentre outras possíveis, “cuál es el efecto que se produce en la comunicación de la sociedad cuando se ve influída por el saber mediado por las computadoras? Lo que realmente se observa son redes de interconexión que operam mundialmente para coleccionar, evaluar y hacer nuevamente disponibles datos...” (p. 235). Os computadores, também denominados por LUHMANN (2007) de “máquinas transclasicas” (p. 263), não se tratam apenas de instrumentos potentes, se trata “… de una marcación de formas, que permite distinguir señalar más fecundamente – con consecuencias por el momento imprevisibles para el sistema de comunicación de la sociedade” (p. 236-237). A partir deste possível “limite” da teoria, será utilizado o conceito de cibercomunicação, proposto por STOCKINGER (2001): “Significa afirmar que sistemas sociais utilizam para a sua autopoiese elementos e relações comunicativas operadas por cibersistemas, que passarão a ser parte integrantes das ações e comunicações sociais. Entretanto, a cibercomunicação multiplica e aumenta os desvios – as interpretações – de tal forma que se distanciam do significado original e criam áreas de sentido com seus significados próprios” (p. 131). Os textos dos emails, da mesma forma que os contratos eletrônicos[4], seriam uma forma diferenciada de comunicação no ciberespaço e assim, poderiam ser considerados como uma cibercomunicação? 2.1. O “fale conosco” SANTAELLA (2003), após apresentar a evolução dos “subtratos da cibercultura” (p. 77-113), descrevendo a passagem da “cultura de massas à cultura das mídas” (p. 79) detalha o funcionamento de uma correspondência eletrônica através do email: “Quando, por exemplo, mandamos um e-mail, a mensagem é decomposta em pacotes e dotada de cabeçalhos contendo um endereço; os pedaços são despachados por uma variedade de caminhos e de processadores intermediários que retiram e acrescentam informação aos cabeçalhos até que, quase como num passe de mágica, a mensagem é afinal reordenada e reunida na outra ponta. A razão para que isso acabe funcionando é que cada pacote carrega consigo aqueles bits que informam sobre bits, e cada processador dispõe de meios para extrair informações sobre a mensagem de dentro da própria mensagem” (p. 89-90). Retomando o conceito de “cibercomunicação” proposto por STOCKINGER (2001, p. 1-2), é possível responder à primeira hipótese deste texto, afirmando que as comunicações que foram enviadas à Prefeitura através do “Email Fale Conosco”, sejam observadas como “cibercomunicação jurídica”, exercendo a função de acoplamento estrutural entre sistemas sociais e cibersistemas, “… sendo portanto, uma figura híbrida” (BARRETO: 2010, p. 444). O conceito de cibercomunicação confirma o entendimento luhmanniano de que a comunicação é impessoal, uma vez que “… já não é o usuário que estabelece os limites e o horizonte da comunicação. É um sistema operacional eletrônico, em relação ao qual os usuários formam apenas o seu ambiente (STOCKINGER: 2001, p. 15). A própria Administração, em entrevista concedida pela Assessoria de Comunicação da Prefeitura, descreveu como se (auto) observa nesta relação virtual no ciberespaço através do email: “No site oficial da prefeitura tem um link “Fale Conosco”. Lá as pessoas podem enviar mensagens que são enviadas para um e-mail que é aberto na Assessoria de Comunicação Social. Logo que a pessoa envia mensagem ela recebe outra dizendo que “sua mensagem foi enviada para o setor responsável e que em breve daremos retorno” (resposta à Pergunta nº 01). Aqui propomos uma observação de 2ª ordem, ou seja, a observação do observador sobre a própria observação da Prefeitura sobre si mesma e que possibilita identificar, na relação virtual através do “Email Fale Conosco”, a presença dos sistemas psíquicos (que também podem ser observador como público – instância comunicativa do subsistema político) e de outros subsistemas, como o político (Administração), o Jurídico (através das normas, da CF/88 e das decisões do TJRS) e dos cibersistemas, aqui precisamente, os sistemas que promovem o funcionamento do “Email Fale Conosco” da Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha. Tal descrição possibilita o emprego do conceito de cibercomunicação, ou seja, a comunicação mediada pelos cibersistemas no ciberespaço na relação com sistemas sociais, ou seja, o próprio cibersistema interage diretamente com o cibercidadão, representando na virtualidade, um dos âmbitos comunicativos do subsistema político, quando o próprio cibersistema, através do site da Prefeitura, comunica, automaticamente sobre as operações que serão realizadas. A partir daqui será utilizado o termo “cibercidadão”, ao mesmo tempo fora do sistema social mas inserido na cibercomunicação. Tal conceito substituirá o de “cidadão” e outros que comumente são retirados do direito privado e utilizados, impropriamente, no direito público, como o de cliente. No momento da resposta automática do email “fale conosco”, a Administração (âmbito comunicativo do subsistema política ou organização) utiliza para a sua autopoiese, “… elementos e relações comunicativas operadas por cibersistemas, que passarão a ser parte integrante das ações e comunicações sociais” (BARRETO: 2009, p. 447). Nos processos comunicativos entre a Prefeitura (uma organização e o âmbito comunicativo do subsistema político) e os cidadãos (sistemas psíquicos e o âmbito comunicativo do subsistema político) que ocorrem através do email “fale conosco”, quais são os códigos utilizados para que ocorram tais relações e/o comunicações? O código situação/oposição, comumente utilizado no subsistema político não dá conta para ocorram observações de tais relações e comunicações, tal distinção “… resulta insatisfactoria, sin embargo, cuando se la aplica a las relaciones del sistema político con su entorno, esto es, a una sociedad dinámica. Ya que ésta se encuentra en rápida mutación” (LUHMANN: 2007a: p. 83), sendo que hoje “… el problema no es ya el cambio social (al que es posible adaptarse positiva o negativamente), sino la inestabilidad social” (p. 85). A Assessoria de Comunicação Social da Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha, disponibilizou todos os emails que foram encaminhados no período de 10 de outubro à 08 de dezembro de 2011, num total de 41 (quarenta e um) emails contendo pedidos de informações públicas, assim divididos diante do tipo de informação pública que foi solicitada: sobre o brasão do Município (1); endereço de pousadas (1), de folder ou material de divulgação da Prefeitura (1); sobre alvarás para empresas 2; sobre as medidas para construções 2; sobre o curso de técnico em radiologia: 1; sobre serviços públicos: vagas em creche (1), cemitério público (1), horário de funcionamento da Prefeitura (1), contato com o serviço social (1), sobre melhorias para o Município para 2014 – a Copa do Mundo (1), reparos em calçamento (1), abastecimento de água para piscina (1), de acesso virtual aos editais de licitação (1), sobre o ISSQN (3), sobre os dados cadastrais da Prefeitura para emissão de certificado de resíduos sólidos (1), sobre dados cadastrais da Prefeitura para descarte de material eletrônico 1), de iluminação pública-troca de lâmpadas (1), sobre a participação da Prefeitura no Programa Minha Casa Minha Vida (1), sobre o endereço do Prefeito (1), sobre dados da equipe técnica da Prefeitura que trata das licenças ambientais e seu funcionamento para pesquisa científica da PUCRS (1), sobre o falecimento de um morador do Município (1), sobre vagas de estágio (1), sobre o consumo de fraldas nos postos de saúde (1), sobre um mapa topográfico da cidade para pesquisa científica em Camboriú (1), sobre envio de currículos profissionais para contratação por empresas que receberão incentivos fiscais (1), Total 22; pedido de informações sobre concursos públicos: 7 e, Manifestação sobre a decoração de natal – resposta para enquete de natal: 1. A partir deste quadro seria possível utilizar a diferença/código informação pública/privada, uma vez que a Administração seleciona, através de suas respostas e dos encaminhamentos que são propostos, quais emails contém demandas com pedido de informações públicas (como a realização de concursos, pedido de dados sobre o Município, de vagas nas creches públicas, de como resolver problemas coletivos como buracos nas ruas, organização do cemitério, etc) e que recebem determinado encaminhamento, como também de emails que solicitam informações privadas, na qual a Administração filtra, seleciona como informação imprópria à administração. O Email 31, por exemplo, no qual o cibercidadão solicita informações sobre determinada pessoa e a Administração responde objetivamente que “Desculpe não poder ajudar, mas não temos o contato desta pessoa”, ou seja, tal correspondência/comunicação eletrônica não continuará no subsistema político, mais precisamente na administração como âmbito comunicacional ou como organização, após a aplicação do código “informação pública/privada”. A seleção é indispensável para a autopoiese dos sistemas sociais parciais pois poderá garantir o fechamento operacional do sistema, ou seja, a administração não poderá responder e dar os devidos encaminhamentos no interior da organização se o email tratar sobre, por exemplo, direitos patrimoniais privados. A partir do momento que a Administração seleciona as informações, comunicações e mensagens que entram em seu sistema através do acoplamento estrutural do cibersistema com os sistemas sociais e psíquicos, ela reproduz os seus próprios elementos, estruturas e comunicações. O endereço do Email da Prefeitura, o “fale conosco” está localizado no site oficial da Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha (http://www.santoantoniodapatrulha.rs.gov.br) e pode ser acessado por qualquer cibercidadão do mundo, sendo possível ocorrer a cibercomunicação entre uma pessoa localizada no Paquistão, natural deste Município e que necessita de uma certidão negativa de débitos municipais, por exemplo, que dá a dimensão da complexidade e do rompimento com os parâmetros tradicionais de tempo, espaço e poder que caracterizavam o subsistema político. A página abre com a expressão “Contate-nos”, apresenta uma forma com vários campos. Cumpre destacar que o campo “Mensagem” dispõe de vasto espaço para o registro do texto, sendo possível digitar uma petição com algumas páginas, ou seja, o direito de manifestação, ao menos de registro por parte dos cidadãos, está amplamente garantido neste campo. O site da Prefeitura Municipal funciona a partir de programas/software que a possibilitam as relações virtuais: “… los programas son formas – como antes lo fueron las reglas gramaticales del lenguaje – que delimitan las posibilidades del acoplamiento firme y así lo pueden ampliar hasta lo imprevisible” (LUHMANN: 2007b, p. 240). Ainda que o email não seja objetiva e comumente classificado como um programa e sim um meio de comunicação que poderá acoplar outros subsistemas, ele acaba se constituindo, através do seu funcionamento e da produção de sentido, uma forma que delimita como as comunicações ocorrerão no seu interior, ainda que inexista “… um conjunto de expectativas que procuram estabilizar/coordenar as condutas fáticas dos indivíduos que integram determinada coletividade” (TRINDADE: 2008, p. 57), ou seja, ainda que inexistam normas do subsistema jurídico que orientem tal relação. O ciberespaço contém formas que são empregadas pelo sistema social (mundial) que dispensa hierarquização e funciona paralelamente até mesmo aos limites territoriais, legais, políticos e sociais dos estados em seus conceitos tradicionais, ainda atrelados ao território, ao povo, ao poder e às normas. No momento em que um usuário virtual posta algum entendimento sobre algum evento ou ação realizada pela Prefeitura Municipal e esta responde, ainda que mediados por meios eletrônicos, ocorre a comunicação sistêmica intermediada pelos computadores e pelo programa privado mundial no qual a organização pública participa, visando garantir o acesso virtual à informação pública através de outros meios eletrônicos de comunicação. Se inexiste norma que regulamente a utilização desta ferramenta comunicacional, uma vez que a própria Administração ao observar suas próprias comunicações reconhece que “este processo se dá de maneira informal”, como justificar sua existência numa organização pública que deverá cumprir, por exemplo, o princípio da legalidade, expresso no caput do art. 37 da CF/88? A relação comunicativa entre a Prefeitura e o ciberespaço reproduz a tradicional relação física entre o cidadão e uma prefeitura municipal quando este se dirige ao protocolo para exercer o seu direito de petição e se for o caso de informação, como por exemplo a situação do Email do cibercidadão 23 que, em 2011, enviou um email para o “Fale Conosco” nos seguintes termos: “… por favor, peço que façam reparos nas ruas de meu bairro x; tá terrível a situação. Sugiro que usem sobras de asfalto para cobrir os piores buracos. O caso mais urgente é a rua B. Obrigado pelo espaço”. Esse email reflete as expectativas normativas, ainda que tenha circulado no subsistema político, do cibercidadão 23 em relação aos seus direitos constitucionais fundamentais para a resolução dos “reparos nas ruas…”. Por outro lado, a mensagem da Prefeitura não atende as expectativas normativas do cibercidadão 23, ao contrário, no momento em que recebeu tal mensagem, não é possível compreender se a Administração adotará as devidas providências, se o email realmente foi encaminhado para a Secretaria de Obras, se as pessoas que receberam o email 23 eram as pessoas habilitadas na organização para tal relação, qual será o prazo de atendimento, se existe ordem de preferência, enfim, se os processos comunicativos devem contribuir para a auto-referência do subsistema político. A resposta ao email 23, talvez tenha reduzido temporariamente a complexidadade e as expectativas normativas do cibercidadão 23, mas talvez tenham gerado maior complexidade, incerteza e talvez até desconfiança no subsistema político a partir da resposta ao email, ainda que: “ … cualquiera que se entrega a la comunicación depende de la confianza. Solo que en la era del procesamiento electrónico esta confianza no se puede personalizar y por eso mismo no puede traducirse en posición social; es sólo confianza sistémica” (LUHMANN: 207b, p. 243). No caso, o email serve como acoplamento entre a Administração, os cidadãos e o ciberespaço, mas, ao contrário de reduzir complexidade através de processos relacionais ou comunicativos, o próprio âmbito comunicativo da política ampliou a complexidade e a incerteza, ainda mais numa relação intermediada por um “meio” ou “acoplamento” ou “sistema” (o email) onde de imediato não é possível utilizar expectativas normativas, pois “… esse processo se dá de maneira informal” (entrevista com o Setor de Comunicação Social da Prefeitura). Se a comunicação “… se dá na forma de decisão”, a resposta enviada pela Prefeitura ao cibercidadão 23, criando duas expectativas devido ao encaminhamento da correspondência eletrônica tanto para a Secretaria de Obras, como, ao mesmo tempo, orientando-lhe a adotar um outro mecanismo, qual seja, o de protocolar fisicamente seu requerimento no protocolo físico da Prefeitura. Neste sentido, ocorreu a reprodução do real através do virtual identificado na resposta da Administração ao email 23 do cibercidadão 23, que cumula as duas possibilidades, enviar o pedido de informações e providências para a secretaria competente mas ao mesmo, solicitar ao cidadão que realize o procedimento físico para o atendimentos ás suas expectativas normativas: “… o ciberespaço é hoje um correlato virtual para praticamente tudo que se encontra ancorado no mundo físico, pois a partir dele, inserem-se nesse mundo comunicativo: bancos, lojas, organizações, pontos/locais de encontro, etc” (BARRETO: 2009, p. 446). Através dos 39 (trinta e nove emails) selecionados e observados, apenas o de nº 30 (pedido de iluminação pública) recebeu o mesmo tratamento por parte da Administração, qual seja, orientar-lhe a realizar o protocolo físico e ao mesmo tempo lhe informa sobre o encaminhamento do seu email para a respectiva secretaria (de obras). E como restariam os pedidos de informações propostos nos emails 4, 7, 10 e 33, que somente foram recebidos pela Assessoria de Comunicação para outras estruturas internas da Administração, sendo que nessas respostas, ao menos do material que foi disponibilizado para a realização da pesquisa, a Administração não respondeu ao cibercidadão, encaminhando seu email diretamente para a respectiva secretaria, selecionada pelo “órgão-moderador” da Prefeitura? É possível identificar encaminhamentos diferentes para emails que contém a mesma expectativa normativa, qual seja, a prestação de informações ou a realização de determinados serviços públicos, dentre os 41 (quarenta e um) selecionados, 35 (trinta e cinco) são pedidos de informação pública pura e simples como de informação sobre os serviços públicos, como horário de funcionamento, documentação e como contatar com tais estruturas. Se a principal função do sistema político é produzir decisões vinculantes, tais comunicações, com tratamento diferenciado para casos análogos poderão gerar maior complexidade, ainda que “… las decisiones políticas que puede adoptar la Administración dependen cada vez más de una penosa ponderación de las alternativas…” (LUHMANN: 2007, p. 63-64). O exercício do direito fundamental à informação pública, exercitado através do email “fale conosco”, que muitas vezes resulta na prestação de serviço público, na cibercomunicação, ocorre através, também, de movimentos contracirculares, no qual “… o público exerce sua influência sobre a administração pública, mediante o exercício do direito de petição e pela participação em processos administrativos de formação da vontade estatal” (ZYMLER: 2002, p. 130). Este movimento contracircular deixa evidente que “… a relação de poder hierarquizado não mais prevalece como única forma de expressão política, perde sentido a busca de regulação do sistema político a partir do controle do poder institucionalizado” (ZYMLER: 2002, p. 132). Até aqui é possível identificar que as relações virtuais entre os cidadãos (público do subsistema político ou como sistemas psíquicos) com a Prefeitura Municipal de Santo Antônio da Patrulha (Administração do subsistema político ou organização) através do “Email Fale Conosco” como relações que produzem cibercomunicações, mediadas pelos cibersistemas virtuais. 2.1.1. O “Fale conosco” é um email/ato administrativo Na teoria tradicional do subsistema jurídico (poderíamos dizer também da ciência?), ato administrativo “é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria” (MEIRELLES: 2010, p. 154). E ainda, “… a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita ao controle do Poder Judiciário” (DI PIETRO: 2005, p. 189). A partir da segunda definição acima, seria possível descrever que as comunicações expressas através de email como atos administrativos, ou melhor, como uma comunicação administrativa, no caso de organização pública, pois se trata de uma operação que ocorre no interior do estamento comunicacional “administração” e reproduz seus elementos externos a partir de outros elementos que a compõem, ainda que aberto aos demais âmbitos comunicativos (política e público). Quando, por exemplo, o cibercidadão 9 solicita informações sobre a abertura e o período de inscrições de uma escola de educação infantil (creche) no bairro onde reside e a Prefeitura responde informando sobre a previsão de inauguração e sobre a necessidade deste cibercidadão entrar em contato com a Secretaria da Educação, não será possível identificar tais respostas e a prestação do serviço público de informação como um ato administrativo, ainda que através da comunicação entre a organização pública (o estamento comunicacional administração) o cibersistemas (resultando na cibercomunicação)? Através de simples associação já é possível caracterizar as respostas dos emails prestadas pela organização pública como atos administrativos ou também “emails administrativos”, nada mais são do que comunicações do âmbito comunicativo “administração” do subsistema político, como também poderão ser observadas como comunicações sistêmicas organizacional, existente entre os subsistemas político e jurídico de Santo Antônio da Patrulha: a Prefeitura Municipal. Seria possível também observar o email como um meio de cibercomunicação virtual ou até mesmo um subsistema que acopla não somente os âmbitos comunicativos do subsistema político como as próprias estruturas internas da administração como ocorreu nos emails nos quais a Assessoria de Comunicação Social encaminhou a mensagem eletrônica para outras secretarias. Um dos códigos que foi utilizado pela Administração através da Assessoria de Comunicação foi a diferenciação entre a informação pública e a que não é pública, a informação privada (que trata de interesses e direitos privados/particulares), pois no momento em que responde à solicitação do Cibercidadão 31 “Desculpe não poder ajudar, mas não temos o contato desta pessoa”(Email 31) ou “Desculpe não poder ajudar, mas não temos conhecimento desta informação” (Email 34), a organização pública, existente entre os subsistemas jurídico e político (que também poderá ser observada como instância de comunicação do subsistema político), a partir do código informação pública/não-pública, num movimento circular e não hierárquico, selecionou as comunicações para ingressarem no seu sistema. Por outro lado, não atendendo às expectativas cognitivas comunicadas através do ciberespaço, em relação às mensagens do Email 31 e 34, reduziu a complexidade e facilitou as operações recursivas do seu próprio funcionamento, diferenciando-se do entorno e dos demais subsistemas. Não é possível afirmar que tais comunicações geraram decisões vinculantes, ou melhor, comunicações vinculantes, pois a decisão é uma cibercomunicação (“seu pedido não se trata de informação pública e sim não-pública/particular”), que necessitaria da descrição das observações de 2ª ordem dos próprios cibercidadãos. É importante ressaltar que esta codificação pode ser observada sobre as observações e as mensagens de resposta da organização pública, ou seja, podem ser observadas no seu próprio funcionamento, revelando limites entre seu sistema e os entornos, como o próprio sistema social, assim, no caso concreto, seria possível dizer: “sistema social (ou público como âmbito comunicativo da política), seu pedido não será processado neste sistema, desculpe, nosso código de ingresso não permite. Tal comunicação não está baseada em hierarquias mas sim na diferenciação funcional, aqui da organização pública (da administração do subsistema político) em relação aos seus entornos e assim fecha o sistema organizacional, é uma cláusula operativa, ou seja, a organização somente funciona, realiza operações, relações e comunicações a partir do seu código. 2.1.2. O “Fale conosco” presta serviço público? Fornecer informações é prestar serviço público? O novo programa do subsistema jurídico, a Lei Federal nº12. 527/11 não deixa dúvidas em seu art. 9º que enumera a prestação de informações como esse qualificativo. Para verificar se as respostas prestadas pela Prefeitura (administração do subsistema político e organização pública) se constituem em serviço público, sob o ponto de vista sistêmico autopoiético, o código serviço público/não serviço público (RECK: 2009, p.11) possibilitará tal descrição a partir da função exercida pelas comunicações (ocorridas entre a organização (administração), o cibersistema e o público, que resulta numa cibercomunicação) ocorridas através do email “fale conosco”. As mensagens e as respostas enviadas pela Prefeitura aos cibercidadãos através do ciberespaço e seus programas, se constituem num “serviço público da sociedade” (RECK: 2009, p. 15). A prestação de informações públicas é uma função que este conceito de “serviço público da sociedade” poderá prestar tanto para o subsistema político como o jurídico, trazendo novas possibilidades funcionais de observação, diferentes (nem melhores ou piores) daquelas expressas nos manuais de direito administrativo (como os de MEIRELLES (2011) e DI PIETRO (2005), que buscam “… uma morfologia ou essência do serviço público” (RECK: 2009, p. 15). A busca pela essência, pelo fundamento último, pela origem da legitimidade é uma busca inócua, “… es un empeño vano” (LUHMANN: 2007, p. 44), uma vez que reproduz relações cartesianas representacionistas e descarta importantes conceitos próprios da (pós/hiper/e outros – modernidade) como a circularidade processual, a substituição de hierarquização pela diferenciação funcional, a simultaneidade, a complexidade, a aleatoriedade, dentre outros. Esta nova comunicação política, agora programa jurídico, confirma que as mensagens-respostas dos “emails-administrativos” são atos administrativos, sendo que assim, torna-se serviço público da sociedade, conforme dispõe seu art. 5º: “É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”. As seleções e operações realizadas pela Assessoria de Comunicação, quando repete a informação “Não há concurso em aberto no momento, quando tivermos alguma notícia, divulgaremos em nosso site e nos meios de comunicação”, nos Emails nº 15, 17, 18, 20 e 21 “… levam a formação de redundâncias e com isso, à semântica do sistema. O sistema desse modo, estabiliza os conceitos e os transforma em estrutura, (…), que vão fazer parte do sistema e ajudar na construção de novas operações” (RECK: 2009, p. 21). Neste sentido, um conceito sistêmico de serviço público, como a prestação de informações públicas através do “Email-administrativo-fale-conosco” poderá contribuir para que ocorram outras comunicações, em especial, no subsistema político e em seus âmbitos administração e público, atualizando assim a evolução dos subsistemas nas relações e comunicações destes com o cibersistema. 2.1.3. O “fale conosco” e a Constituição Federal de 1988 como acoplamento estrutural Se o email-administrativo “fale conosco” pode ser observado com um ato administrativo, suas mensagens e respostas selecionadas a partir do código informação pública/não-pública, seria possível afirmar que tais atos e serviços públicos funcionam a partir da relação entre o subsistemas político e jurídicos acoplados pela Constituição Federal de 1988? Esta é a 3ª hipótese do texto. A complexidade advinda e que também gera evolução (como resultado de um processo constante de variação, seleção e estabilização de estruturas[5]) do Sistema Jurídico Brasileiro, em especial a partir da Constituição Brasileira de 1988 e através de sua constante autopoiese específica (também denominada derivada e, em alguns casos, operativa) ocasionou a observação do próprio subsistema do Direito, gerando outros subsistemas internos que, por acoplamentos estruturais, comunicações e cumprimento de sua funcionalidade diferenciada próprios do Sistema Jurídico Brasileiro, contribuem para a realização da sua autopoiese. Para LUHMANN (2002), “… los conceptos de “acoplamiento estructural e irritacion” se encuentran condicionados entre sí de manera recíproca. También la irritación es una forma de percepción del sistema; más precisamente, una forma de percepción sin un correlato en el entorno” (p. 510). Neste sentido, algumas irritações poderão ser provocadas pelo acoplamento estrutural, por exemplo, entre os subsistemas político e jurídico na relação virtual entre uma organização pública (administração), os cibersistemas e o público (quem sabe os sistemas psíquicos), através do “email-administrativo”, pois nesta reciprocidade comunicacional, advém muita informação desorganizada a partir das estruturas dos sistemas envolvidos. O Email 41, do Cibercidadão 41 que reside em outro Município e, certo dia, quando visitava o Município foi multada “… por ter entrado em uma rua na contramão” corrobora tais operações: o próprio cibercidadão informou sobre as orientações que recebeu dos policiais, ou seja, descreveu suas observações sobre os policiais, reconheceu que estava descumprindo uma norma de trânsito e ainda assim, manifestou suas expectativas cognitivas e normativas através da cibercomunicação. O “desabafo”, dito pelo próprio cibercidadão contempla elementos e comunicações de vários subsistemas, como o do direito, da psicologia (resta imaginar se a teoria sistêmica autopoiética aceitasse, sem os cibersistemas, que as pessoas pudessem participar dos processos comunicativos sistêmicos? A administração ou a organização pública necessitaria de profissionais de outros subsistemas, como da psicologia, da saúde, enfim, para satisfazer tais expectativas e reduzir as complexidades e irritações), da polícia, do trânsito, enfim, muita informação desorganizada das quais os sistemas parciais realmente necessitam de codificações que limitem o ingresso destas, aqui no caso, do sistema organizacional público. A Constituição Brasileira, como aquisição evolutiva (NEVES: 2006, p. 96) dessa sociedade, funciona como acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema político. Ao mesmo tempo que permite o fechamento do sistema jurídico, possibilita a abertura cognitiva para o sistema político: “… a Constituição na acepção moderna é fator e produto da diferenciação funcional entre direito e política como subsistemas da sociedade. Nessa perspectiva, a constitucionalização apresenta-se como o processo através do qual se realiza essa diferenciação. … Luhmann define a Constituição como acoplamento estrutural entre a política e direito” (NEVES: 2007, p. 65). O conceito de Constituição na proposta luhmanniana, descarta sua concepção como “declaração de valores políticos-jurídicos preexistentes, inerentes à pessoa humana” (NEVES: 2007, p. 65), funcionando, na verdade, “como fator ou produto da diferenciação funcional entre direito e política como subsistemas da sociedade” (p. 65). A Constituição Federal como acoplamento estrutural comunica ao sistema jurídico as perturbações e irritações próprias do sistema político, que geram fluxos estruturais, resultando na evolução recíproca destes sistemas, a partir da produção de informações para ambos, dentre outras conseqüências possíveis. Através do acoplamento estrutural, a Constituição acaba por garantir a autonomia operacional dos subsistemas; no caso do Direito, “ela é a forma com a qual o sistema jurídico reage à sua própria autonomia” (NEVES: 2006, p. 99), impedindo que “… critérios externos de natureza valorativa, moral e política tenham validade imediata no interior do sistema jurídico, delimitando, dessa maneira, as fronteiras” (NEVES: 2006, p. 99). O princípio da legalidade, ainda que conceituado no sentido amplo, está justamente previsto no art. 37 da CF/88 como programa que orientará todas as ações, fatos e atos que ocorram na administração pública, selecionando assim, que outros critérios, próprios da política por exemplo, como sua codificação situação/oposição, dêem entrada no sistema organizacional. Evidente que inexiste purismo nestas relações e comunicações, ainda mais num País onde o “jeitinho”, a “politicagem” e outros derivativos da cultura brasileira (sem desconsiderar toda sua qualidade e complexidade) ainda estão presentes no sistema social e nos demais sistemas parciais, ocorrendo “… o bloqueio permanente e generalizado do código “direito/não-direito” pelos códigos “ter/não-ter” (economia) e “poder/não-poder” (política), (que – grifo nosso) implica uma prática jurídico-política estatal e extra-estatal caracterizada pela legalidade” (NEVES: 2007, p. 184). Cumpre destacar que, apesar da descrição de alguns conceitos e categorias que comprovam a dupla funcionalidade da Constituição Brasileira, ora para o subsistema do Direito Constitucional, ora como acoplamento estrutural entre os subsistemas da política e do direito, observando o Sistema Jurídico Brasileiro, em especial em relação à não efetividade da Constituição Federal de 1988, já com 24 anos de vigência perante o Sistema da Sociedade, das inclusões e exclusões dos sistemas e entre sistemas, conclui-se, ao menos parcialmente, que aqui a Constituição funciona, em algumas comunicações jurídicas e políticas, para uso simbólico: “[…] de las Constituciones sirve a la política para proceder como si el derecho la limitara e irritara y para abandonar las verdaderas relaciones de poder a la comunicación de los entendidos” (LUHMANN: 2002, p. 549). A Lei nº 12.527/11 programará a relação virtual entre organizações públicas e normatizará o art. 5º, inciso XXXIII, o inciso II do § 3o do art. 37 e o § 2o do art. 216 da CF/88, mas não é objeto deste texto ante sua complexidade e possibilidade de inúmeras outra observações e descrições sistêmicas. Este novo programa do subsistema jurídico, que contém inúmeras expectativas, poderá servir (do futuro não dispomos e inexiste possibilidade de discursos utópicos do tipo “esta lei vai garantir o exercício da cidadania e democracia digitais” que demonstrem embasamento para tais esperanças) para estabilizar as expectativas do público e dos demais subsistemas, “… coordenando as condutas fáticas dos indivíduos que integram uma determinada coletividade” (TRINDADE: 2008, p. 57). Ocorre que, atualmente, a organização pública não dispõe de nenhum tipo de norma nem de lei em sentido estrito para realizar atos administrativos, prestar serviço público de informação pública e comunicar-se com os cibersistemas através do email: “Não existe um prazo específico para resposta dos e-mails. Este processo se dá de maneira informal, até porque não disponibilizamos de um servidor para fazer exclusivamente esta tarefa” (parte final da resposta da 1ª pergunta do questionário – anexo 03). É possível identificar um paradoxo: a referida informalidade na prestação de informações públicas através da comunicação entre subsistemas parciais, ciber e psíquicos, observada pela própria organização, poderá tornar-se formal, conforme indica um programa do subsistema jurídico, através de regulamento (§ 3º do art. 8º da Lei nº 12.527/11), que na verdade resulta de um ato/comunicação administrativo, ou seja, o novo programa do subsistema jurídico comunica que a própria administração deverá elaborar suas normas para normatizar a prestação de serviço público, através de atos/comunicações administrativas: um regulamento: “Os sítios de que trata o § 2o deverão, na forma de regulamento, atender (…)”. 3. Enquanto isso, no centro do sistema jurídico… Atualmente ocorrem inúmeros paradoxos no interior do subsistema jurídico no que se refere às cibercomunicações que ocorrem através do “Email-administrativo-fale-conosco” e que revelam que o Poder Judiciário, como órgão que produz as comunicações jurídicas, gera maior complexidade e contradição conforme os 107 (cento e sete) acórdãos pesquisados no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[6] através das chaves de pesquisa: “email”, “fale conosco” e “email e prefeitura”. Diferentemente dos conceitos tradicionais sobre a decisão jurídica, para a teoria sistêmica autopoiética, estas comunicações jurídicas advém do centro de produções de comunicações jurídicas: os tribunais e juízes de direito. Enquanto a política funciona num alto grau de complexidade e de indeterminação, o direito funciona para reduzir a complexidade da sociedade e do seu interior: “A decisão política pressupõe um leque de comunicações sociais, uma circularidade de informações, uma variabilidade de opiniões e de referências cognitivas infinitamente mais detalhadas e complexas do que a decisão jurídica. O código da comunicação jurídica pressupõe uma complexidade já reduzida pelo sistema político (CAMPILONGO: 2002, p. 91). As decisões judiciais selecionadas (107 julgamentos do TJRS e 1 julgamento do STJ, num total de 108) foram publicadas e estão disponíveis a qualquer cibercidadão através do site oficial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mediadas a partir de cibersistemas que se comunicam com a organização pública para a produção de comunicações jurídicas virtuais, o que seria possível denominar de “ciberdecisões”, acessíveis independentemente do tempo (do horário de funcionamento por exemplo, do acesso ao TJRS) e do espaço (o cibercidadão poderá consultar tanto seu processo como outras comunicações judiciais em qualquer lugar do mundo onde esteja disponível um computador). Diferentemente das decisões legislativas e administrativas, que na maioria das vezes não precisam ser obrigatoriamente tomadas e adotadas, a decisão judicial é uma imposição do sistema jurídico[7], inexiste a possibilidade da não-decisão judicial, é a aplicação do princípio da “proibição da denegação da justiça”, tornando o Judiciário o centro do sistema jurídico: “Que los tribunales se vean en la necesidad de decidir es el punto de partida para la construcción del universo jurídico, para el pensamiento jurídico y para la argumentación jurídica. […] El sistema se orienta por reglas de decisión (programas) que son los que sirven para especificar los puntos de vista de la seleción (LUHMANN: 2002, p. 379). A decisão judicial como comunicação jurídica garante a autopoiese do subsistema jurídico, ainda que contraditórias entre si. Ao mesmo tempo em que o Judiciário ocupa o centro do Sistema Jurídico, ele tem “… uma visão necessariamente casuística, descontínua e fragmentária, própria de quem examina o problema nos limites da lide proposta pelas partes (comutativamente) e não com referência à totalidade das relações circulares entre o público, o político e o administrativo (distributivamente)” (CAMPILONGO: 2002, p. 105). Tal funcionamento poderá ocasionar em comunicações que se não selecionadas a partir dos respectivos códigos dos subsistemas envolvidos (como na política e no direito) sejam conflituosas e que poderão gerar maior complexidade e instabilidade nas relações ou comunicações intersistêmicas. As informações, mensagens ou comunicações que ocorrem através dos cibersistemas, advindas do subsistema político poderão gerar outras informações, mensagens ou comunicações, desconsideradas nas comunicações jurídicas, como as decisões, aqui selecionadas, e que tratam sobre a não-aceitação do código direito/não-direito de muitos emails e correspondências eletrônicos no subsistema jurídico: enquanto no subsistema político em Santo Antônio da Patrulha, o “Email-administrativo” é um ato administrativo e ocorre como prestação de serviço público da sociedade, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, apesar de algumas decisões paradoxais, dos 108 (cento e oito) comunicações (decisões) jurídicas observadas, 88 (oitenta e oito) não reconhecem o “Email-administrativo”, tanto de organizações públicas como privadas, como “… meio inapto para comprovar a solicitação administrativa”[8]. Nesta centralidade dos Tribunais no sistema autopoiético, como no caso de países como o Brasil, de modernidade periférica, existem inúmeras contradições e paradoxos, em especial em relação aos direitos e às políticas públicas sociais (no qual está inserida a assistência social), que podem ser referidos em relação à proposta luhmanniana, e que têm relação direta na descrição das comunicações entre os subsistemas político e jurídico. O surgimento do “Email-administrativo”, em 2010-2011, anos-base que foram utilizados para a pesquisa dos julgamentos do TJRS não pode ser considerado como novidade para o subistema jurídico: “Não há, portanto, nada de muito novo; o computador se inserir na vida dos juristas já era uma realidade que se cristalizava há praticamente 40 anos atrás” (BARRETO: 2009, p. 451). Nos julgamentos selecionados, é possível identificar alguns elementos organizacionais do Tribunal de Justiça do Estado do RS e que tem comunicado sentido através de suas comunicações/decisões. Seria possível afirmar que, no Estado do Rio Grande do Sul, dos 107 (cento e sete) julgamentos observados (sendo que 1 julgamento foi selecionado do Superior Tribunal de Justiça), 75 (setenta e cinco julgamentos) são comunicações da 18ª Câmara do TJRS, composta por 5 desembargadores[9]. A grosso modo, é possível afirmar, com base nas comunicações jurídicas observadas, que a produção de sentido do centro do Subsistema Jurídico do Rio Grande do Sul é selecionada e comunicada pela estrutura interna da organização judiciária, qual seja, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que trata de direito privado, majoritariamente através dos julgamentos nos quais os desembargadores Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, o Presidente desta estrutura interna da organização judiciária e Pedro Celso Dal Prá, que juntos totalizam 64 julgamentos dos 107 que foram observados, como relatores e com seus votos acolhidos pelos demais integrantes que participaram destes julgamentos. Em recente julgamento (14.07.2011) de um recurso, denominado de Apelação, a 18ª Câmara Cível do TJRS, reproduziu seu entendimento, aqui unânime de que o “email fale conosco” não serve como prova para demonstrar que um consumidor enviou determinada solicitação para uma empresa para pleitear seus direitos. Como a empresa nada fez nem respondeu seu email, o cibercidadão juntou o email enviado para provar que a empresa resistiu aos seus pedidos e por isso precisou ajuizar, entrar com uma ação judicial requerendo o mesmo objeto.   Da mesma forma na relatoria, voto e julgamento do Dês. Pedro Celso Dal Prá ao entender que o pedido feito pelo “fale conosco”, constante no site da ré na rede mundial de computadores (internet), não serve para demonstrar interesse processual[10].   Para fins de registro, cumpre que além dos 75 (setenta e cinco) julgamentos ocorridos e observados através dos cibersistemas comunicados pela 18ª Câmara Cível de Direito Privado do TJRS, por ordem numérica crescente, outros julgamentos foram observados nas seguintes câmaras (estruturas internas) da organização judiciária (todas Câmaras Cíveis de Direito Privado): 6ª Câmara – 4 julgamentos; 9ª Câmara – 1 julgamento; 12ª Câmara – 1 julgamento; 14ª Câmara – 2 julgamentos; 15ª Câmara – 1 julgamento Cível e, 20ª Câmara – 1 julgamento, todos contrários ao reconhecimento do meio ora como meio ora como elemento do subsistema jurídico. Até aqui, as comunicações jurídicas do centro do subsistema jurídico, a organização judiciária – o TJRS, o “email-administrativo-fale-conosco” não pode ser admitido nas demais comunicações dos demais subsistemas se houver alguma expectativa normativa sobre tal submissão ao código direito/não-direito. Um dos primeiros paradoxos que advém do centro do subsistema jurídico são as comunicações de outros julgadores-desembargadores, que reconhecem o “email-administrativo-fale-conosco” como meio de prova para os cibercidadão garantir e exigir seus direitos como também como meio/instrumento adequado para tal. Na 6ª Câmara Cível, a relatoria e os votos do Dês. Artur Arnildo Ludwig geram comunicações jurídicas e judiciais que mantém a complexidade e a insegurança nos demais subsistemas, como o da política, do cibersistemas, da economia, dentre outros, ainda que mantenha seu fechamento operacional pois ainda que em decisões que se contradizem, o subsistema jurídico, a partir de suas próprias comunicações, elementos, operações e comunicações, justas ou não, morais ou não, dentre outras axiologias, submetidas à sua codificação que o diferencia. O mesmo julgador comunica entendimentos diferentes sobre as mesmas expectativas cognitivas e normativas sobre o reconhecimento do email no subsistema jurídico. Recentemente, mais precisamente em 15 de dezembro de 2011, os votos do relator Artur Arnildo Ludwig foi seguido por unanimidade, na 6ª Câmara Cível do TJRS que conclui que determinada pessoa que participe de uma relação jurídica processual “… em nenhuma oportunidade, demonstra ter pugnado, via e-mail ou por escrito, administrativamente a documentação pretendida, a qual poderia ter sido alcançada por aquela via”[11]. E ainda, “considerando que a ré deixou de atender, na sua integralidade, o pedido realizado pela via administrativa (via e-mail), …”[12]. Por outro lado…do mesmo julgador acima referido, “… a requisição remetida à empresa demandada através do sistema “fale conosco” não se mostra suficiente.[13]. Como o subsistema político e seus âmbitos comunicativos, como a administração e o público poderão lidar com tais comunicações para, através da organização, se comunicar com os cibersistemas e o público, se o centro do subsistema jurídico ora comunica que tal “meio” é aceito pela codificação direito/não-direito, ora não, como ocorreu em outras comunicações jurídicas de outras estruturas internas da organização judiciária, que se constitui pela comunicação, e que tratavam do mesmo objeto? É possível identificar a existência de contradições, incertezas e imprecisões e o aumento de complexidade nas comunicações jurídicas provenientes do centro do subsistema jurídico, que, são reproduzidas na relação e comunicação com os demais sistemas (como a política e os cibersistemas). Um pouco mais de complexidade e contradição: “Julgamento 1. APELAÇÃO CÍVEL. SEGUROS. AÇÃO CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. CONFIGURADO O INTERESSE DE AGIR. 2. Entendo válido o pedido de exibição do processo administrativo formulado via e-mail, já que se trata de ferramenta de contato disponibilizada pela própria seguradora; por conseguinte, constata-se que houve a provocação da parte junto a Seguradora, no entanto, o pedido não foi atendido”[14]. “Julgamento 2 (ao contrário…): APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. Pedido de exibição de documentos via e-mail, no portal da internet do réu, “fale conosco”, não tem como vingar como administrativo, e de resistência, por não respondido”[15]. Mesmo que não seja possível “… resolver juridicamente problemas que são do sistema político ou do sistema econômico” (CAMPILONGO: 2002, p. 173) e que o processo judicial “… é apenas uma forma – perversa, é verdade – de tornar público um problema anteriormente ignorado pelo sistema político…” (p. 173), “… a Magistratura Brasileira, considerada a partir de seu ethos cultural, corporativo e profissional, tem desprezado o desafio de preencher o fosse entre o sistema jurídico vigente e as condições reais da sociedade, em nome da segurança jurídica e de uma visão por vezes ingênua do equilíbrio entre os poderes autônomos. […] os tribunais continuam com uma cultura técnico-profissional defesada – com métodos exclusivamente formais de caráter lógico, sistemático e dedutivo –, incapazes de entendê-los e, por conseqüência, de aplicá-los” (KRELL, p. 71-75). Será que o centro do sistema jurídico, no caso brasileiro, tem condições de cumprir suas funções sistêmicas, comunicar-se com o subsistema da política e ainda mantendo sua autonomia, seu fechamento operacional e sua autopoiese, ainda mais quando se trata do direito fundamental à informação pública através dos cibersistemas? LUHMANN (1990) reconhece que, “em parte, os Tribunais protegem-se a si mesmos, à medida que eles levam em consideração o ônus que sobre eles recai, no contexto da ponderação de consequências de construções distintas do Direito” (p. 162). Conforme já identificado, o sentido dominante e não unânime, comunicado pela organização judiciária do RS, através da sua estrutura interna, a 18ª Câmara e das comunicações de seus integrantes é confrontado, perturbado, questionado por outras comunicações jurídico-judiciais, da mesma organização judiciária e que reconhece o “email” como meio e instrumento legítimo para provar e comprovar direitos dos cibercidadãos. Existem comunicações jurídicas na organização judiciária que reconhecem o email como “meio” suficiente, juntamente com outras provas de meios de comunicação de massa, para provar crime contra a honra, por exemplo, “… ação indenizatória de danos morais. notícia de poda de árvore veiculada, através de e-mail e jornal local, (…). provas inequívocas de que houve lesão à honra subjetiva e ao decoro do recorrente[16]. No teor integral desta comunicação jurídica não há nenhuma referência a qualquer exigência técnica para comprovar se o email foi enviado por e para determinado cibercidadão, nem se existia certificação ou assinatura digital. Ao contrário, o email foi aceito como comunicação no subsistema jurídico através, apenas, de uma cópia de sua mensagem, que através do cibersistemas, foi repassada a outros sistemas, sociais e psíquicos. O “email-administrativo-fale-conosco” e outros endereços eletrônicos foi o único elemento de prova utilizado para a prolação de uma comunicação jurídica condenatória, sem a exigência de nenhum requisito técnico como a certificação e a assinatura digital: reparação: “… dano moral caracterizado. envio de e-mail com conteúdo pejorativo. Configura abalo moral o envio de mensagem eletrônica com conteúdo pejorativo, no qual o demandado utiliza a expressão “Idiota” para se reportar ao autor, funcionário da prefeitura. E-mail enviado ao prefeito da cidade e diversas secretárias da prefeitura. Flagrante propósito de ridicularizar o autor frente a colegas de trabalho e terceiros”[17]. Como é possível que o centro das comunicações jurídicas comunique que o email para comprovar pedidos administrativos simples contra seguradoras, por exemplo, não é aceito no subsistema jurídico, mas, se for utilizado para comprovar o cometimento de danos morais ou crimes contra a honra, mesmo sem a exigência de qualquer requisito formal e que comprove as titularidades das mensagens, ele ultrapassa o código direito/não direito? Em outra comunicação, para que o email seja aceito através do código binário direito/não direito, faz-se necessário que seja comprovado se o destinatário recebeu ou não a mensagem comunicada pelos cibersistemas, mesmo que não seja através de certificação ou assinatura digital, se houver como comprovar que o “outro lado” recebeu o email, este será reconhecido, mesmo que inexista prova da titularidade de quem enviou o email e que tal comunicação tenha ocorrido entre organizações públicas: “envio de intimação para cumprimento de liminar por email. Ausência do comprovante de recepção da intimação”[18]. Quando o código da política situação/oposição é utilizado na cibercomunicação: Site Oficial da Prefeitura Municipal (…) divulgação de imagens das autoridades locais. Divulgação de imagens de agentes políticos em site oficial da Prefeitura Municipal não tem caráter de promoção pessoal quando informa apenas o nome da autoridade, telefone de contato e e-mail pessoal, sem qualquer referência à ideologia partidária ou obras públicas realizadas[19]. Ainda que restrito a 19 (dezenove) julgamentos dos 107 (cento e sete) observados, tais comunicações aceitam a inclusão dos meios eletrônicos virtuais no subsistema jurídico, aceitando, apenas cognitivamente, as inovações tecnológicas e informacionais[20]. Através da observação e descrição das cibercomunicações jurídicas, uma vez que os julgamentos aqui referidos foram consultados diretamente no site do TJRS, é possível identificar que o centro do sistema jurídico, a organização judiciária, produz comunicações contraditórias, paradoxais que, até poderão ter reduzido a complexidade nos processos individuais julgados, mas que, na comunicação com os demais subsistemas, dentre eles o da política e o da economia (contratos, seguros, etc) não tem cumprido sua função de reduzir expectativas e complexidades através de suas comunicações. Tais comunicações, com diferentes elementos e conseqüências, possibilitam a manutenção do proposto neste trabalho: o “Email-administrativo-fale-conosco” da Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha é um meio eletrônico que possibilita a realização de atos administrativos e a prestação de serviços públicos, com conseqüências e reflexos incertos e paradoxais no interior do subsistema jurídico, ou seja, mesmo ante às comunicações jurídicas paradoxais realizadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Será um paradoxo curioso, quando o Judiciário estiver com todas as suas funções virtualizadas[21] e se ainda não estiver reconhecendo as mensagens, informações e comunicações que ocorrem através do “email” como um meio aceito pelo código direito/não-direito. Desta forma, ainda que o centro do subsistema jurídico deste Estado produza comunicações paradoxais, majoritariamente contrárias ao “Email Fale Conosco”, tanto público como privado, é possível identificar que este meio de comunicação virtual é reconhecido no subsistema jurídico, uma vez que é possível qualifificá-lo como ato administrativo, como serviço público e também como elemento de prova para processos judiciais, conforme comprovam as decisões judiciais aqui referidas, ainda que em minoria, mas que produzem outras comunicações nos demais subsistemas e no próprio sistema social. CONCLUSÃO A proposta da Teoria Sistêmica Autopoiética constitui uma das mais ousadas, intrigantes e complexas teorias sociais atuais e que demanda, ainda, muito espaço nos meios acadêmicos e teóricos para o seu desenvolvimento, para sua aplicabilidade (se houver), para a sua evolução. Este corpo teórico requer complexos exercícios de abstração, na maioria das vezes incomparáveis com os demais subsistemas da ciência, e rompe com os principais paradigmas que até agora sustentavam nossas certezas científicas. Ao mesmo tempo em que provoca rupturas epistemológicas, não despreza, ao contrário, reconhece a importância de outras elaborações, inclusive sobre a necessidade, em alguns casos, da pesquisa empírica, da interpretação hermenêutica, dentre outras. O “Email Fale Conosco” reproduz uma relação sistêmica autopoiética entre os cibercidadãos (público do subsistema político e também sistema psíquico) e a Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha (Administração do subsistema político e também como organização) que, mediada pelos cibersistemas (como a internet), produz cibercomunicações. Além disso, é possível identificar que o “Email Fale Conosco” é reconhecido pelo subsistema jurídico, pois é possível qualificá-lo como ato administrativo e também como um meio de prestação de serviços públicos. Além disso, embora existam contradições e paradoxos, as decisões do Tribunal de Justiça deste Estado, existem decisões, minoritárias, que reconhecem tal meio virtual como meio de prova judicial, aceitando-o assim, no subsistema jurídico. A 3ª hipótese não pode ser comprovada, uma vez que na relação virtual observada, inexiste lei ou qualquer espécie normativa que discipline tal relação, impossibilitando assim, que a CF/88 cumpra sua função de acoplamento estrutural entre os subsistemas político e jurídico, uma vez que inexiste a observância dos princípios constitucionais na relação virtual que ocorre através do “Email Fale Conosco” da Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha. Nesta perspectiva teórica não é possível propor soluções definitivas, fundamentos únicos, nem desconsiderar o que está posto, mas de provocar outros olhares, sob outros ângulos e observações, considerando as profundas alterações que vêm sofrendo o Estado (Reforma Administrativa do Estado) e a sociedade brasileira, inseridos no sistema social global e o qual não podemos (nem devemos) evitar. Por fim, a edição da Lei Federal nº 12.527/11, que entrou em vigência para os subsistemas político e jurídico a a partir de maio de 2012, aplicada ainda com muita timidez pelos entes públicos, um programa jurídico, talvez possibilite a evolução nos sistemas de informação pública aos cidadãos, permitindo também, ao menos literalmente, o acoplamento estrutural entre estes dois subsistemas através da Constituição Federal de 1988. É ao menos o que concretamente é possível afirmar até este momento.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/as-relacoes-virtuais-entre-o-cidadao-e-a-administracao-publica-atraves-do-email-administrativo-fale-conosco/
O tratamento favorecido das microempresas e das empresas de pequeno porte nas licitações públicas à luz da LC Nº 123/06 e das inovações dadas pela LC 147/2014
O presente artigo tem o objetivo de analisar o tratamento diferenciado das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte nas licitações e contratações públicas com o advento da LC 123/06 e suas alterações recentes pela LC 147/2014. O trabalho limitar-se-á a análise da Seção I (Das Aquisições Públicas – art. 42 a 49). Não será objeto desse trabalho a análise acerca do SIMPLES ou outros benefícios tributários decorrentes desse normativo.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O presente trabalho visa analisar o tratamento diferenciado e simplificado das micro e pequenas empresas nas licitações públicas. O tratamento diferenciado tem fundamento na Constituição Federal e tem por objetivo a observância ao princípio da isonomia. A LC 123/06 institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. A grande maioria das disposições contidas no diploma apresenta natureza tributária, mas consagrou também regras de outra natureza. O capítulo V, que versa sobre o Acesso aos Mercados (art. 42 a 49) trata da participação das micro e pequenas empresas nas licitações públicas. Recentemente foi publicada a LC 147/2014 que trouxe inovações também no Capítulo V, antes formado por Seção Única (Das Aquisições Públicas) alterado para Seção I (Das Aquisições Públicas) e Seção II (Acesso ao Mercado Externo). O trabalho propõe-se a analisar o fundamento constitucional para o tratamento diferenciado e a legislação infraconstitucional, o enquadramento da Micro e Pequena empresa, o tratamento diferenciado na licitação, abordando os benefícios tais como a regularização fiscal tardia e a preferência na contratação no caso do empate ficto e os demais dispositivos que tratam do tratamento diferenciado na contratação com o Poder Público. Serão ainda analisadas as alterações após a publicação da LC 147/2014 que trouxe inovações no assunto.
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A necessidade de observância da equação econômico-financeira e as formas de reajustamento dos contratos administrativos
O presente artigo tem o objetivo de analisar as formas de reajustamento do contrato administrativo admitidas pela legislação, a necessidade de sua previsão no edital e no contrato administrativo, a periodicidade e a questão da preclusão do direito.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, XXI, estabeleceu o direito ao equilíbrio econômico-financeiro contratual, o qual se tornou um princípio para o ordenamento jurídico pátrio. Há basicamente três modalidades de reajustamento: a) revisão; b) reajuste em sentido estrito; e c) repactuação. Observa-se que não há unanimidade na doutrina acerca da denominação terminológica dos diversos institutos. As situações que podem ensejar a necessidade de restabelecer a equação econômico-financeira podem ser as mais variáveis. Desde que seja desfeita a relação de proporcionalidade estabelecida em conformidade com a proposta apresentada pelo contratado, haverá, por via de consequência, desequilíbrio contratual. Conforme dito, a Carta Magna garante a manutenção das condições efetivas da proposta. O trabalho vai analisar a definição e seu fundamento constitucional da “equação econômico-financeira”, bem como as modalidades de reajustamento. Na elaboração do trabalho foram levadas em consideração as lições doutrinárias de renomados autores da área e os pareceres da AGU e da PGF acerca do assunto. 1. DO REEQUILIBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO A equação econômico-financeira do contrato é a relação de adequação entre o encargo suportado pelo particular e a remuneração paga pela Administração que será determinada no momento da elaboração do ato convocatório e que será firmada no instante em que a proposta é apresentada e aceita pela Administração, devendo ser mantida durante toda a contratação. Assim, quando ocorrer qualquer alteração no equilíbrio econômico-financeiro do contrato, quer seja através da variação de índices inflacionários, quer seja pela ocorrência de fatos supervenientes, o mesmo deverá ser “revisado”. Vejamos a definição dada pelo autor José dos Santos Carvalho Filho[1]: “Equação econômico-financeira do contrato é a relação de adequação entre o objeto e o preço, que deve estar presente ao momento em que se firma o ajuste. Quando é celebrado qualquer contrato, inclusive o administrativo, as partes se colocam diante de uma linha de equilíbrio que liga a atividade contratada ao encargo financeiro correspondente. Mesmo podendo haver certa variação nessa linha, o certo é que no contrato é necessária a referida relação de adequação. Sem ela, pode dizer-se, sequer haveria o interesse dos contratantes no que se refere ao objeto do ajuste”. De acordo com Marçal Justen Filho[2]: “O equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo significa a relação (de fato) existente entre o conjunto dos encargos impostos ao particular e a remuneração correspondente. (…) É possível (a semelhança de uma balança contábil) figurar os encargos como contrabalançados pela remuneração. Por isso se alude a ‘equilíbrio’. Os encargos equivalem à remuneração, na acepção de que se assegura que aquela plêiade de encargos corresponderá precisamente à remuneração prevista. Pode-se afirmar, em outra figuração, que os encargos são matematicamente iguais às vantagens. Daí a utilização da expressão ‘equação econômico-financeira”. O postulado tem fundamento constitucional conforme se depara no art. 37, XXI, in verbis: “CF, Art. 37 XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.     A proteção ao equilíbrio econômico-financeiro encontra, ainda, amparo nos princípios constitucionais, como o da isonomia, da tutela e da indisponibilidade dos interesses fundamentais.  A tutela do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos beneficia tanto a Administração Pública como o contratado. No período em que dura um contrato administrativo, existe a possibilidade de que se rompa o equilíbrio econômico-financeiro que existia na época em que o ajuste foi celebrado. Se, por algum fato ou motivo superveniente, as obrigações para uma das partes se tornam extremamente onerosas, verifica-se uma quebra do Equilíbrio econômico-financeiro, nascendo para a parte o direito de modificação de suas cláusulas, de forma a que o equilíbrio perdido seja restaurado. Será utilizado o termo reequilíbrio para indicar o gênero. Ou seja, o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato compreende o estudo da teoria da imprevisão (ou revisão ou recomposição), do reajuste e da repactuação. Importante destacar que não há unanimidade na doutrina acerca da denominação terminológica dos diversos institutos. Todos tem o mesmo fundamento – princípio da intangibilidade da equação econômico-financeira do contrato administrativo, mas não a mesma natureza jurídica. 2. AS FORMAS DE EXPRESSÃO DO REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO 2.1 REVISÃO[3] A REVISÃO também chamada de RECOMPOSIÇÃO[4] ocorrerá quando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro é devida à força maior, a caso fortuito, a fato do príncipe, a qualquer fato imprevisível ou a qualquer fato que, embora previsível, tenha efeitos incalculáveis (álea econômica extraordinária). Aplica-se aqui a teoria da imprevisão.  A Lei nº 8.666/93 prevê, expressamente, a possibilidade de, por acordo das partes, ser promovida a recomposição do equilíbrio do contrato. Assim dispõe o  art. 65, II “d” da Lei nº 8.666/93, in verbis: “Art. 65.  Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (…) II – por acordo das partes:(…) d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)” Da leitura do artigo observa-se que para que seja admitida a revisão é necessário que sobrevenha: a) fatos imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe; b) estranhos à vontade das partes; c) inevitáveis e d) causadores de desequilíbrio no contrato. Assim, não se pode admitir a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos fora das circunstâncias definidas em lei, sob pena, de desvirtuar o sistema e causar injustiças na licitação. O administrador deve agir com grande cautela e sempre aduzir os fundamentos que justificam a aplicação da teoria da imprevisão e o porquê da fixação dos novos valores. Nesse sentido são os ensinamentos de Marçal Justen Filho[5]: “O reestabelecimento da equação econômico-financeira depende da concretização de um evento posterior à formulação da proposta, identificável como causa do agravamento da posição do particular. não basta a simples insuficiência da remuneração. Não se caracteriza rompimento do equilibrio econômico-financeiro quando a proposta do particular era inexequível. A tutela à equação econômico-financeira não visa a que o particular formule proposta exageradamente baixa e, após vitorioso, pleiteie elevação da remuneração. Exige-se, ademais, que a elevação dos encargos não derive de conduta culposa imputável ao particular. Se os encargos tornaram-se mais elevados porque o particular atuou mal, não fará jus a alteração de sua remuneração”. Para Lucas Rocha Furtado[6]: “Segundo a definição legal, fatos previsíveis, de consequências que possam razoavelmente estimar, não podem servir de fundamento à pretensão de recomposição de preços. A lei não visa suprir a imprevidência do particular ou sua imperícia em calcular o comportamento da curva inflacionária, por exemplo. Apenas o resguarda de situações extraordinárias, fora do risco normal da economia de seus negócios”. Continua o autor: “De fato, admitir a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos fora das circunstancias definidas em lei, vale dizer, aceitar a recomposição de preços nos contratos a todo tempo e modo, na hipótese de o contratante apenas demonstrar alterações na relação econômico-financeira, seria negar qualquer sentido ao instituto da licitação e premiar o licitante que, por má-fé ou inépcia empresarial, apresentou proposta que, com o tempo, revelou-se antieconômica”. Importante destacar que a revisão não necessariamente irá implicar aumento nos preços do contrato. Se os fatos imprevisíveis afetar o contrato de modo a reduzir os custos, deverá ser promovida a devida e proporcional redução nos valores do contrato. O direito a revisão independe de previsão expressa no instrumento contratual. A Revisão com fundamento na teoria da imprevisão deverá ser formalizada por meio de termo aditivo. Outra manifestação de quebra da equação econômico-financeira relaciona-se com a alteração da carga tributária incidente diretamente sobre a execução da prestação objeto do contrato prevista no art. 65, § 5º da Lei nº 8.666/93, in verbis: “§ 5o  Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso”. 2.2 REAJUSTE (ou reajuste em sentido estrito) Quando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro do contrato é devida à flutuação de preços ou de custos que se observa no mercado corriqueiramente (álea econômica ordinária), devido aos efeitos das variações inflacionárias, o restabelecimento da equação econômico-financeira dá-se por meio do REAJUSTE. O reajuste de preços está relacionado à variação dos custos de produção e é visto como um meio de reposição de perdas geradas pela inflação. Parte da doutrina entende que o reajuste em sentido amplo é dividido em: a) reajuste em sentido estrito e b) repactuação. Quando se tratar de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra a orientação é para que seja utilizada a forma de reajustamento pela repactuação. Acentue-se que a adoção de uma forma de reajustamento em detrimento de outra, contudo, não é livre. De acordo com a redação da Orientação Normativa AGU nº 23/2009[7], a repactuação deverá ficar adstrita aos contratos de prestação de serviços contínuos que se utilizem de mão de obra em regime de dedicação exclusiva. Será utilizado o termo “reajuste em sentido estrito” para denominar a forma de reajustamento em que há a fixação de índice geral ou específico que incide sobre o preço após determinado período quando o objeto do contrato não se referir a serviços continuo com exclusiva mão de obra. O autor José dos Santos Carvalho Filho[8] define o instituto: “A primeira forma é o reajuste, que se caracteriza por ser uma fórmula preventiva normalmente usada pelas partes já no momento do contrato, com vistas a preservar os contratados dos efeitos de regime inflacionário. Como esta reduz, pelo transcurso do tempo, o poder aquisitivo da moeda, as partes estabelecem no instrumento contratual um índice de atualização idôneo a tal objetivo. Assim, diminui, sem dúvida, a álea contratual que permitiria o desequilíbrio contratual”. O reajuste, mediante aplicação de índices específicos ou setoriais de preços ao valor do contrato administrativo, é admitido pelo artigo 40, inciso XI, in fine, da Lei nº 8.666/1993: “Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte: (…) XI – critério de reajuste, que deverá retratar a variação efetiva do custo de produção, admitida a desde a data prevista para apresentação da proposta, ou do orçamento a que adoção de índices específicos ou setoriais, essa proposta se referir, até a data do adimplemento de cada parcela;” Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: III- o preço e as condições de pagamento, os critérios, data-base e periodicidade do reajustamento de preços, os critérios da atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento”;(negritou-se) A Lei nº 10.192/2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências, em seu artigo 2º, prevê a adoção de índices gerais, específicos ou setoriais de preços como critério de reajuste do valor dos contratos administrativos, desde que observada a periodicidade mínima de um ano. “Art. 2º É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano. §1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano. §2º Em caso de revisão contratual, o termo inicial do período de correção monetária ou reajuste, ou de nova revisão, será a data em que a anterior revisão tiver ocorrido. §3º Ressalvado o disposto no §7º do art. 28 da Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, e no parágrafo seguinte, são nulos de pleno direito quaisquer expedientes que, na apuração do índice de reajuste, produzam efeitos financeiros equivalentes aos de reajuste de periodicidade inferior à anual. §4º Nos contratos de prazo de duração igual ou superior a três anos, cujo objeto seja a produção de bens para entrega futura ou a aquisição de bens ou direitos a eles relativos, as partes poderão pactuar a atualização das obrigações, a cada período de um ano, contado a partir da contratação, e no seu vencimento final, considerada a periodicidade de pagamento das prestações, e abatidos os pagamentos, atualizados da mesma forma, efetuados no período. §5º O disposto no parágrafo anterior aplica-se aos contratos celebrados a partir de 28 de outubro de 1995 até 11 de outubro de 1997. § 6º O prazo a que alude o parágrafo anterior poderá ser prorrogado mediante ato do Poder Executivo. Art. 3º Os contratos em que seja parte órgão ou entidade da Administração Pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, serão reajustados ou corrigidos monetariamente de acordo com as disposições desta Lei, e, no que com ela não conflitarem, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. §1º A periodicidade anual nos contratos de que trata o caput deste artigo será contada a partir da data limite para apresentação da proposta ou do orçamento a que essa se referir. §2º O Poder Executivo regulamentará o disposto neste artigo”. Questão interessante é saber qual o índice a escolher. Nesse ponto, no âmbito da PGF foi elaborado o PARECER Nº 04/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU aprovado pelo Procurador Geral Federal que abordou o assunto: “23. Questão importante, nesse sentido, é saber qual índice escolher. A priori, deve ser aquele que melhor reflita os preços do objeto contratual. Não há dúvida, portanto, de que índices setoriais ou específicos são preferíveis aos índices gerais, pois enquanto estes procuram mensurar a variação de preços da economia em geral, aqueles aferem a variação de preços em um determinado setor econômico ou refletem, de maneira detalhada, a composição dos custos envolvidos na contratação. 24. Há, ainda, uma razão jurídica para a preferência por índices setoriais ou específicos. O art. 40, XI, da Lei n° 8.666/93 exige a priorização de índices capazes de retratar a variação efetiva do custo do objeto contratual(…). 25. Para tanto, nada melhor que admitir a adoção de índices setoriais ou específicos, pois são concebidos para, necessariamente, refletirem os custos de determinado setor da economia ou de determinado objeto, e não os preços praticados no mercado em geral. 26. Para vários objetos contratuais, contudo, não existem índices específicos ou setoriais. Nesses casos, a adoção de índice geral é, obviamente, mandatória, por absoluta impossibilidade de adoção de índice específico ou setorial e por força da Orientação Normativa AGU n° 23/2009. Nesses casos, deve-se procurar verificar qual seria o índice geral de preços que melhor estaria correlacionado com os custos do objeto contratual ou, ainda, em caráter subsidiário, verificar se existe, no mercado, algum índice geral de adoção consagrada para o objeto contratado. 27. Apenas se tecnicamente inviável a identificação do índice geral mais adequado ou consagrado pelo mercado, deverá ser adotado o IPCA/IBGE, pois, com supedâneo no art. 3o do Decreto n° 3.088, de 21 de junho de 1999,5 é o índice geral de preços oficialmente escolhido pelo Conselho Monetário Nacional para monitorar a inflação do país desde a Resolução CMN n°2.615, de 30 de junho de 1999. 28. Ademais, o IPCA/IBGE tem caráter nacional e sua população-objetivo é abrangente. De fato, o cálculo desse índice leva em consideração "o movimento geral dos preços do mercado varejista" e sua população-objetivo são "famílias residentes nas áreas urbanas das regiões de abrangência do SNIPC com rendimentos de 1 a 40 salários mínimos, qualquer que seja a fonte dos rendimentos", Esses aspectos tornam o índice robusto, pois refletem o impacto da inflação na maior parte do mercado de consumo, excluindo da população-objetivo indivíduos de renda muito baixa ou muito alta. 29. Por fim, de acordo com estudo do Banco Central, o IPCA é menos sensível às variações cambiais, ao menos quando comparado com outro índice geral de grande importância, o ÍGP-DI/FGV: Na prática, a adoção do regime de metas para a inflação obrigou o BCB, na condução da política monetária, a buscar o máximo possível de informações sobre a inflação corrente e sua tendência, e sobre as expectativas para as várias medidas de inflação. Por seu turno, tendências de depreciação cambial ou de apreciação cambial, que podem ocorrer em um regime de câmbio flutuante em diferentes períodos de tempo, podem produzir descasamento temporário dos diversos índices de preços, em particular entre os IGPs e o IPCA, conforme verificado no Gráfico 1 Isso decorre da maior participação relativa dos bens comercializáveis ou tradables nos IGPs, comparativamente aos índices de preços ao consumidor. 30. Certamente, esse aspecto torna a adoção do índice mais recomendável, dado que a mensuração da inflação se torna menos errática e, de alguma forma, mais resistente às flutuações circunstanciais de preços. No longo prazo, contudo, o IPCA e o IGP-DI tendem a convergir”. Tendo em conta as considerações acima, deve-se concluir que é possível a adoção de índices setoriais, específicos ou mesmo gerais para o reajustamento de contratos de prestação de serviços continuados sem dedicação exclusiva de mão de obra, desde que sejam observados os critérios estabelecidos ao longo da fundamentação. A previsão de reajuste, com definição de índice deverá estar prevista no contrato. Se não houver cláusula contratual definindo os critérios de reajuste, ele não há que ser admitido. Em havendo omissão, a doutrina entende que não estando previstos os critérios de reajuste de forma expressa, o preço ajustado é fixo e irreajustável, presumindo-se que as partes renunciaram a essa faculdade pelo fato de haverem embutido no valor do contrato a inflação do período. Devido ao reajuste já estar previsto no contrato, a sua aplicação não deve ser feita por meio de aditivo devendo se formalizar por meio de simples apostila (art. 65, § 8º da Lei nº 8.666/93). 2.3. REPACTUAÇÃO[9] A repactuação de preços, assim como o reajuste em sentido estrito, é uma forma de reajustamento que se destina a recuperar os valores contratados da defasagem provocada pela inflação, ocorre que diferentemente do reajuste em sentido estrito não se vincula a um índice especifico e sim a variação dos custos do contrato pela demonstração analítica  da variação dos preços dos insumos ou da mão-de-obra utilizada no contrato decorrente de Convenções Coletivas de Trabalho, Acordo ou Dissídios. A repactuação de preços é prevista pelo artigo 5º do Decreto nº 2.271/1997 — o qual dispõe, in verbis: “Art. 5º Os contratos de que trata este Decreto, que tenham por objeto a prestação de serviços executados de forma contínua poderão, desde que previsto no edital, admitir repactuação visando a adequação aos novos preços de mercado, observados o interregno mínimo de um ano e a demonstração analítica da variação dos componentes dos custos do contrato, devidamente justificada. Parágrafo Único. Efetuada a repactuação, o órgão ou entidade divulgará, imediatamente, por intermédio do Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais – SIASG, os novos valores e a variação ocorrida”. Consoante o artigo 5º do Decreto nº 2.271/1997, a repactuação de preços possui aplicação limitada a contratos de prestação de serviços contínuos. A definição de “serviços contínuos” consta do anexo I da IN SLTI/MPOG nº 02, de 30 de abril de 2008. A IN SLTI/MPOG nº 02, de 30 de abril de 2008 (após as modificações feitas pela Instrução Normativa nº 03/2009) limita ainda mais a aplicação da repactuação de preços, uma vez que o artigo 37 a restringe a contratos de prestação de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra, ao passo que o artigo 19, inciso XXII, admite a adoção de índices específicos ou setoriais apenas para contratos de serviços contínuos sem dedicação exclusiva de mão de obra. De forma mais pormenorizada, a repactuação de preços é disciplinada pelos artigos 37 a 41-B da IN SLTI/MPOG nº 02, de 30 de abril de 2008. O Anexo I da IN SLTI/MPOG nº 02/2008 define a repactuação como sendo: “XVIII – REPACTUAÇÃO: forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato que deve ser utilizada para serviços continuados com dedicação exclusiva da mão de obra, por meio da análise da variação dos custos contratuais, devendo estar prevista no instrumento convocatório com data vinculada à apresentação das propostas, para os custos decorrentes do mercado, e com data vinculada ao acordo ou à convenção coletiva ao qual o orçamento esteja vinculado, para os custos decorrentes da mão de obra”. A repactuação foi examinada no Parecer da AGU JT-02, de 26 de fevereiro de 2009, o qual foi aprovado pelo Advogado-Geral da União e pelo Presidente da República, razão pelo qual passou a ter força normativa perante toda a Administração Pública federal, nos termos do art. 40, § 1º e 41 da LC nº 73/93. O parecer consignou as conclusões abaixo transcritas: “Assim, por tudo o que se expôs, pode-se concluir que: a) a repactuação constitui-se em espécie de reajustamento de preços, não se confundindo com as hipóteses de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato; b) no caso da primeira repactuação do contrato de prestação de serviços contínuos, o prazo de um ano para se requerer a repactuação conta-se da data da proposta da empresa ou da data do orçamento a que a proposta se referir, sendo certo que, considera-se como data do orçamento a data do acordo, convenção, dissídio coletivo de trabalho ou equivalente que estipular o salário vigente à época da apresentação da proposta; c) no caso das repactuações subseqüentes à primeira, o prazo de um ano deve ser contado a partir da data da última repactuação; d) quanto aos efeitos financeiros da repactuação nos casos de convenções coletivas de trabalho, tem-se que estes devem incidir a partir da data em que passou a viger efetivamente a majoração salarial da categoria profissional; e e) quanto ao termo final para o contratado requerer a repactuação, tem-se que a repactuação deverá ser pleiteada até a data da prorrogação contratual subseqüente, sendo certo que, se não o for de forma tempestiva, haverá a preclusão do direito do contratado de repactuar”. Da leitura do artigo 5º do Decreto nº 2.271/1997 e da Instrução Normativa nº 02/2008, a repactuação não pressupõe apenas a existência de um contrato de prestação de serviço contínuo com dedicação exclusiva de mão de obra, mas depende do cumprimento de outros requisitos — a saber: “a) a possibilidade de repactuação deverá ter sido prevista pelo instrumento convocatório; b) a repactuação deverá ser precedida de solicitação do contratado; c) deverá ser feita uma demonstração analítica da variação dos custos dos componentes do contrato, por meio de apresentação da planilha de custos e formação de preços e do novo acordo ou convenção coletiva que fundamenta a repactuação; d) a repactuação não poderá contemplar custos que não constavam da planilha anexa à proposta inicial, a menos que se trate de benefícios que deverão ser oferecidos aos empregados da contratada por força de lei, sentença normativa, acordo ou convenção coletiva de trabalho; e) não deverá ter operado a “preclusão”, por não ter sido a repactuação solicitada antes da prorrogação ou do encerramento do contrato; f) deverá ser observada a periodicidade mínima de um ano;” No tocante a periodicidade de um ano, recomenda-se a leitura dos arts. 38 e 39 da “Art. 38. O interregno mínimo de 1 (um) ano para a primeira repactuação será contado a partir:  I – da data limite para apresentação das propostas constante do instrumento convocatório, em relação aos custos com a execução do serviço decorrentes do mercado, tais como o custo dos materiais e equipamentos necessários à execução do serviço; ou (Redação dada pela Instrução Normativa nº 3, de 16 de outubro de 2009)  II – da data do acordo, convenção ou dissídio coletivo de trabalho ou equivalente, vigente à época da apresentação da proposta, quando a variação dos custos for decorrente da mão-de-obra e estiver vinculada às datas-base destes instrumentos. (Redação dada pela Instrução Normativa nº 3, de 16 de outubro de 2009)  Parágrafo único. (Revogado pela Instrução Normativa nº 18 de dezembro de 2009)  Art. 39. Nas repactuações subseqüentes à primeira, a anualidade será contada a partir da data do fato gerador que deu ensejo à última repactuação. (Redação dada pela Instrução Normativa nº 3, de 16 de outubro de 2009)” Vale o registro das seguintes Orientações Normativas da AGU que tratam do assunto: “Orientação Normativa nº 25, de 1º de Abril de 2009: No contrato de serviço continuado com dedicação exclusiva de mão de obra, o interregno de um ano para que se autorize a repactuação deverá ser contado da data do orçamento a que a proposta se referir, assim entendido o Acordo, Convenção ou Dissídio Coletivo de Trabalho, para os custos decorrentes de mão de obra, e da data limite para a apresentação da proposta em relação ao demais insumos”. “Orientação Normativa nº 26, de 1º de Abril de 2009: No caso das repactuações subsequentes à primeira, o interregno de um ano deve ser contado da última repactuação correspondente à mesma parcela objeto da nova solicitação. Entende-se como última repactuação a data em que iniciados seus efeitos financeiros, independentemente daquela em que celebrada ou apostilada”. No tocante a preclusão é importante destacar o disposto no art. 40, § 7º: “As repactuações a que o contratado fizer jus e não forem solicitadas durante a vigência do contrato, serão objeto de preclusão com a assinatura da prorrogação contratual ou com o encerramento do contrato. (Incluído pela Instrução Normativa nº 3, de 16 de outubro de 2009)”. As repactuações devem ser formuladas por apostilamento (art. 40, § 4º IN 02/2008) Alguns contratos administrativos de prestação de serviços podem possuir parte do objeto prestado com dedicação exclusiva de mão de obra e parte sem dedicação exclusiva de mão de obra. Nesses contratos gerava divergência quando se desejava aferir que critério de reajustamento se deveria adotar. A divergência foi superada nos termos do PARECER Nº 04/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, segundo o qual entendeu pela impossibilidade de utilização concomitante de reajuste e de repactuação. Assim, para esses contratos com objeto hibrido (mão de obra e insumos) o contrato administrativo pode, inclusive, prever que o reajustamento dos insumos diversos em repactuações se dê por meio da adoção de índice. Assim, nos contratos administrativos de prestação de serviços continuados que tenham parte do objeto prestado com dedicação exclusiva de mão de obra e parte sem dedicação exclusiva, deve ser adotada a repactuação como forma de reajustamento. Nesse sentido são as conclusões do PARECER Nº 04/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU: “40. Se, porventura, a separação desse objeto em contratos distintos não for técnica ou economicamente viável, deve-se adotar a repactuação como forma de reajustamento, pois esse expediente permitirá que, para os custos com insumos diversos (ex.: material de limpeza, equipamentos, vestuário), a Administração Pública possa valer-se de múltiplas fontes de referência para mensurar a variação dos preços, inclusive índices para diferentes custos, a teor da Orientação Normativa AGU n° 23/2009 e do art. 40, §2°, V, da Instrução Normativa SLTI/MPOG n° 02/2008, transcrito abaixo: (…) 42. Pelo exposto, a repactuação, por ser mais flexível sob o ponto de vista da análise de custos, implicará o cálculo dos custos de mão de obra por meio da consulta a convenções coletivas, acordos coletivos ou sentenças normativas e também poderá valer-se da incidência de índices setoriais, específicos ou gerais para o reajustamento dos insumos diversos por força da orientação do Acórdão TCU n° 1.214/2013 – Plenário e dos permissivos do art. 40, §2°, V, da Instrução Normativa SLTI/MPOG n° 02/2008 e da Orientação Normativa AGU n° 23/2009”. CONCLUSÃO A análise das disposições legais aplicáveis à matéria permite concluir que existem basicamente três modalidades de reajustamento: a) revisão; b) reajuste em sentido estrito; e c) repactuação. Os institutos apesar de ter suas regras próprias todas tem a mesma finalidade que é a manutenção da equação econômico- financeira do contrato. Assim, desde que preenchidos os requisitos surge para a Administração o poder-dever de conceder o benefício.
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O instituto da permissão de uso e a inexigibilidade de licitação – aplicabilidade nos entes da administração pública indireta
Trata-se de análise da prescindibilidade de licitação por parte do Poder Público no caso de trespasse a terceiros do uso privativo de bens públicos através do instituto da Permissão de Uso, uma vez demonstrado seu caráter não contratual (discricionário e precário).
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO No que tange a utilização de bens públicos por particulares, na lição do ilustre doutrinador Hely Lopes Meirelles, “todos os bens públicos, qualquer que seja a sua natureza, são passíveis de uso especial por particulares desde que a utilização consentida pela Administração não os leve à inutilização ou destruição”.[1] Dessa forma, resta assegurado ao Poder Público o trespasse a terceiros do uso privativo de bens públicos através dos institutos, a saber, da autorização de uso, permissão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia, dentre outros. Ressalte-se que a transferência de uso dos bens públicos a terceiros sofre limitações, admitida em casos onde reste presente o interesse público na utilização privativa do mesmo. Apesar das diversas espécies citadas acima, cuidaremos aqui, mais precisamente, do instituto da permissão de uso. DA PERMISSÃO DE USO Sobre as permissões, lato sensu, assim leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro, conceituando o instituto: “Permissão, em sentido amplo, designa o ato administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração Pública faculta ao particular a execução de serviço público ou a utilização privativa de bem público. O seu objeto é a utilização privativa de bem público por particular.” [2] No mesmo sentido conceitua Hely Lopes Meirelles: “Permissão é o ato administrativo negocial, discricionário e precário, pelo qual o Poder Público faculta ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabelecidas pela Administração.” [3] Conceituamos, portanto, a permissão de uso de bem público como um instituto de direito administrativo, sem natureza contratual (por se tratar de ato unilateral), que outorga, em caráter de exclusividade, de forma gratuita ou onerosa, a utilização de algum bem público imóvel a particular, para que o explore desenvolvendo algum trabalho, ou preste algum serviço, desde que revestido de justificado interesse público. Não sendo contrato, tem natureza de Ato Administrativo. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “O regime permissional, menos rígido, tem sido caracterizado na doutrina tradicional como vínculo produzido por simples manifestação de vontade unilateral da Administração, através de um ato administrativo, discricionário e precário, que seria, por isso, revogável a qualquer tempo.”[4] (grifo nosso) Apesar de discricionário e precário, deve, contudo, ser condicionado ao cumprimento de certos requisitos. Isto porque é de se ter, como premissa, que os bens públicos devem se destinar, prioritariamente, a subsidiar as atividades administrativas dos seus titulares, como instrumentos de gestão pública. Além disso, para o uso privativo, é imprescindível que a Administração expresse seu consentimento através de título jurídico formal. Cumpre salientar que o instituto é, em certa medida, desconhecido no direito, visto que não existe regra constitucional sobre permissão de uso de bem público e, na legislação federal, as menções ao instituto são esparsas e muitas vezes imprecisas ou, até mesmo, atécnicas. Esclarece-se que a Carta Magna faz menção tão somente às concessões e permissões de serviço público, institutos disciplinados, na legislação federal, pela Lei nº 8.987/95 e bem diferentes do aqui tratado. Ademais sobre este esclarecimento, vale lembrar o ensinamento do ilustre doutrinador Marçal Justen Filho acerca do tema, vejamos:  “Concessão de Serviço Público e Concessão de Uso de Bem Público A manifestação mais simples e superficial de diferenciação entre concessão de serviço público e concessão de uso de bem público refere-se ao objeto sobre o qual versam, traduzido nas próprias denominações. Enquanto uma tem por objeto um serviço público, a outra envolve o uso de bem público. Mas a diferença entre os institutos é muito mais extensa, talvez a ponto de inviabilizar a recondução de ambos a um único gênero. A concessão de serviço público consiste na delegação temporária da prestação de serviço público a um particular, que passa a atuar por conta e risco próprios (na acepção acima indicada). Portanto, a concessão de serviço público conduz a uma alternativa organizacional para a prestação dos serviços públicos fundada na concepção de associação entre interesse público e iniciativa privada para atendimento a necessidades coletivas de grande relevância. Já a concessão de uso de bem público consiste na atribuição temporária a um particular do direito de uso e fruição exclusivos de certos bens públicos. Essa transferência tanto pode fazer-se para que o particular valha-se do bem para satisfação de seus interesses próprios e egoísticos como também poderá propiciar exploração empresarial, com o desenvolvimento de atividades econômicas lucrativas em face de terceiros. De modo genérico, a concessão de uso de bem público não exige, necessariamente, a instrumentalização do bem objeto da concessão para a realização do interesse público, ainda que tal não possa ser excluído de modo absoluto. Assim, é possível que a concessão de uso recaia sobre bens ociosos para a Administração, os quais não teriam qualquer outra destinação mais apropriada para satisfação de necessidades coletivas. Nesse caso, a Administração poderá obter uma remuneração a ser paga pelo concessionário, o que legitimará a decisão de atribuir o bem à utilização privativa de um certo particular, o qual se valerá do bem para intentos próprios. Mas também não haverá impedimento a que a concessão de uso seja uma via para propiciar a implantação de empreendimentos de interesse social ou coletivo. Assim, pode imaginar-se a concessão de uso de uma área deserta, visando à edificação de prédios e outras acessões, de modo a incentivar a atividade econômica, a criação de empregos e assim por diante. Nesse caso, o bem público será utilizado para fins de desenvolvimento de atividade econômica por um particular, sem que se configure própria e diretamente satisfação de interesses coletivos ou difusos. Mas também se pode utilizar a concessão de uso para esses outros fins. Assim, pode ceder-se o uso privativo de certas áreas no âmbito de prédios públicos para o estabelecimento de restaurantes, por exemplo.”[5] Utiliza-se a permissão de uso de bem público sempre que a concessão de uso não puder ser utilizada, ou quando essa não convier, em face da sua complexidade, acaso desproporcional á situação ou à abrangência do uso que se pretende transferir a particular. A permissão de uso é menos complexa, menos estável, menos duradoura que a concessão de uso, tanto quanto a de serviço o é com relação à concessão de serviço. Verdade que existe subjetiva e tênue diferença, resolúvel apenas pelo critério discricionário da autoridade executiva, da maior conveniência entre permitir o uso e conceder o uso. Contudo, o que se ressalta sempre é que por trás, invariavelmente, está o interesse público na outorga, materializado no uso que o particular fará do imóvel público cujo uso lhe seja permitido. Vale inclusive lembrar, apenas por cautela, que em grande parte dos casos, é usual adotar-se a denominação “concessão” em hipóteses semelhantes às trazidas em tela. Contudo, o nome adotado no caso concreto é mero rótulo, que não condiciona a natureza jurídica da figura, devendo esta ser analisada em cada caso. DA PERMISSÃO DE USO E SUA UTILIZAÇÃO NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR A discricionariedade é um poder conferido ao administrador público, para que, diante de determinadas situações em que a lei não especifique objetivamente a conduta do agente, este possa, através do juízo valorativo de oportunidade e conveniência, escolher dentre os comportamentos possíveis, aquele que melhor atinja o interesse público. Observa-se que este poder conferido à autoridade administrativa é autorizado por lei, encontrando nesta o seu limite e alcance. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, visto que, caso o agente público exorbite os contornos delineados pela lei, estará praticando o desvio de poder, ou seja, desvirtuando o poder discricionário conferido. Diferentemente do particular a que lhe é permitido tudo que a lei não proíba, à Administração Pública só lhe é permitido aquilo que a lei estabelece. Neste sentido convém trazer à baila as ilustres palavras do doutrinador Celso Antônio Bandeira de Melo que explica a diferença de ambas as condutas: “Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente. Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorgar tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto”.[6] (grifo nosso) O Código Civil, em seu artigo 103, como norma geral, assevera que “o uso comum[7] dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”. Dessa forma, não há que se falar em arbitrariedade na cessão de uso a terceiros de bens públicos, visto que a lei a autoriza. Contudo, por força da indeterminação legal quanto a qual regime de cessão adotar, – i.e, concessão, permissão ou autorização – ficará a cargo da Administração decidir. A permissão de uso de bem público então seria um ato administrativo praticado dentro do poder discricionário da Administração em que, nos moldes do já exposto e diante da oportunidade e conveniência, é deferido para um particular, de forma exclusiva, o uso de um bem em prol do interesse público. Corroborando com essa ideia de indeterminação legal, conforme já mencionado, temos uma legislação federal que é de certa forma omissa e muitas vezes confusa ao tratar do tema, o que faz com que fique a cargo da doutrina e dos operadores do Direito a interpretação da matéria. No âmbito federal, a regulação do regime jurídico dos bens públicos da União fica a cargo do Decreto-Lei nº 9760/46 e da Lei nº 9.636/98, regulamentada pelo Decreto-Lei 3.725/01. Ocorre que estas dizem respeito tão somente aos bens de titularidade da União, esta enquanto ente da Administração Pública Direta. No caso da Administração Indireta, o regime jurídico é diverso. A ressalva se faz válida um vez que, no âmbito federal, o Decreto-Lei nº 200/67 define de forma expressa que a administração federal será composta por entes da Administração Direta e Indireta, vejamos: “Art. 4° A Administração Federal compreende: I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios. II – A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista. d) Fundações públicas” No caso das Universidades e Instituições Federais de Ensino Superior, é pacifico o entendimento de que, independentemente da categoria em que foram originalmente criadas, estas gozam de status de Autarquia Especial, uma vez que, conforme artigo 207, da Constituição Federal, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Contudo, ainda que consideradas como fundações públicas, fariam parte integrante da Administração Federal Indireta. Partindo dessa premissa, não se pode considerar aplicável, a não ser por analogia, as disposições do Decreto-Lei nº 9760/46, da Lei nº 9.636/98 ou ainda do Decreto-Lei nº 3.725/01, visto que, conforme mencionado, tais normas têm incidência apenas no que tange aos imóveis de titularidade da União Federal, este como ente integrante da Administração Federal Direta. Ora, neste cenário, para além do disposto no Código Civil, a única legislação que parece também corroborar, em âmbito federal, com a possibilidade de trespasse a terceiros do uso de bens imóveis públicos de titularidade das Universidades e Instituições Ensino é a Lei nº 6.120/74. Verdade que a lei dispõe sobre a alienação de bens imóveis das instituições, e em hipóteses bastante específicas, conforme dispõe seu artigo 1º, vejamos: “Art 1º As instituições federais de ensino, constituídas sob a forma de autarquia de regime especial ou mantidas por fundações de direito público, poderão alienar, mediante contrato de compra e venda, os bens imóveis de sua propriedade ,que se tornarem desnecessários às suas finalidades, na forma desta Lei.” Observe que aqui estamos tratando de bens dominiais, ou dominicais na classificação do código civil, ou seja, bens não afetados ao uso comum ou uso especial. O artigo 2º ainda prevê outras utilizações para tais bens, a saber, a permuta, a hipoteca e a locação. Contudo estas não parecem ser as únicas destinações possíveis para os bens imóveis de propriedade das instituições de ensino. O artigo 5º estabelece que “em nenhuma hipótese será permitida a doação ou cessão gratuita, a qualquer título, de bens imóveis das instituições de que trata esta Lei”. Parece-nos que o referido artigo tem o condão de corroborar com a ideia já trazida no inicio do artigo, nas palavras do ilustre doutrinador Hely Lopes Meirelles, de que “todos os bens públicos, qualquer que seja a sua natureza, são passíveis de uso especial por particulares desde que a utilização consentida pela Administração não os leve à inutilização ou destruição”[8]. Ora, o artigo, ao vedar a cessão gratuita dos bens objeto da referida lei, qualifica a existência de tal instituto e revela sua possibilidade no âmbito dos bens públicos. Se assim não fosse, – in casu, se a cessão e a doação não fossem permitidas – não subsistiria razão para a existência do art. 5º da Lei nº 6120/74. Dessa forma a melhor exegese nos leva a crer que as hipóteses do artigo 1º e 2º da Lei nº 6120/74 dizem respeito aos bens dominiais, ou dominicais, sendo possível, portanto, a “cessão”[9] onerosa dos bens de natureza diversa, ou seja, dos bens de uso comum de uso especial. DA NECESSIDADE DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO PRÉVIO Superadas as considerações feitas, a celeuma se instaura no que tange a indagação de saber se é necessária a instauração de prévio procedimento licitatório para fins de permissão de uso de bem público. Ao que parece, tendo em vista tratar-se de Ato Administrativo, discricionário e precário, a permissão de uso de bem público prescinde de prévio procedimento licitatório, salvo os casos em que legislação específica o exigir. Por outro lado, o artigo 2º da Lei nº 8.666/93 inclui a permissão no rol de ajustes que dependem de prévia licitação, vejamos: “Art. 2o  As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. (grifo nosso)” Ora, ao que parece, a realização de prévia licitação para os casos ali previstos é necessária apenas nos casos em que houver a formalização de contrato, conforme ressalva o parágrafo único do apontado artigo 2º, vejamos: “Parágrafo único.  Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.” Nesse sentido, convém trazer à baila, novamente, os esclarecimentos da ilustre doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “É verdade que a Lei n° 8.666/93, no artigo 2º, inclui a permissão entre os ajustes que, quando contratados com terceiros, serão necessariamente precedidos de licitação. Tem-se, no entanto, que entender a norma em seus devidos termos. Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que a constituição Federal, no artigo 175, parágrafo único, I, refere-se à permissão de serviço público como contrato; talvez por isso se justifique a norma do artigo 2º da Lei n° 8.666/93. Em segundo lugar, deve-se considerar também que este dispositivo, ao mencionar os vários tipos de ajustes em que a licitação é obrigatória, acrescenta a expressão quando contratados com terceiros, o que faz supor a existência de um contrato.”[10] Acrescente-se ao comentário da ilustre doutrinadora inclusive que, no nosso entendimento, a Constituição Federal erra, no art. 175, parágrafo único, inc. I, ao tratar a permissão de serviço como contrato e coloca-la, indiscriminadamente, ao lado da concessão de serviço, visto que aquela não é contrato (pacto bilateral), mas mero ato unilateral. Assim, apesar de não se poder dispensar a licitação das permissões de serviço, já que a Magna Carta as “embrulhou” no mesmo pacote das concessões como se fossem um só instituto, e talvez por isso se justifique a norma do artigo 2º da Lei n° 8.666/93, o mesmo não ocorre nas permissões de uso. Isto porque a licitação não é um fim em si mesma, mas sim meio pelo qual se alcança seu objeto, qual seja, o estabelecimento de relação jurídica obrigacional e bilateral entre a Administração e terceiros, por excelência o contrato. Não havendo contrato, ou instrumento equivalente, não há que se falar em licitação, salvo por expressa disposição legal. Destarte, a permissão de uso de bem público, estabelecida de forma precária e sem prazo de duração, fica excluída da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações), ou de qualquer outro processo de seleção, tendo em vista que a sua natureza jurídica não comporta a competição, eis que se atrela a discricionariedade da Administração Pública na destinação da utilização de determinado bem público, além da sua própria precariedade. Corroborando com este entendimento já se posicionou o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região em recente julgado, vejamos: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO POPULAR. PERMISSÃO DE USO DE BEM PÚBLICO. EXPLORAÇÃO DE SERVIÇOS DE CANTINA/RESTAURANTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG. INCONSISTÊNCIA JURÍDICA DA ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ATO SENTENCIAL. ATO ADMINISTRATIVO DE ÍNDOLE NEGOCIAL. LEGITIMIDADE DA OUTORGA DA EXECUÇÃO DO ATO PARA EMPREENDIMENTO PRIVADO EM REGIME DE URGÊNCIA E SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL DESPROVIDAS. 1. A preliminar de nulidade da sentença recorrida por suposta ausência de fundamentação não merece ser acolhida, tendo em vista que a sentença de fls. 905/911 encontra-se devidamente motivada, com a declinação dos fundamentos de fato e de direito legalmente exigidos. 2. A permissão de uso de bem público, ainda que remunerada e condicionada, segundo doutrina uníssona dos administrativistas, configura ato administrativo discricionário e precário, circunstância que, em linha de princípio, afasta a exigibilidade de licitação, instituto aplicável precipuamente aos contratos da Administração, ainda mais quando a outorga de execução do mencionado ato administrativo negocial é realizada em regime emergencial. 3. Irrepreensível, nessa ordem de considerações, a manifestação da douta Procuradoria Regional da República no sentido de que "O termo de autorização de uso do bem público, ora guerreado pelo apelante, firmado entre a UFMG e a Sociedade Comercial Mestre Amorim LTDA, operou-se em conformidade com os ditames legais, portanto, sem violar o art. 26 da Lei 8.666/93 ou qualquer outro dispositivo legal. Isto porque a autorização de uso do bem público por particular decorre de ato unilateral da Administração Pública e se opera em caráter discricionário, precário (revogável a qualquer tempo), transitório, bem como dispensa licitação e autorização legislativa." 4. Apelação e remessa oficial desprovidas.” (TRF-1 – AC: 200338000583060 MG 2003.38.00.058306-0, Relator: JUIZ FEDERAL MARCIO BARBOSA MAIA, Data de Julgamento: 14/05/2013, 4ª TURMA SUPLEMENTAR, Data de Publicação: e-DJF1 p.369 de 22/05/2013)” Também o Tribunal de Justiça de São Paulo: “APELAÇÃO CÍVEL – Ação Civil Pública – Concessão de permissão de uso de bem público sem prévia licitação Desnecessidade de formalização de procedimento licitatório na espécie, dada a precariedade do ato – improbidade administrativa não configurada. Sentença de improcedência mantida. Recurso do Ministério Público a que se nega provimento.” (grifo nosso) (TJ-SP – APL: 994050677525 SP , Relator: Oswaldo Luiz Palu, Data de Julgamento: 24/03/2010, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 07/04/2010)” Para além, quanto à lei de licitações, vejo ser também inapropriada e inadequada ao caso pelo fato de esta ter sido concebida visando à aquisição de bens ou a contratação de obra ou serviço, ou ainda para alienar bens públicos, mas não tecnicamente para viabilizar outros contratos ou atos de outorga. Prova disso é dificuldade de, com base nela, elaborar um edital de licitação para permissão, seja de uso ou inclusive de serviço, que seja minimamente técnico. CONCLUSÃO Isto posto, concluo com as seguintes considerações: I. A cessão de uso de bens públicos imóveis das Autarquias (caso das Instituições de Ensino Superior) é possível, seja sob regime de concessão ou permissão de uso, com base no Art. 103 do Código Civil c/c a Lei nº 6.120/74. II. Por disposição da Lei supracitada, a cessão, seja sob que regime for, deve ser sempre onerosa, devendo o processo ser instruído com prévia pesquisa de preços sobre o real valor “locatício” do imóvel, devendo-se, na medida do possível, incluir custos de energia, água e demais expensas à pessoa cessionária, inseridos no valor da mensalidade. III. Tendo em vista tratar-se de Ato Administrativo precário, a permissão de uso de bem público prescinde de prévio procedimento licitatório, salvo os casos em que legislação específica o exigir. IV. A formalização da permissão deve se dar por meio de “Termo de Permissão de uso”, assinado pela autoridade administrativa máxima da entidade (Reitoria) ou autoridade delegada, acompanhado de um documento de justificativa em que se ateste o interesse público envolvido na cessão de uso do bem imóvel.
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A Lei de Improbidade Administrativa e o elemento subjetivo do agente público
Diante da gravidade das sanções em sede de improbidade administrativa, um mínimo de má-fé do agente público para a sua responsabilização é imperioso, não sendo lídimo que um administrador público inabilidoso seja confundido com um administrador ímprobo.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO O presente estudo tenciona analisar a prática de improbidade administrativa sob o prisma do elemento subjetivo do agente público. É dizer, pretende-se, ao cabo deste trabalho, demonstrar que para uma escorreita responsabilização por atos tidos como ímprobos é mister se comprove, para além do ângulo objetivo, que o agente público agiu com um mínimo de má-fé. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITUAÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA O respaldo constitucional para a responsabilização pelos atos de improbidade administrativa situa-se no § 4º do art. 37 da Magna Carta de 1988, de onde: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. O dispositivo atinge a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes, em todos os entes federativos. Como pode se verificar, a Constituição Federal não cuidou por definir improbidade administrativa, tampouco apontar os sujeitos ativos e passivos de tais atos. Alexandrino e Paulo (2010, p.858) aduzem que o aludido texto “limita-se a enumerar, imperativamente, um núcleo mínimo de sanções que devem ser aplicadas, ‘na forma e gradação previstas em lei’, àqueles que praticarem atos de improbidade administrativa”. Tendo em mira que o § 4º do art. 37 da CF/88 é uma norma de eficácia limitada, calhava, pois, a sua regulamentação, o que veio a ocorrer com a edição da Lei nº 8.429/92, usualmente conhecida como “Lei de Improbidade Administrativa”. Ainda segundo Alexandrino e Paulo, tal diploma legal também não cuidou por definir improbidade administrativa, apresentando, todavia, descrições genéricas com extensas listas exemplificativas de condutas, inclusive omissivas, que se enquadram como “atos de improbidade administrativa”, classificados em três categorias (que importam em enriquecimento ilícito –art. 9º-, prejuízo ao erário –art.10- ou que atentam contra os princípios da administração pública –art.11-), e estabelecendo as sanções correspondentes –art.12-. Sem prejuízo, pelo escólio de Garcia (2011), o conceito de improbidade administrativa não está sobreposto ao de corrupção, sendo muito mais amplo que ele, absorvendo-o. Improbidade administrativa, em seus contornos mais amplos, é a injuridicidade do agir do agente público, cuja natureza e intensidade lhe confiram contornos juridicamente relevantes, e que pode limitar-se à violação das regras e princípios regentes da atividade estatal ou avançar, também acarretando um dano ao patrimônio público ou ensejando o enriquecimento ilícito do agente. Estabelece a Lei nº 8.429/92, ademais, os sujeitos ativos e passivos dos referidos atos, e dispõe sobre o procedimento administrativo de apuração e a ação judicial de improbidade administrativa. 2. ANÁLISE DO ELEMENTO SUBJETIVO PARA A CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Feita a contextualização do tema, impende avançarmos para a matéria de fundo do presente trabalho, qual seja a análise da necessidade do elemento subjetivo para a configuração do ato de improbidade administrativa. Conforme é cediço, de acordo com os ensinamentos de Bruno (1984, p.32) o elemento subjetivo psicológico-normativo “é o que relaciona o agente com o seu ato, psicológica e normativamente, manifestando-se sob a forma de dolo ou culpa”. Nessa linha, o dolo se consubstancia no conhecimento dos fatos e no conhecimento da antijuridicidade, com uma intenção de agir, e a culpa em uma infração do dever objetivo de cuidado. O que se tem é que, no momento, há uma divergência jurisprudencial quanto ao fato de a responsabilização do agente depender ou não da sua má-fe, da sua voluntariedade (dolo ou culpa) em relação à provocação do ato tido como ímprobo. Com efeito, muito embora restrito à situação do art. 11 da Lei nº 8.429/92, o julgado que segue bateu pela desnecessidade da comprovação do elemento subjetivo para aplicação das sanções correspondentes ao agente público: “Processo: MG 1.0471.03.013621-5/003(1) Relator(a): MARIA ELZA Julgamento: 28/01/2010 Publicação: 19/02/2010 ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LESÃO A PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. ELEMENTO SUBJETIVO. DANO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO NÃO-PROVIDO. A lesão a princípios administrativos contida no art. 11 da Lei nº 8.429/92 não exige dolo ou culpa na conduta do agente nem prova da lesão ao erário público. Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade (g.n.). A ação civil pública, ao coibir o dano moral, é própria para censura a ato de improbidade, mesmo que não haja lesão aos cofres públicos. (Precedente do STJ: REsp n. 261.691 – MG). A fixação das sanções impostas aos apelantes não ofendeu ao princípio da proporcionalidade.” Lado outro, pelo julgado que ora se apresenta, denotamos ser imperiosa a comprovação da má-fé, dolo ou culpa do agente para a sua responsabilização: “IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ELEMENTO SUBJETIVO. Cuida-se, na origem, de ação civil pública (ACP) por ato de improbidade administrativa ajuizada em desfavor de ex-prefeito (recorrente) e empresa prestadora de serviços em razão da contratação da referida sociedade sem prévia licitação, para a prestação de serviços de consultoria financeira e orçamentária, com fundamento no art. 25, III, c/c art. 13, ambos da Lei n. 8.666/1993. O tribunal a quo, ao examinar as condutas supostamente ímprobas, manteve a condenação imposta pelo juízo singular, concluindo objetivamente pela prática de ato de improbidade administrativa (art. 10, VIII, da Lei n. 8.429/1992, Lei de Improbidade Administrativa – LIA). Nesse contexto, a Turma deu provimento ao recurso, reiterando que o elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa, tendo em vista a natureza de sanção inerente à LIA (g.n.). Ademais, o ato de improbidade exige, para sua configuração, necessariamente, o efetivo prejuízo ao erário (art. 10, caput, da LIA), diante da impossibilidade de condenação ao ressarcimento de dano hipotético ou presumido. Na hipótese dos autos, diante da ausência de má-fé dos demandados -elemento subjetivo- (g.n.), bem como da inexistência de dano ao patrimônio público, uma vez que o pagamento da quantia de cerca de R$ 50 mil ocorreu em função da prestação dos serviços pela empresa contratada em razão de notória especialização, revela-se error in judicando na análise do ilícito apenas sob o ângulo objetivo. Dessarte, visto que ausente no decisum a afirmação do elemento subjetivo, incabível a incidência de penalidades por improbidade administrativa. (g.n.) Precedentes citados: REsp 805.080-SP, DJe 6/8/2009; REsp 939.142-RJ, DJe 10/4/2008; REsp 678.115-RS, DJ 29/11/2007; REsp 285.305-DF, DJ 13/12/2007, e REsp 714.935-PR, DJ 8/5/2006. REsp 1.038.777-SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 3/2/2011. INFORMATIVO Nº 461, STJ.” Consoante se pode notar, sobremaneira levando em conta a necessária cautela que devemos adotar nos assuntos afetos à coisa pública, o tema é bastante controverso, não sendo fácil chegarmos a uma ilação. CONCLUSÃO Muito embora a questão, como acima ventilado, seja deveras controversa, mas considerando a natureza das sanções oriundas da Lei de Improbidade Administrativa, mormente tendo em mira as mais gravosas, como suspensão dos direitos políticos e perda da função pública, é mister entendermos pela comprovação de um mínimo de má-fé do agente público para a sua responsabilização, não sendo lídimo que um administrador público “apenas e tão-somente” inabilidoso seja confundido com um administrador ímprobo. É que, nos termos do voto da Ministra Eliana Calmon oriundo de sessão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em pedido movido contra a ex-prefeita de São João do Oriente (MG), “(…) pensar de forma diversa seria penalizar os agentes públicos por qualquer insucesso da máquina administrativa, mesmo nos casos em que seus dirigentes atuem rigorosamente sob os ditames legais, caracterizando responsabilidade objetiva dos administradores, o que é rejeitado pela jurisprudência pacífica desta Corte”.
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Direito subjetivo à nomeação e posse de candidato em cargo público por superveniência de vagas na vigência do edital
O artigo aborda estudo de caso de um candidato aprovado em concurso público para provimento do cargo de professor universitário, que após o surgimento de vagas supervenientes, teve seu direito subjetivo à nomeação e posse preterido reiteradas vezes pela administração superior da instituição. Realizou-se exame do processo judicial em questão, além de fontes bibliográficas em Direito Administrativo e jurisprudência dos Tribunais Superiores do Brasil. Ao final, diante do caso concreto, conclui-se pela constatação do direito subjetivo do candidato à nomeação e posse, além da necessidade de adequações normativas e estruturais relativas aos concursos públicos para professor universitário ao nível federal.
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo tem por objetivo apresentar e analisar um caso concreto, a partir de processo judicial, sobre a situação de um candidato aprovado em concurso público, e para provimento de vaga de professor de ensino superior, junto a Universidade Federal de Roraima, que por reiteradas vezes teve seu direito subjetivo de nomeação e posse preterido pela administração da instituição. A discussão se torna interessante por permitir que se avalie a evolução do pensamento jurídico, das construções jurisprudenciais e sumulares sobre o tema. O princípio da realização dos concursos públicos implica, na prática, que a administração se paute pela moralidade, eficiência e impessoalidade. Tais balizas restringem sobremaneira a discricionariedade administrativa quando da realização de certames objetivando o provimento de cargos públicos, inclusive para professores de ensino superior. Destaque-se que metodologicamente, a abordagem foi de um clássico estudo de caso, limitando-se a revisão bibliográfica e documental ao próprio tema central do processo. Por este motivo, não se construiu um exaustivo embasamento teórico, permitindo aos autores maior liberdade na formulação do discurso e análise do caso concreto. Frise-se ainda que o processo judicial examinado encontra-se em trâmite, mas seu desfecho, como se infere da própria natureza do caso, não interfere com a linha de raciocínio apresentada, servindo ainda para divulgar práticas administrativas de legalidade e moralidade duvidosas, que infelizmente revelam-se habituais e para as quais o presente caso serve de exemplo. O texto divide-se em quatro momentos. No primeiro, o caso é apresentado em detalhes. No segundo, discorre-se sobre os principais pontos de interesse do processo, com base na literatura atual em Direito Administrativo. No terceiro, comenta-se o caso com base nos pontos focais da literatura, da jurisprudência e de Súmulas dos Tribunais Superiores. E no final, apresentam-se as conclusões. 1 O caso Versa o caso, sobre um candidato aprovado em concurso público para provimento de cargo de professor de ensino superior junto à Universidade Federal de Roraima (UFRR). Resumidamente, o candidato foi aprovado em terceiro lugar e com a nomeação e posse da primeira colocada, desistência do segundo e superveniência de duas vagas provenientes da saída de duas professoras do instituto, passou a ser o primeiro colocado no cadastro de reserva, possuindo direito subjetivo à nomeação e posse para uma daquelas vagas posteriormente abertas, sendo entretanto preterido seguidamente pela administração da Universidade. Insatisfeito, judicializou o caso, que será descrito em detalhes na sequência. À época dos fatos, entre 2013 e 2014, o candidato, então autor da ação ordinária de conhecimento (com pedido liminar de tutela antecipada) era portador do título de Mestre em Antropologia Social com ênfase em Antropologia Urbana pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possuía também Doutorado (em curso, desde 2010) em Antropologia na Universidade de Tübingen (Alemanha). De acordo com os relatos, em 2013 o candidato encontrava-se em estágio avançado de pesquisa, tendo inclusive qualificado seu projeto. Essa situação o motivou a permanecer em Roraima e realizar concurso público para professor na sua área de formação profissional. Diante de tal oportunidade, em 2013 o candidato logrou aprovação em terceiro lugar em concurso público levado a cabo pela UFRR, cujo certame restou homologado em 12 de setembro do mesmo ano sob o seguinte título: – aprovado como “Professor do Magistério do Terceiro Grau – Unidade acadêmica: INAN – Antropologia – Regime de Trabalho: 40 hrs/DE”. A primeira colocada aprovada no referido concurso assumiu a vaga inicialmente disponibilizada, sendo que o segundo colocado declarou não possuir interesse em assumir eventuais cargos remanescentes, de acordo com carta de punho próprio, que foi anexada ao processo. Em face dessa situação, o candidato aguardava em Roraima a abertura de mais uma vaga para professor junto ao INAN/UFRR a fim de ser convocado e nomeado dentro do prazo de validade do concurso de 2013, que segundo expressa disposição editalícia, valeria por um ano (prorrogável por igual período a critério da instituição). Entretanto, em março de 2014 restou publicado outro edital por parte da UFRR, dentro do prazo de validade do anterior, também ofertando uma vaga a ser preenchida por concurso público para o cargo de professor do magistério superior – Antropologia. Aparentemente, tratando-se da mesma vaga conquistada pelo candidato no certame de 2013, decorrente da transferência de uma professora do quadro do Instituto de Antropologia – INAN para outro Estado da Federação. Preterido no seu direito de ser primeiro convocado e nomeado para aquela vaga, resolveu então o candidato impugnar administrativamente referido edital ainda em março de 2014, cuja decisão proferida pela UFRR segue resumida nos seguintes termos:  (a) que o concurso no qual o candidato foi aprovado se exauriu, uma vez que a vaga antes disponibilizada foi ocupada pela primeira colocada, não havendo cadastro de reserva;  (b) que a vaga superveniente surgiu em virtude da transferência de uma professora do instituto para a Universidade Federal do Piauí, e não mantinha qualquer relação com o edital de 2013 (que dispunha sobre o concurso no qual o candidato/autor obteve êxito);  (c) que o edital de 2014, já estava fundamentado nas alterações introduzidas pela lei 12.863/13, exigindo como critério mínimo, que os candidatos fossem portadores de título de doutor; e  (d) que o edital anterior abrangeu área de atuação diferente da atual, justificando que a demanda do edital de 2014 não guarda relação com aquela que ensejou a realização do edital de 2013, e que vaga para a qual o candidato fora aprovado que não estaria mais disponível. Em face dessa resposta, e a fim de melhor compreender as razões para o indeferimento do seu pedido, resolveu o candidato solicitar junto à UFRR cópia da ata da reunião do Conselho do INAN que deliberou pela realização de um novo concurso, negando aproveitamento aos aprovados do anterior certame, ferindo direito do interessado de ser convocado para a vaga que restou posteriormente aberta em janeiro de 2014. Naquela oportunidade, conforme se descreve na ata que foi anexada ao processo, realmente foi deliberado o preenchimento da vaga surgida com a transferência da professora do INAN, conforme resumo que segue:  (a) que o Diretor em exercício do INAN informou que, dada a redistribuição da professora do INAN, haveria duas possibilidades para o preenchimento da vaga deixada por ela na UFRR, a saber: a convocação do segundo aprovado no último concurso ou a realização de um novo concurso para candidatos com titulação mínima de doutor;  (b) em que pese alguns professores terem se manifestado pela convocação do segundo colocado no concurso anterior em razão da agilidade no preenchimento da vaga, uma apertada maioria deliberou pela realização de um novo concurso. A ata do Conselho demonstra que os professores do INAN tinham clara consciência acerca da vigência do concurso. Prova desse entendimento é o dissenso interno, pois conforme referido documento alguns professores se posicionaram pela prioridade da convocação do candidato aprovado no concurso vigente, mencionando para isso o principio de eficiência na ocupação da vaga e aludindo assim ao artigo 37 da Constituição Federal, que determina obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. Indignado com tal preterição, por se consubstanciar em ato arbitrário por parte da Universidade, é que o candidato judicializou sua pretensão visando ocupar à vaga para professor de Antropologia, restabelecendo-se seu anterior direito de ser convocado e nomeado na vaga aberta em janeiro de 2014. Apesar dessa tentativa administrativa de impugnação do edital, referido concurso seguiu em andamento. O certame aberto pelo edital de 2014, para a contratação de professor do magistério superior em Antropologia, marcado para maio de 2014, teve três candidatos inscritos e nenhum deles compareceu para realizar a prova escrita, primeira fase do concurso, o que tornou todos os candidatos desclassificados. Além disso, e mesmo durante a vigência do concurso no qual o candidato encontrava-se aprovado, surgiu ainda uma nova vaga no Instituto de Antropologia, decorrente da demissão de uma terceira professora, conforme publicação no diário oficial também anexada aos autos. Assim encontra-se transcrita no processo, ata do Conselho do INAN de maio de 2014, ocorrida após o não comparecimento de nenhum candidato para o concurso, e o surgimento de uma segunda vaga no instituto, in litteris:  “Por fim, passou-se a tratar sobre o preenchimento das vagas disponíveis para professores efetivos do curso de antropologia, haja vista que atualmente possui duas vagas a serem preenchidas. Após ampla discussão sobre as possibilidades de preenchimento das vagas, foi decidido por maioria dos votos realizar novo concurso para contratação de Professor Efetivo com titulação mínima de Doutorado no ano de 2015, ou seja, após o processo eleitoral;” “Oportunamente, o diretor informa que diante da decisão do Conselho em aguardar a realização de novo concurso, poderá ocorrer o remanejamento das vagas para outras unidades, a critério da administração superior, com posterior devolução assim que o MEC disponibilizar mais vagas.” Caracterizou-se então a vacância de mais uma vaga para o mesmo cargo em que o candidato fez concurso e foi aprovado, ainda na vigência do prazo editalício. De acordo com o documento redigido pelo diretor do instituto, cujo texto restou acima reproduzido, ficou revelado que existiam à época duas vagas vacantes no INAN, ambas ocupadas a titulo precário e com o risco de não serem preenchidas futuramente, pois como ponderado pelo próprio diretor, existia o risco delas serem remanejadas para outras unidades. A existência de dois professores ocupando a título precário e temporário a vaga conquistada por concurso público também restou confessado e registrado em memorando expedido pelo então diretor do INAN (no qual mencionava que havia à época um professor substituto e outro cedido por uma terceira unidade da UFRR atuando no curso de Antropologia devido à carência de professores), também anexado aos autos da ação de conhecimento manejada pelo candidato, caracterizando a preterição reiterada dele dentro da UFRR. 2 Aspectos jurídicos 2.1 Breve fundamentação teórica Esta fundamentação consiste em ligeira explanação, feita com base na literatura, sobre os aspectos jurídicos centrais do caso em estudo. Tem por objetivo permitir análise e discussão do processo judicial selecionado. Assim, inicialmente cumpre destacar que não há dissenso na literatura sobre o conceito e a finalidade da realização de um concurso público. Nesse sentido, destaque-se Carvalho Filho (2012, p. 622), ao mencionar que: “Concurso público é o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e funções públicas. Na aferição pessoal, o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica de interessados em ocupar funções públicas e no aspecto seletivo são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento, obedecida sempre a ordem de classificação. Cuida-se, na verdade, do mais idôneo meio de recrutamento de servidores públicos. Abonamos, então, a afirmação de que o certame público esta direcionado a boa administração, que, por sua vez, representa um dos axiomas republicanos.” Mazza (2014, p. 1441,8) complementa a ideia exposta acima, indicando que o concurso público é “um procedimento externo e concorrencial. É externo porque envolve a participação de particulares. É concorrencial porque enseja uma disputa, cujo resultado final favorece alguns competidores em detrimento dos demais.” Prossegue o mesmo autor dizendo que o concurso público pode ser considerado um verdadeiro princípio de Direito Administrativo, insculpido no art. 37, II da Constituição Federal. Neste mesmo dispositivo, a Constituição menciona ainda haver dois tipos de concursos: o de provas (para cargos e empregos de menor complexidade) e, o de provas e títulos (para cargos e empregos de maior complexidade). Carvalho Filho (2012, p. 622) detalha com propriedade a forma de realização dos concursos públicos de provas e títulos, sob a óptica constitucional. Para referido autor: “O concurso pode ser de provas ou de provas e títulos. Atualmente não mais é juridicamente possível o concurso apenas de títulos, porque esta forma de seleção não permite uma disputa em igualdade de condições. A regra do concurso esta no art. 37, II, da CF. A EC nº 19/1998, que implantou a reforma do Estado, alterou o dispositivo, introduzindo alteração no sentido de que o concurso público de provas ou de provas e títulos se faca "de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei”. Em nosso entender, porém, mesmo sem esse acréscimo, já se deveria entender que o concurso, como processo seletivo que é, tem que se compatibilizar com a natureza e a complexidade das funções atribuídas ao cargo ou ao emprego, porquanto são eles, sem qualquer duvida, os verdadeiros fatores que norteiam as fórmulas concursais. Seja como for, entretanto, o mandamento constitucional visa a obrigar o administrador público a observar o princípio da razoabilidade, de modo a que nem haja exageros na aferição das provas e títulos, nem sejam estes meros artifícios para chancelar favorecimentos, situações nitidamente ilegítimas.” Outro aspecto a ser destacado, ainda em Carvalho Filho (2012, p. 623) é sobre a utilização de titulação como parâmetro para aprovação ou reprovação em concurso público. Nesse sentido, menciona que: “A titulação dos candidatos não pode servir como parâmetro para aprovação ou reprovação no concurso público, pena de serem prejudicados seriamente aqueles que, contrariamente a outros candidatos, e as vezes por estarem em início da profissão, ainda não tenham tido oportunidade de obterem esta ou aquela titulação. Entendemos, pois, que os pontos atribuídos a prova de títulos só podem refletir-se na classificação dos candidatos, e não em sua aprovação ou reprovação.” Mazza (2014) segue a mesma linha da transcrição acima, esclarecendo ainda que atualmente nosso ordenamento jurídico não permite a realização de concurso público apenas em razão de titulação (mero exame de currículo), apesar de tal prática ter sido possível no passado. Por fim, ressalte-se ainda que para Mazza (2014) e Carvalho Filho (2012, pp. 631-632), a jurisprudência é pacífica ao considerar que o candidato aprovado, dentro do prazo de validade do certame, possui direito subjetivo à nomeação, caso seja preterido no ranking de classificação.  “Não obstante, se o candidato for aprovado no concurso e vier a ser nomeado, tem direito subjetivo a posse e, portanto, a complementação do processo de investidura. A ordem de classificação no concurso também tem importância para o provimento. A jurisprudência já definiu que, dentro do prazo de validade do concurso, o candidato tem direito subjetivo a nomeação, caso seja preterido na ordem de classificação do concurso.” Mazza (2014, p. 1454,6) menciona ainda duas construções jurisprudenciais interessantes e bastante aplicáveis ao caso sob exame. O primeiro ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário 581.113/SC, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, que “reconheceu o direito adquirido à nomeação de candidatos aprovados quando ocorre requisição de servidores para exercício da mesma função a ser provida pelo concurso.” O segundo quando o: “Conselho Nacional de Justiça, no julgamento do Pedido de Providências n. 5662-23.2010.2.00, firmou o entendimento de reconhecer direito subjetivo à nomeação aos candidatos aprovados fora do número de vagas quando o órgão público manifesta, por ato inequívoco, a necessidade do preenchimento de novas vagas.” Entretanto, cabe ressaltar que de acordo com a literatura especializada (também em ALEXANDRINO; PAULO, 2012) a orientação predominante é no sentido de que, ainda hoje, a aprovação em concursos públicos gera ao candidato mera expectativa de direitos, onde o reconhecimento do direito subjetivo à nomeação e posse surge apenas em casos excepcionais, quando a administração demonstra inequivocamente que desrespeitou a ordem de classificação e/ou que há a necessidade premente do provimento no cargo, conforme a Súmula 15 do Supremo Tribunal Federal. 3 Discussão 3.1 Formalidades iniciais Em vista da descrição do caso, constatou-se que os atos tidos por ilegais e arbitrários, ganharam força com a manutenção de dois professores precários na vaga conquistada pelo candidato em concurso de provas e títulos. A indignação dirigiu-se então aos atos de competência da Reitora da UFRR, cuja autoridade administrativa seria capaz de corrigi-los, suspendê-los ou mesmo torná-los sem efeito. Por se tratar de ação contra a manutenção de ato ilegal no âmbito da UFRR, autarquia federal, por decorrência constitucional do art. 109, incisos I e VIII, a competência recaiu sobre uma das Varas da Justiça Federal do Estado de Roraima. 3.2 Implicações jurídicas materiais Destaque-se sumariamente, que o candidato restou aprovado em primeiro lugar no cadastro de reserva após reclassificação e, quando da abertura de novo edital para a mesma vaga, não houve nenhum candidato interessado em prestar tal pleito. Restou comprovado também a existência de duas vagas e a necessidade da administração no seu preenchimento, vagas essas ocupadas a título precário por um professor cedido de outro instituto e um professor substituto. Por fim, caracterizou-se a impossibilidade de preterição dos candidatos aprovados em concurso anterior, consubstanciando direito de preferência em relação aos aprovados em concurso seguinte. A argumentação jurídica em favor do candidato, por se tratar de questão ligada diretamente à administração pública e os efeitos jurídicos decorrentes da realização dos seus concursos, encontra amparo constitucional expresso no art. 37, inciso IV, in litteris: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de  legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao  seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”(…) “IV – durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;” Por ter logrado êxito no concurso para professor do magistério superior da UFRR no ano de 2013, e na exegese simplista do inciso IV, art. 37, da Constituição Federal, já teria o candidato o direito de ser convocado para ocupar respectivo cargo, porquanto houve por parte daquela Instituição de Ensino (em 2014) o expresso reconhecimento de que se abriu mais de uma vaga, ainda dentro do prazo de validade do anterior certame. Além disso, agravam-se os fatos da administração pública ter realizado novo concurso público, no qual nenhum candidato foi aprovado, restando a vacância de uma segunda vaga para professor de Antropologia no INAN, sendo que a ocupação de ambas as vagas aconteceram a título precário. O aludido dispositivo constitucional estabelece que, durante o prazo improrrogável previsto no edital, o aprovado em concurso público será convocado com prioridade sobre novos concursados, restando assegurado, pois, o direito subjetivo de não ser preterido. Neste mesmo sentido, evoluiu também a jurisprudência da nossa Suprema Corte para garantir o direito do candidato de ser nomeado no respectivo cargo; o mesmo conquistado por intermédio da sua aprovação em concurso público realizado em 2013 e nos termos sumulares do Supremo Tribunal Federal que seguem: “Súmula nº 15: Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação.” Com efeito, a partir da publicação de edital noticiando a abertura de vagas, a Administração Pública indicou a necessidade de contratação e, o que é pior, ao reconhecer publicamente a vacância de vagas para a qual existe candidato aprovado em concurso não expirado (ocupadas a título precário por professores temporários), fica demonstrado que a discricionariedade administrativa neste caso dever ser imediatamente afastada, fazendo com que resvale para o campo da vinculação e tornando imperativa a nomeação daqueles que, já aprovados, aguardam nomeação. A expectativa de direito decorrente da aprovação em concurso se torna direito subjetivo à nomeação quando comprovadas a existência de vaga e quando há intenção da administração de provê-la, exatamente nos moldes da situação gerada dentro da UFRR e como posta em juízo pelo candidato. Desse modo, caracterizando-se a preterição do candidato em razão das duas vagas para professor ocupadas a título precário no Instituto de Antropologia, surge o direito (ao mesmo) à nomeação e posse imediatas, conforme pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo excertos que abaixo se reproduz: “Em tema de concurso público, é cediço que os concursandos não possuem direito subjetivo à nomeação, mas apenas expectativa. Contudo, essa expectativa se convola em direito subjetivo se houver preterição na ordem classificatória ou contratação a título precário pela administração para o preenchimento de vagas existentes, em detrimento da nomeação de candidatos aprovados em certame ainda válido. (RMS 24.542/MS, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 28.10.2008, DJe 17.11.2008)” “A aprovação do candidato dentro do cadastro de reservas, ainda que fora do número de vagas inicialmente previstas no edital do concurso público, confere-lhe o direito subjetivo à nomeação para o respectivo cargo, se, durante o prazo de validade do concurso, houver o surgimento de  novas vagas, seja em razão da criação de novos cargos mediante lei, seja em virtude de vacância decorrente de exoneração, demissão, aposentadoria, pose em outro cargo inacumulável. ou falecimento. (RMS 37.82/AC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 14/02/2013)” “Esta Corte Superior adota entendimento segundo o qual a regular aprovação em concurso público em posição classificatória compatível com as vagas previstas em edital confere ao candidato direito subjetivo a nomeação e posse dentro do período de validade do certame. Porém, se a administração, durante o prazo de validade de concurso, contrata terceiros em situação precária para exercer cargos vagos, está obrigada a preenchê-los imediatamente, com nomeação e posse de candidatos aprovados, descabendo falar, nesta hipótese, em discricionariedade administrativa em nomear os aprovados dentro do número de vagas previstas no edital no lapso temporal de validade do certame. (MS 18686/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, j. 10.04.2013, DJe 18.04.2013)” Ressalte-se que toda essa discussão poderia ter sido evitada se os administradores públicos da UFRR se pautassem pela literalidade do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais – Lei nº 8112/90, a estabelecer no seu art. 12 que o concurso público terá validade de 02 (dois) anos, trazendo expressa a seguinte vedação do respectivo parágrafo 2º: “Não se abrirá novo concurso enquanto houver candidato aprovado em concurso anterior com prazo de validade não expirado.” Contatou-se no presente caso deliberação no âmbito interno da UFRR (conforme mencionado acima) que, mesmo sabedores da existência de candidato aprovado em concurso anterior para o mesmo cargo, primeiro resolveram naquele departamento ilegalmente abrir um novo concurso, que não foi realizado devido ausência coletiva dos três candidatos inscritos; depois disso, mantiveram a posição de não chamar o candidato aprovado, mantendo as duas vagas existentes e abertas preenchidas com outros professores a titulo precário. Comprovou-se que se trata do mesmo cargo, pois as professoras que saíram do instituto (uma transferida e a outra exonerada) deixaram duas vagas vacantes, exatamente na cadeira de professor do magistério superior, cuja natureza jurídica coincide com aquela ofertada em 2013 por intermédio do anterior edital daquele ano. É sabido que a lei federal nº 12.863/13 veio a alterar a lei federal de nº 12.772/12 no que diz respeito à estruturação do plano de carreiras e cargos do Magistério Federal, priorizando o ingresso na carreira docente de portadores do título de doutorado. Porém, tal exigência não possui caráter absoluto e exclusivo, uma vez que em localidades com grave carência de detentores da titulação acadêmica de doutor, essa exigência pode ser substituída pela de título de mestre, especialista ou graduado. E esse é o caso, justamente da UFRR, que por situar-se no extremo norte do país sofre com a carência de professores, o que a faz ter como prática corrente a abertura de editais ofertando vagas para diversas titulações acadêmicas. Tal fato é facilmente comprovado nos próprios editais de concursos da instituição, e.g. o edital de 2014 que disponibilizou dezoito cadeiras para professores mestres e apenas oito restritas a professores doutores. Diante disso, infere-se que a própria UFRR (ao editar o ato convocatório de 2014) entendeu que para preencher seu quadro docente, possuir título de mestre ou de doutor é uma questão de conveniência administrativa, resolvida antes da expedição daquele ato, mas jamais uma exigência legal impeditiva para se tomar posse no aludido cargo. Outro argumento de ordem factual e que ilustra a tese válida de que a titulação de doutor não é pré-requisito legal para o ingresso na carreira docente da UFRR, decorre de uma análise intestina dos seus próprios quadros, a começar pelo corpo de ensino de Antropologia, onde a grande maioria dos professores (cinco, dos oito docentes que compõem o atual quadro) concluiu ou está por concluir seu doutoramento durante o exercício docente efetivo na UFRR, conforme consta nos currículos com links disponíveis no site do próprio Instituto de Antropologia. Conclui-se que para tomar posse no cargo de professor do magistério superior da UFRR não precisa o candidato possuir o título de doutor, mas sim para participar de concurso público cujo edital assim o estabeleça. Traduzindo de outro modo e dialogando com o nosso caso concreto, o candidato se inscreveu no concurso regulado pelo edital de 2013, percorrendo todas as suas fases e logrando êxito na sua aprovação sem que lhe exigissem o título de doutor. Conquistou a sua aprovação e direito subjetivo à vaga para ingresso na UFRR nos termos daquele anterior edital e consoante legislação vigente na época, não podendo agora por meio de mero ato administrativo, ou seja, por preterição arbitrária e ilegal por parte do conselho deliberativo do INAN e, posteriormente, por intermédio do edital de 2014, simplesmente ter o seu direito tolhido somente porque se deliberou internamente em se abrir novo edital para quem detivesse a titulação mínima de doutor. Conforme ata do conselho administrativo, após nenhum dos três candidatos inscritos terem prestado o concurso de 2014 e surgir uma segunda vaga, manteve-se por parte de um pequeno grupo de professores a posição de não se chamar o candidato aprovado, havendo, portanto, a preterição ainda em um segundo momento. Isso indica que o candidato foi ofendido por duas vezes seguidas, sem qualquer motivo plausível, em prejuízo ao curso de Antropologia e por evidente burla ao Texto Constitucional. Arremate-se que a titulação acadêmica não interessa para fins de ocupação de vaga de professor. Essa qualificação refere-se apenas a quem for se submeter aos termos de edital de concurso, modalidade de regulação da fase meritória e classificatória anterior ao termo de posse, merecendo maior pontuação nessa última fase quem comprovar a titulação de doutor. Laborando no campo das hipóteses, não seria de se estranhar então que um professor doutor que viesse a concorrer no certame editalício de 2013 acabasse ficando, por exemplo, numa classificação inferior, se herdasse pontuação insuficiente das fases anteriores (prova de conhecimento e didática) para vencer o peso do doutoramento no momento da final fase da aferição dos títulos acadêmicos que deveriam ser também apresentados. Do mesmo modo, a área de atuação citada no edital de 2014 corresponde à área de pesquisa a que deve se alinhar o candidato a professor, e não às disciplinas que ele irá ministrar ao longo de sua carreira docente, que invariavelmente não corresponderão apenas à área de atuação descrita no documento editalício, conforme prática costumeira e facilmente constatável ao se examinar as disciplinas oferecidas semestralmente no curso de Antropologia da UFRR e seus professores, que muitas vezes atuam em área completamente diversa daquela especificada nos editais que regeram seus respectivos concursos. Destaque-se, por fim, que a violação ao princípio do concurso público, também afronta por via reflexa os princípios constitucionais da igualdade, moralidade e impessoalidade, constituindo ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11, inciso V, da Lei n° 8.429/92. 3.3 Considerações sobre a possibilidade de concessão de liminar de tutela antecipada Dado o caráter do caso, o candidato requereu liminar de tutela antecipada, conforme prescreve o art. 273 da Lei Adjetiva Civil que permite ao juiz, a requerimento da parte, antecipar total ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, inexistindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e, ainda: “I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”; ou “II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. Contudo, e quando presentes os respectivos pressupostos, poderá a tutela antecipada ser requerida cautelarmente (par. 7º); havendo de ser concedida pelo Juiz quando um ou mais pedidos acumulados, ou parcelas deles, mostrar-se incontroverso (par. 6º), e desde que não haja no caso concreto o perigo da irreversibilidade do provimento antecipado (par. 2º). No presente caso, observou-se mais do que uma mera verossimilhança do direito, porquanto todas as alegações foram documentadas e confessadas por agentes da própria UFRR. Perceba-se que os entraves administrativos criados internamente tiveram o condão não apenas de prejudicar direito do candidato, mas sobretudo o regular funcionamento do curso de Antropologia, justificando em tese, a intervenção liminar na causa por envolver interesse público. No caso, a demora no provimento cautelar poderia levar ao perecimento do próprio direito do candidato, em virtude da expiração do prazo de validade do concurso (setembro de 2014). A partir de então, a possibilidade de lesão ou dano ao direito do candidato se tornaria irreversível. Observou-se também que, conforme a argumentação dos autos, que a medida liminar não iria alterar as condições de trabalho no curso de Antropologia, que continuaria contando com professores temporários no quadro. O discurso sobre o perigo da demora pautou-se na vulneração permanente do texto constitucional, inaceitável quando o desrespeito à norma segue promovido pela própria Administração Pública Federal. Na inteligência dos dispositivos constitucionais anteriormente citados, e segundo posicionamentos sumular e jurisprudencial do nosso Supremo Tribunal Federal[1], percebeu-se claramente o direito do candidato de ser nomeado no cargo de Professor da UFRR, uma vez que fora preenchida inadvertidamente a vaga no âmbito administrativo daquela Instituição de Ensino sem observância à classificação obtida pelo candidato, agravada ainda com a manutenção dois outros professores a título precário e temporário. Apenas com intuito de fechar o caso, faz-se necessário destacar sumariamente os pedidos do candidato em sua ação de conhecimento. Assim, foram requeridos: a) liminar para determinar que a parte ré no processo, nomeasse e desse posse ao candidato, então aprovado em certame realizado no ano de 2013 e; b) alternativamente, a reserva a vaga, a fim de garantir ao candidato a vaga deixada aberta junto à UFRR com a transferência de professora para outra Unidade da Federação, até final julgamento de mérito da ação. Conclusão Diante do exposto e conforme literatura e entendimento dos Tribunais Superiores do Brasil, a conclusão não poderia deixar de indicar que se demonstrou o efetivo direito subjetivo do candidato a nomeação e posse no cargo de professor do ensino superior junto a UFRR liminarmente e a posteriori, sua confirmação. Destaque-se, entretanto, que conforme mencionado no início do texto, tais práticas administrativas de favorecimento ou restrições subjetivas (e mesmo pessoais) a candidatos em concursos públicos para professor universitário são comuns no Brasil. Pesquisa superficial realizada nos sites dos Tribunais Superiores apresentou alto número de processos judiciais com temáticas semelhantes. Isso pode significar a incompatibilidade da norma em relação à realidade e cultura institucionais. Observa-se em nosso País um considerável crescimento de instituições de ensino superior, associado a uma disponibilidade exponencial de vagas, incentivada principalmente por políticas públicas de inclusão social e ações afirmativas orientadas para garantir o acesso da população ao ensino superior. Este crescimento polarizou as diferenças institucionais e também regionais. Nas regiões sul e sudeste (principalmente) as instituições de ensino costumam ser melhor estruturadas, possuindo inclusive maior disponibilidade de professores e pesquisadores titulados. Contraste facilmente observado em relação à região norte, onde a distribuição de doutores é bem menor que no resto do país. Ocorre que em instituições mais estruturadas, onde os departamentos possuem cursos de graduação e pós-graduação estrito senso associados, faz-se necessário a contratação de profissionais extremamente especializados e capazes de integrar grupos de pesquisa com finalidades e tarefas que demandam vasta experiência na área, normalmente comprovada por captação de recursos para pesquisa e produção intelectual ou patentes. É por este motivo que a Universidade Estadual Paulista (para citar exemplo concreto) costuma inverter a ordem dos concursos para provimento dos cargos de professor. Nesta instituição, a primeira etapa, eliminatória e classificatória, é a defesa do memorial do candidato, objetivando justamente buscar um profissional que melhor atenda aos requisitos do cargo e se integre em harmonia (ao menos acadêmica) em grupos de pesquisa e redes de colaboração (nacionais e internacionais) de interesse de seus respectivos departamentos. Neste caso, não se pode falar em favorecimento de candidatos, mas na necessidade de uma contratação com caráter intuito personae. Realidade diversa de instituições insipientes e ainda desestruturadas que demandam todo tipo de profissional, ainda mais em regiões carentes do Brasil. Em instituições estrangeiras, como em muitas universidades dos Estados Unidos, as “efetivações” são realizadas após períodos de experiência, nos quais os professores são contratados a convite e depois avaliados na prática, junto ao departamento e grupos de pesquisa. Ao final desse período, que pode atingir alguns anos, o candidato se submete a uma prova equiparável a um concurso para professor livre-docente, apresentando resultados de pesquisa e demais atividades acadêmicas. Se aprovado, ganha certa estabilidade, caso contrário tem seu contrato rescindido. Deixando de lado as diferenças culturais, não se pretende defender abusos de poder e demais ilegalidades ou imoralidades administrativas praticadas no seio de concursos públicos. O fato é que a aplicação da norma deve ser construída diante do caso concreto e dos seus destinatários. Tal premissa enseja que se trate com mais flexibilidade a formatação de concursos públicos para o provimento de cargos de professores do ensino superior, na esfera federal, no Brasil. A carreira docente federal atualmente é bastante restritiva. O regime de dedicação exclusiva é absolutamente fechado e engessado, impedindo que o docente exerça qualquer outra atividade, limitando de forma duvidosa o alcance da própria Constituição Federal quando trata das possibilidades de acumulação de cargos públicos. Cursos com perfil de formação de profissionais liberais, tais como medicina e direito, certamente passarão por grandes dificuldades para selecionar e contratar profissionais titulados e capacitados, que possam adentrar à carreira docente em regime de dedicação exclusiva, prejudicando sobremaneira a pesquisa e pós-graduação. Um erro não justifica o outro, mas o marco regulatório da educação superior no Brasil precisa ser adequado ao setor, permitindo ao menos que se construam e fortaleçam instituições de forma inteligente e meritocrática, contribuindo para uma educação de qualidade, como a população brasileira merece.
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A responsabilidade dos servidores públicos numa análise das teorias publicistas da responsabilidade civil do estado
Aborda-se, em presente trabalho, a responsabilidade dos servidores públicos frente às infrações por eles cometidas, no exercício da função pública. Busca-se levantar as características da responsabilização, tanto na esfera administrativa, na penal, quanto na esfera civil, abordando-as como instâncias independentes e trazendo a possibilidade de comunicabilidade entre elas. Aponta-se as considerações que devem ser feitas ao tratar da Responsabilização Civil do Estado, tema de extrema relevância, que será abordado dentro das teorias publicistas da responsabilidade. Constrói-se uma idéia de responsabilidade pautada na teoria publicista vigorante no Brasil. Analisa-se sobre a responsabilidade civil do Estado, relacionando-a com a responsabilidade dos servidores públicos.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A sociedade hodierna vive em uma era em que toda atitude tomada gera uma reação, o que importa em conseqüências que às vezes são indesejadas, porém devem ser arcadas. Nesse cenário, luta-se pela impunidade e respeito aos princípios fundamentais básicos garantidos na Carta Magna e a violação a esses direitos e garantias devem ser reparados. A reparação justa é obtida através da responsabilização do agente causador do dano, que atuando por dolo ou culpa será responsabilizado ou até mesmo sem dolo ou culpa, em virtude da função que exerce dentro do Estado Democrático de Direito, como a responsabilidade da Administração Pública. Administrar algo consiste em prestar serviço, gerir, dirigir com o objetivo de obter um resultado. A Administração Pública, por essa ótica, deve ser vista como um conjunto de entidades e órgãos incumbidos de realizar a atividade administrativa, visando à satisfação das necessidades coletivas. Nesse condão, a Administração Publica, em sentido amplo, compreende os órgãos de governo, que exercem a função política, bem como os órgãos, pessoas jurídicas e agentes, que exercem funções puramente administrativas, estando assim, incumbidos de atender concretamente as necessidades coletivas, através da prestação de serviços públicos. Nesse contexto, serviço público é toda atividade que a Administração Pública executa, direta ou indiretamente, com a finalidade de satisfazer às necessidades da coletividade, sob regime jurídico público. Uma peça de grande importância na realização dessas atividades é o servidor público, aquele que presta serviço com vínculo empregatício, à Administração Pública direta, autarquias e fundações públicas. Desta forma, os servidores públicos, em virtude das atribuições que lhes são dadas para que executem as atividades estatais, tornam-se titulares de direito e deveres concernentes às suas funções, e passíveis, portanto, de responsabilização decorrente do cometimento de possíveis infrações. Destarte, necessário se faz a análise acerca das responsabilidades dos servidores públicos, suas características e analogias, bem como a relação existente com a responsabilidade civil do Estado, de acordo com as teorias publicistas desenvolvidas através dos princípios do direito público. 1. RESPONSABILIDADE DOS SERVIDORES PÚBLICOS A Constituição de 1988 aplica a expressão “Servidores Públicos” para designar as pessoas que prestam serviços, com vínculo empregatício, à Administração Pública direta, autarquias e fundações públicas. Nesta linha, Maria Sylvia Di Pietro, define servidores públicos, em sentido amplo, como as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e ás entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. (DI PIETRO, 2006, p.498-501) Em sentido estrito, servidor público é a expressão utilizada para identificar aqueles agentes que mantém relação funcional com o Estado em regime estatutário. São titulares de cargos públicos, efetivos ou em comissão, sempre sujeitos a regime jurídico de Direito Público. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 125) Seguindo essa lógica, os servidores públicos, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, poderão cometer infrações de ordem administrativa, civil ou criminal. E por essas infrações deverão ser responsabilizados pela Administração e perante a Justiça Comum. (MEIRELLES, 2006, p. 466) A responsabilidade administrativa corresponde ao encargo que resulta da violação de normas internas da Administração pelo servidor público, que é sujeito aos estatutos, decretos, disposições complementares ou provimentos regulamentares das funções públicas. (MEIRELLES, 2006, p. 467) Tal falta funcional gera um ilícito administrativo, originado a partir de uma ação ou omissão, culpa ou dolo e dano causado por servidores públicos à Administração. Sendo assim, cumpre a própria Administração o dever de instaurar o procedimento adequado a esse fim, assegurando ao servidor o contraditório e a ampla defesa. (DI PIETRO, 2006, p. 589) Entretanto, a Administração não pode aplicar punições arbitrarias, devendo sempre demonstrar conformidade com os dispositivos a que se baseiam. Desta forma, a aplicação das penalidades devem sempre ser motivadas, cabendo à autoridade administrativa o dever de justificar a aplicação da punição imposta, de acordo com o ato ilícito, e assinalando os dispositivos legais ou regulamentos violados. Cumpre destacar que, as penalidades administrativas independem de processo na esfera civil ou penal que possa vir a sujeitar o servidor em decorrência do mesmo ato ilícito. Assim, a Administração não será obrigada a esperar o término dos demais processos para impor a punição correspondente. No entanto, será afastada a punibilidade na esfera administrativa, no caso de absolvição do servidor na esfera penal, diante da comprovação da inexistência do fato ou se existirem circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena. A responsabilização civil trata-se de uma obrigação imposta ao servidor público de reparar possíveis danos caudados à Administração, por culpa ou dolo, no desenvolver de suas funções. Destarte, inexorável se faz anotar que tal responsabilidade civil corresponde ao ato cometido pelo servidor que acarretou dano patrimonial à Administração.       Essa ordem patrimonial decorre do art. 186 do Código Civil, que dispõem que, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Deste modo, a Administração não pode isentar a responsabilização civil de seus servidores, uma vez que não possui o poder de dispor sobre o patrimônio público. Portanto, sem a ocorrência de dano patrimonial não há embasamento para responsabilização civil, que tende, exclusivamente, à reparação material ou pecuniária, da Administração. (MEIRELLES, 2006, p. 470) Nesta linha, complementa Hely Lopes Meirelles: “A comprovação do dano e da culpa do servidor é comumente feita através do processo administrativo, findo o qual a autoridade competente lhe impõe a obrigação de repará-lo, através de indenização em dinheiro, indicando a forma de pagamento. Os estatutos costumam exigir a reposição de uma só vez quando o prejuízo decorrer de alcance, desfalque, remissão ou omissão de recolhimento ou entrada no prazo devido”. (MEIRELLES, 2006, p. 470) Contudo, quando um terceiro, sendo ele usuário ou possível usuário do serviço público, for lesionado por ato do servidor público, deve-se aplicar o que dispõe o art. 37, § 6°, da Constituição Federal, ou seja, o Estado deve responder objetivamente e independente de culpa ou dolo. Prevê o dispositivo in verbis: “Art. 37. […] §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. (grifo nosso)  Diferentemente da responsabilidade do Estado, tem-se a do servidor, que é responsabilidade subjetiva, assim só responderá pelos danos que causar, se cometê-los por ação ou omissão, depois de comprovada pelo Estado que houve tal culpa ou intenção (dolo) do servidor, em ação de regresso. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 401) De tal modo, primeiramente é movida uma ação contra o Estado, pela pessoa afetada pelo dano. Somente após sentença condenatória transitada em julgado, nesta ação, é que se abre oportunidade para o Estado propor ação de regresso contra seu servidor visando, assim, obter o ressarcimento que fora condenado a indenizar, desde que comprovada à culpa ou dolo do agente. No mais, tal responsabilidade civil é independente das demais formas de responsabilização, sendo apurada da esfera do Direito Privado, e perante a Justiça Comum. A responsabilidade penal, por sua vez, sucede da prática de atos, ações ou omissões, definidos em lei como sendo crime ou contravenção. Nesta linha, a responsabilidade penal é trazida pelo art. 123 da Lei n.° 8.112/1990, segundo a qual, “a responsabilidade penal abrange os crime e contravenções imputadas ao servidor, nessa qualidade”. Para efeitos penais, são considerados servidores públicos, nos termos do art. 327 do Código Penal, quem exerce cargos, emprego ou função pública, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração. Em complemento, dispõem o parágrafo único do art. 327 que, são equiparados a “funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”. Nessa esteira, a responsabilidade criminal é resultado do cometimento de crimes funcionais comuns, nos quais podem incidir qualquer servidor público. Mas, também podem ser resultado de crimes de responsabilidade dos agentes políticos, ou seja, dos Chefes do Executivo federal, estadual e municipal, por exemplo. (MEIRELLES, 2006, p. 471-472) Esses crimes, funcionais e de responsabilidade, são delitos de ação pública, que pressupõem a instauração de um processo por meio de comunicação de qualquer pessoa à autoridade competente ou através de denúncia pelo Ministério Público. As três esferas de responsabilidade são administrativa, civil e penal. Elas são independentes e podem ser apuradas conjunta e separadamente. No que tange ao meio de punição dos servidores públicos pelo ilícito penal cometido, elucida Hely Lopes Meirelles: “[…] a responsabilização e a punição dos servidores públicos fazem-se por meios internos e externos. Aqueles abrangem o processo administrativo disciplinar e os meios sumários, com a garantia do contraditório e da ampla defesa; estes compreendem os processos judiciais, civis e criminais. Os meios internos, desenvolvem-se e se exaurem no âmbito da própria Administração; os meios externos ficam a cargo exclusivo do Poder Judiciário”. (MEIRELLES, 2006, p. 472) Destarte, no tocante à comunicabilidade das instâncias, de acordo com o art. 125 da Lei n.° 8.112/1990, a regra é que as responsabilidades administrativas, civil e penal são cumulativas e, em princípio, independentes. Entretanto, há a possibilidade de ocorrer a exceção à regra de independência das responsabilidades quando a órbita penal estiver em inclusão, de acordo com o conteúdo da sentença penal. Nesse passo, na hipótese de um mesmo fato estar tipificado em uma lei penal como crime ou contravenção, enquadrar-se em uma lei administrativa como infração disciplinar e, além disso, causar dano patrimonial ou moral a terceiro (responsabilidade civil), a condenação criminal do servidor por esse fato, uma vez transitado em julgado, interfere nas orbitas administrativa e cível, implicando o reconhecimento automático da responsabilidade do servidor, por esse fato, nessas duas esferas. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 402) Do mesmo modo, segundo dispõe o art. 126 da Lei n.° 8.112/1990, a absolvição penal pela negativa da autoria ou pela inexistência do fato também interfere nas esferas administrativa e civil. Uma vez que, a jurisdição penal, sob a análise das provas (que nessa esfera é bem mais ampla) afirmar categoricamente que não foi o agente o autor do fato a ele imputado, ou o fato não ocorreu, não há como sustentar o contrário nas outras esferas. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 402) Assim, mesmo que o servidor já tenha sido condenado nas outras esferas pelo mesmo fato a condenação será desfeita e, se demitido, será reintegrado.  Mas, se a absolvição na esfera criminal for por mera insuficiência de provas, ou por ausência de tipicidade ou de culpabilidade penal, ou por qualquer outro motivo, não haverá interferência nas demais esferas de responsabilização. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 403) 2 TEORIAS PUBLICISTAS DE RESPONSABILIDADE DO ESTADO A responsabilidade patrimonial do Estado, também conhecida pela doutrina responsabilidade extracontratual do Estado ou responsabilidade civil do Estado é a obrigação que lhe compete de reparar economicamente os atos lesivos causados à esfera de outrem, garantida juridicamente, e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, comissivos ou omissivos, legais ou ilegais, materiais ou jurídicos. (MELLO, 2006, p. 947) A responsabilidade, como ocorre no Direito Privado, manifesta-se na obrigação de reparar os danos patrimoniais causados a terceiros, e se extingue com o cumprimento ou liquidação de correspondente indenização. (GASPARINI, 2008, p. 1026) A evolução da obrigação do Estado se deu em fases distintas, indo da irresponsabilidade para responsabilidade com culpa, civil ou administrativa e depois, para a responsabilidade sem culpa, que se subdivide em risco administrativo e risco integral. (GASPARINI, 2008, p. 1027) Na fase da irresponsabilidade civil do Estado, durante o Brasil – colônia, a Administração Pública não tinha obrigação de indenizar os prejuízos que seus agentes causassem aos administrados, pelo princípio do vetor do Estado absoluto, pelo qual o Estado não podia causar males ou danos a ninguém. Por conseguinte, não era admitido que ao Estado absolutista se atribuísse qualquer responsabilidade, sob o risco de afrontar a sua soberania. Em contrapartida, admitia-se a responsabilidade do agente público quando o ato lesivo lhe pudesse ser atribuído. (GASPARINI, 2008, p. 1028) Em seguida, surgiu com forte influência do liberalismo, a fase da responsabilidade com culpa civil ou responsabilidade subjetiva, na qual o Estado se tornava responsável por indenizar o ofendido sempre que seus agentes, nessa qualidade, agissem com dolo ou culpa. Na chamada Teoria da Culpa Civil, a culpa ou dolo eram determinantes para responsabilização de do Estado. (GASPARINI, 2008, p. 1029) Finalmente, chegou-se ao estágio das teorias publicistas da responsabilidade do Estado, aquelas desenvolvidas em meio aos princípios do direito público, em que vigora a Teoria da Responsabilidade sem Culpa ou da responsabilidade objetiva. Nesta fase, o dever de indenizar concentrava-se na culpa do serviço, quando não funcionava, não existia ou funcionava atrasado. (GASPARINI, 2008, p. 1030) Essa teoria de responsabilidade objetiva é pautada na simples relação de causa e efeito entre o comportamento administrativo e o ato danoso, devendo-se considerar somente o ato, o dano e o nexo causal, abstendo-se da aferição de dolo ou culpa. (MELLO, 2006, p. 956) Para Hely Lopes Meirelles (2006, p.649), aqui não se indaga mais de quem foi a culpa, nem sobre a culpa subjetiva do agente administrativo, mas perquire-se a falta objetiva do serviço, por culpa especial da Administração. Fica estabelecido o binômio falta do serviço/culpa da Administração, devendo ser provado somente à falta do serviço para se obter a indenização. A também chamada Teoria da Culpa do Serviço ou Teoria da Culpa Administrativa desprende a responsabilidade do Estado da culpa subjetiva de seus agentes públicos, ao passo que não haverá mais averiguação de dolo ou culpa do agente para constatação dos requisitos de funcionalidade do serviço público, assim sendo, estabelece-se a culpa anônima ao serviço público. Nesse diapasão, caberia à vítima demonstrar somente o dano e a culpa do serviço público prestado, sem adentrar no mérito da culpa do agente. (KOTOVIEZY, 2007) De acordo com essa teoria, a carência do serviço público decorre da deficiência no funcionamento, bem como da demora na prestação, o que já é suficiente para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos ocasionados. (MELLO, 2006, p. 957) Referente, ainda, à responsabilidade sem culpa ou objetiva surge a Teoria do Risco Administrativo, segundo a qual basta apenas o ato lesivo causado pela Administração, sem concurso do lesado. Portanto não se exige comprovação de falta do serviço e nem culpa do agente, basta comprovar que houve uma lesão, o fato do serviço e que fora causado pelo Estado, para que seja efetiva a responsabilização do mesmo. (MEIRELLES, 2006, p.649) Existe, outrossim, a Teoria do Risco Integral, que diz respeito à obrigação que o Estado tem de indenizar todo e qualquer dano causado em que esteja envolvido, além de não admitir nenhuma causa de excludente de responsabilidade, o que vincula o Estado a indenizar a vítima mesmo que o dano resulte exclusivamente da culpa ou dolo da vítima ou de força maior, como no caso de danos nucleares. Não obstante, essa teoria apresenta falhas e aparenta ser injusta, motivos tais, que ensejam seu desuso. (KOTOVIEZY, 2007) Por certo se tem que é bastante aplicada a Teoria do Risco Administrativo, na qual o Estado é responsabilizado, no entanto existentes casos de culpa exclusiva da vítima ou força maior, a responsabilidade do Estado é afastada. (GASPARINI, 2008, p. 1032) Tal teoria se baseia no risco que o exercício da atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de causar danos aos membros da sociedade, assim toda a coletividade deve concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. (MEIRELLES, 2006, p.649) Consoante a Teoria do Risco Administrativo, o Estado é responsável pelos danos causados, todavia presente um excludente, como a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior, a responsabilidade será afastada de plano.  Em se tratando de culpa concorrente o Estado responde de forma reduzida, sua responsabilidade será proporcional, conforme a participação de cada um dos envolvidos e, se não for possível apurar a quantificação da participação, divide ao meio. As linhas acima tracejadas encontram guarida no julgado do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – ELEMENTOS ESTRUTURAIS – PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – HOSPITAL PÚBLICO QUE INTEGRAVA, À ÉPOCA DO FATO GERADOR DO DEVER DE INDENIZAR, A ESTRUTURA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. Como se sabe, a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, § 6º). Essa concepção teórica – que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, tanto no que se refere à ação quanto no que concerne à omissão do agente público – faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano moral e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais, não importando que se trate de comportamento positivo (ação) ou que se cuide de conduta negativa (omissão) daqueles investidos da representação do Estado, consoante enfatiza o magistério da doutrina”. (STF. Agravo Regimental. Segunda TURMA. REl. MIN. Celso de Mello. Julgado em 25/06/2013.) Logo, assim reza o art. 37, § 6º da CF, acerca da responsabilidade da Administração Pública, literis: “Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” Portanto, hodiernamente, o Estado responde subjetivamente pelos danos causados decorrentes de atos omissivos, através da Teoria da Culpa do Serviço, porém há crescente entendimento do STF, STJ e doutrina em adotar a Teoria Objetiva.  Responde objetivamente, pelos danos causados a terceiros advindos de atos lícitos ou ilícitos, pela Teoria do Risco Administrativo. Enquanto o servidor público, agente causador direto do dano, irá responder sempre de forma subjetiva, levando em consideração as elementares culpa ou dolo. 3. A RESPONSABILIDADE DOS SERVIDORES PÚBLICO FRENTE À RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO A responsabilidade civil tem sua procedência no Direito Civil, e corresponde à obrigação de indenizar um dano patrimonial ou moral decorrente de um fato humano. A responsabilidade civil se desdobra também na seara administrativa, adotando uma modalidade de obrigação extracontratual e, segundo Marcelo Alexandrino, necessário se faz a presença dos seguintes elementos: “[…] a) A atuação lesiva culposa ou dolosa do agente; a regra geral no direito privado é a existência de caracterização de culpa em sentido amplo na conduta; a culpa em sentido amplo abrange o dolo e a culpa em sentido estrito; b) a ocorrência de um dano patrimonial ou moral; e c) o nexo de causalidade entre o dano havido e a conduta do agente, o que significa ser necessário que o dano efetivamente haja decorrido da ação do agente (ou de sua omissão ilícita, se fosse o caso de o agente ter o dever de agir).” (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 751) No direito brasileiro a questão da responsabilidade civil é norteada pelo princípio da causalidade adequada ou princípio do dano direto e imediato, pelo qual ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa. Desta forma, só é considerado caso de responsabilidade civil, quando há o nexo de causalidade direto e imediato, havendo uma ligação direta entre a conduta, comissiva ou omissiva, e o dano efetivo. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 751) Em relação ao Direito Público, tem-se que a responsabilidade civil da Administração Pública se manifesta na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos patrimoniais e morais que os seus agentes, atuando em nome do Estado, causarem à esfera juridicamente tutelada pelos particulares. Ao contrário do Direito Privado, em que a responsabilidade exige sempre que se tenha um ato ilícito, no Direito Administrativo a responsabilização pode ser em virtude de atos ou comportamento lícitos ou ilícitos, desde que causem danos a particulares. Portanto, a responsabilidade civil do Estado, segundo Maria Sylvia Di Pietro (2006, p. 618) é justamente a obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais e jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos Desse modo, a responsabilidade civil do Estado é do tipo objetiva. As últimas constituições acolheram o regime da Teoria do Risco Administrativo como forma de responsabilizar objetivamente o Estado, contudo exige-se uma ação do agente público no exercício de seu cargo ou função pública na entidade a que está vinculado. Assim, basta uma atuação estatal ou de quem lhe faça às vezes, a ocorrência de um prejuízo para que, objetivamente incida a obrigação de indenizar. (GASPARINI, 2008, p. 1043-1044) Lida-se com a substituição da responsabilidade individual do servidor  pela responsabilidade de forma genérica do Poder Público, acobertando o risco de sua ação ou omissão, que se resguarda na teoria da responsabilidade objetiva da Administração, ou seja, a responsabilidade sem culpa, pela simples ocorrência da falta anônima do serviço, em que o Estado assume os riscos dos serviços prestados. (MEIRELLES, 2006, p. 654) Os agentes públicos, por sua vez, são abraçados pela responsabilidade subjetiva e serão responsabilizados pelos danos que causarem a terceiros-administrados mediante culpa ou dolo. Importa que o dano tenha sido causado por alguém que desfrute da posição jurídica que lhe resulte a qualidade de agente público atuando em relação com o serviço público desempenhado. (MELLO, 2006, p. 984) Ademais, leciona a parte final do art. 37 da Carta Magna que ao Estado é assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Assim, o agente responsável pelo ato lesivo sujeita-se a ação penal e a ação civil regressiva e, havendo julgamento penal, poderá ocorrer quatro hipóteses, a citar: sua condenação criminal; absolvição pela negativa de autoria ou do fato; absolvição por ausência de culpabilidade penal; absolvição por insuficiência de provas ou por outros motivos. (MEIRELLES, 2006, p. 660) Surge um impasse na doutrina quanto ao momento de cobrar a responsabilidade do servidor público, no sentido de o lesado ao reclamar pelo dano sofrido ajuizar a ação de reparação de dano contra o agente público, contra o Estado ou contra ambos, como responsáveis solidários. (MELLO, 2006, p. 988) Nesse passo, a melhor doutrina ensina que a ação de indenização deve ser ajuizada contra o Estado, pois este tem responsabilidade objetiva, devendo a Administração, posteriormente proceder à responsabilização do servidor através da ação regressiva, com o fito de reaver o que desembolsou para pagar a indenização, cobrando essa dívida do servidor público que causou diretamente o dano, desde que tenha agido com dolo ou culpa ao exercer suas funções. (GASPARINI, 2008, p. 1039) O Direito de Regresso para Gasparini se explica como “aquele que paga o prejuízo causado por alguém que por força de uma relação jurídica a isso estava coobrigado ou porque é tido como seu preposto, tem o direito de se voltar contra ele para haver o quanto pagou.” (GASPARINI, 2008, p. 1039) Os requisitos que devem se fazer presentes para ensejar a ação regressiva do Estado contra o servidor público são: “[…] a) condenação da Administração Pública a indenizar, por ato lesivo de seu agente; b) o pagamento do valor da indenização;  c) a conduta lesiva, dolosa ou culposa do agente causador do dano. Desse modo, se não houver o pagamento, não há como justificar-se o pedido de regresso, mesmo que haja sentença condenatória com transito em julgado e o agente tenha-se conduzido com dolo ou culpa”. (GASPARINI, 2008, p. 1039) O servidor público, embora agindo em nome da Administração Pública, responde pelos seus atos, se dolosos ou culposos, mediante ação regressiva, a qual tem suas peculiaridades como não ser atingida pela prescrição, além de transmitir-se aos herdeiros e sucessores do servidor culpado, bem como ser instaurada mesmo após seu afastamento, por cessação, disponibilidade, aposentadoria, exoneração ou demissão. (MEIRELLES, 2006, p. 659) CONSIDERAÇÕES FINAIS É cediço que o Estado tem o múnus público de oferecer serviços básicos que tornem a vida da sociedade mais digna. Esses serviços são prestados pelos servidores públicos ou por entes delegatários de funções, obedecendo ao regime público e com a obrigação de exercer com eficiência, moralidade, legalidade, impessoalidade e publicidade. Porém, do dever de prestação de serviço surge a responsabilidade pelos atos que seus agentes realizem e se deles resultarem prejuízo, deverá a Administração arcar de forma objetiva, independentemente de dolo ou culpa, consoante a Teoria do Risco Administrativo. A responsabilidade civil consiste no dever de indenizar os danos patrimoniais e morais que os seus agentes, atuando em nome da Administração Pública, causarem à esfera juridicamente tutelada pelos particulares. Os agentes, por sua vez, respondem de forma subjetiva. Nesse contexto, visualiza-se o servidor público como a pessoa física que presta serviços ao Estado e ás entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos, será, portanto, possuidor de status jurídico de agente público, tendo em vista que exerce suas funções em nome da Administração Pública, não obstante responde por seus atos lesivos de forma subjetiva, aferindo-se dolo ou culpa da sua conduta. É perceptível, desse modo, que o Estado e o agente não se dividem, inclusive são até considerados unidade. Essa afinidade orgânica entre eles não pode ser considerada uma relação externa, formada exteriormente ao Estado, mas sim uma relação interna derivada da intimidade da pessoa estatal. Portanto, responde, de forma objetiva, o Estado pelos prejuízos causados a terceiros, responsabilizando os agentes causadores do dano, de forma subjetiva, por considerar a existência de dolo ou culpa, podendo reivindicar o valor desembolsado a título de indenização ao administrado lesado por meio de ação de regresso.
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O Projeto de Lei da Câmara nº 39/2014 em tramitação no senado e as mudanças nas atribuições das guardas municipais
Resumo:O presente trabalho tem como objetivo precípuo analisar as atribuições e a área de atuação das Guardas Municipais no que foi instituído no artigo 144, §8º, da Constituição Federal, referentes à proteção de bens, serviços e instalações. E as mudanças que o Projeto de Lei da Câmara de nº 39 de 2014 que tramita no Senado proporcionando padronização e segurança jurídica a essas instituições quando aprovado.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO As Guardas Municipais são instituições centenárias que existiam inicialmente para proteger as cidades, e foram praticamente extintas do texto legal durante a ditadura militar, devido à transferência exclusiva da competência exclusiva da Segurança Pública para os Estados e retornaram a cena na  Constituição de 1988 com a missão de proteger bens, serviços e instalações conforme disposição do artigo 144, parágrafo 8º da Carta Magna. No caso concreto, essas organizações extrapolaram a barreira do que estava prevista no texto legal e de fato exercem as mais diversas funções, nas cidades em que as existem de maneira a contribuir de forma importante na Segurança Pública, até mesmo, pela tendência de municipalização dos serviços públicos, tendo como exemplo saúde, ensino básico, trânsito, meio ambiente. Junto com esses fatores é possível notar que as Guardas também cresceram em decorrência do aumento da violência e criminalidade no nosso país, até em cidades do interior onde antes não se ouvia falar na ocorrência de crimes. 1. O PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 39 DE 2014 E O ESTATUTO DAS GUARDAS MUNICIPAIS Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 as Guardas Municipais necessitam de regulamentação, pois no texto normativo pátrio, as atribuições desses agentes estavam dispostas como a proteção de bens, serviços e instalações conforme dispuser a Lei.      Visando corrigir tal distorção o Deputado Arnaldo Faria de Sá propôs o projeto de Lei nº 1332/2003 que conforme outras tantas propostas que tramitam no Congresso tinha como objetivo regulamentar as atribuições das Guardas Municipais. O referido projeto também denominado de Estatuto Geral das Guardas Municipais ficou por treze aguardando a votação no Congresso até ser votado no dia 23 de abril de 2014 e ter sido enviado para o Senado se transformando no Projeto de Lei da Câmara nº 39 de 2014. 1.1 AS MUDANÇAS COM O PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 39 DE 2014 A SER VOTADO NO SENADO O projeto de Lei da Câmara que tramita no Senado com o nº 39 de 2014 deve mudar de maneira importante panorama da segurança pública no Brasil, pois os municípios, até então, não tinham responsabilidade alguma pela segurança pública apesar do clamor social e da crescente onda de insegurança sentida pela sociedade. A partir de então é necessário analisar as mudanças que tal projeto pode trazer nas atribuições das Guardas Municipais caso tal matéria seja aprovada. No artigo 2º do supra mencionado projeto estão dispostas as atribuições das Guardas Municipais, senão vejamos: “Art. 2º Incumbe as Guardas Municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em Lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União do Estado e do Distrito Federal” Aqui a estrutura das Guardas Municipais se mantém de maneira inalterada, pois as Guardas Municipais já existentes já tinham caráter civil, e os dispositivos para a concessão de porte de armas a Guardas Municipais estão previstas na Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento) e no decreto nº 5123, de Julho de 2004 que dispõe sobre o controle de armas de fogo. A novidade trazida no caput do artigo é a possibilidade da proteção municipal preventiva, o que significa que os Guardas Municipais também poderiam colaborar na preservação da ordem pública como forças auxiliares, sem, contudo concorrer com os demais órgãos de segurança pública, de maneira residual. O artigo 3º do Projeto de Lei traz os princípios norteadores da atuação das Guardas Municipais no território nacional “Art. 3º São princípios mínimos na atuação das Guardas Municipais I. Proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas; II. Preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas III. (suprimido) IV. Compromisso com a evolução social da comunidade; e V. Uso progressivo da força. (…)” Essa parte do texto no dispositivo legal faz referência ás novas técnicas de policiamento preconizadas pela Secretaria Nacional de Segurança-SENASP. No artigo 4º são estabelecidas as atribuições das Guardas Municipais para a proteção de bens, serviços e instalações municipais e no paragrafo único ficam expressamente descritos que os bens a serem protegidos são os bens de uso comum, os de uso especial e os dominiais. Com relação classificação dos bens, é possível explicitar que os bens de uso comum do povo são os mais amplos porque neles estão incluídos os rios, mares, florestas, praças, estradas ruas, mares, como citado por Meirelles, (2007, pág.495) seriam “o todo, os locais abertos à utilização pública”, adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo, sociedade. Para Gonçalves, (2008, p.270), os bens de uso comum do povo “são aqueles que podem ser utilizados por qualquer um do povo, sem formalidades, não perdendo essa característica se o poder público regulamentar seu uso, ou torna-lo oneroso, instituindo cobrança de pedágio como nas rodovias”. Os bens públicos de uso comum são aqueles acessíveis a todas as pessoas, mais precisamente os locais abertos à visitação do público com caráter comunitário, de utilização coletiva com a fruição própria do povo. Inalienável ou fora do comercio, com a observância que em determinados casos especiais podem ter a utilização restringida ou impedida, como por exemplo, um fechamento de uma avenida para a realização de obras, ou a interdição de uma praça para a realização de uma manifestação pública. E nesse ponto relacionado aos bens públicos de uso comum do povo surge um dos pontos dos defensores da atuação da Guarda Municipal na Segurança Pública. Porque os bens dessa natureza tem utilização ampla, com um número indeterminado de usuários, então é possível imaginar a proteção da Guarda Municipal as ruas, mares, praças, estradas, florestas, parques e outros. A proteção meramente patrimonial a esses bens, de inúmeros frequentadores, implicaria numa dissociação da segurança de quem os frequenta, coisa que na pratica não é possível, porque tais servidores protegeriam um parque público e não poderiam prestar socorro aos frequentadores de um parque, quando sofressem um furto? Perder uma criança? Precisarem de uma informação? Ou mesmo necessitar que alguém solicite auxilio médico? Tal pensamento também pode se aplicar perante todos os bens de domínio publico, pois não é possível imaginar que delitos ocorram, ou a necessidade de auxilio, informações, ou prestação de socorro a transeuntes de uma rua, ou uma praça onde a Guarda esteja presente e mantenha a sua atuação voltada apenas ao local, porque o lugar seria o meio esquecendo uma finalidade de garantir lazer, ou transito, locomoção, e a Guarda Municipal deve garantir que essa finalidade seja atingida pela população, sem a interferência de terceiros, e o Guarda é quem primeiro se defronta com tal situação. Os bens públicos de uso especial são aqueles que as entidades públicas respectivas destinam aos fins determinados ou aos seus serviços, como terrenos ou edifícios aplicados ao seu funcionamento. Tendo como características ser inalienável e imprescritível como os bens de uso comum do povo e quando não mais se prestam a finalidade a qual se destinam é possível suspender essa condição de inalienabilidade legalmente através de concorrência publica.  Nessa perspectiva, Di Pietro (2008, p.636), faz uma distinção interessante em sua obra ao explicar, que a expressão uso especial, para designar essa modalidade de bem, não “é muito feliz”, porque se confunde com outro sentido em que é utilizada, quer no direito estrangeiro, quer no direito brasileiro, para indicar o “uso privativo de bem publico por particular e também para abranger determinada modalidade de uso comum sujeito a maiores restrições, como pagamento de pedágio e autorização para circulação de veículos especiais”. Os Guardas Municipais, que estão organizando as filas de um hospital, ou prestam segurança aos usuários de um mercado público, informam quem tem dúvidas em uma repartição, ajudam no cumprimento dos atos administrativos emanados por esses órgãos aos particulares, ressaltando o caráter da vigilância não apenas patrimonial, colaboram com o ideal funcionamento dos logradouros públicos e a correta aplicação das posturas publicas. Os bens dominicais, para Gonçalves, (2008, p.274), são aqueles que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal ou real de cada uma dessas entidades”. Os bens de uso de uso dominial, ou dominical partindo dessa premissa são todos aqueles que não são de uso comum do povo, nem de uso especial, porque sobre os demais recai uma destinação especifica. Alguns exemplos de bens dominicais são a divida ativa, os móveis inservíveis, os prédios desativados e os terrenos de marinha. No artigo 5º do Projeto Lei que tramita no Senado Federal se estabelecem as competências especificas das Guardas Municipais, respeitando as competências dos outros entes federativos. A proteção dos prédios públicos, do patrimônio histórico, cultural e a coerção contra as pessoas que atentem aos bens, serviços e instalações do município já eram executados pelas Guardas mais a grande novidade no bojo do projeto de Lei é a participação efetiva dos guardas Municipais em várias novas atribuições que já aconteciam nos Municípios de fato e agora encontrarão respaldo legal. As inovações do texto normativo são a proteção das populações que usam os bens, serviços e instalações, a colaboração com os demais órgãos de segurança em ações conjuntas visando à paz social, a pacificação de conflitos presenciados pelos integrantes das Guardas Municipais, cooperação dos órgãos de defesa civil nos municípios, interação e discussão de projetos voltados à melhoria da segurança das comunidades locais, a celebração de convênios com órgãos Estaduais e Federais e Municipais para a realização de ações integradas, auxiliar na proteção de grandes eventos, na segurança de autoridades e dignitários, atuar nas ações de segurança escolar e principalmente a possibilidade do atendimento a ocorrências policiais senão vejamos os incisos XIII e XIV do artigo 5º: “XIII — garantir o atendimento de ocorrências  emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas; XIV — encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário;” Um ponto polêmico, na atuação dos Guardas Municipais a ser dirimido com a aprovação do PLC 39/2014 é a detenção de infratores, pois integrantes das Policias Militares, Civis e até mesmo do Poder Judiciário entendem se tratar de Usurpação da Função Pública Guardas Municipais efetuarem prisões. O Código Penal define o crime de Usurpação da Função Pública como “Usurpar o exercício da função pública com Pena-detenção de três meses a dois anos, e multa, e em seu parágrafo único prescreve que se do ato o agente aufere vantagem: reclusão, de dois anos a cinco anos, e multa.” A jurisprudência pátria, em especial o STJ quando acionado, em diversos julgados, referentes à suposta ilegalidade da Prisão em Flagrante feita por Guardas Municipais, vem negando os Hábeas Corpus, entendendo ser legitima a atuação dessa instituição pelo entendimento que a prisão em flagrante efetuada por Guardas se configura como ato legal em proteção a segurança social, desmistificando o caráter apenas patrimonial da Guarda Municipal. Os questionamentos se estendem para a dúvida sobre a possibilidade dos Guardas Municipais abordarem pessoas em fundadas suspeitas. Para Noberto Avena, (2010, p.634-635) a busca pessoal será feita a partir de fundadas suspeitas de que o individuo, portanto algo proibido ou ilícito, podendo ser realizada pela autoridade policial e seus agentes. Ressalta ainda que por fundadas suspeitas entende-se a desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil. Conforme tais conceitos a característica principal da busca pessoal é a subjetividade da sua realização, e a sua consequente verificação por autoridade policial. Conforme jurisprudência do STJ, no Hábeas Corpus nº109. 105-SP é possível Guardas Municipais realizarem a prisão e a busca pessoal, porque seus membros são autorizados a defender a sociedade, quando forem solicitados pela população ou encontrarem infratores em flagrante delito, conforme exposto a seguir: “(…) É certo que não se desconhecendo a limitação da atividade funcional dos guardas municipais trazidas pela Constituição Federal, dispositivo este que no entanto, não retira de seus membros a condição de agentes da autoridade, e como tal autorizados à prática de atos de defesa da sociedade, sobretudo em circunstâncias como a dos autos, em que o acusado se encontrava em condição de flagrância, apontado pela vítima como autor de grave delito ocorrido momentos antes nas proximidades do local onde se encontrava. Outra não poderia ser a conduta esperada dos guardas que ali se encontravam, que não o pronto atendimento à solicitação da vítima, com abordagem do apontado autor do delito e subsequente revista pessoal, que saliente-se, tornou-se frutífera, com apreensão de numerário de mesmo valor daquele que fora subtraído. Ademais, a prisão em flagrante delito é facultada a qualquer povo, dentre eles, os guardas municipais que se estão autorizados ao mais (realização de prisão), certamente também estão ao menos (efetivação da revista na tentativa de localização do produto do crime).” O artigo 66 da Lei de Contravenções prevê que ao agente que não comunicar a ocorrência de crime de ação pública pode inclusive ser punido. Condição que também se aplica aos Guardas Municipais. Reforçando o entendimento que as Guardas Municipais podem prender em flagrante delito, realizar abordagem em suspeitos e que fazem parte da Segurança Pública SENASP editou através de portaria a participação das Guardas Municipais ao sistema de informações de segurança, INFOSEG, na portaria nº48 de 27 de agosto do ano passado, com intenção de estimular e propor aos órgãos municipais a elaboração de planos e programas integrados de segurança pública, controlar ações de organizações criminosas ou fatores específicos geradores de criminalidade e violência, bem como estimular ações sociais de prevenção da violência e criminalidade, por considerar que o acesso a dados e informações de segurança pública são indispensáveis à formulação desses planos e programas. A Lei nº 12.681 de 04 de julho de 2012 que instituía o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública trouxe a inclusão dos Municípios no sistema, que se justifica devido a crescente participação desses entes na implementação das políticas de Segurança Pública em todo Brasil, conforme o artigo 4º onde se tem: “Os Municípios”, o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e o Ministério Público poderão participar do Sinesp mediante adesão, na forma estabelecida pelo Conselho Gestor.” No artigo 4º, mais precisamente no inciso III, da já suscitada Lei obriga que o Município tenha Conselho Municipal de Segurança Pública, realize ações de Policia Comunitária, ou que mantenha “Guarda Municipal” para fazer parte do SINESP. Com a aprovação do PLC 39/2014 por parte do Senado Federal todos esses questionamentos restarão pacificados. No artigo 6º fica definido que os municípios poderão criar por Lei suas Guardas Municipais que serão subordinadas ao chefe do Executivo Municipal. Como é possível perceber continua o caráter facultativo para os Municípios criarem Guardas Civis, talvez pela questão financeira e orçamentaria de penúria nas diversas cidades brasileiras. No artigo 7º o Projeto de Lei traz limites aos efetivos das Guardas Municipais: “Art. 7° As guardas municipais não poderão ter efetivo superior a: I — 0,4% (quatro décimos por cento) da população, em Municípios com até 50.000 (cinquenta mil) habitantes;  II — 0,3% (três décimos por cento) da população, em Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, desde que o efetivo não seja inferior ao disposto no inciso I; III — 0,2% (dois décimos por cento) da população, em Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, desde que o efetivo não seja inferior ao disposto no inciso I; III — 0,2% (dois décimos por cento) da população, em Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, desde que o efetivo não seja inferior ao disposto no inciso II. Parágrafo único. Se houver redução da população referida em censo ou estimativa oficial da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, fica garantida a  preservação do efetivo existente, o qual deverá ser ajustado à variação populacional, nos termos de lei municipal. “ As limitações com o numero de Guardas nos municípios são importantes porque evitam exageros provocados pelo arbítrio dos gestores e visam dar uma maior padronização as Guardas do território nacional. O artigo 8º cria a possibilidade de municípios limítrofes utilizarem os serviços das Guardas Municipais vizinhas de maneira compartilhada facilitando o reforço da segurança publica em determinadas épocas de maior necessidade de cada cidade e o artigo 9º define que os municípios devem formar Guardas integrantes de carreira única e planos de cargos e salários conforme disposto em Leis Municipais. Com relação aos requisitos mínimos para a investidura no cargo de Guarda Municipal dispostos no artigo 10º também foi objetivada a padronização com as exigências de nível médio de escolaridade, idade mínima de 18 (dezoito) anos, gozo dos direitos políticos, nacionalidade brasileira, apresentar diversas certidões da justiça, quitações eleitorais, aptidão física, mental e psicológica, investigação social e a liberdade para os Municípios criarem outros critérios. Os artigos 11º e 12º dispõem sobre o treinamento das Guardas Municipais tendo como referencia a Matriz Curricular Nacional da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública), mas facultando alterações ao Municípios, respeitando as peculiaridades e aspectos sociais e culturas além da possibilidade de formalização de convênios entre os municípios ou com os Estados Membros para realização dos cursos de formação. Com relação ao controle da atividade dos Guardas Municipais o Projeto prevê a criação do corregedoria nas Guardas que possuírem mais de 50 (cinquenta) integrantes de carreira e todas que usarem armas de fogo para apuração de infrações disciplinares e a criação de Ouvidorias qualquer que sejam o numero de integrantes para receber e encaminhar sugestões, reclamações, elogios e denuncias, bem como a possibilidade dos municípios criarem órgãos colegiados visando o controle social das atividades de segurança do município analisar a alocação e aplicação dos recursos públicos, monitorar os objetivos e metas da política municipal de segurança e, posteriormente, a adequação e eventual necessidade de adaptação das medidas adotadas face aos resultados obtidos O Projeto de Lei dispõe em seu artigo 14º que as Guardas Municipais terão Códigos de Conduta próprios e não ficarão sujeitas a regulamentos de origem militar. Uma importante mudança trazida nesse projeto que é também denominado Estatuto Geral das Guardas Municipais é que conforme preconiza o artigo 15º do dispositivo legal o provimento dos cargos em comissão referente as Guardas Municipais deverá ocorrer por membros efetivos da carreira da Guarda Municipal, o que acarretara uma drástica mudança no panorama atual das Guardas uma vez que em praticamente todas as instituições no pais existem profissionais de outras forças de segurança como policiais civis, militares, federais e bombeiros que são diretores, comandantes ou exercem cargos de alto escalão dentro das Guardas. A medida força que os Guardas Municipais capacitem profissionais dentro das próprias instituições mais ao mesmo tempo incentiva a meritocracia e almeja criar uma identidade própria e também uma padronização dado o caráter civil destas instituições. Há de salientar que no paragrafo 1º, do artigo 15º foi criada uma regra de transição onde os municípios nos primeiros 04 (quatro) anos de funcionamento as Guardas Municipais poderiam ser dirigidas por profissionais estranhos aos seus quadros, despertando algumas interpretações porque nas Guardas que tem mais tempo de criação a mudança seria automática, ou os quatro anos seriam contados a partir da promulgação da Lei em epigrafe, possibilitando aos municípios uma qualificação aos futuros dirigentes destas instituições ou visando readequações em conjunturas politicas apalavradas em acordos eleitorais. Mas o artigo 22º do mesmo projeto de lei vem dirimindo essas duvidas estabelecendo o prazo de 02 (dois) anos para os municípios se adaptarem ao Estatuto Geral das Guardas Municipais o que significa que o prazo para as Guardas que já existiam a mais de 04 (quatro) anos é de 02 (dois) anos para substituir o quadro comissionado para servidores de carreira e as que forem criadas a partir de então são de 04 (quatro) anos conforme exposto aqui. O projeto de Lei também assegura percentual mínimo de mulheres nas instituições Guardas Municipais que deverá ser estabelecida em Lei Municipal e garante a progressão funcional da carreira de Guarda Municipal em todos os níveis. Em seu artigo 16º o referido projeto traz a autorização para o porte de arma de fogo das Guardas Municipais conforme previsto em Lei. Essa previsão legal está na Lei 10.826/2002 (Estatuto do Desarmamento) que prevê a possibilidade da Guarda Municipal ser armada nos seguintes casos: “Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:(…) III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei; IV – os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (…)” A matriz curricular da SENASP institui a modalidade de curso de habilitação necessário a obtenção do porte de arma de fogo e os exames psicológicos e curso de habilitação profissional dos quais os Guardas serão submetidos durante o processo para habilitação profissional ao uso de arma de fogo são regulamentados e fiscalizados através da Policia Federal conforme o artigo 40 do Decreto Presidencial de 5123 de 01 de Julho de 2004. O projeto de Lei da Câmara amplia as hipóteses de suspensão do porte de arma de fogo para as Guardas Municipais no parágrafo único do artigo 16º em razão de decisão médica, decisão judicial ou justificativa da adoção da medida pelo respectivo dirigente. O artigo 17º do Estatuto geral proporcionará melhorias na estrutura das Guardas já existentes e nas que ainda serão criadas pois será destinada por parte da Anatel frequência de rádio exclusiva aos Municípios que possuam Guarda Municipal e também ocorrerá a destinação de linha telefônica gratuita de numero 153 para Guarda Municipal sem custos possibilitando que a população acione os serviços da Guarda sem custos para os cidadãos nem para os municípios. No artigo 18º do mencionado projeto de Lei é possível notar uma das conquistas mais importantes para os integrantes das Guardas Municipais do país, onde fica disposto que é assegurado ao Guarda Municipal o recolhimento a cela, isoladamente dos demais presos, quando sujeito á prisão antes da condenação definitiva. Tal dispositivo não necessitaria ser incluído se nas unidades prisionais brasileiras fosse cumprido o que está disposto no artigo 5º da Constituição Federal e no principio fundamental da dignidade da pessoa humana, mais na pratica o que acontece com os integrantes das Guardas que são presos provisoriamente é que ficam expostos a toda sorte de humilhações e violência, pois são colocados junto com outros presos, o que deve mudar se o Projeto de Lei da Câmara for aprovado e posteriormente sancionado. Os artigos 19º e 21º do Projeto de Lei reforçam o caráter civil das Guardas Municipais proibindo denominação idêntica das forças militares com relação a postos, graduações, títulos, uniformes, distintivos e condecorações e dispondo que Guardas Municipais utilizarão equipamentos padronizados preferencialmente na cor azul marinho. Um passo muito importante para que as Guardas Municipais passem a participar na elaboração das politicas de segurança pública no país é prevista no artigo 20º do referido projeto com a representatividade das Guardas Municipais no Conselho Nacional de Segurança Pública, no Conselho Nacional das Guardas Municipais e no interesse dos Municípios do Conselho Nacional de Secretários e Gestores Municipais de Segurança Pública. 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que o Projeto de Lei da Câmara 39/2014, se aprovado pelo Senado e sancionado pela Presidente da República vai trazer importantes benefícios para a segurança pública no Brasil, não por se tratar de uma municipalização da segurança pública, conforme dizem os opositores do projeto, mas porque se trata do oferecimento de condições estruturais e de segurança jurídica aos Municípios que possuem Guardas Municipais e que já atuam, de fato na segurança pública dos cidadãos e seria possível contribuir em diversas situações com a população necessitada. Uma medida importantíssima trazida pelo Projeto de Lei é a padronização das instituições Guardas Municipais através de critérios para seleção, nomeação de cargos de carreira, criação de telefones e frequências específicas, fixação de número de efetivo de Guardas por Município, código de conduta, corregedoria e ouvidoria. Ao estabelecer as carreiras das Guardas e garantir a representatividade politica dessas instituições civis em formular as politicas de segurança pública no Brasil através dos mais diversos conselhos o projeto também protagoniza os integrantes das Guardas Municipais como agentes promotores da cidadania e participantes, de fato, do sistema de segurança pública do país. Apesar de todas as outras inovações que o Estatuto Geral das Guardas pode incorporar a atividade dos Guardas as mais notadas são sem sombra de dúvidas as novas atribuições conferidas de proteger as populações, atuar em emergências, pacificar conflitos e outras relacionadas à paz social. Isso porque na prática, as guardas já faziam isso, pelo fato de ser impossível proteger bens, serviços e instalações de maneira dissociada de quem frequenta, utiliza ou de quem presta serviço nos logradouros onde os guardas prestam seus serviços rotineiramente. Portanto os grandes avanços trazidos pelo Projeto de Lei da Câmara nº39/2014 são a padronização das mais de mil Guardas Municipais existentes nos Municípios brasileiros e a segurança jurídica para exercerem atividades relacionadas à segurança publica que de maneira fática já exercem.
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Os paradigmas de estado e de administração pública e o modelo de direito regulatório no direito brasileiro
Na atualidade, a doutrina administrativista considera 03 (três) paradigmas de Estado como modelos existentes, que são o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito. Ao lado dessa classificação, o Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRAE) denominou as 03 (três) diferentes maneiras de administração do patrimônio do Estado de “as três formas de Administração Pública”, que consistem nos modelos de Administração Pública Patrimonialista, de Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano”, e, por fim, de Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, surgido em governos de cunho neoliberal (Thatcher e Reagan) e, no Brasil, foi pregado pelo PDRAE. O Estado regulador se insere na terceira fase da Administração Pública, a gerencial, na qual, no Direito Brasileiro, deu-se a criação das Agências Reguladoras.
Direito Administrativo
Introdução O presente artigo se destina a abordar em linhas gerais os paradigmas de Estado e de Administração Pública, com destaque para suas características principais e para a contextualização com o período histórico em que houve a predominância de cada modelo. Outro objetivo do estudo em questão consiste em analisar a atividade regulatória no Direito Brasileiro, cujo início se deu no governo de Fernando Henrique Cardoso. O Estado Regulador se insere no último modelo estatal segundo a classificação adotada, ou seja, no paradigma de Estado Democrático de Direito, adotado no País em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse contexto, será ressaltado brevemente o aspecto polêmico que a adoção do modelo regulatório trouxe para o Brasil, com todas suas complexidades, vantagens e desvantagens. De fato, há muitas questões sob um assunto tão polêmico, mormente porque as Agências são de suma importância para os recentes processos de privatização e de complexidade fática, em que aspectos da vida cotidiana e do evidente crescimento e desenvolvimento econômico-financeiro e tecnológico do País imprescindem de regulação mais ágil, moderna e flexível. 1. Os paradigmas de Estado: A Constituição Federal de 1988 (CF) instituiu, em oposição aos regimes então vigentes, um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, marcado crucialmente pela importância de um amplo rol de direitos (de primeira, segunda e terceira gerações) e pelo destaque que confere à participação popular na tomada de decisões políticas, na definição de políticas públicas e na conferência de legitimidade ao governante. Porém, como já adiantado, até se chegar a esse modelo, houve outros paradigmas ou modelos de Estado. Com efeito, em primeiro lugar, a doutrina administrativista entende que se insere o Estado Liberal, marcado pela valorização dos direitos individuais, mormente de liberdade, igualdade (apenas formal) e de propriedade e pela contenção do governante, submetido ao Estado de Direito, em contraposição à monarquia absolutista então reinante. Sucessor desse tipo estatal foi o paradigma do Estado Social, no qual mereceu predominância a tutela de mais direitos, agora de cunho social (direitos sociais) e com uma característica de igualdade mais material, e pela edição de um rol considerável de normas protetivas da saúde, emprego e aposentadoria do trabalhador, com um Estado intervencionista e protecionista na economia e no setor social. Tratou-se de um modelo marcado pela burocracia, pela lentidão e por um inchaço de atribuições, do que resultou, porém, altos gastos públicos, corrupção e pouca eficiência gestora. Nada obstante, é crucial enfatizar que a existência dos ditos paradigmas não implicou simplesmente uma drástica ruptura com o modelo então vigente. Adotar-se uma premissa purista desse tipo há o sério risco de incorrer em diversas incongruências e equívocos, agravadas pelo contexto histórico e social que acompanham todos modelos estatais. Isso quer dizer que, mesmo com essa “geração de paradigmas”, embora tenha havido certa sucessão, o novo modelo não abandonou totalmente os critérios e objetivos antes tutelados ou previstos em sede legal ou constitucional. Essa situação se verifica, inclusive, na Lei Maior Brasileira, na qual convivem direitos de gerações diversas (individuais, sociais e coletivos ou transindividuais), proteção ainda forte da Seguridade Social (a qual se triparte em Previdência Social, Assistência Social e Saúde) e, mais, até pela previsão de alguns aparatos e métodos tipicamente burocráticos, como a organização do serviço público e a previsão de concurso de provas e títulos para o provimento de cargos públicos. De volta ao início desse item, como substituto do Estado Social adveio o modelo do Estado Democrático de Direito, que começou a se desenvolveu no exterior nas décadas de 70 e 80 do século passado, em cenário caracterizado, em breve síntese, pelas crises do padrão ouro do dólar e do petróleo, quando o Estado deixou de adotar uma postura tão ativa e intervencionista. No cenário interno, tem-se que, voltado aos ideais de eficiência, gerência administrativa e prevalência dos fins aos meios, próprios da reforma administrativa que, no Brasil, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o Estado acabou por se desfazer de diversas indústrias de sua propriedade, ao privatizá-las, mas as submeter ao controle do Estado, através de poderes de polícia e disciplinar, por meio da criação de Agências Reguladoras. Assim se deu nos ramos ferroviário, rodoviário, de exploração de energia elétrica, dos serviços de telecomunicações, entre outros. Em consequência, foram promulgadas várias normas infraconstitucionais sobre o tema, como o Programa Nacional de Desestatização, criado pela Lei n.° 8.031, de 12 de abril de 1990 e posteriormente alterado pela Lei n.º 9.491, de 09 de setembro de 1997, e o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n.° 83.740, de 18 de julho de 1979). Todavia, tal reforma veio a materializar-se constitucionalmente por intermédio da Emenda Constitucional n.° 19, de 04 de junho de 1998, que traduzia a forte orientação neoliberal do então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Antes, por meio da aprovação da Emenda Constitucional n.º 08, de 15 de agosto de 1995, deu-se a modificação do artigo 21, inciso XI, da CF[1], particularmente no ramo das telecomunicações, que passou a atribuir à União, além da competência para explorar serviços públicos, diretamente ou mediante outorga, a criação de órgão regulador, o que significou a quebra da exclusividade de concessão tais serviços a empresas sob o controle acionário do Estado. Além disso, nesse último e atual paradigma, primou-se por uma releitura da relação entre os setores público e privado. A diferenciação, antes bem delineada, tornou-se difusa e, por vezes, confusa. A propósito, a própria distinção no Direito entre Direito Público e Direito Privado vem sendo hodiernamente desfeita, haja vista a proximidade contínua entre as áreas jurídicas, todas plasmadas pelo conteúdo do texto constitucional, já que não basta que o Estado e seus cidadãos observem a lei, mas também e, muitas vezes, primordialmente a CF. Outro ponto interessante é que o Estado começou a atuar em parceria com o setor privado em atividades que correspondem aos chamados espaços públicos não estatais, ou seja, serviços públicos entendidos como competitivos ou atividades não exclusivamente estatais, como saúde, educação, cultura, etc. É o chamado Terceiro Setor, exercido por meio de Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil, instituídas, respectivamente, pelas Leis n.ºs 9.637, de 15 de maio de 1998, e 9.790, de 23 de março de 1999, que celebram com o Estado o polêmico contrato de gestão, pois é objeto de fiscalização atenuada pelo ente estatal, no processo conhecido como publicização. Sobremais, consoante brevemente exposto, no Estado Democrático, o Estado passa a assegurar ao seu povo maior oportunidade de participação da vida política e de controle no governo, o que se dá de formas multifacetadas, como através da opinião pública, da participação de audiências públicas sobre temas relevantes em debate nas Cortes Supremas e no amplo acesso ao Poder Judiciário, preconizado pela Carta Magna, e na disponibilização de informações sobre as atividades da Administração, que ganhou proteção legal há poucos anos[2]. 2. Os modelos de Administração Pública: Segundo classificação mencionada pelo professor Fernando José Gonçalves Acunha, o Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRAE) denominou as 03 (três) diferentes maneiras de administração do patrimônio do Estado de “as três formas de Administração Pública[3].” A primeira dessas Administrações é a Administração Pública Patrimonialista, vigente no Antigo Regime, em que o aparelho estatal funcionava como uma extensão do poder do soberano. Em reação a esses abusos, surgiu na primeira metade do século XIX, na época do Estado Liberal, um modelo de dominação racional-legal, marcado pela formalidade e pela legalidade, característico da Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano”, em que o interesse público passou a ser distinto do interesse do governante e se baseava numa forma de administrar o aparelho estatal em que há criação de vários órgãos, marcados por profissionalização de seus servidores, num figura específica, o funcionário burocrático, e ligados por uma estrutura hierárquica funcional rígida e que se enfatizam os procedimentos formais, notadamente os meios utilizados para a prática dos atos administrativos (mais do que os próprios fins). Nesse modelo, o Estado formou um grande aparelho burocrático de órgãos (desconcentração) e de entidades da Administração Pública Indireta (descentralização), submetidos ao regime jurídico administrativo, o qual se pauta em alguns princípios fundamentais, como a supremacia do interesse público sobre o privado, a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, a legalidade, a continuidade do serviço público, a isonomia entre os administrados em face de Administração, o controle administrativo ou tutela, a publicidade, o controle jurisdicional dos atos administrativos, entre outros. Ainda, a Administração goza de alguns tratamentos diferenciados com o fim de atender o interesse de toda coletividade (interesse público primário), como se dá com as presunções de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e os prazos prescricionais e processuais diferenciados. Porém, como bem observa o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello[4], essas prerrogativas se tratam, na verdade, de “deveres-poderes”, eis que “(…) a Administração exerce função; a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse público.” Da mesma forma que salientado para os paradigmas do Estado, o modelo de Administração Burocrática também está bem presente na Constituição Federal de 1988, particularmente quando disciplina o regime jurídico administrativo, com seus princípios expressos delineados no artigo 37, caput (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo este inserido pela Emenda Constitucional n.º 19/1998), e o regime jurídico dos servidores públicos, a partir do artigo 39, com previsão sobre investidura no cargo, demissão, estágio probatório, regime de aposentadoria, entre outras. A propósito, a exigência de concursos públicos, advinda na década de 30 do século XX, é um importante caráter de impessoalidade e moralidade da Administração Burocrática. Todavia, as mudanças socioeconômicas que seguiram tanto interna quanto externamente no Brasil, passaram a mostrar que o modelo de Administração Pública Burocrática, tão formal e rígido, não se adequava ao novo cenário. Esse processo coincide com a crise do Estado Social, no cenário nacional, por volta de 1970 a 1980. Era, portanto, vital um modelo que conciliasse a redução de custos com maior otimização do Estado, bem como resolvesse os problemas da “governabilidade” (governos sobrecarregados) e os efeitos da globalização. Em resposta a essas novas contingências, surgiu o paradigma da Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, em governos de cunho neoliberal (Thatcher e Reagan)[5] e, no Brasil, pregado pelo PDRAE, que defendia uma nova gestão dos recursos públicos, que proporcionasse ao Estado maior eficiência, flexibilização das normas rígidas de hierarquia e de estrutura, redução de cursos e operacionalização, aumento da qualidade dos serviços, entre outras medidas. O Estado regulador se insere na terceira fase da Administração Pública, a gerencial, que, mediante o modelo de governança, preza o controle finalístico dos entes da Administração Indireta, ou seja, o alcance do objetivo ou fim para o qual foram criados, em primazia ao interesse público primário[6], em busca da maior eficiência da função administrativa[7], ou seja, uma prestação melhor e mais generalizada dos serviços públicos a custos menores. Na verdade, é interessante frisar que, no caso do Estado brasileiro, este ainda mantém a atuação direta em setores de interesse público relevante, como o monopólio do petróleo e do pré-sal, de caráter estratégico, nos termos do artigo 177 da CF; contudo, o principal aspecto desse Estado regulador é a criação de Agências Executivas ou Reguladoras, Autarquias Públicas destinadas a fiscalizar a atividade privada, com capacidade para editar normas infralegais ou regulamentadoras e para traçar diretrizes e impor limites, com poder sancionatório muitas vezes também. Como a racionalidade econômica preconizada pelo PDRAE, o Estado optou por se desfazer de serviços que antes eram de incumbência estatal e, assim, houve a privatização de empresas estatais responsáveis pela produção de energia elétrica, pelo transporte ferroviário e rodoviário, de bancos estatais, entre muitas outras entidades que foram transferidas à iniciativa privada, algumas sob a concessão e fiscalização de Autarquias Reguladoras, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Por conseguinte, o Estado deixa de ser executor ou prestador direto de serviços públicos (intervenção direta), para se tornar um Estado regulador, indutor e mobilizador dos agentes econômicos e sociais, cuja principal função se torna simplesmente promover a coordenação estratégica do desenvolvimento, da integração regional e da inserção no mercado internacional, a fim de evitar a precarização dos chamados serviços públicos, encarando tais serviços privatizados como serviços públicos não essenciais (intervenção indireta), forma esta de organização econômico-social do poder público que surgiu no Brasil na década de 90 do século XX, após a implantação do PDRAE e da Emenda Constitucional n.º 19/1998. 3. A adoção do paradigma gerencial no regime jurídico brasileiro Em face dessas classificações, Robério Fontenele de Caralho observa que a Carta Maior do Brasil de 1988 fez opção pelo capitalismo como sistema econômico, porém não há nela qualquer dispositivo que signifique opção pelo liberalismo como modelo de economia. A respeito, exemplifica com o artigo 170, o qual prevê que a ordem econômica deva ser fundada na livre iniciativa, mas traz como fatores legitimadores da atividade econômica os princípios da livre iniciativa, da propriedade privada, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa do consumidor e do meio ambiente e da redução das desigualdades sociais e regionais e econômicas e ainda a necessidade da valorização do trabalho de forma a assegurar uma vida digna a todos, conforme os ditames da justiça social. Sob essa perspectiva, o jurista conclui que “Em tudo, ao analisar o complexo de normas constitucionais dentro de seu contexto geral, se encontra, na verdade, a orientação da Constituição para um modelo econômico de bem estar social, onde se ressalta a garantia ao direito de propriedade e a exigência de que esta mesma propriedade cumpra sua função social[8].” Em tema correlato, ensina o professor Fernando José Gonçalves Acunha[9], no artigo intitulado A Administração Pública Brasileira no contexto do Estado Democrático de Direito, que a teoria da separação dos poderes se baseia na existência de estruturas orgânicas distintas e separadas no âmbito do Estado, para o exercício de cada uma das funções públicas atribuídas ao que se convencionou chamar de “poderes”, isto é, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, na clássica tripartição arquitetada por Montesquieu nos primórdios da Modernidade. Nesse prisma, cada Poder exercita preponderantemente as seguintes funções: 1) função legislativa, atribuída, de regra, ao Legislativo, que elabora normas gerais e abstratas, por representantes do povo; 2) função jurisdicional, exercida pelo Poder Judiciário, ao aplicar a lei para solucionar litígios e em busca da pacificação social; e a 3) função executiva, subdividida em 3.1) função política ou propriamente de Governo, tida como aquela ligada à superior gestão da política estatal, no exercício da soberania do Estado brasileiro, em âmbitos interno e internacional; e 3.2) função administrativa, relacionada à execução das normas jurídicas para atendimento direto e imediato do interesse da coletividade, através de atos infralegais, observância do regime jurídico administrativo, baseado na hierarquia e sob controle de legalidade do Judiciário. Ao lado dessa divisão, a CF tutela funções tidas como essenciais à Justiça, que atuam como uma parcela do poder estatal, mas destacadas dos Poderes do Estado e que visam ao equilíbrio e a harmonia dos Poderes. Trata-se da Advocacia de Estado, Defensoria Pública, Ministério Público e do Tribunal de Contas. O jurista Marçal Justen Filho defende que, hoje, no Brasil, há 05 (cinco) poderes, nos quais inclui esses 02 (dois) últimos[10]. Essa separação está baseada num sistema de freios e contrapesos (checks and balances) entre as diferentes funções estatais, de modo a se obter o equilíbrio e o controle de uma sobre a outra, evitando-se abusos ou intromissões indevidas entre as funções típicas. Em sendo assim, o Executivo interfere na atividade legislativa, através da iniciativa de leis e emendas constitucionais e, após, do veto e da sanção (artigo 66 da CF), bem como ao editar medidas provisórias, ainda, que limitadas material e formalmente pelo artigo 62 da CF, e atua na função judicante quando indica e nomeia os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos demais Tribunais Superiores (artigo 84, inciso XIV, da CF); ainda, o Legislativo e o Judiciário também exercem função administrativa ao regulamentarem temas como a organização de seus serviços e órgãos internos (artigo 51, inciso IV, artigo 52, inciso XIII, e 96, inciso I, alínea “b”, da CF). Sobremais, o Judiciário atua com função legiferante quando edita súmulas vinculantes (artigo 103-A da CF), que, mesmo não sendo leis, vinculam, inclusive, a Administração Pública, assim como interfere na função normativa quando efetua o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, inclusive por omissão. Note-se, portanto, que a divisão funcional de poderes não é estática e limitada às funções típicas de cada um. Com efeito, nos termos da lição trazida por Marçal Justen Filho, cada um dos Poderes exercita preponderantemente uma das funções, mas não exclusivamente um tipo de função, mesmo porque a independência absoluta geraria efeitos negativos, pois dificultaria o exercício do controle[11]. Nesse contexto, através do PDRAE que se desenvolveu ao longo da década de 90 e ganhou destaque no governo de Fernando Henrique Cardoso, muitas empresas estatais nacionais passaram para a iniciativa privada (privatização) e se adotou a técnica da descentralização da Administração Pública Indireta, com a criação de Agências Reguladoras, destinadas a normatizar e regular setores específicos da economia, como a exploração do petróleo, de serviços de telecomunicações e de aeronavegabilidade, e a controlar os setores recentemente privatizados e as concessionárias, como as estradas e ferrovias antes de titularidade pública. Esse modelo teve influência no direito comparado, precisamente em paradigmas adotados nos EUA e na França, a despeito de se ignorar, aqui no Brasil, as peculiaridades do regime jurídico pátrio. Repise-se que a Administração Pública Gerencial prega um Estado não mais prioritariamente produtor de bens e serviços (atuação direta na economia), mas sim regulador da economia e da sociedade (intervenção indireta). A propósito, prevê o artigo 174 da CF que “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” Com base nessas premissas, e sem negar, no entanto, os avanços advindos do modelo anterior (burocrático), passa-se a defender que a Administração efetuasse não mais um controle estrito de procedimentos, do “como agir”, mas sim dos “fins” a serem alcançados, ou seja, se os objetivos almejados com determinada ação estatal foram ou não conquistados. O Estado também passou a conferir maior autonomia para as entidades representativas, controladas pelos tão polêmicos contratos de gestão, numa espécie de “competição administrada” no interior do próprio Estado, entre as entidades públicas e até mesmo com aquelas do Terceiro Setor. Fernando Luiz Abrúcio[12] observa com maestria que: “Mas nos últimos anos o modelo gerencial não tem sido somente utilizado como mecanismo para reduzir o papel do Estado. O managerialism se acoplou, dentro de um processo de defesa da modernização do setor público, a conceitos como busca contínua da qualidade, descentralização e avaliação dos serviços públicos pelos consumidores/cidadãos. Portanto, há atualmente mais de um modelo gerencial; ou, melhorando a argumentação, no embate de idéias proporcionado pela introdução do managerialism na administração pública surgiram diversas respostas à crise do modelo burocrático weberiano, todas defendendo a necessidade de se criar um novo paradigma organizacional.” O professor Fernando José Gonçalves Acunha[13] conclui que o formato da Administração Pública brasileira é o resultado do influxo de todos modelos, pois ainda conta com estruturas burocráticas, como concurso público, profissionalização e legalidade, e resquícios de patrimonialismo, como a privatização de espaços e meios públicos colonizados por particulares em busca de seus próprios interesses. Esse assunto está relacionado também com o novo papel desempenhado pelo Estado Democrático de Direito, nos termos desenvolvidos pela Reforma do aparelho estatal. Ao se defender uma atuação mais célere e eficiente do Estado e que a Administração Pública valorize mais os fins do que os meios de seus procedimentos, a nova estrutura administrativa, baseada na descentralização da Administração, visa justamente atingir esses objetivos, primando por um Estado mais atento às mudanças e complexidades técnicas e fáticas e que a escolha regulatória se enquadre como uma nova categoria das escolhas administrativas[14]. Destarte, a competência reguladora do Executivo põe em crise a definição clássica do princípio da legalidade. Ainda, a novidade provocou certa releitura do dogma clássico da separação dos poderes, eis que, aquela divisão estanque de atribuições entre Executivo, Legislativo e Judiciário, consagrada pelo artigo 2º da Lei Maior, já não mais significava que cada poder detinha seu setor fixo de atuação. Conclusão Como explicitado, para se chegar ao sistema regulador (direito gerencial), o caminho percorrido implicou diversos marcos históricos e paradigmas estatais (Estado Liberal e Estado Social), que culminaram na democracia social, com o presente Estado Democrático de Direito, consagrado na Carta Magna de 1988. As Agências Reguladoras constituem instrumento da intervenção estatal no mercado, aptas a exercer a regulação, a editarem normas regulamentares e técnicas em setores específicos em que atuam e garantirem a qualidade dos serviços prestados por particulares, criadas no Direito Brasileiro em virtude de privatizações levadas a feito em nosso País e iniciadas na década de 90 do século passado, Além dessa classificação, adota-se outra, embasada nas maneiras de administração do patrimônio do Estado, ou seja, “as três formas de Administração Pública[15], segundo as nomenclaturas trazidas pelo PDRAE. Como visto, enquanto a Administração Pública Patrimonialista, vigente no Antigo Regime, constituía na extensão do poder do soberano em relação ao aparelho estatal, a que a sucedeu, na primeira metade do século XIX, na época do Estado Liberal, tratava-se de um modelo de dominação racional-legal, marcado pela formalidade e pela legalidade, característico da Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano.” Nesta forma de Administração Pública, o interesse público passou a ser distinto do interesse do governante e se baseava numa forma de administrar o aparelho estatal em que há criação de vários órgãos, marcados por profissionalização de seus servidores, num figura específica, o funcionário burocrático, e ligados por uma estrutura hierárquica funcional rígida e que se enfatizam os procedimentos formais, notadamente os meios utilizados para a prática dos atos administrativos (mais do que os próprios fins). Diante dessa situação, o Estado formou um grande aparelho burocrático de órgãos (desconcentração) e de entidades da Administração Pública Indireta (descentralização), submetidos ao regime jurídico administrativo, o qual se pauta em alguns princípios fundamentais, como a supremacia do interesse público sobre o privado, a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, a legalidade, a continuidade do serviço público, a isonomia entre os administrados em face de Administração, o controle administrativo ou tutela, a publicidade, o controle jurisdicional dos atos administrativos, entre outros. E, ainda, a Administração goza de alguns tratamentos diferenciados com o fim de atender o interesse de toda coletividade (interesse público primário), como se dá com as presunções de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e os prazos prescricionais e processuais diferenciados. Em sequência, adveio o paradigma da Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, que pregava nova gestão dos recursos públicos, a proporcionar ao Estado maior eficiência, flexibilização das normas rígidas de hierarquia e de estrutura, redução de cursos e operacionalização, aumento da qualidade dos serviços, entre outras medidas. Destarte, é imperioso ratificar que, assim como pode se ver com os paradigmas do Estado, que não implicaram uma ruptura total com o modelo atual, pois se mantiveram algumas características dos regimes anteriores, há aspectos de Administração Burocrática também presentes na Constituição Federal de 1988, particularmente quando disciplina o regime jurídico administrativo e o regime jurídico dos servidores públicos. Em decorrência, tem-se também uma releitura do dogma clássico da separação de poderes, motivada primordialmente pela criação das ditas Agências Reguladoras e da implantação do modelo regulatório no Direito Brasileiro. Assim, a competência reguladora do Executivo põe em crise a definição clássica do princípio da legalidade, pois não há mais uma divisão estanque de atribuições entre Executivo, Legislativo e Judiciário, consagrada pela Lei Maior. .
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Responsabilidade civil do estado na efetivação do direito à saúde
A responsabilidade civil é algo bastante recente, quando esta relacionada com responsabilidade do ente estatal, dada de pouco mais de um século, em princípio, o que prevaleceu foi justamente a irresponsabilidade do Estado, somente no século XIX houve a possibilidade deste ser responsável pelos seus atos. Primeiramente chamada de responsabilidade subjetiva, nos dias de hoje a mais aceita no país seja a responsabilidade objetiva, também chamada de culpa administrativa por alguns doutrinadores, decorre de falta objetiva da prestação de um serviço necessário aos indivíduos e que deveria ter sido prestado pelo Estado ou por todos aqueles descritos na lei como seus representantes. A responsabilidade do estado pode ser subjetiva somente em casos especiais, quando este se omite na prestação de um serviço público, ou quando o dano é causado por terceiro devido a pouca ou nenhuma ação do ente estatal, para que configure responsabilidade por omissão é necessário que exista o dever de agir do ente estatal e consequentemente uma possibilidade de agir, evitando, assim, o dano. Há doutrinas que consideram que a responsabilidade do Estado somente será objetiva no caso da ação e no que cabe a omissão, a responsabilidade seria sempre subjetiva, o profissional do direito deve estar sempre atento ao caso concreto. O presente trabalho é parte de pesquisas realizadas através do projeto de extensão “Direito em Minutos” idealizado na UFMS/CPTL e irá compor monografia que será apresentada em novembro do presente ano perante a citada instituição.
Direito Administrativo
Introdução Em princípio, o que prevaleceu, principalmente na Europa, em matéria de responsabilidade do Estado, era justamente a sua irresponsabilidade, antigamente entendia-se que o rei e consequentemente o ente público representado pelos seus agentes jamais errava, essa teoria foi muito adotada nos Estados absolutistas, tendo por fundamento a ideia de soberania, acreditava-se que qualquer responsabilidade oriunda do ente estatal significaria colocá-lo em patamar de igualdade com os súditos, uma vez que o rei jamais errava, seria impossível haver possibilidade de reparação do erro, tirando seu poder soberano[1], vale destacar colocação oriunda de Diniz onde explana que nessa época, caso um funcionário público, durante a realização de suas atividades corriqueiras viesse a causar dano a direitos individuais de outrem, seria responsável pela sua reparação, pessoalmente, acerca de tal situação, “por sua patente injustiça, essa teoria deixou de existir no século XIX, dando lugar à responsabilidade subjetiva do Estado”[2]. Essa teoria de irresponsabilidade do Estado nunca prevaleceu nos tribunais brasileiros. Estudaremos as formas mais comuns de responsabilidade civil do este estatal diante da obrigação de garantir efetividade a direitos fundamentais constitucionalmente expressos   1 O Estado como ente de obrigações e direitos Em meados do século XIX, com a possibilidade do Estado ser responsável pelos seus atos, os princípios que regiam essa responsabilidade eram os do direito civil, fator pelo qual surge a teoria civilista da culpa, já que a responsabilidade nessa época somente seria oriunda da culpa. Ainda nos dias de hoje a responsabilidade subjetiva é aceita, embora quando o assunto é responsabilidade civil do ente estatal o que prevalece é a responsabilidade objetiva, que surgiu através de jurisprudências vindas do direito francês, na época “entendeu-se que a responsabilidade do estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque sujeita á regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com direitos privados”[3], foi a partir daqui que o ônus da prova se inverte. 2 Princípios A razoável vivência em grupo requer algumas medidas para que haja uma sociedade condizente com o presente, visto isto são necessários princípios de conduta éticos, morais, psíquicos e tantos outros. No caso dos princípios, não existe hierarquia, sendo aplicável no caso concreto o que melhor se adequar à situação, desde que não cause excessivo prejuízo a nenhuma das partes. Segundo Venosa “os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado”[4]. Que fique aqui bem claro que em se tratando de princípios, há uma antinomia imprópria, pois não se exclui um deles, e sim se afasta na aplicação ao caso concreto. Há uma proporcionalidade na aplicação do principio que melhor se adequar ao caso concreto. A seguir veremos alguns dos princípios mais aplicados aos casos de responsabilidade civil do Estado aplicados a efetivação do direito a saúde. 2.1 Princípio da proporcionalidade O princípio em comento advém da ideia de justiça e é extremamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro tendo em vista a, “[…] superação dos conflitos e colisões pela aplicação do princípio da concordância prática, chega-se à noção de princípio proporcionalidade. As anomalias apresentadas ao intérprete são superadas mediante a ponderação de bens ou valores, que leve a uma coordenação proporcional de bens”[5]. Através desse princípio temos o resultado de que não se pode privar um indivíduo de seus direitos fundamentais além do que for necessário. Para que o princípio da proporcionalidade seja eficaz é necessário elementos como adequação, ou seja, verificar se a medida será suficiente para atingir o objetivo almejado; a necessidade, ter a certeza de que o ato é realmente imprescindível e se é o menos gravoso, desde que analisado o caso concreto. 2.2 Princípio da Reserva do possível Quando se esta diante de uma obrigação do ente estatal, ou seja, de um direito prestacional, dentre os primeiros fatores a serem observados – um deles é a reserva do possível, pois embora a entidade estatal esteja disposta a cumprir os preceitos estabelecidos pela lei, encontra-se limitada pelas suas possibilidades recursais, ou seja, para que haja uma saúde de qualidade são necessários bons hospitais, profissionais qualificados, disponibilização de medicamentos etc. Muitas vezes não basta vontade política em executar de forma satisfatória as políticas públicas, é necessário muito mais do que isso, com tal preceito se busca evitar confrontos de competência, onde o judiciário possa obrigar o Estado a prestar assistência, mesmo sem ter recursos para tal, é certo que a saúde, assim como outros tantos direitos possuem cunho de direitos fundamentais, entretanto a reserva do possível precisa ser observada, “[…] pois as prestações positivas fornecidas pelo Estado devem encontrar limites na riqueza nacional ou na situação econômica de um país, visto que não deve acreditar na utópica inesgotabilidade dos recursos públicos e, por conseguinte, na viabilidade de atendimento de todas as necessidades sociais e na possibilidade de garantir a total felicidade do povo”[6]. Essa limitação trazida pela reserva do possível é óbvia “e funciona como uma espécie de causa de exclusão da ilicitude para a não efetivação de um direito social, podendo ser legitimamente oposto pela Administração Pública quando demandada com base em direito social previsto em norma programática”[7]. Entretanto a reserva do possível não é desculpa para a falta de efetivação de direitos, “trata-se de importante objeção à eficácia jurídica e à efetividade social dos direitos sociais a prestações materiais, mas cuja interpretação e vigência devem conformar-se, entre outros, aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, unidade e supremacia da Constituição”[8]. Para que direitos, principalmente os direitos fundamentais se efetivem, diversas circunstâncias devem ser levadas em consideração, entre elas o contexto histórico e cultural de que são tratadas, visto isso, um determinado direito jamais será uma pretensão absoluta, e sim relativa. 2.3 Mínimo existencial Todos temos direitos a prestações mínimas do Estado que visem nos garantir um mínimo de dignidade, visto isto, no que concerne ao direito a saúde, “sob a ordem constitucional brasileira, todo ser humano tem direito aos meios necessários à conservação da sua saúde. Esta incluso no rol dos chamados direitos mínimos, decorrentes do princípio da dignidade humana, valor fundamental que não pode ser amesquinhado”[9]. Para muitos o conceito de mínimo existencial se confunde com a dignidade da pessoa humana, entretanto, a dignidade humana visa garantir integridade moral e um mínimo ético pelo simples fato do individuo existir no mundo como ser humano. Assegurar um mínimo existencial ao indivíduo é garantir que direitos mínimos e básicos a uma sobrevivência digna possam existir. 3 O Brasil e a responsabilidade civil do Estado Para Di Pietro, quando se trata de prejuízos causados pelo ente estatal “a reparação de danos causados a terceiros pode ser feita no âmbito administrativo, desde que a Administração reconheça desde logo a sua responsabilidade e haja entendimento entre as partes quanto ao valor da indenização”[10], não havendo acordo cabe ao lesado propor ação contra a administração pública. Diante da responsabilidade subjetiva, o ente estatal responderá com base na teoria da culpa administrativa, caberá aquele que sofreu o dano o ônus de provar a omissão na prestação do serviço público e a existência de nexo causal entre o dano e essa omissão[11]. Nesses casos, “caberá ao particular que sofreu o dano decorrente de ato de terceiro (não agente público), ou de evento da natureza, provar que a atuação normal, ordinária, regular da Administração Pública teria sido suficiente para evitar o dano por ele sofrido”[12]. Na maior parte dos casos o agente causador do dano não é identificado, podendo também, ser o autor, delinqüentes, multidões e outros que originem danos devido a pouca atuação do Poder Público. A responsabilidade objetiva, que é chamada de culpa administrativa por alguns doutrinadores e decorre de falta objetiva da prestação de um serviço necessário aos indivíduos e que deveria ter sido prestado pelo Estado ou por todos aqueles descritos na lei como seus representantes, “a culpa administrativa pode decorrer de uma das três formas possíveis de falta do serviço: inexistência do serviço, mau funcionamento do serviço ou retardamento do serviço. Cabe sempre ao particular prejudicado pela falta comprovar sua ocorrência para fazer jus a indenização”[13]. Para que seja caracterizada a responsabilidade civil, o dano deve ser causado por agente público ou privado, no exercício de suas funções, ou por empresa prestadora de serviço público, através de delegação, nesse rol podem ser incluídos empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações governamentais de direito privado, cartórios extrajudiciais e outras[14], o dano ocasionado precisa, necessariamente ser decorrente da prestação do serviço público. Entretanto, como toda regra, esta também tem sua exceção, a saber, que, ocorrendo culpa exclusiva da vítima para a ocasião do dano, o Estado nada fará para repará-lo. A regra também será aplicada se o dano for gerado exclusivamente por terceiro ou em casos de força maior[15], que pode ser exemplificado por ações da natureza, como fortes chuvas, e embora o ente estatal tenha tomado todas as providencias a fim de evitar alagamentos e enchentes, o mal ocorreu. Essa regra é aplicável devido à teoria do risco administrativo (que será estudado mais a frente) e o ônus de provar as exceções será sempre do ente estatal ou de entidades que o representem. Caso haja culpa recíproca, haverá a atenuação proporcional do dever de indenizar[16]. No que concerne à culpa da vítima, deverá ser distinguido se houve culpa exclusiva desta ou se o poder público também possui uma parcela, pois são diversas as resoluções dos litígios, no primeiro caso o ente estatal se isenta da obrigação de ressarcir o dano, já no segundo, sua responsabilidade é atenuada em conjunto com a da vítima, conforme o artigo 945 do Código Civil vigente “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. O artigo 43 do atual Código Civil aponta que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito de regresso contra os causadores de dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, §6º diz que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. A partir do momento que são constatados dano e o nexo de causalidade; cabe à Administração Pública ressarcir dano, que caso haja acordo entre o ente estatal e a parte, pode ser realizado por vias administrativas. Caso não haja acordo, cabe a parte lesada a via judicial, onde deverá interpor uma ação de reparação de dano, onde tenha havido culpa ou dolo do agente público que tenha ocasionado o dano, ente administrativo e agente podem formar litisconsórcio passivo na ação, e caso seja provada culpa ou dolo do agente, a Administração terá direito a ação de regresso contra tal agente público[17]. 4 Teoria de risco administrativo Nessa teoria a Administração Pública deve ser responsabilizada pelo simples fato de haver dano a outrem. Nesse caso o ente público ou seus agentes não precisam ter agido com dolo, bastando que a vítima comprove sua ação ou omissão. Caberá a Administração Pública o ônus de provar culpa exclusiva ou concorrente da vítima, a fim de amenizar ou excluir a obrigação de indenizar. A reparação do dano causado pelo ente estatal ao particular pode ser realizado de forma amigável ou através de uma ação de indenização. Tal ação deverá ser proposta pelo individuo em face da administração pública e não em face do agente causador do dano, “[…] a pessoa que sofreu o dano não pode ajuizar a ação de indenização simultaneamente contra a pessoa jurídica e o agente público, em litisconsórcio”[18]. A administração pública, ao causar dano ao particular, será obrigada a ressarci-lo, havendo ou não culpa daquela, e posteriormente, se for comprovada a culpa ou o dolo do agente, este sofrerá ação de regresso. 5 Saúde e responsabilidade civil Para Sarlet “cumpre lembrar a circunstância elementar – embora nem por isso devidamente considerada – de que a saúde não é apenas dever do Estado, mas também da família, da sociedade e, acima de tudo, de cada um de nós”[19]. Figueiredo completa dizendo que “ainda no que tange à eficácia, cumpre salientar que o direito à saúde se dirige também aos particulares, de modo que o dever de efetivá-lo não compete exclusivamente ao Estado”[20]. Impasses jurídicos muitas vezes apresentam grandes dificuldades para serem sanados, quando o tema é direito fundamental à saúde não é diferente, cabendo ao jurista atuar de forma sensata e o mais eficaz possível. 5.1 Responsabilidade civil aplicada a casos concretos Em casos especiais, embora ocorra força maior, “a responsabilidade do Estado poderá ocorrer se, aliada à força maior, ocorrer omissão do Poder Público na realização de um serviço”[21]. Entretanto nesses casos a responsabilidade deixa de ser objetiva e passa a ser subjetiva, visto que é oriunda de mau funcionamento do serviço público, “a omissão na prestação do serviço público tem levado à aplicação da teoria da culpa do serviço público […] é a culpa anônima, não individualizada; o dano não decorreu de atuação de agente público, mas de omissão do poder público”[22]. O mesmo ocorre em danos causados por terceiros, como falta de segurança pública que origine homicídio, haverá omissão se ficar comprovado falha na prestação do serviço, demonstrar o mau funcionamento, não funcionamento ou funcionamento tardio é suficiente para a comprovar a responsabilidade do ente estatal. Quando o Poder Público se omite, em regra, os danos não são causados por agentes públicos e sim por fatos originários da natureza ou de terceiros, “[…] mas poderiam ter sido evitados ou minorados se o Estado, tendo o dever de agir, se omitiu”[23], ou seja, para que configure responsabilidade por omissão é necessário que exista o dever de agir do ente estatal e consequentemente uma possibilidade de agir, evitando, assim, o dano. Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antonio Bandeira de Melo acreditam que quando há omissão do poder público ocorre a responsabilidade subjetiva, pois a responsabilidade somente poderá ser efetivada após analisar diversos fatores do caso concreto, cabe ao Estado demonstrar que agiu com diligência dentro das suas possibilidades[24]. Tanto doutrina como jurisprudência divergem a este respeito. Aplicando tais ensinamentos na manutenção e efetivação da saúde no país, no que diz respeito a epidemias de dengue, muito comuns durante o verão e todos os anos mata centenas de pessoas, “no caso de epidemia de dengue não se trata de conduta comissiva do Estado, mas danos causados pela sua omissão, uma vez que a epidemia de dengue somente ocorre porque o Estado se omitiu quando deixou de adotar políticas públicas preventivas”[25]. Nesses casos ou o serviço foi prestado de forma ineficaz ou o Estado foi totalmente omisso. Esse caso de responsabilidade é possível visto que outrora já ocorrera epidemias, principalmente quando se fala em dengue e outras que vierem a ocorrer devido a abstenção do Estado em investir nas políticas preventivas. Sobre o presente assunto, diz que “mesmo sabendo dos riscos de novos casos da doença, o Estado nada fez. Assim, não restam duvidas que o Estado deve ser responsabilizado civilmente pela epidemia de dengue que assola o Rio de Janeiro”[26]. Segundo Venturoli o caso da dengue “em 2008 constituiu um dos mais graves problemas de saúde pública no Rio de Janeiro, somando 35 mil casos”[27]. É preciso analisar a situação com cautela, a fim de que não ocorra injustiças, cuidar da saúde não é só dever do Estado, se a população não fosse tão mesquinha e despreocupada com os próprios deveres, epidemias como a de dengue não ocorreriam com tanta gravidade. Em se tratando de responsabilidade civil do Estado por uma omissão, se faz necessário um não adimplemento do Estado, onde deveria agir. No entendimento doutrinário e jurisprudencial brasileiro, o Estado pode ser responsabilizado de forma objetiva (quando assume o risco) e da forma subjetiva (quando se omite), não importando se a omissão partiu de um agente ou de qualquer outro encarregado. Disposições finais Que a saúde é um direito fundamental imprescindível ao ser humano, ninguém duvida, entretanto nem sempre as políticas públicas em atenção à saúde parecem ser totalmente eficazes. Depois de tudo o que foi explicado no decorrer do presente trabalho, conclui-se que a falta de recursos e a frágil estrutura do SUS no país faz com que em muitas localidades o atendimento seja precário, lento e de péssima qualidade. Isso não quer dizer que não existam locais onde o atendimento seja de ótima qualidade, com hospitais e postos de atendimento equipados, profissionais altamente treinados, acesso a medicamentos, entre outros. Muitas vezes os motivos não são apenas a falta de recursos, como também a má aplicabilidade destes, onde quantidades gigantes são desviadas para suprir necessidades daqueles que deveriam estar lutando para melhorar a saúde no Brasil. Entretanto, conforme foi demonstrado, muitas vezes o Estado não pode ser responsabilizado por programas que não conseguiu executar de forma mais eficaz, seja por falta de recursos ou outro motivo qualquer e graças à separação de poderes prevista em nossa Carta Constitucional, a intervenção do judiciário na área de atuação do legislativo e executivo tem que ser bem analisada e coerente com a situação concreta. Isso não quer dizer que não existam decisões arbitrarias, pois ainda existem muitos juristas que se colocam em patamares de superioridade e se acham detentores de todo o poder nacional, um grande equivoco. O Estado não é culpado por tudo de ruim ou bom que acontece dentro de um país, visto que cabe também a população cuidar para que os avanços em matéria social permaneçam e sejam prestados da melhor forma possível. Cabe aos funcionários públicos, principalmente daqueles dos quais a sociedade depende de forma direta executarem seu trabalho não apenas pelo dinheiro ou por status social, mas sim e principalmente tendo em vista o papel que representam e faça-se cumprir a dignidade humana, o bem estar social e a saúde. Muito já se evoluiu, mas muito ainda se tem para evoluir, o país esta caminhando na melhor estrada para que melhorias sejam cada dia mais presentes na vida dos cidadãos brasileiros, entretanto cabe a cada um ter consciência de seu papel dentro da sociedade da qual faz parte, denunciar as irregularidades e elogiar as benfeitorias. Descansar, jamais!
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Do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e a personalização do direito administrativo
Este artigo tem por escopo realizar uma análise acerca da subsistência do regime jurídico administrativo pautado no mencionado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, tendo em conta a mudança de paradigmas ocorridas no direito brasileiro com o advento da Constituição de 1988 e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Direito Administrativo
1.O paradigma clássico do direito administrativo Os manuais de direito administrativo costumam narrar em uníssono que o surgimento do direito administrativo se deu com a lei 28 de pluvioso, no ano de 1800, e que serviu para limitar e organizar a administração pública. Ao poder legislativo, na visão de John Locke, caberia a edição de leis, normas gerais, abstratas e impessoais, restando ao poder executivo a atribuição de executar essas leis. O ilustre administrativista Caio Tácito assim sintetiza o surgimento do direito administrativo: “O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal.[1]” Inobstante isso, ao averiguarmos nas fontes as origens do direito administrativo, chegamos à conclusão que diversas são as motivações para o surgimento do direito administrativo, senão vejamos. O surgimento do direito administrativo e de suas categorias jurídicas principais, tais quais o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, as prerrogativas da administração pública, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, representou em verdade uma forma de reprodução de práticas autoritárias no bojo do Antigo Regime. Tais categorias jurídicas se amoldam com maior facilidade a tais práticas, ao contrário do que sobejamente apregoado, de que elas teriam surgido justamente da necessidade de salvaguardar os direitos dos cidadãos frente ao Estado opressor. Daí podemos de igual modo extrair que a invocação da separação dos poderes, de Montesquieu, foi mero pretexto, figura retórica, visando atingir o objetivo de aumentar a esfera de atuação do poder executivo e torná-lo imune a qualquer controle judicial.[2] A separação de poderes, serviu, na verdade, como espécie de imunização decisória dos órgãos do poder executivo, e as mencionadas categorias jurídicas acima delineadas em verdade surgiram para que houvesse uma verdadeira imunização dos atos do poder executivo frente às diversas formas de controle, inclusive a judicial. No Brasil, aonde o processo histórico ocorreu sob a batuta do domínio e colonização portuguesa, tal manancial teórico do direito administrativo caiu como uma luva e serviu para justificar e legitimar o regime. 2.O advento do constitucionalismo e a crise do direito administrativo Com efeito, o Estado moderno passou por diversas alterações, em especial após a crise do Estado Providência verificada nas últimas décadas do século XX.  Parcela da doutrina passou  a criticar alguns pontos até então inatacáveis do edifício teórico do direito administrativo, destacando-se os seguintes: a) a continuidade da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que serviria para legitimar todo o direito administrativo, diante do fortalecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e as premissas teóricas surgidas com o novo constitucionalismo b) a existência da legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, somente. C) a impossibilidade de controle do mérito administrativo. O surgimento do constitucionalismo moderno veio trazer significativas alterações nos mais diversos ramos do direito, em especial no direito administrativo, que passou a sofrer as injunções deste novo ramo de modo mais enfático. Eis as novas premissas, com as quais o direito administrativo deveria conviver : a) avulta em importância o principio da dignidade da pessoa humana como pilar de todo o sistema jurídico, e tal princípio vincularia toda a administração pública b) a Constituição, e não mais a lei, passa a se situar no cerne da vinculação administrativa á juridicidade, C) a definição do que seja interesse público,  deixa de estar ao arbítrio do administrador, e passa a depender do juízo de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais d) a discricionariedade passa a ser controlada, devendo ser uma discricionariedade legitimada. Daí que passou-se a defender uma desconstrução dos antigos paradigmas, para uma adequação do direito administrativo aos novos tempos,e tal objetivo seria alcançado através do ataque ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 3.Releitura do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é admitido pela doutrina brasileira, e estaria implícito na constituição federal. Dentre os administrativistas brasileiros, o mais ferrenho defensor de tal princípio é Celso Antônio Bandeira de Mello, que nos traz uma construção teórica calcada na noção de interesse público, tal e qual elaborada por Alessi, e nos apresenta a noção de interesse público como projeção dos interesses privados. Todavia, o erro em que incorre Celso Antônio Bandeira de Mello, consiste em tratar o interesse público ainda nos moldes do conceito trazido por Alessi, da doutrina italiana, sem levar em conta o novo constitucionalismo e a projeção do princípio da dignidade da pessoa humana. Não existiria, assim, essa dicotomia entre o público e o privado, como se fossem interesses contrapostos entre si. Para a doutrina em geral, assim, tal princípio serviria de base para a construção de todo o arcabouço teórico do regime jurídico administrativo, tendo como premissa a superioridade do interesse público. 4.Desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público Os princípios jurídicos adquiriram status de normas, com o surgimento da moderna teoria dos princípios. Na hipótese de existência de antinomia entre princípios, como consagrado na doutrina, deve prevalecer o método da ponderação dos interesses. Na doutrina nacional, Humberto Ávila tem trabalho interessante a respeito da incompatibilidade deste princípio da supremacia do interesse público sobre o privado[3]. A contradição maior apontada por este renomado autor é a de que o mencionado princípio, conceitualmente, não poderia ser considerado princípio, tendo em vista que a sua premissa é de que ele seja superior aos demais interesses e princípios, o que confronta o método da ponderação dos interesses. De igual modo, além da incompatibilidade conceitual, tal princípio também não tem respaldo normativo, em virtude de três argumentos principais, a saber, a uma, por não decorrer da análise sistemática do ordenamento jurídico, a duas, por não admitir a dissociação do interesse privado, colocando-se em xeque o conflito pelo princípio, e a três, por demonstrar-se incompatível com os postulados normativos erigidos pela ordem constitucional. Assim que, de acordo com o autor, posicionamento com o qual concordamos, não há fundamento de validade do indigitado princípio, principalmente em virtude de a constituição brasileira trabalhar sob o influxo do princípio da dignidade da pessoa humana. Doutro prumo, interesse público e interesse privado estariam tão umbilicalmente ligados no contexto da Carta Magna que simplesmente não há essa dicotomia absoluta entre interesse público e interesse privado. A esse respeito, inclusive, disserta Humberto Ávila[4] “O interesse público e o interesse privado estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatale de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado (p. ex., preâmbulo dos direitos fundamentais)”. Podemos assim concluir que a proteção de um interesse privado não necessariamente destoa da proteção de um interesse público, desde que estejam constitucionalmente assegurados. Impossível admitir no ordenamento jurídico um princípio que, ignorando as nuances do caso concreto, preestabeleça qual a solução a ser dada. 5.Conclusão O direito administrativo teve o seu edifício teórico construído sobre a premissa da existência de um interesse público superior aos demais direitos ou interesses. Para tanto, criou diversas categorias jurídicas , (desapropriação, poder de polícia, dentre outros) que embasaram este agir da administração, legitimando-se a sua atuação calcado no mencionado princípio. Com o advento do neoconstitucionalismo, e o prestígio que angaria o princípio da dignidade da pessoa humana, toda a premissa do agir Estatal  se modifica e passa a girar em torno deste princípio. Daí que é posto em cheque a existência de um “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”, tendo em vista que o conceito de interesse público não é dissociado da tutela e proteção de interesses privados e do princípio da dignidade da pessoa humana. Também se torna indefensável a existência de um princípio que seja apriorísticamente considerado superior aos demais, sem considerar as nuances do caso concreto. Com o advento da Constituição de 1988 , o fundamento do Estado Democrático de Direito consiste na concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que o Estado existe para o indivíduo, e não o contrário. O arcabouço teórico do direito administrativo, portanto, deve ser revisto, para que o mesmo seja adequado aos novos tempos, à nova doutrina neoconstitucional, desapegando-se portanto do ranço autoritário de sua origem, que se deu para legitimar a atuação da administração livre de qualquer tipo de controle.
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Concessão administrativa: direito brasileiro e direito comparado
O presente artigo tem por intuito apresentar aspectos introdutórios das concessões administrativas no Direto Brasileiro demonstrando segundo a legislação pátria as diferentes modalidades concessórias. Ainda, há preocupação em aclarar a doutrina moderna pós surgimento da lei das parcerias público-privadas que redesenhou de certa forma as modalidades de concessão no Brasil. Por fim, o estudo de direito comparado apresentado no presente trabalho demonstra que as concessões administrativas tem contornos distintos em cada país e vem evoluindo ao longo das décadas como forma de desonerar a máquina pública e o Estado em sua função de explorador de serviços públicos transformando-o em indutor dessa atividade em prol da sociedade.
Direito Administrativo
Introdução Na conjuntura atual, operam-se, no mundo inteiro, significativas transformações econômicas, políticas e sociais, levando a re-conceituação do papel do Estado Contemporâneo. Muda o Estado, muda também a Administração Pública, abandonando o modelo puramente burocrático-fiscalista para assumir o papel gerencial que lhe cabe. O poder público deixa de ser essencialmente executor e prestador direto de serviços para assumir a função de regulador, indutor e mobilizador dos agentes econômicos e sociais. Em nome do interesse público abandona o Estado sua postura ineficaz para cooptar a competente colaboração particular em parcerias que resultem no efetivo proveito da nação. Os diplomas normativos que cercam o instituto das concessões são adequados e eficazes para a observância do interesse público e da probidade administrativa. Contudo, a sua fiel observância tem que ser acompanhada pelas práticas democráticas da transparência e da permanente ação fiscalizadora da sociedade e das instituições democráticas constitucionalmente designadas para tanto. Antes de iniciarmos o questionamento acerca do tema, se faz necessário especificar as diversas nomenclaturas dadas às parcerias instituídas pelo Estado, explicitando-as com seus respectivos arcabouços normativos e identificando as diferenças gerais entre elas, para em seguida analisarmos suas especificidades. No Direito Brasileiro, a disciplina normativa, esparsa em várias leis, fez nascer uma diferenciação entre os diversos tipos de parcerias, a saber:  “a) concessão e a permissão de serviços públicos, disciplinada pela Lei n° 8.987/95; b) concessão de obra pública também disciplinada pela Lei n° 8.987/95; c) a concessão patrocinada e concessão administrativa, que se aderem ao título de parcerias público-privadas na Lei n° 11.079/2004; d) contrato de gestão, como instrumento de parceria com as organizações sociais, regido pela Lei n° 9.737/98; e) o termo de parceria com as organizações da sociedade civil de interesse público, disciplinado pela Lei n° 9.790/99; f) os convênios, consórcios e outros ajustes referidos no artigo 116 da Lei n° 8.666/93; g) os contratos de empreitada (de obra e de serviços), disciplinados pela Lei n° 8.666/93; h) os contratos de fornecimento de mão-de-obra que, embora sem fundamento legal, constituem uma realidade na Administração Pública nos três níveis de governo.”[1]      Há ainda o novel diploma Lei nº 12.462/11 (conversão em lei da Medida Provisória nº 527/2011) que criou o Regime Diferenciado de Contratações Públicas para a Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A referida lei é optativa na contratação pública desses eventos e deverá constar no instrumento convocatório com o intuito de ser inteiramente aplicada rechaçando o regime da Lei nº 8.666/93. 1. Concessões No que concerne ao instituto da concessão, o advento da Lei n° 11.079/2004 fez surgir a instituição chamada de parceria público-privada, porém, o termo parceria já era utilizado em sentido amplo para fazer referência aos ajustes operados entre o poder público e o particular com fins de interesse público, na qual aquele transfere a este, por meio de concessão a exploração de serviço público. Com o surgimento das parcerias público-privadas, faz-se necessário estabelecer a divisão doutrinária do termo concessão em três modalidades distintas, visto que cada uma delas se aplica a um tipo de atividade: 1) Concessão de serviço público comum, ordinária ou tradicional: é o contrato administrativo que tem por objeto a execução de um serviço público que é transferido pela Administração para que outrem o execute por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário ou por previsão contratual através de outra forma de remuneração complementar, acessória, alternativa ou decorrente de projetos associados, conforme previsão legal do art. 11 da Lei n° 8.987/93. 2) Concessão patrocinada: é o contrato administrativo que tem por objeto a execução de um serviço público ou de uma obra pública, tendo a contraprestação pecuniária do parceiro público somada à tarifa paga pelo usuário. Na concessão patrocinada, a contraprestação do poder público é obrigatória, diferindo-se da concessão tradicional, em que tal contraprestação é excepcional. O instituto é regido pela Lei n° 11.079/2004, aplicando-se subsidiariamente a Lei n° 8.987/95. 3) Concessão administrativa: apesar do entendimento doutrinário que toda concessão é administrativa, esta ganhou a devida nomenclatura por ser um contrato administrativo que tem por objeto a prestação de serviços de que a Administração Pública seja usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens ( art. 2°, § 2°, da Lei n° 11.079/2004 ). Na lição de MARIA SYLVIA DI PIETRO[2]: “A concessão administrativa constitui um misto de empreitada e de concessão: de empreitada, porque a remuneração é feita pelo pode público e não pelos usuários; de concessão, porque seu objeto poderá ser a execução de serviço público, razão pela qual seu regime jurídico será semelhante ao da concessão de serviços públicos, já que irá se submeter as normas aplicáveis à concessão tradicional, na parte em que confere prerrogativas públicas ao concessionário, como as previstas nos arts. 21, 23, 24 e 27 a 29, da Lei 8.987/95 e art. 31 da Lei 9.074/95 (conf. art. 3° da Lei 11.079); vale dizer, o concessionário executará tarefas como se fosse empreiteiro, sendo remunerado pela própria Administração Pública, mas atuará como se fosse concessionário de serviço público, estando sujeito às normas sobre transferência da concessão, intervenção, encampação, caducidade e outras formas de extinção previstas na Lei n° 8.987; também se aplicam as normas dessa lei que estabelecem os encargos do poder concedente e do concessionário”. Da Constituição Federal extraímos: “Art. 175. Incumbe ao Poder público, na forma de lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos” (caput). Do exame desse dispositivo constitucional, conclui-se que abrange os diversos tipos de concessão, dos quais o poder público optará pelo regime mais adequado a se adotar, conforme o caso. A concessão comum ou a concessão patrocinada poderão ser adotadas, uma ou outra, em se tratando de contratação de serviço público, precedido ou não de obra pública, quando tratar-se de tarifa paga pelo usuário. Conforme a opção teremos o regime regido pela Lei n°. 8.987/95 ou Lei n°. 11.079/2004. Diferentemente, quando não estiver diante da opção de cobrança de tarifa paga pelo usuário, como, por exemplo, nas atividades de cunho social, ou serviços uti universi, que são usufruídos indiretamente pelos cidadãos e não comportam cobrança de taxa, devendo ser prestados com recursos provenientes dos impostos, será adotada a forma de concessão administrativa sob a édige da Lei n°. 11.079/2004. Assim, o poder público terceiriza sua atividade, hipótese em que a remuneração fica toda a cargo do Estado. 1.1 Origens e evolução das concessões de Serviço Público. Com vistas a um melhor entendimento acerca desse assunto, cabe, inicialmente, uma introdução histórica na qual se exponha a evolução da concessão de serviço público no nosso país, bem como os elementos que têm influído nesse campo do direito administrativo. Os antecedentes da concessão remontam à Idade Média, com as concessões senhoriais e reais, por meio das quais se transferia a vassalos a administração de feudos ou a exploração de atividades, sobretudo minas, em domínios pertencentes ao senhor feudal.   Naquela época, firmavam-se contratos no intuito de garantir o empenho dos participantes e fixar diretrizes quanto à remuneração. Em troca da prestação dos serviços, os senhores feudais atribuíam terras ou rendas, tendo também poderes de fiscalização, gerência na execução do contrato e, em certos casos, de rescindir a concessão quando bem entendesse, mesmo não havendo falhas por parte do vassalo. O concessionário detinha, no todo ou em parte, os poderes do senhor sobre os subordinados, devendo respeitar, entretanto, direitos de terceiros. As condições das concessões tinham por base um censier, documento no qual eram fixadas as obrigações do concessionário. No séc. XVII, o termo concessão era utilizado também para denominar atos de benevolência do soberano, muitos dos quais implicavam transferência de prerrogativas e derrogação de normas. Pode-se citar, como exemplo, a venda de cargos públicos, que devia ser formalizada em um contrato de concessão, transferindo-se ao comprador todos os privilégios e prerrogativas. Na França absolutista havia contratos de gestão de serviços públicos em que os representantes do poder público tudo podiam: exerciam a direção; baixavam normas; impunham unilateralmente acréscimos e; detinham o poder de rescisão. No século XVII, poucas eram as garantias dadas aos concessionários, que ficavam sujeitos aos interesses do poder público. O quadro se altera no século XVIII, quando se ampliam as garantias do contratado, podendo-se mencionar, dentre elas, o direito à indenização em casos de culpa da Administração no cumprimento do contrato, o aumento dos encargos inicialmente previstos ao contratante particular, a rescisão unilateral sem culpa do concessionário na ocorrência de situações imprevistas. Com as conotações atuais, a concessão existe desde o século XIX na Europa, sobretudo na França. Era instituída em serviços que exigiam grandes investimentos financeiros e mão de obra especializada, encargos esses que o poder público não tinha como assumir. Seu uso, na época, recaiu, principalmente, sobre estradas de ferro, fornecimento de água, de gás e de eletricidade. 1.2. Direito comparado – A concessão no Direito estrangeiro. Na França, em sua maior parte, o direito administrativo foi um direito não escrito. No entanto, a obra incessante de criação do Conselho de Estado, nos repertórios de jurisprudência administrativa, permitiu que sua formação se desse continuadamente. Em relação ao instituto da concessão, o fenômeno ocorreu de modo especial, como nos mostra o texto do conhecido monografista ANGE BLONDEAU: “Nosso direito administrativo não tem por fonte os textos de leis; é evidente que não há texto de lei relativo à concessão de serviço público em geral. Foi por intermédio das estipulações dos cadernos de encargos e das decisões dos tribunais administrativos que a nossa instituição se formou. Entretanto, nela existem temas de riqueza incomparável e, por outro lado, as próprias condições de elaboração das regras da concessão fazem desta matéria extremamente viva”. [3] O regime jurídico especial, que a respeito dos contratos administrativos se elaborou jurisprudencialmente, compreendia duas séries de regras: “umas eram as especiais, isto é, peculiarmente suas, e sem equivalências ou analogias com as regras de direito privado; outras eram regras emprestadas ao direito privado, mas que, em razão das peculiaridades dos serviços públicos, sofreram modificações mais ou menos importantes”. [4] O ponto de partida dos juristas franceses para elaboração do regime jurídico dos contratos administrativos pode ser resumido nesta ideia fundamental: “o contrato administrativo não é senão um processo de técnica jurídica posto à disposição dos agentes públicos para assegurar o funcionamento regular e contínuo dos serviços, por meios jurídicos mais fáceis e mais enérgicos que os de direito privado”. [5] Sobre as peculiaridades desse especial regime jurídico, escreve o Prof. GASTON JÉZE: “Todavia, este regime jurídico não era tão preciso quanto o do direito privado. Foi a jurisprudência do Conselho de Estado que, à força de sucessivos acordos, com retoques constantes, construiu, pela dedução da noção de serviço público e sob a pressão de suas necessidades, este regime jurídico especial. Existe, desde então, um conjunto de importantes regras firmemente estabelecidas; diariamente, adições mais ou menos relevantes são trazidas. É tarefa da doutrina apresentar uma sistematização destas soluções de minúcias, aproximando-as das decisões anteriores, coordenando-as e criticando-as”[6] Centralizando nosso estudo no desenvolvimento do instituto da concessão de serviço público no direito francês, cabe dizer, inicialmente, que praticamente só se conhecia um tipo de concessão de serviço público: a concessão a longo prazo. Tanto o Conselho de Estado quanto a doutrina priorizavam, acima de tudo, os contratos de longa duração, entendendo que não poderia haver funcionamento regular e contínuo do serviço público se o modo de exploração ou o concessionário fossem mudados com frequência. Além disto, atentava-se também para o fato de que a concessão pressupunha, na grande maioria dos casos, grandes investimentos para que o serviço concedido fosse prestado de forma adequada, necessitando o concessionário, para a amortização dos enormes gastos, longo período de exploração. Nesse sentido, veja-se lição de MARCEL WALINE: “É necessário que o concessionário explore o serviço durante um longo período para amortização de seus investimentos, sobretudo se a concessão de serviço público se complica com uma concessão de obra pública, pois o custo da primeira instalação é, neste caso, elevado”.[7] Entendia-se, portanto, que o contratante particular não podia ser privado do direito de explorar o serviço durante o período convencionado, a não ser em caso de falta grave do concessionário, devidamente provada perante autoridade judiciária (rescisão), ou quando a autoridade administrativa considerasse de interesse público a volta do serviço público ao regime de prestação direta, mediante compensações financeiras equivalentes ao concessionário (encampação). Entretanto, esse tipo de concessão de serviço público, que a jurisprudência do Conselho de Estado cercou de todas as garantias, em especial mediante a aplicação da teoria da imprevisão e de indenizações amplas e generosas nos casos de encampação, perdeu grande parte de sua importância na primeira metade do século XX, em função da nacionalização das concessionárias. Na prática, o crescimento da intervenção estatal e a fixação de tarifas com finalidades políticas ou sociais transformaram a natureza econômica do instituto. Assim, na expressão de JEAN RIVERO, “o casamento entre a iniciativa privada e o poder público passou do regime de separação de bens para o regime comunitário”[8]. Recentemente, “com a onda privatizante” ocorrida em todo mundo, a concessão readquiriu novas dimensões segundo as quais deve ser respeitado um dogma fundamental: o da segurança do equilíbrio financeiro nas relações entre concedente e concessionário. Não importa o conceito jurídico da concessão (contrato administrativo puro, ou ato complexo, semi-contratual e semi-regulamentar), nem o fato gerador da ruptura da equação econômico-financeira, que apenas influencia o caráter e o alcance das compensações. A Jurisprudência equitativa do Conselho de Estado sempre contemplou e ainda hoje contempla o equilíbrio econômico-financeiro, expresso na regra da equivalência honesta de deveres e direitos do concessionário, com o complemento do princípio da continuidade do serviço. Ambos são essenciais à existência da concessão. Inspiram-se em igual postulado de interesse público, consistente em assegurar a prestação adequada e eficiente do serviço concedido. No que concerne ao exemplo Norte-Americano, não constitui tarefa fácil expor o sistema norte-americano de regulamentação dos serviços de utilidade pública (public utilities), dada a multiplicidade de aspectos por que pode ser encarado. Além disto, para nós, familiarizados com o sistema francês de concessão, cujos princípios e vocabulário técnico de longa data adotamos, a compreensão e o domínio do sistema americano das public utilities, substancialmente diverso nas suas origens e na sua prática atual, exigiria paciente investigação através das várias regulamentações estaduais. Em razão da complexidade do tema, não nos propomos a historiar e descrever o regime das public utilities, mas, tão somente, destacar os contratos ou atos administrativos por meio dos quais se outorgavam às empresas privadas o direito e o privilégio da exploração dos serviços de utilidade pública, que é o que nos interessa neste trabalho. A terminologia nunca foi uniforme em relação a tais atos, sendo usuais as denominações de franchise, license, permit e consents. Toda empresa, para iniciar a exploração de uma public utility, deveria obter, previamente, uma frachise, uma license um permit ou um consent. A outorga de quaisquer das modalidades de concessão previa a emissão antecipada de um “certificado de conveniência ou necessidade pública”. Dentre os diversos modos por que podem ser classificadas as concessões no direito norte-americano, um dos mais úteis à compreensão da evolução de seu regime administrativo e jurídico, é o que toma como critério diretor a sua duração, visto que ela determina o período durante o qual os direitos e privilégios especiais outorgados pela concessão podem ser exercidos. Quanto à duração as concessões são classificadas em três espécies, a saber: a) perpétuas; b) de prazo limitado; c) indeterminadas ou termináveis. As concessões perpétuas são aquelas outorgadas em caráter perpétuo ou por prazos extraordinariamente longos, tais como 999 anos. Em certos casos, foram dadas de forma inadvertida, pela omissão das datas de expiração, sendo reconhecidas pelos tribunais como perpétua. Hoje é muito duvidoso que um ente público, qualquer que seja o grau de sua ignorância a respeito de seus interesses, outorgue tais direitos a companhias concessionárias de serviço público. Acerca das concessões a prazo limitado, compreenderá aquela cujo prazo vai até 50 anos. Estas surgiram da necessidade de reajustamentos periódicos das relações entre o poder público e a empresa concessionária, pelas constantes mudanças das condições econômicas e tecnológicas. A concessão a prazo indeterminado se caracteriza por eliminar o prazo de duração. Enquanto bem servir à municipalidade (during good behavior), a empresa gozará, indefinidamente, dos privilégios outorgados pelo permit. A principal objeção quanto a esta espécie de concessão é a de que ela assume a natureza de uma concessão perpétua, pois, embora tenha o direito de terminar a concessão, considerações práticas podem tornar impossível ou inconveniente fazê-lo. Do que se expôs a respeito do sistema americano, verificamos que as concessões perpétuas e as de prazo limitado se assemelham às concessões do direito francês e, ao mesmo tempo, que delas se distinguem de modo absoluto as concessões a prazo indeterminado, eminentemente revogáveis, que são uma peculiaridade do direito americano. A ênfase que o Direito Norte-Americano concede à questão dos prazos nas concessões é ligada à enorme importância que se dá, naquele país, ao atrativo de novos capitais, preconizando-se, sempre, a criação de condições propícias tanto à prestação de um serviço estável e perfeito, como ao financiamento da expansão e melhoria do estabelecimento inicial. Por outro lado, entretanto, é entendimento consolidado no Direito Americano que não pode o Estado exigir do concessionário a permanência de prestação de serviço que, por razões diversas, tenhas se tornado cronicamente deficitário. A jurisprudência da Suprema Corte têm posicionamento pacífico no sentido de que a empresa não deve ser constrangida a prosseguir na exploração deficitária do serviço se não houver expectativa razoável de exploração lucrativa do serviço concedido. Pode-se citar como exemplo o caso Telephone Company v. Tax Commission, no qual BRANDEIS, conhecido integrante da Suprema Corte, anotou que a empresa não pode ser obrigada a prosseguir no empreendimento com prejuízo, indefinidamente[9]. Portanto, o sistema norte-americano de concessões de serviço público, embora diverso, em sua estrutura, do regime francês da concessão de serviço público, não se distancia, porém, dos pressupostos fundamentais que a este servem de inspiração: dever do concessionário de manter um serviço adequado e direito à manutenção do equilíbrio financeiro do contrato. Tais garantias são asseguradas tanto pela Suprema Corte quanto por órgãos independentes denominados Comissões Estaduais. No direito Norte-Americano, a noção do serviço público concedido (ali configurado no regime peculiar das public utilities) está indissoluvelmente ligada à garantia da estabilidade econômico-financeira da empresa. Ao dever de prestar bom serviço corresponde o direito à justa remuneração, assegurada pela atualização de tarifas razoáveis e pela proteção judicial contra formas diretas, ou indiretas, de confisco do investimento, ou de sua renda. No que concerne a outros países, não encontramos traços de originalidade no regime de concessão. Todos os sistemas de concessões estrangeiros que analisamos superficialmente se baseiam na jurisprudência francesa ou na experiência norte-americana nesta área. São reflexos das instituições criadas na jurisprudência francesa, ou na experiência regulamentar norte-americana, como forma de recepção de conceitos e técnicas dessa procedência. Em Portugal, as tarifas devem assegurar ao concessionário “justa e estável remuneração”, podendo ser complementadas, para esse efeito mediante assistência financeira do estado, sob a forma de subvenção, subsídios ou garantias de juros. Na Bélgica, a vizinhança com a França levou à importação das “teorias da imprevisão” e do “fato do príncipe”. O direito do concedente à modificação unilateral das condições de exploração do serviço fundamenta a indenização ao concessionário, se for comprometido o equilíbrio financeiro da concessão. O direito italiano também consagra o direito do concessionário à justa remuneração e à amortização do investimento. Na Alemanha vigora há muito, a obrigação de indenizar os danos causados pelo Poder Público ao direito individual dos concessionários. No Direito espanhol, sob a influência da doutrina francesa, vige a regra da imutabilidade da equação financeira da concessão, cabendo à administração o ressarcimento ao concessionário, caso haja perturbação causada à economia do concessionário. No Egito, previa-se a modificação das tarifas ou das condições do serviço caso a equação financeira fosse rompida por circunstâncias imprevistas, alheias à vontade das partes. Na Argentina, há inspiração francesa na acolhida à teoria da mutabilidade do contrato administrativo e influência norte-americana no conceito de tarifas justas e razoáveis. No Uruguai, o respeito ao equilíbrio financeiro da concessão conduz à revisão das tarifas, que devem ser justas e razoáveis, com valores e vigência dependentes da homologação estatal. No Direito mexicano a Administração está obrigada a manter o equilíbrio financeiro do serviço concedido. A teoria da imprevisão é aceita nos moldes da jurisprudência francesa. 1.3 – Evolução da concessão no Direito brasileiro e influência do Direito estrangeiro. No Brasil, as concessões nasceram no último quarto do século XIX, como um instrumento de atração de capital e tecnologia externos. Para mobilizá-los foi adotado, de início, o modelo de concessões de obras públicas, nas quais se atribui ao concessionário, mediante a exploração do serviço, obter a remuneração e a amortização do investimento feito. Foi graças à participação da iniciativa privada estrangeira que se desenvolveram, na época, os serviços de portos, a construção de ferrovias e se implantaram, nos grandes centros, os serviços de eletricidade, gás, telefones ou transportes urbanos. Predominou, em tais empreendimentos, o regime contratual inspirado no Direito Francês, em que a liberdade do concessionário pouco era limitada pela intervenção do poder administrativo. A garantia dos investidores se fazia sentir em contratos de longo prazo, em alguns casos de 90 anos, estimulando o pioneirismo da implantação de mercados. A economia dos contratos era protegida pela garantia de juros mínimos do capital, ou pela adoção da cláusula ouro como base do capital reconhecido. A Constituição de 1934 viria a proibir a garantia de juros a empresas concessionárias de serviço público (art. 142) e o Decreto n° 23.501/33 declarou nulas as estipulações em ouro, alterando de forma substancial a estrutura das tarifas. As concessões, como originalmente pactuadas, se continham dentro de limites contratuais. Tal como nas relações privadas, o princípio da imutabilidade (pacta sunt servanda) não obrigava os concessionários a expandir e atualizar os serviços além das forças do contrato, somente alteráveis por acordo das partes. A necessidade pública impôs, entretanto, uma nova concepção, abrigada na jurisprudência do Conselho de Estado da França – transposto para o nosso sistema – de que as obrigações de fazer dos concessionários poderiam ser alteradas por ato unilateral do poder concedente, desde que se mantivesse, adequadamente, o equilíbrio financeiro dos contratos. É a regra da mutabilidade do contrato administrativo, à qual se integra a garantia de continuidade da equação financeira das concessões. A influência, por muito tempo exclusiva do Direito Francês, veio a se conciliar, entre nós, especialmente nas três últimas décadas, à experiência norte-americana de regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública, manifestando-se, sobretudo, na tentativa de implantação do critério do serviço pelo custo (service-at-cost), como base tarifária em determinadas concessões. Não obstante a diversidade de conceitos e soluções, tanto no sistema francês quanto no sistema americano sobrepaira o mesmo tema da estabilidade financeira do concessionário como elemento vital à exploração privada do serviço público. É nessas duas fontes comparativas que o direito administrativo brasileiro se baseia para a institucionalização, no plano legislativo, ou na criação doutrinária, dos princípios básicos das concessões de serviço público.[10] 2. Disciplina normativa A concessão de serviços públicos tem previsão constitucional no artigo 175, que dispõe: “Art. 175. Incumbe ao Poder público, na forma de lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão. II – os direitos dos usuários III – política tarifária IV – a obrigação de manter o serviço adequado.” Em conformidade com a previsão contida no referido artigo, bem como àquela contida no artigo 22, XXVII, da Constituição, que estabelece a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, foi editada a Lei Federal nº. 8.987, de 13.02.1995, que dispõe acerca do regime de concessão de serviços públicos. Essa lei foi posteriormente modificada pela Lei nº. 9.074, de 7.07.1995, que regulou as concessões e permissões de serviços de energia elétrica. As duas foram ainda parcialmente modificadas pela Lei nº. 9.648, de 27.05.1998. A Lei nº. 8.987/95, por sua vez, em seu artigo 1º, dispõe que as concessões se regerão pelas normas gerais nela contidas, pelas normas legais específicas pertinentes e pelas cláusulas dos respectivos contratos. Fica perfeitamente claro, portanto, que essa Lei não pretendeu esgotar a matéria, mas, ao contrário, reconheceu a necessidade de complementação por parte da legislação ordinária específica, editada no uso da competência própria de cada pessoa jurídica de capacidade política. Tal entendimento fica ainda mais claro quando se observa que o parágrafo único desse artigo menciona que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei…". Ou seja: haverá legislações específicas, que poderão disciplinar aspectos das concessões e permissões de maneira diversa, segundo suas peculiaridades, salvo naquilo que for entendido como norma geral e, nessa condição, de observância obrigatória. Cabe observar que os Estados e Municípios não estão obrigados a editar leis próprias que regulem as concessões de serviço público. Inexistindo lei própria, boa parte da doutrina vem entendendo que poderão ser celebrados contratos de concessão, observando-se as prescrições da Lei nº. 8.987 e desde que haja autorização legislativa para isso, genérica ou específica. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Lei nº. 2.931, de 13.11.1997, prevê em seu artigo 1º, §1º, que os serviços concedidos devem ser definidos pelo Governador do Estado por meio de decreto.[11] Devem ser observados, também, em se tratando de contratos de concessão, os preceitos dispostos na Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública (8666/93), que determina, em seu artigo 124, a aplicação de seus dispositivos às concessões no que não for contrário à lei específica. O contrato de concessão, como os demais contratos administrativos, deve observar, ainda, a regra contida no artigo 37, XXI, da Constituição Federal que exige a licitação prévia. O artigo 175 corroborou essa exigência ao dispor que a prestação de serviços públicos pode ser delegada sempre através de licitação. A Lei nº 8.987/95, em seus artigos 2º, II e III e 14, também estipula que a concessão de serviço público deve ser feita através de licitação. O artigo 2º, II e III, exige ainda uma modalidade específica: a concorrência. 3. Definição, natureza jurídica e principais características. Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado comete à pessoa, física ou jurídica, o direito de prestar serviços de interesse da coletividade. Deve-se lembrar que somente podem ser objeto de concessão os serviços classificados como de utilidade pública (delegáveis), e nunca os serviços públicos próprios (indelegáveis), como, por exemplo, a distribuição da justiça (jurisdição). A Lei n°. 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, em seu art.2°, II, define concessão de serviço público como “a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”. Em crítica a esta definição legal, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO magnificamente conceitua concessão de serviços públicos: “é o instituto através do qual o estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço.” [12] Sobre a natureza jurídica da concessão existem vária teorias[13]. Alguns autores como FRITZ FLEINER, OTTO MAYER, ZANOBINI e ALCIDEZ CRUZ afirmam que a concessão de serviço público é ato administrativo unilateral, praticado pelo Estado no exercício de seu jus imperii. Não se caracterizaria como contrato porque o objeto em mira é coisa fora do comércio, as cláusulas não são livremente discutidas pelas partes e os sujeitos acham-se em posição de evidente disparidade. Outros autores consideram que a concessão de serviço público teria natureza de contrato privado, não admitindo haver contrato no âmbito do Direito Público. Sustentaram esta teoria RUI BARBOSA, VIVEIROS DE CASTRO, ANTÃO DE SOUZA e MANUEL INÁCIO CARVALHO DE MENDONÇA. A teoria dominante sustenta que a concessão de serviço público tem a natureza jurídica de contrato administrativo de direito público. Partidários desta teoria estão MÁRIO MASSAGÃO, BRANDÃO CAVALCANTI, GUIMARÃES MENEGLE, MARIA SYLVIA ZANELA DI PIETRO, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, DIÓGENES GASPARINI, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, entre outros. Sobre este aspecto opina JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO: “Entendemos que referido negócio Jurídico é de natureza contratual, embora sejamos forçados a reconhecer particularidades específicas que o configuram realmente como inserido no âmbito do direito público” [14]. A natureza contratual, bilateral, do ato administrativo, o conteúdo público desta relação de direito, o interesse público predominante em todas as fases da execução do serviço são, de acordo com a melhor doutrina, os traços característicos desta modalidade de exploração dos serviços de utilidade pública. Pelo que concluímos que a concessão de serviço público tem sua natureza jurídica bem definida, caracterizando-se como contrato de direito público, oneroso sinalagmático, perfeito de adesão, comutativo e realizado ‘intuito personae’. Esse vínculo obrigacional que se estabelece entre o concedente e concessionário, de natureza evidentemente contratualista, constitui-se, pois, na principal característica do contrato de concessão. É a própria Constituição, em seu artigo 175, que estabelece que o Poder Concedente mantém uma relação contratual especial com a concessionária prestadora de serviços públicos, sendo o contrato de concessão o instrumento que formaliza tal relação: “Art. 175: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão.(…)” Certo é que, com a outorga da concessão, o Estado não se desobriga do seu dever constitucional de realizar o serviço público, nem abdica da titularidade da sua prestação, mas delega ao particular a sua execução, que a assume com todos os riscos empresariais envolvidos, mas sob a supervisão e a cooperação do Poder Público. Conforme se verifica pela etimologia da palavra, concessão é uma cessão na qual o Estado continua a atuar como participante, sendo que o prefixo “co” também é encontrado em outras palavras com sentido análogo, como é o caso de condomínio, cooperação, colaboração etc. Daí porque a doutrina tem classificado o contrato de concessão de serviços públicos na categoria de contrato de colaboração, entre a empresa privada e a Administração, o que lhe dá maior flexibilidade, importante no momento em que se impõe a composição dos interesses dos contratantes, mormente em virtude das modificações posteriores unilateralmente impostas pelo Poder Público. Não há dúvida de que todas as alterações contratuais supervenientes, que vierem a ser decididas pela autoridade pública, não podem prescindir de uma solução dinâmica e negociada entre as partes, de modo a não prejudicar a prestação do serviço público concedido e nem acarretar injusto desequilíbrio na equação econômico-financeira do contrato de concessão. É a Lei nº. 8.987, de 1995, que enuncia, no art. 23, as cláusulas essenciais ao contrato, as quais, coerentemente com o princípio que certamente inspirou a edição do diploma legal, devem ser interpretadas e aplicadas segundo o princípio da parceria ou da colaboração, entre o Poder Público e o empresário privado, sempre com vistas à satisfação do interesse público, que deve predominar durante toda a duração do contrato. Entramos, assim, num campo que a doutrina francesa caracterizou como sendo, na feliz conceituação de BLOCH-LAINÉ, o da economia concertada[15], na qual, para realizar seus planos, o Estado e a Administração vêem-se obrigados a negociar constantemente suas obrigações de acordo com os princípios da boa-fé e da lealdade, que se impõem não só na celebração, mas também na execução dos contratos[16]. Conclusão O presente artigo teve por intuito demonstrar que a legislação brasileira tornou-se esparsa no que toca ao instituto das concessões administrativas dando ao gestor público inúmeras opções para a implantação das políticas públicas, especificamente na concessão dos serviços públicos. Diante da variedade do tema e inúmeras abordagens, coube à doutrina nacional sistematizar a concessão tradicional, patrocinada e administrativa, especificamente após o advento da Lei de parcerias público-privadas que redesenhou o tema. Ainda, considerando que o tema está em constante evolução, apresentou-se um estudo de direito comparado alinhavando as principais características das concessões nos diferentes ordenamentos jurídicos, destacando o tema no direito administrativo Francês e dos Estados Unidos que são sem dúvida os países que mais influenciaram na formação da escolástica brasileira de direito administrativo das concessões. O tema deve ser visto sob a ótica dos princípios do direito administrativo sem olvidar da dinâmica que representa a concessão de serviços públicos e a extensa demanda da sociedade por serviços de qualidade. A variedade de opções para a concessão de serviços públicos à disposição do gestor público no Brasil supõe que há necessidade de escolher pelo modelo que mais atenda a especificidade de cada prestação de serviço. Por fim, independente da classificação que se adote – Estado social, liberal ou democrático – tem-se visto que tanto o Brasil, quanto os países dos quais buscou-se copiar o modelo de concessões, tem retirado do Estado o papel de explorador direto da atividade econômica para transformá-lo em indutor e fiscal das garantias constitucionais postas em favor do cidadão.
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O dever de licitar e as modalidades de licitação do ordenamento jurídico brasileiro
Resumo: O princípio da legalidade impõe que o administrador observe as regras contidas na Lei 8.666/93 o que o obriga a escolha da modalidade de licitação adequada. O presente artigo se propõe a estudar o dever de licitar e as modalidades de licitação previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
Direito Administrativo
1 O dever de licitar A licitação é um cotejo de propostas feitas por particulares ao poder público, visando a execução de uma obra, ou uma prestação de serviço, ou fornecimento ou mesmo uma alienação pela Administração, em que esta deverá escolher a oferta mais vantajosa mediante um procedimento administrativo regrado, o qual deve proporcionar tratamento igualitário aos proponentes.[1] Para que os objetivos das contratações públicas fossem alcançados, a Constituição Federal no inciso XXI do artigo 37 fixou a licitação como princípio básico a ser observado por toda a Administração Pública, conforme se pode inferir do próprio texto constitucional: “Art. 37.  Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. [2] A Constituição Federal enunciou o que se pode chamar de princípio da obrigatoriedade de licitação[3] e é por isso que toda administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes, tanto da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sujeitam-se ao dever de licitar[4], devendo a Administração observar a Lei 8.666/93, já que esta estabeleceu normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. 2 Modalidades de Licitação Tendo em vista os diversos tipos de contratos que a Administração Pública pode realizar, os quais demandam formalidades distintas a depender da importância e da natureza do objeto licitado, o legislador criou modalidades de licitação pública. O ordenamento brasileiro dispõe de sete modalidades de licitações, a saber: 1) convite; 2) tomada de preço; 3) concorrência; 4) concurso; 5) leilão; 6) pregão; 7) consulta[5]. Importa ressaltar que nos termos do artigo 22, § 8º, da Lei de Licitações, foi vedada a criação de outras modalidades de licitação ou combinação das modalidades existentes[6]. Portanto, passa-se neste momento ao estudo sucinto do cabimento das modalidades atualmente existentes. 2.1. Convite Essa modalidade possui formalidades amenizadas, uma vez que deve ser utilizada somente em licitações públicas de menor relevância, ou seja, cujos valores envolvidos sejam reduzidos. O convite tem cabimento nas licitações cujos valores não excedam R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) nos contratos de obras e serviços de engenharia e nos demais contratos cujos valores não sejam superiores a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), bem como nas licitações internacionais quando não houver fornecedor do bem ou serviço no país. 2.2. Tomada de Preços A tomada de preços tem lugar naqueles certames reputados pelo legislador de relevância mediana, ou seja, nos contratos para obras e serviços de engenharia cujo valor da contratação não exceda R$ 1.500.00,00 (um milhão e quinhentos mil reais) e para os demais contratos cujos valores não ultrapassem R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais), nos termos do artigo 23, inciso II, alínea b, da Lei de Licitações, bem como para licitações internacionais, nas hipóteses em que o órgão licitante possuir cadastro internacional de fornecedores. 2.3. Concorrência É a modalidade padrão de licitação, que se destina aos contratos mais complexos e importantes, já que tem por objetivo a celebração de contratos de grande vulto. De acordo com a Lei de Licitações, a modalidade concorrência se impõe nos seguintes contratos: a) contratos de obras e serviços de engenharia cujos valores ultrapassem R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); b) nos demais tipos de contratos cujos valores ultrapassem R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais); c) em compras e alienações de bens imóveis, ressalvado se o imóvel for decorrente de dação em pagamento ou decisão judicial, casos em que se pode utilizar tanto concorrência como leilão; d) licitações internacionais, salvo se o licitante possuir cadastro internacional de fornecedores; e) para as concessões de serviço público, nos termos do art. 2º, II, da Lei 8987/95[7], ressalvados os serviços inseridos no programa nacional de desestatização, caso em que a modalidade licitatória passa a ser o leilão. 2.4. Concurso A modalidade concurso emprega-se para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmio ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial. 2.5. Leilão A modalidade leilão é destinada a venda de bens móveis até R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais), de bens móveis inservíveis à Administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou à alienação de bens imóveis cuja aquisição haja derivado de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento, a quem oferecer o maior lance igual ou superior ao da avaliação. O leilão ainda é utilizado em processos de desestatização de serviços públicos, conforme Lei 9.074/95[8] e Lei 9.491/97[9]. 2.6. Pregão A modalidade pregão foi criada pela Lei nº 9.472/97[10] para ser aplicada somente pela Agência Nacional de Telecomunicações. Posteriormente, o uso do pregão foi estendido para abranger toda a Administração Pública Federal. O pregão é a modalidade de licitação, realizada de forma presencial ou eletrônica, através da qual a Administração Pública seleciona a melhor oferta, visando à contratação de bens e serviços comuns.  Foi implantado no Brasil pela Medida Provisória n° 2.026 de 2000 apenas no âmbito da União Federal. Tal Medida Provisória foi reeditada dezoito vezes com alterações. Posteriormente, em 18 de julho de 2002 foi publicada a Lei nº 10.520/02[11], que instituiu no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios nova modalidade de licitação denominada pregão. Ressalte-se que a utilização da modalidade pregão independe do valor do contrato, critério utilizado até então para as modalidades definidas na Lei de Licitações.  O pregão não é modalidade licitatória de uso obrigatório pela Administração Pública Municipal, apenas a União adotou de maneira compulsória, no decreto n° 5.450/2005, a utilização do pregão e, de preferência na modalidade eletrônica. Por não se tratar de norma regulamentadora geral, os Estados e os Municípios, ao contrário da União, têm a faculdade de escolher entre o pregão ou alguma das modalidades previstas na Lei n° 8.666/93[12]. No entanto, apesar da discricionariedade da sua utilização, é importante salientar que esta modalidade licitatória garante maior celeridade e eficiência no processo de licitação, de modo que, havendo hipótese que admite o pregão e, tendo os órgãos administrativos o dever de alcançar da melhor maneira possível os fins da Administração Pública, a opção mais coerente é a utilização desse instrumento sempre que cabível. 3. Exceções ao dever de licitar De acordo com o princípio constitucional da licitação, a regra geral é a exigência do procedimento licitatório para toda a Administração Pública quanto à realização de obras, serviços, inclusive de publicidade, compras e alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros. No entanto, existem alguns casos previamente estabelecidos pelo legislador em que o princípio da licitação cede espaço ao princípio da economicidade ou ao primado da segurança nacional ou ainda para garantir o interesse público, no que tange à necessidade de o Estado intervir na economia.[13] As hipóteses previstas pelo legislador estão nos artigos 17 e 24 da Lei de Licitações, que tratam dos casos de dispensa, cujo fundamento se encontra na vontade legislativa, e de inexigibilidade, em que não será possível licitar em razão da natureza das coisas. 3.1. Dispensa de licitação A dispensa de licitação está prevista no artigo 24 da Lei 8.666/93 e se trata de exceção à regra da licitação, devendo sua interpretação ser restritiva, ou seja, o artigo 24 traz um rol taxativo de hipóteses em que se pode dispensar o procedimento licitatório. Deve-se ressaltar que mesmo que a situação esteja elencada entre o rol de situações em que a licitação é dispensável, cabe à Administração decidir, em face às circunstâncias do caso concreto, por meio da discricionariedade, dispensar ou não o certame.[14] 3.2. Inexigibilidade de licitação A inexigibilidade de licitação, prevista no artigo 25 da Lei de Licitações, deriva da inviabilidade de competição, conforme se vê do citado artigo transcrito abaixo: “Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: (…)”.[15] As discussões doutrinárias e jurisprudenciais residem no conceito do que seria “viabilidade de competição”, já que a lei se restringiu a fornecer um rol exemplificativo do que seria essa inviabilidade de competição, sendo que ainda não se chegou a soluções satisfatória a respeito da controvérsia.[16] Conclusão Pelo princípio da obrigatoriedade de licitação pode-se concluir que a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes, tanto da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sujeitam-se ao dever de licitar, devendo observar a modalidade licitatória adequada a cada contrato administrativo, sendo tal regra excepcionada apenas nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
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A aplicação do princípio da proporcionalidade no controle concentrado de constitucionalidade: Estudo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal
O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a aplicação do princípio da proporcionalidade no controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. A metodologia utilizada neste trabalho será uma análise empírica dos acórdãos selecionados no site do Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade.
Direito Administrativo
Introdução Após a segunda guerra mundial houve superação do paradigma filosófico Positivista cujo expoente foi Hans Kelsen, atualmente a Ciência do Direito encontra-se em uma nova fase, conhecida também como neoconstitucionalismo. Para Luis Roberto Barroso é a “designação provisória e genérica de um ideário difuso no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e da teoria dos direitos fundamentais”[1] Um dos principais autores desta nova fase é Robert Alexy, cuja obra Teoria dos Direitos Fundamentais influenciou diretamente não só a jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão mas também o próprio Supremo Tribunal Federal. Neste contexto, o princípio (ou postulado) da proporcionalidade vem como norteador da interpretação constitucional para casos em conflitos entre direitos fundamentais. Conforme expos o Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADI 3112: “Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também o postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando da expressão de Canaris, pode se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). […] No primeiro caso, o principio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo caso, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao principio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja um direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção.” Neste sentido, é de extrema importância estudar empiricamente a forma como o Supremo Tribunal Federal vem utilizando este princípio, a fim de traçar as balizas que o tribunal constitucional impôs e imporá ao legislador em sua atuação legiferante como forma de proteção contra os excessos ou ainda de proteção insuficiente. Para tanto analisar-se-á a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade. A pesquisa no site do Supremo Tribunal Federal utilizando o termo “princípio e proporcionalidade”, com o corte temporal de 05/10/1988 (data da promulgação da Constituição Federal) a 13/11/2013, resultou em 477 Acórdãos. Após análise do resultado da pesquisa verificou-se que grande parte dos acórdãos não se referem ao objeto deste trabalho. Neste sentido, utilizou-se outra expressão boleana a fim de afastar as principais ocorrências do resultado anterior. Com o termo “princípio e proporcionalidade não recurso não agravo não embargos não habeas” a pesquisa retornou 72 acórdãos. Destaca-se que foram excluídos da análise 15 acórdãos por não serem oriundos de julgamentos no controle concentrado de constitucionalidade bem como por serem proferidos antes da Constituição de 1988. Portanto, serão objeto de análise desta pesquisa 57 acórdãos proferidos em julgamentos de controle concentrado de constitucionalidade entre os períodos de 05/10/1988 e 13/11/2013[2] sob os seguintes critérios: (i) Data do Julgamento; (ii) Questão relevante envolvida (iii) Aplicação do princípio da proporcionalidade 1. A aplicação do Princípio da Proporcionalidade Passa-se a agora analisar a forma como o Supremo Tribunal Federal vem aplicando no controle concentrado de constitucionalidade o princípio da proporcionalidade. 1.1. Erros de resultado da expressão boleana O site do Supremo Tribunal Federal realiza a pesquisa de jurisprudência através de motor de busca que encontra as palavras escolhidas não apenas no acórdão, mas também na ementa e em seu indexador. Diante deste mecanismo de busca a pesquisa retornou alguns acórdãos que ainda que mencionassem a expressão proporcionalidade não se referia ao objeto deste estudo. Apenas exemplificando, na ADI 892 a expressão proporcionalidade remete a composição do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, ou ainda na ADI 3104 que menciona uma regra proporcional de transição entre diferentes regimes previdenciários. Houve também resultado de necessária proporcionalidade na atribuição de multa por não pagamento de tributo (Medica Cautelar ADI 1075), considerado in casu que a penalização no valor de 300% possuiria caráter confiscatório, mas não havia qualquer referencia ao princípio da proporcionalidade. 1.2 Princípio da Proporcionalidade a sua aplicação sem fundamento Em boa parte dos acórdãos, os Ministros votaram aplicando o princípio da proporcionalidade sem qualquer análise mais pormenorizada seja de suas sub-regras, seja sem realizar o cotejo da (dês)proporcionalidade que fundamenta a decisão, restando nestes casos apenas expressões como é proporcional tal regra ou não é proporcional (ou razoável em alguns casos) a determinação legal questionada. Estas impropriedades na aplicação foram verificados nos seguintes julgamentos: i) ADI 2317 – Contra resolução do CMN que determina o “rodízio” de auditores independentes em instituições pertencentes ao sistema financeiro: A cautelar foi indeferida por unanimidade. Rel: Ilmar Galvão. ii) MC na ADI 2332 – Contra Medida Provisória que limita juros a 6% em ação de desapropriação e da outras providencias: Por maioria foi deferida liminar para suspender eficácia do artigo correspondente. Rel. Moreira Alves. iii) ADI 2458 – Contra lei estadual alagoana que confere beneficio fiscal ao setor sucroalcooleiro: Por unanimidade foi deferida liminar para suspensão da lei. Rel. Ilmar Galvão. iv) ADIN 247 – Contra lei estadual que fixa data para pagamento de servidores: procedente por votação unanime. Rel. Ilmar Galvão. v) ADIN 1040 – Contra lei que determina o período de 2 anos após o título de bacharel para inscrição em concurso do Ministério Público: julgada improcedente por maioria. Rel. Ellen Gracie. vi) ADC 5 – Declaração de constitucionalidade de lei que isenta o pagamento de certidões em cartórios: julgada procedente por maioria. Rel. Nelson Jobim. vii) ADIN 1721 – Contra medida provisória que altera a CLT extinguindo vínculo empregatício na concessão de aposentadoria espontânea: julgada procedente por maioria. Rel. Carlos Britto. viii) ADIN 2078 – Contra lei paraibana que disciplinou taxa judiciária: julgada improcedente por unanimidade. Rel. Gilmar Mendes. As decisões fundamentadas no princípio da proporcionalidade, porém, sem qualquer explicação ou detalhamento de sua aplicação não seguem qualquer padrão, consistindo em aleatoriedade a aplicação deste princípio de forma simples. 1.3. Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade As primeiras decisões de acordo com o corte temporal desta pesquisa demonstraram que o Supremo Tribunal Federal frequentemente tomavam como sinônimos os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Em julgamento emblemático o Ministro Marco Aurélio expõe em seu voto que a divisão entre os Estados da representação na Câmara atende aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sem qualquer distinção entre estes[3], assim como há expressamente “…o Supremo Tribunal Federal adotou a decisão em que o principio da razoabilidade ou da proporcionalidade esteve presente no juízo de invalidade então formulado” no julgamento da Medida Cautelar 9 contra o racionamento de energia. No mesmo julgamento a exposição do Ministro Sepúlveda Pertence de que: “Então, por isso se balançaram os interesses em jogo, para estabelecer, de um lado, uma sanção premio; de outro, uma sanção punitiva. A medida me parece plenamente consentânea com o principio da razoabilidade, da proporcionalidade, que, embora, por um mecanismo de tratamento diferenciado, como ocorre frequentemente, é forma de respeitar o principio da isonomia”. Em outros julgamentos mais recentes algumas imprecisões persistem, como na ADI 2019 (julgado em 02.08.01), em que o relator à época, Ministro Ilmar Galvão, julga inconstitucional lei que conferia uma renda mensal a crianças geradas por estupro. Curioso é notar que em seu voto traz colacionado parte do parecer da Procuradoria Geral da República onde se verifica, inclusive, a análise das três sub-regras (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), mas ao final opina pela inconstitucionalidade fundamentando seu voto na falta de razoabilidade da norma. Em outro julgamento, o Ministro Celso de Mello (Medida Cautelar na ADI 776) adicionou: “Cabe destacar, ainda, que a jurisprudência desta Suprema Corte, ao examinar a questão concernente à fixação legal do limite de idade para efeito da inscrição em concurso público, também passou a analisa-la em função e na perspectiva do critério da razoabilidade (RTJ 135/958), Rel. Min. Carlos Velloso), de tal modo que o ressarcimento, pelo legislador, desse critério de ordem material poderá traduzir situação configuradora de ofensa ao principio da proporcionalidade”. Diante deste quadro, verificou-se que houve clara confusão na aplicação destes dois princípios, com exposições de que estes eram sinônimos, razoabilidade está contida na proporcionalidade ou até que a proporcionalidade decorre do principio da isonomia. 1.4. Princípio da Proporcionalidade e o due process of law Outra recorrente posição do Supremo Tribunal Federal é a posição de que o princípio da proporcionalidade é corolário lógico do devido processo legal substantivo. A posição posta pelo Ministro Moreira Alves na ADI 2290 (contra o Estatuto do Desarmamento) é de que toda norma desarrazoada viola o preceito do devido processo legal, in casu, a não proibição do comércio de armas, mas a imposição de regras que indiretamente inviabiliza seu comércio e assim conclui: “Com efeito, afigura-se-me desarrazoada norma que, sem proibir a comercialização de armas de fogo, que continua, portanto, lícita, praticamente inviabiliza de modo indireto e provisório, o que não é sequer adequado a produzir o resultado almejado (as permanentes segurança individual e coletiva e proteção ao direito a vida), nem atende a proporcionalidade em sentido estrito”. Ressalte-se, ainda que não posta de forma clara com o nome “adequação”, verifica-se já uma primeira aplicação desta sub-regra. No julgamento da Medida Cautelar 2298, cerca de um mês posterior, que indeferiu por maioria a suspensão da lei que estendia aos proprietários de veículos destinados à locação e adquiridos por leasing a isenção do IPVA, novamente traz-se a baila que[4]: “O diploma legislativo ora questionado, ao veicular semelhante prescrição, parece revelar-se, a meu juízo, incompatível com o princípio da proporcionalidade, afetando, desse modo, o postulado do devido processo legal, analisado em sua dimensão substantiva.” No mesmo sentido votou o Ministro Gilmar Mendes na ADI 551, com o detalhe de que imputa ao Supremo Tribunal Federal a interpretação do princípio da proporcionalidade como sinônimo de devido processo legal substantivo. No julgamento da ADI (Questão de Ordem) 551 o Ministro Relator Celso de Mello traz uma nova ideia na aferição da proporcionalidade, o coeficiente de razoabilidade, mas sempre se atrelando ao devido processo legal substancial, e colaciona trecho de outro voto de sua própria relatoria: “O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no principio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive processo f law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veícula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se a cláusula que consagra, em sua dimensão material, o principio do substantive due process of law”. Neste ponto verifica-se de plano uma incongruência. Por um lado, até abril de 2003 as decisões do Supremo elevavam à categoria de princípio a proporcionalidade, com a decisão da ADI 2551, a proporcionalidade, ainda que decorrente do substantive due process of law, é posto como postulado. 1.5. Princípio da Proporcionalidade e a divergência do Ministro Eros grau No julgamento da ADI 1040 (a seguir transcrita) o Ministro Eros Grau inicia no tribunal uma divergência na aplicação do princípio da proporcionalidade. Conforme a corte posicionava-se contra ou favor de algum ato normativo sistematizando a aplicação do princípio no controle concentrado o Ministro cria divergência no que posteriormente chamou de banalização deste princípio: “Afirmei ontem e torno a insistir que as pautas da proporcionalidade e razoabilidade só podem ser atuadas no momento da norma da decisão, quando este Tribunal, por exemplo, opera o controle concreto, não o controle difuso. Estou desprezando os argumentos sobre proporcionalidade e razoabilidade.” No mesmo sentido, o Ministro assim votou na ADI 3453: “Vou acompanhar o voto da Ministra Carmen Lucia. Apenas uma brevíssima referencia – uma lástima que o Ministro Lewandowski tenha se retirado – com relação ao chamado principio da “razoabilidade”. Entendo que a pauta da razoabilidade pode e deve ser utilizada no momento da norma de decisão, da tomada da decisão em relação a determinado caso, mas não no momento da interpretação do direito. Não podemos, a pretexto da razoabilidade ou proporcionalidade corrigir o legislador. O que podemos fazer é declarar constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei. Se, uma medida, na lei, inteiramente irrazoável, for constitucional, não cabe a este Tribunal corrigi-la. No exame concreto da constitucionalidade do preceito nós os aferimos somente pela Constituição. A pauta da razoabilidade não pode ser usada a pretexto de adaptarmos a lei aos nossos desejos ou anseios.” Em todos os votos do Ministro Eros Grau objeto desta pesquisa, sua posição sempre foi a mesma, que não cabia à corte realizar controle de constitucionalidade da lei utilizando o principio da proporcionalidade uma vez que “como já afirmei mais de uma vez, não faço adesão à questão da proporcionalidade”.[5] No mesmo julgado ainda afirma: “Não existe constitucionalidade ou inconstitucionalidade segundo o principio da proporcionalidade. Esse é um ponto, no meu modo de ver, fundamental. Afirmo e reafirmo que julgamos a constitucionalidade, não a proporcionalidade das leis. Tenho insistido nisso. Eu me recuso a tomar a proporcionalidade como critério de apreciação de qualquer causa que não envolva especificamente a aplicação, a um caso concreto, de determinadas consequências jurídicas. Não no controle abstrato. Faço registrar essa observação – para todo o sempre. No futuro, quando alguém vier a escrever sobre o Tribunal, saberá que jamais concordei em participar do controle da razoabilidade ou proporcionalidade das leis.” No mesmo sentido, em 02.05.07, no julgamento da ADI 3112, o Ministro Eros Grau expos “fico perplexo com o fato de nós […] não estarmos mais decidindo segundo a Constituição. Começamos a decidir conforme a razoabilidade e a proporcionalidade. […]Deixo bem claro que não tenho nada a ver com isso.” Por outro lado, situação curiosa ocorre no julgamento das ADI 2240 em 09.05.07 (contra a lei 7619/00-BA que criou a cidade de Luis Eduardo Magalhães), ADI 3489 julgada no mesmo dia (contra lei 12.294/02-SC que anexou a localidade de Vila Arlete ao município de Monte Carlo) e ADI 3689 julgada no dia seguinte (contra lei 6066/97-PA) que desmembrou faixa de terra do município de Água Azul do Norte integrou-a ao município de Ourilândia do Norte), todos de relatoria do Ministro Eros Grau. Nos três julgados, diante da situação fática já consolidada dos municípios, o Ministro Eros Grau votou pela improcedência das três ações, sem fazer qualquer menção ao princípio da proporcionalidade. Em todas as ações, o Ministro Gilmar Mendes expos seu voto pela declaração de inconstitucionalidade das leis sem a pronúncia da nulidade da lei impugnada, mantendo sua vigência pelo prazo de 24 meses. Em seus votos, o Ministro Gilmar Mendes assim expos: “A despeito do caráter de cláusula geral ou conceito jurídico indeterminado que marca o art. 282 (4), da Constituição portuguesa, a doutrina e a jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio da proporcionalidade. A propósito, Rui Medeiros assinala que as três vertentes do principio da proporcionalidade tem aplicação na espécie (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Peculiar relevo assume a proporcionalidade em sentido estrito na visão de Rui Medeiros: “A proporcionalidade nesta terceira vertente tanto pode ser perspectiva pelo lado da limitação de efeitos como pelo lado da declaração de inconstitucionalidade. Tudo se reconduz, neste segundo caso, a saber se à luz do principio da proporcionalidade as consequências gerais da declaração de inconstitucionalidade são ou não excessivas. Impõe-se, para o efeito, ponderação dos diferentes interesses em jogo, e, concretamente, o confronto  entre interesses afectado pela lei inconstitucional e aqueles que hipoteticamente seriam sacrificados em consequência da declaração de inconstitucionalidade com eficácia retroactiva e repristinatória.” Em todas as três Ações Diretas de Inconstitucionalidade o Ministro Eros Grau alterou seu voto e acompanhou o Ministro Gilmar Mendes, “Assim, sou arrastado a evoluir e acompanhar o voto do Ministro Gilmar Mendes”. O posicionamento do Ministro Eros Grau em relação a proporcionalidade evoluiu conforme mostra seu voto no julgamento da Medida Cautelar na ADI 2356, posicionamento este que o Ministro Dias Toffoli também adota (Medida Cautelar na ADI 4467). “Também não encontra base sólida o argumento de mácula  ao “principio” – e eu eu digo princípio entre aspas – da proporcionalidade, que não é princípio,mas sim uma pauta, um critério de aplicação do direito. O chamado “princípio” da proporcionalidade consubstancia postulado normativo aplicativo. E como tal impõe – cito Humberto D’Avila – “uma condição formal ou estrutural de conhecimento concreto de outras normas”. Mais do que de conhecimento, eu diria de aplicação das normas jurídicas. Ainda que se admita, por amor a argumentação, pertinência desse “princípio”, cumpre lembrar que a Emenda 30 afigura-se adequada à produção do resultado desejado, insubstituível  por outro meio menos gravoso e mais eficaz.” A divergência criada pelo Ministro Eros Grau quanto ao princípio da proporcionalidade, de maneira geral, acarretou na continuidade da utilização do princípio da proporcionalidade pelos demais Ministros, porém, verificou-se um maior cuidado em sua aplicação, seja com a análise de suas sub-regras no caso, seja pela maior utilização deste princípio como postulado. 1.6. Princípio da Proporcionalidade e sua aplicação A utilização do princípio da proporcionalidade de maneira mais detalhada, com a análise de suas sub-regras, começou no julgamento da ADI 1805 em 26.03.98. Neste acórdão, o relator Ministro Neri Silveira cita passagem do livro de Gilmar Mendes onde é desenvolvido o princípio da proporcionalidade e suas sub-regras: necessidade e adequação, no entanto, sem realizar o cotejo com a lei objeto da ADI. Tímido avanço houve em 2002 com o julgamento da Medida Cautelar na ADI 2667, onde o relator Ministro Celso de Mello expõe que as normas devem se adequar ao princípio da proporcionalidade: “Não se pode desconhecer que as normas legais devem observar, quanto ao seu conteúdo, critérios de razoabilidade, em estrita consonância com os padrões fundados no principio da proporcionalidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público, devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive process of law”(CF, 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se  como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais […].” No julgamento da ADI 3324 em 16.12.04, no voto do Ministro Gilmar Mendes, tem-se um marco na aplicação do princípio da proporcionalidade. Nesta oportunidade, o Ministro realiza uma detalhada exposição a respeito do princípio bem como sua aplicação no caso em concreto: “Esse é o típico caso que se faz necessária uma avaliação de proporcionalidade, no sentido de se investigar se houve ou não um excesso do legislativo. O principio da proporcionalidade, também denominado principio do devido processo legal substantivo, em sentido substantivo, ou ainda, principio da proibição de excesso, constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um “limite do limite” ou uma proibição do excesso na restrição de tais direitos. A máxima da proporcionalidade, na expressão de Alexy, coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o principio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o principio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do principio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas  que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as  normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar as decisões em sentidos opostos.[…] Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade sem sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal […], há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto a produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).” No mesmo sentido, ao julgar a ADI 3112 (Estatuto do desarmamento), o voto do Ministro Gilmar Mendes é no sentido de aplicação do princípio da proporcionalidade na aferição da razoabilidade da lei restritiva: “Na medida em que a pena constitui a forma de intervenção estatal mais severa no âmbito da liberdade individual, e que, portanto, o Direito Penal e Processual Penal devem revestir-se de maiores garantias materiais e processuais, o controle de constitucionalidade em matéria penal deve ser realizado de forma mais ainda rigorosa do que aquele destinado a averiguar a legitimidade constitucional de outros tipos de intervenção legislativa em direitos fundamentais  dotadas de menor potencial ofensivo. Em outros termos, se a atividade legislativa de definição de tipos e cominação de penas constitui, prima facie, uma intervenção de alta densidade em direitos fundamentais, a fiscalização jurisdicional da adequação constitucional dessa atividade deve ser tanto mais exigente e rigorosa por parte do órgão que tem em seu encargo o controle da constitucionalidade das leis. Esse entendimento pode ser traduzido segundo o postulado do principio da proporcionalidade em sentido estrito, o qual, como ensina Alexy “pode ser formulado  como uma lei de ponderação cuja fórmula mais simples voltada para os direitos fundamentais diz: quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção”. […] Assim, um controle de evidência em matéria penal será exercido pelo Tribunal com observância de ampla margem de avaliação, valoração e conformação conferida constitucionalmente ao legislador quanto à adoção das medidas mais adequadas para a proteção do bem jurídico penal. Uma eventual declaração de inconstitucionalidade deve basear-se na patente idoneidade das medidas escolhidas pelo legislador para os objetivos perseguidos pela política penal. […] Nesse segundo nível, portanto, o controle de constitucionalidade estende-se à questão de se o legislador levantou e considerou diligente e suficientemente todas as informações disponíveis e se realizou prognósticos sobre as consequências da aplicação da norma, enfim, se o legislador valeu-se de sua margem de ação de “maneira sustentável”. […] Dessa forma, não se pode deixar de considerar que, no âmbito desse denominado controle de sustentabilidade ou de justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle) assumem especial relevo as técnicas procedimentais postas à disposição do Terminal e destinadas à verificação dos fatos e prognoses legislativos, como admissão de amicus curiae e a realização de audiências públicas previstos em nosso ordenamento jurídico pela lei 9.868/99. Em verdade, como venho afirmando em estudos doutrinários sobre o tema, no controle abstrato de normas não se procede apenas a um  simples contraste entre a disposição do direito ordinário e os princípios constitucionais. Ao revés também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional. Em outros termos, a aferição dos chamados fatos legislativos constitui parte essencial do chamado controle de constitucionalidade, de modo  que a verificação desses fatos relaciona-se íntima e indissociavelmente com a própria competência do Tribunal. […] No terceiro nível, o controle material intensivo (intensevierten inhaltlichen Kontrolle) se aplica às intervenções legislativas que, por afetarem intensamente bens jurídicos de extraordinária importância, como a vida e a liberdade individual, devem ser submetidas a um controle mais rígido por parte do Tribunal, com base no princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Assim, quanto esteja evidente a grave afetação de bens jurídicos fundamentais de suma relevância, poderá o Tribunal desconsiderar as avaliações e valorações fáticas realizadas pelo legislador para então fiscalizar se a intervenção no direito fundamental em causa está devidamente justificada por razões de extraordinária importância. […] Nesse terceiro nível, portanto, o Tribunal examina se a medida legislativa interventiva em dado bem jurídico é necessariamente obrigatória, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes. O controle é mais rígido, pois o Tribunal adentra o próprio exame da ponderação de bens e valores realizada pelo legislador.” Com menor intensidade de análise ao princípio da proporcionalidade, posicionou-se o Ministro Gilmar Mendes na Medida Cautelar na ADI 3090: “Há, em tal dispositivo, uma aparente inconsistência entre meios e fins. Busca-se, com a disposição, o combate a inadimplência. Mas é duvidoso que a ampla proibição ali contida para a revisão e o reajuste tarifários, seja evidentemente um meio apto para combater a inadimplência. Isto porque tal restrição ampla e irrestrita, ao desconsiderar, por exemplo, uma inadimplência pontual e conjuntural em relação a apenas um tipo de custo do concessionário, pode em verdade agravar e fomentar uma situação de desequilíbrio econômico-financeiro que somente perpetua a inadimplência. Também é plausível que a disposição não atenda à proporcionalidade em sentido estrito. Isto porque ante a ampla proibição ali contida, pode se imaginar que um pequeno adiamento de pagamento ali contida, pode representar o desequilíbrio global da concessão sem o reajuste e revisão.” Já no julgamento da ADI 855 houve intenso debate a respeito da adequação e necessidade da imposição de medição de botijões de gás por balanças a serem instaladas em todos os caminhões de entrega. Inclusive, a análise destas sub-regras deu-se também considerando laudo do Inmetro a respeito da impossibilidade técnica destas balanças funcionarem corretamente. Ao final, a lei paranaense 10.248/93 foi julgada inconstitucional por maioria por desatender ao princípio da proporcionalidade. Verifica-se uma evolução da aplicação do princípio da proporcionalidade por todo o Tribunal, no sentido de não só analisar as sub-regras da proporcionalidade, mas no sentido de tomar este princípio como postulado. No julgamento da Medida Cautelar na ADI 4467, expos o Ministro Gilmar Mendes: “O principal argumento levantado pelo Partido Político requerente é o de que a exigência contida no art. 91-A da Lei 9.504/97 constituiria uma limitação desproporcional ao exercício da cidadania. O princípio da proporcionalidade constitui um critério de aferição da constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais. Trata-se de um parâmetro de identificação dos denominados limites dos limites (Schranken-Schranken) aos direitos fundamentais; um postulado de proteção de um núcleo essencial do direito, cujo conteúdo o legislador não pode atingir. Assegura-se uma margem de ação ao legislador, cujos limites, porém, não podem ser ultrapassados. O princípio da proporcionalidade permite aferir se tais limites foram transgredidos pelo legislador. No caso, o direito fundamental em questão diz respeito, especificamente, ao direito de votar, como exercício da cidadania ativa. A questão, portanto, está em saber se, de acordo com um critério de proporcionalidade, a exigência do porte obrigatório do título de eleitor restringe de forma excessiva o direito fundamental de voto. O princípio da proporcionalidade funciona, aqui, como proibição de excesso do legislador (Übermassverbot). Para a aferição da proporcionalidade da medida legislativa, deve-se averiguar se tal medida é adequada e necessária para atingir os objetivos perseguidos pelo legislador, e se ela é proporcional (em sentido estrito) ao grau de afetação do direito fundamental restringido. No caso, o fim almejado pelo legislador é bastante claro: evitar fraudes e dar segurança ao processo de votação. Assim, é preciso questionar se, com o intuito de evitar fraudes e dar segurança ao processo de votação, o legislador pode exigir do eleitor o porte obrigatório de dois documentos: o título de eleitor e o documento de identificação civil. Estaria o legislador atuando dentro de suas margens de ação, ou restringindo de forma indevida o direito fundamental do voto?” No mesmo sentido se posiciou o Ministro Cezar Peluso a respeito da natureza jurídica do princípio da proporcionalidade: “Em segundo lugar, a proporcionalidade, a razoabilidade e outros critérios e postulados de que se valha a doutrina, na verdade não são normas, porque não são regra nem princípio constitucional. São apenas critério de interpretação de normas constitucionais, em caso de colisão, sobre o qual não vou me perder, porque tanto o voto do eminente Ministro Gilmar Mendes, como o do Ministro Celso de Mello já exauriram esta questão. Não há norma constitucional de razoabilidade, nem norma constitucional de proporcionalidade que pudesse estar sendo ofendida no caso!” Por fim, o Ministro Gilmar Mendes expõe a respeito da banalização da proporcionalidade, preocupação já presente nos votos do Ministro Eros Grau: “Vossa Excelência tocou bem nesse ponto, quando invoca diretamente a lesão ao princípio da proporcionalidade. Na verdade, e esse é o aprendizado comum, o que se tem que apontar é uma lesão a um dado direito fundamental, que teria sido violado pelo legislador ao dar uma dada disciplina, no caso, a exigência do título de eleitor, e não a lesão ao próprio princípio da proporcionalidade, até porque estamos a falar de um direito fundamental que foi disciplinado por uma lei e cuja reserva legal há de cumprir o princípio da proporcionalidade. Então, parece-me que aqui já se começa a tomar a nuvem por Juno. Por isso, inclusive, o princípio da proporcionalidade, muitas vezes o seu uso, ou o seu mal uso, é muito criticado, inclusive na jurisprudência americana, na forma do substantivo due process of law, exatamente porque se presta, muitas vezes a, vamos dizer assim, contrabandear conveniências da perspectiva estrita do eventual intérprete. Aqui, pode-se discutir a conveniência ou não de se ter o título, agora, diante da exigência, dizer que ela é desproporcional, parece-me realmente muito difícil, e, por isso, eu chamava a atenção, e nós estávamos em juízo de cautelar. Eu chamava a atenção para essa observação. Veja, houve lesão. O Ministro Toffoli, inclusive, tentava salvar essa interpretação, dizendo: houve lesão, sim, ao direito político de votar ao se exigir o título.” Por último, há intenso debate também a respeito do princípio da proporcionalidade na ADPF 54, onde discutia-se o aborto de feto anencéfalo. No voto do Ministro Cezar Peluso, há intensa exposição do conflito entre a proteção do feto anencéfalo a possibilidade da gestante em realizar o aborto terapêutico, aplicando-se o princípio da proporcionalidade para resolvê-lo: “O princípio da proporcionalidade e a ponderação de valores que lhe é inerente comportam reflexão. Os sistemas ocidentais não admitem valores absolutos. Não há como estabelecer, a priori, qual o que se reveste de maior peso, diante do reconhecimento de que são relativos e de que a sociedade é plural [41] [41] . Se os valores são relativos, não há como fundamentar um como superior ao outro. Isso implica que todos devem respeitar as percepções valorativas de mundo dos demais, inadmissíveis visões de mundo que, sob o argumento de superioridade, pretendam eliminar outras possíveis [42] [42] . É necessária a proibição de posturas que preguem a eliminação de outras formas de ver a realidade (inclusive ética), restringindo-se a liberdade que se põe contra a liberdade, acabando-se com o que ficou conhecido como paradoxo da liberdade [43] [43].[…] Vistos dessa forma, os valores, que pertencem à ética, adentram no mundo do Direito como princípios, ou seja, normas de caráter generalíssimo que orientam a realização do bem comum, não o bem como valor transcendente que todos devem respeitar porque vale em si mesmo (o Bem metafísico dos modelos clássicos do direito natural), mas o bem que permite uma razoável estabilidade da vida em sociedade. Esses valores, então, passam a fazer parte do ordenamento jurídico como condição da justiça (que se refere ao igual tratamento de todos) e direcionam as ações individuais e coletivas para a realização da vida boa, a vida que se deseja ter em sociedade [45] [45] . Assim, os valores entram no Direito como garantia do bom e do justo como formas de convivência harmônica de todos os modos de vida, não mais como o Bom e o Justo transcendentes que pretendem determinar como tudo deve ser e como todos devem agir. Transformados em princípios, os valores precisam conviver com as demais normas do ordenamento jurídico. Normas essas que determinam de maneira direta regras de conduta. Quer dizer, são comandos objetivos que pretendem regular em abstrato condutas que podem vir a ser concretas. São cogentes, portanto. Esse tipo de norma é aquele que a atual teoria da norma jurídica tem chamado de regra, exatamente para diferenciá-lo do outro tipo, os aludidos princípios. Pode-se dizer, então, que regras são normas de aplicação cogente e imediata, na medida em que procuram regular uma conduta específica. Assim, não podem sobreviver no ordenamento regras que determinem condutas contraditórias, pois as ações ou são proibidas ou são permitidas ou são livres. Já os princípios, para uma parte da teoria do direito contemporâneo, são normas de otimização de condutas, que procuram realizar os valores da justiça e da vida boa (no sentido já descrito) em sociedade. São preceitos, portanto, que só ganham concretude diante de casos concretos, pois são incapazes de determinar quais condutas exatamente estão sendo reguladas em abstrato [46] [46] .[…] Todavia, nessas situações, como escolher qual o princípio a aplicar e qual será afastado? Como já referido, princípios são valores que realizam as ideias de justiça e vida boa. Não podem se sobrepor uns aos outros, pois tal levaria à exclusão das formas de vida de parcela da sociedade. Portanto, não há uma ordem concreta de valores que eliminem ou se sobreponham a outros, de modo que não há hierarquia entre eles. Todos têm o mesmo status e, por isso, a mesma pretensão de aplicabilidade. Destarte, se a questão não se resolve no plano ontológico ou axiológico, há que encontrar um critério racional de argumentação para que o convencimento leve à aplicação de um princípio e ao afastamento do outro no caso em análise. É bom frisar: a busca é de um critério argumentativo, e não de peso de valores, pois, como já foi mais que repetido, um valor não pesa mais que outro em ordenamentos jurídicos democráticos. Tal critério precisa colocar os valores em disputa não em uma balança, para ver para qual lado a haste pende, mas em uma equação, para que, do ponto de igualdade entre eles, se possa transitar para uma sentença do tipo “se… então deve ser…”, em que apenas uma regra aparece. Como os princípios são normas que pretendem ter aplicabilidade em um caso concreto, a eventual aplicação precisa ser viável fática e normativamente [47] [47] . As condições fáticas devem ser cumpridas pelos critérios da necessidade e da adequação. Assim, um princípio será aplicado se for adequado para atingir o fim perseguido (o meio utilizado deve necessariamente levar ao fim que se busca) e necessário às exigências e expectativas do resultado diante de outros possíveis (os meios empregados para a realização do princípio devem ser os menos gravosos – se houver outros meios menos gravosos, a regra escolhida para realizar o princípio em tela é tida por desproporcional). Não obstante os dois critérios de realização fática, pode ocorrer que os dois princípios se mantenham aplicáveis ao caso, o que leva à situação de um deles vir a limitar o âmbito de atuação do outro. Esse é o limite jurídico, que, de acordo com o modelo teórico da ponderação, deve ser resolvido pelo chamado princípio da proporcionalidade em sentido estrito. É a técnica de aplicação deste terceiro subprincípio que demanda a ponderação de valores. Apesar da denominação, diante de tudo o que foi dito acima sobre regras e princípios, estes devem ser concebidos com regras de otimização de condutas para a máxima realização dos valores que os sustentam. Assim, diante de uma concorrência de princípios, o esforço hermenêutico deve se voltar para a realização máxima de um para justificar que o outro não seja aplicado. Ou seja, o peso das razões para a aplicação de um princípio deve ser maior do que o do outro no caso concreto. Mas esse peso precisa de um padrão intersubjetivamente compartilhado, caso contrário a escolha não passa de uma preferência pessoal do responsável pela solução do caso concreto.[…] O processo argumentativo passa, desse modo, a depender da aplicação do princípio da proporcionalidade com base nos seus subprincípios. A adequação está presente para os dois pontos de vista. Entender que a interrupção da gravidez em caso de feto anencefálico configura aborto é um meio adequado para proteger a vida do feto. Por outro lado, a garantia da saúde, da integridade física e psíquica e da liberdade da mulher pode ser feita por meio da interrupção da gestação. Em relação à necessidade, só é possível proteger plenamente a vida do feto caso ele esteja protegido também contra a gestante. Por outro lado, não há meio menos gravoso para proteger a saúde, a integridade e a liberdade da gestante do que permitir a interrupção da gestação.[…] A proporcionalidade em sentido estrito diz basicamente que, como algum princípio será afastado em benefício da realização de outro, quanto maior o grau de não realização de um princípio ou de dano a ele, maior deve ser o grau de satisfação do outro [49] [49] . A fórmula é a seguinte: Wi,j = Ii. Wi. Ri      ————– Ij. Wj. Rj Em linguagem natural, Wi,j é o quociente da relação do primeiro princípio (Pi) com o segundo (Pj). Ii é o grau de interferência do primeiro princípio no segundo quando realizado partir de um meio (M) qualquer. Wi e Wj são os pesos (no sentido de importância atribuída) abstratos de cada princípio. Ij é o grau de interferência que a proibição, para fins de proteção do segundo princípio, do meio utilizado para a realização do primeiro princípio causa neste. E Ri e Rj se referem à confiança das pressuposições empíricas concernentes a como a utilização do meio escolhido para a realização da ação propicia ou não a efetivação do primeiro princípio em detrimento da proteção ou não do segundo. A argumentação deve levar a um quociente (e a referência matemática é apenas exemplificativa, pois não há como estabelecer esses valores, o que quer dizer que equivalem ao grau de importância estabelecido para o caso concreto no processo argumentativo) maior ou menor que um. Se maior que um, é proporcional a realização do primeiro princípio. Se menor que um, é proporcional a intervenção para a defesa do segundo.” Conclusão Da análise de todos os acórdãos acima citados, verificou-se que o princípio da proporcionalidade há muito era utilizado no controle concentrado de constitucionalidade, seja para declarar inconstitucional ou para declarar a constitucionalidade da lei. Os primeiros acórdãos resultados da pesquisa mostraram que havia disparidade de conceitos e fundamentos do princípio da proporcionalidade, ora confundia-se com a razoabilidade, ora a razoabilidade estava contida na ideia de proporcionalidade. Verificou-se também que o Supremo Tribunal Federal incialmente adotava o princípio da proporcionalidade como decorrência do devido processo legal substantivo. Após anos de sua intensa aplicação, mesmo sem que fosse analisado de forma cuidadosa suas sub-regras, o Ministro Eros Grau crava posição de impossibilidade de se controlar a constitucionalidade de uma lei pelo cotejo com este princípio. Além de razões dogmáticas, invocava-se que a utilização deste princípio conferia ampla margem aos julgadores, tendendo a uma banalização na utilização deste princípio. Como resultado prático desta divergência, paulatinamente, os Ministros ao aplicarem o princípio da proporcionalidade, realizam uma longa exposição a respeito do mesmo, inclusive, cotejando a norma impugnada com as sub-regras de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, conferindo a estes acórdãos uma densa argumentação nos julgamentos, ressaltando que em algumas passagens persistia-se posições antigas. Por fim, com a evolução da aplicação deste princípio, já adotado como postulado pelo Supremo Tribunal Federal, há grande melhora na qualidade dos votos que o utilizam para fundamentar suas posições, consequentemente, o controle concentrado de constitucionalidade utiliza com frequência este postulado bem como vem sendo utilizado com melhor qualidade e fundamentação.
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Processo administrativo disciplinar: as possibilidades e impossibilidades da aplicação do princípio da insignificância em caso de atos ilícitos cometidos pelo agente público
O Princípio da Insignificância é considerado na literatura como um dos mais relevantes pilares do Direito Penal moderno, e utilizado como causa de exclusão da tipicidade, muito especialmente da tipicidade material, sendo por conta disso cercado de polêmicas. Tendo em conta estas questões, o presente artigo teve como objetivo analisar as possibilidades e impossibilidades da aplicação do princípio da insignificância em situações envolvendo a prática ilícita de agentes público. Trata-se de um estudo descritivo e bibliográfico, realizado por meio de artigos de livros e da Internet, na linguagem portuguesa. Os resultados mostram que a aplicação do Princípio da Insignificância, que tem por finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito de incidência da lei aquelas situações consideradas como de bagatela, enfrenta grande desafio quando de sua aplicação em casos envolvendo conduta danosa praticada pelo servidor público, havendo duas correntes que se posicionam sobre a questão: de um lado a corrente que acredita ser possível a sua aplicação, estando inserido neste contexto o Supremo Tribunal Federal, e de outro lado, a corrente que alega impossibilidade, como é o caso do Superior Tribunal de Justiça.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO A Administração Pública corresponde ao conjunto de agentes, órgãos e pessoas jurídicas destinadas à execução das atividades administrativas. É submetida ao princípio da ordem, da eficiência e da eficácia de seus atos, que criam mecanismos para impor aos agentes públicos, a obrigação de cumprir fielmente os preceitos da moral administrativa que regem sua conduta. Todavia, embora seja dever do agente público cuidar com toda retidão dos interesses da sociedade, o que se nota na atualidade é o alastramento de esquemas de corrupção manipulação de orçamentos e desvio de recursos públicos, por várias alas do setor público (CASTRO, 2010; CARMONA, 2012). É sabido que a moralidade da Administração Pública não pode ser conspurcada, e que devem ser penalizados todos os atos que contrariam este dever, afirma Carmona (2012). Para isso, lembra Moscon (2014), a Administração Pública dispõe de inúmeros mecanismos de punição contra atos lesivos de seus servidores, dentre os quais destaca-se o Processo Administrativo Disciplinar, por meio do qual a Administração pode averiguar o cometimento de infração pelo agente público e aplicar a devida penalidade. Mas, ainda que seja assim, conforme comentários de Oliveira (2013, p. 5), costuma-se balizar o conceito de irregularidade no serviço público sob “as tintas da razoabilidade e da proporcionalidade, a fim de impedir a indevida sujeição de agentes público a drásticos e constrangedores procedimentos apuratórios”. Nessa esteira insere-se o Princípio de Insignificância – que analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem, segundo Oliveira (2013), o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade, examinada na perspectiva de seu caráter material. Para Ribeiro (2013), a orientação jurisprudencial e doutrinária é no sentido de considerar o Princípio da Insignificância como medida de política-criminal, na medida em que funciona como vetor interpretativo restritivo do tipo penal, objetivando a exclusão da incidência do Direito Penal perante as situações que resultem em ínfima lesão ao bem jurídico tutelado. Trata-se, portanto, de tema polêmico na jurisprudência do STF e STJ, havendo segundo Silva (2014) decisões recentes nos dois sentidos (possibilidades e impossibilidades). Estas e outras questões são temas que são analisados no transcorrer do estudo, cuja intencionalidade foi analisar as possibilidades e impossibilidades da aplicação do princípio da insignificância em situações envolvendo a prática ilícita de agentes públicos, objetivando especificamente traçar breve panorama sobre a improbidade, que sob diversas formas vem se alastrando no setor estatal; contextualizar estudos sobre o Processo Administrativo Disciplinar, focalizando suas finalidades no que se refere à apuração dos ilícitos praticados no âmbito público, e discorrer sobre o princípio da insignificância, destacando as divergências quanto à sua aplicabilidade em caso de desonestidade do agente público. Utilizou-se para tanto um levantamento bibliográfico e documental, além da legislação acerca do tema para subsidiar a pesquisa, que teve como ponto de partida a seguinte indagação: Quais as possibilidades e impossibilidades da aplicação do princípio da insignificância em situações envolvendo a prática ilícita de agentes público contra o patrimônio público? 1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PANORAMA DOS ATOS ILÍCITOS/CORRUPÇÃO Em sentido objetivo a Administração Pública abrange as atividades exercidas pelas pessoas jurídicas, órgãos e agentes incumbidos de atender concretamente às necessidades coletivas (DI PIETRO, 2007). Este conjunto tem a responsabilidade de atender as necessidades e interesses da população, gerindo o patrimônio. Para exercer as atividades que lhes são atribuídas, frisa Rodrigues (2012), os servidores públicos possuem alguns poderes e deveres, e devem exercer suas atribuições de modo eficiente e honesto, buscando sempre o melhor para a comunidade e prestando contas do que está sendo feito. Corroborando com tais assertivas Moscon (2014, p. 8) afirma que a Administração Pública deve pautar sua atuação de acordo com os padrões éticos, em estrita observância a aspectos relacionados à honestidade, à lealdade e à boa-fé. “A Administração Pública deverá atentar-se não apenas ao lícito, mas as regras da boa administração, aos princípios de equidade, justiça e honestidade, bem como à moral e aos bons costumes”, assevera o autor. Com efeito, a moralidade administrativa, como lembra Meireles (2008) é na atualidade pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública. Todavia, nos últimos anos, uma das principais preocupações nestas instituições tem sido o envolvimento cada vez maior de agentes públicos em atos fraudulentos e de corrupção. Geralmente, as fraudes e os crimes de corrupção, que ocorrem em boa parte das organizações, sejam públicas ou privadas, acontece por falta de percepção e de ações proativas dos gestores. Normalmente as denúncias vêm de rumor de fraude na empresa, ou de um funcionário honesto que denuncia um desonesto. Em muitos casos, o crime pode estar sendo perpetrado há muito tempo, contando inclusive com a ajuda de outros colaboradores da empresa (GOMES, 1996). Para muitos estudiosos do assunto, a raiz da corrupção estaria no desejo imoderado da fruição de bens e riquezas. E neste contexto ocorreriam os abusos, os favorecimentos, os privilégios e outras condutas incompatíveis com os interesses da sociedade. Para outros, a corrupção é um mal que está enraizado em muitas instituições e ela não se limita mais somente ao sentido figurativo de suborno, depravação e devassidão. Esta é uma realidade que se reflete também no setor estatal, onde a corrupção e a improbidade administrativa envolvendo órgãos públicos, nos últimos tempos, vêm ganhando densidade e impactando a opinião pública. Nos comentário de Miranda (2014, p. 2): “Um dos mais graves problemas enfrentados pela coletividade é justamente o de garantir uma administração proba, o que atualmente parece uma utopia, uma vez que diuturnamente a população brasileira testemunha, estarrecida, inúmeros escândalos de corrupção envolvendo agentes públicos e políticos de diversos escalões, que agem de forma a capturar o Estado fazendo com que ele funcione a seu favor, numa total inversão de valores.” Com efeito, nos últimos temos, a sociedade brasileira acompanha estarrecida as notícias não só sobre a má gestão de recursos públicos, mas sobre dinheiro do Estado ser desviado por meio de esquemas de fraudes e corrupção que prosperam, de forma quase impune, pelo país afora (NASCIMENTO, 2014). Conceitualmente e sob o prisma léxico, a corrupção, segundo Garcia (2014) tem muitos significados. Tanto pode indicar a idéia de destruição como a de mera degradação, ocasião em que, segundo o autor, assumirá uma perspectiva natural, como acontecimento efetivamente verificado na realidade fenomênica ou meramente valorativa. No entendimento de Silva (2014), corrupção denota decomposição, depravação, desmoralização e suborno, sendo associada também a um ato ilegal, no qual dois agentes (um corrupto e outro corruptor) travam relação ‘fora-da-lei’, envolvendo a obtenção de propinas. “O senso comum identifica a corrupção como um fenômeno associado ao poder, aos políticos e às elites econômicas. Mas, igualmente, considera a corrupção algo freqüente entre servidores públicos […] que usam o “pequeno poder” que possuem para extorqui renda daqueles que teoricamente corromperam a lei – ultrapassando o sinal vermelho ou não pagando impostos (SILVA, 2014, p. 4).” A corrupção vista como abuso praticado pelo agente para benefício privado está relacionado, segundo Pereira e Campos (2013, p. 3) aos incentivos e aos problemas de agente-principal, especialmente onde há problema de assimetria de informação, que repercutem negativamente na eficiência burocrática e institucional e na geração de incentivos para o comportamento corrupto. “Dada a preferência ao risco do agente, a fragilidade institucional, inclusive a estrutura legal, gera oportunidade para adoção de atitudes que rendam benefícios diante de práticas ilícitas” salientam os autores. E deste modo, a corrupção, considerada como um dos grandes males que afetam a sociedade espalha-se pelo setor estatal. Como cita Silva (2014), a notícia de servidores envolvidos em corrupção para obtenção de ganhos próprios, ferindo as leis e os regulamentos em vigor e fugindo das normas aceitáveis para atingir fins privados, tem sido uma prática freqüente. Na concepção de Brei (1996), existem razões para a proliferação da corrupção no setor estatal, dentre as quais a ausência de uma ética do trabalho no serviço público, envolvendo falta de comprometimento e responsabilidade, além de desrespeito a regras e regulamentos; a pobreza e desigualdade, que levam indivíduos a tolerarem e até mesmo a se envolverem com ações corruptas; a expansão do papel do Estado e da burocracia, com crescimento do poder discricionário do funcionário, que acaba possibilitando abuso, e existência de uma opinião pública fraca e apática, que não consegue funcionar como uma contraforça. Frente a esta realidade, o governo bate recordes de expulsões de servidores públicos por envolvimento em atos de corrupção dentro da administração, produzindo, anualmente, uma quantidade considerável de demissões, revelando a intensidade de atos de corrupção a que a máquina estatal está exposta (MORAES, 2009). Diante dessa situação, frisa Moscon (2014), o Estado vem fazendo uso de mecanismos legais que visem coibir a corrupção e quaisquer outros meios fraudulentos utilizados pelos servidores contra a entidade pública, impedindo que estes permaneçam impunes, porque a impunidade, além do dano irreparável ao erário público, transforma-se em incentivo à repetição da prática criminosa. Neste contexto insere-se o Processo Administrativo Disciplinar, um instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições (MARTINS, 2002). 2 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR (PAD) A literatura pertinente mostra que o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) é um instrumento pelo qual a Administração Pública exerce seu poder-dever para apurar as infrações funcionais e aplicar penalidades aos seus agentes públicos e àqueles que possuem uma relação jurídica com a administração. Conforme proposições de Moscon (2014, p. 10), a Administração Pública, responsável pelo funcionamento do Estado, deve exercer controle sobre suas atividades, bem como de seus servidores, poder este denominado “poder disciplinar”, que consiste em apurar as infrações administrativas cometidas por seus agentes públicos impondo-lhes as respectivas penalidades. “Diante do cometimento, pelo servidor público, de falta funcional, cabe à Administração Pública proceder às devidas apurações do ato ilícito, aplicando, se necessária, a punição cabível”, frisa o autor Nas premissas de Martins (2002, p. 3): “O processo administrativo disciplinar é o instrumento eficaz que objetiva a supremacia do Estado diante daqueles que o servem, submetidos ao poder disciplinar, que vem a ser a faculdade de punir inteiramente as infrações funcionais […] a sanção administrativa tem como fundamentos a regularidade do serviço público, a conservação de seu prestígio para com os seus administrados, a reeducação dos servidores públicos, difusão dos princípios éticos e a exemplificação.” O Processo Administrativo Disciplinar, portanto, é o instrumento legal utilizado para apuração de responsabilidade de servidores públicos por infração praticada ou relacionada ao exercício do cargo/função. Apontando aspectos históricos da questão, Moscon (2014) relata que desde o período imperial, o Processo Administrativo Disciplinar está presente no ordenamento jurídico brasileiro. Por conta da predominância, na sociedade da época, de arbitrariedades praticadas pelos governantes e seus servidores, o PAD, explica o autor, teve suas primeiras menções jurídicas realizadas por volta de 1822. “O referido instituto foi ganhando espaço no mundo jurídico no decorrer dos anos […] teve maior evolução com o advento da Constituição Republicana de 1891, de modo que atualmente a Administração Pública o considera essencial no controle de infrações, arbitrariedades e ilicitudes praticadas pelos seus servidores (MOSCON, 2014, p. 8).” Desse modo, o Processo Administrativo Disciplinar foi como relata Pontenza (2010 apud MOSCON, 2014), evoluindo no tempo, conforme a evolução do próprio Estado e de seu aparelho burocrático. Nos comentários do autor: “Esse proceder visou corrigir os erros que influenciavam diretamente a ineficiência da prestação de serviço estatal. No decorrer dos anos, foram criadas as estruturas mais sólidas do processo administrativo disciplinar; como consequência, gerou-se o controle mais efetivo e clarividente de todo o seu conteúdo, possibilitando, finalmente, que resultassem garantidos o direito à ampla defesa e o direito contraditório, bem como aos demais princípios informadores do sistema jurídico brasileiro (PONTENZA, 2010 apud MOSCON, 2014, p. 8).” Em tempos mais atuais, o Processo Administrativo Disciplinar passou a ser o meio democrático de averiguação da responsabilidade de quem supostamente tenha cometido falta funcional de qualquer natureza contra a Administração Pública (MOSCON, 2014). Segundo Cardozo et. al. (2013), o processo administrativo disciplinar é informado pelos princípios gerais que regem a Administração Pública e tem seu pressuposto de validade na observância do devido processo legal que assegure o acesso ao contraditório e a ampla defesa. “O processo administrativo deverá ser conduzido com balizamentos nos princípios constitucionais que tratam dos direitos e garantias individuais e também naqueles que regem a Administração Pública, a fim de que desde a sua instauração até o julgamento final sejam assegurados direitos fundamentais do acusado (CARDOZO et. al. 2013, p. 5).” Destaca ainda o mesmo auto que a instauração do Processo Administrativo Disciplinar é ato vinculado, pois toda autoridade que tiver conhecimento de irregularidades no âmbito do serviço público tem o dever de promover a sua apuração ou representar à autoridade competente. Uma vez comprovada a infração disciplinar pela própria Administração Pública, por meio de sindicância punitiva ou de processo administrativo disciplinar poderá resultar ao servidor público faltoso, a aplicação das sanções previstas no artigo 127 da Lei nº 8.112,  quais sejam: a) advertência; b) suspensão; c) demissão; d) cassação de aposentadoria; e) destituição de cargo em comissão; f) destituição de função comissionada. O Processo Administrativo Disciplinar compreende as seguintes fases, conforme Controladoria-Geral da União (2013) e Pepeu (1999): a) Instauração: é um ato exclusivo da autoridade com competência regimental ou legal para tanto, e realiza mediante a publicação de Portaria que designa a Comissão Disciplinar que atuará no apuratório. A referida Portaria deve conter os dados funcionais dos membros da Comissão (três servidores efetivos estáveis), a indicação de qual deles exercerá a função de presidente, o processo que será objeto de análise e menção à possibilidade de a Comissão apurar fatos conexos aos já contidos no processo principal. b) Inquérito: é aquela em que o Trio Processante ora designado realmente irá apurar os fatos utilizando-se de todos os meios de provas admitidos pelo direito, ou seja, é nesse momento que a Comissão, obedecendo aos princípios do contraditório e da ampla defesa, produzirá ou colherá todos os elementos que lhe permitam formar e exprimir a convicção definitiva acerca da materialidade e autoria dos fatos irregulares ou mesmo da inexistência de tais fatos. Esta fase é dividida em três subfases: – Instrução: aquela em que, sob o manto do contraditório e da ampla defesa, são produzidas pela Comissão Disciplinar as provas necessárias ao esclarecimento dos fatos; – Defesa: Garantida de forma expressa na Constituição como princípio que deve reger todos os processos, quer em área federal, quer em área administrativa (CF/88, art. 5º, LV), nesta fase o servidor ora indiciado tem o prazo legal de dez (10) dias para apresentar sua Defesa Escrita, nos termos do § 1º do art. 161 da Lei nº 8.112/90. Na hipótese de haver dois ou mais indiciados, esse prazo será comum e de 20 dias. Nessa peça o indiciado apresentará sua versão, sua defesa em relação aos fatos que lhe foram imputados no Termo de Indiciação. – Relatório: a mencionada defesa, após devidamente apreciada pela Comissão Disciplinar, será objeto de um Relatório Final, mediante o qual a Comissão irá se pronunciar pela última vez no feito apresentando sua convicção pela eventual transgressão legal ou regulamentar que entenda ter ocorrido ou pela inocência do servidor indiciado. Tal documento (que deve ser sempre conclusivo pela culpa ou inocência do servidor então indiciado ou pela inocência do servidor que não tenha sido indiciado) é enviado à autoridade instauradora dos trabalhos disciplinares, dando início à fase do julgamento. c) Julgamento: sendo a autoridade instauradora competente para infligir a penalidade por ventura aplicável e havendo ainda prazo legal para tanto, deverá fazê-lo, a não ser que a proposta do relatório esteja contrária às provas presentes nos autos. Em síntese, como comenta Mattos (2014), o princípio da impessoalidade no Processo Administrativo Disciplinar (PAD) exige uma apuração séria e efetiva, para que assim possa absorver os inocentes e condenar os que realmente são culpados. Nas palavras do autor: “Esse é o plasmado da verdade real, ancorada no ideal do ius puniendi do Estado, que somente será acionado quando houver fatos ou indícios suficientes a serem investigados, sem excessos ou abusos do direito de punir. O julgamento acatará o relatório da Comissão de Inquérito, salvo quando contrário às provas dos autos, pois não se julga por presunção e sim por certeza. É o princípio da livre persuasão racional conjugado com o indelegável dever de fundamentar a decisão proveniente da competente autoridade administrativa (MATTOS, 2014, p. 2)” Assim, diz o autor citado, como deve prevalecer no direito administrativo disciplinar, o compromisso de se buscar a verdade real, demonstrada por completo pela provas dos autos, incluindo-se nesse rol, o processo administrativo disciplinar, que visa apurar os atos de improbidade administrativa. “A apuração disciplinar, por ser mais célere do que a tramitação judicial da ação de improbidade administrativa, somente poderá punir o servidor com a demissão se presentes os elementos autorizadores dessa penalidade, sob pena de reforma do ato de demissão pela via do Poder Judiciário. Há que se ter critérios no apenamento administrativo, não podendo este ser utilizado como instrumento de perseguição, pois o direito sancionatório possui prerrogativas e princípios que deverão ser observados (MATTOS, 2014, p. 3).” Essa também é a opinião de Silva (2013), quando afirma que atos funcionais cometidos por servidores que podem ser considerados crimes não serão administrativamente apurados como tal, em função da independência das instâncias, da harmonia entre os Poderes e das competências exclusivas de cada Poder. Concordando com tais premissas Oliveira (2013, P. 2) se expressa afirmando que procedimentos investigativos da Sindicância e do Processo Administrativo Disciplinar “não podem ser inaugurados açodadamente. Eles reclamam a presença de indícios suficientes de autoria e materialidade”. Assim sendo, conforme observações de Pinho (2011), diante de um caso concreto, cabe a Administração Pública, na apuração do ato ilícito, observar alguns requisitos, bem como respeitar os princípios constitucionais orientadores do processo administrativo disciplinar. Não se trata, segundo a autora, de processo de cunho inquisitório, tendo definidos por lei os princípios e fases a serem seguidos para que tenha validade e eficácia. Embora inúmeros autores entendam que a improbidade administrativa não está contida na modalidade responsabilidade civil, segundo Gomes (2014), não se pode olvidar que a improbidade tem aspectos civis, administrativos. Assim, diz o autor, o servidor, além de ter de ressarcir o dano à luz do Código Civil, poderá sofrer as sanções do artigo 12 da Lei nº 8.429/1992. A improbidade é um mal, sem dúvida, de repercussões graves, pois gera efeitos nocivos para toda a estrutura social, e a improbidade administrativa configura-se como a conduta do servidor que ao atuar de forma indevida, promove o desvirtuamento da Administração Pública (BARBACENA FILHO, 2011; PIMENTEL, 2011). A legislação pune severamente esta prática. Mas, segundo Vico (apud PINHO, 2011), ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social sem, contudo, dispor de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. Todavia, como o servidor público, é pessoa legalmente investida em cargo de provimento efetivo ou em comissão, com denominação, função e vencimento próprios, número certo e remunerado pelos cofres públicos (Lei nº 10.460/88, artigo 3º), para que a punição aconteça em caso de conduta incompatível com a moralidade da Administração Pública, devem ser empregados dispositivos legais que proporcionem os meios regulares de defesa (MOSCON, 2014: PIMENTEL, 2012). Neste sentido, o Princípio da Insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, ou para afastar a tipicidade das condutas pela existência de uma efetiva lesão ao bem jurídico tutelado (CARMONA, 2012; PINHO, 2011). De acordo com Greco (apud PINHO, 2011), o Princípio da Insignificância tem por finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito de incidência da lei aquelas situações consideradas como de bagatela 3 O PRINCÍPIO DE INSIGNIFICÂNCIA: ORIGEM E DIMENSÃO Princípio, diz Mello (2006) é o mandamento nuclear de um sistema; dele irradiam valores que vão guiar o ordenamento jurídico. “Deve ser analisado como uma espécie de norma jurídica, com natureza política e ética. Pode ser considerado como um valor fundante do ordenamento jurídico. É uma disposição essencial que se propaga sobre as normas, servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico (MELLO, 2006, p. 629).” No caso do Princípio da Insignificância, este tem suporte na premissa de que o Direito Penal não deve se ater à conduta de pequena monta, que causam maiores danos sociais ou materiais, em detrimento de conduta efetivamente danosas e que provocam desequilíbrios efetivos nas relações jurídicas em sociedade (GALVÃO et. al. 2014). Destacando aspectos históricos da questão, Carmona (2012) e Ribeiro (2014) relatam que o Princípio da Insignificância originou-se do Direito Romano e que a sua formulação teórica com possibilidade de restringir o alcance da tipicidade se deve a Claus Roxim, que em 1964, na Alemanha, o reintroduziu na doutrina penal. De caráter civilista, afirmam Carmona (2012) e Ribeiro (2014), o Princípio da Insignificância tem como fundamento o brocardo de minimis non curat praetor, que significa que um magistrado deve desprezar os casos insignificantes antes de cuidar das questões realmente inadiáveis. Em outros termos, sendo a lesão insignificante não há necessidade da intervenção do Direito Penal e, consequentemente, da incidência de suas graves reprimendas. “O princípio da insignificância é um princípio geral e ordenador do Direito Penal incidindo sobre todas as normas de cunho penal, e não somente sobre aquelas com características patrimoniais. Cunhá-lo, com base na patrimonialidade, é amputar uma grande parcela de sua aplicabilidade esvaziando-o quase que por completo (RIBEIRO, 2014, p. 4).” Apesar de sua origem alemã, o Princípio da Insignificância, revela a autora citada, ganhou espaço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo atualmente aceito de forma majoritária, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Desse modo, diz Toledo (2012, p. 133): “Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.” Sendo assim, exemplificando, o mesmo autor salienta que no sistema penal brasileiro: a) o dano do artigo 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; b) o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; c) o peculato do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que se tem visto em processos envolvendo servidores públicos, acusado de peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; d) a injúria, a difamação e a calúnia dos artigos 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem consequências palpáveis. Estas, portanto, são as proposições de Toledo (2012) com relação ao Princípio de Insignificância, que como tantos outros autores que se dedicam ao estudo deste princípio, entendem que este tem conseguido fixar critérios para a conceituação e o reconhecimento das condutas típicas afetas ao referido princípio, com base na natureza fragmentária e subsidiária do Direito Penal, apesar dos entraves ainda existentes. Para Mendes (2013), o grande problema da jurisprudência para aplicar o Princípio da Insignificância diz respeito à segurança jurídica uma vez que condutas semelhantes podem receber valorações distintas de diferentes juízos, acarretando, desta maneira, soluções diversas para uma mesma situação. 4 COMO SE APLICA O PRINCÍPIO DE INSIGNIFICÂNCIA EM CASOS DE ILICITUDE DO SERVIDOR PÚBLICO – DAS POSSIBILIDADES E DAS IMPOSSIBILIDADES A aplicação do Princípio da Insignificância tem sido considerada tema polêmico, na doutrina e na jurisprudência do direito penal, havendo teses em sua defesa e rejeição por outro lado. Para os opositores, não há como aferir o que venha a ser insignificante, quais, verdadeiramente, são os delitos de bagatela. Outros sustentam que há a inaplicabilidade do princípio, quando o legislador incrimina expressamente condutas de pouca relevância (PINHO, 2011). No caso da tipicidade do ilícito praticado pelo servidor público, a aplicação do Princípio da Insignificância tem sido cercada de controvérsias. De acordo com Azevedo (2011), a posição do Superior Tribunal de Justiça é absolutamente contrária ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (que mantém posição favorável), posicionando-se no sentido da inaplicabilidade do Princípio da Insignificância aos crimes contra a Administração Pública, pois compreende que não se deve levar em conta tão somente o montante do prejuízo eventualmente sofrido pela Administração Pública, mas, sobretudo, a violação dos postulados éticos e morais do servidor e/ou gestor ímprobo, que deveria portar-se de acordo com a moralidade e estrita legalidade. Discorrendo sobre o assunto Dupret (2014, p. 8) tece o seguinte comentário: “Nossos Tribunais Superiores – Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, por ambas as turmas, vêm exigindo o preenchimento de requisitos cumulativos para a aplicação do princípio da insignificância. Desta forma, par que possa reconhecer a atipicidade material, o que atestaria uma ofensa pouca relevante ao bem jurídico tutelado, se exige a mínima ofensividade da conduta, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, ausência de risco social e inexpressividade da lesão jurídica causada.” Destacando as duas posições antagônicas, Azevedo (2011) mostra as seguintes situações: a) Posicionamento do Supremo Tribunal Federal: “Para que seja razoável concluir, em um caso concreto, no sentido da tipicidade, mister se faz a conjugação da tipicidade formal com a tipicidade material, sob pena de abandonar-se, assim, o desiderato do próprio ordenamento jurídico criminal. Evidenciando o aplicador do direito a presença da tipicidade formal, mas a ausência da tipicidade material, encontrar-se-á diante de caso manifestamente atípico. Não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a subtração de objetos da Administração Pública, avaliados no montante de R$ 130,00 (cento e trinta reais), e quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.” (STF. HC 107.370/SP). b) Posicionamento Superior Tribunal de Justiça: “PENAL. PREFEITO. UTILIZAÇÃO DE MAQUINÁRIO PÚBLICO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Não é possível a aplicação do princípio da insignificância a prefeito, em razão mesmo da própria condição que ostenta, devendo pautar sua conduta, à frente da municipalidade, pela ética e pela moral, não havendo espaço para quaisquer desvios de conduta. 2. O uso da coisa pública, ainda que por bons propósitos ou motivado pela “praxe” local não legitima a ação, tampouco lhe retira a tipicidade, por menor que seja o eventual prejuízo causado. Precedentes das duas Turmas que compõem a Terceira Seção. 3. Ordem denegada.” As divergências quanto à aplicabilidade do Princípio da Insignificância, portanto, são grandes. Na perspectiva de Azevedo (2011), o problema reside na falta de uma análise mais aprofundada do princípio e de seus requisitos, geralmente relegado à fragilidade da abordagem casuística da sua aplicabilidade ou não. “Para nós, o princípio da insignificância não possui uma limitação casuística, inexistindo infração penal que não possa ser submetida à sua aplicabilidade. Obviamente, diante de cada caso concreto é que o interprete constatará a possibilidade ou não da aplicação do princípio da insignificância, independentemente do bem jurídico tutelado, e, tampouco, do crime cometido. Nesta linha de intelecção, compreendemos que o simples fato do patrimônio lesado pertencer à administração pública, ainda que venhamos a levar em consideração a violação ética e os postulados morais, tais situações não transformam o delito de peculato, por exemplo, num delito intocável quanto à possibilidade da análise de sua tipicidade material (AZEVEDO, 2011, p. 4).” Dando um parecer a respeito da questão Moreira (2008, p. 5) posiciona-se afirmando que se tornou corriqueira a decisão que declara a atipicidade de uma conduta que lesa de modo ínfimo o bem jurídico protegido. “Subtração de bens que têm valor de poucos reais inevitavelmente levará à absolvição pelo Superior Tribunal de Justiça”, assinala o autor, fazendo ainda o seguinte comentário: “Não é possível aceitar-se atos “um pouco imorais”, mesmo em nome dos princípios da eficiência e da proporcionalidade. Há que se exigir a máxima retidão das pessoas que cuidam dos interesses de toda a população. Assim, todos os atos ilegais e, portanto, imorais, dos agentes públicos, no exercício de suas funções, devem ser penalizados. Mais ainda: exigir que as condutas dos agentes públicos estejam de acordo com limites morais estritos é, provavelmente, a melhor maneira de proteger os direitos individuais contra o abuso do poder estatal (MOREIRA, 2008, p. 5).” Esse é um raciocínio que segundo o mesmo autor leva a uma conseqüência: “Se não pode ser aplicado o princípio da insignificância aos atos de improbidade administrativa, também não é possível sua aplicação aos crimes contra a administração pública cometidos por funcionários públicos, como peculato e prevaricação, uma vez que são, obviamente, atos imorais. Nesses termos, a subtração de R$5,00 pode ser considerada como fato atípico, mas, nunca, o desvio do mesmo valor por agentes públicos (MOREIRA, 2008, p. 5).” Analisando as possibilidades e as impossibilidades do Princípio da Insignificância ser aplicado em improbidade administrativa, Carmona (2012) destaca o seguinte: a) Das possibilidades Para os adeptos da possibilidade de aplicação do princípio, a punição administrativa está inserida no conceito do poder punitivo do Estado e, como tal não pode ser preterida dos avanços do mundo jurídico com relação ao princípio da insignificância. Em outros termos, uma pena administrativa não deve ensejar uma resposta mais rigorosa do que aquela que seria aceita no sistema criminal, motivo pelo qual não se poderia deixar de aplicar alguns institutos penais no direito administrativo. “O tratamento dado às sanções administrativas e penais deve ser análogo, uma vez que há uma disposição em considerar estas sanções como parte do direito sancionador ”, salienta Carmona (2012, p. 4), que exemplificando, comenta que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do Chefe de Gabinete do Município de Vacaria/RS, acusado pelo Ministério Público Estadual de utilizar veículo municipal e três servidores integrantes da Guarda Municipal para transportar bens particulares, consentiu na possibilidade de aplicação do princípio da insignificância na lei de improbidade administrativa, conforme se verifica da ementa abaixo transcrita: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DANO IRRELEVANTE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. A prosaica importância de oito reais e quarenta e sete centavos que ensejou toda a movimentação do aparato judiciário, desde o inquérito civil até a propositura da ação civil pública, culminando em desproporcional sanção, poderia ensejar, quando muito, multa do mesmo porte, também por isso irrelevante. O princípio da insignificância cunhado pelos penalistas, têm como atípicas ações ou omissões que de modo ínfimo afetem o bem jurídico tutelado. Na verdade, tanto na esfera penal quanto tratando-se de ato ímprobo, a incidência indiscriminada da norma, sem que tenha o julgador a noção da proporcionalidade e da razoabilidade, importa materializar a opressão e a injustiça. Por isso, condutas que do ponto de vista formal se amoldam ao tipo não devem ensejar punição, quando de nenhuma relevância material. O princípio da insignificância dá solução a situações de iniqüidade na medida em que descriminaliza condutas que embora formalmente típicas, não atingem o bem jurídico protegido ou o atingem de modo irrelevante. Apelo provido” (TJRS, 2006). É necessário, portanto, dentro da legalidade, preferir o caminho que combate a iniquidade. É a maneira correta de assim proceder é corajosamente estimular a mitigação da obrigatoriedade, sem quebra da legalidade (MAZZILLI, 1993 apud CARMONA, 2012). b) Das impossibilidades Para os que apregoam a não possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância para os agentes que praticam atos de improbidade, aqueles que cometem atos de improbidade lesam bem jurídico fundamental ao normal funcionamento da administração pública, qual seja, a moralidade. Sendo assim não há ofensa que seja insignificante em relação à moralidade e probidade administrativas, constitucionalmente asseguradas. Segundo Ministro Herman Benjamin, afirma Carmona (2012), o princípio da moralidade está conectado ao conceito de adequada administração, ao elemento ético, ao interesse público e a honestidade. Impossível assim, aceitar que uma ação afronte "só um pouco" a moralidade. Para este Ministro (apud CARMONA, 2012): “Nem toda irregularidade administrativa caracteriza improbidade, nem se confunde o administrador inábil com o administrador ímprobo. Contudo, se o juiz, mesmo que implicitamente, declara ou insinua ser ímproba a conduta do agente, ou reconhece violação aos bens e valores protegidos pela Lei da Improbidade Administrativa (= juízo de improbidade da conduta), já não lhe é facultado – sob o influxo do princípio da insignificância, mormente se por “insignificância” se entender somente o impacto monetário direto da conduta nos cofres públicos – evitar o juízo de dosimetria da sanção, pois seria o mesmo que, por inteiro, excluir (e não apenas dosar) as penas legalmente previstas. (…) A conduta ímproba não é apenas aquela que causa dano financeiro ao Erário. Se assim fosse, a Lei da Improbidade Administrativa se resumiria ao art. 10, emparedados e esvaziados de sentido, por essa ótica, os arts. 9 e 11. Logo, sobretudo no campo dos princípios administrativos, não há como aplicar a lei com calculadora na mão, tudo expressando, ou querendo expressar, na forma de reais e centavos.” (STJ, 2010) Assim, para os adeptos da impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos atos de improbidade administrativa, o comportamento moral, ético deve sempre ser observado pelos indivíduos que compõem a Administração Pública, porquanto praticam atos administrativos que garantem uma maior e melhor qualidade de vida para todos os cidadãos (CARMONA, 2012) O fato é que, como cita Pinho (2011) a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância no Processo Administrativo Disciplinar é tema novo e tem causado muita desconfiança entre os que aplicam o direito administrativo punitivo, muito especialmente porque o serviço público é composto de um emaranhado de regras e práticas próprias, constituindo-se em um universo diferente daquele estudado pelo Direito Penal. A problemática, afirma a mesma autora, pode ser trazida para o âmbito do Direito Administrativo Disciplinar. Mas, diz Pinho (2011), a transposição do princípio da insignificância para o Direito Disciplinar deve considerar as peculiaridades desse ramo do Direito, mormente em relação às especificidades do serviço público e aos princípios constitucionais e legais que regem a Administração Pública. Nas explicações da autora: A primeira dificuldade, ao se tentar transplantar o princípio da insignificância para a esfera disciplinar, reside no fato de que tal comando se utiliza de um conceito fluido e aberto. Nesse caminho, indaga Pinho (2011): O que poderia ser entendido por delito de bagatela, ou como se determinariam condutas de pouca relevância? Conclui a autora: “Na verdade a aplicação do Princípio da Insignificância exigirá a utilização do conteúdo interpretativo dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Além disso, seus conceitos não delineados sempre exigirão acurada análise do caso concreto (PINHO, 2011, p. 23).” Enfim, a verdade é que, certamente, a adoção do Princípio da Insignificância, juntamente com a ponderação de outros princípios e interesses jurídicos, contribuirá para afastar a instauração de inúmeros processos administrativos disciplinares que se acumulam no seio da Administração Pública, onerando os cofres públicos e desviando servidores de suas funções precípuas para apurar responsabilidade por conduta inapropriada na esfera administrativa disciplinar (PINHO, 2011). Filiando-se aos adeptos das possibilidades de aplicação do Princípio de Insignificância aos crimes contra a Administração Pública, Azevedo (2011) comenta que este princípio pode e dever ser aplicado, desde que diante de caso concreto de violação do bem jurídico. Para este autor, a construção de um entendimento jurisprudencial uniforme, pautado nos postulados do Princípio da Insignificância, certamente implicaria em um marco na consolidação do direito penal garantista, em que condutas de reprovabilidade insignificante ou que não possuam o alcance desejado pelo tipo seriam de uma vez por todas eliminados do sistema punitivo, trazendo uma maior segurança jurídica e, consequentemente, preservando o caráter subsidiário do direito penal, bem como a dignidade na aplicação das penas, gerando, assim, o correto enquadramento das condutas aos tipos penais vigentes. CONCLUSÃO O presente artigo objetivou analisar as possibilidades e impossibilidades da aplicação do princípio da insignificância em situações envolvendo a prática ilícita de agentes públicos. Os principais achados bibliográficos mostram que a aplicação do Princípio da Insignificância, que tem por finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito de incidência da lei aquelas situações consideradas como de bagatela, enfrenta grande desafio quando de sua aplicação em casos envolvendo conduta danosa praticada pelo servidor público, havendo duas correntes que se posicionam sobre a questão: de um lado a corrente que acredita ser possível a sua aplicação, estando inserido neste contexto o Supremo Tribunal Federal, e de outro lado, a corrente que alega impossibilidade, como é o caso do Superior Tribunal de Justiça. Na concepção dos favoráveis à aplicabilidade do princípio: a) a punição administrativa está inserida no conceito do poder punitivo do Estado e, como tal não pode ser preterida dos avanços do mundo jurídico com relação ao princípio da insignificância; b) uma pena administrativa não deve ensejar uma resposta mais rigorosa do que aquela que seria aceita no sistema criminal, motivo pelo qual não se poderia deixar de aplicar alguns institutos penais no direito administrativo; c) o tratamento dado às sanções administrativas e penais deve ser análogo, uma vez que há uma disposição em considerar estas sanções como parte do direito sancionador. Para os que apregoam a impossibilidades da aplicação do princípio, aqueles que cometem atos de improbidade lesam bem jurídico fundamental ao normal funcionamento da administração pública, qual seja a moralidade. Sendo assim não há ofensa que seja insignificante em relação à moralidade e probidade administrativas, constitucionalmente asseguradas. Assim, tendo por base as diversas abordagens utilizadas para tratar da questão, pode-se concluir que ainda que o Princípio da Insignificância seja importante para minimizar a instauração de inúmeros processos administrativos disciplinares que se acumulam nos setores estatais, onerando os cofres públicos, ainda que implique um marco na consolidação do direito penal garantista, favorecendo a dignidade na aplicação das penas, permanece como tema polêmico, e sua importância, como afirmam os teóricos mantém-se como objetivo a ser alcançado e no país, ainda se está muito longe disso, embora a moralização da Administração Pública seja condição indispensável.
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Pedido de particular sobre cessão de uso de imóvel público: tratamento legal diverso entre bens da união e de institutos federais de ensino
O presente estudo tem o desiderato de analisar a norma legal regente dos bens imóveis da União e dos Institutos Federais de Ensino, bem como dispor sobre o instrumento jurídico adequado, em caso de deferimento do uso pelo Ente Público respectivo.
Direito Administrativo
1. INTRODUÇÃO Aos que laboram junto a Administração Pública é freqüente depararmos com pedidos, solicitações, requerimentos, de particulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas, junto a determinado Ente Público específico, indagando sobre a possibilidade de cessão de uso (utilização de uso) de bens imóveis para realização de atividades de curta duração, tais como: eventos, congressos, atividades recreativas e/ou religiosas e etc. Pois bem, o presente estudo tem o desiderato de analisar a norma legal regente que trata sobre o assunto, especificamente dos bens imóveis da União e dos Institutos Federais de Ensino, bem como dispor sobre o instrumento jurídico adequado, em caso de deferimento do uso pelo Ente Público, respectivo, para devida formalização, para fins de estabelecimento de direitos e obrigações, bem como a forma e maneira de como se dará tal uso. Veremos, no decorrer do estudo, que o tratamento para os entes acima citados, quais sejam, União e Institutos Federais de Ensino, são diversos. 2. DOS BENS IMÓVEIS DA UNIÃO E O TRATAMENTO LEGAL DE SUA CESSÃO PARA TERCEIROS PARTICULARES O Decreto-lei nº 9.760/46, que dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências, trata em seu art. 79, 2º, da cessão de uso de bem imóvel da União, proibindo o uso de tais bens para particulares, vejamos: “Art. 79. A entrega de imóvel necessário a serviço público federal compete privativamente ao S.P.U. § 1º A entrega, que se fará mediante termo, ficará sujeita a confirmação 2 (dois) anos após a assinatura do mesmo, cabendo ao S.P.U. ratificá-la, desde que, nesse período tenha o imóvel sido devidamente utilizado no fim para que fora entregue. § 2º O chefe de repartição, estabelecimento ou serviço federal que tenha a seu cargo próprio nacional, não poderá permitir, sob pena de responsabilidade, sua invasão, cessão, locação ou utilização em fim diferente do que lhe tenha sido prescrito.” Assim, o art. 79, §2º, do Decreto- Lei n.º 9.760/46 proíbe a invasão, cessão, locação ou utilização em fim diverso de imóvel de estabelecimento ou serviço público federal. Por se tratar de legislação anterior a Constituição da República de 1988, necessário uma breve análise para verificarmos se tal ato legislativo foi recepcionado pela nova ordem constitucional vigente. Ao que parece, a mesma foi recepcionado pela atual Constituição da República de 1988, eis que suas disposições estão, à princípio, em conformidade com nossa lei maior. Lado outro, temos a lei 9.636/98, que dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nos 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2o do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. O art. 22, da Lei n.º 9.636/98, em sentido contrário ao Decreto-Lei n 9.760-46, autoriza o uso de imóvel da União para fins de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional, a título precário, para eventos de curta duração, vejamos: “Art. 22. A utilização, a título precário, de áreas de domínio da União para a realização de eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional, poderá ser autorizada, na forma do regulamento, sob o regime de permissão de uso, em ato do Secretário do Patrimônio da União, publicado no Diário Oficial da União.” Ou seja, apesar da lei nº 9.636/98 não ter revogado expressamente o art. 79, § 2º, do Decreto-lei nº 9.760/46, temos que os dois dispositivos acima citados, são incompatíveis, uma vez que o primeiro proíbe o uso de imóvel em uso pelo serviço publico federal para fim diverso do previsto, o que alcança a cessão de uso, para o particular, objeto do presente estudo; ao passo que o segundo, permite que o imóvel utilizado pela União seja usado em evento de fim diverso do previsto (recreativa, esportiva, cultural religiosa ou educacional). Ou seja, admite a cessão de uso para o particular, nas hipóteses e condições que estabelece. O primeiro diploma legal traz uma proibição, para a qual o segundo abre uma exceção (utilização a título precário para eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural religiosa ou educacional, tal como no caso em exame). Diante desta antinomia, temos que o dispositivo em comento do primeiro diploma foi revogado tacitamente pela nova legislação, devendo aplicar, in casu, os clássicos métodos hermenêuticos de interpretação em caso de colisão entre normas e/ou entre normas e princípios. Para a hipótese tratada, aplica-se lei nova em detrimento da lei antiga, naquilo que colidirem. 3. DOS BENS IMÓVEIS DOS INSTITUTOS FEDERAIS DE ENSINO E O TRATAMENTO LEGAL DE SUA CESSÃO Feita esta primeira análise, passemos para o tratamento no que se refere aos bens públicos das Instituições Federais de Ensino, sem antes, adentrarmos, em breves linhas, sobre a natureza jurídica de tais Institutos, que detém a natureza de autarquias especiais. As autarquias são entes administrativos autônomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patrimônio próprio, atribuições específicas estatais, que administra-se a si própria, segundo as leis editadas pela entidade que a criou. O art. 5º, inc. I, do Decreto-Lei n.º 200/67, que revoga a legislação anterior que lhe for contrária, garante autonomia administrativa e financeira às entidades autárquicas. Sendo ente autônomo, não há subordinação hierárquica da autarquia para com a entidade estatal a que pertence. Existe mera vinculação à entidade matriz, que exerce um controle legal de poder de correção finalística do serviço autárquico, visando unicamente mantê-las dentro de suas finalidades institucionais.    Esse controle não é pleno, nem ilimitado, sendo restrito à vigilância, orientação e correção dos atos da administração superior e limitado aos termos da lei, razão pela qual os Institutos Federais de Ensino não necessitam de consentimento para administrar a si própria. Feito este breve registro da natureza jurídica dos Institutos Federais de Ensino, passemos para questão da possibilidade ou não, da cessão de uso de seus bens imóveis, para os particulares. Temos que a lei n.º 6.120/74, dispõe sobre a alienação de bens imóveis de Instituições Federais de Ensino e dá outras providências, regulando assim, os imóveis das Instituições Federais de Ensino constituídas sob a forma de autarquia de regime especial ou mantidas por fundações de direito público. Preliminarmente da mesma forma que o Decreto lei, acima citado, entendemos que tal ato legal foi recepcionado pela atual Constituição da República de 1988, pois não se vislumbra contrariedade com nossa Lei Maior. Feito este breve registro, passemos adiante. O art. 5º, da Lei n.º 6.120/74, veda expressamente a cessão gratuita, a qualquer título, de bens imóveis das Instituições Federais de Ensino, constituídas sob a forma de autarquia de regime especial ou mantidas por fundações de direito público, vejamos: “Art. 5º Em nenhuma hipótese será permitida a doação ou cessão gratuita, a qualquer título, de bens imóveis das instituições de que trata esta Lei”. A vedação, frise-se, restringe-se à cessão, a qualquer título, de caráter gratuito, não havendo proibição, a contrário senso, quando dotada de caráter oneroso. Conforme dito acima, apresentando as Instituições Federais de Ensino, natureza autárquica especial, temos que o deferimento ou não de eventual pedido de autorização de uso feito por particular para cessão de bem imóvel deste Ente, deve ser objeto de decisão pela própria Unidade Autárquica, sob pena de se suprimir sua autonomia administrativa. Por não haver norma disciplinando estes critérios de análise de deferimento ou não da cessão, entendemos que a mesma encontra-se no âmbito do mérito administrativo do gestor público. Ou seja, a análise ficará atrelada a oportunidade e conveniência do Administrador, conjugados e em consonância com os princípios da Administração Pública, estabelecidos no artigo 37º, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.   Por outro lado, em caso de deferimento, tratando que a hipótese de cessão somente se dará na forma onerosa, os recursos auferidos devem ser integralmente investidos na prestação dos serviços institucionais, para fins de não violação do controle finalístico e em atendimento também, aos princípios acima informados. Lado outro e visando estancar qualquer dúvida, temos que a Lei nº 6.120/74 é norma de caráter específico, eis que trata dos bens dos Institutos Federais de Ensino, temos que a mesma prevalece diante da Lei n.º 9.636/98, norma de caráter geral, apesar de ser posterior, que disciplina os bens imóveis da União, com fulcro no princípio da especialidade. Assim, pelas regras de hermenêuticas de interpretação, norma especial derroga norma geral. Em consequência, por mais este motivo, nos casos dos bens dos Institutos Federais de Ensino, a norma regente é a Lei nº 6.120-74. 4. DAS DIVERSAS ESPÉCIES DE INSTRUMENTOS LEGAIS PARA FORMALIZAÇÃO DA CESSÃO DE USO DE BENS PÚBLICOS PARA PARTICULARES Havendo o deferimento na cessão de uso de bem imóvel para o particular, necessário que o mesmo seja disciplinado através de títulos/instrumentos que visem estabelecer regras, tanto para a Administração Pública como para o particular. Para tanto, veremos alguns institutos que disciplinam a forma como se dar-se-ia esta cessão de uso de bens imóveis para o particular, vejamos: A autorização de uso distingue-se da permissão de uso e da concessão de uso. Maria Sylvia Zabela Di Pietro, in Direito Administrativo, 10.º ed., Ed. Atlas, São Paulo, 1998, apresenta o conceito desses institutos, o que demonstra a diferença entre os mesmos: “Autorização de uso é ato administrativo unilateral e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário, que o particular se utilize de bem público com exclusividade. (…) Permissão de uso é ato administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração faculta a utilização privativa de bem público, para fins de interesse público. (…) Concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual a Administração Pública faculta ao particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação.” O mesmo autor, em sua obra, diferencia a autorização da permissão e concessão de uso. Na primeira, o uso é deferido tendo-se em vista o interesse privado; nas demais, de acordo com o interesse público, conforme se observa a seguir: “(…) A utilização não é conferida com vistas à utilidade pública, mas no interesse privado do utente. Aliás, essa é uma das características que distingue a autorização da permissão e da concessão.” Posteriormente caracteriza a autorização de uso, que se perfaz com a exclusiva manifestação de vontade do poder público; é (in)deferida por oportunidade e conveniência da Administração, sendo revogada a qualquer tempo, quando o uso se tornar contrário ao interesse público, apresentando maior precariedade do que a permissão e a concessão. Ainda, pode ser gratuita ou onerosa, com ou sem prazo, sendo em regra em caráter transitório e caracterizando por ser uma faculdade de uso de bem público: “(…) Pode ser gratuita ou onerosa. Do fato de tratar-se de utilização exercida no interesse do particular beneficiário decorrem inportantes efeitos: 1. A autorização reveste-se de maior precariedade do que a permissão e a concessão; 2. É outorgada, em geral, em caráter transitório; 3. Confere menores poderes e garantias ao usuário; 4. Dispensa licitação e autorização legislativa e 5. Não cria para o usuário o dever de utilização, mas simples faculdade. (…) A autorização pode ser simples (sem  prazo) e qualificada (com prazo).” A autorização de uso é comum para utilizações de interesse particular, desde que não prejudique o serviço público de ensino prestado pelas Instituições Federais de Ensino, nem que haja ônus para a Administração.   Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 25º ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 2000, reforça o entendimento acima e ensina que a autorização de uso não tem forma e requisitos especiais, dispensa lei autorizativa e licitação para o seu deferimento, sendo suficiente que seja feita mediante ato escrito: “Autorização de uso é o ato unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. Não tem forma nem requisitos especiais para a suma efetivação, pois visa apenas a atividades transitórias e irrelevantes para o Poder Público, bastando que se consubstancie em ato escrito, revogável sumariamente a qualquer tempo e sem ônus para a Administração. Essas autorizações são comuns para a ocupação de terrenos baldios, para a retirada de água em fontes não abertas ao uso comum do povo e para outras utilizações de interesse de certos particulares, desde que não prejudiquem a comunidade nem embaracem o serviço público. Tais autorizações não geram privilégios contra a Administração ainda que remuneradas e fruídas por muito tempo, e por isso mesmo, dispensam lei autorizativa e licitação para o seu deferimento.”    O art. 2º, da Lei n.º 8.666/93 exige licitação nos casos de permissão e concessão, mas não na autorização de uso, o que apresenta sintonia com o posicionamento dos doutrinadores retro transcritos.    A permissão e a autorização de uso são atos unilaterais, discricionários, pelo os quais a Administração concede a título precário o uso de determinado bem público, entretanto a autorização apresenta maior precariedade do que a permissão, dispensa licitação e lei a autorizando. 5. CONCLUSÃO Ante acima exposto, verificamos que o legislador entendeu por bem, dar tratamento diverso, com relação à cessão de bens imóveis, quando solicitadas por particulares, conforme o pedido seja direcionado à União Federal ou para Instituições Federais de Ensino. Para o primeiro caso, qual seja, pedido de uso para a União, temos que a legislação pertinente, autoriza o uso de imóvel da União para fins de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional, a título precário, para eventos de curta duração. A legislação não menciona a necessidade que a cessão se dê a título oneroso. Para o segundo caso, qual seja, pedido de uso (cessão) para as Instituições Federais de Ensino, temos que a legislação pertinente acima citada, veda expressamente a cessão gratuita, a qualquer título, de bens imóveis das Instituições Federais de Ensino, constituídas sob a forma de autarquia de regime especial ou mantidas por fundações de direito público. Daí se interpreta, a possibilidade da cessão, a contrário senso, a título oneroso. Para esta forma, vislumbramos a necessidade de que a cessão observe os princípios estabelecidos para a Administração Pública.
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Controle judicial dos atos administrativos
Trata-se de pesquisa científica que objetiva a abordagem do controle dos atos administrativos vinculados e discricionários pelo Poder Judiciário no mbito do direito pátrio e com fundamento nos conceitos de discricionariedade administrativa utilizando-se de pesquisa majoritariamente doutrinária para conceituar institutos que fundamentarão a abordagem mencionada.
Direito Administrativo
INTRODUÇÃO Foi com base no princípio basilar da separação dos poderes de um Estado que se iniciou o trabalho de pesquisa acerca do controle dos atos administrativos. A escolha de se iniciar o trabalho com este princípio fazia nascer mais uma necessidade, qual seja a de delimitar os conceitos de Estado, Governo e Administração Pública, de tal sorte que o desenvolvimento da pesquisa se desse de maneira clara e concisa. Com a diferenciação doutrinária realizada entre os conceitos de Estado, Governo e Administração Pública logo no primeiro capítulo, foi possível perceber que, muito embora íntimos e às vezes conexos, os três tópicos merecem tratamento diferenciado, principalmente devido ao fato de que se estaria tratando de atos administrativos, os quais são emanados diretamente da Administração Pública, muito embora frutos de ideologias governamentais ou decorrências normativas do Estado de Direito constituído pela Assembleia Constituinte de 1987-1988. Reafirmando, portanto o que fora mencionado, conceitos diferentes, embora intimamente interligados. A separação dos poderes do Estado, por conseguinte, não poderia incidir em outro momento, senão logo após a referida diferenciação, no segundo capítulo deste trabalho, pois é com este princípio proposto e organizadamente sistematizado por Montesquieu que se poderá concluir pela existência e pela suma importância de um sistema de freios e contrapesos, em linhas sobre as quais as rédeas do poder estatal podem ser delineadas e exploradas. A ideia de controle mútuo dos poderes é importante para o trabalho, pois só assim, o contexto de controle judicial dos atos administrativos faz sentido dentro do próprio princípio da separação dos poderes estatais. Assim, por mais que cada um dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judicial) exerça uma função dominante na qual se encontra o motivo de sua especialização, há que se reservar um universo de instrumentos de controle para que nenhum destes poderes se sobreponha aos demais, quão menos aos cidadãos que compõe e população que por sua vez faz parte da composição dos elementos de um Estado.  Imperioso, portanto, se fez o manuseio destes conceitos, em primeiro plano, não para esboçar o trabalho, mas sim para sedimentar um piso no qual se poderia edificar pensamento maior, com a solidez que o tema requer, já que é conhecido pela sua tormentuosidade dentro do direito administrativo. Trazer um pouco de segurança no estabelecimento de parâmetros de trabalho seria, assim, necessário para qualquer avanço no tema. Pelo mesmo motivo, ao adentrarmos no âmbito dos atos administrativos no terceiro capítulo, far-se-á necessária ampla exposição dos conceitos chegando a conclusão certa sobre os atos administrativos, cuja divergência doutrinária pouco existe, a não ser no tocante ao ângulo pelo qual se veem os referidos atos. Assim, nada se mostrou melhor que esmiuçar a composição de um instituto em seus diversos elementos componentes, de tal sorte que se obterá ainda no terceiro capítulo um rol de itens que juntos dão forma jurídica ao ato administrativo (competência, finalidade, forma, motivo e objeto). E é com essa análise, do conceito, dos elementos e de sua classificação que caminharemos para uma boa estruturação do Ato administrativo. A classificação, diga-se de passagem, será a grande responsável pela contextualização fática e instigadora do raciocínio de diversas possibilidades jurídicas. Ainda no terceiro capítulo, chegar-se-á ao ponto nevrálgico deste estudo, no qual se tentará separa as ideias de discricionariedade e vinculação do ato administrativo, pois estes dois tipos de atos terão tratamento diferenciado quanto ao controle judicial ou até mesmo quanto ao auto revisão e autotutela pela própria administração pública. Justamente após esta separação é que ficará evidente a superação do princípio da legalidade administrativa pelo princípio da juridicidade, uma observância mais ampla que a proposta pelo clássico princípio da legalidade do direito administrativo. Isto posto, adentraremos no quarto capítulo, no qual será abordada a ideia central do trabalho. A ideia a qual deu azo e razão para a abordagem dos demais assuntos, pois de nada adiantaria levantar os conceitos estudados até este ponto sem que se tivesse um caminho com fim e objetivo a se alcançar. Aqui, contudo, foi necessária uma divisão do capítulo para abordagem da autotutela que também é controle dos atos administrativos e, portanto, oportuno para o desenvolvimento e envolvimento no assunto, até chegar, por fim, à abordagem específica do controle dos atos administrativos vinculados e discricionários, muito embora até aqui já se tenha material e conteúdo suficientes para que as ideias fluam facilmente do quarto capítulo para a conclusão deste trabalho. 1. DO ESTADO, DO GOVERNO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA O Estado pode ser conceituado pela ordenação que busca essencialmente a regulamentação das relações sociais de um povo sobre um território, por meio de um poder soberano e institucionalizado (PALLIERI, 1972, p. 14). Nesta definição, percebe-se claramente a existência de quatro elementos essenciais para a formação do conceito de Estado: Povo, Território, Poder e Finalidades, as quais, no caso do Brasil, estão descritas nos artigos 1º, 2º e 3º da Constituição da República Federativa do Brasil (SILVA, 2011, p. 97-98). Para Paulo Bonavides, o conceito de estado é abordado com cautela, pois a conceituação desta instituição depende do ponto de vista histórico do observador (BONAVIDES, 2000, p. 72-78). O autor não dá sua própria conceituação de Estado, mas atribui a Jellinek o melhor conceito sobre o tema. Assim aponta: “a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando”(JELLINEK, apud BONAVIDES, 2000. p. 67). Ao invés de aprofundarmos na teoria do Estado, tema vasto, digno de grandes obras e vasta pesquisa acadêmica, basta aqui apenas a exclusão dos conceitos de Estado e governo para focar no conceito de Administração Pública a qual será objeto de nosso estudo, independentemente de em qual Poder for verificada. O conceito de Administração Pública, dentro do campo jurídico, não pode ser confundido com os conceitos de Estado ou de Governo, pois,a nível técnico, a confusão pode levar a imprecisão de novas constatações seja em âmbito acadêmico, seja em âmbito profissional. Desta forma, cabe aqui ressaltar desde logo, uma das concepções que contrasta a Administração Pública com o próprio conceito de governo. Para Meirelles, a Administração Pública seria uma espécie de instrumento mediante o qual o Governo poderá se valer de seus objetivos (MEIRELLES, 2011, p.65). Tal concepção, contudo, não confunde os dois conceitos (de Administração Pública e de Governo). Isso porque os atos advindos da Administração Pública, muito embora procurem satisfazer interesses governamentais, não são, por si, mais do que atos administrativos. Não podem ser confundidos com atos de Governo, mormente devido à autonomia institucionalizada nos órgãos que compõem este conceito de Administração Pública. Senão vejamos: “Administração Pública – Em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para a consecução dos objetivos do Governo (…). Numa visão global, a Administração (…) não pratica atos de governo; pratica, tão somente, atos de execução, com maior ou menor autonomia funcional, segundo a competência do órgão e de seus agentes”. (ibidem, p.65) Existem outros autores que contribuem com esta conceituação. Podemos verificar, por exemplo, que Cretella Júnior procura somar os diversos aspectos e visões sobre a Administração Pública, formando um único conceito que a aproxima da natureza jurídica de atividade, afastando a ideia orgânica de uma instituição: “(…) Administração é “modo de gestão” e “atividade exercida”, ou seja, numa proposição sintética, a atividade que o Estado desenvolve, mediante a prática de atos concretos e executórios, para a consecução direta ou indireta, ininterrupta e imediata dos interesses públicos”. (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 50) Esta diferenciação entre Administração Pública e Governo é muito bem sintetizada por Di Pietro quando decide contextualizar os conceitos como sendo objeto de estudo de dois ramos do direito Público, a saber: “(…) a Administração Pública é objeto de estudo do direito administrativo; o Governo e a função política são mais objeto do Direito Constitucional” (DI PIETRO, 2011, p. 55). De maneira dedutiva, Di Pietro procurou facilitar o entendimento dos dois conceitos anteriormente expostos, de maneira que a delimitação de Administração Pública e a de Governo ficam mais claras com esta observação. Importante frisar, ainda, que, mais que uma forma de instrumentalizar as ações governamentais, a Administração Pública também possui o papel de disponibilizar para a sociedade, serviços que se fazem essenciais para concretizar as garantias estabelecidas no ordenamento jurídico, mormente em ordem constitucional. (MEIRELLES, 2011, p.65) José Afonso da Silva sintetiza bem a diferença entre estas três figuras (Estado, Governo e Administração Pública), quando as sistematiza verticalmente, interpondo uma hierarquia entre os órgãos que se manifestam através das figuras do Estado. Ou seja, é a partir deste que surge em nível constitucional e político, o Governo; bem como em nível organizacional inferiorizado, a Administração Pública. Senão vejamos: “(…) o Estado se manifesta por seus órgãos, que são supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos). Aqueles são os a quem incumbe o exercício do poder político, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos governamentais. Os outros estão em plano hierárquico inferior, cujo conjunto forma a Administração Pública”. (SILVA, 2011, p. 655) Deste ponto de vista é possível concluir que a Administração Pública de fato executa as decisões políticas tomadas pelo plano hierarquicamente superior, em subordinação, portanto ao Poder Político, que se encerra na figura governamental do Estado. 2. DAS FUNÇÕES DO ESTADO E DA SEPARAÇÃO DOS PODERES Foi na obra de Charles de Montesquieu, L’Esprit de Lois, onde se deu um grande marco na ciência política mundial. O Barão de Montesquieu, como também era chamado o pensador, analisou o Estado e as leis a partir do ser humano e de suas leis naturais. Diante do temor de ideias repudiadas como o Absolutismo ou até da anarquia, sugeriu um Estado governado em atenção à separação de três Poderes, os quais, mediante um sistema de pesos e contrapesos, atingia um ideal de liberdade política (SOARES, 2004, p.68-73). Não se atribui a Montesquieu, contudo, os primeiros registros de estudo sobre o tema da separação dos Poderes do Estado. Muito antes do filósofo, Kant, Locke e até Aristóteles já haviam iniciado pesquisas e reflexões neste sentido. Para o presente trabalho, contudo, não se fará necessário, um aprofundamento maior sobre esta teoria, pois o que aqui se procura é tão somente delinear os funções encontradas dentro do conceito de Estado, a fim de deixar mais claro a análise dos atos administrativos e do controle judicial sobre estes atos. Assim, cabe analisar, desde logo, quais são as funções do Estado e suas respectivas atribuições. Montesquieu sistematizou sua teoria da Separação dos Poderes, de tal forma que constatou a existência de três poderes: O Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes (Poder Executivo) e o Poder Executivo das coisas que dependem do Direito Civil (Poder Judiciário). Mais do que separar os referidos poderes de maneira lógica e atributiva, a proposta da obra de Montesquieu era desenvolver uma teoria na qual as funções desempenhadas por cada um destes três poderes pudessem se harmonizar entre si. Importante se faz a observação atenta ao termo utilizado por Montesquieu: “Poder Executivo”.Di Pietro explica que o uso deste único termo para denominardois Poderes, hoje conhecidos por Poder Executivo e Poder Judiciário. Em sua explicação, o Poder Judiciário, juntamente com o Poder Executivo, executarádiversos direitos, seja por meio da solução de conflitos seja por meio de ações a fim de dar concretude às normas positivadas. Ou seja, os poderes judiciário e executivo executam, “(…) aplicam as leis ao caso concreto: a função jurisdicional, mediante solução de conflitos de interesses e aplicação coativa da lei, quando as partes não o façam espontaneamente; a função executiva, mediante atos concretos voltados para a realização dos fins estatais, de satisfação das necessidades coletivas” (DIPIETRO, 2011, p.51). Daí a utilização da palavra “Executivo” de maneira diferente da qual é abordada atualmente. Hoje, fazemos a distinção entre os dois Poderes Executivos, separando-os em Poder Executivo, propriamente dito, e Poder Judiciário, aquele poder que Montesquieu também denominou “Poder Executivo”, porém responsável pela execução das coisas que dependem do Direito Civil. Neste sentido, em um contexto mais atual e direcionado para o estudo do Direito Administrativo, o autor Cretella Júnior, afirmou que o Estado possui três funções, a saber: a Função Legislativa, a Função Judiciária e A Função Administrativa, sendo que cada qual se completa no contexto estatal. Nas palavras de Cretella Júnior: “Administrar é “aplicar a lei, espontaneamente, de ofício”, julgar é “aplicar contenciosamente a lei” e legislar é exercer funções que culminam no “jus in civitatepositum”. Nesses três aspectos, “administrar”, “julgar” e “legislar”, estão compreendidas todas as funções da ampla e extraordinária atividade do Estado” (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 4). A observação a ser feita aqui é a de que, segundo este autor, a segunda função e a terceira função citadas se tratam de consecução lógica da primeira função, pois enquanto a função legislativa se encarrega de criar as leis, a função executiva referente fazendo alusão à administração aplica as leis criadas de maneira automática, e o judiciário por sua vez a aplica sempre que houver um contencioso (ibidem, p. 4). A visão do jurista português Nuno Piçarra, cuja obra trata profundamente sobre o tema, resumiu conceitualmente a visão de Montesquieu sobre os três poderes da seguinte forma: “O poder legislativo traduz-se no poder de fazer leis, por um certo tempo ou para sempre, e de corrigir ou ab-rogar as que estão feitas. O poder executivo das coisas que dependem do direito internacional ou, simplesmente, o poder executivo do Estado é o poder de fazer a paz ou a guerra, de enviar ou receber as embaixadas, de manter a segurança e de prevenir as invasões. O poder de julgar ou o poder executivo das coisas que dependem do direito civil é o poder de punir os crimes ou de julgar os litígios entre os particulares” (PIÇARRA, 1989, p. 91). Uma vez destacadas as diferenças entre as três funções exercidas pelo Estado – no caso do Brasil, pelos três poderes consolidados na Constituição Federal Brasileira de 1988, Legislativo, Executivo e Judiciário –, é notório que exista a possibilidade de eventualmente a função de um dos poderes se chocar com a função de outro poder, causando problemas e controvérsias jurídicas dentro do tema. Neste ponto cumpre adentrar em ponto crucial para nossa análise. Uma vez verificada a diferença e a independência entre estes três poderes, deve haver também uma harmonia entre os poderes, a qual será alcançada por um eficiente sistema de freios e contrapesos no qual os poderes poderão, sem ferir a autonomia de cada poder, exercer um controle recíproco, uma interferência autorizada pela teoria do Estado a fim de dar uma maior segurança para a sociedade, senão vejamos: “A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados” (SILVA, 2011, p. 110). Celso Antônio Bandeira de Mello compartilha deste pensamento majoritário e afirma que, muito embora seja comum o pensamento da divisão do Estado em trêsfunções, como se fossem blocos orgânicos, denominados cada qual com o nome de “Poder” e caracterizado pela função que exerce predominantemente, a denominação adotada pela área da Ciência Política, a partida concepção de Montesquieu, não exclui a possibilidade de um dos poderes vir a exercer a função majoritariamente atribuída a outro poder em nome do sistema de freios e contrapesos da separação dos três poderes (MELLO, 2011, p. 30-31). Bem certo que, em seus estudos, Montesquieu não chegava a considerar o poder judicial dentro sistemática de balança dos poderes, promovia apenas o contrabalanceamento entre os poderes legislativo e executivo, devido ao momento histórico no qual estava inserido (PIÇARRA, 1989, p.96-112). Contudo, foi ao longo do tempo que o poder judiciário fora inserido dentro deste sistema harmônico criado como mecanismo para evitar o excesso de poder por qualquer uma das três clássicas funções. Importante este tema porque épossível que o Poder Legislativo ou o Poder Judiciário venham a exercer a função administrativa, a despeito de não ser parte de suas respectivas atribuições originárias. Ou seja, admite-se, através da Administração Pública dos órgãos que compõe os Poderes Legislativo e Judiciário o exercício de função característica do Poder Executivo. A abordagem deste tema para a contextualização da espinha dorsal deste trabalho – qual seja o controle de legalidade do Poder Judiciário sobre os atos administrativos – é fundamental para destacar a possibilidade de que os atos administrativos, portanto originados em decorrência da função executiva de administrar, podem surgir de qualquer um dos Poderes. A possibilidade constatada acerca do exercício da função executiva, típica do Poder Executivo, pelos Poderes Legislativo e Executivo, não esgota o assunto dentro deste princípio político jurídico da Separação dos Poderes. De acordo com Meirelles, cada um dos três Poderes é capaz de exercer as demais funções não caracterizadoras de sua natureza. Afirma, assim, ser possível que, de diferentes formas, todos os três poderes poderão exercer a função jurisdicional, função típica do Poder Judiciário, por exemplo. Ou seja, tanto o Legislativo quanto o poder Executivo poderão exercer a função de julgar (MEIRELLES, 2011, p.58-59). Assevera ainda o autor, contudo, que esta função de maneira atípica não prejudica o sistema de Jurisdição Única adotado pelo Brasil baseado no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, dispositivo que encerra importante princípio constitucional da Inafastabilidade da Jurisdição, ou Princípio do Acesso à Justiça, de acordo com o qual: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”. Não é afastada a possibilidade de o Judiciário exercer plenamente a sua função precípua de julgar, ainda que esta mesma função esteja sendo exercida por outro poder estatal (ibidem, p.58-59). Conclui-se pelo dispositivo citado acima que é possível, em sentido amplo, no tocante às funções dejulgar, legislar e executar (ou administrar), o exercício de função atípica pelos Poderes, sem a exclusão da função típica de cada um dos Poderes. O que significa que, ainda assim, cabe ao Poder Judiciário, apesar de não exclusivamente, o principal exercício da função de julgar. Isto no caso da função jurisdicional. No caso específico do controle de legalidade dos atos administrativo, Cretella Júnior aponta que o exercício do controle de legalidade dos atos administrativos é situação na qual são envolvidos os três poderes do Estado simultaneamente, pois, no momento em que se contrasta a atuação do Poder Executivo face às disposições legais produzidas Pelo Poder Legislativa na função de legislar, o Poder Judiciário poderá intervir na atuação viciada do Poder Executivo, senão vejamos: “O controle jurisdicional do ato administrativo, em virtude de ilegalidade ou de abuso de poder da medida tomada, contrária a dispositivo oriundo da função legislativa, coloca, em primeiro plano, como preliminar necessária o magno problema das funções do Estado, já que “controle jurisdicional” é “função do Poder Judiciário” (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 3). Perceptível, portanto, diante da visão exposta pelo doutrinador, que se trata de situação especial na qual estão presentes as três funções constatadas na obra de Montesquieu, exercida de maneira plena pelos três poderes estatais brasileiros, o que faz do tema, rico para análise e, por consequência uma situação jurídica na qual a cautela é necessária a fim de se dar efetividade aos princípios estabelecidos na constituição da república federativa do brasil. 3. DOS ATOS ADMINISTRATIVOS 3.1. Conceito do ato administrativo De acordo com Meirelles, os atos praticados pela Administração Pública podem ser divididos em três categorias: atos legislativos, atos judiciais e atos administrativos (MEIRELLES, 2012, p. 157). Muito embora esta classificaçãoincite a comparação com a teoria política dos três Poderes do Estado Moderno – a saber, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Poder Executivo –, não se pode cair em ledo equívoco de afirmar que os atos legislativos são aqueles praticados pelo Poder Legislativo, os judiciais são os praticados pelo Poder Judiciário e os administrativos são aqueles praticados pelo Poder Executivo. Cabe relembrar que a separação dos poderes no Estado não impede que cada um dos poderes execute atos cuja natureza pertença a outro poder. Ou seja, devemos admitir que não somente o Poder Executivo exerça atos administrativos, pois os Poderes Legislativo e Judiciário podem muito bem executar atos desta natureza sem, contudo, ferir a separação dos três poderes. O que se leva em conta nesta situação é o sistema de freios e contrapesos que baliza a organização estatal, dando autonomia para todos os poderes, como já fora abordado em tópico anterior. Após esta ressalva, partir-se-á à busca de um conceito acerca do objeto de pesquisa deste trabalho acadêmico, que são os atos administrativos, já que não se faz razoável analisarmos o controle judicial dos atos administrativos sem primeiro sabermos do que se tratam estes atos. A visão dos doutrinadores sobre o conceito de ato administrativo se distingue principalmente no tocante à diferenciação de ato administrativo com ato jurídico. A lacuna legislativa quanto ao tema cria um campo aberto a interpretações doutrinárias sobre o ato administrativo e sua conceituação, o que se mostra saudável para a pesquisa acadêmica de um modo geral. Ato administrativo na visão de Mello se particulariza dos demais atos jurídicos “(a) no que concerne às condições de sua válida produção e (b) no que atina à eficácia que lhe é própria” (MELLO, 2011, p.375). Interessante notar que o autor destaca dentro do conceito de ato administrativo os seguintes elementos: declaração jurídica com efeitos de direito, proveniência do Estado, submissão à regência do Direito Público, complementaridade à Lei e, excepcionalmente à Constituição, e, por fim, sujeição a exame de legitimidade por órgão jurisdicional (ibidem, p.389-390). Ponto importante este para o nosso estudo, pois já é possível desde já, do ponto de vista deste doutrinador, perceber que a legitimidade do ato administrativo não só é elemento de sua conceituação como também objeto de controle jurisdicional do Estado. A importância que o autor dá ao tema é tamanha que fez questão de incluir o referido controle dentro da própria conceituação jurídica do ato administrativo. Conclui, assim, com a noção de que ato administrativo é: “(…) declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante comandos concretos complementares da lei (ou excepcionalmente, da própria Constituição, aí de modo plenamente vinculado) expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional’ (ibidem, p. 390). Meirelles, ao contrário de Bandeira de Mello, procura uma conceituação de ato administrativa pouco mais sucinta e objetiva, não dando ao tema a mesma amplitude que Mello dá em sua obra. Desta forma, o conceito de ato administrativo de Hely Lopes Meirelles muito se aproxima do conceito de ato jurídico, com a ressalva de que, o primeiro se diferencia do segundo por conter em sua natureza a finalidade pública. “É ato jurídico todo aquele que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos. Partindo desta definição, podemos conceituar o ato administrativo com os mesmos elementos fornecidos pela Teoria Geral do Direito, acrescentando-se apenas a finalidade pública que é própria da espécie e distinta do gênero ato jurídico (…)” (MEIRELLES, 2012, p.157-158). Neste ponto, Mello faz importante ressalva, pois existem, sim, atos praticados pela Administração Pública sem a finalidade pública, contudo, não podem estes ser chamados de atos administrativos, mas sim de Atos de Administração, conceito mais amplo que abarca inclusive aqueles atos praticados pela Administração equiparando-se aos particulares regidos pelo Direito Privado (MELLO, 2011, p. 387). Também preferindo uma conceituação menos ampla e mais objetiva, Di Pietro conceitua ato administrativo levando em consideração os seguintes elementos: Declaração do Estado – em detrimento do uso da expressão ‘manifestação’, pois admite a autora que manifestação pode não ser exteriorizada –, sujeição a regime jurídico administrativo, produção de efeitos jurídicos imediatos, possibilidade de controle judicial, sujeição à lei (DI PIETRO, 2011, p. 197). Como se observa, a autora não somente elenca características dos atos administrativos relacionadas ao campo administrativo, como também aponta sua sujeição ao controle judicial, bem como ao controle de legalidade. Assim como Bandeira de Mello, Di Pietro ressalta em sua conceituação essa importante característica do ato administrativa que será inclusive objeto de aprofundamento nos capítulos seguintes, de forma que: “Com esses elementos, pode-se definir o ato administrativo como a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com a observância da lei, sob o regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário” (DI PIETRO, 2011, p. 198). O destaque dado ao tema do controle jurisdicional do ato administrativo perceptível, sobretudo nos conceitos de Celso Antônia Bandeira de Mello e Maria Sylvia Di Pietro, evidenciam a importância do assunto no contexto do Direito Administrativo. Muito embora Hely Lopes Meirelles não tenha ressalvado da mesma forma o controle jurisdicional em seu conceito de ato administrativo não se pode, todavia admitir a hipótese de que o doutrinador não dê importância a tal assunto. Tanto é que posteriormente, em capítulo dedicado ao assunto, Meirelles discorre sobre o controle jurisdicional e demais desdobramentos. O importante a se ressaltar aqui é o fato de que a conceituação de ato administrativo assim como a de qualquer outro instituto jurídico não deve ser feita a fim de se adotar dogmaticamente um único conceito, por mais próximo da realidade que este conceito se aproxime. A funcionalidade da conceituação é meramente operacional, serve tão somente para dar nortear o estudo deste trabalho. Não existe, assim “um conceito verdadeiro ou falso. Portanto, deve-se procurar adorar um que seja o mais possível útil para os fins a que se propõe o estudioso” (MEIRELLES, 2012, p.156-158). Não por isso deve-se excluir qualquer um dos conceitos aqui estudados, pois a pluralidade de ponto de vista só tende a contribuir com a análise abrangente do tema, proporcionando aos operadores do direito, ampla bagagem de estudos com as quais seja possível trabalhar. 3.2. Elementos do ato administrativo Existem alguns elementos constitutivos do ato administrativo necessários para o melhor exame destes atos. São eles: a competência, a finalidade, a forma, o motivo e o objeto. Sem eles, não se poderá atingir a plena validade do ato com a produção de todos os seus efeitos. O primeiro deles, a competência, é, na palavra de Hely Lopes Meirelles, o poder legalmente autorizado ao agente administrativo para executar aquilo que irá se constituir em ato administrativo. “Entende-se por competência administrativa o poder atribuído ao agente da Administração para o desempenho específico de suas funções. A competência resulta da lei e por ela é determinada” (MEIRELLES, 2011, p. 159). Di Pietro vai mais a fundo na análise da competência, elencando como requisito ou elemento do ato administrativo, a capacidade do agente, sem abrir mão do requisito da competência, pois, “no direito administrativo não basta a capacidade; é necessário também que o sujeito tenha competência” (DI PIETRO, 2011, p. 205). Por mais que a autora admita a possibilidade de se delegar ou avocar a competência em certos casos autorizados pela lei, ela chama atenção também para a redação do artigo 11 da lei 9.784 de 1999, senão vejamos, pois: “a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos”. Além desta observação sobre a irrenunciabilidade da competência, é possível perceber que o foco da autora não é tão somente a competência, mas sim o sujeito ao qual a competência é atribuída. Em uma vertente um pouco mais extremada é possível encontrar autores que quase ignoram a competência como elemento do ato administrativo, focando tão somente na capacidade do agente que pratica o ato administrativo. É o caso do autor José Cretella Júnior, em cujo livro descreve como parte da estrutura do ato administrativo a capacidade do agente administrativo que de acordo com ele, anda pari pasu à noção de competência, de tal modo que a incapacidade do agente poder levar à ilegalidade do ato administrativo por ele praticado. Desta forma, “(…) a falta da capacidade, ou incapacidade do agente, quer absoluta, quer relativa, torna o ato ilegal e, portanto, passível de consequências que podem culminar com seu total aniquilamento” (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 145). Outro elemento importante do ato administrativo é o chamado pela doutrina administrativista de finalidade. Este ponto não encontra grandes controvérsias perante os doutrinadores. O que se observa é que a finalidade do ato administrativo não é mutável de acordo com o desejo do agente público. Neste sentido, Di Pietro procura estabelecer dois sentidos para o elemento finalidade, a ser atendido para conferência dos elementos do ato administrativo válido. De acordo com a autora, é possível enxergar a finalidade em sentido amplo e sentido estrito. Em sentido amplo a finalidade do ato administrativo é a própria finalidade pública, ou seja, sempre se buscará com atos administrativos um resultado que alcance o interesse público. Já em sentido estrito, analisando-se caso a caso, o ato administrativo deverá atender ao fim específico o qual queria ser atribuído quando da confecção da lei a qual estabelece a competência para determinado ato, que, por sua vez, não foge do primeiro conceito, pois não é possível conceber legislação administrativa que autorize ato administrativo para atingir fim diferente do interesse público (DI PIETRO, 2011, p. 211-212). Desta forma, em ambos os casos, caso seja produzido ato em desconformidade com a finalidade, quer seja analisado em sentido amplo, quer seja em sentido estrito, estaremos diante de caso de desvio de poder, sendo considerado o ato ilegal. (ibidem, p. 212) O desvio de poder, ou ainda, desvio de finalidade, para Bandeira de Mello, traduz-se em dupla violação de elementos do ato administrativo. O agente que age em desvio de poder viola não só a finalidade do ato administrativo, mas também faz “mau uso da competência” que lhe foi atribuída (MELLO, 2011, p. 410-411). A forma que o ato toma também é relevante para a análise do ato administrativo. A forma é, nas palavras de Meirelles, “o revestimento exteriorizador do ato administrativo” e “constitui requisito vinculado e imprescindível à sua perfeição”. Ou queira dizer, a forma como um ato será externalizado deve ser em regra previsto em lei e sua observância, e requisito para a perfeição do ato administrativo (MEIRELLES, 2011, p. 160-161). Tal é a importância da observância da forma dos atos administrativos prevista em lei que em caso de produção de um ato administrativo em forma diferente da prevista, o ato se tornará passível de anulação por vício em sua constituição (ibidem, p.161). Importante ressaltar a diferença de nomenclatura que há entre alguns doutrinadores, pois, à título exemplificativo, Bandeira de Mello prefere não chamar de forma, mas sim de formalização a maneira específica como um ato é exteriorizado (ibidem, p.415). O penúltimo elemento do ato administrativo a ser ressaltado neste capítulo é o motivo. É para Di Pietro “o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo” (DI PIETRO, 2011, p.212-213). Ora, todo o ato administrativo deverá como já vimos anteriormente ter fundamento legal para sua existência, pois, em decorrência do princípio da legalidade, não poderá a Administração Pública praticar ato que não seja previsto no ordenamento jurídico. Desta forma, é possível concluir que o pressuposto de direito será a própria norma autorizadora do ato administrativo. O pressuposto de fato, por sua vez, será o conjunto de acontecimentos do mundo natural que levaram a Administração, na busca pelo interesse público, a tomar a decisão de praticar aquele determinado ato (ibidem, p. 212). Por fim, temos o elemento do ato administrativo conhecido por objeto. Di Pietro tem o cuidado de diferenciar este elemento de finalidade, pois, enquanto este se traduz no fim mediato ao qual se quer alcançar com o ato – em suma, a finalidade pública –, o objeto do ato administrativo é o efeito jurídico imediatamente desejável, é o conteúdo do ato no caso concreto (ibidem, p. 208-211). Com o estudo dos elementos do ato administrativo a análise da discricionariedade ou não do ato administrativo poderá ser realizada de forma mais certeira, conforme se poderá observar posteriormente.   3.3. Consideração quanto às classificações doutrinárias Apesar dos diversos pontos de vista doutrinários acerca do tema, os atos administrativos podem ser classificados de diversas maneiras. A classificação é meramente doutrinária, contudo, seu estudo pode contribuir para diferenciar as diversas situações nas quais incidirá como veremos a diante, o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. E é exatamente isto que Meirelles preconiza, dando aos atos administrativos quatro principais classificações, dentre outras que apresenta em segundo plano, aquelas “quanto aos seus destinatários, em atos gerais e individuais; quanto ao alcance, em atos internos e externos; quanto ao seu objeto. Em atos de império de gestão e de expediente, quanto ao seu regramento, em atos vinculados e discricionários” (MEIRELLES, 2012, p.171). Dentro desta concepção, atos gerais ou normativos se contrastam com atos individuais ou especiais de acordo com o âmbito de incidência destes atos. Enquanto que nos atos gerais existe uma característica normativa e de abrangência geral, sem nenhum destinatário específico, nos atos individuais pode-se verificar a existência de indivíduos ou até grupos individualizados geralmente gerando direitos subjetivos a estes destinatários. (ibidem, p.172) O interessante a se notar aqui é que o controle judicial sobre estes atos incide de maneira diferenciada entre estes dois tipos de atos explicitados por Meirelles. De acordo com o autor, os primeiros atos, os normativos não poderiam ser objeto de contestação via judicial, salvo por meio de controle de constitucionalidade, instrumento disponibilizado pela alínea “a” do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal. Ou seja, o ato normativo só pode ser alterado em regra pela própria Administração por meio de revogação. (ibidem, p. 172) Diferentemente, os atos que dizem respeito a uma situação específica e individualizada podem ser anulados tanto pela própria Administração, uma vez constatada ilegalidade, ou, no mesmo caso, pelo próprio Poder Judiciário. “Esses atos, por proverem situações específicas e concretas, admitem anulação pela própria Administração, ou pelas vias judiciais comuns (ações ordinárias) ou especiais (mandado de segurança e ação popular), se praticados ilegalmente ou com lesão ao patrimônio público” (ibidem, p. 173). Outro tipo de ato realçado pelo autor que está sujeito à revisão hierárquica administrativa e também ao controle pelo Poder Judiciário são os atos internos. Em contraposição aos atos externos, os atos internos são aqueles, podendo ser gerais ou especiais, que não incidem sobre os administrados, mas sim entre aqueles que fazem parte da estrutura orgânica da Administração Pública. Ou seja, atos, no próprio dizer do autor, “caseiros”, que independem de publicação em órgão oficial. São atos que se contrapõem aos atos externos, estes sim, com o objetivo de atingir os administrados, pois tratam de interesses gerais da coletividade. Outra categoria de classificação dos atos administrativos pelo autor Meirelles é o que divide os atos em atos de império, atos de gestão e atos de expediente. Os primeiros são atos unilaterais, de vontade primordial da Administração; não admitem, assim, quaisquer manifestações contrárias pelo particular, pois se aplica aí o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Já nos atos de gestão, esta coerção verificada anteriormente inexiste. São atos que possuem natureza bilateral. Geralmente tratam sobre administração dos bens e serviços públicos bem como de atos negociais cujo caráter coercitivo não é necessário para atingir o fim pretendido. O terceiro tipo de ato dentro desta categoria, em contraposição aos outros dois trata-se de atos de expediente, aqueles que não possuem em sua natureza qualquer caráter decisório. Desprovidos de poder decisório, apenas dão andamento aos processos preparando-os para as decisões de mérito que por ventura devam ser tomadas dentro dos trâmites processuais administrativos daquela repartição. De lado outro, Di Pietro prefere, de maneira objetiva, listar seis classificações que, ao contrário de Meirelles que destaca quatro dentre várias outras,destas define as únicas classificações que para a autora sejam necessárias para o estudo dos atos administrativos. Os critérios utilizados nestas classificações são: pela prerrogativa com a qual atuará a Administração; pela função da vontade; pela formação da vontade; pelos destinatários do ato administrativo; pela exequibilidade destes atos e; por fim, pelos efeitos causados por aquele ato executado (DI PIETRO, 2011, p.221). A primeira classificação, quanto à prerrogativa da administração, aponta ao fato de que a Administração Pública por vezes agirá com “atos de império” mediante os quais será ressaltada a supremacia da Administração Pública quando comparada com o particular. Nestes atos, a administração será regida pela legislação especificamente administrativa, não sendo possível ao particular praticar estes mesmos atos. Em outras situações, a Administração deverá se igualar aos particulares, agindo mediante os chamados “atos de gestão” (ibidem, p. 221-222). Muito embora a doutrina clássica assim classifique esses dois tipos de atos, a autora se atenta ao fato de que atualmente a distinção vem sendo tratada por “atos administrativos” quando exercidos pela Administração conforme a legislação pertinente, e “atos de direito privado” da Administração, quando se faz necessária estabelecer paridade com o particular. Neste último caso, cabe acentuar que não serão tratados como atos administrativos para fins deste trabalho acadêmico, como bem orienta a autora, por não se tratarem de atos administrativos. (ibidem, p. 222) Utilizando o critério da função da vontade, podemos dividir os atos administrativos em “atos propriamente ditos e puros” e “meros atos administrativos”. Classificação na qual se confundem os conceitos anteriormente exposto. Isso porque os meros atos administrativos nada mais são que os chamados anteriormente de “atos da administração”, estes em contraposição aos atos administrativos propriamente ditos, conforme exposto no parágrafo anterior. (ibidem, p.222) Com a objetividade que lhe é singular, Di Pietro continua a exposição de sua classificação expondo o critério de formação da vontade do ato, através do qual faz a distinção de três atos administrativos diferentes: o simples, o complexo e o composto. A diferença é fácil de perceber. Os atos simples são aqueles que decorrem de um único órgão, singular ou colegiado. Os de formação de vontade complexa se diferenciam do composto por se tratar de apenas um único ato que expressa vontade de mais de um órgão, enquanto que o composto existe a prática de dois ou mais atos por mais de dois órgãos, sendo um complementar a outro. (ibidem, p. 224-225) Di Pietro destaca o critério do Destinatário a fim de classificar os atos administrativos. Segundo este critério os atos podem ser divididos entre atos gerais, os quais possuem destinação genérica para todos os administrados, e atos individuais que produzem efeito nos casos em concreto. (ibidem, p.225) Existem ainda, de acordo com a autora, os atos perfeitos, imperfeitos, pendentes ou consumados. Este é o critério da exequibilidade do ato administrativo. (ibidem, p. 226) Os atos chamados “perfeitos” são aqueles que se encontram em condições de produzir efeitos devido ao fato de terem sido plenamente formados sem vícios. Diferentemente do ato “imperfeito”, o qual não completou ainda todas as formalidades exigidas em lei para sua formação. Ato pendente é o ato que, muito embora tenha concluído seu ciclo de formação, ainda não produz efeitos, pois está sujeito a condição ou a termo para que comece a produzi-los. O ato consumado, de lado outro, é o ato que completou perfeitamente o ciclo de formação e já produziu todos os efeitos que dele poderiam ser produzidos. Por fim, o ato administrativo, segundo Di Pietro, pode ser dividido quanto aos efeitos produzidos, podendo ser constitutivo – quando cria, modifica ou extingue um direito do administrado, declaratório – quando apenas reconhece direito já antes existente, ou ainda, enunciativo – sendo parte da classificação já citada “meros atos administrativos”, pois apenas atestam ou reconhecem situação de fato ou de direito já existente. (ibidem, p. 227) Bandeira de Mello, ao contrário dos outros dois doutrinadores, prefere, de maneira mais aprofundada, mas não por isso prolixa, ressaltar 12 classificações as quais ele dá a importância das quais ao estudo dos atos administrativos (MELLO, 2011, p. 426). Deste modo, trabalha com as classificações: quanto à natureza da atividade; quanto à estrutura do ato; quanto aos destinatários do ato; quanto ao grau de liberdade da Administração em sua prática; quanto à função da vontade administrativa; quanto aos efeitos; quanto aos resultados sobre a esfera jurídica dos administrados; quanto à situação de terceiros; quanto à composição da vontade produtora do ato; quanto à formação do ato; quanto à natureza das situações jurídicas que criam e; por último, quanto à posição jurídica da Administração. Dentre as classificações de ato administrativo de Bandeira de Mello, podemos trabalhar em torno de algumas que serão mais importantes para se analisar em consideração ao tema abordado. Assim como Di Pietro, Bandeira de Mello também classifica os atos administrativos em atos constitutivos e declaratórios, quanto aos efeitos, em atos negociais e atos puros ou meros atos administrativos. A classificação é próxima entre os autores e o que se percebe é que há pouco o que se levantar a despeito das diferentes nomenclaturas dos critérios utilizados para se classificar os atos administrativos (ibidem, p.429). Importante classificação a se notar, contudo, é a classificação quanto ao grau de liberdade da administração, dividindo os atos entre atos discricionários e atos vinculados, o que será objeto de apreciação de outro capítulo específico para o tema. Sobre a importância da caracterização dos atos administrativos, Seabra Fagundes tece importante comentário, com o qual percebemos que identificar um ato administrativo sob o ponto de vista formal, é de extrema utilidade quando, por exemplo, da aplicação prática dos remédios constitucionais, cujo ato administrativo por vezes impugnado deverá estar bem identificado, a fim de não haver dúvidas quanto ao direito constitucional ferido (FAGUNDES, 2010, p. 33-34). Importante notar, portanto,que, após este estudo, podemos observar com mais clareza os diferentes tratamentos dados aos atos administrativos e delinear com maior prudência o campo de atuação do Poder Judiciário bem como os efeitos de seu controle sobre estes atos da Administração Pública. O que se verifica quando comparamos as diversas classificações dos doutrinadores quanto aos atos administrativos é que, a despeito dos diferentes posicionamentos sobre o tema, acabam por utilizar critérios similares em suas obras, de tal forma que há entre ele classificações, se não iguais, equivalentes. Apesar destas considerações, para o tema em questão, a mais importante das classificações aqui abordadas é a dos atos vinculados e discricionários, razão pela qual se faz oportuno destinar o tópico seguinte à análise desta classificação. 3.4. Dos atos vinculados e atos discricionários 3.4.1. A superação do princípio da legalidade administrativa e da obediência dos atos administrativos ao princípio da juridicidade Cabe neste ponto, uma consideração introdutória a respeito da superação do princípio da legalidade administrativa pelo princípio da juridicidade, a fim de se desenvolver o assunto de uma forma – ainda que não exaustiva – mais completa; e que permita, assim, melhor assimilação. De acordo com a doutora Germana de Oliveira Moraes, existe uma relação intrínseca entre o Princípio da Legalidade no Direito Administrativo e o princípio abordado anteriormente da separação dos poderes estatais. Essa ligação é fruto do nascedouro destes dois institutos, no seio das concepções liberalistas. A autora escreve que “O princípio da legalidade, fruto histórico do liberalismo, nasceu, sob inspiração das ideias jusnaturalistas, de soberania popular e da separação de poderes, para assegurar a supremacia do legislador ordinário, em contraposição ao absolutismo monárquico (…)” (MORAES, 2004, p. 27). Ainda neste contexto histórico, pode-se dizer que foram diversas as manifestações na história da humanidade contra o poder absoluto dos monarcas e abusos de poderes das autoridades investidas nas figuras públicas do Estado. Na obra de Canotilho, podemos apontar diversos sistemas jurídicos que buscaram no Direito uma forma de contenção às atuações injustas do Poder Executivo, dentre elas: o Ruleof Law (sistema britânico), o Always underlaw (sistema americano), o L’État legal (sistema francês), ou ainda, o Rechtsstaat (sistema alemão). Cada um com diferentes características que buscaram afirmar o que chamamos hoje de Estado de Direito. Foram longas as transformações que levaram ao que é chamado hoje, em seu conceito moderno, o Estado de Direito (CANOTILHO, 2003, p. 92-97). O autor ensina ainda que, assim como o princípio da separação dos poderes, o princípio da legalidade administrativa também é instituto que ajuda a consolidar o Estado de Direito na constituição portuguesa (ibidem, p. 92-97). No direito brasileiro não é diferente. Muito embora não haja definição legal do princípio da legalidade na legislação pátria, existem várias referências legais a este princípio. A Administração Pública é regida por diversos princípios na Constituição Federal de 1988, explícitos e implícitos. Dentre os princípios explícitos, reside o Princípio da Legalidade, cuja essência não se coaduna com as decisões políticas provenientes daquilo que foi exposto anteriormente como Governo, como será exposto a seguir (MELLO, 2012, p. 103). Neste ponto, a análise do art. 37 da Carta Magna é de suma importância, pois a partir deste dispositivo legal podemos perceber a opção de destaque por cinco princípios explicitamente responsáveis por balizar a atividade jurídico administrativa do Poder Público: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). Ao se analisar o dispositivo constitucional, é possível verificar que lá está o mandamento, de maneira expressamente consubstanciada, de que a Administração Pública obedecerá a certos princípios, dentre os quais, o da Legalidade. Não há, porém, nos mandamentos constitucionais, definição deste princípio, o que se tornou objeto de apreciação doutrinária. À despeito da técnica legislativa equivocada sobre o tema, como explicita José Afonso da Silva, o escopo do artigo transcrito se coaduna com a intenção de orientar o administrador público a uma “boa administração”, orientando os atos administrativos por ele produzidos (SILVA, 2011, p. 667). Até por isso, tem-se um mandamento genérico de obediência aos princípios ali expostos, sem, contudo trazer um parâmetro para a conceituação destes princípios administrativos. Apesar da falta de uma definição legal específica e expressa deste princípio, é possível trazer à tona o inciso II do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, cujo conteúdo diz respeito à autonomia da vontade no âmbito das relações particulares. É desta forma que a autora Di Pietro traça o contorno do princípio da Legalidade, pois, de acordo com o raciocínio por ela desenvolvido, se ao particular lhe é permitido, por mandamento constitucional, fazer tudo aquilo que a Lei não lhe proíbe, à Administração Pública somente lhe será permitida realizar aquilo que a lei expressamente lhe autorizar, podendo agir livremente dentro do que estiver positivamente consolidado. “Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe. (…) No direito positivo brasileiro, esse postulado, além de referido no artigo 37, está contido no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal (…). Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei”. (DI PIETRO, 2011, p. 65). Em sentido contrário ao que dispõe Di Pietro, Meirelles encontra nas leis 9.784/1992, artigo 2º, inciso I, e 4.717/1965, artigo 2º, “c”, e parágrafo único, “c” (lei regulamentadora da ação popular) os fundamentos legais do Princípio da Legalidade, ao lado do disposto no artigo 37 da Lei Maior. Assim, para o autor, o administrador público nesta condição está invariavelmente sujeito aos mandamentos da lei, de tal forma que não pode se abster dos poderes-deveres a ele conferidos pela legislação que rege o ordenamento jurídico administrativo (MEIRELLES, 2011, p.89-90). Muito embora o fundamento legal do Princípio da Legalidade destoe neste aspecto entre alguns doutrinadores, é possível verificar sua essência em todos os conceitos proferidos pelos doutrinadores administrativos. Este princípio abarca dois fundamentos quais sejam o princípio da prevalência da lei e o princípio da reserva de eu que juntos vinculam a atuação do poder público. É exatamente o que diz Canotilho quando propõe que “De uma forma genérica, o princípio da supremacia da lei e o princípio da reserva de lei apontam para a vinculação jurídico-constitucional do poder executivo” (CANOTILHO, 2003, p.256). O conceito do Princípio da Legalidade no âmbito das relações administrativas se encontra muito bem resumido por Bandeira de Mello. Assim como Canotilho, Mello afirma em sua obra que o Princípio da Legalidade surge a partir da concepção de Estado de Direito, pois, uma vez instaurado o Estado de Direito, a submissão do Estado e do Poder Público à lei se torna princípio basilar de sua estrutura. “(…) o Direito Administrativo (…) nasce com o Estado de Direito: é consequência dele. É o fruto de submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal (…)” (MELLO, 2011, p. 103). Muito embora o princípio da legalidade seja abordado por vários doutrinadores como alicerce das relações jurídico administrativas, interessante notar que existe também diversas considerações sobre uma superação do Princípio da Legalidade em prol da Juridicidade administrativa. Neste sentido, Moraes aponta que aquele não tem mais a capacidade de suportar os diversos problemas jurídicos que o estado moderno propõe ao Direito. Neste sentido, ela escreve que: “O princípio da legalidade, não obstante seu papel fundamental de contentos do absolutismo monárquico, não se mostrou por si só suficiente para deter ou prevenir os abusos da Administração no Estado Social (…). Para amoldar-se a essas imposições de contenção do Poder Legislativo e suprir as deficiências na regulação do Poder Executivo, o princípio da legalidade alterará parcialmente seu significado. (…) Ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com o Direito, pois este passa a abranger, além das leis – das regras jurídicas, os princípios gerais de Direito, (…) com a superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade” (MORAES, 2004, p. 29). Ou seja, a autora defende que o princípio da legalidade deve tomar caráter mais abrangente na esfera administrativa, de tal forma que não se pode considerar tão somente a feição clássica do princípio da legalidade, com a submissão dos atos administrativos à norma em sentido estrito, mas sim a submissão às regras jurídicas e aos princípios jurídicos. Trata-se, portanto do Princípio da Juridicidade Administrativa. A própria sistemática da Constituição Federal, no tocante às disposições pertinentes à Administração Pública, submete esta a princípios constitucionais explícitos (art. 37, Carta Magna de 1988), aos quais os atos administrativos devem obediência. A princípio da legalidade administrativa, diga-se de passagem, encontra-se inserto dentro deste dispositivo. A importância da valorização dos princípios, além da mera obediência às normas, é colocada de forma assertiva por Celso Antônio Bandeira de Mello senão vejamos: “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouçou lógico e corrosão de sua estrutura mestra.” (MELLO, 2011, p. 808) Justamente devido ao seu caráter mais abrangente que o que se geralmente espera da redação normativa, a violação de um princípio é mais ampla, e, por conseguinte, mais danosa ao ordenamento jurídico, se é que é possível realizar este tipo de valorização do danoem se tratando de violação de direito. Outro autor que explora a questão da superação do princípio da legalidade, também no mesmo sentido que Bandeira de Mello, é o doutrinador Vladimir da Rocha França. Em sua obra, o autor engloba, assim como o fez nossa Carta Magna, o princípio da legalidade dentro do princípio da juridicidade, dando maior amplitude ao conceito formado no berço do Estado liberal. “O princípio da legalidade administrativa constitui elemento essencial de um princípio maior, o da juridicidade administrativa, que tem alcance bem mais amplo e, portanto, não se restringindo à lei formal. A atividade administrativa não está subordinada apenas à esta, mas também a todo regime jurídico-administrativo” (FRANÇA, 2000, p. 62). Daí tiramos a necessidade de analisar a obediência dos atos administrativos a uma ordem jurídica mais abrangente, abordando os princípios os quais circundam a esfera do Direito Administrativo, sob pena de se restringir o controle judicial dos atos administrativos apenas aos atos vinculados. 3.4.2. Diferença dos atos administrativos vinculados e discricionários No Direito Administrativo, costuma-se diferenciar os atos administrativos vinculados dos atos administrativos discricionários. Segue o porquêde esta diferenciação ser abordada pelo direito administrativo. Muito em razão do princípio da legalidade administrativa consubstanciada no art. 37 c/c art. 5º, inciso II, ambos da Constituição Federal brasileira, pode-se concluir logicamente que só haverá ato emanado pelo poder público administrativo caso haja lei, ou seja, “(…) a Administração não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei” (DI PIETRO, 2011, p.65). Isto implica necessariamente na obediência do ato administrativo à lei. O que não exclui necessariamente a obediência ao conjunto normativo de leis e princípios, pois como já se viu anteriormente, o Direito Administrativo é regido não só pelo Princípio da Legalidade, mas também pelo Princípio da Juridicidade, este um pouco mais amplo que aquele. Assim sendo, apesar de os atos administrativos terem esse caráter vinculatório em relação à lei, à administração Pública é garantida, em certos casos, uma possibilidade de escolha, que,muito embora ainda haja obediência dos atos administrativos ao princípio da legalidade (ou ainda, ao princípio da juridicidade), estes poderãoconter em si uma margem de decisão pela Administração Pública. O entendimento dos elementos que compõe um ato administrativo é bem útil para o discernimento desses dois tipos de atos administrativos. Para José Afonso da Silva, a diferença entre os atos vinculados e discricionários é bem objetiva, pois, sabendo que os atos administrativos são compostos de certos elementos, como competência, finalidade, forma, motivo e objeto, é possível fazer a diferenciação (SILVA, 2011, p.429). Devido ao fato de a competência, a forma e a finalidade do ato ser sempre expressos em lei, há que se analisar somente o motivo e o objeto do ato para diferenciar atos administrativos vinculados e discricionários (ibidem, p.429). De acordo ainda com o autor, se o motivo do ato e seu objeto forem também expressos em lei, sem possibilidade de apreciação da Administração Pública, o ato administrativo em questão será vinculado àquela legislação. Caso contrário, dando margem a tal apreciação, o ato será considerado discricionário (ibidem, p.429). Na mesma linha de raciocínio, encontramos Seabra Fagundes também aponta o motivo e o objeto do ato administrativo como os elementos caracterizadores de uma eventual discricionariedade da Administração Pública (FAGUNDES, 2010, p. 91-94). Importante observação faz, contudo, Hely Lopes Meirelles, acerca da conveniência do ato administrativo vinculado. Existe uma liberdade de atuação da Administração Pública dentro dos limites que a lei delimita para o administrador. Mesmo no caso do ato ser vinculado. Ou seja, ainda que o ato não seja discricionário, existe a possibilidade de análise por parte do administrador acerca da conveniência daquele ato, salvo disposição legal em contrário. Sobre os atos vinculados, o autor escreve: “(…) não significa que nessa categoria de atos o administrador se converta em cego e automático executor da lei. Absolutamente, não. Tanto nos atos vinculados como nos que resultam da faculdade discricionária do Poder Público o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzam a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo – o bem comum. Poderá, assim, a Administração Pública atuar com liberdade, embora reduzida, nos claros da lei ou do regulamento” (MEIRELLES, 2012, p. 175). A partir deste ponto, poder-se-ia perguntar, então, o que diferencia o ato vinculado do discricionário, se nos dois casos é permitida uma margem mínima de análise acerca de sua conveniência. Sobre o assunto, Edmir Netto de Araújoaponta que o liame da diferenciação de ato vinculado e discricionário é bastante sutil, mas perceptível. De acordo com o autor, o cerne da questão está na livre determinação do elemento objeto do ato em questão, tornando-o discricionário. “A livre determinação do objeto do ato administrativo é o núcleo do poder discricionário, que se insere entre a verificação da existência dos motivos de fato e de direito, verificação esta passível de controle jurisdicional; e a avaliação desses motivos, que se situa fora do controle jurisdicional” (ARAÚJO, 2010, p. 1210). Talvez pela dificuldade de se contornar e distinguir um ato administrativo vinculado de um discricionário, Di Pietro decidiu por um conceito mais fechado e objetivo. Segundo a autora, a diferença dos dois tipos de ato reside na abertura ou não de possibilidades, de opções dadas ao administrador de atuar dentro do mandamento legal. “(…) neste caso se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixou opções; ela estabelece que diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. (…) Em outras hipóteses (…) o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador” (DI PIETRO, 2011, p. 214). A autora ainda ressalta, sobre os atos administrativos discricionários, na mesma linha de raciocínio desenvolvida por José Afonso da Silva, que: “o poder de ação administrativa, embora discricionário, não é totalmente livre, porque, sob alguns aspectos, em especial a competência, a forma e a finalidade, a lei impõe limitações”. A atuação para além desses parâmetros configuraria, assim, atuação contra legem, arbitrária, e não mais discricionária do Poder Público (ibidem, 2011, p. 214). Apesar de os conceitos se aproximarem, cada doutrinador disserta sobre o assunto de diferentes formas, de tal forma que não é possível delinear um parâmetro objetivo entre o pensamento dos juristas brasileiros. À título exemplificativo, até mesmo no tocante ao elemento do ato administrativo “finalidade”, não se têm uniformidade de entendimento. Enquanto a grande maioria dos autores aponta a competência/sujeito, a finalidade e a forma como necessariamente vinculados, Di Pietro abre parênteses quanto ao segundo e o terceiro elementos, quanto à finalidade e a forma, admitindo casos de discricionariedade. De acordo com a autora, além do motivo e do objeto poderem ser alvo da discricionariedade dos atos administrativos, existe uma visão possível de que a finalidade pode ser discricionária ou vinculada, a depender de seu conceito amplo ou restrito, respectivamente, que será dado à finalidade (ibidem, 2011, p. 216). Explica: “No primeiro sentido, pode-se dizer que a finalidade seria discricionária, porque a lei se refere a ela usando noções vagas e imprecisas (…). Quando a lei não estabelece critérios objetivos que permitam inferir quando tais fins são alcançados, haverá discricionariedade administrativa (…). No segundo sentido, a finalidade é sempre vinculada; para cada ato administrativo prevista na lei, há uma finalidade específica que não pode ser contrariada.” Existe ainda, no caso da forma a possibilidade de esta ser discricionária, pois para a autora, não importa apenas que esteja escrito em lei, somente isto não vinculará a forma. Isto, porque, caso estejam previstas duas ou mais formas possíveis de se realizar o mesmo ato administrativo nas mesmas condições, caberá ao administrador a discricionariedade de escolher o que melhor convier para a administração e para os administrados (ibidem, 2011, p. 216-217). Percebe-se a diversidade de visões sobre o assunto. Contudo, para prosseguimento da questão, faz-se primoroso adentrar mais profundamente no que tange à discricionariedade do ato administrativo, pois é a partir daí que tiraremos as conclusões à respeito do controle dos atos administrativos de uma forma abrangente. 3.4.3. Da discricionariedade administrativa Já se viu que o ato administrativo, dentre as várias classificações doutrinária, poderá ser vinculado, não der margem à discricionariedade do administrador, ou discricionário, quando houver esta possibilidade. Separadas estas classificações, poderemos fazer maiores considerações sobre a discricionariedade dos atos administrativos, ou simplesmente, sobre a discricionariedade administrativa. Seria inaceitável que no mundo real, com toda a sua inerente complexidade de fatores e possibilidades, o Direito, com suas normas – leis e princípios – positivasse as atuações do Poder Público a fim de legitimar sua atuação em nome do princípio da juridicidade. Por este motivo, admite-se que, dentro de um ordenamento jurídico que dispõe sobre as normas de Direito Administrativo, traga disposições que permitam uma margem de liberdade para a atuação da Administração Pública, tornado viável e juridicamente possível sua atuação, face às mais diversas configurações fáticas, sem entrar em desconformidade com a lei. Neste sentido, Meirelles conceitua a discricionariedade administrativa com fundamento e justificativa, justamente nesta: “(…) complexidade e variedade dos problemas que o Poder Público tem que solucionar a cada passo e para os quais a lei, por mais casuística que fosse, não poderia prever todas as soluções, ou, pelo menos, a mais vantajosa para cada caso ocorrente. (…) quando se justifica a competência discricionária (…) o poder discricionário da Administração, não se está justificando qualquer ação arbitrária, realizada ao arrepio da lei. A atividade discricionária não dispensa a lei, nem se exerce sem ela, senão com observância e sujeição a ela” (MEIRELLES, 2012, p. 177). Assim, muito embora exista esta margem de apreciação em face da diversidade de situações da natureza que se apresentarão para a Administração Pública em sua gestão, percebe-se que ainda há obediência ao princípio da legalidade, ou, ainda, de maneira mais abrangente, ao princípio da juridicidade, como já se viu anteriormente. Esta permissão concedida ao legislador em certos casos não precisa estar necessariamente explícita no ordenamento jurídico. Contudo, é necessário que haja previsão, ainda que implícita, da possibilidade de discricionariedade pelo administrador público, sob pena de que o ato que age supra legem adentre o ardiloso terreno da ilicitude e do abuso do poder discricionário que a lei o confere (ibidem, 2012, p. 177-178). Assim conclui também Maria Sylvia Di Pietro pela inexistência de ato única e exclusivamente administrativo, não vinculado (DI PIETRO, 2011, p. 218). É possível, a partir desta imperiosa ressalva, introduzir o conceito do mérito administrativo, que se trata de abstração jurídica criada para possibilitar ao Administrador Público a análise da conveniência ou não dos atos discricionários a serem por ele praticados em prol do melhor interesse público. É o que resume o desembargador Seabra Fagundes: “O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas da boa administração, ou, noutras palavras, é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta. Por isso, exprime um juízo comparativo. Compreende os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, equidade, razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo” (FAGUNDES, 2010, p. 180). Influência da doutrina italiana, o vocábulo “mérito administrativo” é largamente utilizado na doutrina jurídico administrativa brasileira (DI PIETRO, 2011, p. 218-219). Sob o ponto de vista da jurista Germana de Oliveira Moraes, é possível ainda definir a discricionariedade administrativa sob um critério formal, também chamado pela autora de critério negativo, segundo o qual a discricionariedade é a “margem de livre decisão não regulada ou parcialmente regulada pelo Direito, atribuída pela norma à Administração” ou, ainda, como a “ possibilidade de escolha entre várias soluções jurídicas” (MORAES, 2004, p. 37). Segundo Renato Alessi, é possível, elencar três requisitos para configuração da discricionariedade administrativa: “a valoração do interesse público, a falta de determinação precisa na norma do que venha a ser o interesse público e a margem de liberdade de decisão atribuída pela norma à Administração” (ibidem, p. 40). Dizer que o Poder Público utiliza-se do mérito administrativo para suas ações em uso do poder discricionário que lhe é legalmente conferido, é tratar de valoração de decisões administrativas. Trata-se de analisar a vantajosidade e as consequências dos atos tomados pela Administração (MEIRELLES, 2012, p. 163). França, após abordar o fundamento histórico sobre o qual se assenta a construção da discricionariedade no âmbito do Direito Administrativo ressalta ainda mais este caráter político que este tipo de ato possui. Para ele: “Discricionariedade consiste num processo de decisão político-jurídica, através do qual a autoridade pública, para a composição ou concretização de um provimento normativo, emprega critérios de conveniência e oportunidade na análise da realidade social, admitidos pela ordem jurídica” (FRANÇA, 2000, p. 39). A partir desta consideração, pode-se perceber que não é absolutamente abstrato o conceito de mérito administrativo. A própria doutrina, a partir destas considerações, verificou a existência de dois elementos que compõe esta ideia de valoração dos atos administrativos discricionários.Assim, quando se analisa o mérito administrativo dos atos discricionários, de fato, trata-se da análise de dois fatores: da conveniência e da oportunidade, analisando assim, caso a caso, qual decisão será a mais conveniente para a finalidade em questão e se é ou não oportuna a aquela ação diante da configuração fática que se apresenta (ibidem, p. 39-46). Concatenando as ideias aqui sugeridas neste capítulo, Germana Moraes consegue densificar estes elementos abordados, conceituando de maneira bastante eficaz a discricionariedade administrativa. “Discricionariedade é a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta, com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pelos princípios gerais de Direito e dos critérios não positivados de conveniência e de oportunidade: 1º) complementar, mediante valoração e aditamento, os pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo; 2º decidir se e quando ele deve ser praticado; 3º) escolher o conteúdo do ato administrativo dentre mais de uma opção igualmente pré-fixada pelo Direito; 4º) colmatar o conteúdo do ato, mediante a configuração de uma conduta não pré-fixada, porém aceira pelo Direito” (MORAES, 2004, p. 48). Desta forma, sem necessariamente confundir os conceitos de discricionariedade e mérito administrativo, Germana ressalta o caráter da liberdade política-administrativa, antes acionado por França. Interessante destacar de maneira contundente a afirmação de que mérito administrativo e discricionariedade administrativa não se confundem. Como se observou aquele reside dentro deste, porém não o engloba. Em fato, trata-se de diferentes ideias. Apesar de nebuloso o tratamento desta diferenciação em diversas ocasiões, por parte da doutrina administrativa brasileira. Moraes trata a diferenciação em profunda análise doutrinária, consolidando ao fim o pensamento de que o mérito é aquele ponto de análise dos pressupostos fáticos que ensejaram e fundamentaram a prática da discricionariedade admitida em lei para a Administração Pública (ibidem, p. 48-59). 4.DO CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS Partindo do preceito universal de que o ser humano é passível de cometimento de erros, é impossível aceitar o fato de que os atos administrativos, produzidos por seres humanos venham a ser perfeitos e intocáveis. A possibilidade de revisão e controle dos atos administrativos, estudados no capítulo anterior, está prevista em nosso ordenamento jurídico. Já foi possível perceber até este ponto que não há discussão acerca da possibilidade ou não de controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, seja devido à competência jurisdicional conferida a este poder seja pela verificação do atendimento aos requisitos jurídicos do ato administrativo. Cabe a partir daqui verificar como pode ocorrer o controle sobre estes atos falíveis por natureza. 4.1. Do controle pela própria Administração Pública e do Instituto da Autotutela Além dos princípios de Direito administrativos que se encontram explícitos no ordenamento jurídico, existem princípios, ou subprincípios que daqueles decorrem, de tal forma que integram esta sistemática. Dentre esta segunda categoria de princípios, muitas vezes implícitos, diga-se de passagem, encontra-se o princípio da autotutela, segundo o qual à Administração Pública é permitida a revisão, seja por anulação, no caso de atos administrativos tão somente vinculados, seja por revogação, no caso de atos administrativos discricionários, dos diversos atos produzidos no âmbito da atividade executória que lhe é inerente. Assim conceitua Di Pietro (2011), pois para a autora: “(…) pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário” (idem, p. 70). Ressalte-se por oportuno que o conceito da autora não procura excluir o Poder Judiciário de qualquer apreciação sobre os atos administrativos. É que no caso, a revisão dos atos administrativos por aquele quem os produziu independe de análise prévia sobre aquele poder responsável pela função jurisdicional. Assim, por mais que o ato administrativo seja passível de impugnação judicial, poderá a Administração Pública, uma vez detectada a ilegalidade, a inconveniência ou a inoportunidade, revê-lo ex officio. Não é destoante a visão de Hely Lopes Meirelles sobre a autotutela. A diferenciação na natureza jurídica do instituto da autotutela dentro do Direito Administrativo, apesar do interesse acadêmico no assunto, não altera o seu substrato, a sua importância e sua utilidade na concatenação lógica das ideias trabalhadas no âmbito do controle dos atos administrativos. Desta forma, por mais que o autor considere a Autotutela como um “poder” administrativo, e não um princípio decorrente da Legalidade dos atos administrativos, como é na visão de Di Pietro (ibidem, p. 70-71), não é isso que dificultará a análise da fundamentação aqui trabalhada. “A anulação dos atos administrativos pela própria Administração constitui a forma normal de invalidação de atividade ilegítima do Poder Público. Essa faculdade assenta no poder de autotutela do Estado. É uma justiça interna, exercida pelas autoridades administrativas em defesa da instituição e da legalidade de seus atos. Em casos excepcionais, por força do princípio da segurança jurídica e respeito à boa-fé, o ato poderá deixar de ser anulado, o que exige motivação que demonstre a prevalência daqueles frente ao princípio da legalidade, como exposto no cap. II, item 2.3.7” (MEIRELLES, 2012, p. 216). Quanto à primeira parte da citação, a assertiva vai ao encontro da ideia proposta por Di Pietro. Na segunda parte, contudo, Meirelles impõe a exceção de que, quando a especificidade do caso requerer, muito embora o ato anulável sugira correição, poderá este ser mantido, em nome da preservação do princípio da segurança jurídica, mantendo-o no ordenamento jurídico, aceitando seu vício, pois caso retirado, restaria abalada a segurança jurídica daquela situação. Trata-se de conflito de princípios, controvérsia jurídica que necessitaria de ponderação caso a caso, com atenção à situação fática que envolve o ato inválido. Nesta excepcionalidade, os efeitos do ato nulo que atingirem terceiros de boa-fé são preservados, tendo efeitosex nunc, enquanto que os efeitos do ato para as partes integrantes da relação jurídica advinda do ato administrativo inválido possuem caráter ex tunc (idem, p. 217). Para além da oportuna consideração desta exceção, demais interessante se faz a colocação de que o poder de autotutela pertence ao Estado, pois não limita a possibilidade da revisão dos atos à Administração Pública de apenas um dos poderes. Já se percebeu que não é possível atribuir o exercício da administração pública somente ao poder executivo, pois ela também coexiste nos demais poderes do Estado. Neste sentido, importante a recordação de que já foi mencionada a possibilidade de o Poder Legislativo ou o Poder Judiciário exercer a função principal do Poder Executivo, qual seja a de administrar, pois a Administração Pública não está restrita ao Poder Executivo e pode ser verificada no âmbito de todos os poderes estatais. Relembrada esta condição, no caso do Poder Judiciário, faz-se interessante apontar aqui importante dispositivo constitucional encontrado na Carta Magna, onde, em seu artigo 103-B, § 4º, inciso II, consta em uma das competências do Conselho Nacional de Justiça, que este órgão do Poder Judiciário deverá: “II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (grifo nosso) tendo sido este texto incluído pela Emenda Constitucional de nº. 24, editada em 2004. Desta forma, é importante tomar nota de que a legalidade dos atos administrativos praticados pelo Poder Judiciário, a título exemplificativo, também é objeto de controle pelo próprio Poder Judiciário. Existe um poder de auto revisão de seus atos que pode ser verificada pela simples leitura do artigo citado. Natural constatar, desde logo, que existam mecanismos de controle de atos administrativos emanados por certo Poder, dentro deste mesmo Poder. Muito embora se note que no caso do Poder Judiciário foi atribuída a competência revisional ao Conselho Nacional de Justiça que poderá rever os atos praticados por quaisquer órgãos do Poder Judiciário. Sobre o instituto da Autotutela, Odete Medauar (Direito Administrativo Moderno, 14ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010) ressalta que é justamente por causa da autotutela que se vê necessário o zelo com a legalidade de seus atos, pois, uma vez concedida autonomia à Administração Pública para produzir seus próprios atos e exercer a função que lhe é natural, também deve poder rever de ofício seus atos, sem prejuízo de interferências externas, pois “em virtude desse princípio, a Administração deve zelar pela legalidade de seus atos e condutas e pela adequação dos mesmos ao interesse público. Se a Administração verificar que atos e medidas contêm ilegalidades, poderá anulá-los por si própria (…)”(MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 14ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010). Percebe-se, assim, que a autotutela já é por si só um mecanismo de controle da legalidade dos atos administrativos.Mostrando-se em tese, mais prático que a própria revisão realizada no âmbito de um processo judicial. Já que o exercício dos atos administrativos não é privativo do Poder Executivo, pode-se concluir que o poder de cujo ato fora emanado poderá corrigi-lo em vista de adequá-lo aos requisitos jurídicos para atingir a o interesse público com a produção daquele ato administrativo. O próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto na súmula de número 346, concebida em sessão plenária de 1963, cujo enunciado profere: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. Baseado em precedentes cujas fundamentações perfilam obras do direito administrativo italiano e brasileiro, o STF sumulou a questão de forma a permitir que a Administração Pública, uma vez constatando a existência de ato eivado de ilegalidade possa corrigi-lo sem a necessidade de se levar a questão aos órgãos jurisdicionais competentes, muito embora a primeira possibilidade não exclua, conforme o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal. Esta não foi, contudo, a última súmula da Suprema Corte brasileira sobre o assunto. Ao editar a súmula de nº 473, sua redação ficou da seguinte forma:A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; revoga-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos, a apreciação judicial. De uma forma mais cautelosa que a súmula anterior, a súmula 473 cuidou de conferir à administração o poder de revisão de seus atos administrativos sem excluir, contudo, a possibilidade de apreciação judicial. Trata-se da afirmação judicial do poder de autotutela. Desta súmula, podemos perceber algumas características estudadas ao longo deste trabalho. Primeiramente, confere-se aos atos administrativos viciados a característica de ilegalidade. Neste caso, poderá a Administração Pública anular seus atos, razão pela qual quaisquer direitos que por ventura poderiam deste ato advir, não existirão. Em segundo lugar, tratando-se de ato administrativo motivado pelos critérios de juízo de conveniência e oportunidade, o chamado ato discricionário, não há que se falar em anulação do referido ato administrativo, pois não há necessariamente ilegalidade como um vício eventualmente constatado no primeiro caso. Nesta hipótese, a revisão do ato será feita por revogação. Ainda no âmbito do disposto no enunciado da súmula 473 do STF, Meirelles (2011, p.216) explica que o prazo para anulação do ato administrativo é indeterminado (salvo disposição legal em contrário) enquanto que o prazo para revogação do ato administrativo, de acordo com a Lei nº. 9.874/1999 é de cinco anos, ressalvados os casos nos quais a má-fé for constatada. 4.2. Do controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário Os atos administrativos estão sujeitos tanto ao controle administrativo, realizado pela própria Administração Pública com sua autonomia de revisar sua atuação(princípio da autotutela), quanto ao controle judicial, pelo Poder Judiciário que atuará intervindo naqueles atos que confrontarem o ordenamento jurídico (GASPARINI, 2010). Conforme já se viu anteriormente, de acordo com o princípio da autotutela, a Administração Pública poderá exercer o seu poder de revisão, anulando atos administrativos originados de seus próprios órgãos, anulando-os ou revogando-os, a depender do caso, como, inclusive, dispõem as súmulas 346 e 473 do STF. Da leitura integral da súmula 473 do STF, em especial, é possível verificar que a jurisprudência consagra positivamente em jurisprudência o princípio da autotutela, com a ressalva “em todos os casos” da possibilidade de apreciação judicial dos mesmos atos administrativos. Daí, possível seria questionar, à princípio, se esta premissa valeria realmente para todos os casos, sem exceções. Como já vimos anteriormente, existem dois tipos de atos administrativos, os vinculados e os discricionários. Quanto aos primeiros, os atos vinculados, não há que questionar sua apreciação pelo Poder Judiciário, pois, como já se viu anteriormente, é sua função julgar conforme o ordenamento jurídico, conferindo a validade jurídica e a conformidade legal destes atos. Ou seja, por simples dedução lógica, os atos administrativos vinculados, por serem estritamente forjados em conformidade com aquilo que a legislação administrativa autoriza, são por sua vez, apreciáveis pelos órgãos judiciários com base no princípio administrativo da legalidade, como bem expõe o autor Luciano Ferreira Leite: “O desatendimento das normas legais por parte da Administração aflora de maneira mais nítida nos atos vinculados, porquanto aí os agentes estão sujeitos a um único comportamento na aplicação do direito. É detectável, portanto, nessa modalidade de atos, sem maiores dificuldades, a ocorrência de ilegalidade, porquanto a diretiva traçada pelo ordenamento jurídico não comporta nenhum poder de decisão por parte dos agentes e órgãos, na medida em que prevalece necessária e obrigatória a vontade da lei. Tarefa mais árdua, sem dúvida, consiste na verificação do descumprimento da regra de dever, quando a lei autoriza a Administração a optar por várias soluções possíveis; isso porque essa opção não implica em atuação inteiramente livre (…)” (LEITE, 1981, p. 37). Ou seja, merecem especial atenção os atos administrativos discricionários, pois neles, a verificação da nulidade do descumprimento do dever da Administração Pública é um pouco mais complexa e depende muito do ponto de vista de cada autor acerca do instituto da discricionariedade. Atenção especial, diz-se, pois a vinculação de um ato administrativo já limita o exame de sua validade à norma na qual está cercado o ato. Em visão panorâmica dos três poderes do Estado, pode-se dizer que existem duas decorrências simples da vinculação do ato administrativo no âmbito da Administração Pública. A primeira constatação é a de que o ato administrativo vinculado deverá observância às leis promulgadas pelo Poder Legislativo. A segunda decorrência é a da submissão ao Poder Judiciário (TOURINHO, 2004, p. 20). De lado outro, no âmbito dos atos discricionários, existe algumas observações a serem feitas sobre seu controle, pois, diferentemente do controle judicial exercido sobre os atos vinculados, aqui estamos a falar de um campo sensível onde o administrador toma decisões de natureza propriamente administrativa ou às vezes até mesmo política, o que poderá ensejar à priori, conflito no princípio da separação dos poderes. Em sua obra do Direito Administrativo Brasileiro, Meirelles dedica capítulo no qual trata justamente da apreciação da nulidade de atos administrativos pelo Poder Judiciário. Note-se, contudo, desde já, que se trata de assunto dedicado especificamente à anulação dos atos pelo Poder Judiciário o que não inclui, portanto a revogação dos atos discricionários, esta não abordada neste tópico. De acordo com o autor: “Os atos administrativos nulos ficam sujeitos a invalidação não só pela própria Administração como, também, pelo Poder Judiciário, desde que levados à sua apreciação pelos meios processuais cabíveis que possibilitem o pronunciamento anulatório. (…) A Justiça comente anula atos ilegais, não podendo revogar atos inconvenientes ou inoportunos mas formal e substancialmente legítimos, porque isto é atribuição exclusiva da Administração” (MEIRELLES, 2012, p. 217). Assim uma vez que seja ajuizada a medida judicial cabível para anulação do ato administrativo nulo esta poderá resultar em pronunciamento anulatório, em decisão judicial procedente, a qual expurgará o ato do ordenamento jurídico, anulando os efeitos por ele produzidos, salvo a exceção comentada anteriormente, em caso de proteção ao princípio da segurança jurídica ou em respeito à boa-fé de terceiros, caso que será devidamente analisado pela Justiça, lide a lide. Sobre o assunto, Márcio Pestana (2010) observa que existe um centro o qual o autor considera intocável no âmbito do ato administrativo discricionário. Segundo o autor, este núcleo deve ser preservado da revisão pelo Poder Judiciário, sob pena de o juiz substituir o papel do administrador público nas decisões que lhes são próprias de sua função. Trata-se do mérito administrativo. “(…) o núcleo do mérito administrativo, próprio dos atos discricionários, desde que observadasas condições precedentes que lhe são impostas pelo ordenamento, não deve se submeter à revisibilidade do Poder Judiciário, sob pena de o juiz passar a substituir o administrador público, o que não se compagina com a ordem constitucional vigente no País” (Direito administrativo Brasileiro, p.657, 2ª edição, Rio de Janeiro: Elsevier, 2010). Assim, para o autor, existe uma parte dos atos administrativos discricionários que não poderia o Poder Judiciário apreciar por se tratar de competência exclusiva da função administrativa. Trata-se justamente do mérito administrativo. Trata-se da conveniência e da oportunidade do ato para aquela determinada situação fática cujo contexto ensejou a produção de determinada ação, que ensejou uma decisão administrativa em cuja complexidade concorrem diversos fatores fáticos externos ao administrador e inclusive internos ao administrador, admitida a diversidade biológica do pensamento humano. Esta parte, portanto, não pode ser apreciada pelo Poder Judiciário. Bem objetiva, contudo, é a conclusão que Luciano Leite chega no tocante à possibilidade do controle judicial dos atos administrativos discricionários; sedimenta no interesse público o grande balizador da questão, pois: “(…) ao Judiciário cabe sempre o exame da legalidade do ato, ainda que tenham os agentes públicos possibilidade de, através de atuação discricionária, escolher entre duas ou mais soluções a que melhor consulte o interesse público” (LEITE, 1981, p 38). Como se observa, de acordo com este autor, não é a variedade de escolha, de opções que fará do Administrador do Poder Público livre para escolher a que bem entender. O critério mínimo para tal decisão é a de atender o interesse público. O Poder Judiciário, no papel de examinador da legalidade dos atos administrativos fará o devido exame do ato discricionário, não para julgar a melhor decisão administrativa, mas para julgar se a decisão tomada atinge ou não o mínimo necessário que é o interesse público. Em caso afirmativo, o ato está válido. Em caso negativo, existe nulidade no ato discricionário. Edmir Netto de Araújo prefere lidar com a noção de parâmetros, estudando caso a caso, de uma forma subjetiva, o grau de vinculação e o grau de discricionariedade. Em sua concepção, a análise do ato discricionário no que concerne a discricionariedade é novamente afastada, utilizando-se de outro fundamento para sedimentar sua justificativa (ARAÚJO, 2010, p. 1207-1212). O autor ressalta que, salvo determinação expressa em lei que autorize a revisão do ato discricionário pelo Poder Judiciário,a sua apreciaçãopela Justiça,deste ato administrativo em cujo seio haja decisão de mérito administrativo, não será possível pelo fundamento principal de que, se a lei quis deixar uma margem de escolha ao administrador, esta margem foi deixada pensando justamente pensando no bem comum, dando ao administrador esta faixa de escolha. O princípio da separação dos poderes, neste caso só corrobora com a tese da imunidade da interferência do Poder Judiciário, muito embora este não seja fundamento decisivo, pois já se viu que hoje é admitido o entendimento de um princípio de interdependência harmônico entre os poderes (PESTANA, 2010, p. 657). O que se verifica, contudo, é que pela ideia de discricionariedade administrativa aferida ao longo deste trabalho, contrastada com as posições doutrinárias quanto ao controle judicial dos atos administrativos é de que essa margem de escolha para o administrador pública, apesar de ter aparência de ampla e desmedida, é, pelo contrário, bem limitada e controlável em concreto. É a ideia que paira no pensamento exposto na obra de Rita Tourinho quando a autora expõe que, no caso concreto o administrador deverá atender de forma satisfatória os princípios do Direito Administrativo, em especial o de que a atuação administrativa deve buscar a melhor satisfação do interesse público (TOURINHO, 2004, p. 49-50). O exame judicial do ato administrativo discricionário, portanto, consistiria basicamente no exame principiológico daquela atuação pela Justiça, seja em contraste aos princípios constitucionalmente explícitos (aqueles consubstanciados no art. 37 da CF/88: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência), seja em contraste aos princípios implícitos, dentre os quais se destacam os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da supremacia do interesse público e o da motivação dos atos administrativos (idem, p. 62-120). Assim, nesta aplaudível visão doutrinária, teríamos não só o interesse público como centro balizador do exame judicial dos atos administrativos discricionários, mas sim um vasto conjunto de princípios de direito administrativos que locupletam aquilo que a lei não pode descrever ao prever que em certos casos, ao administrador, ser-lhe-ia necessária a outorga não de um poder, mas sim de um poder-dever, para agir no caso concreto, com a observância que requer os atos discricionários em direito administrativo. CONCLUSÃO Não se trata de assunto de fácil manuseio a discricionariedade no âmbito da atuação do poder público estatal. Isto porque, devido a abertura legislativa dos diversos conceitos que circundam o assunto principal, não há autoridade na doutrina para se reconhecer um conceito cerrado e definitivo sobre o instituto. Por sorte, este não é, e não foi em nenhum momento, o objetivo deste trabalho, apesar de que, no pouco que foi possível caminhar, foi possível tirar algumas conclusões (estas sim com melhor precisão, pois tratam tão somente da pesquisa realizada) sobre o assunto. Uma vez verificado o simples fato de que os atos administrativos, em sua conceituação, são atos produzidos por seres humanos em substituição à Administração Pública dos órgãos estatais, admite-se a possibilidade de se verificarem na feitura destes atos vícios capazes de macular sua validade. Razão pela qual o próprio Direito se preocupou em trazer instrumentos capazes de corrigir estes vícios. O controle dos atos administrativos, seja pelo exercício da autotutela, seja pelo controle realizado pelos órgãos do Poder Judiciário em sua função jurisdicional, é estritamente necessário para a concretização de um Estado de Direito fundamentado nos princípios constitucionais. Se, porém, o conceito de discricionariedade no âmbito da atuação da Administração Pública é doutrinariamente conturbado, não se poderia esperar algo diferente para a possibilidade seu controle por outro poder estatal em atendimento ao seu dever no papel de colaborador do sistema de freios e contrapesos instaurado no seio do princípio da separação dos poderes. A evolução da doutrina administrativa levou à superaçãodo princípio de legalidade administrativa para abarcar a obediência ao princípio da juridicidade do ato administrativo. Ou seja, mais que apenas obedecer às normas de direito administrativo, faz-se necessária observância também aos princípios que compõe toda a sistemática deste ramo do Direito Público. E é neste ponto que, apesar das diversas visões doutrinárias e das diferentes nomenclaturas e caminhos lógicos percorridos, os doutrinadores de direito administrativo coincidem seus pensamentos, pois, não foi encontrada doutrina que aceitassem uma pura obediência à norma escrita na legislação esparsa ou até mesmo explicitamente no texto constitucional. Os doutrinadores concordam na observância obrigatória do conjunto principiológico que existe na doutrina acerca da discricionariedade administrativa. Portanto, além da possibilidade de o próprio órgão do qual emanou o ato administrativo inválido requerer sua revisão pelo exercício da autotutela (revisão ou anulação do ato), e além também da possibilidade de o Poder Judicial rever os atos administrativos vinculados quando estes inobservarem a lei à qual está submetido (anulação do ato), foi observado que mesmo nos casos em que é conferida ao administrador a faculdade de agir dentre um conjunto de possibilidades fáticas, dever-se-ia observância aos princípios de direito administrativo, expressos ou não na lei ou na Constituição da República Federativa do Brasil. Ou seja, não é de tudo tão aberto o conceito jurídico de discricionariedade, pois se assim o fosse, estar-se-ia dando margens a ilicitudes, a malfeitorias com os instrumentos de atuação da máquina pública, como infelizmente se observa nos dias de hoje. A maior abordagem pública de um assunto que é, em verdade, mais próximo da vida civil do que se pensa, poderia trazer ao público a clareza de se observar que mesmo no ato de administrar, mesmo naquela margem de decisão baseada nos ditames deste ou daquele governo, existe um dever atrelado ao poder. Trata-se da observância, do zelo à coisa pública. Trata-se da supremacia do poder público sobre o privado. Trata-se da concretização fática do que fora construído na história em prol do bem comum, pilar de um Estado que não pode ser corrompido por uma manipulação desta discricionariedade. Na administração pública, mesmo na liberdade de agir da administração deve ainda assim existir e, mais que isso, frisar a condição precípua e anterior de que deve ser pública esta administração.
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